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8/3/2019 CINEMA E MISTICISMO ORIENTAL - sobre representao
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARCENTRO DE HUMANIDADES
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LINGUSTICA APLICADA
ALDO MARCOZZI EVANGELISTA MONTEIRO
CINEMA E MISTICISMO ORIENTAL: a representao do Zen Budismo na obrade Akira Kurosawa
FORTALEZA, CEAR2010
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ALDO MARCOZZI EVANGELISTA MONTEIRO
CINEMA E MISTICISMO ORIENTAL: a representao do Zen Budismo na obrade Akira Kurosawa
Dissertao apresentada ao Programa dePs-graduao em Lingstica Aplicada doCentro de Humanidades da UniversidadeEstadual do Cear, como requisito parcial para a obteno do ttulo de mestre emLingstica Aplicada. rea deconcentrao: Estudos da linguagem.Linha de pesquisa: traduo, lexicologia eProcessos cognitivos.
FORTALEZA CEAR2010
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARCENTRO DE HUMANIDADES
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LINGUSTICA APLICADA
FOLHA DE APROVAO
Ttulo da Dissertao: CINEMA E MISTICISMO ORIENTAL: AREPRESENTAO DO ZEN BUDISMO NA OBRA DE AKIRA KUROSAWA
Autor: ALDO MARCOZZI EVANGELISTA MONTEIRO
Orientador: Prof. Dr. Raimundo Ruberval Ferreira
BANCA EXAMINADORA:
Orientador: Prof. Dr. Raimundo Ruberval Ferreira - UECEPresidente
Prof. Dr. Carlos Augusto Viana da Silva - UFCPrimeiro examinador
Profa. Dra. Laura Tey Iwakami - UECESegunda examinadora
DATA DA DEFESA: 20.01.2010
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No corras atrs do passado, no busques o futuro. Ambos so iluses. V,claramente, diante de ti o Agora. Quando o tiveres encontrado vivers o tranqilo eimperturbvel estado mental.
(Buda Gautama)
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A meu pai
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AGRADCIMENTOS
Pelas contribuies e incentivo gostaria de agradecer ao meu orientador eamigo Prof. Dr. Raimundo Ruberval Ferreira. Por me auxiliar a encontrar o caminho doaqui agora atravs da prtica do Yoga, meu muito obrigado a Jimena Marques.
Agradeo tambm colega Gleyda Cordeiro pela colaborao na elaboraodo resumo em francs, e a meus familiares pelo apoio, em especial minha sobrinhaMariana.
Por fim devo agradecer (de mos postas diante do peito) queles homens quese dedicaram propagao da sabedoria do Buda Sakyamuni e do Zen, em especialBodidharma, primeiro patriarca Zen, D. T. Suzuki e Allan Watts.
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RESUMO
O Zen budismo uma forma de misticismo que influenciou a cultura do ExtremoOriente, no apenas por ser uma espcie de religio, mas porque suas concepes sobre
a existncia influenciaram um grande nmero de representaes sociais, estticas emilitares. O cinema japons acaba por ser influenciado pelo referido misticismo a pontode aparecer representado na obra de Akira Kurosawa, um de seus mais importantesdiretores. Partindo deste pressuposto, analiso de que maneira o Zen budismo estrepresentado em trs filmes do referido diretor: Trono Manchado de Sangue (1957),Sonhos (1990), e Viver (1952). Considero que os trs filmes, apesar de o fazerem porvias peculiares, performatizam o Zen fazendo com que tais filmes acabem por assumir aresponsabilidade por um discurso contra hegemnico, na medida em que exaltamconcepes de existncia baseadas na vida simples e contemplativa, alguns dos
princpios fundamentais do Zen. Trono Manchado de Sangue, adaptao da PeaMacbethde William Shakespeare, traz uma representao do Zen calcada, sobretudo
em alguns preceitos morais do budismo, o que realizado em funo da opo narrativade Kurosawa, baseada nas estratgias da tragdia clssica. No filme Sonhos, vemosrepresentada a questo fundamental, no apenas do Zen, mas do budismo em geral: aIluminao, ou Satori. Na referida pelcula tais representaes sugerem refletir sobre anecessidade de aquisio de um novo ponto de vista sobre a existncia que seja capaz deajudar a salvar o planeta de uma hecatombe geral. Em Viver, Kurosawa aborda aquesto da Ignorncia, representada atravs da saga de um personagem que tentareformar sua existncia depois de saber que est com cncer. Esta obra sugere refletirsobre a importncia da capacidade de contemplao para a sade mental e fsica.
Palavras-chave: Representao, cinema, Kurosawa, Zen budismo.
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RSUM
Le zen bhouddisme est une conception de mysticisme qui a une forte influence sur laculture de lExtrme-Orient, surtout puisquil ne sagit pas tout simplement dun type de
religion. Ses concepts sur lexistence ont influenci un grand nombre de reprsentationssociales, esthtiques et militaires. Le cinma japonais a subi aussi cette influence qui estnettement prsente dans loeuvre dun des plus importants ralisateurs japonais, AkiraKurosawa. A partir de cette afirmation, janalyse de quelle manire le zen-bouddhismeest reprsent dans trois films de cet auteur:Kumonosu-jo (1957),Rves (1990) eIkiru(1952). Je considre que ces trois films montrent cette influence dune faon tout fait
particulire puisque ils emploient un discours contre-hgmonique et exaltent lesconceptions de lexistence bases sur la vie simple et contemplative, quelques principesdu zen-bouddhisme.Kumonosu-jo, une adaptation de la pice de thtre Macbeth deShakespeare, nous apporte une reprsentation du zen base sur quelques conceptionsmorales du bouddhisme au mme temps quil emploie aussi les lments de la tragdie
classique. Dans le film Rves, nous observons la reprsentation du zen etprincipalement du bouddhisme en gnral: le concept de lillumination, ou Satori, enjaponais. Dans le film ces reprsentations nous poussent la rflexion sur le besoin de lacquisition dun nouveau point de vie sur lexistence qui soit capable de nous aider sauver la plante dune hcatombe mondiale. Dans le film Ikiru, Kurosawa exploite laquestion de lignorance, reprsente a partir de lhistoire dun personnage qui essaie detransformer son existence aprs la dcourverte dun cancer. Cette oeuvre motive ladiscussion sur limportance de la capacit de contemplation da la sant mentale et
physique.
Mots-cls: reprsentation, cinma, Kurosawa, zen.
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LISTA DE FIGURAS
Figura 1: Prlogo---------------------------------------------------------------------------------91Figura 2: A assinatura de Kurosawa-----------------------------------------------------------94
Figura 3: O Ttulo do filme---------------------------------------------------------------------95
Figura 4: A feiticeira----------------------------------------------------------------------------99
Figura 5: Os samurais e os esqueleto --------------------------------------------------------100
Figura 6: Samurais perdidos em busca do castelo------------------------------------------100
Fugura7: A reflexo dos samurais------------------------------------------------------------101
Figura 8: O ponto de vista dos subalternos--------------------------------------------------103Figura 9: A advertncia da me --------------------------------------------------------------106
Figura 10: A me entrega opunha deixado pelas raposas---------------------------------106
Figura 11: A dana dos espritos da natureza-----------------------------------------------108
Figura 12: O menino---------------------------------------------------------------------------108
Figura 13: A reticncia do Satori------------------------------------------------------------ 109
Figura 14: Os alpinista na nevasca-----------------------------------------------------------110
Figura 15: O Tnel-----------------------------------------------------------------------------113
Figura 16: O soldado que clama pela iluminao------------------------------------------114
Figura 17: Os ogros autofgicos -------------------------------------------------------------116
Figura 18: A aldeia dos moinhos de vento--------------------------------------------------117
Figura 19: Quando o Heri reflete-----------------------------------------------------------119
Figura 20: O cortejo fnebre -----------------------------------------------------------------121
Figura 21: O estmago de Watanabe--------------------------------------------------------122
Figura 22: Watanabe entre os processos----------------------------------------------------123
Figura 23: A avalanche burocrtica---------------------------------------------------------124
Figura 24: Watanabe retorna para casa-----------------------------------------------------125
Figura 25: Watanabe diante do oratrio----------------------------------------------------126
Figura 26 Watanabe e o escritor-------------------------------------------------------------128
Figura 27: O Chapu como smbolo do novo pensamento ------------------------------128
Figura 28: O encontro com a jovem --------------------------------------------------------129
Figura 29: Watanabe saindo para a vistoria------------------------------------------------130
Figura 30: Watanabe contempla o por do sol----------------------------------------------130
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SUMRIO
INTRODUO-----------------------------------------------------------------------------------12
1. ALGUMAS FALAS SOBRE REPRESENTAO--------------------------------16
1.1 . Hall e as representaes --------------------------------------------------------------19
1.1.1 . Hall e os sistemas de representao-----------------------------------------20
1.1.2 .Hall e as teorias da representao--------------------------------------------23
1.1.3 .Linguagem e performatividade ----------------------------------------------241.1.4 .As representaes Sociais ----------------------------------------------------26
1.2 . Cinema e Pensamento -----------------------------------------------------------------30
2. SOBRE KUROSAWA E SUA OBRA----------------------------------------------------41
2.1.Primeira fase------------------------------------------------------------------------------41
2.2. Segunda fase congruncias com o cinema neo-realista e com o cinema
Noir-----------------------------------------------------------------------------------------------------42
2.3. Terceira fase-----------------------------------------------------------------------------45
2.4. A terceira fase e os Jidai-Geki --------------------------------------------------------47
2.5. A quarta fase ou o refinamento final -------------------------------------------------49
2.5. Kurosawa visto por ele mesmo -------------------------------------------------------52
2.5.1. Kurosawa e construo de um roteiro-----------------------------------------52
2.5.2. Kurosawa e a censura------------------------------------------------------------552.5.3. Kurosawa, suas referncias literrias e sua adaptaes ---------------------55
2.5.4. Kurosawa e sua tcnica de filmar ----------------------------------------------56
2.5.5 Kurosawa e os atores -------------------------------------------------------------58
2.5.6. Kurosawa e o teatro tradicional japons --------------------------------------60
3. CINEMA E MISTICISMO ORIENTAL------------------------------------------------62
3.1. Metodologia -----------------------------------------------------------------------------62
3.1.1. Constituio do corpus ----------------------------------------------------------62
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3.1.1.1. Trono Manchado de Sangue-----------------------------------------------62
3.1.1.2. Sonhos------------------------------------------------------------------------64
3.1.1.3 Viver --------------------------------------------------------------------------66
3.1.2. Procedimentos metodolgicos-------------------------------------------------67
3.2 . Cinema e Misticismo Oriental: a representao do Zen Budismo na Obra de
Akira Kurosawa-----------------------------------------------------------------------69
3.2.1. Os primrdios do budismo----------------------------------------------------------70
3.2.2. Um criana especial------------------------------------------------------------------71
3.2.3. Um adulto especial-------------------------------------------------------------------73
3.2.4. A descoberta da verdade ------------------------------------------------------------ 74
3.2.5. A despedida final---------------------------------------------------------------------77
3.2.6. Iluminao ou Sambodhi------------------------------------------------------------78
3.2.7. Ignorncia -----------------------------------------------------------------------------80
3.2.8. Os caminhos do budismo------------------------------------------------------------81
3.2.9. O Zen-----------------------------------------------------------------------------------84
3.2.10. A disciplina Zen --------------------------------------------------------------------85
3.2.11. Satori, Koan e a prtica do Zazen ------------------------------------------------87
3.2.12. O budismo Zen e a cultura do Extremo Oriente--------------------------------88
3.2.13. Trono Manchado de Sangue, ou o Bem pelo Mal ------------------------91
3.2.13.1. O sermo da flor -----------------------------------------------------------96
3.2.14. Sonhos ou a investigao sobre o Satori e a Iluminao---------------------104
3.2.15. Viver a representao da ignorncia ou Avidya-----------------------------121
CONSIDERAES FINAIS-------------------------------------------------------------132
BIBLIOGRAFIA CITADA---------------------------------------------------------------136
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA------------------------------------------------------137
FILMOGRAFIA----------------------------------------------------------------------------138
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INTRODUO
O Budismo teve sua origem no norte da ndia, durante o sculo V a.C.
quando o Buda Histrico, Sidhartha Gotama atingiu o estado de suprema introspeco
nos mistrios da vida, conhecido como iluminao. A partir deste momento Buda
iniciou a transmisso de seus ensinamentos atravs de uma linhagem de 28 patriarcas,
at finalmente chegar a Bodhidharma, que levou o Budismo para a China, no sculo VI
d.C. Segundo a tradio a suprema introspeco de Buda foi transmitida de um
indivduo para outro, sem o intermdio de escrituras ou de qualquer ensinamentobaseado em doutrinas. Por isso se diz de sua transmisso que se deu diretamente, como
uma espcie de comunicao feita de esprito para esprito. No entanto, ao mesmo
tempo em que a referida mensagem de Buda era assim propagada, alguns seguidores
iam se organizando em diferentes seitas, que podem ser reduzidas em duas divises
principais: o ramo Mahayana, ou grande veculo, e o ramo Hinayana, ou pequeno
veculo.
A diferena principal entre as duas correntes o fato de que, enquanto ramo
Mahayanico estabelece e admite a propagao do Budismo por escritos e tratados
metafsicos variados, o ramo Hinayanico s o faz por intermdio do Cnone de Pli, ou
Tripitaka, que um conjunto de ensinamentos ticos atribudos ao prprio Buda
Histrico. Assim, o budismo Hinayanico, ou Theravada ficou restrito ao sul da sia,
notadamente Ceilo, Burma e Sio, enquanto que o ramo Mahayanico penetrou o Norte
chegando China, Tibete, Monglia, Coria e Japo, onde se sedimentou fortemente
como o Zen budismo.
A principal caracterstica do Zen o fato de ser uma disciplina mstica que
se aproxima muito do budismo primitivo, uma vez que prope a chegada ao estado de
profunda introspeco sem nenhum tipo de ritual ou escritura e que enfatiza a
naturalidade e a espontaneidade como sendo a principal via para se atingir o
conhecimento supremo da Iluminao, chamada, no mbito do Zen, de Satori. Mas o
que principalmente importante ressaltar que a referida disciplina mstica vai
influenciar fortemente, no apenas o Japo, mas toda a civilizao do Extremo Oriente.
E a esta influencia se fez sentir tanto na esttica como nas artes militares.
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Em termos estticos a influencia do Zen vai chegar arquitetura, literatura
e pintura e em termos das artes militares vai influenciar o cdigo cavalheiresco dos
samurais, bem como as tcnicas do Jiu-Jitsu e do Kenjutsu (esgrima). Logo o que era
uma concepo sobre a existncia, segundo um ponto de vista transcendentalista, acaba
por se converter em um variado nmero de representaes capazes de marcar os
diversos fazeres de uma civilizao, cuja cultura singular no mundo inteiro.
O cinema, sendo uma forma de representao capaz de performatizar
maneiras de pensar e modos de ser no mundo, vai tambm sofrer a influncia do Zen,
ainda que de forma indireta, o que pode ser atestado nas obras de vrios diretores
japoneses tais Como Ozo ou Mizoguchi e notadamente Kurosawa. Este ltimo
conhecido no mundo por sua obra altamente comprometido com o universo do Extremo
Oriente e em seus filmes, que tambm dialogam com a linguagem cinematogrfica do
ocidente, o referido diretor costuma trazer personagens, narrativas e temas, que por sua
peculiaridade refletem fortemente o imaginrio japons, alm de serem profundamente
comprometidos com a histria poltica do Japo.
Partindo do pressuposto de que o Zen est presente na obra de Kurosawa
como uma influncia importante, a presente pesquisa se debrua sobre trs de seus
filmes, a saberTrono Manchado de Sangue (1957), Sonhos (1990) e Viver(1952) com o
objetivo principal de analisar, atravs de que recursos flmicos o Zen budismo est
sendo representado, buscando compreender que compromissos tais representaes
assumem dentro de uma perspectiva da poltica de representao. Nosso interesse em
realizar um estudo desta natureza surge da possibilidade de podermos articular
diferentes reas do conhecimento que partem dos estudos de representao, e cinema e
vo at as especulaes sobre o misticismo oriental. Outro foco principal de nosso
interesse a prpria obra de Akira Kurosawa, que apesar de to importante para a
histria do cinema mundial, carece de estudos mais aprofundados, sobretudo em lnguaportuguesa.
Esta pesquisa est dividida em trs captulos. No primeiro deles so
abordadas questes relacionadas representao e a uma viso performativa da
linguagem, bem como linguagem cinematogrfica e suas relaes com o pensamento e
a chamada poltica de representao. Procuramos na primeira parte discutir as
representaes e seus modos de articulao, dando relevo sua importncia para a
formao dos circuitos culturais, bem como refletindo sobre elas luz da dimensoperformativa da linguagem. Por outro lado discutirmos as representaes sociais pondo
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em relevo o seu aspecto de construto scio-histrico, no deixando de fazer referncias
ao seu papel primordial na conduo dos comportamentos. Para tanto nos valemos dos
estudos de Hall (2002), Rajagopalan (2002), Ferreira (2007) e Shoah e Stam (2006),
Alexandre (2004), Austin (1990), Fiori (2008) e Soares (2007). importante ressaltar
que assim como os referido autores, consideramos o fenmeno da representao como
sendo mltiplo e variado, no deixando de ser da mesma forma atravessado por
questes ticas e estticas.
Na segunda parte do primeiro captulo nos dedicamos a averiguar algumas
questes relacionadas linguagem do cinema, pondo em relevo as diversas formas com
que esta arte pode instigar o pensamento, construindo conceitos e representando estados
de mundo. No mesmo captulo damos destaque potencialidade do cinema para ser
utilizado como veculo de propaganda ideolgica, sem deixar de mencionar que sua
utilizao como linguagem pode ser empreendida tanto pra a construo de
determinadas ideologias, comprometidas com uma indstria cinematogrfica, como
para a construo de outras representaes que apontem para uma possibilidade contra
hegemnica da existncia. Neste parte do segundo captulo nos apoiamos em estudos de
Deleuze (2007), Shoat e Stam (2006), Rajagopalan (2002) e Zizek (2004).
O segundo captulo dedicado construo de um panorama da obra do
diretor Akira Kurosawa. Num primeiro momento nossa inteno a de tecer
consideraes sobre as quatro fases principais do referido diretor, tentando observar em
cada uma delas no apenas as influncias formais, mas tambm as peculiaridades
temticas e narrativas. Na ocasio tecemos tambm consideraes sobre o estilo de
Kurosawa, buscando destacar os seus filmes histricos, ponto alto de sua obra. No
segundo momento nossa inteno de traar um perfil de Kurosawa como artista, na
tentativa de tentar compreender melhor suas influncias literrias, sua relao com o
teatro e com o fazer cinematogrfico de um modo geral. Este captulo nos parece degrande relevncia na medida em que, em lngua portuguesa, no encontramos escritos
que incumbidos de traar um panorama da obra de Kurosawa. Os poucos escritos que
existem sobre o diretor esto disponveis apenas no mercado editorial estrangeiro. Para
a construo deste captulo recorremos a uma observao acurada da obra do diretor
bem como a entrevistas suas, dadas em diferentes pocas. Recorremos tambm ao
importante estudo de Estvez (2005)
O terceiro captulo iniciado por uma apresentao do corpus bem como dametodologia. Em seguida fazemos um delineamento sobre o Zen Budismo buscando
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esclarecer as peculiaridades desta disciplina mstica, e estabelecer suas influncias na
cultura do extremo Oriente. Para isto nos baseamos nos estudo de Suzuki (1969 e 1995),
Watts (2002 e 2008), Coehn (2008), Mastrangelo (1994) Nukariya (2006), bem como
em publicao da Bukio Dendo Kiokai (fundao para propagao do budismo). Em
seguida realizamos a anlise do corpus, buscado analisar como o Zen est nele
representado, buscando observar que compromissos estabelecem no jogo de luta por
representao.
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1- ALGUMAMAS FALAS SOBRE REPRESENTAO
O conceito de representao, conforme j tem sido amplamente referido em
inmeros estudos, como os de Hall (2002) por exemplo, no to simples que se possa
abarcar apenas com uma definio. Alm de amplo ele tem sido utilizado desde a
antiguidade at os dias atuais com as mais diversas acepes e sua evoluo tem
garantido inmeros avanos no mbito dos estudos culturais, alm de contribuir para a
ampliao dos estudos lingsticos.
E justamente por ser to ampla que a noo de representao dificilmentepode ser delimitada. Tendo em vista a multiplicidade de acepes do termo, apresento
algumas dessas acepes, mostrando quais delas so teis para pensarmos as questes
deste trabalho. Nesse sentido, articulo as discusses sobre representao social com as
discusses que entendem a representao enquanto uma atividade eminentemente
discursiva, portanto scio-histrica ideolgica, que envolve, sobretudo lutas por
representaes. Sendo portanto a representao, uma atividade discursiva podemos
afirmar que encontra uma dimenso tica, poltica e ideolgica. Nesta linha de
pensamento tomo como referncia as discusses feitas por autores tais como Hall
(2002), Rajagopalan (2002), Deleuze (2007), Ferreira (2007) e Shoah e Stam (2006),
Alexandre (2009) e Austin (1990).
No presente especificamente tentaremos realizar um percurso por algumas
discusses que tomaram o conceito como mote de sua reflexo, para depois fazermos
uso de algumas dessas discusses nas anlises dos trs filmes do diretor Akira
Kurosawa, que compem o nosso corpus, a saberTrono Manchado de Sangue (1957),
Sonhos (1990) e Viver(1954)
Para iniciarmos nossas discusses partamos de uma afirmao de Soares
(2007) segunda a qual o termo representao seria oriundo do latim, mais
especificamente do termo representationis, que designa uma imagem capaz de
reproduzir alguma coisa. Neste caso podemos entender que se trata de um termo que
remonta idade mdia e que, na filosofia escolstica servia para indicar uma imagem,
idia ou ambas as coisas (Soares op. cit. p. 02). O importante compreendermos que
no contexto medieval, o termos representao era utilizado para estabelecer relaes de
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semelhanas entre objetos, embora, segundo o mesmo autor mais tarde, tenha passado a
se referir ao significado das palavras.
Fiorin (2008), por sua vez tambm afirma que a noo clssica da
representao est ligada a uma idia de que quando algo posto no lugar de outra coisa
para represent-la em sua ausncia uma realidade extra-lingstica. Conforme
podemos constatar em suas palavras, no mbito do pensamento clssico, a representao
vista da seguinte forma:
A representao no entendida como uma produo do homem, como umsentido gerado por ele, mas vista como algo inscrito na prpria natureza darelao entre linguagem e mundo. No tem ela um estatuto semntico, mas umestatuto ontolgico (fiorin op. cit. p. 199)
Como podemos perceber o conceito de representao utilizado com o
sentido de estar no lugar de, conforme a abordagem clssica adota uma concepo
literal do termo, que por sua vez est ligada idia de analogia, ou ainda est fortemente
ancorada no sentido de representao como mimese.
Segundo Soares (op. cit) esta tambm a definio dada por Peirce para
representao, bem como para o ato de representar, seno vejamos:
Estar no lugar de, isto , estar numa tal relao com um outro que, para certospropsitos, considerado por alguma mente como se fosse esse outro. Assim, umporta voz, um deputado, um advogado, um agente, um vigrio, um diagrama, umsintoma, uma descrio, um conceito, uma premissa, um testemunho, todosrepresentam alguma coisa, de diferentes modos, para mentes que os consideramsob esse aspecto (Peirce 2008 11, p. 61).
Ainda segundo Soares, em sua origem o conceito de representao
servia para designar algum tipo de imitao sendo ligado a processos cujas finalidadesconsistiam em retratar algo, tendo, portanto um sentido de analogia. Outros autores que
se referem dimenso mimtica da representao so Shohat e Stam (2006). Em seu
texto em que abordam a questo do esteretipo, realismo e luta por representao os
referidos autores destacam que, em sua dimenso esttica, a representao uma forma
de mimese, assim como concebem Aristteles e Plato. Nas palavras de Shohat e Stam:
A representao tambm tem uma dimenso esttica, pois a arte uma forma derepresentao, uma mimese, em termos platnicos e aristotlicos. A representao
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teatral, e em muitas lnguas representar significa atuar ou fazer um papel. (...) Oque todos esses exemplos tm em comum o princpio semitico de que algo estno lugar de uma outra coisa, ou de que algum ou um grupo est falando em nomede outras pessoas ou grupos (Stam op. cit. P. 268)
Para Hall (2002), no entanto, o enfoque semitico, bem como o clssico,
apresentam-se dotados de certa limitao, pois suas compreenses do fenmenonecessitam de unidades maiores de anlise (op. cit. p. 25), como os discursos, por
exemplo. Para Hall a semitica parece confinar os processos de representao
demasiadamente linguagem e se ocupa em trat-los feito sistemas estticos como se
fossem encerrados em si mesmos. Outra restrio de Hall com relao s concepes de
representao oriundos da semitica o fato de neste mbito terico o sujeito ser
destronado do centro da linguagem
Seguindo na tentativa de estabelecer uma evoluo do conceito de
representao, Soares destaca o uso freqente que o conceito passou a ter na filosofia,
sobretudo depois do sculo XVIII, com Kant. Este filsofo deu uma das maiores
contribuies para o uso do termo na medida em que passou a consider-lo como
oriundo do processo humano de cognio. Para Kant o mundo construdo em funo
das limitaes dos nossos sentidos, sendo as representaes formas condicionadas.
Schopenhauer mais tarde amplia os horizontes da filosofia Kantiana, na medida em que
afirma que o mundo representao para um sujeito, o qual no pode perceb-lo fora
daquilo que chamou de princpio da razo suficiente. Segundo Schopenhauer o mundo
representao para um sujeito, que no consegue perceb-lo sem a concorrncia dos
fatores de tempo espao e causalidade.
Como podemos observar, partindo de Kant, o conceito de representao
passa a ser ampliado, pois passa a ser tomado como o resultado de toda a ao mental
humana. O Prprio Soares (op. cit. p. 4) destaca que, com as contribuies de Kant, at
mesmo as cincias, antes tomadas como as responsveis por estarem acima de toda e
qualquer possibilidade de falseamento, so agora vistas como representaes, ou seja
como idia criadas do mundo em funo da cognio humana. Segundo o referido autor,
temos o seguinte:
Mesmo as cincias baseadas na observao do mundo emprico se constituem deconceitos, modelos, diagramas, esquemas, teorias, sistemas, hipteses, leis,explicaes interpretaes, ou seja de representaes simblicas do mundo,construdas. (Soares op. cit. p. 04)
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Ferreira (2007) por outro lado afirma que, aps a virada lingstica
ocorrida no interior da filosofia, o conceito passou a ser tambm abordado no campo
dos estudos culturais. Como conseqncia o termo deixa de ser exclusividade apenas da
filosofia e passa a ser alvo de interesse tanto das cincias sociais como da histria, bem
como dos estudos culturais, entre outros campos. Em funo do referido percurso o
conceito de representao se redimensiona e passa a servir tambm para orientar a
compreenso dos processos de construo do mundo social.
1.1- HALL E AS REPRESENTAES
Algumas das mais importantes reflexes sobre representao acerca dofenmeno da representao na formao dos circuitos culturais so tributadas Hall
(op. cit.). Segundo o referido autor, as prticas de representao constituem uma chave
fundamental para compreender como se processa e se organiza o mundo da cultura. Hall
defende que as representaes chegam hoje a ocupar um decisivo e inovador lugar no
mbito dos estudos culturais, pois para ele, representar tem a ver com os usos da
linguagem investida do intuito de dizer alguma coisa para o mundo, sendo esta coisa
constituda de sentido. Assim, para Hall, ao usar a linguagem algum o est fazendopara representar o mundo de maneira significativa para outra pessoa. Nas palavras de
Hall, temos:
Representacnes la produicin de sentido e de los conceitos em nossas mentesmediante el linguaje. Es el vnculo entre los conceptos y el linguaje que noscapacita para referirnos, sea al mondo real de los objetos, gentes o evento, o auna los mondos imaginrios de los objetos, gente o evento (op. cit. p. 04).
No contexto da presente pesquisa tais horizontes tericos se mostram como
fundamentalmente teis na medida em que, atravs de nossas anlises buscaremos
averiguar at que ponto Kurosawa, estabelece uma fala para o mundo sobre uma
realidade de pensamento que geralmente est circunscrita no apenas escrituras ditas
sagradas, mas que faz parte do modus vivendi do povo japons. Nossa hiptese de que
esta fala a que nos referimos estabelecida, no cinema de Kurosawa, a partir de um
conjunto de representaes, que por sua vez podem ser melhor divisadas, caso se lace
para elas um olhar mais especfico. E este olhar mais especfico a que nos referimos
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pontualmente aquele que tambm atravessados pela vises de mundo provenientes do
Extremo Oriente. Em relao ao que acabamos de afirmar, importante deixarmos
esclarecido que o interesse de realizar a presente pesquisa surgiu quando, em 2002, ao
tomarmos contato com o budismo, nos vimos diante de uma pelcula de Kuroawa que
parecia fazer uma ntida referncia ao Zen.
Se por sua vez o cinema uma forma de representao que historicamente
esteve sempre comprometida com as vises de mundo dos contextos em que so
geradas, o cinema de Kurosawa, fortemente comprometido com a cultura Japonesa, no
podia deixar de ser uma exceo. A referida relao entre a representao
cinematogrfica e os contextos culturais ainda mais clara, em nossa opinio, na
medida em que, o ato de representar, segundo fica explcito na passagem acima
constitudo de uma dupla articulao. Isto porque, se de um lado h possibilidade da
mente em formar conceitos, de outro h o apelo simblico da linguagem que capacita o
indivduo a fazer referncias ao mundo, seja ele real ou fictcio, tal como possvel ao
cinema. Neste sentido, ser relevante para nossa discusso aquilo que Hall chama de
sistemas de representao.
1.1.1- HALL E OS SISTEMAS DE REPRESENTAO
Para Stuart Hal (op. cit.) o fenmeno da representao pode ser
compreendido como ocorrendo dentro da lgica daquilo que ele chama de sistemas de
representao. O primeiro sistema de representao que Hall coloca em relevo aquele
que est relacionado com a capacidade humana para o processamento mental da
linguagem. Segundo o referido auotr, o primeiro sistema diz respeito aos processos
pelos quais todo tipo de objetos, gente e eventos (op. cit. p. 4) entram em correlaocom um variado conjunto de conceitos ou representaes mentais, conforme cada
indivduo leva em sua cabea. Para Hall o sentido radica e depende dos sistemas de
conceitos e imagens que se formam no pensamento individual, os quais por sua vez
podem intentar representar o mundo a ponto de nos capacitar a fazer determinadas
referncias a coisas que esto, no apenas dentro, mas tambm fora de nossas mentes.
Nas palavras de Hall:
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Podemos formar conceitos de coisas que percebemos gente e objetos materiais,como cadeira, mesas e escritrio. Mas tambm formamos conceitos de coisas maisobscuras e abstratas, que no podemos ver, nem sentir ou tocar de maneira simples.Pense, por exemplo, em nosso conceito de guerra, ou morte, ou amizade, ou amor. Ecomo podemos observar, tambm formamos conceitos sobre coisas que nunca vimos,e possivelmente nunca veremos, e sobre gentes e lugares que simplesmente
inventamos.(Hall, op. cit. p. 4)
Hall esclarece que chama a este processo de primeiro sistema de
representao uma vez que no se trata da formao de conceitos individuais, mas de
diferentes formas de organizar, agrupar, regular e classificar conceitos, estabelecendo
relaes entre eles. Como exemplo Hall cita nossa capacidade de estabelecer princpios
de semelhana e diferena, que nos habilita a realizar comparaes entre conceitos,
destacando que, esta capacidade para formular idias mais complexas, a partir de
conceitos e pensamentos, s possvel porque os conceitos esto organizados dentro de
diferentes sistemas classificatrios. Mas Hall destaca que h outros princpios
semelhantes em todos os sistemas conceituais e exemplifica:
por exemplo, classificar de acordo com seqncias (...) causalidade e assimsucessivamente. O ponto de que estamos falando no de uma coleo aleatriade conceitos, mas de conceitos organizados e classificados dentro de relaescomplexas entre elas (Hall op. cit. p. 5).
Por outro lado, o mesmo autor destaca que pode acontecer, como o geral,
de que determinado mapa conceitual que um indivduo traz em sua cabea seja diferente
do mapa conceitual que outro indivduo porta. Sendo assim as interpretaes do mundo
podem ser dadas de maneira completamente distintas, a depender do indivduo. No
entanto, ainda segundo Hall, existe na esfera humana uma capacidade para o
compartilhamento de conceitos ou de mapas culturais o que nos permite ter a sensao
de pertencimento a uma mesma cultura. Nas palavras de Hall temos o seguinte:
Porque interpretamos o mundo de maneira aproximadamente igual, podemosconstruir uma cultura compartilhada de sentidos e portanto construir um mundosocial que habitamos conjuntamente (Holl op. cit. p. 5).
Hall chama a ateno, no entanto, para o fato de que, alm do mapa
conceitual compartilhado necessrio que possamos representar e fazer o intercmbio
de sentidos e conceitos, o que por sua vez s possvel quando temos acesso
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linguagem. A Linguagem portanto aparece no mbito das digresses de Hall como
sendo o segundo sistema de representaes,estando portanto envolvida no processo
global da construo de sentido. Hall afirma que os mapas conceituais devem poder ser
compartilhados e ser traduzidos numa linguagem comum, de forma que seja possvel
estabelecer a relao de determinados conceitos e idias em palavras, sons, ou imagens,
em suma, em signos. Neste ponto o que Hall faz colocar em destaque a dimenso
simblica da linguagem que consegue, atravs de sua dinmica, congregar os sentidos e
os conceitos. Em suas palavras:
O termo geral que usamos para palavras, sons ou imagens signo. Estes signosesto, ou representam os conceitos e as relaes conceituais. Estes portamos em
nossas cabeas e seu conjunto constitui o que chamamos de sistema de sentidos denossa cultura(Hall, op. cit. p. 5).
De acordo com Hall os signos esto organizados na linguagem sendo
assim, sua existncia comum o que permite a traduo dos pensamentos em palavras,
sons o imagens. Dessa forma possvel que o indivduo use o signo para expressar
sentido e estabelecer comunicao de pensamentos a outras pessoas. Vale ressaltar que
existe uma ao nesse trabalho discursivo, o que envolve como dissemos antes, uma
dimenso tico poltica. Para nossa pesquisa esta discusso relevante uma vez queestamos lidando com um fazer, como o cinema, que capaz de estabelecer um tipo de
comunicao em que, idias e comportamentos sobre o mundo aparecem como pedra
angular de sua configurao enquanto linguagem.
Finalizado suas digresses, Hall afirma que o corao do processo de
criao de sentido no seio da cultura formado pelos sistemas relacionados de
representao. No que diz respeito ao primeiro sua importncia reside no fato de que
ele que permite dar sentido ao mundo, mediante a elaborao de um conjunto decorrespondncias ou cadeia de equivalncias. Para Hall, como acreditamos ter ficado
claro, o primeiro sistema de representaes composto pelas coisas, gente objeto,
eventos e idias abstratas, bem como sistemas de conceitos e mapas conceituais.
No que diz respeito ao segundo sistema de representaes Hall destaca que
este formado pela dimenso simblica da linguagem que permite a correspondncia
dos diversos mapas conceituais, bem como do conjunto de signos. Por fim Hall destaca
que o processo que vincula conceitos, signos e linguagem o que se entende porrepresentao, que por sua vez se aplica inteiramente linguagem cenematogrfica.
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1.1.2 HALL E AS TEORIAS DA REPRESENTAO
Alm de abordar a questo da representao em sua importncia para aconfigurao dos circuitos culturais, Hall tambm buscou refletir sobre as teorias que,
ao longo do tempo, se ocuparam em refletir sobre o mesmo tema, e que abordaram o
fenmeno da representao procurando construir um arcabouo terico capaz de abarc-
las. Ao realizar tal empreendimento Hall ento revela encontrar trs enfoques bsicos
que procuram explicar de que maneira a representao do sentido trabalha atravs da
linguagem. Tais enfoques so o reflexivo, o intencional e o construcionista. A
importncia de abordar, tais enfoques em sua teoria reside no fato de que, atravs de talempresa, segundo o prprio Hall, possvel saber de onde vem o sentido.
O primeiro enfoque, em relao s teorias da representao foi nomeado
por Hall de reflexivo. Isto porque, de acordo com o referido autor, este enfoque pensa a
questo do sentido como que funcionando feito uma espcie de espelho, capaz de
refletir o que seria o verdadeiro sentido, tal como ele existe no mundo. Para Hall, est
albergada neste enfoque a idia de representao como mimese segundo a qual a
linguagem atua como um simples reflexo ou imitao da verdade que j est fixada no
mundo (Hall, op. cit. p. 9). Sendo assim, para o referido autor, as teorias mimticas, j
mencionadas por ns anteriormente, carregam uma certa verdade bvia da
representao e da linguagem.
O segundo enfoque, prossegue o Hall, se constri em direo oposta ao
primeiro, pois sustenta que o sentido e a representao so construdos pelo falante, ou
pelo autor, que capaz de impor um sentido nico sobre o mundo atravs da linguagem.
Para este enfoque as palavras tm o valor e significam de acordo com o desejo do autor,
sendo este o motivo pelo qual Hall nomeia tal enfoque de intencional. Para Hall, o
referido enfoque sustenta que todos ns como indivduos, somos capazes de usar a
linguagem para levar ou comunicar coisas que so especiais para ns, ou para nosso
mundo (Hall, op. cit. p. 10). Sendo assim, como uma teoria geral que se ocupa de
refletir sobre a representao atravs da linguagem, tal enfoque no acredita que o
indivduo seja a nica fonte de sentido, uma vez que a essncia da linguagem a
comunicao, o que por sua vez depende de convenes e de cdigos compartilhados. E
neste aspecto que Hall encontra suas falhas, seno vejamos:
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A linguagem nunca pode ser um jogo privado. Nossos sentidos privados, por maispessoais que sejam, devem entrar nas regras, cdigos e convenes da linguagem afim de que sejam compartilhados e compreendidos. A lngua um sistema social.Isto significa que nossos pensamentos privados foram guardados atravs dalinguagem e atravs da linguagem que podem ser postos em ao (Hall, op. cit.p 10)
O terceiro enfoque refletido por Hall aquele que reconhece o carter
social da linguagem, reconhecendo que nem so necessariamente as coisas mesmas,
tampouco os usurios individuais que podem construir o sentido de uma lngua. Para
este terceiro enfoque, como frisa Hall, as coisas no significam: ns construmos o
sentido usando sistemas de representao, conceitos e signos (Hall, op.cit. p 10). em
funo deste carter de sentido como algo construdo, que Hall chama aos enfoques das
teorias que se desenvolveram neste caminho de construcionistas.
Para o referido autor, este enfoque esclarece que no possvel confundir
o mundo material com as prticas simblicas e os processos mediante os quais a
representao, o sentido e a linguagem atuam (Hall op. citp. 10). Segundo Hall para os
tericos construcionistas no possvel negar a existncia do mundo material, mas
tambm no se pode conceber que seja este mundo material o portador do sentido. De
acordo com os construcionistas, segundo reitera Hall, pelo sistema da linguagem que
podemos representar nossos conceitos.
So os atores sociais que usam os sistemas conceituais de sua cultura, os sistemaslingsticos e os demais sistemas representacionais para construir sentido, parafazer do mundo algo significativo e para se comunicar com os outros sobre estemundo (Hall, op. cit. p. 10)
Por fim Hall estabelece que a representao uma prtica, ou uma espcie
de classe de trabalho, que se utiliza de objetos materiais e que o sentido depende no da
qualidade material do signo, tampouco de sua funo simblica. O signo produto de
um ato performativo que deve ser entendido em funo de um conjunto de convenes e
lutas por representaes. No presente trabalho dentro desta perspectiva que olhamos o
fazer cinematogrfico.
1.1.3- LINGUAGEM E PEFORATIVIDADE
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A noo de linguagem como algo de natureza performativa entra em cena,
sobretudo pela contribuio de Austin em suas conferncias publicadas sob o ttulo de
How to do things with words, em que elabora a teoria dos atos de fala. Segundo Ferreira(2007) a referida teoria integra um projeto filosfico surgido na contramo de outras
correntes dominantes da reflexo filosfica que imperavam no final do sculo XIX. Tais
correntes dominantes estavam focadas na problemtica da conscincia. Para Ferreira, na
referida tradio o conceito de representao aparecia como elemento central. quando
surge a filosofia analtica que vai voltar seu foco de interesse para a questo da
linguagem.
Assim analisar a linguagem passa ser visto como uma tarefa que oferece asprincipais ferramentas com as quais se pode resolver alguns problemas filosficos.
Segundo Ferreira, temos o seguinte:
Esse voltar-se da filosofia para a questo da linguagem, ficou conhecido comovirada lingstica, que marcou a filosofia no sculo XX. Essa virada lingsticatem em Frege a suas primeiras sementes. Mas somente com a radicalizao dafilosofia analtica, mais precisamente com Wittgenstein e Austin, que essa viradaganhou as forma de uma reviravolta no pensamento lingstico-filosficoocidental (Ferreira op. cit. p. 38)
No entanto, segundo o mesmo autor, divergncias vo surgir no seio da
filosofia analtica, no que diz respeito ao valor da linguagem. Isto se deve ao fato de
que, para alguns filsofos dessa corrente a linguagem aparece como algo inconsistente e
que carece de depurao. Dessa forma, nesse primeiro momento da filosofia analtica, a
linguagem cotidiana vai ser substituda por uma linguagem artificializada, ou como
afirma Ferreira, purgada dos defeitos da linguagem natural (op. cit. p. 39)
No entanto a corrente dominante da filosofia analtica aquela que prope
como questo principal saber de que maneira a linguagem utilizada pelos filsofos.
Esta corrente conhecida como escola de Oxford, ou filosofia da linguagem ordinria,
sendo Austin o seu mais importante representante. De acordo com Ferreira (op. cit.) a
referida corrente da filosofia analtica tem como verdadeiro lema a noo de que o
sentido o uso. Nas palavras do referido autor, no mbito da referida tendncia as
coisas so vista do seguinte ponto de vista:
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A descrio do sentido de uma palavra a descrio do seu modo de uso, aindicao dos atos de linguagem que ela permite realizar. A linguagem no deveser vista como ilgica. Ela tem uma lgica particular que estaria mais prxima dalgica da ao e no da lgica da matemtica, como queriam os filsofos doprimeiro momento, que tinham em Frege sua grande inspirao (Ferreira, op. citp. 40)
Nesta perspectiva a anlise da linguagem no pode ser tomada por si
mesma, mas levando-se em conta os contextos sociais e culturais de seu uso, na
dimenso da prtica social. Com isso a noo de verdade passa ser concebida
levando-se em conta a dimenso de eficcia do ato de fala, bem como compromisso
que assumido na realizao do ato (Ferreira, op. cit.p 41)
Para Austin (1990) a natureza da linguagem colocada como forma de
ao. Em sua obra angular supracitada, o referido autor prope a viso da linguagem emsua dimenso performativa o que traz implicaes, tais como o desaparecimento dos
limites que consolidam a separao do campo lingstico do filosfico. Nas palavras de
Austin:
proferir uma dessas sentenas (nas circunstncias apropriadas, evidentemente) no descrever o ato que estaria praticando ao dizer o que disse, nem declarar que oestou praticando: faze-lo (Austin, op. cit. p 24)
Ferreira (op. cit) assevera que outra implicao importante que traz a viso
performativa da linguagem est relacionada criao de uma impossibilidade de
abord-la apenas pelo vis cientificista, pautado na separao entre sujeito e objeto,
sendo a performatividade no apenas um privilgio de certo tipo de enunciados, mas
uma marca da linguagem. Levando-se em conta que o cinema uma linguagem que
possui suas especificidades, podemos entender que ele tambm seja afetado pela noo
de performatividade, o que significa que um filme, antes tudo uma forma de ao, aqual, por sua vez acaba por integrar as fileiras das lutas por representao. No mbito da
presente pesquisa tal noo encontra relevncia na medida em que ela nos permite olhar
para o cinema como uma forma de representao que age sobre o mundo, ao esta que
redundar em implicaes tico polticas inevitveis. Partindo deste princpio, ao longo
da anlise de nosso corpus tentaremos observar que possveis implicaes ticas e
polticas algumas representaes do Zen podem eventualmente suscitar ou sugerir.
1.1.4- AS REPRESENTAES SOCIAIS
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Segundo Moscovici (apud Alexandre, 2004) o conceito de representao
social oriundo da sociologia e da antropologia, tendo sido fomentado pelos estudos de
Durkheim e Lvi-Bruhl. No entanto, segundo o mesmo autor, outros estudoscontriburam para a criao de uma teoria das representaes sociais, tendo sido os
principais e mais contundentes os estudos sobre a linguagem de Saussure, bem como a
teoria das representaes infantis de Piaget, e as teorias do desenvolvimento cultural
que tem em Vigotsky seu principal expoente. Assim, segundo afirma Alexandre (op.cit.
p. 124) a teoria das representaes sociais podem perfeitamente ser consideradas como
uma modalidade sociolgica de psicologia social.
De acordo com Alexandre, embora tenha sido uma elaborao terica deDurkheim, que ganhou o reforo de outros estudiosos, as representaes sociais s iro
ganhar expresso pela primeira vez quando o j citado Moscovici publica sua obra
intituladaPsychanalyse: son image et son public. Conforme ressalta Alexandre:
O que motivou Moscovici a desenvolver seu estudo das representaes sociaisdentro de uma metodologia cientfica foi sua crtica aos pressupostos positivistas efuncionalistas das demais teorias que no explicavam a realidade em outrasdimenses. Como o caso da dimenso histrico-crtica (Alexandre op. cit.p.
124)
Ainda segundo Alexandre, na referida obra, Moscovici faz uma tentativa
de compreender como a psicanlise, fora dos grupos fechados e especializados, podia
vir a adquirir outras significaes, pelos grupos populares. Segundo Alexandre, com seu
trabalho, Moscovici trata de retirar da confuso de conceitos sociolgicos e psicolgicos
a definio do que vm a ser as representaes sociais, pois considera que elas sejam
um tipo de conhecimento, cuja funo elaborar comportamentos e comunicaes entreos indivduos. (Alexandre, op. cit. p. 126)
Assim, as representaes sociais aparecem, depois dos estudos de
Moscovici, como um verdadeiro instrumento da Psicologia social, por permitirem a
realizao de uma articulao entre o social e o psicolgico, articulao esta entendida
como um processo que ocorre dentro de uma dinmica prpria. As representaes
sociais, portanto permitem a compreenso das maneiras como se forma o pensamento
social de modo a antecipar as condutas humanas. Para Alexandre, elas favorecem o
desvendar dos mecanismos de funcionamento da elaborao social do real (Alexandre,
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op. cit. p. 130) de maneira que se tornam fundamentais nos estudos das idias e das
condutas sociais.
importante ainda destacar que as representaes do mundo social sofrem
a determinao dos interesses dos grupos que as engendram, sendo que, de acordo com
que ressalta Alexandre (op. cit.) as lutas pela representao so to importantes quanto
as lutas econmicas quando se pretende compreender os mecanismos pelos quais o
grupo se impe (Alexandre op. cit. p. 130) juntamente com seus valores e suas
concepes do que vem a ser o mundo social.
Um outro aspecto fundamental das representaes sociais, posto em
destaque por Alexandre (op. cit.) o seu papel na formao de condutas. Segundo o
referido autor so tais representaes que modelam os comportamentos, justificando
suas expresses. Alexandre ainda destaca aquilo que o prprio Moscovici afirma
quando diz que as representaes sociais so uma preparao para a ao, no apenas
por conduzirem os comportamentos que conseguem modificar, mas porque tambm
reconstroem os elementos do meio ambiente que o comportamento deve ter lugar
(Alexandre op. cit. p. 132).
Por outro lado Alexandre ainda nos lembra que para Moscovici o
indivduo humano um ser que pensa a fim de formular questes e encontrar respostas,
sendo impelido sempre a compartilhar as concepes de mundo por ele representadas.
Com esta viso Moscovici assinala sua concepo do social; uma coletividaderacional que no pode ser concebida apenas como um conjunto de crebrosprocessadores de informaes que as transforma em movimentos, atribuies ejulgamentos sob fora de condicionamentos externos (Alexandre op. cit.p. 132)
Assim, para Moscovici no possvel admitir que os indivduos estejam
sempre merc do domnio ideolgico das instituies Isto porque sua verdadeiradimenso de ser pensador capaz de produzir constantemente suas prprias
representaes. Ainda para Moscovici, tais indivduos consideram as cincias e as
ideologias apenas como alimentos para o seu pensamento.
Outra importante contribuio de Moscovici, no que diz respeito ao estudo
das representaes sociais, explicitado nas palavras de Alexandre:
Explicitar como as cognies, no nvel social, permitem a uma coletividade processar um dado conhecimento, veiculado pela linguagem, transformando-o
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numa propriedade impessoal, pblica, permitindo a cada indivduo seu manuseio eutilizao de forma coerente com valores e as motivaes sociais da sociedade qual pertence, foi mais um trabalho realizado por Moscovici (Alexandre op.cit. p.133)
Ao concluir suas consideraes sobre a obra de Moscovici Alexandre
ressalta ainda que para o referido autor, h dois universos distintos de conhecimentos
que a sociedade consegue reconhecer. De um lado h uma sociedade que se v
representada pelo discurso dos especialistas e de determinadas reas do saber, que se
restringe aos supostos saberes, tais como fsicos, psiclogos, mdicos, e outros. De
outro tambm reconhece a existncia de liberdades individuais de seus membros que
podem se expressar em outras reas do conhecimento tais como na religio, na poltica e
na arte, que permitem por sua vez uma aglutinao por idias comuns. Por ltimo importante apenas remarcar que o interesse de Moscovici recai justamente por este
ltimo foco, no qual estuda as representaes sociais.
No mbito da presente pesquisa, as teorias de representao social se
mostram como um suporte terico importante, pois nos auxilia a compreender o cinema
como uma prtica que pode permitir a construo de determinadas representaes
capazes de influenciar consideravelmente a dinmica social. Este aspecto
especialmente relevante, na medida em que o cinema de Kurosawa bastantecomprometido com os mais diversos momentos de tenso poltica e social do Japo,
conforme veremos no captulo dois. Alm disso, se pensarmos que o Zen Budismo
exerceu forte influencia na esttica e na cultura do Extremo Oriente e do Japo
especificamente, podemos pensar que se converteu numa espcie de representao
social apesar do forte influxo de ocidentalizao ocorrido no perodo Meiji1.
1 Meiji o perodo histrico que vai de 1868 a 1912 sobre o reinado do Imperador meiji. Este nome dado aos comeos da Idade Moderna no Japo. (ESTVES, 2005)
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1.2- CENEMA E PENSAMENTO
Segundo Deleuze (2007), os pioneiros do cinema, aqueles que primeiro
pensaram e fizeram dessa prtica algo efetivo, partiram inicialmente da idia de que se
tratava de uma arte industrial, a qual atingira o auto-movimento, fazendo dele o dado
imediato da imagem (op. cit. p. 189). Sendo assim, no cinema, continua Deleuze, o
movimento no dependia mais de um objeto capaz de execut-lo nem de um sujeito
capaz de reconstitu-lo no esprito. Para o referido autor, a novidade que o cinemainstaura de que nele a prpria imagem que se move em si. Portanto, nesse sentido,
ela no figurativa nem abstrata (Deleuze op. cit. p. 189). E nisto est sua diferena
das demais artes pictricas, na medida em que nestas, quem promove o movimento o
esprito do observador. Para Deleuze at mesmo as imagens cnicas, dramticas, ou
coreogrficas so ainda ligadas a um mvel do esprito. E frisa:
somente quando o movimento se torna automtico que a essncia da imagemartstica se efetua: produzir um choque no pensamento, comunicar vibraes aocrtex, tocar diretamente o sistema nervoso e cerebral. Porque a prpria imagemcinematogrfica faz o movimento, porque ela faz o que as outras artes secontentam em exigir (ou em dizer), ela recolhe o essencial das outras artes, herda oessencial, como o manual de uso das outras imagens, converte em potncia o queainda s era possibilidade. O movimento automtico faz surgir em ns umautmato espiritual, que, por sua vez reage sobre ele (Deleuze op. citp. 189)
Como podemos perceber, Deleuze defende que o cinema surge como um
autmato espiritual, ou seja, uma arte que no mais designa a possibilidade lgica ou
abstrata de deduo formal de pensamentos uns nos outros. Para o referido autor o
circuito no qual entram os pensamentos, com a imagem-movimento, produz um choque
que fora a pensar (op. cit. p 190). Relativamente a isto, Deleuze lembra que a
possibilidade de poder pensar pode no garantir ao homem que ele efetivamente pense.
Segundo o referido autor, o cinema nos oferece essa potncia e essa capacidade de
pensar. Seno vejamos:
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Tudo se passa como se o cinema nos dissesse: comigo, com a imagem-movimento, vocs no podem escapar do choque que desperta o pensador emvocs (Deleuze, op. cit., p. 190)
No entanto, Deleuze se encarrega de lembrar que as pretenses do cinema,
ao menos do ponto de vista de seus grandes pioneiros, hoje no mnimo risvel. E
continua afirmando que, mesmo acreditando que o cinema poderia operar o referido
choque, seus pioneiros pressentiam o contrrio. Isto significa que, at mesmo para os
grandes pioneiros, o cinema poderia encontrar todas as ambigidades das demais artes,
pois, assim como elas, corria o risco de se ver revestido das abstraes experimentais, e
palhaadas formalistas, muitas vezes degenerando em apelos comerciais, sexo ou
sangue. Conforme o prprio Deleuze:
O choque ia se confundir, no cinema ruim, com a violncia figurativa dorepresentado, ao invs de atingir essa outra violncia de uma imagem-movimentodesenvolvendo suas vibraes numa seqncia mvel que se aprofunda em ns(Deleuze, op. cit. p. 190)
Segundo Deleuze, desde sua inaugurao como arte o cinema correu o
risco de se tornar o suporte para todas as propagandas, como se j mostrasse, desde seus
primrdios um rosto inquietante (op. cit. p. 190). Assim, aquela potncia do cinemapara a promoo do choque poderia no passar de pura e simples possibilidade lgica.
Mas, Deleuze prossegue defendendo que, embora com todas as possibilidades de
degenerao o cinema preservava sua concepo sublime:
Com efeito, o que constitui o sublime que a imaginao sofre um choque que aleva para o seu limite, e fora o pensamento a pensar o todo enquanto totalidadeque ultrapassa a imaginao (Deleuze op. cit.p. 191)
No que se refere a este carter sublime do cinema Deleuze toma como
exemplo o trabalho do diretor Eisenstein, para quem, no cinema, o primeiro movimento
vai da imagem para o pensamento. Para Deleuze a imagem-movimento, mltipla e
divisvel, sendo composta no apenas por um ncleo, mas por vrios, atravs dos quais
a imagem-movimento se estabelece. Na perspectiva do choque a partir de uma imagem
dominante, ocorrem choques das imagens entre si ou um choque na prpria imagem, de
acordo com todos os seus elementos. Assim o choque aparece como a forma decomunicao do movimento das imagens. Deleuze ainda reitera que a oposio o
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elemento que vai definir a frmula geral do choque, o qual opera um efeito sobre o
esprito forando-o a pensar o Todo. Vejamos o que ele diz sobre isto:
O todo precisamente s pode ser pensado, pois a representao indireta dotempo que decorre do movimento. Ele no decorre deste como um efeito lgico,
analiticamente, mas sinteticamente, como o efeito dinmico das imagens sobre ocrtex inteiro. Por isso depende da montagem, embora resulte da imagem: ele no uma soma, mas um produto, uma unidade de ordem superior. O todo atotalidade orgnica que se afirma opondo e sobrepujando suas prprias partes, eque se constri como a grande Espiral, seguindo as leis da dialtica. O todo conceito (Deleuze, op. cit. p. 191)
No cinema de Kurosawa, segundo j podemos adiantar, o choque, ou as
oposies parecem fundamentais para entendermos o todo de seu pensamento. No caso
especfico do filme Sonhos, os choques provocados pelo jogo de antteses que vo nos
levar ao pensamento do referido diretor, e s podemos entender efeitos de sentido de
maneira catafrica, ou seja, nos instantes finais da pelcula. Sobre isso discorreremos
mais no captulo dedicado anlise.
Votando s ponderaes de Deleuze, este considera que, para a construo
dos choques, que resultam na elaborao de conceitos ou do todo, a montagem
fundamental, sendo por isso denominada por ele de montagem pensamento. Isto, a
rigor significa que a montagem responsvel por colocar os elementos sonoros em
harmonia com os demais, a ponto de o expectador no poder mais diferenciar se v ou
se ouve, porque sente sensaes totalmente fisiolgicas (Op. cit. p. 193). Deleuse
continua:
E o conjunto dos harmnicos agindo sobre o crtex que faz nascer o pensamento. o PENSO cinematogrfico: o todo como sujeito. Se Eisenstein dialtico, porque concebe a violncia do choque sob a figura da oposio, e opensamento do todo sob forma de oposio j superada ou das transformaes dosopostos: do choque de dois fatores nasce um conceito (...) A imagem
cinematogrfica deve ter um efeito de choque para o pensamento e forar opensamento a pensar tanto em si mesmo quanto no todo. esta a definio precisado sublime. (Deleuze op. cit. p. 192)
Por outro lado, Deleuze assevera que h no cinema um segundo momento
que no se d apenas da imagem ao conceito, mas do conceito ao afeto, ou que retorna
do pensamento imagem. Neste caso trata-se de conferir ao processo intelectual, certa
plenitude e paixo. Para Deleuze este segundo momento no inseparvel do primeiro,
nem se pode assegurar qual dos dois vem primeiro. Para ele o cinema intelectual tempor correlato o pensamento sensorial ou o pensamento emocional, pois de outro modo,
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ressalta o filosofo, a experincia cinematogrfica perde todo o seu valor. Neste segundo
momento no se vai da imagem-movimento ao pensamento do todo, que expresso por
ela. Ao contrrio, nele vai-se do pensamento do todo para um lado obscuro,
pressuposto, pleno de imagens agitadas, como se o logos que unisse as partes se
perdesse em uma espcie de embriaguez. De acordo com as palavras do prprio
Deleuze:
desse ponto de vista que as imagens constituem uma massa plstica, umamatria sinaltica, carregada de traos de expresses visuais, sonoras,sincronizados ou no, ziguezagues de formas, elementos de ao, gestos silhuetas,seqncias assintticas. uma lngua ou pensamento primitivo, ou melhor, ummonlogo interior, um monlogo brio, operando por figuras, metonmias,sindoques, metforas, inverses, atraes... (Deleuze, op. cit. p. 193)
No trecho acima Deleuze pe em destaque o termo monlogo interior para
designar este segundo momento em que, no cinema, promove-se um retorno do
pensamento para a imagem. Com isso ele est se referindo capacidade que o cinema
tem, enquanto autmato, de ir alm do sonho, que individual demais. O monlogo
interior seria ento o segmento de um pensamento coletivo, pois pode revelar uma fora
imaginativa fundamental ao filme. Como podemos perceber, o cinema no apenas um
autmato capaz de produzir apenas conceitos. Ele tambm capaz de mobilizar o
pensamento primitivo, tendo a ambio de trazer s conscincias, os mecanismos
inconscientes, tanto atravs da metfora como da metonmia. Para anlise dos filmes de
Akira Kurosawa este aspecto parece de suma importncia se considerarmos que, em seu
cinema, parece haver momentos de alternncia entre a criao de conceitos e a
elaborao de figuras outras que no remetem necessariamente ao pensamento
consciente.
Alm dos dois momentos aludidos anteriormente, ou seja, alm de, comoum autmato, o cinema ir da imagem-movimento ao conceito, bem como retornar do
conceito ao afeto, ou imagem, estabelecendo uma fala aos pensamentos inconscientes,
ele tambm pode operar numa terceira via. Esta marcada pelo fato de que nela o
conceito est presente na prpria imagem, ou ainda da imagem ser para si no
conceito. Deleuze chama este terceiro momento de pensamento-ao. De acordo com
suas palavras temos:
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Esse pensamento-ao designa a relao do homem e do mundo, do homem e danatureza, a unidade sensrio-motora, mas elevando-a a uma potncia suprema. Isto parece ser uma verdadeira vocao do cinema. Como dir Bazin, a imagemcinematogrfica se ope imagem teatral no fato de ir de fora para dentro, docenrio personagem, da natureza ao homem (e mesmo quando parte da aohumana, ela parte como de fora; e, mesmo quando parte do rosto humano, parte de
uma natureza ou de uma paisagem) (Deleuze op. cit. p. 196)
Como podemos perceber, com este terceiro movimento Deleuze faz
referncia importncia do ambiente no cinema, para mostrar a reao do homem sobre
a natureza, ou sua exteriorizao. Neste terceiro movimento a figura humana adquire
uma qualidade de sujeito coletivo de sua prpria reao, ao passo que a natureza (ou
ambiente) se torna a relao objetiva humana. Para Deleuze, o terceiro momento, do
pensamento-ao capaz de conferir uma unidade ao ambiente e ao homem, ou ao
indivduo e s massas. Nas palavras do prprio Deleuze o que acabamos de referir
assim explicitado:
O cinema no tem por sujeito o indivduo, nem por objeto uma intriga ou umahistria; tem por objeto a Natureza e por sujeito as massas, a individualizao dasmassas e no de uma pessoa. O que o teatro, e sobretudo, a pera, haviam tentadosem xito, o cinema alcana.: chegar ao Dividual, quer dizer individuar uma massaenquanto tal, ao invs de releg-la a uma homogeneidade qualitativa ou reduzi-la auma divisibilidade qualitativa (Deleuze op. cit. p. 196)
Por fim Deleuze encerra dizendo que os trs momentos da relao do
cinema com o pensamento so encontrados em toda parte, no mbito da imagem-
movimento. Para Deleuze os referido trs momentos, que foram aspiraes e tentativas
de seus pioneiros, chegaram a influenciar toda a prtica do cinema, chegando inclusive
ao cinema americano. No entanto, para o referido filsofo, dentre as muitas maneiras,
atravs das quais o cinema pode efetuar suas relaes com o pensamento, as trs, sobre
as quais discorremos acima so aquelas que melhor parecem definidas no plano da
imagem movimento.
Complementando suas consideraes sobre as potencialidades do cinema e
suas relaes com o pensamento, conforme os pontos de vista de seus pioneiros,
Deleuze chega constatao, antes j aventada pelos prprios pioneiros, que o autmato
espiritual chegou a um ponto de degenerao, pois se afogou na nulidade de suas
produes. Para Deleuze, quando a violncia no cinema no mais da imagem e de suas
vibraes, mas do representado, o cinema cai em um esquema arbitrrio sangrento
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(op. cit. p. 192). Quando isto ocorre a grandeza j no mais da composio, mas trata-
se de um mero inchao daquilo que representado, no havendo mais excitao cerebral
ou nascimento do pensamento. Mais diretamente, Deleuze considera que
a mediocridade corrente nunca impediu a grande pintura; mas no a mesma
coisa nas condies de uma arte industrial, na qual a proporo das obrasexecrveis pe diretamente em questo os objetivos e as capacidades maisessenciais. O cinema morre, pois, de sua mediocridade quantitativa (Deleuze, op.cit.p. 199)
O mais grave do referido processo, para Deleuze que o cinema, cuja
linguagem poderia garantir a ascenso dos grandes pensamentos e das massas, ao ttulo
de verdadeiro sujeito, deixou-se levar pela propaganda e pela manipulao do estado,
numa espcie de fascismo que alia Hitler a Hollywood (op. cit. p. 199). O resultado
deste processo torna fascista o autmato espiritual, pondo em questo todo o projeto dos
pioneiros da imagem-movimento, que agora foi colocada a servio das grandes
encenaes polticas, promovendo a manipulao das grandes massas. Para Deleuze
este fato que decreta o fim das ambies do antigo cinema.
Na histria da produo cinematogrfica contempornea, o que o filsofo
francs denuncia tornou-se uma prtica constante e bastante reiterada, na medida em
que, de acordo com Shohat e Stam (2006) hoje, o cinema um veculo que est, muitas
vezes, a servio das ideologias dominantes. De acordo com os referidos autores, os
filmes americanos, por exemplo, veiculam para outros pblicos determinados valores,
dspares com estas culturas em que chegam. Nas palavras dos referidos pensadores,
temos:
(...) na medida em que o sistema de Hollywood favorece grandes produescarssimas, ele no apenas classista, mas tambm eurocntrico, quer a intenoseja explcita ou no: para participar desse jogo, preciso ter grande podereconmico. Pede-se aos cineastas do Terceiro Mundo que eles persigam um nvelde civilidade cinematogrfica inalcanvel. Ainda por cima, muito pases deterceiro mundo reforam a hegemonia ao discriminar sua prprias produesculturais (Shohat e Stam, op. cit. p. 27)
Diante disso importante ressaltar que o cinema tem uma dupla
possibilidade de articulao, pois, se de um lado pode servir para promover um choque,
levando ao pensamento, de outro, como linguagem, pode servir construo de
determinadas maneiras de pensar que forjam identidades ou modos de ser no mundo.Assim no parece difcil percebermos que o cinema uma linguagem que pode
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perfeitamente servir chamada poltica de representao, qual fizemos aluso
anteriormente, no incio deste captulo.
Este fato alis, amplamente discutido por Shohat e Stam quando estes
fazem uma crtica ao tratamento da produo cinematogrfica pela indstria americana.
Em seus estudos, os referidos autores apontam como um dos problemas graves da
produo industrial o fato de que as corporaes cinematogrficas acabam ditando as
regras da produo ao resto do mundo, gerando um efeito de intimidao aos cineastas e
espectadores dos pases de Terceiro Mundo2. Shohat e Stam tambm apontam que o
neocolonialismo econmico e a dependncia tecnolgica acabam por elevar
demasiadamente os custos, o que inviabiliza a produo cinematogrfica de pases fora
da Amrica do norte, com exceo da Europa. Em funo deste processo, os refridos
autores asseveram que, muitas vezes, at mesmo diretores, cujas produes so
reputadas por sua ruptura esttica, acabam por ter de se curvar ao ritmo das grandes
indstrias cinematogrficas, a fim de conseguirem obter apoio e equipamento necessrio
para realizar seus trabalhos.
Alm do mais Shohat e Stam tambm denunciam o eurocentrismo das
platias como sendo um forte influenciador das produes cinematogrficas, pois de
seus valores passa a depender o sucesso ou o fracasso de uma pelcula. Para Shohat e
Stam a ditadura das grandes corporaes cinematogrficas se estende inclusive para a
escolha dos elencos, seno vejamos:
Como forma imediata de representao, a escolha do elenco no cinema e noteatro constitui um tipo de delegao de voz com tons polticos. Tambm nessecampo os europeus e os euro-americanos tm desempenhado o papel dominante,relegando os no-europeus a papis secundrios e extras (Shohat e Stam, op. cit.p. 177)
Os referidos autores ainda reiteram que esta uma realidade que remonta
ainda poca do cinema mudo, o que demonstra que desde os pioneiros da imagem-
movimento uma sua degenerao em arte capaz de estabelecer manipulaes, j era
ensaiada. Isto inclusive algo que o prprio Deleuze aponta em sua discusso sobre a
imagem-movimento, quando diz que desde seu incio, ela esteve ligada organizao
2 Embora consideremos a expresso Terceiro Mundo bastante gasta em funo da chamada nova ordem
mundial - contexto em que foi substituda pela expressoPases em Desenvolvimento ela ser aquiutilizada uma vez que foi assim, que poca de seus estudos Shohat e Stam, se referiram aos pases cujaseconomias ainda estavam em crescimento.
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de guerra, propaganda de estado, ao fascismo comum, histrica e essencialmente
(Deleuze, op. cit. p. 199).
Shohat e Stam ressaltam ainda a poltica norte-americana de transformar
certas etnias, provenientes de pases de Terceiro Mundo, em um outro, como se os
elementos tnicos, no eurocntricos pudessem ser intercambiveis uns pelos outros.
Segundo os referidos autores, essas prticas no s foram como tm sido
aplicadas, mesmo ao nvel mais bsico da questo da representao, que aparece quando
esta est relacionada necessidade de trabalho. Isto porque representaes ditas
eurocntricas quase sempre disseminam a idia de que, para um filme ser
economicamente vivel necessita de em seu elenco composto de atores ou astros ditos
universais, o que vincula ainda mais questes econmicas a questes racistas. Shohat
e Stam prosseguem afirmando que a limitao imposta a atores negros, que devem
desempenhar papais marcadores de etnias, acaba por ter desastrosas conseqncias para
os artistas das chamadas comunidades minoritrias. Conforme tambm asseveram
Shohat Stam, em termos Hollywoodianos, esta uma situao que apenas recentemente
comea a mudar, quando um ator como Denzel Washington, um negro, ganha papis
que normalmente seriam confiados a atores brancos. No mesmo estudo Shohat e Stam
chegam a apontar que a escolha de atores negros para determinados papis, no mbito
do cinema industrial americano, pode tambm ser baseada em aes afirmativas,
servindo apenas para evitar que a produo seja acusada de racista. Para tanto os
referidos autores citam o caso da escolha de Morgam Freeman, outro ator negro, para o
desempenho de um juiz no filme A fogueira das Vaidades, apenas para que o diretor
Brian de Palma no fosse acusado de racismo.
Por outro lado Shohat e Stam advertem que, mesmo uma representao
prpria no garante ao ator de determinada etnia, uma representao no-eurocntrica,
uma vez que o sistema pode se utilizar dos atores para ver ativados determinadossistemas de cdigos dominantes. Como exemplo, cita o caso de Josephne Baker e
Carmem Miranda, a quem nunca se garantiu poder significativo alm do esteretipo.
Ainda que a tnica do estudo de Shohat e Stam recaia sobre a denncia e o
reconhecimento de que uma imagem eurocntrica domina o mercado cinematogrfico,
ele afirma que nos ltimos tempos Hollywood tem iniciado uma poltica de escolha
mais adequada de seus elencos e reconhece que afro-americanos, ndios e latinos tm
conquistado o direito de representar suas prprias comunidades. Mesmo assim aindareconhece que tais polticas no so suficientes se as estruturas e as estratgias
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narrativas continuarem a ser construdas numa perspectiva eurocntrica. Em relao a
isto, suas palavras so bastante incisivas, seno vejamos:
Um rosto epidermicamente correto no garante a representao de umacomunidade (Shohat e Stam op. cit. p. 280)
Como podemos observar o autmato espiritual, referido assim por
Deleuze, este que, de acordo com as aspiraes de seus pioneiros deveria estar propcio
a ser o veculo catalisador do pensamento das grandes massas, acaba sendo utilizado por
uma economia dominante para a construo de representaes, cujos interesses dizem
respeito a uma minoria economicamente privilegiada.
Para deixar mais clara a questo da dominao do cinema por
determinados interesses da indstria, importante destacar que, na questo dasrepresentaes eurocntricas no cinema, as lnguas entram como uma componente
muito importante, pois estas ocupam uma posio central nas hierarquias de poder, bem
como esto inscritas no jogo do poder do eurocentrismo. Shohat e Stam destacam muito
singularmente o ingls que tem servido para a projeo tanto do poder tecnolgico
como financeiro anglo-americano. Os mesmo autores ainda ressaltam que em
Hollywood h utilizao de um hbrido lingstico, engendrado pelo prprio imprio
industrial cinematogrfico americano que serve de suporte para que este conte, noapenas as suas histrias, mas as de outras naes, quase tudo sempre em ingls. E
destaca:
Ao ventriloquizar o mundo, Hollywood, indiretamente diminuiu as possibilidadesde auto-representao lingstica para outras naes. Hollywood promoveu elucrou com a disseminao mundial do ingls, e ao mesmo tempo contribuiuindiretamente para a eroso sutil da autonomia lingstica de outras culturas(Shohat e Stam op. cit. p. 281)
Diante do exposto possvel admitirmos que o cinema, como j
mencionamos anteriormente, possa ser utilizado para a implementao da chamada
poltica de representao, a que se refere Rajagopalan (2002). Para o referido autor
necessrio o reconhecimento do papel da representao na criao de identidades (op.
cit. p. 83) Neste caso, cabe lembrarmos, por exemplo, o exerccio da prtica
cinematogrfica por Leni Reisfenstahl. A referida diretora clebre por sua obra que,
segundo destaca Zizek (2004) articula uma viso fascista da vida. Nas palavras doreferido autor:
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Seus filmes pr-nazis e ps-nazis, articulam a viso fascista da vida: o fascismo deLeni seria a sua celebrao direta da poltica nazi, pois j se manifesta na suaesttica pr-poltica da vida, no seu fascnio por aqueles belos corpos exibindomovimentos disciplinados (Zizek, op. cit. p. 122)
Por outro lado Zizek nos permite pensar que, assim como o cinema pode
ser usado para a implementao de construes de identidades calcadas em ideologias
dominantes, pode tambm servir para a construo de outras atitudes e modos de pensar
que se dirijam contramo dos processos hegemnicos. Como exemplo ele nos cita
casos como os da trilogia Matrix, que se abre para um nmero significativo de
possibilidades. Para o referido autor a trilogia supra citada pode nos remeter ao mito da
caverna de Plato. De acordo com suas palavras:
No repetir a Matriz exatamente o dispositivo da Caverna imaginada por Plato,onde os homens comuns esto acorrentados, prisioneiros, contemplando apenas asombra do que consideram, erroneamente, como a realidade? A diferena obviamente bastante considervel que, quando saem da caverna para asuperfcie terrestre, o que encontram j no a terra luminosa banhada pelos raiossolares, O Deus supremo, mas um espetculo de desolao, o deserto do real(Zizek, op. cit. p. 78)
O Referido autor aponta tambm para uma nova postura do cinema
americano que tm mostrado grande interesse em apoiar produes que colocam em
questo as construes simblicas do mundo. A isto Zizek chama de o ltimo fantasma
da parania americana uma vez que tais produes quase sempre se encarregam de
delata a crise simblica do mundo contemporneo, que avilta o homem, colocando-o na
posio de refm de um universo construdo revelia de sua vontade. Como exemplo
Zizek destaca o filme The Truman Show, no qual um personagem descobre pouco a
pouco ser a vtima de um sistema aprisionador, que parece confin-lo a uma rotina
diria construda dentro de um esquema arquitetado.
Como podemos observar, o autmato espiritual, inaugurado pela imagem-
movimento, no tem apenas servido para a construo de um universo cinematogrfico
preocupado com o delineamento de esteretipos e posturas ligadas a condutas
dominantes. Relativamente a este ponto, oportuno lembrar a existncias de diretores
como Felline e Kubrick, por exemplo, cujas obras so profundamente comprometidos
com outras maneiras de pensar, opostas aos discursos oficiais. O prprio Akira
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Kurosawa aparece como um dos diretores de cinema que construram sua obra em
sintonia com um projeto inicial de seus pioneiros. Por isso acreditamos ser possvel
afirmar que, no cenrio mundial, a imagem-movimento, ou o autmato espiritual, tem
servido a um nmero significativo de diretores que dele se utilizaram para apontar o
caminho que leva s diversidades do mundo, chamando a ateno para que as diferenas
so o fio com que se tece a grande teia da linguagem e portanto, da cultura.
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2- SOBRE KUROSAWA E SUA OBRA
No presente captulo, procuraremos traar um panorama sobre a obra do
diretor japons Akira Kurosawa, bem como tentaremos delinear o seu perfil como
artista e como realizador de cinema. Uma tarefa como esta de suma importncia para a
presente pesquisa, na medida em que nos permite enxergar de maneira mais geral uma
obra que to vasta em temas como quantitativamente significativa. No entanto,
realizar um delineamento sobre a obra de um dos mais profcuos diretores da histria do
cinema mundial no uma tarefa das mais fceis uma vez que sobre a referida obra no
so muitos os escritos, sobretudo em lngua portuguesa, que neste caso inexistem.
Portanto as generalizaes delineadas aqui so baseadas tanto numa paixo pessoal
como tambm naquilo que Estvez (2005) tentou delinear em sua obra dedicada ao
referido diretor. Um complemento de nossas consideraes ser dado tambm, tendo
como base inmeras entrevistas dadas pelo prprio Kurosawa ao longo de sua carreira.
2.1.- KUROSAWA PRIMEIRA FASE.
Kurosawa inicia sua carreira como diretor de cinema em 1943, ano que
marca o incio de sua primeira fase. Esta, segundo Estvez (op. cit.), seguida de mais
trs, divididas assim para efeito didtico. A primeira fase considerada de aprendizado
em que Kurosawa realiza filmes de propaganda nacionalista, dando sua contribuio
cinematogrfica aos esforos blicos de seu pas. Na referida primeira fase, o tema
principal a ser abordado nas pelculas gira em torno de personagens envoltos em processos de aprendizagem e iniciao, frente s responsabilidades da vida. Os
personagens so jovens aprendizes que aparecem nos filmes postos prova ante suas
prprias limitaes e mediante os desafios do mundo. Em tais filmes o protagonista
acaba por superar suas dificuldades no autodomnio, para finalmente reconhecer as
exigncias impostas pela existncia. Deste modo os personagens envolvidos nesta
primeira fase se aplicam ao esmero da sua individualidade e geralmente so auxiliados
por um mestre que os guia ou lhes d orientao no caminho de auto-conhecimento.
Aqui j podemos perceber uma influncia do Zen budismo na medida em que os ideais
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do referido misticismo tambm influenciaram de maneira muito significativa a arte
cavalheiresca dos Samurais durante o perodo da idade mdia, conforme podemos
constatar no trabalho dedicado ao assunto, desenvolvido por Nukariya (2006)
O exemplo mais notvel desta referida primeira fase de Kurosawa o filme
Sugata Sanshiro o qual narra um processo de instruo no jud, tendo como base
histrica a implantao desta arte marcial no Japo do sculo XIX. Segundo Esteves:
O filme imbrica, com habilidade, dois discursos complementaresextraordinariamente sintomticos no s da poca em que transcorre a ao, perodoMeiji conhecido como o perodo de ocidentalizao - mas tambm do momentoconcreto no qual se roda o filme, o ano de 43, caracterizado por grandenacionalismo [Traduo minha (Esteves op. cit. p. 37)]
Alm do mais, na referida primeira fase da filmografia de Kurosawa esto
implcitas, em compasso com o discurso nacionalista, alguns princpios da educao
tradicional japonesa, tais como a f e a autodisciplina, pontos fundamentais da
disciplina Zen. Ainda segundo Estvez na referida primeira fase de sua produo,
Kurosawa parece ter tentado se situar numa polaridade intermediria a fim de evitar a
censura da poca, bem como tambm para ser reconhecido como artista com tendncias
abertura, a qual j se anunciava. Podemos dizer enfim que, em sua primeira fase
Kurosawa parece apontar para sua capacidade de sugerir idias sem arriscar sua
continuidade profissional, poisj a partir desde primeiro momento, exibe um notvel
saber tcnico e um grande af por criar imagens vigorosas e expressivas (op. cit. p. 38)
2.2 A SEGUNDA FASE COGRUNCIA COM O CINEMA NEO REALISTAE O CINEMA NOIR
Sobre a segunda fase de Kurosawa podemos afirmar que se trata de um
perodo muito mais d