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Clareira luminosa

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conselho editorial

Ana Paula Torres MegianiEunice OstrenskyHaroldo Ceravolo SerezaJoana MonteleoneMaria Luiza Ferreira de OliveiraRuy Braga

Coordenação da coleçãoLeituras sobre educação: Celia Giglio e Melvina Araújo

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Arte, curiosidade e imaginação na infância

Clareira luminosa

Betania Libanio Dantas de AraujoÉrica Aparecida Garrutti de Lourenço

(organizadoras)

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Copyright © 2017 Betania Libanio Dantas de Araujo/ Érica Aparecida Garrutti de Lourenço

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

Edição: Haroldo Ceravolo SerezaEditora assistente: Danielly de Jesus TelesProjeto gráfico, diagramação e capa: Danielly de Jesus TelesAssistente acadêmica: Bruna MarquesRevisão: Alexandra Colontini

ALAMEDA CASA EDITORIAL

Rua 13 de Maio, 353 – Bela Vista

CEP 01327-000 – São Paulo, SP

Tel. (11) 3012-2403

www.alamedaeditorial.com.br

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

C541

Clareira luminosa [recurso eletrônico] : arte, curiosidade e imaginação na infância / organização Betania Libanio Dantas de Araujo , Érica Aparecida Garrutti de Lourenço. - 1. ed. - São Paulo : Alameda, 2017. recurso digital

Formato: ebookRequisitos do sistema: Modo de acesso: world wide webInclui bibliografiaISBN 978-85-7939-496-6 (recurso eletrônico)

1. Educação artística (Ensino fundamental) - Estudo e ensino. 2. Prática de ensino. 3. Professores de ensino fundamental - For-mação. 4. Professores de arte - Formação. 5. Arte - Educação - Filosofia. 6. Artes e crianças. 7. Educação Infantil. 8. Livros eletrônicos. I. Araujo, Betania Libanio Dantas de. II. Lourenço, Érica Aparecida Garrutti de.

17-43644 CDD: 370.7122 CDU: 371.133

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Sumário

Apresentação

I. As artes e a Educação Infantil naformação de professoresBetania Libanio Dantas de Araujo e

Érica Aparecida Garrutti de Lourenço

II. A arte contemporânea e as múltiplas linguagens da criança: caminhos do imaginárioBetania Libanio Dantas de Araujo

III. Processos artísticos e infância (s): uma abordagem poéticaFabiana K. A. Prado

IV. A ilustração científica e as Artes Visuais na Educação Infantil Selma Botton

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15

41

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V. Repensando a música na Educação Infantil: da “Música para a Criança” para a “Música com a Criança”Renato Tocantins Sampaio

VI. O corpo e o movimento na Educação Infantil: problematizações e desafiosMaria Cecilia Sanches

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O sujeito só pode ultrapassar o dualismo da interioridade e da exterioridade quan-do percebe a unidade de toda a sua vida.

benjamin, 1985, p. 212

Este livro é concebido, em sua inspiração, a partir de um grande

sonho que, alimentado por vários meses, no ano de 2014, pôde sair do

papel em 2015, o curso de Aperfeiçoamento Educação Infantil, Infân-

cias e Arte (EIIA), semipresencial, idealizado por docentes da Unifesp

numa parceria entre Secretaria de Educação Básica (Ministério da

Apresentação

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Betania Libanio Dantas de Araujo • Érica Aparecida Garrutti de Lourenço10

Educação) e Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) para profes-

sores que atuavam na Educação Infantil nas redes municipais de São

Paulo e Guarulhos.

Referimo-nos à experiência do curso como um sonho porque fôra

a base de todo o seu planejamento o que nos ocorria como central na

atuação do professor com crianças pequenas em Artes: o ser e se desco-

brir nas artes, o refletir e o fazer pedagógico e a centralidade na criança

– afinal infância, como nos diz Marina Célia Moraes Dias (2003, p.

231), “é quando tudo começa, quando a vida fica grávida do mundo”,

projeto abraçado fortemente por toda a equipe do curso. Já em sua con-

cepção, o EIIA tomou forma pelas muitas mãos que se entrelaçavam

em tal busca: professores formadores e pesquisadores, tutoras, supervi-

sor, coordenadoras, secretárias, designers e professores cursistas. Cada

um deixou um pouco de Si e do Outro também levou.

Nestas palavras de introdução, podemos dizer que, valendo-nos das

palavras de Larrosa, no EIIA todos(as) passamos pelo par na educação da

experiência, como algo que nos alcançou, nos aconteceu, nos significou

e nos transformou. Permitiu que nos colocássemos em estado de deva-

neio, de descoberta de si no universo das artes, de escuta e observação,

de estudo, pesquisa e discussão acerca das práticas pedagógicas, de com-

partilhamento e que nos entregássemos com motivação e entusiasmo na

ação de fazer experiência nas artes com crianças pequenas.

Os principais pressupostos que nortearam o planejamento e todo

o desenvolvimento do curso permearam a cultura da(s) infância(s) e

da arte na educação do olhar sensível. A educação da imaginação, as

vivências imaginativas das infâncias e a experiência cultural intencio-

navam o despertar dos sentidos.

Para aguçar ainda mais um professor-leitor ávido por conhecer

particularidades da mediação em artes com as crianças da Educação

Infantil, articulamos os diversos espaços de saberes da educação em

arte para a apreciação artística.

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Clareira luminosa 11

Foi a partir desta singular experiência que passamos a alimentar o

desejo desta publicação, afinal algumas descobertas – dizemos algumas

somente porque a extensão do que apresentamos neste livro é minuta

em vista do vivenciado – precisavam ser compartilhadas. Assim, vislum-

bramos este livro como o término de uma caminhada, do EIIA, no qual

tantas vozes ecoam, e um início de diálogo para a questão que propo-

mos: quais caminhos os professores da Educação Infantil podem trilhar

rumo ao favorecimento da experiência em artes com os pequenos?

Para começo de conversa, Betania Libanio Dantas de Araujo e Éri-

ca Aparecida Garrutti de Lourenço, fazem uma contextualização do que

inspirou a criação deste livro, o EIIA. O curso é apresentado desde a sua

concepção, planejamento do ambiente virtual de aprendizagem, confi-

guração do trabalho da equipe, princípios balizares do curso, produção

do material didático às falas avaliativas dos cursistas após o percurso de

realização do EIIA. Um percurso de muitas aprendizagens!

No capítulo 2, Betania Libanio Dantas de Araujo, discorre sobre

o fazer artístico infantil e arte contemporânea. Incita-nos a questionar:

como na arte contemporânea os processos criativos no ser criança e no

ser artista adulto podem se aproximar? Se no adulto há um esforçar-

-se diante da criação, na criança é quando encontra liberdade, constitui

fonte de experimentação do mundo. Bem sabemos a criação é inerente

à dimensão humana, mas bem sabemos também que com o tempo há

saberes inúmeros outros que se sobressaem ao saber estético e poético,

e a escola tem sua responsabilidade nisso. Rompendo com esse ciclo,

ao longo de todo o texto, encontramos importantes pistas ao professor

para que ele descubra, em seu trabalho, formas de possibilitar à criança

oportunidades para a recriação do mundo em suas múltiplas linguagens.

Como que numa sinergia com o capítulo que o antecede, Fabiana

Prado, no capítulo 3, escreve sobre os processos criativos na infância no

seu diálogo com a arte contemporânea. A grande contribuição, dentre

as muitas que o texto oferece, é o que a autora refere como investiga-

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Betania Libanio Dantas de Araujo • Érica Aparecida Garrutti de Lourenço12

ções poéticas, procedimento artístico pedagógico favorecido pela car-

tografia, conceito desenvolvido e ilustrado a partir de experiências com

e das crianças.

Selma Botton, no capítulo 3, propõe um olhar à natureza e às

crianças, dando visibilidade ao anseio que os pequenos têm em conhe-

cer o seu entorno. A autora conversa sobre os lugares, os detalhes, os

pequenos universos adensando a nossa percepção com a ilustração de

botânicos, a proposta de exploração sensorial do meio ambiente e o

registro visual de biomas.

Da música cotidiana até o despertar dos sentidos, Renato Tocan-

tins Sampaio, em seu capítulo 4, considera que há uma musicalidade

infantil diferente da musicalidade do adulto, assim como uma música

infantil que se diferencia da música dos adultos em estrutura e função,

portanto defende uma proposta de “música com as crianças”. Desco-

brindo o lugar da música nas instituições de Educação Infantil e esco-

las, propõe um repertório musical vasto que familiarize auditivamente

com diversos tipos de estruturação musical, integrando todas as experi-

ências musicais: ouvir (apreciação), tocar e compor música.

Em O corpo e o movimento na Educação Infantil: problematiza-

ções e desafios, capítulo final, Maria Cecilia Sanches discute o pensa-

mento dos educadores a respeito do corpo e movimento na escola, a

formação do repertório e as ações educativas considerando e poten-

cializando os recursos gestuais das crianças, a cultura patrimonial do

grupo e o conhecimento da cultura local.

O título do livro é inspirado na metáfora proposta por Paul Ri-

coeur clareira luminosa e remete à imaginação criadora, espaço onde

decido, onde “eu posso” (1989, p. 227). A clareira luminosa é onde

“brincamos”, onde a imaginação trabalha (1994, p. 33). Para o autor

“não há ação sem imaginação” (p. 223), toda ação depende da imagi-

nação, e lança o ser para um mundo novo.

Finalizamos esta apresentação com o desejo de que os textos cons-

tituam oportunidade de Encontro tal como fora o EIIA para todos(as)

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Clareira luminosa 13

que se aventuraram nesta experiência: equipe e professores-cursistas.

E, para definir tal palavra aqui grafada com inicial em maiúscula,

nos valemos de Brandão (2009). Encontro é um espaço de desenvolvi-

mento da pessoa, por meio do qual ela se sente acolhida e impelida a

descobrir e realizar o que lhe é próprio. O ‘tu’ constitui uma oportuni-

dade e um apelo único para que o ‘eu’ descubra a amplitude e a pro-

fundidade do chamado que traz consigo: o chamado a ser si mesmo, a

responder em primeira pessoa ao outro, ao mundo. É nesse aparente

paradoxo, da saída de si (para o “tu”) e na descoberta, na expressão da

própria individualidade, que a pessoa se constitui.

Um bom Encontro, para todos, na leitura do livro Clareira lumi-

nosa: arte, curiosidade e imaginação na infância!

Betania Libanio Dantas de Araujo

Érica Aparecida Garrutti de Lourenço

As organizadoras

Referências

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e História da Cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985.

BRANDÃO, S. B. A contribuição do professor no processo de desen-volvimento da pessoa. Revista Internacional d’Humanitats, São Paulo, v. 17, p. 63-70, set-dez, 2009.

DIAS, Marina Célia Moraes. O direito da criança e do educador à alegria cultural. In: Marina Célia Moraes Dias; Marieta Nico-lau. (Org.). Oficinas de sonho e realidade na Formação do Edu-cador da Infância. Campinas: Papirus, 2003.

RICOEUR, P. Do texto à acção: ensaios de hermenêutica II. Porto: Rés-Editora, 1989.

______. Tempo e narrativa. Campinas: Papirus, 1994.

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I. As artes e a Educação Infantilna formação de professores1

Betania Libanio Dantas de Araujo2

Érica Aparecida Garrutti de Lourenço3

1 Este capítulo origina-se de texto apresentado na 3ª edição do Simpósio Internacional de Educação a Distância e Encontro de Pesquisadores em Educação a Distância, ocorrido no período de 8 a 27 de setembro de 2016. O simpósio, sediado pela Universidade Federal de São Carlos – UFSCar, teve como tema central Formação, tecnologias e cultura digital.

2 Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP), Mestre em Artes pela Universidade Estadual Paulista (UNESP) e Graduada em Educação Artística com especialização em Artes Plásticas pela Faculda-de de Belas Artes de São Paulo. Professora Adjunta do Departamento de Educação, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). E-mail: [email protected]

3 Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP), Mestre em Educação Especial pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e Graduada em Pedagogia pela Universidade Estadual Paulista (UNESP) Professora Adjunta no Departamento de Educação, da Universidade Fede-ral de São Paulo (Unifesp). E-mail: [email protected].

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Betania Libanio Dantas de Araujo • Érica Aparecida Garrutti de Lourenço16

Este capítulo apresenta e discute a experiência de um Curso de

Aperfeiçoamento, Educação Infantil, Infâncias e Arte (EIIA), na Univer-

sidade Federal de São Paulo (Unifesp) em parceria com a Secretaria de

Educação Básica (SEB), cursado por professores e gestores e os aprendi-

zados e descobertas deles advindos. O curso foi desenvolvido em 2015,

em três polos (dois no município de São Paulo e um no município de

Guarulhos), tendo a duração de cinco meses com carga horária total de

180 horas, sendo 40 horas presenciais e 140 horas a distância.

A proposta teórico-metodológica do curso baseou-se na aborda-

gem triangular, o fazer, o refletir e o contextualizar a educação infantil,

as infâncias e a arte, com base nos objetivos: favorecer o aprimoramen-

to da prática pedagógica dos professores no que tange à apreciação e

expressão em artes na educação infantil, contribuir na implementação

das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (BRA-

SIL, 2006) e atender as demandas de formação de profissionais da edu-

cação infantil explicitadas nos Planos de Ações Articuladas (PAR).

A estrutura do EIIA privilegiou a articulação entre a teoria e a prá-

tica no processo de formação docente, fundamentada no domínio de

conhecimentos científicos, artísticos e didáticos, bem como o encontro

das artes, educação e múltiplas linguagens, com vistas a caminhar no

sentido da superação de um conhecimento fragmentado. Nesse sen-

tido, os conteúdos foram organizados de modo a propiciar o contato

com a ferramenta de educação à distância, o estudo de fundamentos

das artes na educação infantil, o estudo das artes visuais, o estudo das

artes que envolvem corpo e música, o conhecimento de como as ar-

tes se articulam, pressupondo-se a sua interdisciplinaridade e o plane-

jamento e desenvolvimento de ações pedagógicas em artes, também

numa perspectiva integradora.

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Clareira luminosa 17

Contextualização do curso: organizaçãopedagógica, material didático e AVA

A equipe do curso EIIA foi formada por uma coordenadora de

curso, uma coordenadora adjunta, seis professores pesquisadores, seis

tutoras a distância e três tutoras presenciais, uma professora formadora

e um supervisor4 e pelos profissionais do Comfor de secretaria, suporte

técnico, produção e audio-visual.

As coordenadoras, em reuniões sistemáticas a partir de fevereiro

de 2014, elaboraram as estratégias do curso e as orientações para a

equipe, planejaram a criação do Ambiente Virtual de Aprendizagem

(AVA) e todos os espaços deste ambiente, orientaram a produção do

material didático pelos professores pesquisadores e, a partir de maio de

2015, direcionaram as ações de todos os membros da equipe, em vista

do início do desenvolvimento do curso.

Os professores pesquisadores, com formação e atuação em artes

e educação, produziram os textos, planejaram as atividades dirigidas e

avaliativas virtuais, bem como produziram as videoaulas e planejaram

as atividades práticas das aulas presenciais. Esses profissionais também

orientaram os trabalhos de conclusão do curso, denominados como

ações pedagógicas, além de realizarem interações síncronas com os

cursistas nas aulas presenciais.

No planejamento do material didático,5 foram designados os co-

nhecimentos de base, as estratégias e bibliografias que subsidiaram os

objetivos delineados. Os professores pesquisadores tiveram o seu pro-

cesso de criação e inovação preservado para o material didático-me-

diacional. Para esta construção, práticas e bibliografias que estudam

4 As atribuições desses profissionais seguem a Resolução CD/FNDE n. 24 de 16 de agosto de 2010.

5 Os materiais didáticos podem ser acessados na biblioteca virtual do Comfor: http://comfor.unifesp.br/?page_id=671.

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Betania Libanio Dantas de Araujo • Érica Aparecida Garrutti de Lourenço18

a infância e a sua estética foram as balizes do curso, pois era preciso

desvelar a arte e cultura da infância em oposição às concepções adulto-

cêntricas. A coordenação do curso e a coordenação adjunta direcionou

esse processo de elaboração, culminando no delineamento dos módu-

los, conforme Quadro 1.

Quadro 1. Estrutura dos módulos

A mediação dos processos de comunicação e aprendizagem no

AVA foi centralizada na figura das tutoras virtuais, sobretudo nos fó-

runs de cada aula e de interação do grupo e em mensagens individuais

que enviavam em situações específicas. Cada polo, com 50 cursistas

matriculados, tinha duas tutoras virtuais (cada uma com 25 alunos) e

uma tutora presencial, sendo que esta profissional atendia os cursistas

presencialmente para esclarecer dúvidas e repor conteúdos em horá-

rios diversos e, ao menos uma vez por módulo, conduzia uma aula pre-

sencial que tinha videoaulas como disparadores de discussões no polo,

oficinas e momentos de interação síncrona entre eles e os professores

pesquisadores. A ação artística nas oficinas contemplava o olhar sobre a

criança e um fazer em cada arte. As aulas presenciais tinham o objetivo

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Clareira luminosa 19

de dar sequência e garantir o aprofundamento conceitual e prático dos

conteúdos desenvolvidos a distância.

O supervisor era o profissional que acompanhava sistematicamen-

te as necessidades das tutoras nos espaços: Área Comum e Espaço de

Interação com tutoras (Figura 1) no AVA. Eram acompanhadas tam-

bém pelas coordenadoras e professora formadora em reuniões pre-

senciais na Unifesp ou via ferramenta skype, ao menos uma vez por

módulo, que possuíam pautas com tempo para avaliação do acompa-

nhamento das tutoras coordenada pelo(a) supervisor/coordenadora de

curso e um segundo momento conduzido pela coordenadora adjunta/

professora formadora para apresentação pedagógica do(s) módulo(s)

com estudos do material pedagógico disponível no AVA, dos concei-

tos, das videoaulas para os encontros presenciais e planejamento desses

encontros. As tutoras apresentavam as questões surgidas no AVA, as

descobertas em processo, as correções e as dúvidas. Reconstituíamos a

memória do curso para estabelecer a relação entre os conhecimentos.

Figura 1. Espaço de acompanhamento à tutoria

A formação contínua das tutoras e o trabalho colaborativo da equi-

pe foram essenciais para incentivo à realização do curso pelos matri-

culados, por meio da preparação didática com vivência e o comparti-

lhamento das experiências das tutoras na relação com os cursistas. As

tutoras a distância foram orientadas a acompanhar individualmente e

frequentemente aqueles que participavam no AVA como também os

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Betania Libanio Dantas de Araujo • Érica Aparecida Garrutti de Lourenço20

cursistas que ficassem alguns dias sem acesso, não postassem as ativi-

dades até suas datas de fechamento e os que faltassem nos encontros

presenciais eram convidados aos plantões de atendimento presencial

semanal nos polos, conduzidos pelas tutoras presenciais.

Para as atividades virtuais, criamos o ambiente virtual de aprendi-

zagem (Figura 2), via moodle, por uma equipe de designers do Comitê

Gestor Institucional de Formação Inicial e Continuada de Profissionais

da Educação Básica (Comfor/Unifesp), no diálogo com a coordenação,

em um nítido esforço para que o ambiente incorporasse elementos das

artes, da docência para crianças pequenas, sendo interativo, com um

desenho claro para acessos rápidos, contemplando espaços de visita.

Figura 2. AVA – área comum do curso

Elaboramos um desenho de AVA que facilitasse a visualização de

ferramentas e os acessos. Nesse sentido, a plataforma apresentava todos

os acessos em página única com divisão em seis partes na área comum:

acessos de aprendizagem (aulas organizadas em módulos), acessos de do-

cumentos do curso (guia do participante, avaliação, vídeo das coordenado-

ras, apresentação do curso, cronograma, projeto pedagógico e regimento

da pós), sala de interação, espaço de enriquecimento (museus presenciais

e virtuais, filmes, passeios etc), mural de avisos e galeria de arte.

Nessa composição, ao considerar que a educação faz uso com

frequência de desenhos prontos para as pinturas, optamos pela subje-

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Clareira luminosa 21

tividade da pincelada em aquarela nos tons do AVA, de modo a buscar

uma desconstrução do conceito de arte ao denotar a experimentação e

liberdade em lugar da rigidez e certeza do traço exato.

Ao partir da premissa que há diversos tempos e disciplinas de estu-

do entre os cursistas, foi criado um material complementar no AVA, or-

ganizado em três espaços complementares: o espaço de enriquecimento

(Figura 3), a galeria de arte (Figura 4) e, em cada módulo, o para saber

mais (Figura 5).

Figura 3. AVA – espaço de enriquecimento

Figura 4. AVA – Apresentação do módulo I e galeria com a obra “o violinista” de Chagall

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Betania Libanio Dantas de Araujo • Érica Aparecida Garrutti de Lourenço22

Figura 5. AVA – Acesso pela obra “mãos entrelaçadas”, de Portinari

Esses espaços, com atualizações contínuas, oportunizaram aos

professores vivências que despertassem o nascimento do participante

no professor, tal como nos indica Cavalcanti (2002).

A arte, ao contrário das dificuldades que a educação enfrenta,

realiza produções e experiências multidisciplinares em função da sua

natureza, uma boa ilustração seria o Parangolé, a antiobra, de Hélio

Oiticica. É, segundo o artista, a obra e o corpo a incorporar-se um

ao outro. Saindo do estado de contemplação da cor, a obra que dei-

xa de ser visual. Mário Pedrosa explica esta “morte do espectador e o

nascimento do participante” (cavalcanti, 2002, s/p), o deslocamento

da experiência do “campo intelectual racional para o da proposição

criativa vivencial”:

Foi durante a iniciação ao samba, que o artista passou da expe-riência visual, em sua pureza, para a experiência de tato, do movimento, da fruição sensual dos materiais, em que o corpo inteiro, antes resumido na aristocracia distante do visual, entra como fonte total da sensorialidade.

Oiticica compreende esta participação como “um modo de dar ao

indivíduo a possibilidade de ‘experimentar’, de deixar de ser especta-

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Clareira luminosa 23

dor para ser participador” (cavalcanti, 2002, s/p). Segundo o autor, ao

sair da contemplação e submergir na sensibilidade ativa, o contempla-

dor é levado a uma vivência irrepresentável e não discursiva da expe-

riência dilatando as suas “capacidades artísticas, na descoberta do seu

centro interior criativo, de sua espontaneidade expressiva adormecida,

condicionada ao cotidiano”.

Nesse sentido, Mattar (2015, p. 7), em seu texto produzido para o

EIIA, alerta que quando os professores não se lançam para a aventura

da criação, de se permitirem experimentar novas formas de pensar e de

conduzir o trabalho com seus alunos, aos olhos dos alunos, “o tecido

cultural pode parecer desbotado e sem viço, um tecido velho, que não

se renova nem no ato da confecção nem no ato da contemplação”.

Temos aí dois ingredientes importantes, a criação nas artes e no fazer

pedagógico. Com essa ênfase, parte da atividade proposta por essa pro-

fessora pesquisadora aos cursistas foi

[...] procure rememorar suas experiências e seu processo de relação com a arte e reflita sobre os seguintes aspectos:

1- O que suas mãos sabem e/ou aprenderam a fazer (seus sabe-res e potencialidades)

2- Do que suas mãos sentem saudade (suas potencialidades e/ou desejos que ficaram pelo caminho);

3- O que suas mãos têm vontade e/ou necessidade de fazer (seu desejo de criação e de atuação no mundo).

Escreva um texto a partir da reflexão desenvolvida. O que as mãos produzem. Se possível, realize o que suas mãos têm von-tade de fazer e fotografe.

Em Mattar (2015), os professores são autores do seu projeto poéti-

co pedagógico e que (se) permitem a descoberta do mundo proporcio-

nando aos aprendizes experiências estéticas e artísticas.

Cada módulo apresentava uma breve apresentação dos conteúdos

e dos professores, uma pintura dividida em quatro partes: participantes,

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Betania Libanio Dantas de Araujo • Érica Aparecida Garrutti de Lourenço24

biblioteca com textos básicos, notas e para saber mais (Figura 5), a

galeria de artes (Figura 4) alimentada com obras que os inspirassem no

adentrar de particularidades do módulo, o fórum de dúvidas, aulas e

um logo (imagem do topo à direita da Figura 4).

No para saber mais eram incluídas indicações de acesso gratui-

to, como: filmes na web, e-books, cursos de formação, peças de teatro,

parques sonoros, congressos, entrevistas e ferramentas virtuais, sendo

escolhidos sites que tivessem como princípio a liberdade de criação

ao internauta. O objetivo da inserção desses materiais complementa-

res, que obtiveram uma concepção metodológica de continuidade de

estudos por aqueles que pudessem prolongá-los e tivessem disposição

pessoal de tempo, era que os adultos pudessem descobrir ferramentas

virtuais de arte, música, corpo e movimento para incluir em seus pla-

nejamentos com as crianças.

Cada módulo era formado por três, quatro ou cinco aulas com

atividades virtuais, sendo que cada aula apresentava uma leitura obri-

gatória e, ao menos, uma atividade virtual obrigatória a ser realizada

na duração de uma semana (Figura 6). Havia também um espaço no

AVA para a postagem das videoaulas e um espaço para que os cursistas

postassem um relato acerca da aula presencial (Figura 7).

Figura 6. AVA – aula 3, do módulo: artes visuais na educação infantil

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Clareira luminosa 25

Figura 7. AVA – aula presencial, do módulo: artes visuais na educação infantil

Aprendizados e descobertas no EIIA

O tema do curso se apresentou como necessidade de formação

proeminente por parte de professores das redes municipais em cena,

em vista de que, para as 147 vagas do curso, se inscreveram 1.545 pro-

fissionais da educação. A seleção ocorreu segundo critérios especifi-

cados em edital pelo Comfor, sendo matriculadas 146 professoras ou

gestoras e um professor, com o seguinte perfil:

escolaridade: 75 formados na Pedagogia, 27 na licenciatura, 12

no bacharelado, 31 na especialização e 2 no mestrado;

rede em que atua: 110 professor(as) na rede municipal, 11 na

estadual, um na federal ou 25 não informaram; e

faixa etária: 5 professor(as) no intervalo de 19 a 30 anos, 31 no in-

tervalo de 30 a 10 anos, 66 no intervalo de 40 a 50 anos, 40 no intervalo

de 50 a 60 anos e 5 com mais de 60 anos;

Esses dados nos revelam que os cursistas são em maioria do sexo

feminino, formados na Pedagogia ou em outra licenciatura, com idade

variando de 30 a 60 anos e atuam nas redes municipais.

Desse total, foram aprovados 95 cursistas, 39 evadiram e 13 re-

provaram. Vale ponderar que o número de participantes que evadem

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Betania Libanio Dantas de Araujo • Érica Aparecida Garrutti de Lourenço26

cursos na modalidade a distância é frequentemente alto. Confor-

me Favero e Franco (2006), os cursos de extensão e especialização

têm 25% de evasão, o que se assemelha ao percentual do EIIA, com

26,5% de evadidos.

No módulo de finalização do curso, o módulo integrador, 96 cur-

sistas6 responderam a um questionário, que teve parte de suas questões

e respostas apresentadas e discutidas neste tópico.

Ao serem solicitados a realizarem uma avaliação geral do curso,

59,4% cursistas avaliaram como excelente e 40,6% como muito bom,

não tendo sido selecionadas por eles as opções bom, regular e ruim.

Diante da indagação: “Com a realização do curso, quais foram as

minhas maiores aprendizagens?”, os cursistas opinam que compreen-

deram a arte sem uma identificação terminológica e, por isso, foi mais

significativa e que passaram a desejar tocar o que pesquisam para ativar

as memórias sensoriais. Apontam para o trabalho interdisciplinar tendo

as artes como fio condutor de uma aprendizagem prazerosa, integrado-

ra, inovadora e criativa na descoberta de uma arte que “faz sentido e é

apaixonante”, o que foi incentivado desde o módulo introdutório ao de

finalização, que propunha o planejamento, desenvolvimento e avalia-

ção de uma ação pedagógica, tendo artes visuais, corpo em movimento

e música, integrada e permeada pelas múltiplas linguagens, e a partir

de um tema gerador inspirado em materiais selecionados pelo cursista.

Sampaio (2015), em seu texto Integrando artes e linguagens: a

didática da arte, ao conceituar as artes, leva-nos a perceber pistas em

obras, em vídeo e papel, da interação entre as linguagens artísticas em

produções artísticas e no ensino de artes. Faz, inclusive, proposições

que possam levar os cursistas a vislumbrarem possibilidades de traba-

lhos com as crianças pequenas, o que se fez notar nas ações pedagógi-

cas que consistiram no trabalho de conclusão do curso, que originaram

6 Número superior ao de aprovados, pois no período de aplicação do ques-tionário o curso estava em andamento.

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Clareira luminosa 27

a publicação do e-book, Infâncias e Arte: Impressões do Mundo (araujo,

lourenço, 2016). Conheceram como elaborar a ação em uma sequ-

ência didática, estabelecendo as quatro artes no planejamento, tal qual

visualizamos na síntese de uma ação descrita no ebook:

Esta proposta consistiu em integrar artes visuais, música, corpo, movimento, expressão, criatividade e imaginação através das vi-vências, com material não estruturado. Bexigas, papel panamá e tinta foram utilizados na ação, que foi filmada e reapresentada às crianças. Elas observaram os seus atos, representaram corporal, sonora e graficamente a vivência, dando sentidos às manchas causadas pela explosão de tinta e tomando decisões sobre o pro-cesso (silva; ferrara; carvalho, 2015, p. 16).

Nessa ação, um grupo de 12 crianças com idades entre dois e três

anos foi incitado a explorar bexigas que tinham em seu interior tinta

guache de cores diferentes e agrupadas de modo a formar uma obra de

arte. Ao descrever a experiência as cursistas, tal como nos enfatiza Gobbi

(2015), atribuem centralidade às descobertas dos pequenos: “— Nossa

gente, saiu tinta da bexiga”, fala da primeira criança que fez a descoberta

do que havia dentro da bexiga ao estourá-la e ainda elas próprias direcio-

nam suas invenções, ao perguntarem se podiam pular na obra; “todas

passaram a pular em cima da obra, depois deitaram, colocaram o rosto

em contato com o papel, apalparam e ficaram muito felizes com esse

movimento” (silva; ferrara; carvalho, 2015, p.17).

As falas dos cursistas revelam que desenvolveram um gosto

maior pela arte percebendo a sua relação com a educação infantil

e as infâncias. Revisitaram o fazer artístico, a infância, as influências

culturais e o desenvolvimento infantil e, nesse sentido, destacamos

propostas como as de Botton (2015, p. 12), em que os professores,

além de serem chamados a retomarem os referenciais curriculares

que os orientam no planejamento de suas práticas, foram convidados

a (re)descobrirem as crianças que um dia foram. “Assim devem estar

as lembranças de nossa pequena infância: bem guardadas a chave

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Betania Libanio Dantas de Araujo • Érica Aparecida Garrutti de Lourenço28

em algum lugar, nessa espécie de ‘museu de mim’. E nós temos essa

chave: basta agir com as crianças”.

Percebem que o modo de ver a arte foi modificado, as suas possibi-

lidades de criação e integração entre as diversas produções. Entendem

que a arte precisa participar do cotidiano diário da educação infantil

apresentando às crianças as mais diversas formas artísticas. Considera-

mos que os espaços de enriquecimento do AVA foram essenciais, até

mesmo cada texto de aula que incitava a consulta a materiais comple-

mentares. Logo, o padrão estético foi paulatinamente se ampliando.

As artes devem opor-se a esse clichê de sons, cores e movimen-tos ofertando pesquisas mais profundas por meio do acesso a materiais diversificados. Nas artes visuais, é preciso apresentar obras de arte para que a criança descubra uma paleta bem ex-tensa de tonalidades e por essa percepção possa experimentar a criação de novos tons. Na música, é preciso ofertar composi-ções que não tocam na mídia e que apresentem maior extensão em tons musicais. No movimento, é necessário propor pesqui-sas que influenciem diversas formas de chorar, correr, sorrir e gargalhar, ao invés de ater-se a poucos formatos televisivos repetidos (araujo; lourenço, 2015, p. 2).

Outro aspecto favorecido pelo EIIA foi vivenciar a arte com as

crianças retirando os(as) educadores(as) do distanciamento, compre-

endendo a cultura da infância: “com o curso aprendi a observar mais as

atividades das crianças, suas curiosidades e ações”, com práticas volta-

das para princípios e necessidades da primeira infância. Consideram

que as crianças são produtoras de arte desde bebês, que não podem

ter subestimados os seus saberes e que precisam ser propositoras de

aprendizagens nas quais o processo é mais importante que o produto.

Incitados por questões7 como “Que concepções de infância e crianças

7 Os textos produzidos pelos professores pesquisadores sempre traziam bo-xes para refletir e saiba mais, para além daqueles materiais complemen-tares já indicados na página de abertura de cada módulo.

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Clareira luminosa 29

têm nos orientado? O que sabemos sobre as meninas e meninos desde

que nascem? O que é ser criança segundo nosso ponto de vista?” (gobbi,

2015, p. 4), os cursistas foram levados a atribuírem centralidade ao

que as crianças dizem, como se numa inversão da lógica que frequen-

temente assumem de “o que fazer para eles e elas (as crianças) quando

crescem?” para o que aprendi com as crianças hoje?”. Também nessa

direção, encontramos orientações como “Interaja. Na oficina de per-

curso converse com a criança. Pergunte sobre o que produz. Algumas

nada dirão e então você pode falar sobre coisas que vê: olha, você usou

a cor X aqui, olha essa linha deu um pulo? (...)” (libanio, 2015, p. 37)

Aprenderam a aprimorar o olhar e a ter uma atenção para o que as

crianças realizam, sendo mais investigativos nas conclusões, fazendo

registros diariamente para “descobrir e ressignificar a voz das crianças”.

Os professores reconheceram que, durante a infância, o ser huma-

no tem o direito de experimentar e pesquisar artefatos culturais pouco

ou não explorados, descobrindo novas possibilidades, desde aqueles

que envolvem seus próprios corpos, tal como Sanches (2015, p. 16)

incentiva na proposta apresentada em seguida, àqueles de manuseio

de materiais diversos, por exemplo, nas artes plásticas.

brincando com as crianças: Pense nos movimentos que faze-mos diariamente: andar, escovar os dentes, comer, beber, sentar, correr, andar de ônibus, a cavalo ou de bicicleta etc. Seria pos-sível fazer as mesmas coisas de um jeito diferente? Vamos tentar isso com as crianças? Organize o espaço, coloque uma música para criar o clima e... comece a brincadeira! Escolha uma ação rotineira como tema. Por exemplo, vamos fazer de conta que estamos indo para a escola a pé. Vamos andar de outros jeitos? Você pode propor: Como seria ir para a escola... de costas? de lado? como um leão? E uma cobra? um robô? com passos lar-gos? passos curtos? Saltando? de mãos dadas com um colega? com três colegas? Como um velhinho, como uma formiguinha etc. [...] atenção! Não é você quem faz o movimento e para as crianças copiarem! Você apenas as orienta e propõe desafios: Muito bem! Vejam como a Maria está fazendo! Olhem o Pedro

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Betania Libanio Dantas de Araujo • Érica Aparecida Garrutti de Lourenço30

virou um leão muito bravo! Nossa, me ensine, João, quero andar como um robô igual ao seu! O educador deve aceitar sugestões das crianças para incorporar à atividade.

No texto as artes plásticas – eu vejo, eu toco, eu faço (libanio,

2015, p. 40), há proposições quanto aos materiais a serem utilizados

em oficinas de percurso e ateliês que incluem, além de materiais

artísticos, aqueles que surgem do contexto da criança, como sucata.

Segundo a autora, “As crianças misturam materiais com muita facilidade,

basta que tenham materiais, superfícies, ferramentas e elementos de ligação

livremente”. Sendo assim, os cursistas consideram que a criança pode

desvelar o seu mundo; o entorno pode ser explorado com materiais

de fácil acesso8 como folhas, gravetos, som do vento, diversos supor-

tes e materiais, entre outros elementos. Reconhecem que, em uma

prática pedagógica criativa e inusitada, é possível pensar em maneiras

para que as crianças pesquisem materiais e realizem as suas descober-

tas, numa arte em processo.

Alguns cursistas contam também da descoberta do uso do com-

putador de outra forma até então desconhecida. Conheceram possibi-

lidades práticas e tecnológicas como criações no campo virtual.

Há a percepção de que a criança pode ser participante na criação

didática com a ação intencional do professor, que precisa estudar bas-

tante para antecipar ou prever insights das crianças e iluminar estas

descobertas. É o que nos diz a professora: “Aprendi a observar melhor as

8 No encontro sobre o módulo integrador das artes criamos uma ação artística-pedagógica para crianças e a Land Art ou Arte da Terra (Earth Art ou Earthwork) cujos materiais são fornecidos pela própria natureza possui como espaço de exposição o terreno natural integrado à própria obra, a terra como suporte artístico. Os materiais naturais como folha, rocha, graveto, madeira, galho, areia são tomados na fusão arte-natureza e em sua efemeridade, uma vez que é modificada com o tempo, a chuva e o fluxo dos seres em movimento pela mata. Meio ambiente, ecologia, sustentabilidade, composição plástica, corporal e musical, performance, biologia, são algumas das áreas envolvidas nesta proposta.

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Clareira luminosa 31

crianças em seus fazeres e a esperar que realizassem o seu percurso pessoal favore-

cendo assim a sua aprendizagem!” Em síntese, reconhecem mudanças na

atuação com as crianças, conforme ilustra a fala docente:

a maior aprendizagem foi aprender a encaminhar adequada-mente e com qualidade minhas aulas de Arte na Educação Infantil, desconstruir conceitos enraizados pela educação tra-dicional, construir junto com as crianças novas possibilidades de expressar através da Arte e nos mais diversos campos de experiência.

Dar voz às crianças era a perspectiva do curso, foi percebida como

prática intencional do EIIA pelos cursistas e, portanto, favoreceu-se a

desconstrução de conceitos enraizados pela educação tradicional e o

caminhar no sentido da construção com as crianças de novas possibi-

lidades de expressão por meio da arte e dos diversos campos da expe-

riência. Nessa perspectiva, descobriram diversas atividades específicas

para crianças, saberes, linguagens e artes. Passaram a respeitar as pro-

duções das crianças em cada tempo, observando o modo como criam.

Conhecer a experiência de outras escolas, aprofundar o que já era de

conhecimento dos (as) professores (as) e rever os modos de fazer foram

objetivos favorecidos no EIIA tal como intencionávamos, bem como a

preparação da escuta sobre o que as crianças têm a nos dizer por suas

manifestações artísticas.

Na visão dos cursistas, ao serem questionados “Qual a minha opi-

nião sobre os conteúdos para leitura?”, 71,9% qualificam como exce-

lente, 27,1% muito bom, 1% como bom e 0% como regular ou ruim.

O aprofundamento conceitual foi uma qualidade apontada, com lei-

turas que reconhecem fazer sentido em suas práticas em processo de

autorreflexão, o que os levou a repensarem o uso do livro e da leitura:

“utilizar a leitura para iluminar a prática”. Acreditamos que durante

a formação (universitária ou continuada) do professor, este encontre a

obrigatoriedade de leituras que necessariamente não forneçam uma

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Betania Libanio Dantas de Araujo • Érica Aparecida Garrutti de Lourenço32

experiência significativa formativa. Talvez a antiga frase “na prática, a

teoria é outra” esboce inúmeras experiências formativas, cujos textos

e ações são ambos frágeis. O material didático em geral impulsionou,

dentre os vários cursistas, especificamente diretores e coordenadores

a levarem-no na formação em horários de planejamento comuns na

rotina das creches e pré-escolas. As propostas dos encontros presenciais

orientadas pelas tutoras e professores do curso também influenciaram

nesse processo.

Quanto à quantidade de atividades realizadas semanalmente,

54,2% avaliam como adequada, 45,8% extensa e 0% insuficiente. Jus-

tificam que realizaram muitos estudos e atividades em pouco tempo

o que inviabilizou a maior dedicação, apesar de ser um curso bem

reflexivo e adequado à prática em sala de aula. Outra dificuldade se

relacionou ao tempo da ação pedagógica com as crianças planejada no

módulo integrador; consideram que uma semana era insuficiente para

desenvolver uma ação em artes.

Diante da questão, “Quais dificuldades encontram na ação da arte

e das linguagens com as crianças?”, 24% dos cursistas afirmam não ter

dificuldades porque a vivência com artes visuais é mais comum em sua

unidade, estão empenhados em relacionar as demais artes na vivência

da creche e pré-escola ou porque o curso ajudou a não ter mais receio

em trabalhar com as artes e as múltiplas linguagens. Explicam também

que as crianças são espontâneas e adoram brincar com arte: “Não encon-

trei dificuldades, depois de ler os textos aprendi que observar e organizar espaços

para a ação da arte com criança é mais importante do que ficar imaginando a es-

cola ideal para o trabalho com artes”. Alguns mencionam que não sabiam

identificar a arte e com o curso compreenderam que tudo à nossa volta

pode transformar-se em arte.

Apontam soluções que encontraram para as adversidades, vejamos:

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Clareira luminosa 33

No trabalho cotidiano, muitas vezes esbarramos na questão da falta de recursos e materiais, e muitas vezes tive que reor-ganizar, replanejar, pois sempre aparecem imprevistos, o que é comum no trabalho na educação infantil. No entanto uma dificuldade que tive e foi superada foi com relação ao traba-lho menos dirigido, a dar opções de escolha e autonomia para crianças. Outra dificuldade que tive e foi superada: encontrar materiais, vídeos e propostas voltadas para crianças tão peque-nas e tive oportunidade de ampliar o leque de possibilidades ofertadas pelo curso.

[...] não encontro muitas dificuldades, pois me proponho a “fa-zer arte” junto com eles e, assim, em todas as propostas estou atuando junto ao grupo - propondo interações e formas de ex-perimentar os mais diversos materiais... Mesmo os que nunca experimentaram como panos, sucatas, telas e tantos outros.... Enfim, os desafio constantemente a construir e produzir mais e mais e, assim, acabam vivenciando experiências e experimen-tos que favorecem a integração das linguagens!!

Outros cursistas explicam que “o desconhecido se torna dificultoso”,

mas que podem aprender. Nesse sentido, desenhar foi apontado como

uma dificuldade, o que demonstra a necessidade de maior familiarida-

de com a arte para possibilitar o mesmo às crianças. Constata-se esta

familiaridade com o cursista que diz “como sou formado em Artes, não

tenho dificuldade nesta área”. Entendemos que a arte e a educação

infantil não são temáticas estudadas suficientemente em alguns cursos

de Pedagogia e a depender do ano de formação. Lembramos que o

Ministério da Educação determinou às instituições de ensino superior

a inclusão de Fundamentos do Ensino da Arte no curso de Pedagogia

apenas em 2006 (brasil, 2006).

Abalizaram como dificuldades que encontram no dia-a-dia nas

creches e pré-escolas: grande quantidade de crianças por turma (35

aproximadamente); falta de apoio da equipe de limpeza e respeito às

produções das crianças; falta de tempo e de materiais disponíveis para

elaborar as ações e refletir sobre as mesmas; ausência de espaço ade-

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quado, como ateliês, para produzir e expor; falta de flexibilização de

tempos; limitação da proposta de artes na escola com frágeis concep-

ções coletivas e gestoras e diversas cobranças por resultados de outras

linguagens; resistência de colegas da profissão a mudanças, falta envol-

vimento e unidade do grupo no trabalho; deficiência de formação em

arte do professor, desde a educação básica ao ensino superior; necessi-

dade da mudança de concepção do professor sobre artes para crianças

pequenas, de modo a percebê-las como protagonistas, rompendo com

a compreensão de arte como passa-tempo, práticas que destaquem o

produto final, fragmentação do conhecimento e a estética do padrão

bonito/feio, de modo a desnudar-se do olhar artístico erudito, ressigni-

ficando as múltiplas linguagens; e limitação de repertório em artes do

professor. Como superar tais obstáculos? Como influenciar crianças

autoras e investigativas? Este deve ser o tema das horas de planejamen-

to para que a escola documente e acompanhe cada criança e grupo em

suas inventividades.

Os professores sugerem que o curso seja mais longo, torne-se uma

especialização e seja extensiva aos professores do ensino fundamental,

“considerando a excelente qualidade do nosso curso, tanto com relação ao mate-

rial, quanto as formadores, assim como sua estrutura e formatação”. Conside-

ram uma “grande oportunidade para aprimorar conhecimentos em de-

fesa da infância”. Uma “intensa ligação com a nossa prática cotidiana”

foi o diferencial deste curso:

O curso foi extremamente organizado e contou com professo-res gabaritados que realizaram em suas participações através dos textos, vídeos e videoconferências importantes reflexões sobre o trabalho com arte na infância. Considero como dife-rencial do curso a estreita ligação que as atividades práticas tiveram com os textos propostos, fazendo com que criássemos alternativas para analisarmos as nossas proposições no “chão” da escola e fizéssemos as adequações necessárias. As tutoras presenciais e virtuais também realizaram a mediação a conten-to zelando para que pudéssemos elucidar nossas dúvidas.

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Segundo eles, outro ponto referido é que as tutoras tinham dispo-

sição em auxiliar, dar devolutivas e respeitar o trabalho das professoras,

avaliam os cursistas. Para alguns deles, é o primeiro curso a distância

com tutores tão comprometidos. O incentivo das tutoras a distância

impediu que cursistas com dificuldades parassem o curso. Consideram

que tiveram um acompanhamento muito mais próximo do que diver-

sos cursos presenciais. Elogiaram a qualidade das imagens, os textos, a

plataforma muito clara e de fácil acesso, as obras de arte apresentadas,

as salas virtuais. Para aqueles que a virtualidade era uma novidade ou

ainda que a plataforma exigia uma ação diferente do uso comum da

internet, foi importante o apoio do tutor no acesso à plataforma. Possuir

um domínio de diálogo com a turma, facilidade e clareza na orienta-

ção das tarefas nas aulas presenciais e um acompanhamento ímpar nas

atividades online, demonstrar conhecimento e conhecer os cursistas

pelo nome, foram pontos que consideram importante na relação do

tutor com o cursista.

O curso proporcionou a reflexão sobre as ações docentes, a virtua-

lidade e a descoberta sobre as cem linguagens da criança.

Conclusão

Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovakloff, levou--o para que descobrisse o mar. Viajaram para o Sul. Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando. Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza. E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai: - Me ajuda a olhar!

(A função da arte/1 Eduardo Galeano).

Em O livro dos abraços, Eduardo Galeano designa como fun-

ção da arte ajudar a olhar. O adulto teria a importância reconhecida

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Betania Libanio Dantas de Araujo • Érica Aparecida Garrutti de Lourenço36

pela criança de levá-la a ver o mar que é tamanho e tão surpreen-

dente, não sendo possível tomá-lo todo e entendê-lo sozinho. E o

menino “mudo de beleza”, tão pequeno, tão impossível de abarcá-

-lo em sua imensidão... É como se a criança dissesse: – Professora,

mostra para mim o que você vê! Quero aguentar toda essa boniteza.

Quero entendê-la.

Antes, as dunas mostram este caminho de esforço para contem-

plar a beleza. E o mar distanciado de tudo poderia ser apresentado pelo

adulto para que depois conhecessem outros mares.

O nosso curso transcendeu na expectativa da chegada ao mar. E foi

na chegada às experiências artísticas que o mar se desenhou. Era muito

vasto, o deslocamento de águas rasas e correntes de mar profundo determi-

nadas pelas salinidades e temperaturas; ventos e marés produziam ondas9

com experimentações de dentro para fora, de fora para dentro e em um

espaço inventado.

O lócus já é o espaço inventado, a terceira área que não pertence

a ninguém, mas é pertencida pelo coletivo de pessoas que são atraves-

sadas e atravessam as identificações.

A função da arte era sobremaneira indagar, levantar perguntas,

fomentar os caminhos a percorrer, sendo infido qualquer ensinamento

de modelos. Os artistas dividem conosco os seus processos de constru-

ção autoral cabendo aos sujeitos a elaboração da sua marca individual

e está aí toda a complexidade do mar.

De espectador a participante, os cursistas tomaram a experiência

estética engajados em suas produções, como educadores conscientes

de seu processo de autoria, mais próximo da brincadeira por meio da

reeducação das percepções.

9 Tomamos a área de Educação Infantil, infâncias e arte como esse mar de vivências artísticas em artes visuais, teatro, dança e música mas em experiência multidisciplinar. Os educadores, os autores, os tutores parti-lham os seus conhecimentos, são permeados pelos novos e criam juntos o espaço inventado.

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Clareira luminosa 37

Sem delimitação geográfica,10 os múltiplos espaços da creche, do

polo, da virtualidade coexistiram e significaram-se. É o espaço que pro-

ponho, é o espaço que me acomete, é o espaço que construímos juntos.

Durante a mediação dos processos de comunicação ocorreram

vivências pela interação e continuidade enquanto emaranhado de

experiências vividas. Poderíamos sugerir que ocorreu a desterritoria-

lização, porém interterritorialidade proposto por Barbosa (2009) seria

mais adequado. Na interterritorialidade, os espaços se entrecruzam

estabelecendo novas realidades inspiradas em sensorialidades amplia-

das, conforme Oiticica (apud cavalcanti, 2002) em “descoberta do seu

centro criativo interior, da sua espontaneidade expressiva adormecida,

dilatando as capacidades artísticas”.

A criança ensina a olhar para tudo, diz Pessoa, para as flores,

mostra como as pedras são engraçadas e ensina a olhar devagar nesse

mundo corrido dos adultos. Assim vai nos ensinando sobre as coisas, e

a criança que nasce desta nova experiência dá a mão para mim e para

a criança que fez nascer esse sentido maior em nós e corremos juntas

descobrindo que não há mistério no mundo e que tudo vale a pena.

Para saber mais...

Para conhecer um pouco mais sobre a vivência do EIIA, convi-

damos você a acessar os materiais didáticos disponíveis na biblioteca

virtual do Comfor: http://comfor.unifesp.br/?page_id=671, bem como

o e-book, Infância e arte: impressões do mundo, organizado a partir

das ações pedagógicas, desenvolvidas pelos professores cursistas como

atividades de conclusão do curso:

http://www.comfor.unifesp.br/wp-content/docs/COMFOR/bi-

blioteca_virtual/EIIA/Infancia.pdf

10 A experiência ocorria no polo, na escola ... Na sala ou na janela? Na mesa ou debaixo dela? No computador ou no celular? Em casa ou na praça?

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Outra indicação consiste na coleção Compartilhando Experiên-

cias, composta de 3 cadernos, que apresenta atividades desenvolvidas

em oficinas que aconteceram em creches da Rocinha – bairro da Zona

Sul do Rio de Janeiro – participantes dos projetos De mãos dadas por

uma creche de qualidade e Ganhando Autonomia. Os projetos, desen-

volvidos pelo CECIP em parceria com o Instituto Dynamo, promove-

ram a formação de gestoras de creches com o objetivo de melhorar o

atendimento à primeira infância, investindo na qualificação das pro-

fissionais, na adequação dos espaços e na formação de uma rede de

creches na comunidade.

Link das publicações:

http://www.cecip.org.br/site/atividades-de-artes-plasticas-com-crian-cas-de-ate-quatro-anos/

http://www.cecip.org.br/site/atividades-e-propostas-criativas-com--criancas-de-ate-quatro-anos/

http://www.cecip.org.br/site/atividades-musicais-com-criancas-de--ate-quatro-anos/

Referências

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Clareira luminosa 39

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Betania Libanio Dantas de Araujo • Érica Aparecida Garrutti de Lourenço40

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Betania Libanio Dantas de Araujo1

Ouvi um músico de jazz uma vez dizer: “Nós tocamos juntos. Não sabemos se o que tocamos é jazz ou não. Apenas toca-mos.” Exatamente isso eu também pode-ria dizer: “Nós criamos juntos, crianças e adultos. Não sabemos se o que criamos é arte. Apenas criamos algo juntos.”

anna marie holm (2015, p. 9)

1 Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP), Mestre em Artes pela Universidade Estadual Paulista (UNESP) e Graduada em Educação Artística com especialização em Artes Plásticas pela Faculdade de Belas Artes de São Paulo. Professora Adjunta da Universidade Federal de São Paulo, Campus Guarulhos. E-mail: [email protected]

II. A arte contemporâneae as múltiplas linguagens da criança:

caminhos do imaginário

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Betania Libanio Dantas de Araujo • Érica Aparecida Garrutti de Lourenço42

Figura 1 Crianças, deitadas ao chão, observam desenhos nas nuvens2 (Acervo da autora)

Este texto tem como propósito refletir sobre a estética da arte no

brincar criativo,3 apresentar elaborações de artistas e, oferecer refle-

xões da Arte-educação aproximando o fazer da arte contemporânea às

crianças, no fomento das criações infantis. Para tanto, ao final do texto,

apresentamos três experiências sobre arte contemporânea e infância.

O fazer artístico infantil e a arte contemporânea4 possuem aproxima-

ções. São movidos pela descoberta, experimento e criação em processo;

considerando o repertório interior, passando pelo sentir na construção da

poética individual. Convém compreender o nascimento desta arte.

2 Detalhe de fotografia realizada por Aparecida Ferreira da Silva Nasci-mento e editada por Betania Libanio Dantas de Araujo.

3 O que é ser criativo? Segundo Weiss (1989, p.48), Saunders considera que ser criativo envolva os seguintes processos mentais:.fluência (habili-dade para encontrar várias soluções para um mesmo problema).associa-ção (relacionar formas, criar paralelos), flexibilidade no pensar criativo (habilidade de mudar o projeto inicial), habilidade visual (capacidade de interpretar signos visuais)

4 Segundo a Enciclopedia Itaú Cultural, “as obras articulam diferentes linguagens - dança, música, pintura, teatro, escultura, literatura etc. de-safiando as classificações habituais, colocando em questão o caráter das representações artísticas e a própria definição de arte”. In: http://enciclo-pedia.itaucultural.org.br/termo354/arte-contemporanea

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Clareira luminosa 43

Para além das telas, papéis e esculturas, rebenta a arte contempo-

rânea no século XX. Entendê-la para a educação de crianças é ques-

tionar a ideia da arte como mercadoria5 a ser contemplada, comprada

ou como sinônimo apenas do belo. Consideramos aqui a arte como

espaço de criação humana, experimentação democrática, participação

e autoria. No mesmo século, as artes plásticas passaram a contemplar

outras linguagens e materiais, saindo do paspatour e mármore, toman-

do a rua ou até o museu, como campo expandido em processo de hibri-

dismo entre meios e linguagens sendo que “nada na tradição” possibilite

“uma classificação”, discorre Pescuma (2013, p. 50).

Significa ampliar a compreensão do que seja a arte ao ampliar

fazeres que não estavam presentes na arte moderna, trazendo o nosso

cotidiano para a reflexão; assegurando os itinerários da criança e do ar-

tista. Crianças e professores podem ativar esta criação artística em con-

tato com os processos artísticos investigados na arte contemporânea.

Segundo Danto (2006, p. 12), todas as artes criadas estão disponíveis,

exceto “o espírito em que a arte foi realizada”.

Aranha (2016, s. p.) em Arte como ideia, elucida que a arte é coisa

da mente6 e esclarece o contexto de surgimento da arte contemporânea:

A Arte Conceitual, dos anos 1960 e 1970, traz ideias e atitudes que evidenciam um desligamento da experiência do fazer ar-tístico em relação à matéria, ao construir linguagem. Mais do que uma forma de expressão pessoal, irá traduzir a época, poli-ticamente conturbada, em atos artísticos – happenings e perfor-mances – em instalações, livros de artistas, livros-objetos, cartões postais e outras formas que apontam para a realização da ideia, do conceito e para a negação do objeto estético. A Arte Concei-tual é um posicionamento contrário à arte expressiva, de subje-tividades e pensamentos individuais e à arte de representação de objetos do mundo. Questiona as estruturas artísticas anteriores e

5 Pinturas, gravuras, esculturas.6 La pittura è cosa mentale é desenvolvida no Tratado da pintura por Leo-

nardo da Vinci, escrito (primeira versão) em 1894.

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contesta a estética advinda de um ato de criação, cuja essência é o vivido e o visto transformado em obra. Ao situar o objeto da arte como ideia, recupera o pensar racionalista que impera com independência da experiência e dá primazia à razão sobre as emoções. Essa arte começa a disseminar outras formas de comunicação: a nova linguagem tem sua gênese vinculada ao florescimento da indústria cultural dos anos de 1960 e os meios agora são os da reprodutibilidade da arte.

A despeito das artes terem os seus espaços muito estabelecidos

e separados, já é antigo o procedimento de artistas intensificarem as

sensações do público durante a fruição das suas obras. Estevão Silva

(1844-1891), por exemplo, colocava frutas cortadas atrás de suas telas

de natureza-morta para dar maior realidade às frutas pintadas, ativando

o olfato do público durante a exposição em pleno séc. XIX. E o que

podemos dizer das artes circenses, o teatro e a mágica?

Até a Arte Moderna o percurso de criação do artista não era co-

nhecido e os materiais usados pelas Belas-Artes eram duradouros (tinta

a óleo, tela, mármore, metais,...). Nas exposições, a obra era acompa-

nhada por uma legenda com nome do artista, data, material, lugar. Já

os artistas contemporâneos começaram a incluir o processo7 de produ-

ção nas exposições e materiais não convencionais utilizados e extraídos

do cotidiano. Paulatinamente é construída uma ação educativa que

promove a mediação ao público na significação da obra. As exposições,

por sua vez, incluem educadores que ajudem o público a decodificar

os seus segredos.

A arte contemporânea pode representar o belo, pode ser um

belo horror (favaretto, 1999), pode provocar paz ou incitar a luta

por seus direitos, pode causar estranheza e medo, e ainda inspirar

reflexões inquietantes.

7 A palavra “processo” se origina do latim procedere, que significa avançar, ir adiante, criando uma relação de temporalidade.

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Clareira luminosa 45

Poderíamos dizer que derrubado o pedestal que distancia obra de

espectador, este passa a desconstruir e interagir ressignificando o ob-

jeto, tornando-se o próprio coautor. Portanto importa somente enten-

der a criação, a investigação e a interatividade. Abandono dos suportes

tradicionais, liberdade artística, o efêmero na arte, mescla de proce-

dimentos artísticos e materiais, participação do espectador podem ser

características desta arte.

Figura 2. Um amor sem igual, 20118 - Nina Pandolfo – MAC (Acervo da autora)

8 Um amor sem igual é um gato que ronrona, mede mais de 3 metros de comprimento e ronrona ao receber carinho. A autora da obra, Nina Pandolfo, é também a criadora de grafites de ingênuas meninas de olhos grandes pela cidade de São Paulo.

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O gato apela para a interação: é um grande gato cuja placa expli-

cativa solicita ao visitante que passe a mão sobre o seu pelo, podendo

deitar a cabeça sobre a sua grande pata ou ainda deitar a cabeça sobre

a barriga que infla e ronrona.

A infância em contínuo readymade

A criança consegue atribuir funções diferentes a um mesmo ob-

jeto, dada a sua capacidade imaginativa. Consegue que uma vassoura

vire cavalo, ponte, monstro, peça, montanha. Os adultos, acostuma-

dos a atribuir um único sentido ao objeto, deixam de exercitar novas

significações a estes.9 A dinâmica escolar, ao propor ações repetitivas,

9 Duchamp propõe exatamente este exercício do pensamento divergente, portanto criativo. O pensamento divergente é estabelecido na relação entre objetos que não possuem uma relação aparente ou ainda na atri-buição de novas funções ao objeto (ARAUJO, 2006). A ideia de enviar um urinol ao museu, intitulado de fonte é um exemplo de readymade (o objeto é retirado do cotidiano, deslocado de sua função original e acessa o espaço da arte). Já na assemblage de Picasso temos objetos que deixam de ter as suas utilidades e congregam outro objeto, criando analogias com

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impede que a criança elabore novas relações e funções entre os obje-

tos. Entretanto, em momentos não vigiados pelos adultos, a criança

encontra possibilidade para misturar objetos com liberdade. Os artistas

vivem frestas de tempo para essas criações com intencionalidade.

Enquanto a criança olha ou manipula o objeto, diversas histórias

estão em construção. Percebe imagem, som, movimento, material. Ob-

jetos assumem imagens e sentidos que não lhe pertence, mas tornam-

-se pertencidos. Ao preparar o olhar para a investigação da criança, o

adulto é aproximado deste mundo estético infantil e aprende com ele.

Entretanto a escola separa ciência e imaginação, razão e sonho, re-

alidade e fantasia, mas a criança é feita de cem linguagens, diz a poesia

de Loris Malaguzzi. Como possibilitar a relação prazerosa da criança

com as diferentes materialidades, as cem linguagens? O professor deve

estudar as produções artísticas e criar situações para que as crianças pos-

sam fruir10 outras artes. No momento da observação, o espectador frui,

possui a arte atribuindo sentidos provenientes das suas experiências de

vida. Durante a fruição ocorre uma “zona intermediária de experiência”

pertencente ao domínio das artes (WINNICOTT, 1975) que constitui

uma passagem imaginária entre “o eu do espectador e o outro que se

presentifica no espaço plástico” (FRAYZE-PEREIRA, 2005, p.81).

Fruindo o fazer artístico da criança, Picasso é tomado pela experi-

ência. Artistas modernos que romperam com os suportes tela-escultura

(Miró, Calder, Picasso, Torres-Garcia, Klee) impressionaram-se com a

criação infantil e por ela foram perpassados. Na descoberta do brincar da

criança, Picasso elabora a assemblage, ao unir objetos que não possuem

relação aparente, gerando uma nova peça: cabeça de touro (selim e gui-

dão de bicicleta), Guitar (papelão, lata e fios). Para artista e criança há

um brincar livre, pois nas brincadeiras sem regras pode ocorrer a associa-

imagens que já conhecemos. 10 A fruição derivada do verbo latino fruere significando “estar na posse

de”, “possuir”.

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Betania Libanio Dantas de Araujo • Érica Aparecida Garrutti de Lourenço48

ção entre peças que não possuem uma relação direta impulsionando aí

uma descoberta. Esta descoberta só acontece quando existe a repetição

deste brincar livre, não assegurada em eventos ocasionais.

Figura 3. Cabeça de touro - Pablo Picasso11 - 1943 Bira Dantas

11 Ilustração de Bira Dantas. A imagem original pode ser vista em: Escultu-ras de Picasso revelam sua enorme genialidade e criatividade http://epoca.globo.com/colunas-e-blogs/viajologia/noticia/2016/01/esculturas-de-pi-casso-revelam-sua-enorme-genialidade-e-criatividade.html. HAROLDO CASTRO (TEXTO E FOTOS) | DE NOVA YORK - 21/01/2016 - 08h01

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Clareira luminosa 49

Figura 4 Cartum Bira Dantas

Figura 5. Guitar - Pablo Picasso12 - 1914 Bira Dantas

12 Ilustração de Bira Dantas. A imagem original pode ser vista em: MOMA Guitars https://www.moma.org/calendar/exhibitions/1088?locale=en

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Figura 6 Cartum Bira Dantas

O jogo livre com sucatas, papéis, fita crepe e muitos outros ma-

teriais são o suporte de criação de um imaginário que não precisa de

acabamentos com propósitos artesanais. Em sua estética, reconhecem

seres, espaços e objetos de autoria. O sucatário pode ser alimentado

pelas famílias que reorganizam os seus descartes domésticos. O jogo

livre, o ato artístico, também pode ocorrer sem nenhum material.

É pela liberdade de expressão que as crianças revelam as suas

construções simbólicas e comunicam. Cesisara (2002, p. 2-3) anali-

sa que o impulso criativo permite atingir novas combinações a partir

de elementos “extraídos da realidade” e presentes no imaginário, e a

potência desta criação depende da “mediação dos sujeitos” que se re-

lacionam com esta criança. Para Vigotsky a atividade inventiva é ca-

pacidade de todos os seres humanos, consistindo na “combinação dos

elementos” constituindo algo novo, criador, habilidade de “combinar

o antigo com o novo é a base da criação” (...) e com o qual “constrói

seus edifícios de fantasia”. A fantasia é frágil quando a vivência é pouco

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Clareira luminosa 51

inspiradora, pois é preciso de referências para ousar, ele acrescenta que

“a imaginação não cria nada que não seja tomado da experiência vivi-

da: ou seja, a base da criação é a realidade”. Todavia enquanto precisa

de referência vivida necessita inventar o não vivido, pois “é a experiên-

cia que se apoia na imaginação, uma vez que depende da capacidade

do sujeito de imaginar algo que não viveu”.

As imagens se relacionam quando possuem um signo emocional

comum. Ao usar um cabo de vassoura como cavalo, o objeto cabo de

vassoura denota o cavalo. Dá ao ato lúdico a potencialidade de signifi-

car coisas diversas.

Sobre sucatas, Weiss (1989, p. 67-68) propõe a reunião de mate-

riais, a observação atenta e a descoberta do que os materiais sugerem

(analogias de formas). Ao manipulá-los, a criança modifica o projeto

porque percebe que ele não se adapta à ideia original ou ainda é uma

criação que se descobre em processo: professor - “o que é que você está

fazendo?” criança - “não sei não, vou saber o que parece daqui a pou-

co”, “eu peguei esta madeira e achei que parecia um narigão; aí peguei

estas duas e fiz os olhos.”

“Como preservar o espírito lúdico, de inventividade e de ousadia

que o trabalho com sucata tem possibilitado?” indaga Moreira Marx

(apud weiss, p. 69-72). O necessário tempo e pesquisa destinado às

crianças é imprescindível. Andando pelas ruas, Minervino, observa

os elementos intrínsecos e extrínsecos dos descartes (significado, for-

ma, material, textura) e “como se transformaram sob a ação do tem-

po” e do homem.

O adulto que oferta novas experiências sem apresentar soluções,

fomenta um princípio democrático que só é assegurado “quando for-

mos capazes de propiciar oportunidades e brincadeiras sem interferir

nas suas explorações”. (machado apud weiss, 1989, p.70).

A mudança de concepção da arte com crianças e bebês surgiu

com Anna Marie Holm. Responsável pelo advento da arte contem-

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porânea na educação brasileira ainda influenciada pelo pensamento

modernista (holanda, 2015, s. p.), Holm mostrou em seus três livros13

que qualquer espaço e material são fontes do criar artístico:

Sim, porque quebrei as regras. Usei a arte como ferramenta para pesquisar o mundo. Normalmente, as escolas estavam de alguma forma mais conectadas à arte moderna, mais ensi-nando. Eu estava trabalhando com arte contemporânea, num modo aberto de experimento, de pesquisa. Uso muito material reciclado, digo que qualquer material no mundo é artístico. Foi muito bom para as escolas brasileiras, pois o meu modo de pen-sar a arte não era caro. Então, o livro foi feito para os brasileiros, e eu não sabia disso. Eu o fiz na Dinamarca e estava realmente em uma arte experimental, que muitos não entendiam. Mas as crianças amavam a forma como trabalhava com elas. E me ensinaram a acreditar nessa forma de trabalhar com a arte, que o que faço é a coisa certa. Esse é o meu sentimento profundo. Trabalho da forma que as crianças querem que eu trabalhe.

O espaço expositivo

As múltiplas linguagens e a transdisciplinaridade presente em

diversas obras fomenta a necessária mediação com as crianças. Na

29ª Bienal de São Paulo, no terreiro A pele do invisível, uma criança

de quatro anos descobre que na pilha de jornais existe uma micro-

-tela com um vídeo de minhocas, o que a faz entender ser o invisível,

minhocas no subsolo que deixamos de ver e é discutido nesta instala-

ção. A instalação exige o deslocamento do corpo para novos ângulos,

não é mais o corpo estático e passante que vê obras à altura dos olhos

como ocorria até a arte moderna. A criança está pronta para pesquisar

tudo com o seu corpo. Mas nem todas as obras foram feitas para um

contato corporal.

13 Fazer e pensar arte; Baby-art: os primeiros passos com a arte e Eco-arte com crianças.

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Clareira luminosa 53

Em 2014, o Palácio das Artes fez uma exposição interativa e sen-

sorial de arte contemporânea dedicada às crianças com obras de Mira

Schendel, Lygia Clark, Regina Silveira, Leonilson, Frans Krajcberg e

Geraldo de Barros.14

Para Melo, entender o que as obras podem suscitar nas crianças

é mais importante do que saber o que veem naquela instalação, os

diálogos são mais fáceis do que com adultos tão cheios de certezas in-

cipientes, muitas vezes:

O encontro da arte contemporânea, especificamente com crianças, acontece de forma muito mais fácil do que a gente pode imaginar porque as obras não estão falando de nada mais do que a própria vida contemporânea. Para quem tem a histó-ria da arte na cabeça, há certo distanciamento, mas para eles é igual ao que está na rua, na TV… Por isso, talvez a proximi-dade da criança com a Arte Contemporânea seja muito mais justa do que com o próprio educador com a criança.

O Educativo Bienal São Paulo, em suas conversas sobre a vida e a

arte contemporânea, realizou encontros em 2012 sobre “transformação

através do diálogo e da experiência prática”, explica Barbieri (2012, s.p.)

“com propostas práticas, exercícios de percepção, de estímulo do olhar

do professor, mas também voltados para como esses professores podem

trabalhar a arte contemporânea em sala de aula com crianças pequenas”.

Produções que poderão ajudar o adulto a preparar materiais para

a criança: Assemblage (híbrido de pintura-escultura), Op Art, Pop Art,

Arte Povera, Land Art, Minimalismo, Arte conceitual, Arte Cinética,

Body Art, Street Art, Hiper-realismo, Videoarte, Happening, Fluxus

(mistura de diversas artes), Action Painting, instalação (pode gerar

sensação térmica, sonora, tátil, visual, etc...), antiform. A seguir vamos

conhecer alguns procedimentos da arte contemporânea.

14 Algumas fotos podem ser vistas em: https://www.youtube.com/watch?v=DoDijmaeXUI

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Betania Libanio Dantas de Araujo • Érica Aparecida Garrutti de Lourenço54

O que é instalação e como as crianças ocupam o espaço? Insta-

lação significa dispor elementos no espaço partindo ou não de uma

intencionalidade, é um ambiente construído. Na década de 60, o ter-

mo passou a ser usado pelas Artes Plásticas. Marcel Duchamp e Kurt

Schwitters estabeleceram as primeiras experimentações modernistas.

Land Art,15 Minimal Art, Work in Progress e intervenções urbanas16

exprimiram com força a instalação.

Não ficamos indiferentes perante a arte contemporânea. Sabemos

que o processo de alienação e de fetiche da mercadoria desenvolvido

por Marx em O capital, a “aceleração” do tempo nas grandes metró-

poles industrializadas gerando corpos agitados e a relação homem-

-tecnologia17 modificou a recepção do mundo visível. Desde a década

de 60, artistas pensam este impacto tentando criar rupturas neste andar

mecanizado dos seres que já não observam o seu entorno.

Freitas (2008, p. 23-27) discute em Adorno o sentido da arte mo-

derna e a perda do “fim específico” para a arte contemporânea:

Uma das qualificações de nosso juízo sobre algo belo, segundo Kant, é o fato de que percebemos na forma do objeto uma fina-lidade, sem que possamos determinar conceitualmente qual é o fim específico subjacente a ela. Essa ideia de uma finalidade sem fim foi apropriada por Adorno ao falar do papel social da arte moderna. Diferente da arte grega, medieval, renascentista, barroca e clássica, a arte contemporânea perdeu uma função

15 http://www.landhaus-boeck.de/assets/images/Naturwerkstatt_Land_Art.JPG

16 https://encrypted-tbn2.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcR-CDaHMd--ZmEWLjcwS6nHM968ENydY33RrB5Tg-niS5cKYri9q2Q

https://encrypted-tbn3.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcQuk3xLTdmCGE1g93oJPG2nJtrfjQE9ayu4wpTHxfnon_ApKXGtHg

https://encrypted-tbn2.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcRgxJ7t9jMZyJEyd1TmsAvooraq7cLBxrSWkQyWSjLV9zTbPAbknw

https://encrypted-tbn3.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcQuk3xLTdmCGE1g93oJPG2nJtrfjQE9ayu4wpTHxfnon_ApKXGtHg

17 Computadores, celulares.

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Clareira luminosa 55

específica, vinculada a valores de uma determinada classe so-cial... A arte moderna foi sempre uma arte burguesa, nutrindo--se do vínculo difuso que a obra possui com aquele que vai adquiri-la. A modernidade artística, entretanto, foi mais lon-ge, recusando toda e qualquer função preestabelecida para as obras. Ao contrário da indústria cultural, a arte contemporânea não tem a função de divertimento. A seriedade do prazer artís-tico faz com que ele seja qualitativamente diferente do que se experimenta nos meios de comunicação de massa. A arte con-temporânea pode ser qualificada como, em princípio, antisso-cial, desprezando normas e preceitos de estruturação precon-cebidos, rejeitando modelos éticos, políticos, religiosos, que possam determinar previamente a sua forma (...) As obras de arte contemporânea, em sua exigência de autonomia, criticam essa relação venal das coisas na realidade capitalista. É como se elas dissessem que nem tudo no mundo vale na medida em que se conforma a uma função preestabelecida. Ela parece nos dizer que seu significado pode ser construído a partir dela mesma, da relação que nós estabelecemos na singularidade da experiência de sua contemplação, sem que precisemos colocá--la como meio para um outro tipo de prazer .

A arte, desse modo, afasta-se da sociedade para dela falar de modo

crítico e verdadeiro.

Efêmera ou definitiva, visível ou invisível, a arte também pode ser

multimídia, sonora, de maneira a não conseguirmos tocar ou necessi-

tar de objetos. Possui um princípio experimental e a obra nasce da arte

conceitual.18 Como poética artística permite qualquer material. Traba-

lha com a memória no tempo e no espaço para questionar o próprio

homem em sua existência. A relação entre diversas linguagens ativam

a instalação e a obra passa a fazer sentido apenas com a presença e a

participação do espectador.

18 Com os avanços tecnológicos dos anos 1960 e 1970, a arte conceitual rompe com os suportes convencionais da arte e a inclusão do corpo do participante, sendo a ideia muitas vezes mais importante do que o objeto. A arte conceitual passa a registrar os processos de trabalho do artista, in-cluir outros materiais não utilizados pelas Belas-Artes.

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Betania Libanio Dantas de Araujo • Érica Aparecida Garrutti de Lourenço56

Brincar de forma criativa: virando vulcão

No meu livro L’Expression ou l’Homme vulcanus, dou a ima-gem de vulcão, de algo que brota espontaneamente, algo que vem do interior, das entranhas, do mais profundo do ser. Ex-primir-se é tornar-se vulcão. Etimologicamente, é expulsar, ex-teriorizar sensações, sentimentos, um conjunto de factos emo-tivos. Exprimir-se significa realizar um acto, que não é ditado, nem controlado pela razão. Como educador, crio condições para que este acto se realize o mais espontaneamente possível. Há um caminho a percorrer para chegar à expressão livre... Eurico Gonçalves (1991, p. 19)

Winnicott (1975, p. 31) chama de “espaço potencial” a terceira

área onde ocorre a brincadeira criativa (não é mais de dentro para fora

e nem de fora para dentro): “dada a oportunidade, o bebê começa a

viver criativamente e a utilizar objetos reais, para neles e com eles ser

criativo.” Essa criança precisa ser assistida por um adulto (mãe) que

não invade nem repreende. E no futuro só conseguirá criar o que foi

por ele vivido cujo adulto foi capaz de lhe proporcionar culturalmente.

É o encontro da fantasia e realidade, subjetividade e objetividade, poe-

sia e ciência que se mesclam, se misturam, se sobrepõem.

“As migalhas que o bebê pinça no chão, quando se deita de bruços

para fazê-lo por volta dos nove meses de idade, são brinquedos. Pedras

e folhas coletadas por uma criança no quintal e no parque também são

brinquedos”, é o que pensa Machado (2007, p.35), não importando

com o que se brinca, importando exclusivamente se o espaço potencial

tem um clima de liberdade e aceitação do experimento.

Machado (2007, p.36) sugere que: “Num clima de aceitação, de

liberdade para levar adiante suas brincadeiras até o fim, a criança pode

estar relaxada e adquirindo confiança para soltar a sua imaginação sem

medo”. Compreendemos que a relação qualitativa construída pela

criança denota um estado que “pode ser comparado a liberdade de

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Clareira luminosa 57

criação dos grandes artistas que exploram suas possibilidades e limita-

ções, sem medo de ousar nem de errar, arriscando, inventando, usando

seu potencial criador para dar nova forma à realidade”, ao que a autora

propõe como um espaço até então inexistente: “de dentro e de fora,

transitando no terceiro espaço.”

Apenas o brincar espontâneo é potencial para o processo criativo

e não os jogos de regras supervisionados. É preciso ir além do uso ime-

diato a que um brinquedo foi projetado, subvertendo o sentido original

de um brinquedo, atribuindo soluções ao seu uso, fazendo a escolha

de materiais. A supervisão só deve existir para a proteção e cuidado

com a criança

Não existe um fazer a ser seguido, o caminho é descoberto en-

quanto se faz. Ainda com a concepção burguesa de um modus ope-

randi de arte para ser vendida, os adultos buscam negar uma estética

própria das infâncias exatamente porque as crianças constroem o seu

fazer distanciando os seus objetos dos objetos capitalistas para consu-

mo do mercado. Este é um dos embates da escola e dos adultos com

os fazeres infantis.

Ser criador é diferente de ser consumidor; ser criador estabelece

outra relação com os materiais e com as pessoas, de cooperação e não

de competição, de proposição e não de consumo e descarte. Gonçal-

ves (1991, p. 20-24), em contato com populações nômades (Nigéria,

Marrocos, Nova Guiné, Afeganistão, México, Guatemala e Peru),

constatou uma expressão intensa “de uma infância não violada”. Já em

muitos países ocidentais as crianças são escolarizadas por modelos im-

postos e estereótipo, “com normas restritivas e submetida a instruções

rígidas, como solução única”.

Movidas pela sensorialidade, as crianças ficam plenamente cen-

tradas em sua experimentação e muitos artistas contemporâneos bus-

cam esta imersão. Nalini observa que há muita semelhança de temá-

ticas e procedimentos entre a poética da criança e os procedimentos

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Betania Libanio Dantas de Araujo • Érica Aparecida Garrutti de Lourenço58

da arte permitindo uma vinculação. Em pesquisa, os professores des-

cobrem saberes e fazeres das crianças ampliando os campos de expe-

rimentação: o corpo como suporte, a gestualidade, a criação de outros

espaços-tempo inspirando: ambiente, relações e autonomia a ser cons-

truída com as crianças. Aos poucos o professor torna-se pesquisador

de sentidos de um material que irá mediar e de descobertas realizadas

pelas crianças. As sequencias didáticas podem ser construídas por ma-

pas desenhados, riscados, com hipóteses, ideias, materiais, imagens,

refletindo antes, durante e depois da ação, desenvolvendo observação,

acompanhamento, registro a ser sempre retomado.19

Ver instalações estabelece uma fruição com a obra do artista e

com o criar da criança. É como se uma mediasse a outra. Perceber

afinidades e diferenças entre os processos de criação nas atividades in-

fantis e dos artistas tem como diferença a intencionalidade da atividade

realizada pelo artista e a vivência poética da criança, cujo caráter imi-

tativo no brincar pressupõe seleções de interesse para descobrir o me-

canismo daquilo que se imita, mas não é realizado em repetição, mas

em recriação, por meio da imaginação (cecisara, 2002). Proporcionar

diversas situações às crianças fornece um arquivo de experiências que

facilita o olhar no real e a viagem imaginativa para a criação do novo.

Contudo imaginar vivências experimentais, originais, poderá favorecer

esse procedimento investigativo conhecendo as criações dos artistas.

É preciso dar o tempo da pesquisa, diferente da produção em série

da fábrica, para que nele a criança possa experimentar e pesquisar. Mas

nada disso será importante sem uma intencionalidade do mediador

que consegue ver as elaborações das crianças e tornar conhecido por

todo o grupo. É preciso oferecer momentos para que as crianças obser-

vem, experimentem, produzam e apreciem (coragem, 2006, p. 95).

19 Sobre sequência didática, sugerimos a leitura do material didático do módulo Artes Visuais na Educação Infantil, aula As artes plásticas: eu vejo, eu toco, eu faço. (ARAUJO, 2015)

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Clareira luminosa 59

Ocorre uma antropofagia de materiais por meio da desconstrução,

colagem, montagem, recorte, distorção. Louise Bourgeois (apud Pescu-

ma, 2013) dá indícios sobre a produção do artista “eu sou uma pesqui-

sadora, eu sempre fui e ainda estou procurando pelas peças que faltam.”

Pescuma (2013) prossegue:

O artista é um construtor (...) um manipulador de códigos, cuja poética baseia-se na experimentação de linguagens e de materiais, na exploração do corpo, do espaço e do tempo. Cada vez mais se volta ao processo criativo e operacional, em que a obra confunde-se com sua preparação. Muitas vezes ela é a própria preparação, como numa ação efêmera, uma invenção de tática e gestos os mais variados, absurdos até, para liberar for-ça da vida aprisionada pelos poderes, fazendo com que tempos diversos se comuniquem através de estranhas alianças. Assim, está sempre à espreita de possibilidades de fazer novas alianças, novas conjugações de fluxos e entrar num devir.

Figura 7. Mapa de aproximações (Acervo da autora)

Acima, apresentamos um mapa de aproximações entre artistas

contemporâneos e crianças indicando: a ocupação criativa do espa-

ço que é dissolvido de sua função primeira e é potencializado com

liberdade; ao desprezar normas estabelecem flexibilidade na relação

entre ideias e/ou materiais; o corpo é participante; atuam nas múltiplas

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Betania Libanio Dantas de Araujo • Érica Aparecida Garrutti de Lourenço60

linguagens; o gesto não se repete uma vez que imersos centram-se na

experimentação que ocorre em tempo real.

Os artistas contemporâneos iniciaram pesquisas à margem da arte

tradicional, tudo o que parecia ser inventivo e espontâneo como os estu-

dos do fazer da criança, de tal modo pesquisaram. Prossegue Merèdieu:

O artista contemporâneo reencontra assim uma atitude que é a mesma da criança em face de suas produções. Esta não se apega espontaneamente às suas obras, e quando o faz parece que é sob a influência do adulto que, este sim, interessa-se pela obra e pela obra acabada. A criança de três ou quatro anos não reconhece como seu o desenho executado alguns minutos an-tes; depois que a obra é produzida, retira-se dela e concentra todas as suas energias no gesto do momento. Encontra uma intensa satisfação na manipulação das cores e pigmentos que imprime no papel, utilizando assim sem saber as técnicas do “action painting”. Só o prazer do gesto é que conta, o traço ativo que se desenvolve e vive sua própria vida. Esse dinamismo do traço – que é uma das bases da pintura contemporânea – faz da criança um verdadeiro ator que se projeta na sua obra até que ambos se tornem um só (pescuma, 2013, p.6).

Os atos artísticos - happenings e performances – são improvisações

dos artistas, mas também são próprios das crianças sem uma intencio-

nalidade. Outra diferença é que enquanto o adulto simula uma situ-

ação buscando vivê-la verdadeiramente, a criança não simula, vive o

que está acontecendo como realidade. Estes eventos são imprevisíveis

e não se repetem. Happening, em inglês, significa acontecimento. É

gerado enquanto se realiza.

O desenho, a seguir, apresenta uma leitura comparada entre in-

fância e arte contemporânea. É um mapa de alguns fazeres artísticos

que envolvem investigações poéticas das crianças e ações artísticas da

arte contemporânea:

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Clareira luminosa 61

Figura 8. Mapa conceitual “Aproximações” (Acervo da autora)

Allan Kaprow (s.d.), em Como fazer um happening, apresenta re-

gras para este ato artístico:

. esqueça todas as formas de arte padronizadas (o objetivo é fazer

algo novo),

. misture o seu happening às situações cotidianas,

. não é possível trazer referências pessoais, é preciso ater-se aos

lugares e pessoas reais,

. liberte-se de seus espaços (imaginando a escola, o que pode ser

ocupar lugares não utilizados ou dar novos sentidos a eles, como exem-

plo temos as janelas dos prédios no minhocão de São Paulo que vira-

ram teatro),

. realize ações fora do seu espaço (ex. um cabeleireiro começa a

secar o cabelo de uma moça dentro do metrô).

Se você quer trabalhar com crianças, afirma Kaprow (s. d., p.12)

“descubra o que eles realmente podem fazer e do que eles gostam ao

invés de querer forçar algo que você gostaria que fizessem, mas que

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Betania Libanio Dantas de Araujo • Érica Aparecida Garrutti de Lourenço62

eles não irão fazer. Deixe-os construírem algo...” Por exemplo, a partir

de uma pilha de sucata, de colagens e pinturas sobre caixas de papelão,

deixe um espaço com tecidos e outros materiais. O espaço pode ser

preparado intencionalmente, o professor sempre atento pode observar

a criança que tenta construir algo e você intencionalmente apresenta

outros materiais, ou seja, você não ensina, dá condições para que ele

tenha poder de decisão.

A seguir apresentamos passagens de três pesquisas de estudo sobre

a criança e a arte contemporânea, no curso de Pedagogia da Universi-

dade Federal de São Paulo - Unifesp.

Em 2011, Natália Marin, em Oficinas de percurso na educação in-

fantil, pesquisa fazeres da arte contemporânea com crianças que cons-

truíram uma instalação de artes e decidiram pelos processos de expo-

sição, convite e curadoria. Nesta pesquisa Marin estudou o que é arte

contemporânea e as produções de artistas em diálogo com as crianças

criando uma boa audição e acolhimento das decisões dos pequenos.

Em 2014, Caroline Esteves, em O Encontro da Criança com a

Arte Contemporânea, entrevista Nino Cais apresentando o trabalho do

artista para uma criança que, ativada pela arte contemporânea, expe-

rimenta outras instalações. Neste estudo pesquisou a história da Arte

Contemporânea e entrevistou o artista para compreender o seu proces-

so criativo e discutir as aproximações entre artistas e crianças.

Em 2015, Aparecida Nascimento realiza o projeto Caminhando

nas nuvens: interdisciplinaridade, linguagens e artes na educação infan-

til com a participação das crianças na creche onde é professora. Em

assembleias ou bate-papos, as crianças decidiram pela instalação, ao

passo que conheciam experiências pesquisadas e oportunizadas pela

professora. Toda a pesquisa é um amálgama entre o planejamento da

professora-pesquisadora e a construção do espaço democrático de de-

cisão e experimento.20

20 Nas pesquisas a seguir, foi resguardado o texto das autoras permanecendo

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Clareira luminosa 63

Oficinas de percurso na educação infantilpor Natália Marin

Selecionei algumas oficinas. Elas trazem o desafio de um ma-

terial não utilizado anteriormente para que as crianças descubram

novas soluções.

Em outra oportunidade, foquei no suporte diferente.

O suporte da arte hoje é onde toca o coração do artista, é contextual, está na esquina, no lixão e no armário da cozinha. A vida está transbordando em materiais capazes de transmutar. Talvez seja este o suporte da arte hoje, a transmutação. (Nelson Mendes).21

O desafio estava no suporte que balançava ao tocar e a caneta

que borrava ao toque das crianças. Logo perceberam que fazer uma

linha reta, ou círculos exatos era muito complicado. A exploração do

traço no balanço da bexiga foi o resultado dessa oficina. Não existiam

casinhas, bonecas ou faces desenhadas. O que tivemos foram riscos

feitos pela caneta estática enquanto a bexiga em movimento tocava a

caneta, e vice-versa.

Seguindo a mesma ideia, de oferecer um suporte diferente, pen-

sei no giz de lousa no chão. O mais interessante dessa proposta foi

o fato das crianças terem muitos metros quadrados à sua disposição,

estávamos no pátio, um grande espaço vazio com o chão de cimento

queimado. No início começaram a desenhar linhas paralelas, círculos

bem grandes, mas logo um grupo de crianças montou uma cabana e

ali ficaram por muito tempo desenhando no chão.

a escrita original em 1ª pessoa do singular. Preservarmos seus escritos por tratar-se das propositoras e participantes da ação, sendo respectivamente: Natália Marin, Caroline Esteves e Aparecida Nascimento.

21 http://mol-tagge.blogspot.com/2009/09/qual-suporte-das-artes.html

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Betania Libanio Dantas de Araujo • Érica Aparecida Garrutti de Lourenço64

O lúdico na educação infantil é de extrema importância. As ati-

vidades de qualquer outra área do conhecimento são planejadas com

atividades lúdicas deixando as crianças mais confortáveis e dando espaço

para sua expressão. A perda do lúdico, afirma Sans, (1994, p. 42) provoca

na criança “o envelhecimento precoce e a atrofia da espontaneidade”.

Após um investimento de autonomia artística as crianças pode-

riam ter autoria de construir sua própria exposição. Exporem suas

vontades, desejos suas experiências. Como poderíamos expor nossas

experiências para o resto da escola?

Discutimos muitas ideias. Aos poucos organizamos tudo o que di-

ziam, o que poderia dar certo ou não até que a ideia de uma exposição

propriamente dita surgiu. Não com esse nome, mas com todas as carac-

terísticas: colocar as obras de forma organizada, visível, com uma breve

explicação. Uma delas disse: “A gente pode ficar do lado de nossa obra e

quando alguém vier a gente apresenta, e fala o que desenhou”. Sim. Elas

eram donas de suas obras e tinham orgulho do que produziam.

As crianças escolheram bexigas no barbante, desenhos com ca-

netinha. O convite seria um balão sem ar e quando os convidados

o enchessem iriam ler o convite. Escolheram plástico-bolha para

delimitar por onde os visitantes deveriam caminhar e queriam um

tema comum para todos. Apresentei então um livro. Não há escrita.

Somente figuras de personagens cochichando no ouvido de outro

personagem. As imagens são ricas em detalhes e os personagens são

inesperados, como o lobo mau cochichando ao ouvido da chapeu-

zinho vermelho.

As únicas palavras que eu disse foi o nome do autor e do ilustra-

dor.22 Não falei o nome do livro para criar um mistério. A cada página

que eu virava, a curiosidade delas aumentava. Elas estavam tão an-

siosas para saber o quê os personagens conversavam que me apressa-

22 Ilan Brenman (Autor) e Renato Moriconi (autor e ilustrador) do livro Telefone sem fio, Companhia das Letrinhas, 2010.

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Clareira luminosa 65

vam para que eu virasse a página. Cheguei à última página. Como

nas folhas anteriores, não tinha nada escrito, só mais um personagem

ouvindo algo. Fechei o livro, o rosto delas era de total surpresa. Não

contive o riso. Elas estavam pasmas, boquiabertas, ora olhando para o

livro, ora olhando para mim. Então eu perguntei: O que vocês acham

que eles estavam contando um para o outro? Pensem, deve ser um grande

segredo, pois eles não escreveram nada aqui! Que segredo será esse? É

esse segredo que vocês desenharão nas bexigas.

Figura 9. Instalação (Acervo da autora)

As crianças precisavam ter confiança em si mesmas. A criativi-

dade, tão rica na infância, tinha se perdido para o medo de errar. A

melhor forma de deixá-las a vontade era deixá-las entre elas. Foi assim

então que, no segundo momento, a oficina de percurso deu tão certo.

As crianças, em grupos, conversavam, discutiam entre si e se sentiam

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Betania Libanio Dantas de Araujo • Érica Aparecida Garrutti de Lourenço66

a vontade e bem acolhidas pelo ambiente. Elas compartilharam histó-

rias e experiências. O trabalho se desenvolveu de forma surpreendente.

O encontro da criança com aarte contemporânea por Caroline Esteves

Para realizarmos, com a criança, a atividade relacionada a uma

obra de arte contemporânea, disponibilizamos baldes e vassouras,

em um quintal, pensando em espaço vazio e cheio de possibilida-

des inventivas.

Assim, a criança começou a apoiar a vassoura num banco dispos-

to no canto do quintal. Ela dispôs da seguinte maneira: uma vassoura,

um balde ao lado e assim sucessivamente até terminarem os materiais.

Deste modo, perguntei para ela o que tinha feito; estava muito tímida e

pouco falou comigo. Foi quando contou que fez um prédio. Então, sua

primeira obra era um prédio, o que fazia sentido; parecia com aquelas es-

truturas e vigas que ficam expostas enquanto colocam tijolos e cimento.

Figura 10. Prédio (Acervo da autora)

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Clareira luminosa 67

Posteriormente, foi apresentada para a criança a obra do artista

Nino Cais e ela pôde optar em modificar sua obra ou mantê-la. Então,

começou tentando copiar o que tinha visto da instalação do artista, só

que de maneira inversa. Em sua obra, o artista colocou os baldes no

teto e os cabos de madeira como condutores até o chão. Tentou colo-

car as vassouras dentro dos baldes, como se o balde fosse o condutor

da vassoura - o contrário do que o artista propôs - mas não conseguiu

e começou a organizar os baldes em pares e a colocar as vassouras

deitadas sobre eles, formando uma teia entre as vassouras com o balde

abaixo, como um suporte. Quando perguntei o que tinha feito, ela me

disse que era uma casa.

Figura 11. Casa (Acervo da autora)

Percebemos que ela mudou a obra inspirada no que tinha visto

e interessada no assunto. Ver a obra do artista propôs uma mudança

em sua experimentação, desequilibrou as suas estruturas internas, a fez

pensar em como refazer, desconstruir o que estava pronto.

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Betania Libanio Dantas de Araujo • Érica Aparecida Garrutti de Lourenço68

Depois, perguntei se ela queria ver mais obras do artista e, muito

entusiasmada, veio ver a apresentação de slides que preparamos e con-

versamos sobre outras obras do autor, de como era tudo feito de uma

maneira “não convencional” e diferente, criada por ele. Assim, em en-

trevista sobre esses modos de experimentar do artista e da criança, o

artista pondera:

Acho que não tem nada relacional, o entendimento do mate-rial é diferente. A criança age por impulso e intuição. O artista perde essa fluidez e constrói um raciocínio pela experiência e também já tem influência do que já foi vivido. A criança ainda está conhecendo o que é a arte.23

Entendemos, então, que o artista acredita que os processos de

criação acontecem de maneira diferente. Conforme Moreira (1987,

p. 37), há uma aproximação de inteireza, mas não que seja o mesmo

processo para artista e criança:

A inteireza, a certeza, a densidade do momento de criação estão presentes no adulto que cria e na criança que brinca. É visível a concentração, o corpo inteiro presente no ato de brincar de uma criança. É a sensação de estar inteiro no que está realizando o que une o artista à criança. A criança brinca porque não poderia viver de outra forma. Por isto desenha, por isto cria: porque brinca.

A autora também aponta que além de artista e criança assemelha-

rem os momentos de criação, completamente envolvidos no “aqui e

agora”, há uma diferença fundamental:

[...] se o artista e a criança estão próximos quanto à qualidade do momento de criação, e algumas vezes também quanto ao produto se pensarmos em Klee, Miró, ou Picasso, estão tam-bém distantes pois ‘enquanto fenômeno expressivo, a criação tem implicações diferentes para a criança e para o adulto. Nas

23 O artista Nino Cais concedeu a entrevista à pesquisadora Caroline Este-ves no ano de 2015.

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Clareira luminosa 69

crianças, o criar – que está em todo seu viver e agir – é uma to-mada de contato com o mundo, em que a criança muda prin-cipalmente a si mesma. Ainda que afete o ambiente, ela não o faz intencionalmente, pois tudo o que a criança faz, o faz em função da necessidade do seu próprio crescimento, da busca de se realizar. O adulto criativo altera o mundo que o cerca, o mundo físico e psíquico, em suas atividades produtivas ele sempre acrescenta algo em termos de informação e sobretudo em termos de formação[..]’. (moreira, 1987, p. 38)

Caminhando nas nuvens: interdisciplinaridade, linguagens e artes na educação infantil

por Aparecida Nascimento

A proposta para a investigação foi desenvolver um projeto de pes-

quisa propiciando a análise e reflexão da prática educativa sobre a arte

na educação infantil. A partir dessa questão inicial, o foco foi a constru-

ção de um projeto pedagógico que proporcionasse às crianças a vivên-

cia de experiências artísticas plurais e que abrangessem as diferentes

linguagens, de forma integrada e significativa.

Esse percurso partiu da observação sensível das nuvens no céu, de

modo a imaginar formas e criar desenhos utilizando o ar como suporte.

É um gosto que tenho desde criança podendo ser uma experiência am-

pliada para as crianças. Essa primeira proposta de sensibilização seria

ponto de partida para a investigação dos fenômenos relacionados ao

céu, e a experimentação de vivências relativas à arte visual, a música, a

experimentação corporal, tendo como eixo condutor vivências lúdicas.

O percurso inicialmente proposto24 foi sendo construído a partir

do interesse das crianças e de suas motivações, bem como da autono-

mia que tiverem para escolher quais ações gostariam de participar e

24 Na infância ficava maravilhada com os desenhos das nuvens no céu, du-rante a orientação para o TCC essa memória inspirou a pesquisa.

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Betania Libanio Dantas de Araujo • Érica Aparecida Garrutti de Lourenço70

quais propostas se sentiam motivadas para desenvolver. A organização

dos espaços enfatizou o uso do ambiente externo como propulsor de

vivências motivadoras e plurais, que propiciam a investigação, o mo-

vimento livre e as descobertas. A utilização dos materiais necessários

para desenvolver as propostas também gerou a necessidade de adapta-

ções e flexibilização durante o percurso, necessitando da modificação

de algumas ideias concebidas inicialmente. O percurso de investigação

poética e de conhecimento sobre as nuvens culminaria em uma insta-

lação, onde as crianças pudessem expor suas produções e pôr em prá-

tica os conhecimentos adquiridos durante o percurso vivenciado pelo

projeto, compartilhando com os demais grupos.

Figura 12. Deitadas no tapete, ao ar livre, crianças observam desenhos nas nuvens (Acervo da autora)

Pesquisamos inúmeros materiais, desde a arte contemporânea até

experiências da ciência como criar nuvens na garrafa. Pesquisamos os

tipos de nuvens no céu e pensamos em configurações registradas pelas

crianças em fotografias. Representações do céu pelos artistas e reflexos

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Clareira luminosa 71

do céu nos espelhos d´água em águas no balde. Enfim, a nuvem era

o mote para uma grande viagem que pode durar anos ou até a vida

inteira, não é mesmo? Pensamos nas crianças que não olham mais

para o céu. Imagine as crianças observando as configurações do céu!

Lembramos-nos desta prática chegando à TV com o Programa de TV

Vila Sésamo.

Conversamos sobre a produção de um vídeo, com fotos da vivên-

cia do projeto, trechos do vídeo sobre a experimentação “varal de nu-

vens”, utilizando como trilha sonora alguns sons que as crianças produ-

ziram, e que este vídeo seria apresentado aos pais no dia que visitassem

a instalação. As crianças gostaram da ideia e ficaram entusiasmadas

em fazer o convite aos pais.

Refletimos sobre a finalização do projeto através de uma instala-

ção sobre as nuvens, como uma síntese do percurso criativo em arte e

que agrega todas as linguagens, onde poderíamos expor os trabalhos

produzidos pelas crianças e apresentá-los às outras turmas. Conversa-

mos sobre a organização da instalação, a qual as crianças nomearam

como “sala das nuvens”, que materiais poderíamos utilizar para dar a

impressão de estar entrando em uma nuvem, quais sensações seriam

criadas e quais sons utilizar para caracterização do ambiente. As crian-

ças foram colocando suas ideias e sugestões e tudo foi sendo registrado

na lousa para ser retomado posteriormente.

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Betania Libanio Dantas de Araujo • Érica Aparecida Garrutti de Lourenço72

Figura 13. Instalação das nuvens (Acervo da autora)

A montagem da instalação seguiu a proposta de construir um am-

biente, que além da exposição, caracterizasse um espaço lúdico que

favorecesse a brincadeira e o faz de conta, através da sensação de ca-

minhar sobre uma nuvem. Então, organizamos todo o material, suge-

rido pelas crianças, para montar a instalação e fomos até a sala 8, um

espaço multiuso na escola sempre disponível para atividades diversas

como contação de história, vídeos, brincadeiras com dança e expressão

corporal, entre outros. Começamos a organizar os materiais e escolher

a disposição que ocupariam na sala, as crianças foram colocando suas

ideias e começamos a montagem da instalação. Em algumas partes

do processo, foi necessária a ajuda de outros adultos, pois consistia

em subir escadas e pendurar tecidos e móbiles no teto, mexer com

cola quente etc. Todos decidiram que as telas de nuvens pintadas pelas

crianças também fariam parte da exposição e, assim como também as

fotografias, o caderno viajante e outras produções realizadas. Elas fica-

ram responsáveis em organizar as fotos para a exposição e confeccionar

os móbiles com contas de cristais, sugerido para representar as gotas

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Clareira luminosa 73

de chuva. A organização da instalação e da exposição ficou pronta em

dois dias e, após os ajustes necessários, as crianças foram as primeiras

a visitar a finalização do projeto. Ficaram encantadas em caminhar

sobre o chão coberto com tecido branco e algodão, sentir o vento dos

ventiladores agitando os tecidos e ouvir o som da chuva que as crianças

sugeriram gravar no computador. Ficaram encantadas com o resultado

de suas produções e decidiram convidar os pais para visitar a sala das

nuvens no dia da festa de encerramento. A sala ficaria aberta para as

outras crianças da escola conhecer e visitar a exposição.

A finalização do projeto ocorreu com a festa de encerramento e

visita à instalação. Após as festividades organizadas para o dia, convi-

damos os pais para conhecer o trabalho feito pelas crianças, o qual já

tinham ciência que iria acontecer e qual o objetivo da proposta. Solici-

tamos que tirassem os sapatos para sentir a textura do ambiente e todos

concordaram prontamente. Juntamente com as crianças, assistiram

ao vídeo do projeto, apreciaram as produções e exploraram o espaço

como uma forma de construir brincadeiras entre as crianças e adultos.

Conclusão

A criança não é nem antiga nem moderna, não está nem antes nem depois, mas agora, atual, presente. Seu tempo não é line-ar, nem evolutivo, nem genético, nem dialético, nem sequer narrativo. A criança é um presente inatual, intempestivo, uma figura do acontecimento. E só a atenção ao acontecimento, como o incompreensível e o imprevisível, pode levar a pensar uma temporalidade descontínua. (larrosa, 2001, p. 284)

Para o jogo da criação é preciso consentimento, aceitar mergulhar

na experiência ou ainda fazer do encontro experiência. Esquecer o que

sabe; acolher o inesperado e o curioso na construção do vir-a-ser.

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Betania Libanio Dantas de Araujo • Érica Aparecida Garrutti de Lourenço74

O que mais impacta os estudantes universitários durante a imer-

são25 na educação infantil é o estado das crianças, inspirado no devir,

fluxo permanente, movimento ininterrupto, que dissolve, cria e trans-

forma todas as realidades existentes; o vir a ser das crianças. Qualquer

produção artística pode ser autoral e não pautada por cópias, mas

fatalmente os adultos querem utilizar modelos a serem seguidos. Na

arte contemporânea não existe um modelo, mas argumento, pesquisa,

proposição proporcionando à criança a decisão e a escolha de um ca-

minho a construir e percorrer.

Muitos de nós, ao nos tornarmos adultos, perdemos a curiosidade

e a sapiência para criar, passando a repetir atos mecânicos, ações inex-

pressivas. Crianças e artistas contemporâneos, ao contrário, são subver-

sivos e modificam os estados das coisas, questionando-as. Para Matisse

“É preciso ver a vida inteira como no tempo em que se era criança, pois

a perda desta condição nos priva da possibilidade de uma maneira de

expressão original, isto é, pessoal”.

O encontro da arte contemporânea com crianças é abundante-

mente simples porque elas não se preocupam em pensar se a instala-

ção é arte ou não é arte; elas participam e experimentam, estabelecen-

do uma relação de criatividade.

Arte não se ensina, reflete Ostrower (1982, p.9),

O questionamento, a indagação, a compreensão da pesquisa, eis o caminho da criação. Sem dúvida, é difícil ser professor de arte, pois nós, artistas, bem sabemos que arte nem se ensina, a única coisa que é possível fazer, dificílima, é ajudar os outros a for-mularem perguntas, suas próprias perguntas. Ao formularem as perguntas, estarão encaminhando-se para as possíveis respostas.

Os educadores podem estudar e planejar ações instigadoras com

as crianças compreendendo o conceito desenvolvido pelos artistas

25 Programa de Residência Pedagógica no Departamento de Educação, Unifesp Guarulhos.

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Clareira luminosa 75

contemporâneos. É fundamental, ao pensar as ações, considerar sem-

pre a participação das crianças, suas representações, curiosidades e seu

direito de escolha. Ao questionar os modelos pré-estabelecidos, a Arte

Contemporânea aponta para uma nova relação com a cidade, com o

espaço público, com o pensar/fazer política e arte. Nos espaços escolares

seria importante, com a inserção da arte, romper, mesmo que parcial e

gradativamente, com os discursos pedagógicos pré-estabelecidos dando

condições para a emergência de uma cultura da infância que valorize a

criação e a expressão, pilares na construção de seres autônomos e livres.

Para saber mais

Para assistir

O que é arte contemporânea?

Vídeo produzido pela equipe do Itaú Cultural para a exposição

Trilhas do Desejo.

https://www.youtube.com/watch?v=xClU8ZSObqs

Para ler

ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna: do iluminismo aos movi-

mentos contemporâneos. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

Para conhecer

Enciclopédia Itaú Cultural

http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo5370/ready-made

Para estudar e preparar o encontro com as crian-ças

Material Educativo da Bienal de Arte Contemporânea de São Paulo

http://www.bienal.org.br/publicacoes.php

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Betania Libanio Dantas de Araujo • Érica Aparecida Garrutti de Lourenço76

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Fabiana K. A. Prado1

Esse texto é baseado em uma série de vídeo aulas intituladas “In-

vestigações poéticas”, elaboradas para o Curso de Aperfeiçoamento

Educação Infantil, Infâncias e Arte (eiia), coordenado pela Universida-

1 Pós-graduada em Linguagens as Arte pelo Centro de Estudos Universitá-rios Maria Antonia (CEUMA, USP), Graduada em Comunicação Social pela Fundação Armando Álvares Penteado e em Dança pela Escola de Dança Klauss Vianna. É Artista educadora que integra a equipe de Coor-denação Regional de Formação do PIÁ (Programa de Iniciação Artística) da Secretaria Municipal de Cultura - SP.

III. Processos Artísticos e Infância (s): uma abordagem poética

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Betania Libanio Dantas de Araujo • Érica Aparecida Garrutti de Lourenço80

de Federal de São Paulo (Unifesp-Comfor), em parceria com a Secre-

taria de Educação Básica (seb - mec).2

Nas aulas dirijo-me a professores e gestores da educação públi-

ca dos municípios de Guarulhos e São Paulo a partir da minha experi-

ência na educação não formal no PIÁ (Programa de Iniciação Artística,

da Secretaria Municipal de Cultura). O PIÁ é um programa de acesso

gratuito para crianças e adolescentes de 5 a 14 anos, que acontece em

equipamentos públicos da Cultura e da Educação, de modo especial

na periferia na cidade de São Paulo. A atual equipe de trabalho conta

com 126 artistas credenciados por edital público nas funções de edu-

cadores, coordenadores de equipe e coordenadores Regionais de For-

mação. Os encontros com crianças e adolescentes têm como objetivo

a vivência de processos artísticos conduzida por uma dupla de artistas

educadores das linguagens do teatro, da dança, das artes visuais, da

música e da literatura.

Pensando sobre as relações que podemos estabelecer entre Proces-

sos Artísticos e Educação Infantil, escolho fazer algumas provocações

sobre o que seria a investigação poética como procedimento artístico

pedagógico e como abordagem pertinente aos modos de ser e estar da

criança. O tema das aulas desdobra-se em uma breve contextualização

de conceitos artísticos contemporâneos; possibilidades de investigação

poética com as crianças e compartilhamento dos processos artísticos,

buscando refletir em que aspectos a Arte e a Educação contemporâne-

as podem efetivamente dialogar com a (s) Infância (s).

Mais do que construir uma fala unilateral procuro despertar inquie-

tudes sobre novas intersecções entre Arte e Educação, por meio de uma

abordagem sensível, de escuta e valorização das culturas de infância.

2 Para ter acesso ao material didático produzido para o curso consulte: http://comfor.unifesp.br/?page_id=671

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Clareira luminosa 81

Contexto

Partindo da experiência estética em diálogo com a educação, são

notórias as transformações nos modos de ver, fazer e aprender Arte, com

destaque para um aspecto emergente na transição do Modernismo para

o Pós-Modernismo, que é o estreitamento da produção artística com o

seu contexto sócio – cultural, multiplicando assim as suas narrativas.

Na atualidade, surgem propostas que colocam em cheque alguns pa-

radigmas em Arte/Educação no encalço das transformações contemporâ-

neas da Arte. Assim, a formação que antes resultava da conduta técnica de

uma linguagem específica cede lugar a processos artísticos sem uma fina-

lidade pré-determinada ao mesmo tempo em que a transversalidade passa

ser a peça-chave das abordagens, como sintetiza Canton (2009, p. 49).

(...) a arte contemporânea que surge na continuidade da era moderna se materializa a partir de uma negociação constante entre arte e vida, vida e arte. Nesse campo de forças, artistas contemporâneos buscam um sentido, mas o que finca seus va-lores e potencializa a arte contemporânea são as inter-relações entre as diferentes áreas do conhecimento humano.

Os brasileiros Hélio Oiticica e Lygia Clark são referências notó-

rias de artistas que caminharam nesse sentido, influenciando ainda

hoje várias gerações. Neles, a estética se alia ao valor da experiência

cotidiana, à sensorialidade e à potência da inventividade coletiva.

O Processo Artístico é o gesto dinâmico da Arte atual que vai en-

gendrar uma leitura compartilhada do mundo e desencadear situações

propícias para “fazer acontecer coisas” em oposição a “fazer coisas”.

Estamos diante de proposições artísticas de caráter mais aberto, que

podem vir a se transformar ao longo do caminho, em contato com

o outro, em dinâmicas de ressignificação continuada, onde nota-se a

mistura das linguagens para além de suas fronteiras. As Artes Visuais, a

Dança, o Música e o Teatro mesclam-se a ponto de não identificarmos

mais com exatidão onde começam ou terminam.

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Betania Libanio Dantas de Araujo • Érica Aparecida Garrutti de Lourenço82

No entanto, a tradição das Belas Artes como matriz de constru-

ção sócio-política da Arte/Educação brasileira ainda hoje reverbera no

pensamento artístico pedagógico vigente, muitas vezes situando a ideia

de Arte em um lugar sagrado, perpetuando e reproduzindo códigos de

uma formação tradicionalista.

As linguagens artísticas continuam a ser estruturadas pedagogi-

camente dentro de parâmetros técnicos precisamente delineados, res-

pondendo a um modus operandi de materialidades tradicionalmente

conhecidas e desconsiderando em muitas situações, o contexto sócio

cultural e os atores sociais envolvidos.

Repetidamente são apresentados às crianças modelos estéticos do

senso comum prontos a serem imitados. Tais modelos cristalizam pa-

drões normativos de classe, gênero e etnia que, além da dicotomia e

competitividade geradas, subestimam a inventividade das crianças em

seu modo próprio de ser e apreender o mundo.

O que a Arte/Educação atual vem tateando hoje são as estratégias

para colocar em prática na escola, e para além dela, o desmanche dos

conceitos consagrados pelo Modernismo na interface da Educação e

Cultura que fomente um pensamento antagônico à visão utilitária e

tecnicista da Arte.

No Brasil, os Parâmetros Curriculares Nacionais acabam por criar

expectativas diversas quanto ao ensino da arte em face a uma formação

continuada ainda à espera de especializações em Arte/Educação que

amadureçam inquietações relativas ao tema. Já no documento dire-

cionado à educação infantil,3 o Referencial Nacional Curricular para

a Educação Infantil (BRASIL, 1998), apenas para citar um exemplo,

destaca-se a importância da versatilidade dos espaços direcionados às

atividades cotidianas. Mas como estas noções de espaço vem sendo de-

batidas nas formações pedagógicas? E quanto às ações efetivas? Estão

3 Para ler o documento acesse o link: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/rcnei_vol1.pdf

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sendo construídas junto às crianças a partir de suas experiências sensí-

veis e suas singularidades culturais? Ou apenas direcionadas por ideias

estigmatizadas a respeito da Infância?

Neste sentido, as abordagens estéticas relacionadas ao sensível na

educação infantil ainda são bem pouco exploradas e sistematizadas nas

práticas do dia-a-dia, talvez por conta da primazia da cognição estrita-

mente racional em detrimento de uma leitura mais fenomenológica

destas práticas.

Seria bom que nos perguntássemos que políticas culturais (em

consonância com a educação) estamos defendendo nas escolas e na

educação não formal para trabalhar a Arte Contemporânea de modo

coerente às temporalidades e espacialidades implicadas.

Acontecimento

O Happenning, como movimento artístico que coloca em jogo

estados intensos de experiência sensível, pode nos dar algumas pistas

de como trabalhar a incorporação de outros tempos e espaços na edu-

cação. Allan Kaprow, artista norte-americano pioneiro na linguagem

apontava que:

Em contraste com a arte do passado, os happennings não tem começo, meio ou fim estruturado. A sua forma é aberta e flui-da. Neles, nada se persegue de evidente e, por conseguinte, nada é ganho, a não ser a certeza de um número de ocorrên-cias, de acontecimentos, aos quais se presta mais atenção do que habitualmente. Esses acontecimentos só existem uma vez (ou apenas algumas vezes), desaparecendo para sempre e sen-do substituídos por outros. (lebel, 1969, p.47)

Interessa-nos aqui observar como os processos vivenciais do artista

educador e da criança convergem ao Acontecimento. Não se trata de

fazer apologia ao espontaneismo e nem nomear apressadamente como

Arte todo e qualquer gesto infantil, mas ressaltar o “estado de presença”

como cerne sensível do gesto poético.

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Considerando o Acontecimento como campo fértil para a experi-

mentação, o educador e a criança tem a seu favor a presença, o tempo

dilatado, a investigação das materialidades e a exploração do espaço e

o corpo como matéria, veículo e suporte de poéticas próprias.

No Acontecimento a representação e a figuração opõem-se a um

estado de “presentificação”. Estado primordial onde as percepções das

crianças e do educador encontram chances notáveis de se desdobra-

rem em experiências sensíveis que se retroalimentam, cada uma a seu

modo e de maneira complementar.

A pesquisa corpo-espaço e as relações humanas implicadas nos

contextos de convivência entre adultos e crianças estão repletas de con-

teúdos e de surpresas que nenhum planejamento é capaz de prever.

Cito aqui um caso ocorrido no PIÁ disparado pela surpresa das crian-

ças ao encontrarem um passarinho morto no espaço externo de uma

biblioteca onde a atividade se desenvolvia. A investigação foi acolhida

pelas artistas educadoras e o desencadeamento do processo contou

com a brilhante hipótese poética de um garoto de 5 anos: “Ele é um

pássaro! Tem que ser enterrado com nuvens, senão como vai voar”? A in-

vestigação da turma, orientada pelas artistas educadoras desdobrou-se

em um ritual poético de luto contando com materialidades buscadas

pelas crianças no espaço para realizar a proposta estética de enterrar o

pássaro envolto em “nuvens”.

Eis um belo exemplo do risco e do encantamento aos quais deve-

mos nos entregar nas investigações poéticas.

Investigação poética

A Poética nada mais é do que o modo como articulamos nossos

afetos e singularidades quando imersos em processos de construção

de linguagem. Algo como um discurso vital de cada sujeito, fruto de

sua experiência única e indissociável do mundo. A Poética é o que nos

permite ver o mundo desde as nossas janelas, e para além delas, como

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Clareira luminosa 85

sujeitos construtores de cultura, providos de uma narrativa biográfica

única que nos impulsiona a relações com o outro e com o mundo.

A Poética também pode ser a bagagem que adquirimos a partir das

heranças culturais, das construções identitárias, do que aprendemos na

fricção da norma culta em relação a saberes diversos e de inúmeros ar-

ranjos que fazemos continuamente para apurar a educação dos sentidos.

Nomeio aqui de investigação poética os procedimentos, as pes-

quisas e as escolhas de materialidades no contexto de trabalho com

crianças pequenas que possam expressar com fidelidade suas poéticas

próprias e seus arranjos cotidianos carregados de valor estético. Fren-

te a tal definição é fundamental que não percamos de vista três das

características essenciais que constituem o modo de ser da criança: a

não representacionalidade, o onirismo e o pensamento polimórfico

(machado, 2010).4 Tal noção de infância tem origem no pensamento

do filósofo Maurice Merleau-Ponty que propõe olhar a criança em seu

modo próprio ser, considerando a sua intimidade com a experiência

vivida (oposta à representação), seus trânsitos entre realidade e imagi-

nação e a ausência de uma lógica formal, quase sempre adultocêntrica,

que dá espaço ao pensamento pré-lógico. Em termos dos processos e

vivencias ligado ao Acontecimento, temos aqui uma estreita relação

entre os modos de ser da criança e a natureza das proposições artísticas

que aproximam Arte e Vida.

É a partir deste modo intimamente implicado com as materia-

lidades do mundo que a criança expressa suas poéticas e invariavel-

mente produz cultura entre seus pares, por meio das brincadeiras

elaboradas ou recriadas, das suas narrativas biográficas e das suas in-

tervenções cotidianas.

4 A autora Marina Marcondes Machado, em seu livro Merleau Ponty & a Educação, vai elencar essas características da maneira de ser das crianças como um norte essencial para as condutas dos adultos.

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Betania Libanio Dantas de Araujo • Érica Aparecida Garrutti de Lourenço86

Esse repertório poético, por assim dizer, pode ser de grande valia

quando nos colocamos como adultos atentos aos modos de ser da crian-

ça investigadora, apresentando-lhes a linguagem e a matéria do mundo.

Na visão fenomenológica de Machado (2010, p. 73):

As relações adulto-criança poderão se tornar mais flexíveis e generosas na medida em que o adulto abandonar a estética realista, brincar mais, apropriar-se da sua capacidade de criar metáforas, paradoxos, nonsense. Essa atitude enriquece a expe-riência do que é o mundo e a cultura compartilhada.

Pensar o papel do artista/educador contemporâneo pressupõe um

adulto que vai compartilhar o mundo com a criança de modo sensível,

buscando criar as melhores condições para a sua apreensão estética do

mundo a partir das situações dadas.

De modo prático, estamos falando das aproximações entre o modo

de ser da criança que formula hipóteses de investigações e a atitude do

adulto que lapida essas investigações enquanto potência de ações poéticas.

Cartografias

O método cartográfico consiste em uma abordagem metodoló-

gica de pesquisa nas ciências humanas onde o pesquisador/cartógrafo

encontra-se intimamente implicado em suas premissas e nos territórios

pesquisados, sempre atento às suas mudanças e dinâmicas. Pelo seu

amplo alcance é um método que pode ser usado em campos diversos

que envolvam processualidades criativas e sujeitos dispostos a transfor-

mações de paisagens e conceitos pela ação direta do corpo no espaço.

A pesquisa cartográfica é menos a descrição de estados de coisas do que o acompanhamento de processos. A instalação da pesquisa cartográfica sempre pressupõe a habitação de um território, o que exige um processo de aprendizado do próprio cartógrafo. Tal aprendizado não será aqui pensado como uma série de etapas de um desenvolvimento, mas como um traba-lho de cultivo e refinamento. Aprendizado no duplo sentido de

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Clareira luminosa 87

processo e de transformação qualitativa nesse processo. Movi-mento em transformação. (alvarez; passos, 2015 p.135)

Uma dinâmica que talvez ajude a colocar em prática o método

cartográfico na relação criança e educador consiste em esboçar um

mapa das inquietações artístico-pedagógicas que nos movem a dese-

nhar algumas ações efetivas como desdobramento das nossas investi-

gações poéticas.

O mapeamento começa com uma lista de verbos que digam res-

peito aos desejos e motivações que nos levam ao campo da educação.

Quando pensamos na prática de educar quais são os verbos que nos

colocam em ação? Instruir? Cuidar? Provocar? Relacionar? Compar-

tilhar? E quais são verbos que acionam as nossas trajetórias na Arte/

Educação? Indagar? Criar? Desconstruir?

Uma segunda linha que vai atravessar o mapa será desenhada pe-

las nossas ideias sobre Infância(s), tendo sempre em mente a sua plura-

lidade cultural. Que imaginações materiais nos remetem ao modo de

ser das crianças? Brincadeira? Vento? Bagunça? Bolas? Gritos? Folha

em branco? Caos? Onirismo? Presença? Desconstrução?

E por fim uma terceira linha de intersecção que vai nos revelar

os espaços e lugares possíveis de serem explorados pelas crianças. As

sensações que despertam, os elementos de sua arquitetura concreta

e os questionamentos de seus usos comuns. Que espacialidades nos

falam de um contexto relacional possível? Vãos? Cantos? Sala de Aula?

Tanque de areia? Parque? Escadas? Janelas? Muros? Ruas?

Quadro 1. Exemplo de mapeamento de termos

AÇÃO ASPECTOS CONTEXTOS

VERBOS: O QUE: ONDE:

COMPARTILHAR CURIOSIDADES JANELAS

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Betania Libanio Dantas de Araujo • Érica Aparecida Garrutti de Lourenço88

Figura 2. Instalação com objetos variados em espaço externo da escola

A partir dessas linhas cartográficas em cruzamento será possível

estabelecer uma série de combinações e enunciados que convidem

a uma ação compartilhada. O que esses termos podem ativar como

proposição poética?

A cartografia aqui sugerida funcionaria como uma metodologia

para se pensar de maneira prática como elaborar e propor ações con-

vidativas nos contextos onde convivemos com as crianças e principal-

mente, que dispomos, ou seja, com as inúmeras relações que o corpo

estabelece com os objetos, espaços e materialidades.

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Clareira luminosa 89

Figura 3. Improvisação performática em hall de passagem da escola

Figura 4. Improvisação performática em espaço externo da escola.

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Betania Libanio Dantas de Araujo • Érica Aparecida Garrutti de Lourenço90

Uma pista interessante é fugir dos materiais e usos óbvios. Pode-se

trabalhar, por exemplo, com o vento, com sonoridades, com cheiros, etc.

As ações desenhadas não se constituem, porém, em demanda de

tarefas, mas em um plano de viagem cujas rotas podem ser alteradas de

acordo com as contribuições que as próprias crianças venham a fazer

ao que foi proposto. A riqueza está justamente nas frestas.

Para exemplificar a dinâmica usando alguns termos acima cita-

dos, poderíamos propor uma ação com o seguinte enunciado: “com-

partilhar imagens de sonho em um local de passagem da escola”.

Poderíamos trabalhar com as crianças uma improvisação perfor-

mática onde um objeto cotidiano narra uma história para os passantes

de um corredor, por exemplo.

A partir de outro enunciado como “desconstruir gritos na sala de

aula”, poderíamos pensar plasticamente com as crianças como cons-

truir um dispositivo “tradutor de gritos”, onde não só diferentes gritos

seriam permitidos como também nomeados pelas crianças.

E segue por aí uma série de propostas que vão se desdobrando a

partir das nossas motivações artístico-pedagógicas sem perder de vista

a linguagem da brincadeira, do jogo e da liberdade expressiva que o

corpo pode desfrutar no espaço, enquanto o transforma.

Figura 5. Crianças explorando a escadaria da escola com capas de papel

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Clareira luminosa 91

O que quero sintetizar com isso é que na verdade podemos tirar

muito arranjos de poucos elementos, se colocarmos em foco a imagi-

nação poética da criança e a sua imensa capacidade de experimentar

materiais e inventar novos usos para os mesmos.

Pedaços de tecidos que sucessivamente viram cabanas, rios, ca-

pas, múmias e roupas para um desfile; elementos naturais de um par-

que como areia, gravetos e folhas que viram mapas envolvendo longas

narrativas de aventura, livros de uma biblioteca abertos ao acaso para

criarmos uma história enigmática de exploração do espaço da escola,

tijolos que sobraram de uma obra que podem gerar uma instalação

coletiva. Enfim, toda uma gama de ações que partem do acontecimen-

to, desprendidas de previsibilidade, mas providas de plena experiência.

Compartilhar o efêmero

A abordagem poética além de nos dar a ver muito mais do que

imaginamos sobre a expressividade da criança, sua beleza e impor-

tância, também pode ser uma maneira de desconstruir as fabricações

culturais da Infância.

Em termos de Processo Artístico é preciso termos em mente que

uma leitura pronta ou demasiadamente óbvia das ações só reitera mais

uma vez o olhar do adulto e apaga o brilho da experiência vivida pela

criança, no momento em que queremos dar uma forma compreensí-

vel, de fácil acesso e que na maioria das vezes se ampara em códigos

conhecidos de uma suposta cultura infantil.

Em uma sociedade que sistematicamente fabrica produtos e servi-

ços para a Infância fazendo da criança um consumidor de objetos des-

providos de surpresa, valorizar o acontecimento como modo poético

significa valorizar o processo vivido, o cruzamento de linguagens diver-

sas, os modos de ser e estar no mundo e o raciocínio crítico sobre esse.

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Betania Libanio Dantas de Araujo • Érica Aparecida Garrutti de Lourenço92

Quadro 2. Resumo comparativo sobre o Processo Artístico no contexto da Infância.

FAZER COISAS

produto

FAZER ACONTECER

COISAS

processo

reprodução invenção

consumo

consumidor

múltiplas leituras

propositor/participante

Na mesma esteira do produto cultural mimetizado na escola, te-

mos as datas comemorativas e as apresentações de encerramento do

ano letivo em formatos esperados como apresentação teatral, coreo-

grafias de músicas de sucesso, show de talentos, etc. Diante das inves-

tigações poéticas desenvolvidas, qual seria o sentido das festas coletivas

na escola?

Esses eventos estão sendo discutidos e construídos de fato com

as crianças ou são apenas marcadores de produtividade que sobre-

carregam as professoras e professores ano após ano na escola? Como

compartilhar experiências processuais? Estamos fabricando coisas ou

fazendo acontecer coisas?

Figura 6. Crianças inventando narrativas de viagem a partir de mapa criado por elas mesmas

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Clareira luminosa 93

A criança precisa experimentar a liberdade da participação ativa

nos processos, investigando elementos, propondo pautas, instaurando

atmosferas e por fim compartilhando suas criações. Talvez ela possa, por

exemplo, não apenas ver o seu desenho exposto na parede, mas também

apresentá-lo com suas próprias palavras, de modo bastante original.

Em termos de processo seria mais coerente abolirmos o formato

expositivo tradicional para uma ideia de “exposição-ação”, onde os en-

volvidos (crianças, artistas educadores, professores, familiares, comuni-

dade) possam provar de estado de imersão e não apenas se comportem

como expectadores passivos de um evento.

Enquanto continuidade do processo artístico a exposição-ação se-

ria um convite para que as pessoas, ao visitarem os trabalhos propostos,

pudessem experimentar um pouco do processo vivido e que as crianças

fossem por si mesmas, as “mestras de cerimônia” do compartilhamento

de suas investigações e protagonistas de acontecimentos que extrapo-

lem os espaços, que caminhem, que transitem.

As poéticas infantis pedem escuta, experiência, livre expressão e

compartilhamento. A pura apreciação estática não dará conta de abar-

car os processos artísticos vividos sendo imprescindível desconstruir o

processo de “apresentação do resultado” para se chegar ao estado de

“presença no processo”.

Que estas e outras provocações possam animar os compartilha-

mentos entre as crianças e adultos sensíveis às investigações poéticas

e nos aproximar da Infância pela delicada simbiose entre Arte e Vida.

Para saber mais

Livros

HOLM, Anna Marie. Baby Art. Os primeiros passos com a Arte. São Paulo: Museu de Arte Moderna, 2005.

______. Eco-Arte com Crianças. São Paulo: Av form, 2015.

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Betania Libanio Dantas de Araujo • Érica Aparecida Garrutti de Lourenço94

______. Fazer e pensar Arte. São Paulo: Museu de Arte Moderna, 2005.

Artigos

COSTA, Luciano Bedin. Cartografia: uma outra forma de pesquisar. Revista Digital do Laboratório de Artes Visuais. Centro de Edu-cação. UFSM, p. 66-77, 2014. Disponível em: https://periodicos.ufsm.br/revislav/article/view/15111 Acesso em: 02 março 2017.

MACHADO, Marina Marcondes. A Criança é Performer. Revista Educação & Realidade. UFRGS, p. 115-118, 2010. Disponível em: http://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/11444 Acesso em: 02 março 2017.

______. Fazer surgir Antiestruturas: abordagem espiral para pensar um currículo em Arte. Revista e-curriculum, Pontifícia Universi-dade Católica, v. 8, p. 1-21, 2012. Disponível em: http://revistas.pucsp.br/index.php/curriculum/article/view/9048 Acesso em: 02 março 2017.

Revista digital

Revista Piapuru: https://issuu.com/divform/docs/pia_digital

Referências

ALVAREZ, Johnny; PASSOS, Eduardo. Cartografar é habitar um território existencial. In: PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgí-nia; ESCOSSIA, Liliana (orgs). Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2015.

BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Edu-cação Fundamental. Referencial curricular nacional para a edu-cação infantil. Brasília: MEC/SEF, 1998.

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Clareira luminosa 95

CANTON, Kátia. Temas da Arte contemporânea. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

LEBEL, Jean-Jacques. Happening. Rio de Janeiro: Editora Expres-são e Cultura, 1969.

MACHADO, Marina Marcondes. Merleau-Ponty & a Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.

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Selma Botton1

À primeira vista, uma relação entre os temas anunciados no título

parece improvável e até mesmo disparatada. Um professor de Educa-

ção Infantil pode não ser um ilustrador profissional! Como poderá usar

técnicas e conceitos tão específicos e sofisticados como os da Ilustração

científica numa prática com crianças? E ainda mais, com algumas crian-

ças que ainda nem se encontram numa fase de representação figurativa?

1 Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Artes Visuais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), gradua-da em Artes Plásticas pela USP. E-mail: [email protected]

IV. A ilustração científica e asArtes Visuais na Educação Infantil

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Betania Libanio Dantas de Araujo • Érica Aparecida Garrutti de Lourenço98

Ou mesmo com os bebês que começam a se aventurar nas garatujas?

Não seria como pedir que uma criança ainda não alfabetizada lesse e

interpretasse um texto de um autor como, por exemplo, Nietzsche?

Mas para conseguir ligar os dois mundos aparentemente tão dis-

tantes, basta mudar o foco do produto da ilustração cientifica, ou seja,

da obra finalizada após um processo técnico elaborado, para os ou-

tros aspectos dessa linguagem que, encantadoramente, une a arte e

a ciência. Se pensarmos em algumas das motivações que movem os

ilustradores – sua admiração pela natureza, a observação sistemática e

minuciosa dos seres, o desvelamento de detalhes, a batalha pela preser-

vação das espécies, a curiosidade e o encantamento pelos mistérios da

vida – podemos facilmente transpor estas situações ao cotidiano escolar

da Educação Infantil.

Não é nenhuma novidade que o convívio na natureza nos torna

pessoas melhores.

E não é esse um dos objetivos da educação: melhorar a humani-

dade? Nossa natureza humana, às vezes tão sacrificada, se renova e se

alegra com experiências singelas... um banho de mangueira, aquela

borboleta que pousou no vaso do jardim, a goiabeira que enfim pro-

duziu a primeira fruta! Somos tão carentes de natureza que até a visão

inesperada de um beija-flor nos surpreende e motiva!

Talvez alguns de vocês quando eram crianças, ganharam um pin-

tinho em uma festa ou seus pais o compraram em uma feira. Isto era

um hábito muito comum nas décadas de 1970 e 1980. Eu mesma, ga-

nhei vários... Daí o bichinho – às vezes tingido de azul ou rosa – era le-

vado para casa e na maioria das vezes não sobrevivia, apesar de todos os

nossos desvelos e carinhos. Mas acontecia de um mais resistente sobre-

viver! Não havia alegria maior! O pintinho era tratado como o animal

de estimação mais valioso! Não saía do calor das nossas mãos porque

quando precisávamos deixá-lo por alguns minutos, ele piava ininterrup-

tamente... A família se revezava para que ele vingasse! Ganhava nome

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Clareira luminosa 99

e um alojamento confortável! E como era de sua natureza, crescia em

dois meses e se transformava, obviamente, em um frango!

Figura 1. Gallus gallus domesticus, por Mieke Roth

Acontece que, na maioria das casas daquela época, seu destino

era o almoço de domingo... As mães agiam em nossa ausência porque

se estivéssemos por perto não permitiríamos que ninguém no mundo

fizesse mal àquele ser tão gracioso e indefeso! Mesmo que a carne de

frango fizesse parte do cardápio cotidiano...

Entre os leitores deste texto, com certeza haverá os nascidos após

a década de 1980 ou que nunca ganharam um pintinho... Se não vive-

ram a experiência que descrevi, perguntem a seus pais. Após o trauma,

eram várias semanas ou meses sem comer frango ou outra carne!

Aquele rápido contato com a natureza, da sobrevivência do filhote

passando pelo seu crescimento – às vezes com direito a um ovo!! – e mor-

te, bastava para despertar em nós um amor à vida do animal, um senso

de justiça até então desconhecido e surpreendente! Mas com o passar

do tempo, a rotina diária e o distanciamento entre o alimento em nosso

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Betania Libanio Dantas de Araujo • Érica Aparecida Garrutti de Lourenço100

prato e sua origem desconhecida, esmaecia aquela identificação tão forte

que reconhecêramos e tudo voltava ao normal, para alívio das mães...

Hoje, esse hábito de presentear com pintinhos está em desuso.

Alguns filhotes são poupados e muitas crianças não sabem o que é aca-

riciar aquele serzinho adorável. A maioria das pessoas que moram em

cidades têm uma vaga ideia de como os alimentos que consomem são

produzidos, de onde vêm, como os animais foram manejados, como as

verduras foram cultivadas. Na melhor das hipóteses, vemos uma maté-

ria num programa de TV ou estudamos através de livros. A natureza,

da qual fazemos parte, tornou-se um conceito romântico, uma utopia

a ser conquistada num futuro ideal.

Mas o assunto principal deste texto é justamente este! Que a na-

tureza está ao nosso alcance e ao alcance das mãozinhas e dos sentidos

de nossas crianças. Mesmo nas grandes cidades basta uma pequena

mudança de olhar para nos encontrarmos imersos no mundo natural.

E neste ponto a ilustração científica é uma ferramenta inestimável para

se alcançar este objetivo!

Como afirmei no início do texto, não se trata de desejar que bebês

que ainda estão fazendo suas garatujas comecem a desenhar ilustra-

ções científicas detalhadas e complexas! A ideia é de que a atitude em

relação à natureza – a observação, o respeito, a contemplação, a cone-

xão entre os seres não humanos e os humanos – seja praticada, incenti-

vada ou ainda: não reprimida. São próprias da infância a contemplação

e a admiração ante os animais, as flores, a chuva, o fogo. Aos pequenos,

tudo lhes é novidade! Que nossas crianças e também os adultos que

as educam possam continuar se surpreendendo com os pequenos gran-

des milagres da natureza. Que compreendam melhor o mundo e que

construam a ciência a partir de seus estudos e de nossas contribuições.

E que esta ciência esteja em conexão com a beleza e com a arte: esta é

uma das definições da ilustração científica.

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Clareira luminosa 101

A ciência e a arte

Natureza. Esta palavra tem vários significados dependendo do

contexto onde se encontra: “a dança é da minha natureza”, “a gravida-

de é uma lei da natureza”, “no caso de acidente por qualquer nature-

za”, “vou passar o dia na natureza”.

Alexander Von Humboldt (1769-1859), naturalista alemão, foi

fundamental no reconhecimento do último sentido da palavra: natu-

reza como ambiente botânico, zoológico, mineral. Humboldt foi um

pesquisador incansável, um viajante que coletou mais de 2000 espé-

cies de plantas até então desconhecidas para a ciência. Segundo sua

biógrafa, seu livro Ensaio sobre a Geografia das Plantas, publicado em

1805, “foi o primeiro livro sobre ecologia do mundo” (wulf, 2015).

Humboldt acreditava que havia um princípio unificador em volta do

qual toda a natureza, inclusive a humana, se organizava. Em seus li-

vros, ele unia a observação obsessiva à imaginação criativa, produzindo

ilustrações que despertassem o imaginário de seus leitores. Acreditava

que a ciência andava junto com as emoções que a natureza inspirava

e que ao contemplá-la o observador não estava diante de um sistema

mecânico, mas sim de um organismo vivo (leite, 2016). Este tipo de

enfoque muitas vezes o desacreditou no meio científico, já que ao unir

pesquisa científica com imaginação e emoção ele ia contra uma cor-

rente mecanicista e cartesiana.

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Figura 2. Detalhe de ‘Naturgemälde’, ilustração de Humboldt que pode significar pintura da natureza, mas também unidade ou todo2

A sensibilidade de Humboldt associada à sua sistematização do

conhecimento é o mote deste texto. O trabalho com a Educação Infan-

til tem como pressuposto a sensibilidade do educador, mas não pode

abrir mão da construção dos conhecimentos pelas crianças, mediada

pelo planejamento e pela metodologia adequadas a cada faixa etária.

Na contemporaneidade, já foi incorporada a ideia de que se deve

construir com estudantes uma consciência ecológica de respeito ao meio

ambiente, à vegetação, aos animais, à agua, aos recursos esgotáveis.

A Educação Ambiental deve ser tema transversal desde os primei-

ros anos, conforme a Lei n. 9.795 (BRASIL, 1999, artigo 10). Esta Lei

considera a Educação Ambiental como um processo continuado, isto

é, que segue por toda a vida escolar, enriquecendo-se ao incorporar

novos significados conforme o desenvolvimento dos estudantes. E de

acordo com a Proposta de Diretrizes Curriculares Nacionais para a

2 Disponível em http://cultura.elpais.com/cultura/2016/09/09/babe-lia/1473420066_993651.html Acesso em: 31 jan. 2017.

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Clareira luminosa 103

Educação Ambiental, de 2012, no trecho referente à Educação In-

fantil e Anos Iniciais do Ensino Fundamental, a escola deve oferecer:

1. Emprego de recursos pedagógicos que promovam a percepção

da interação humana com a natureza e cultura, evidenciando aspectos

estéticos, éticos, sensoriais e cognitivos em suas múltiplas relações;

2. Desenvolvimento de projetos multidisciplinares e interdiscipli-

nares que valorizem a dimensão positiva da relação dos seres humanos

com a natureza, valorizando ainda a diversidade dos seres vivos, das

diferentes culturas locais, da tradição oral, entre outras;

3. Promoção do cuidado para com as diversas formas de vida, do

respeito às pessoas e sociedades, e do desenvolvimento da cidadania

ambiental (brasil, 2012).

É muito bom conversar com as crianças sobre a natureza, dese-

nhar flores, esculpir animais, ler histórias nos livros, assistir a filmes

e desenhos animados sobre o meio ambiente mas, naturalmente, isto

não basta para construir uma consciência ecológica e de amor à natu-

reza. É preciso aprender com o corpo inteiro, sentir o calor do sol e se

molhar na chuva, cheirar a flor, tocar o tatuzinho, acariciar o cachorro,

plantar e ver germinar, comer a fruta do pé, ouvir o trovão e depois o

passarinho, pisar na terra, desviar do formigueiro, enfim, integrar-se

com a natureza através de todos os sentidos. Criar um vínculo afetivo.

Além da consciência ecológica, a Educação Ambiental agrega mui-

tos outros valores caros à formação humana, muito bem elencados pelas

educadoras Tânia Fukelmann Landau e Ana Carol Thomé (2016, s.p.):

A atenção e a concentração, capacidades tão indispensáveis para a aprendizagem, podem ser cultivadas neste entrosamen-to com a Natureza, assim como a curiosidade, a flexibilidade, a coragem para lançar-se ao desconhecido e a capacidade para encontrar soluções para alguns problemas.

O autoconhecimento e a consciência de pertencer ao universo mais amplo de relações pode ser o resultado de um contato

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Betania Libanio Dantas de Araujo • Érica Aparecida Garrutti de Lourenço104

mais sensível e intimo com pequenas reservas naturais que cul-tivamos no dia a dia.

Brincar em um espaço onde a natureza é protagonista, no qual o corpo é vivido nas delicadezas, nas durezas, nas asperezas, nas sutilezas dos toques, dos sons, dos cheiros, dos olhares, dos gostos, ampliam os limites de descoberta pelas crianças, ou melhor, as deixa sem limites para experimentar. Henry David Thoreau diz que “A Terra é para ser mais admirada do que usa-da”. Mesmo sendo um dos maiores prazeres do corpo, olhar, observar, ficar quieto são atos confundidos com passividade, preguiça e solidão. É preciso que as crianças tenham tempo para contemplação. Atualmente, contemplar é uma ação que não é valorizada.

Tantas capacidades... Atenção aos detalhes, aos pequenos universos

que se abrem para dentro quando observamos atentamente um ser, a

concentração em minúcias que se tornam visíveis com o tempo, a con-

templação da natureza, a paz... Parece que estamos falando de um fim

de semana prolongado num sítio ou numa praia tranquila. Mas é do dia

a dia do professor que falamos, das artes visuais na Educação Infantil!

A rotina do trabalho, os turnos acumulados, a poluição, o trânsito,

as contas a pagar, os conflitos no trabalho, a violência urbana, as situa-

ções profissionais desmotivadoras brutalizam as pessoas. Aos poucos e

incessantemente, seres humanos se desumanizam. O retorno à nature-

za, mesmo que seja ao vaso de planta no canto da sala, recupera o na-

tural que há em nós e permite que construamos conceitos de respeito

e amor à vida com as crianças que educamos.

A seguir, serão relacionadas experiências ligadas ao universo

da ilustração científica que podem ser realizadas com as crianças da

Educação Infantil.

As crianças e a ilustração científica

Crianças são curiosas. Quando bebês, estão sempre enfiando os

dedinhos onde não deviam, levando a boca o que não era de comer,

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Clareira luminosa 105

olhinhos abertos quando os nossos já se fecham de cansaço! Quando

maiores, questionam-se sobre quase tudo, quase todos os assuntos lhes

interessam, despertam sua curiosidade, prendem sua atenção. Estão

sempre interagindo e experimentando. Curiosidade, interesse, ques-

tionamento, observação, experimentos. Isto não é a base da ciência?Figura 3. Metamorphosis insectorum Surinamensium, Plate IX. Maria Sibylla Merian, 17053

No século XVII, em 1647, nasceu uma menina alemã, Maria Si-

bylla Merian. Ela passou a infância intrigada com a transformação das

lagartas em lindas borboletas. Naquela época ainda se acreditava que

os insetos e larvas nasciam da lama apodrecida. A menina Maria então

começou a observar a metamorfose, os detalhes das crisálidas, como

elas se alimentavam, e quando já era uma adolescente desenhou to-

das as fases do desenvolvimento dos insetos. Ela foi uma das primeiras

naturalistas a cultivar insetos vivos e a concluir que muitos passam por

diferentes estágios de desenvolvimento, conhecimentos que contribu-

íram imensamente para várias áreas do conhecimento humano, desde

a agricultura até a medicina.

3 Disponível em: http://www.botanicalartandartists.com/about-maria-sibylla--merian.html Acesso: 31 jan. 2017.

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Betania Libanio Dantas de Araujo • Érica Aparecida Garrutti de Lourenço106

Se Maria vivesse em nossa época, os educadores diriam que ela

possuía uma “inteligência naturalista” acima da média de seus colegas.

“Inteligência naturalista” foi um termo forjado pelo psicólogo Ho-

ward Gardner ao propor sua teoria das inteligências múltiplas.4 Essa te-

oria reformulou o conceito tradicional de aprendizagem com suas pro-

postas de valorizar as competências individuais dos estudantes, além das

mais destacadas na escola tradicional: a linguística e a lógico-matemáti-

ca. A inteligência naturalista foi acrescentada posteriormente à publica-

ção de sua teoria juntamente com a inteligência chamada de existencial.

Esta informação parece confirmar a ideia de que essas duas inteligências

andam juntas e as questões existenciais não deveriam estar desligadas

das questões da natureza. Se aceitarmos que existem de fato as múltiplas

inteligências de Gardner, as experiências com elementos naturais na

Educação Infantil seriam úteis para despertar nos alunos vocações para

carreiras focadas no meio ambiente natural, como futuros biólogos ou

4 Howard Gardner nasceu em Scranton, no estado norte-americano da Pensilvânia, em 1943, numa família de judeus alemães refugiados do nazismo. Desenvolveu as pesquisas sobre as inteligências múltiplas que vieram a público na década de 1980 em seu sétimo livro, Frames of Mind, de 1983, que o projetou da noite para o dia nos Estados Unidos. O assunto foi aprofundado em outro campeão de vendas, Inteligências Múl-tiplas: Teoria na Prática, publicado em 1993. Ele concluiu, a princípio, que há sete tipos de inteligência: 1. Lógico-matemática é a capacidade de realizar operações numéricas e de fazer deduções. 2. Linguística é a habilidade de aprender idiomas e de usar a fala e a escrita para atingir ob-jetivos. 3. Espacial é a disposição para reconhecer e manipular situações que envolvam apreensões visuais. 4. Físico-cinestésica é o potencial para usar o corpo com o fim de resolver problemas ou fabricar produtos. 5. In-terpessoal é a capacidade de entender as intenções e os desejos dos outros e consequentemente de se relacionar bem em sociedade. 6. Intrapessoal é a inclinação para se conhecer e usar o entendimento de si mesmo para alcançar certos fins. 7. Musical é a aptidão para tocar, apreciar e compor padrões musicais. Mais tarde, Gardner acrescentou à lista as inteligências natural (reconhecer e classificar espécies da natureza) e existencial (refle-tir sobre questões fundamentais da vida humana) e sugeriu o agrupamen-to da interpessoal e da intrapessoal numa só (ferrari, 2008).

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Clareira luminosa 107

ambientalistas. Também é a função da escola permitir que as crianças

reconheçam seus talentos ao se proporem vivências onde elas possam

identificar suas habilidades inatas. Ou como dizia Gardner: “é comum

que essas aptidões sejam sufocadas pelo hábito nivelador de grande parte

das escolas. Preservá-las já seria um grande serviço ao aluno.” (gardner,

apud ferrari, 2008, s.p.).

Mas ainda que mesmo que em nenhuma criança fosse revela-

da essa vocação, ainda assim a educação ambiental agiria no sentido

de formar pessoas cuidadosas com a natureza e responsáveis por suas

ações no planeta.

Possibilidades de artes visuais na EducaçãoInfantil envolvendo a ilustração científica

Quando conversamos sobre natureza, temos clareza de que nem

sempre a escola possui uma hortinha para as crianças cultivarem os

temperos que enriquecerão seu almoço ou então um galinheiro onde

elas possam acompanhar o crescimento das aves. Essas possibilidades

não são remotas nem tão caras a ponto de serem inviáveis em escolas

públicas, mas partiremos do senso comum que a grande maioria dos

professores não trabalha com condições ideais em seus locais. Se a es-

cola se encontra numa área privilegiada em áreas verdes, as atividades

na natureza já ocorrem naturalmente. Mas quando se trata de crianças

urbanas que algumas vezes não dispõem de um pedaço de “natureza”

onde possam brincar, a escola deve proporcionar experiências para que

desenvolvam um repertório sobre os elementos naturais.

Sendo assim, serão elencadas uma série de atividades relaciona-

das à ilustração científica que podem ser trabalhadas com as crianças

pequenas em ambientes urbanos.

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Betania Libanio Dantas de Araujo • Érica Aparecida Garrutti de Lourenço108

Algumas atividades que norteiam a ilustração científica e que se confundem com

as brincadeiras das crianças

Exploração sensorial do meio ambiente

Figura 4. Stachys Byzantina – conhecida como orelha de lebre, por sua textura aveludada5

Quando as crianças são tão pequenas que qualquer atividade

em artes visuais ainda é limitada, a iniciação à ilustração científica

deve se dar através dos sentidos, não apenas através da visão. Com

a mediação dos professores, os bebês podem ser levados a tocar as

plantas macias e ásperas, a sentir o cheiro das ervas e flores, da grama

molhada ou recém-cortada, a provar as frutas das árvores, a coletar

pedrinhas pequenas e maiores, a descobrir insetos e bichinhos no

chão, a sentir a textura da areia, a observar os passarinhos do entor-

no. A exploração pode ser acompanhada simultaneamente pela visu-

5 Acervo da autora.

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Clareira luminosa 109

alização das imagens dos elementos, como fotos, desenhos, vídeos,

providenciadas pelos professores. As crianças assim ampliam seus re-

pertórios sensoriais e imagéticos, associando as imagens às sensações

transmitidas pelos seres explorados.

Registro visual de biomas

Quando as crianças são um pouco maiores, já se podem propor

atividades como registrar os seres naturais por meio de fotografias,

desenhos ou vídeos. Com a quantidade de recursos tecnológicos dis-

poníveis, muitas crianças em idade pré-escolar estão familiarizadas

com telefones celulares e podem fazer registros digitais muito inte-

ressantes com os mesmos. Não se trata de deixar a criança fotografar,

gravar ou desenhar a esmo, mas sim dirigir sua exploração, por exem-

plo, desafiando-a a encontrar animais no canteiro de plantas ou no

vaso de flores.

Esta é uma experiência que pode causar alguns conflitos, já que

alguns animais podem ser peçonhentos ou repugnantes. A criança

deve ser instruída a não interferir no habitat do animal, seja ele uma

joaninha, uma aranha ou mosquito. A função do investigador científi-

co é estudar a natureza e não a destruir. Para isso, o próprio professor

também deverá superar suas preocupações exageradas com os animais

que porventura encontrar.

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Betania Libanio Dantas de Araujo • Érica Aparecida Garrutti de Lourenço110

Gravura em cobre de Metamorphosis insectorum Surinamensium, Pla-ca XLVIII. 1705, de Maria Sibylla6

Esta atividade possibilita ao professor iniciar uma discussão sobre

o especismo, ou seja, a ideia de que algumas espécies são superiores

a outras. O professor pode conversar sobre o equilíbrio ambiental e a

importância de todas as espécies para a manutenção desse equilíbrio,

inclusive aquelas espécies que são combatidas pelas pessoas, por conta

dos males que podem causar, por exemplo, o mosquito Aedes aegypt,

e que muitas vezes são fruto do desequilíbrio ambiental causado pe-

los próprios seres humanos. O professor pode também conversar sobre

como as espécies mais diferentes dos seres humanos são tratadas, se

com respeito e compaixão ou se são desconsideradas como se não fos-

sem seres vivos.

6 Disponível em http://www.botanicalartandartists.com/about-maria-si-bylla-merian.html, acessado em abril de 2017.

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Clareira luminosa 111

Ao final, as crianças podem comparar suas fotos, vídeos e desenhos

e observar as caraterísticas marcantes dos seres estudados, e como cada

observador tem um ponto de vista diferente sobre o objeto observado.

Coleta de espécies

Coletar é uma atividade muito divertida para as crianças. Inclusi-

ve, os maiores podem fazer a coleta para os menores explorarem como

foi sugerido acima.

Quase tudo pode ser coletado no ambiente natural da escola:

pedras, folhas, animais, frutos, pedaços de madeira, flores. Os insetos

mortos pelo chão – formigas, besouros, aranhas, moscas, baratas – for-

mam uma interessantíssima coleção entomológica.

O professor deve instruir as crianças a deixar os seres vivos onde

estão, já que eles podem ser observados e registrados onde se encon-

tram, não sendo necessária sua coleta para a observação. Ainda que

esta tenha sido uma prática comum na ilustração científica, hoje se

dá preferência à observação no próprio local em que o ser se encontra.

Uma das maiores ilustradoras botânicas da humanidade, a inglesa

Margaret Mee desenhava suas plantas por observação direta. Nasci-

da na Inglaterra, em 1909, a ilustradora botânica veio para o Brasil

aos 43 anos e começou a ilustrar a flora da Mata Atlântica e depois a

da Amazônia. Ao longo de trinta anos, Margaret fez quinze viagens

exploratórias à floresta amazônica onde enfrentou toda sorte de dificul-

dades, desde doenças até o assalto de posseiros. Margaret denunciou a

destruição de biomas na Amazônia numa época em que isto ainda não

era visto como um problema ambiental. Em sua última expedição à

floresta amazônica, aos 79 anos, ela ilustrou um acontecimento nunca

antes registrado: o desabrochar da Flor da Lua (Strophocactus Wittii),

um cacto nativo que floresce e morre numa única noite. Ela precisou

pintar no barco, à noite, no meio da floresta, para registrar a flor rara.

E ela estava com 79 anos!

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Figura 5. Margaret Mee e a flor da lua.7

Figura 6. Strophocactus wittii, de Margaret Mee8

O professor deve orientar as crianças para que coletem apenas os

seres que já estão mortos, como flores caídas, folhas do chão, bichinhos

mortos, cascas de caramujos. Mesmo as coleções de animais vivos devem

ser inibidas, já que a simples retirada do ser do seu habitat é uma inter-

ferência desnecessária na natureza. Esta é uma boa oportunidade para

7 Do filme dirigido por Malu de Martino, 2013.8 Idem nota anterior.

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iniciar uma conversa sobre a ética na ciência, sem necessariamente usar

termos científicos. Segundo o biólogo José Roberto Goldim (2004, s.p.)

A própria coleta dos animais silvestres para fins de estudo tem implicações éticas. As coletas, para coleções didáticas redun-dantes, também têm esta mesma característica. O objetivo pode ser o de instrumentalizar o aluno em buscar, coletar e preparar adequadamente uma coleção de animais, porém existem alternativas que permitem este aprendizado sem estas inadequações (...) Algumas vezes a questão não se esgota na coleta dos animais silvestres, mas também na maneira com que são manipulados visando a sua conservação em coleções. As técnicas que visam conservar os animais da melhor forma possível, nem sempre são as mais adequadas, desde o ponto de vista do sofrimento destes animais. Isto ocorre em espécies que não tem apelo afetivo, quer seja por estarem aparentemente mais distantes da espécie humana, como no caso dos inverte-brados, ou por serem manejadas habitualmente ser reconhecer o sofrimento, como no caso dos peixes.

Após a coleta, as crianças organizarão suas coleções individual-

mente ou em grupo, guardando as espécies em pastas, caixas, colando-

-as num mural, ou ainda realizando registros visuais como fotos ou

desenhos. Nesta última etapa, a do registro, o professor deve orientar as

crianças para que observem e registrem os detalhes mais interessantes

das espécies coletadas e não apenas o aspecto geral das mesmas.

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Figura 7. Folhas, de Rogério Lupo9

Classificação das espécies

Após a coleta e antes da organização definitiva das coleções as

crianças podem classificar as espécies coletadas. Esta atividade pode

ser feita com as crianças menores já que desde bem pequenas, elas

começam a classificar tudo que percebem no ambiente.

A classificação pode se dar inicialmente no ambiente natural, en-

tre os seres vivos e os não vivos. Mais tarde e, adequando-se à idade, a

classificação pode ir se refinando: dentro dos reinos vegetal, animal e

mineral; os vegetais comestíveis ou não; os animais em que se pode to-

car ou não; os grandes e os pequenos; e outras incontáveis categorias, a

princípio sugeridas espontaneamente pelas crianças, e depois, dirigidas

pelos professores.

9 Disponível em: http://rogeriolupo.blogspot.com.br/ Acesso em: 31 jan. 2017.

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Clareira luminosa 115

Após a classificação, pode-se reunir as imagens produzidas na ati-

vidade anterior segundo as categorias escolhidas.

Uso de instrumentos científicos para a observação da natureza

Crianças (e também adultos!) são naturalmente curiosas por len-

tes de aumento, telescópios ou microscópios. Na falta destes, lupas ou

binóculos são relativamente baratos e cumprem seu papel de auxiliar

a observação científica. Se mesmo assim for inviável o acesso a algum

tipo de instrumento mais sofisticado, vale fotografar a espécie e ampliá-

-la na tela do celular ou do computador para que as crianças observem

aqueles detalhes minúsculos, quase invisíveis a olho nu: as nervuras das

folhas, as antenas das formigas, o aparelho reprodutor das plantas. Para

esta última observação, basta um instrumento eficiente e muito barato:

uma lâmina de barbear daquelas antigas, de quando os aparelhos de

barbear não eram descartáveis. Cuidado com os dedos e boa viagem

rumo ao mundo interior das plantas!

Figura 8. Detalhes florais de Vellozia giuliettia – ilustração de Rogerio Lupo10

10 Disponível em: http://rogeriolupo.blogspot.com.br/ Acesso em: 31 jan. 2017.

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Betania Libanio Dantas de Araujo • Érica Aparecida Garrutti de Lourenço116

Jardinagem

Cultivar plantas e observar seu desenvolvimento diariamente é

uma experiência inestimável para crianças e adultos. Se até o clássico

grão de feijão germinando no algodão úmido continua encantando as

crianças ano após ano nas escolas, que dizer de cultivar uma planta

completa, que dará flores e frutos, além da infinidade de pequenos ani-

mais que se mudarão para ela? Se a escola não dispuser de espaço ao ar

livre para o plantio, este pode ser feito em vasos ou potes dispostos em

locais iluminados, adequados às necessidades das espécies cultivadas.

Nesta atividade, é muito interessante que as crianças se revezem

no registro diário das transformações das plantas para que não se en-

tediem com o progresso lento das mesmas. O professor deve escolher

espécies resistentes e que completem um ciclo com flores e frutos du-

rante o semestre letivo. Pode-se também cultivar várias espécies com

tempos de floração e frutificação diferentes. Algumas plantas são muito

apropriadas para esta prática, pois germinam, florescem e frutificam

em poucos meses e seus frutos podem ser comidos in natura: tomati-

nhos, vagem, cenouras, capuchinhas. Estas últimas têm a vantagem de

que se podem comer suas folhas, flores e frutos, além de serem lindas!

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Clareira luminosa 117

Figura 9. Trepaelum majus – capuchinha, de Selma Botton11

Cuidar de animais de estimação

A grande maioria das pessoas ama e cuida prestimosamente de

animais de estimação: cães, gatos, tartarugas e também pássaros e pei-

xes confinados. As crianças amam os animais. Tenho quase certeza de

que se elas soubessem que o alimento no seu prato é a carne de uma

vaca ou um porquinho de verdade, elas se tornariam vegetarianas!

A aula sobre os animais de estimação é um bom momento para

se conversar sobre o direito à liberdade e ao bem-estar destes animais.

Os animais da escola - insetos, pássaros, lagartixas - também devem ser

estimados no sentido de serem respeitados e, portanto, são também

animais de estimação. Separar o sentimento de estima pelo animal

pelo senso de posse sobre o mesmo é fomentar o amor pela natureza

ainda que ela não nos pertença diretamente. Para amar e respeitar, não

é necessário possuir e nem confinar.

11 Acervo da autora.

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Betania Libanio Dantas de Araujo • Érica Aparecida Garrutti de Lourenço118

Há um passeio clássico de escolas, desde as de educação infantil

até o ensino superior, que é a visita aos jardins zoológicos e aquários,

dependendo da disponibilidade destes equipamentos nas cidades. Este

passeio é uma boa oportunidade para despertar a compaixão dos pe-

quenos pelos animais confinados, que foram retirados, muitas vezes, à

força de seus habitats. Passarinhos na gaiola, peixinhos no aquário, ele-

fantes no zoológico: todos esses seres indefesos podem ser substituídos

por seus registros através de instrumentos tecnológicos. As crianças são

extremamente sensíveis ao sofrimento dos animais. Ainda na infância

devem entender que não há razão cientifica ou social para se manter

animais em cativeiro visando o lazer humano. Até bem pouco tempo, o

abuso de animais como atrações circenses era aceito como uma forma

legítima e inocente de lazer. Somente a partir da publicação do Proje-

to de Lei n. 7291/2006 (BRASIL, 2006), que ainda está em tramitação,

o governo federal proibirá os circos de usarem animais em seus espetá-

culos. A mesma proibição pode se estender em relação aos zoológicos

e aquários: é também uma questão de consciência ambiental.

Como atividade, o professor pode pedir que as crianças registrem

seus animais de estimação, ou os pequenos animais da escola. Estes

registros podem ser feitos através de imagens fotografadas ou gravadas

com o celular, com desenhos originais e com colagens de imagens pré-

-existentes. É importante que o professor ou professora também desenhe

e traga os registros de seus animais de estimação, bem como imagens de

animais produzidas por artistas de vários estilos e épocas, imagens oriun-

das de mídias, embalagens, propagandas A representação por imagens

é uma linguagem específica, com suas características próprias e o seu

entendimento requer estudo e construção de repertórios.

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Figura 10. Gatos e um dragão, de Leonardo da Vinci12

Observar e desenhar esqueletos

Esta é uma experiência fascinante para as crianças pequenas, mas

talvez um pouco repugnante para os adultos... Poder observar de perto

e manusear um esqueleto é uma forma de conhecer a estrutura interna

dos animais, além de verificar uma das muitas transformações ocorri-

das após a morte do ser vivo.

Algumas vezes, as crianças ou os professores podem encontrar e

coletar esqueletos já limpos de passarinhos ou camundongos na escola

ou perto de suas casas, mas se isso não acontecer, pode-se obter um

esqueleto limpo a partir de um cadáver de um animal pequeno, ape-

nas deixando-o ao ar livre. Se o ambiente for úmido e quente e houver

12 Disponível em: https://www. royalcollection .org.uk/ Acesso em: 31 jan. 2017.

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Betania Libanio Dantas de Araujo • Érica Aparecida Garrutti de Lourenço120

livre acesso de insetos carniceiros, a decomposição ocorrerá de duas a

seis semanas. É muito interessante comparar o esqueleto disponível a

imagens de esqueletos em livros ou radiografias e também ao próprio

esqueleto das crianças, que podem se apalpar e verificar os possíveis

movimentos através das articulações.

O processo de observar a decomposição de um ser e registrá-lo

oferece várias oportunidades para uma conversa sobre temas como a

função das larvas nos ecossistemas, a matéria que é restituída à natu-

reza, o que faz um ser permanecer vivo, o sentimento de perder algo

ou alguém, a morte. Enfim, temas ligados à Educação Ambiental e,

principalmente, a grandes questões existenciais que não intrigam ape-

nas as crianças.

Considerações finais

Quem trabalha com Educação Infantil sabe que as crianças são

naturalmente curiosas: para elas, todos os dias são repletos de novas

descobertas e aprendizados! Talvez por isso, as possibilidades ofereci-

das pela ilustração científica no ambiente escolar sejam ainda mais sur-

preendentes para os professores do que para as crianças... Algumas prá-

ticas dos ilustradores são naturais da infância: a observação perspicaz

de detalhes, a contemplação interessada do ambiente, a necessidade

incessante de conhecer o mundo, o amor à natureza. Para as crianças,

tudo é extraordinário... os adultos é que, aos poucos, vão deixando de

se maravilhar com os pequenos mistérios do cotidiano. Neste sentido, a

ilustração científica descortina uma dimensão dos seres que geralmen-

te é ignorada, porque demanda uma atitude diferente da que é prati-

cada no tempo rápido da contemporaneidade: a maioria das pessoas se

encanta com uma paisagem natural ou com filhotes de cachorro, por

exemplo. Mas a ilustração científica oferece uma admiração por aquilo

que não está na superfície das coisas mas, sim, na sua profundeza, no

que está aparentemente inacessível aos sentidos. É como se um univer-

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Clareira luminosa 121

so desconhecido e fascinante nos fosse revelado... Revelar universos

desconhecidos: a ilustração científica se entrelaça com uma das mais

lindas funções da educação.

Para saber mais sobre

Ilustração botânica

CARNEIRO, Diana. Ilustração botânica: princípios e métodos. Curi-tiba, PR: Editora UFPR, 2011.

Ilustração Zoológica

ALVES, Rosa. Ilustração zoológica. Belo Horizonte, MG: Editora Frente e Verso, 2016.

Ilustração científica

https://ilustracaocientificaufmg.wordpress.com/author/ilustracao-cientificaufmg/

Margaret MeeFilme: Margaret Mee e a flor da lua. Direção de Malu de Martino,

2013.

Esqueletos de animais

Museu de anatomia veterinária da USP - http://mav.fmvz.usp.br/

Referências

BRASIL. Proposta de Diretrizes Curriculares Nacionais para a Edu-cação Ambiental. 2012. Disponível em: http://portal. mec.gov.br/dmdocuments/publicacao13.pdf Acesso em: 30 jan. 2017.

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Betania Libanio Dantas de Araujo • Érica Aparecida Garrutti de Lourenço122

______. Lei n. 9.795, de 27 de Abril de 1999b. Dispõe sobre a educa-ção ambiental, institui a Política Nacional de Educação Ambien-tal e dá outras providências. Disponível em: http://www.mma.gov.br/port/conama/legiabre.cfm?codlegi=321. Acesso em: 06 fev. 2017.

______. Projeto de Lei 7291/2006. Disponível em: http://www.ca-mara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=329678 Acesso em: 01 fev. 2017.

FERRARI, Marcio. Howard Gardner, o cientista das inteligências múltiplas, 2008. Disponível em: https://novaescola.org.br/con-teudo/1462/howard-gardner-o-cientista-das-inteligencias-multi-plas Acesso em: 01 fev. 2017.

GOLDIM, José Roberto. Ética e Pesquisa em Animais Silvestres. 2004. Disponível em: https://www.ufrgs.br/bioetica/pesqsil.htm. Acesso em: 30 jan. 2017.

LANDAU, Tânia Fukelmann e THOMÉ, Ana Carol. As crianças na Natureza. 2016. Disponível em: http://www.tempodecreche.com.br/crianca-e-natureza-2/as-criancas-na-natureza/. Acesso em: 30 jan. 2017.

LEITE, Marcelo. Humboldt enxergou e pintou o mundo como teia de conexões. 2016. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2016/10/1824986-humboldt-enxergou-e-pintou-o--mundo-como-teia-de-conexoes.shtml. Acesso em: 06 fev. 2017.

WULF, Andrea. A Invenção da Natureza: A Vida e as Descobertas de Alexander Von Humboldt. São Paulo: Planeta (selo Crítica), 2015.

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Renato Tocantins Sampaio1

A música não é apenas reflexiva, mas também gerativa,

tanto como sistema cultural quanto como capacidade humana.

john blacking, 2007, p. 201

1 Doutor em Neurociências pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Mestre em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Uni-versidade Católica de São Paulo (PUC/SP), Graduação em Educação Artística pela Faculdade de Artes Santa Marcelina, Graduação em Mu-sicoterapia pela Faculdade Marcelo Tupinambá. Professor Adjunto na Escola de Música da UFMG. Educador Musical, Musicoterapeuta. E--mail: [email protected]

V. Repensando a música na Educação Infantil:

da “Música para a Criança”para a “Música com a Criança”

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Betania Libanio Dantas de Araujo • Érica Aparecida Garrutti de Lourenço124

A Música está presente em nossas vidas em uma ampla gama

de situações. Durante milênios ela tem auxiliado a acalmar crianças

para favorecer o sono, a incentivar, estimular e organizar o movimento

nas brincadeiras infantis, a expressar conceitos, afetos e ideias, a fazer

emergir lembranças, a ingressar em estados não usuais de consciência,

a expressar crenças religiosas, a favorecer experiências estéticas, a tor-

cer pelos atletas e times favoritos, a tratar enfermos, a entreter pessoas

e grupos etc. (grout; palisca, 1994; sekeff, 2007; gfeller, 2008). Po-

demos tranquilamente dizer que a música está tão inserida em nossa

vida pessoal e social que é até mesmo extremamente difícil imaginar

como seria um mundo sem música. No entanto, fazer música não é

uma banalidade qualquer.

De acordo com o filósofo e musicólogo Viktor Zuckerkandl

(1973, p. 8, tradução nossa),

Musicalidade não é uma propriedade de indivíduos, mas um atributo essencial da espécie humana. A implicação é que não é que alguns homens sejam musicais e, outros, não, mas que o homem é um animal musical, isto é, um ser predisposto à mú-sica e que necessita dela, um ser que para sua plena realização precisa expressar-se por meio de notas musicais e deve produzir música para si mesmo e para o mundo.

Diversos estudos científicos nas últimas décadas têm mostrado

que o bebê humano já nasce com várias habilidades musicais, tais

como uma refinada percepção de alturas (grave/agudo) e de padrões

rítmicos, a localização da fonte sonora no espaço, o reconhecimento

da voz materna frente a outros estímulos sonoros, a correspondência

entre som e movimento, dentre outras. À medida que o desenvolvi-

mento ocorre, não somente estas habilidades vão ganhando maior pre-

cisão – inclusive devido ao desenvolvimento motor e cognitivo – como

também novas habilidades musicais específicas vão surgindo (hargrea-

ves, 1997; fassbender, 2003; pouthas, 2003; trehub, 2005; ilari, 2006;

sarkamo; tervaniemi; houtilainen, 2013; trainor; cirelli, 2015).

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Clareira luminosa 125

A aprendizagem, de um modo geral, pode ser descrita como uma

modificação do modo como nos comportamos em determinadas situ-

ações. Os seres humanos já nascem com uma “programação” pronta

para o desenvolvimento de várias habilidades necessárias à sobrevivên-

cia em nossa sociedade como perceber e reagir ao contato com outras

pessoas, controlar os esfíncteres, andar, falar etc. No entanto, é na inte-

ração com o ambiente que o cérebro humano confirmará ou induzirá

novas conexões nervosas e, deste modo, a aprendizagem. Experiências

com animais tem demonstrado que a ausência de estimulação adequa-

da (na interação com o meio) pode ocasionar o não desenvolvimento

de algumas habilidades ou um desenvolvimento inadequado, e isto é

verificado não somente no comportamento como também na estrutu-

ra e funcionamento do cérebro (cosenza; guerra, 2011).

Vale ressaltar que da mesma forma que consideramos que uma

pessoa que não desenvolveu a fala possui alguma disfunção no desen-

volvimento de origem biológica ou uma carência de estimulação am-

biental para tal função, podemos também considerar que uma pessoa

que não possui habilidades musicais básicas desenvolvidas não foi ade-

quadamente estimulada em sua convivência social ou possui alguma

disfunção orgânica que não lhe permite vivenciar e usufruir a música,

tais como, uma perda da capacidade auditiva ou uma amusia.2

O cérebro humano é um exímio buscador de padrões. Quando

ouvimos uma música, sem que nos demos conta, nosso cérebro busca

padrões presentes neste estímulo sonoro e várias regiões do cérebro são

recrutadas para processar este estímulo musical envolvendo tanto respos-

tas emocionais como respostas mais “racionais”, ou seja, onde o processo

2 Amusia é um transtorno neurológico no qual o cérebro da pessoa torna-se incapaz de processar elementos específicos da música, tais como a melo-dia ou o ritmo, ou de processar a música como um todo. A amusia pode ser adquirida (por meio de uma lesão em partes específicas do cérebro após o nascimento) ou congênita (a pessoa já nasce com esta alteração no funcionamento cerebral) (PERETZ, 2009).

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Betania Libanio Dantas de Araujo • Érica Aparecida Garrutti de Lourenço126

de pensamento tenta isolar ou diminuir o efeito dos estados emocionais

sobre a análise e o julgamento do estímulo. (koelsch, 2011, 2014)

Por ter uma musicalidade inata, podemos considerar o ser hu-

mano como um ser musical, capaz de apreciar, vivenciar e fazer mú-

sica de uma grande variedade de formas e com uma grande variedade

de meios. No entanto, a transformação desta competência inata em

uma habilidade plenamente desenvolvida – isto é, em uma capacida-

de de agir no mundo, em um saber e poder fazer música – necessita

de um engajamento social no qual a música seja vivenciada e valo-

rizada na comunidade e, então, habilidades musicais específicas vão

sendo desenvolvidas aos poucos até serem plenamente dominadas

(ansdell, 2015).

O contato com a música na cultura e o desenvolvimento de

habilidades e competências musicais variadas de modo não sistema-

tizado pode ser denominado como aprendizagem musical informal.

Hargreaves e Zimmerman (2006, p.232) explicam que esta forma de

aprendizagem “ocorre de forma espontânea em uma dada cultura, sem

qualquer esforço consciente ou direção”. Por outro lado, o treino “re-

sulta da autoconscicência e de esforços dirigidos” (ibid). Dizendo com

outras palavras: todo ser humano que vivenciou a música dentro de

um contexto social seria capaz de fazer música em um nível mais bá-

sico e de apreciar a música, pois desenvolveu habilidades musicais por

meio de um processo informal e não sistematizado de aprendizagem

nesta cultura. Mas, o desenvolvimento de habilidades específicas que

tornam aquele indivíduo um “especialista” ou, ainda, em um virtuose3

em um instrumento musical requer um longo e disciplinado treina-

mento. Pensando em termos pedagógicos, de acordo com a definição

3 Um virtuose em um instrumento musical é uma pessoa que desenvolveu habilidades técnicas extremamente sofisticadas e se tornou muito com-petente em utilizar aquele instrumento musical para expressar suas ideias musicais e encantar os ouvintes. Como exemplo no contexto da música de concerto, podemos citar o pianista brasileiro Nelson Freire.

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Clareira luminosa 127

de José Carlos Libâneo (2004), podemos considerar que o primeiro

processo corresponde à aprendizagem informal, enquanto o treino, à

educação formal, onde também há um processo de ensino deliberado

e sistematizado.

Apesar de a educação musical no Brasil ter seu início nas ações

jesuíticas no século XVI, em uma análise crítica sobre a educação mu-

sical nas escolas brasileiras, a educadora musical Marisa Fonterrada

(2005) lembra que, a partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educação

n.5.692 de 1971, a retirada da Música como disciplina curricular e a

implantação da educação artística (onde professores polivalentes deve-

riam ministrar as diversas linguagens artísticas em uma única discipli-

na), aliado ao contexto sócio histórico, trouxeram um esvaziamento do

conteúdo musical e um distanciamento entre a música que era traba-

lhada na escola e o que se fazia fora dela.

É importante notar que isso se dá, no Brasil, no mesmo mo-mento em que as propostas criativas de compositores voltados para a questão da educação musical estavam fazendo chegar às escolas europeias e norte-americanas a música do próprio tem-po, pautada em procedimentos [de composição] não-lineares, acausais e multidirecionais. Na escola brasileira, no entanto, ar-rochada pelo regime militar, a arte, embora chamada de “espaço de liberdade”, perdia seu lugar entre as disciplinas curriculares, caracterizando-se como “ornamento para festas” ou diversão. O discurso libertário que cercou a implantação da educação artís-tica falava de criação, sensibilização e liberdade de escolha, em profundo contraste com o regime militar que governava o Brasil, que não poupava represálias à expressão de opiniões. [...] Essa falada liberdade artística nas escolas era, portanto, um simula-cro que, talvez, tivesse apenas função de catarse ou “válvula de escape”. Desse modo, no mesmo período em que os países de-senvolvidos adotavam, ao lado da performance (banda, coro e orquestra) e das práticas de escuta, interessantes movimentos de criação musical e composição nas escolas, baseados na estética e nos procedimentos da música contemporânea, no Brasil perdia--se, nesse mesmo espaço, não apenas os procedimentos, mas a

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Betania Libanio Dantas de Araujo • Érica Aparecida Garrutti de Lourenço128

própria disciplina, escavando-se o vale que, desde então, abriu-se entre a música e a escola. (fonterrada, 2005, p.320-321)

Mas qual seria o lugar da música no sistema escolar regular e, mais

especificamente, nas instituições de educação infantil? Deveríamos sim-

plesmente disponibilizar à criança o acesso a música como elemento da

cultura e apostarmos no processo de aprendizagem informal não dirigi-

do ou deveríamos ter um esforço deliberado e programado de ensino,

com vistas a alcançar a sistematização de práticas e de produção?

Lugares da Música na Educação Infantil

O sentido que vai sendo atribuído ao fazer musical depende do

contexto social no qual a experiência musical ocorre. Isto posto, pode-

mos considerar pelo menos cinco grandes áreas de práticas musicais:

Arte, Educação, Entretenimento, Religião e Saúde (Figura 1). Logica-

mente, outras classificações são possíveis e outras áreas de práticas mu-

sicais poderiam ser definidas. Neste texto, nos limitaremos a citar estas

várias áreas e nos deteremos um pouco mais sobre Música e Educação,

voltando-nos mais especificamente para a educação infantil.

Figura 1. Cinco áreas de práticas musicais e alguns de seus subtipos

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Clareira luminosa 129

O lugar da música na escola, incluindo a educação infantil,

pode ser classificado em três eixos conforme apresentado na figura 1:

Música como Recreação na Escola, Educação Musical e Educação

Através da Música.

A Música como Recreação na Escola envolve o prazer e o bem-

-estar que podem ser promovidos pela experiência musical ativa ou

receptiva. Durante o processo de aprendizagem escolar, é importante

que os alunos tenham momentos de descontração, de lazer, de relaxa-

mento para descansar de tarefas de aprendizagem que solicitam outros

modos de concentração, de foco atencional, de controle de impulsos

etc. Do ponto de vista das neurociências, estes “descansos” são necessá-

rios de tempos em tempos para que a memorização e a aprendizagem

sejam mais efetivas (consenza; guerra, 2011).

Ressaltamos aqui que proporcionar um tempo de descanso é di-

ferente de “ocupar o tempo” quando o professor termina a atividade

principal e ainda tem alguns minutos “sem nada para fazer” antes de

terminar o horário. Este tempo de descanso com música deve ser pen-

sado como alguma atividade lúdica que proporcione prazer e descanso,

portanto, com pouca demanda cognitiva e motora por parte da criança.

Isto não quer dizer que as crianças tenham de ficar paradas, sentadas

em suas cadeiras, mas que qualquer ação que demande maior empe-

nho motor e cognitivo seja espontânea e não solicitada ou direcionada

pelo professor. Esta atividade musical pode ser ativa ou receptiva, isto

é, as crianças podem simplesmente ouvir música ou podem participar

ativamente desta experiência musical, cantando, tocando instrumen-

tos musicais, dançando etc.

É importante tomar cuidado com a qualidade do material musi-

cal utilizado nestas atividades, tanto em termos de qualidade musical

propriamente dita (músicas com boa estrutura, bem executadas etc.)

como com a qualidade técnica de instrumentos musicais, aparelhos

ou equipamentos de áudio ou vídeo utilizados para que a criança seja

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Betania Libanio Dantas de Araujo • Érica Aparecida Garrutti de Lourenço130

exposta a produtos musicais de qualidade e possa, então, começar a

desenvolver um refinamento auditivo.

Em muitas escolas é comum verificarmos a presença de instru-

mentos musicais construídos pelas próprias crianças, boa parte das

vezes com sucata e/ou materiais reciclados. Este tipo de material é

muito útil para diversas funções pedagógicas (musicais e não musi-

cais), porém, não serve para todas elas! Estes instrumentos musicais

são muito importantes em um trabalho com educação ambiental, com

a compreensão dos tipos de movimentos que produzem sons (bater,

raspar, chacoalhar, pinçar cordas etc.), para estimular o engajamento

na música (afinal de contas, a criança toca o instrumento que ela mes-

ma produziu) dentre várias outras funções pedagógicas importantes.

No entanto, deve-se ter em mente que nem sempre estes instrumentos

possuem o refinamento sonoro adequado para o treinamento auditivo

necessário para a educação musical ou mesmo para auxiliar as crianças

a discriminar com maior qualidade os sons, o que será importante para

o desenvolvimento da fala e da escrita.

Já em relação ao tipo de música a ser utilizado, é imprescindí-

vel considerar uma pluralidade de estilos e não apenas apresentar às

crianças um tipo de música (e, portanto, de estrutura musical) como

sendo o único válido, correto ou de qualidade. É preciso reconhecer e,

dentro do possível, valorizar a diversidade cultural. Como nos lembra

a educadora musical Maura Penna (2006), devemos evitar o etnocen-

trismo (consciente ou inconsciente) ao tomar como referência o estilo

musical do grupo social em que vivemos ou que nosso grupo social

valoriza, desconsiderando as produções dos outros grupos com que se

trabalha, em especial, com as produções culturais dos grupos sociais

que os nossos alunos pertencem.

[...] uma concepção ampla de música é uma condição neces-sária para que a educação musical possa atender à perspectiva multicultural, ao mesmo tempo em que a concepção da mul-

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Clareira luminosa 131

ticulturalidade contribui para a ampliação da concepção de música que norteia nossa postura educacional. Desse modo, é possível ultrapassar a oposição entre popular e erudito, e apre-ender todas as manifestações musicais como significativas, evi-tando deslegitimar a música do outro através da imposição de uma única visão. (penna, 2006, p39)

O prazer que a atividade musical pode possibilitar a quem participa

ativamente dela (ouvindo, tocando, cantando, dançando etc.) não deve

ser menosprezado pelos educadores, mas não pode consistir no único

propósito da música na educação infantil. Infelizmente, ainda hoje, ve-

mos muitas escolas de educação infantil no qual a música possui apenas

uma função de lazer, de entretenimento, de distração, de “ocupação do

tempo”. Porém, devemos lembrar que a música, assim como as demais

formas de arte, favorece o contato com o sensível, com o sublime, com

a totalidade do ser no mundo e com uma experiência humana diferente

da experiência cotidiana (sekeff, 2007). Não obstante, se o objetivo da

audição musical na educação infantil é o de inserção da criança na cul-

tura ou de tentar favorecer uma experiência estética, este fazer musical

deve ser mediado pelo professor, como veremos adiante.

A Educação Musical propriamente dita consiste no treinamen-

to e desenvolvimento de habilidades musicais por meio do estudo te-

órico e prático da música: cantar, mover-se com a música, executar

instrumentos musicais, compor, escrever e ler música, compreender a

forma e a estruturação musical, apreciar a música, reconhecer e com-

preender a música como produto da cultura etc. A educação musical

deve aliar a aprendizagem pelos alunos dos procedimentos e regras de

sintaxe musical para combinar sons e silêncios em discursos musicais

(a partir de padrões presentes na cultura e, eventualmente, a partir

da criação de novos padrões de sintaxe) com as estratégias e meios de

expressão e produção sonora.

Quando levamos esta proposta para a educação formal no siste-

ma escolar, deve-se ter em mente que este processo é longo e que a

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Betania Libanio Dantas de Araujo • Érica Aparecida Garrutti de Lourenço132

criança pequena ainda não tem capacidade motora e cognitiva para

conteúdos muito abstratos e performances instrumentais extremamen-

te elaboradas. Por isso, com crianças pequenas estaríamos iniciando

o processo de aprendizagem formal dos conteúdos técnicos e expres-

sivos musicais. Na educação infantil, em particular, chamamos este

processo de “musicalização”,4 como um paralelo ao início do processo

de aprendizagem da leitura, escrita e alguns princípios gramaticais da

língua portuguesa, usualmente denominado “alfabetização”. Ao longo

do percurso acadêmico em toda a educação básica, as habilidades mais

refinadas e complexas serão desenvolvidas de modo a possibilitar uma

execução musical mais elaborada.

Entretanto, se o ensino de música não pode estar focado somente

no lazer e no passatempo, tampouco pode focar única e exclusivamen-

te na técnica e no desenvolvimento de habilidades e competências es-

pecíficas para uma possível atuação profissional na música.

O crítico de arte Herbert Read apresenta em seu livro “Educação

pela Arte” (read, 2001), originalmente publicado em inglês em 1943, a

proposição de que o Ensino de Arte deveria ter como objetivo a forma-

ção integral do indivíduo e o desenvolvimento global do ser humano e

vários educadores musicais dos séculos XX e XXI compartilham desta

perspectiva. Por exemplo, segundo o compositor e educador Hans-Jo-

achim Koellreutter, a educação musical não deveria estar voltada para

a profissionalização de musicistas, mas deveria ser concebida como

[...] meio que tem a função de desenvolver a personalidade do jovem como um todo; de despertar e desenvolver faculdades indispensáveis ao profissional de qualquer área de atividade, como, por exemplo, as faculdades de percepção, as faculdades de comunicação, as faculdades de concentração (autodiscipli-na), de trabalho em equipe, ou seja, subordinação dos interesses

4 Alguns educadores também chamam o trabalho de educação musical nas séries iniciais do ensino fundamental de “musicalização” por consi-derarem que este tipo de proposta não se encerra na educação infantil.

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Clareira luminosa 133

pessoais aos do grupo, as faculdades de discernimento, análise e síntese, desembaraço e autoconfiança, a redução do medo e da inibição causados por preconceitos, o desenvolvimento de criatividade, do senso crítico, do senso de responsabilidade, da sensibilidade de valores qualitativos e da memória, principal-mente, o desenvolvimento do processo de conscientização do todo, base essencial do raciocínio e da reflexão. As nossas esco-las oferecem aos seus alunos cursos de esporte e futebol, sem pretenderem preparar ou formar esportistas ou jogadores de futebol profissionais. (koellreutter apud brito, 2001, p.41)

Devemos, porém, tomar cuidado para não cair em uma visão re-

dentora da música (ou da Arte em geral), na qual ela seria a única

responsável por resgatar a sensibilidade e a emoção diante da raciona-

lização excessiva do ensino tradicional ou, num sentido mais amplo,

redimiria a própria humanidade ao produzir pessoas e sociedades me-

lhores. Sem dúvida, como inclusive está descrito no artigo 2° da atual

Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n. 9394/96), “A

educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de

liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o

pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da

cidadania e sua qualificação para o trabalho.” (brasil, 1996). Portanto,

todo o sistema educacional deve ser pensado e conduzido para este

objetivo e não apenas a música (ou a Arte).

Ainda, com base numa perspectiva redentora, corremos o risco

de considerar que qualquer música, qualquer arte, bem como qual-

quer abordagem de ensino delas seria capaz de propiciar a formação

integral do indivíduo e, além de cair novamente no etnocentrismo,

tenderíamos a perder o comprometimento social das práticas educati-

vas. Deixaríamos, então, de buscar e construir abordagens pedagógicas

contextualizadas em nosso momento sócio-histórico-cultural que da-

riam conta das especificidades dos diferentes públicos, dos diferentes

contextos, dos diferentes valores e vivências culturais etc.

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Betania Libanio Dantas de Araujo • Érica Aparecida Garrutti de Lourenço134

Assim como vários outros educadores musicais, Penna (2006) apon-

ta que o ensino de música necessita superar o dualismo “essencialista”

versus “contextualista”. No ensino “essencialista” há uma hipervaloriza-

ção do conteúdo especificamente musical, muitas vezes abordado de

forma conservatorial e excludente. Já no ensino “contextualista”, a edu-

cação, inclusive a educação musical, é pensada como desenvolvimento

global do ser humano, arriscando deixar de lado os conteúdos especí-

ficos musicais em prol desta formação integral e do desenvolvimento

global. A superação deste dualismo é uma tarefa difícil e para a qual não

há receita pronta. Para tentar alcança-la, devemos buscar um diálogo

permanente com as demais áreas do conhecimento, com os demais ato-

res da vida escolar, com o público com qual estamos lidando etc.

Como um terceiro eixo da música na escola, temos a Educação

através da Música que utiliza tanto o aspecto lúdico e prazeroso da

música como a possibilidade dela desenvolver habilidades cognitivas,

motoras e afetivas para abordar pedagogicamente conteúdos de outros

universos que não especificamente artístico. Isto é, neste caso, a música

será utilizada como um meio e/ou um recurso para favorecer a apren-

dizagem de conteúdos não musicais. Salientamos que a música não

seria apenas uma ilustração de conteúdo, mas parte significativa do

processo de aprendizagem.

Propomos este termo “Educação através da Música” por conside-

ramos a música como um meio e não como um fim (como seria na

educação musical). No entanto, não devemos confundir o que estamos

aqui chamando de educação através da música com a “Educação pela

Arte” de Read e outras concepções similares. A diferença principal é que

não necessariamente temos como objetivo uma formação integral do

ser humano. Pelo contrário, na maior parte das vezes, o que objetivamos

é o desenvolvimento de uma área de conhecimento específica ou de

um determinado conjunto de habilidades (não musicais). Este parece

ser o modo de trabalho presente tanto em muitos projetos pedagógicos

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Clareira luminosa 135

multidisciplinares escolares, nos quais o foco acaba recaindo sobre outras

disciplinas do currículo, como em vários projetos sociais que envolvem

música, nos quais a aprendizagem especificamente musical fica em se-

gundo plano em relação a outros conteúdos e necessidades.

Na educação infantil ainda encontramos muitos usos da música

que não tem fim musical como a aprendizagem e a prática de uma

canção para acolhimento e recepção das crianças, de uma canção

para marcar a hora de finalizar a atividade e se preparar para ir para

o lanche ou, até mesmo, de canções para ensinar conteúdos especí-

ficos, dentre outros.5

A partir desta perspectiva de educação através da música, abre-se

espaço para a inserção de práticas musicais em projetos educacionais

interdisciplinares ou transdisciplinares, porém nunca podemos esque-

cer os conteúdos específicos, as metodologias de ensino e os princípios

particulares de cada área. Ao examinar a prática educacional musical

em projetos sociais, por exemplo, Penna e colaboradores (penna; bar-

ros; mello, 2012) advertem para a falta de equilíbrio entre os objeti-

vos propriamente musicais e as finalidades de caráter social que pode

comprometer tanto o desenvolvimento musical do aluno como o fim

social do projeto, quer seja por reproduzir abordagens e métodos tra-

dicionalistas de ensino de música voltados para a música erudita de

concerto de tradição europeia (e que exclui a quase totalidade da pro-

dução musical da cultura do aluno nestes projetos) ou por considerar

que qualquer prática musical é válida, uma vez que o foco seria, por

exemplo, a inclusão social.

Consideramos que estas três formas de uso da música na educa-

ção são válidas e não excludentes. No entanto, consideramos que é im-

prescindível haver na educação infantil o que estamos aqui chamando

de educação musical.

5 Por exemplo, a “clássica” canção dos indiozinhos sendo utilizada para en-sinar a sequência dos números: 1, 2, 3 indiozinhos, 4, 5, 6 indiozinhos ...

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Betania Libanio Dantas de Araujo • Érica Aparecida Garrutti de Lourenço136

Música, Cultura Infantil e Educação Escolar

Nenhuma música pode ser percebida como música em um vácuo social

green, 2012, p.63.

A música é um produto da cultura e como tal, cada indivíduo de

um determinado contexto cultural terá acesso a ela em seu dia a dia.

Contudo, dois indivíduos de um mesmo contexto cultural não somente

podem ter acessos diferenciados aos conhecimentos e práticas musicais

de sua comunidade como também podem ter experiências pessoais

diferentes numa mesma prática. Isso nos leva a uma divisão da experi-

ência musical em diversos níveis, que podem ir do mais Universal, ou

seja, todo ser humano pode ter uma experiência similar, passando pelo

Cultural, no qual compartilhamos a experiência com os demais mem-

bros do grupo cultural em que estamos inseridos, até o mais Individual

ou Singular, no qual a experiência ganha um significado específico e

extremamente particular para aquela pessoa (Figura 2).

Figura 2. Representação esquemática de três níveis de experiência mu-sical, indo da experiência universal (todos os seres humanos), passando pela experiência cultural (grupo cultural em que a pessoa está inserida) e chegando à experiência singular (particular de cada indivíduo)

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Clareira luminosa 137

Segundo a educadora musical Lucy Green (2012), a música pos-

sui significado à medida que as pessoas consideram um determinado

conjunto de sons e silêncios como música. É sempre o ouvinte que

delimita um campo sonoro e lhe qualifica como música e a criança vai

aprendendo a fazer isso de modo espontâneo ao longo de sua vida em

sociedade, ou seja, a partir de experiências musicais sociais comparti-

lhadas, a criança vai aprendendo a reconhecer e nomear alguns con-

juntos sonoros como música em uma determinada cultura e, outros,

não. Este processo envolve dois tipos de aspectos de significação, que

Green denomina como inerente e delineado.

O significado inerente corresponde às formas que os materiais sono-

ros são organizados dentro de padrões musicais. Há uma compreensão

de que aqueles sons e silêncios foram combinados em uma sintaxe que é

aprovada e valorizada numa determinada cultura. Existem, portanto, re-

gras de combinações que delimitam o que é possível, o que é permitido,

e, em última instância, o que é belo. Para Green, os significados ineren-

tes são isentos de conceitos ou conteúdos relacionados ao mundo “fora

da música” e “são formados por materiais da música, mas eles advêm da

capacidade humana de organizar um som em relação a outro; capacida-

de desenvolvida historicamente através da exposição formal e informal à

música e a atividades musicais” (GREEN, 2012, p.63).

Quando levamos tal concepção para a música na educação in-

fantil, reconhecemos a importância de apresentar às crianças um re-

pertório musical vasto o suficiente para que elas possam desenvolver

familiaridade auditiva (e cognitiva) com diversos tipos de estruturação

musical, passando pela música popular, pela música de concerto (tam-

bém chamada muitas vezes de erudita ou clássica), pela música folcló-

rica brasileira e pela música de outras culturas.

De modo geral, escutar música clássica e/ou folclórica sim-plesmente não faz parte das práticas culturais da maioria das crianças das escolas. Sem escutar repetidamente, não há como

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Betania Libanio Dantas de Araujo • Érica Aparecida Garrutti de Lourenço138

desenvolver familiaridade estilística, e sem um pouco dessa fa-miliaridade, é improvável que ocorra uma experiência positiva com relação aos significados inerentes. (green, 2012, p. 65)

Por outro lado, o significado delineado refere-se aos conceitos e

conotações extramusicais que a música carrega, ou seja, suas associa-

ções sociais, culturais, religiosas, políticas, de gênero etc. Essas associa-

ções podem ser convenções gerais, acolhidas por muitas pessoas, por

exemplo um hino nacional, ou convenções mais individuais, como a

associação de uma canção com um determinado momento ou pes-

soa. Para Green, toda música carrega significado delineado que está

relacionado não somente ao seu contexto original de produção, mas

também, e especialmente, aos contextos de distribuição e de recepção.

Durante qualquer produção e qualquer escuta musical, há sem-

pre significações inerentes e delineadas em jogo, mesmo que as pesso-

as não estejam cientes disto. E, as pessoas podem responder positiva-

mente ou negativamente aos processos inerentes e delineados de modo

que elas nem sempre precisem ser concordantes. Por exemplo, uma

pessoa pode responder positivamente ao aspecto inerente (por estar

familiarizado com aquele tipo de estrutura musical), mas responder

negativamente ao aspecto delineado (por ter uma associação negativa

daquela música específica com algum fato de sua vida).

O desenvolvimento da tecnologia nas últimas décadas permitiu

termos acesso a uma imensidade de produtos musicais de nossa própria

cultura e de outras culturas de modo quase que instantâneo. Todavia, é

preciso haver parcimônia em relação ao uso de qualquer material mu-

sical. Como afirmamos anteriormente, a simples apresentação de um

produto musical para as crianças não garante que haja uma apreciação

deste material sonoro e as crianças podem responder emocionalmente

e racionalmente de formas muito diversas. É necessário que o professor

faça uma mediação deste conteúdo. Aliás, antes mesmo de apresentar

tal conteúdo é necessário que o professor tenha claro o objetivo peda-

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Clareira luminosa 139

gógico que ele pretende alcançar, que ele selecione conscientemente

o produto musical a ser utilizado e planeje como fará as intervenções

pedagógicas com aquele material.

Consideramos que qualquer processo pedagógico deve possuir al-

guns elementos. O professor deve avaliar o nível de conhecimento e de

habilidades atual de seu aluno e delimitar o ponto de chegada em ter-

mos também de conhecimento e/ou de habilidades. O ensino de música

será então a aplicação de um conjunto de intervenções sistemáticas pla-

nejadas, de modo longitudinal e sequencial que favorecerá a mudança

(cognitiva, motora, afetiva etc.) do estado atual do aluno para o estado

pretendido e esta mudança será promovida pela experiência musical me-

diada no contexto de uma relação didática (professor-aluno). A figura 3

apresenta uma representação esquemática deste percurso, partindo de

uma avaliação diagnóstica educacional para compreender o estado atual

de conhecimento e habilidades do aluno até chegar ao estado pretendi-

do, definido em termos de objetivos educacionais.

Figura 3. Representação esquemática do percurso realizado durante o processo pedagógico musical, partindo da avaliação diagnóstica para compreender e estabelecer o nível atual de conhecimento e de habili-dades do aluno até chegar ao estado pretendido, definido em termos de objetivos educacionais. A mudança ocorre por meio da participação em experiências musicais mediadas no contexto de uma relação didática

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Betania Libanio Dantas de Araujo • Érica Aparecida Garrutti de Lourenço140

Libâneo (2004, p. 92), descreve que:

O processo de ensino, efetivado pelo trabalho docente, constitui--se de um sistema articulado dos seguintes componentes: obje-tivos, conteúdos, métodos (incluindo meios e formas organizati-vas) e condições. O professor dirige este processo, sob condições concretas das situações didáticas, em cujo desenvolvimento se assegura a assimilação ativa de conhecimentos e habilidades e o desenvolvimento das capacidades cognoscitivas dos alunos.

Um método de ensino, segundo Libâneo (2004), deve correspon-

der a uma unidade objetivos-conteúdos-métodos e formas de organiza-

ção do ensino e às condições concretas das situações didáticas. A esco-

lha e aplicação de um método deve levar em consideração, portanto,

o estado atual de conhecimentos e habilidades dos alunos (incluindo

gostos, valores culturais etc.) e dos conteúdos e objetivos específicos

selecionados para serem abordados naquela aula ou conjunto de aulas.

Penna (2012) considera que um método de ensino de música é

uma proposta de como desenvolver uma prática em educação musical

e esta proposta está estruturada sobre princípios, finalidades e orienta-

ções gerais de procedimentos. Alguns métodos de ensino de música são

mais prescritivos, com materiais didáticos bem delimitados e procedi-

mentos bem definidos passo a passo, enquanto, outros, são bem mais

abertos, fornecendo sugestões mais flexíveis e relatos de atividades.

Defendemos aqui a proposição de que a educação musical na

educação infantil não deve ser uma mera apresentação de música (ou

de músicas, se consideramos a pluralidade cultural) para as crianças

pois estaremos deste modo fazendo com que as crianças se tornem

predominantemente repetidoras de padrões pré-estabelecidos. A re-

produção de padrões prontos (simples, simplificados ou complexos) é

útil para desenvolver habilidades técnicas de performance (isto é, como

tocar) mas não favorece diretamente o desenvolvimento da sensibili-

dade artística e da expressividade de cada pessoa. Vários métodos de

educação musical consideram o desenvolvimento da capacidade cria-

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Clareira luminosa 141

dora aliado a uma progressiva compreensão técnica sobre os elementos

musicais e as regras de sintaxe musicais. Segundo Fonterrada (2015),

alguns destes métodos são mais lineares e progressivos em relação à

construção deste conhecimento e, outros, propõem uma concepção

em forma de rede, mais próxima de abordagens contemporâneas nas

artes visuais e de teorias contemporâneas sobre os modos de conhecer.

O educador musical Keith Swanwick (2003) propõe que o ensino

de música seja realizado de forma a integrar todas as experiências mu-

sicais. Há três atividades principais: Ouvir música (apreciação), tocar

música e compor. Estas atividades principais deveriam ainda ser entre-

meadas pelo estudo da história da música e pelo treinamento técnico

para o desenvolvimento de habilidades específicas a cada instrumento

musical. Estas atividades foram resumidas na sigla CLASP (que em

inglês também significa “abraçar”, “agregar”, “enganchar”) onde C

equivale à composição [composition], L, ao estudo da literatura musi-

cal [literature studies], A, à apreciação [appreciation], S, à aquisição de

habilidades [skill aquisition] e, P, à execução musical (tocar e cantar)

[performance]. No Brasil, este processo foi traduzido como TECLA:

T de técnica, E de execução, C de composição, L de literatura e A

de apreciação, porém corre-se o risco de enfatizar a técnica, pelo fato

dela vir primeiro na ordem em língua portuguesa, perdendo assim a

centralidade dos processos de composição, performance e apreciação.

Por sua vez, embora ainda pouco conhecido no Brasil, o compo-

sitor e educador musical John Paynter propõe uma abordagem de edu-

cação musical onde os diversos conteúdos são estruturados em rede.

Os conteúdos são organizados normalmente sob a forma de pequenos

projetos de composição e/ou de performance (porém sempre incluindo

o estudo da técnica, a apreciação e o estudo da literatura musical), que

podem durar de uma a algumas poucas aulas, todos com princípio,

meio e fim bem determinados. Paynter distingue quatro procedimen-

tos que se situam no centro da prática musical: os sons na música; as

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Betania Libanio Dantas de Araujo • Érica Aparecida Garrutti de Lourenço142

ideias musicais; os modelos de tempo (que poderíamos também enten-

der como estrutura); e, pensar e fazer música (isto é, a técnica). Pode-se

partir de qualquer um deles e seguir qualquer caminho, mas há uma

centralidade no responder e realizar, tanto para a composição como

para a performance. (fonterrada, 2005; mateiro, 2012)

Segundo Sampaio (2015a) vários pesquisadores do desenvolvi-

mento musical e muitos educadores musicais consideram que há uma

musicalidade infantil diferente da musicalidade do adulto e que ha-

veria também uma música infantil que se diferencia da música dos

adultos (como produto cultural) tanto em função de sua estrutura e

forma como de sua função. Poderíamos, ainda, considerar a existência

de uma subcategoria, que alguns chamam de “música escolar”, que

abrangeria músicas especialmente compostas para crianças, supos-

tamente respeitando as etapas do desenvolvimento infantil, que tem

como finalidade apresentar, organizar e sistematizar o fazer musical

das crianças durante a educação escolar para que elas possam, futu-

ramente, adentrar no universo musical adulto de modo geral e, em

particular, no universo de uma “norma culta musical”. Estas músicas

escolares incluem tanto aquelas que auxiliam a organização da rotina

escolar (como “meu lanchinho”) quanto músicas compostas para o

ensino de música respeitando o perfil do desenvolvimento musical da

criança (como várias das composições utilizadas por educadores musi-

cais seguindo os princípios dos métodos Kodaly e Orff dentre outros).

É importante ressaltar que, por um lado, o uso destas músicas escola-

res é privilegiado e incentivado por alguns educadores musicais e, por

outro, duramente criticado por vários educadores musicais e musicó-

logos, por considerarem que a estrutura musical das músicas escolares

consiste numa simplificação excessiva que distancia de forma nociva o

fazer musical da criança na escola com o que ela irá vivenciar nas suas

práticas sociais cotidianas.

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Clareira luminosa 143

Mas, poder-se-ia perguntar se uma criança da educação infantil é

capaz de compor ou mesmo se tem habilidades cognitivas suficiente-

mente desenvolvidas e consistente conhecimento da literatura musical

para apreciar música. A resposta é SIM, dentro do nível de habilida-

des e competências que esta criança tenha desenvolvido. A educação

musical na educação infantil não deve se apoiar no ensino de leitura e

escrita musical, na técnica de execução instrumental ou vocal, ou, ain-

da, no estudo da literatura musical, mas sim no apreciar e fruir música,

explorando e identificando os materiais sonoros e suas propriedades e,

principalmente, focando no caráter expressivo da execução musical.

Música para interagir e para estimular:implicações para o uso e o ensino de

música na educação infantil

Segundo o Parecer da Câmara de Educação Básica do Conselho

Nacional de Educação n. 20/2009 que aprova as Diretrizes Curricula-

res Nacionais para Educação Infantil (brasil, 2013, p.86),

O currículo da Educação Infantil é concebido como um con-junto de práticas que buscam articular as experiências e os saberes das crianças com os conhecimentos que fazem parte do patrimônio cultural, artístico, científico e tecnológico. Tais práticas são efetivadas por meio de relações sociais que as crian-ças desde bem pequenas estabelecem com os professores e as outras crianças, e afetam a construção de suas identidades.

Intencionalmente planejadas e permanentemente avaliadas, as práticas que estruturam o cotidiano das instituições de Educa-ção Infantil devem considerar a integralidade e indivisibilidade das dimensões expressivo-motora, afetiva, cognitiva, linguísti-ca, ética, estética e sociocultural das crianças, apontar as ex-periências de aprendizagem que se espera promover junto às crianças e efetivar-se por meio de modalidades que assegurem as metas educacionais de seu projeto pedagógico.

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Betania Libanio Dantas de Araujo • Érica Aparecida Garrutti de Lourenço144

No artigo 9º das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educa-

ção Infantil, é definido que as práticas pedagógicas que compõem o

currículo para esta etapa escolar devem ter como eixos norteadores as

interações e a brincadeira, garantindo, dentre outras, experiências que:

I - promovam o conhecimento de si e do mundo por meio da ampliação de experiências sensoriais, expressivas, corporais que possibilitem movimentação ampla, expressão da individu-alidade e respeito pelos ritmos e desejos da criança;

II - favoreçam a imersão das crianças nas diferentes linguagens e o progressivo domínio por elas de vários gêneros e formas de expressão: gestual, verbal, plástica, dramática e musical;

[...]

V – ampliem a confiança e a participação das crianças nas ati-vidades individuais e coletivas;

VI – possibilitem situações de aprendizagem mediadas para a elaboração da autonomia das crianças nas ações de cuidado pessoal, auto-organização, saúde e bem-estar;

VII – possibilitem vivências éticas e estéticas com outras crian-ças e grupos culturais, que alarguem seus padrões de referência e de identidades no diálogo e reconhecimento da diversidade;

VIII – incentivem a curiosidade, a exploração, o encantamen-to, o questionamento, a indagação e o conhecimento das crian-ças em relação ao mundo físico e social, ao tempo e à natureza;

IX – promovam o relacionamento e a interação das crianças com diversificadas manifestações de música, artes plásticas e gráficas, cinema, fotografa, dança, teatro, poesia e literatura;

[...]

XI – propiciem a interação e o conhecimento pelas crianças das manifestações e tradições culturais brasileiras;

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Clareira luminosa 145

XII – possibilitem a utilização de gravadores, projetores, com-putadores, máquinas fotográficas, e outros recursos tecnológi-cos e midiáticos.

(BRASIL, 2013, p.99)

Esta proposta de currículo e modo de abordagem pedagógica a

ser utilizado na educação infantil está em perfeita consonância com o

que vimos descrevendo até este momento sobre a educação musical,

sobre a música como recreação na educação infantil e sobre a educa-

ção através da música.

De forma mais específica, no Referencial Curricular Nacional

para a Educação Infantil (brasil, 1998, p. 55), é proposto que crianças

de zero a três anos exercitem o ouvir, o perceber e o discriminar even-

tos sonoros, fontes sonoras e produções musicais diversas e vivenciem

a música por meio de brincadeiras, realizando imitações, invenções e

reproduções. De quatro anos em diante, além de aprofundar e ampliar

os objetivos da fase anterior (zero a três anos), as crianças devem: explo-

rar e identificar elementos da música para se expressar, interagir com

os outros e ampliar seu conhecimento do mundo; e, perceber e expres-

sar sensações, sentimentos e pensamentos por meio de improvisações,

composições e interpretações musicais.

Conforme argumentamos anteriormente, as crianças na educa-

ção infantil devem ser estimuladas a participar ativamente da músi-

ca tanto na escuta de músicas de diversos estilos, gêneros, períodos e

culturas como explorando o fazer música. Com bebês, por exemplo,

é muito útil estimular os movimentos de produção sonora que sejam

adequados à sua capacidade motora e cognitiva, tais como o bater, o

chacoalhar e o raspar. À medida que a criança vai crescendo e ganhan-

do maior controle motor, outros movimentos como o pinçar cordas e

o soprar podem ser incluídos. Outro trabalho importante a ser reali-

zado com bebês é de estimular sua ação motora para realizar o som,

por exemplo, o professor coloca uma música gravada (ou canta uma

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Betania Libanio Dantas de Araujo • Érica Aparecida Garrutti de Lourenço146

canção) e para a música subitamente (e para também seu movimen-

to, como numa brincadeira de “estátua”). O professor então aguarda

a criança fazer algum movimento com a cabeça, com as mãos, com

a perna ou com qualquer parte do corpo para retornar a música. Os

bebês acima de seis meses apreciam muito este tipo de atividade lúdica

e, enquanto brincam, estão aprendendo que uma ação motora dispara

a música (e o movimento do professor). Este tipo de atividade também

pode ser feita em casa, por pais, irmãos mais velhos etc.

Crianças entre um e três anos, por sua vez, já estão aprendendo

ou já desenvolveram o andar, a mover o corpo para cima e para baixo,

o pegar objetos e a atirá-los etc. Estes movimentos podem ser incorpora-

dos no fazer musical de vários modos: podemos cantar música que em

determinados momentos solicitem estes movimentos, podemos dançar

realizando tais gestos, podemos sonorizar (improvisando vocalmente ou

com instrumentos) os movimentos e gestos que a criança executa, dentre

tantas outras possibilidades. Deste modo, as crianças irão interagir com

o adulto em um fazer musical prazeroso que lhe permitirá explorar os

elementos sonoros de forma lúdica ao mesmo tempo em que favorece a

relação e o vínculo entre esta criança e o adulto com quem brinca mu-

sicalmente. As atividades musicais devem ser relativamente curtas (não

mais do que alguns poucos minutos) com repetições para que a criança

desenvolva um senso de previsibilidade, mas, ao mesmo tempo, com

algumas mudanças para sempre incluir o novo, o inusitado, o diferente,

dando abertura para novas experiências e novos modos de brincar.

Com o desenvolvimento e barateamento de recursos tecnológi-

cos, como os smartphones, aliado ao fato de muitos pais terem cada vez

menos tempo e energia para ficar com seus bebês, podemos observar

que as crianças ficam vivenciando sempre práticas de repetições do

mesmo: assistem no celular, na TV ou em seus tablets sempre as mes-

mas gravações (que não variam) e fazem isso sem interagir com outras

pessoas. Deste modo, perdem-se muitas oportunidades de estimulação

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Clareira luminosa 147

para o desenvolvimento social, mas também cognitivo, motor e afeti-

vo. Logicamente pais e professores podem utilizar tais gravações em

áudio e /ou vídeo, porém devem tentar, o máximo possível, não deixar

a criança assistir estas gravações sozinha, interagindo com ela a partir

do conteúdo destas gravações por meio de cantar, palmear, dançar ou

qualquer outra atividade.

Ressaltamos aqui o papel da interação do adulto com a criança.

Mais do que colocar música para a criança ouvir ou brincar, o adul-

to deve buscar interagir musicalmente com a criança, tornado o fa-

zer musical uma experiência compartilhada. O adulto, então, servirá

como estimulador da atividade, como propositor de novos modos de

fazer música e de modelo do que pode ser feito.6

Para a educadora musical Betania Parizzi (2015, p. 61),

A criança não é capaz de imitar tudo o que vê, ela só imita aquilo que faz parte de sua capacidade intelectual naquele mo-mento. Quando incentivada e amparada tem mais possibilida-des de aprender e se desenvolver. Ao imitar a ação do adulto, ela consegue recombinar e transformar suas experiências, de-flagrando novos processos criativos. [...] É importante enfatizar que o que a criança faz incialmente com a ajuda de um adulto, ela será capaz de realizar sozinha em etapas posteriores de seu desenvolvimento.

Outro fator importante a ser considerado é que o adulto (pai, pro-

fessor etc.) deve buscar aceitar, validar e incorporar as proposições mu-

sicais feitas pelas crianças ao invés de somente querer que elas repitam

o que ele acabou de produzir. Um ensino de música congruente com

esta perspectiva estará mais próximo de uma abordagem não etnocên-

trica, onde as buscas, as experimentações, as construções que a criança

realiza serão incentivadas e valorizadas, ao mesmo tempo em que ou-

tras possibilidades de fazer música são aceitas e incorporadas.

6 Poderíamos, aqui, pensar no conceito de zona de desenvolvimento proxi-mal, de Vygotsky.

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Betania Libanio Dantas de Araujo • Érica Aparecida Garrutti de Lourenço148

Crianças entre quatro e seis anos, por sua vez, já possuem habi-

lidades motoras e cognitivas mais desenvolvidas de modo que possam

ser expostas a uma maior variedade de estímulos juntamente com a

exploração cada vez mais ampla e rebuscada de novas formas de se

expressar. Se for adequado ao método educacional que estiver sendo

seguido, o adulto poderá enfatizar elementos da música de modo a

sistematizar percepções e fazeres de modo a, num momento futuro,

incluir conceitos como pulsação, andamento, centro tonal etc. Pode

ser dada continuidade a um trabalho de apreciação musical iniciado

em fases anteriores aliado à exploração dos materiais sonoros, ativida-

des de cantar e tocar nos instrumentos músicas da cultura ou músicas

compostas ou improvisadas pelas próprias crianças etc.7

Considerações Finais

A proposta básica que queremos trazer para o modo de abordar

a música na educação infantil é a de que ao invés de trazer músicas

prontas, quer seja no processo de apresentar músicas para as crianças

e incluir as crianças em práticas musicais sociais, quer seja no ensino

de música sistematizado, poderíamos estimular as crianças a vivenciar

a “música” de modo mais aberto, sem necessariamente impor um tipo

de estruturação musical que formate e restrinja suas possibilidades de

expressão musical.

Assim entendida, “música” pode encerrar tanto a enorme gama de “músicas” que os membros de diferentes sociedades categorizam como sistemas simbólicos especiais e tipos de ação social, como um quadro inato específico de capacidades cognitivas e sensoriais que os seres humanos estão predispostos

7 Sugestões de atividades para as diversas faixas etárias da Educação Infan-til e modos de desenvolver os conteúdos musicais podem ser encontrados em diversos livros, artigos e materiais didáticos. Sugerimos a leitura dos livros e artigos listados nas Referências e dos livros, songbooks, CDs e DVDs listados no “Para Saber Mais” ao final deste capítulo.

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Clareira luminosa 149

a usar na comunicação e na produção de sentido do seu am-biente. A “música” é tanto um produto observável da ação hu-mana intencional como um modo básico de pensamento pelo qual toda ação pode ser constituída. (blacking, 2007, p.202)

Para concluir, gostaria de retomar uma questão importante apon-

tada por Herbert Read na década de 1940 (read, 2001) que ainda hoje

é presenciada e traz consequências graves para o ensino de música e,

se não cuidada adequadamente, para todo o processo de desenvolvi-

mento do aluno no sistema escolar: a não continuidade de abordagem

e método entre os diversos níveis de ensino.

Qualquer um que se aproxime do atual sistema educacional com a mente aberta, verá que uma de suas mais surpreen-dentes anomalias é o que só pode ser descrito como a divisão do corpo docente “em castas”. O abismo entre o professor li-cenciado [em Arte] e o não-licenciado [professor generalista], entre a escola elementar e a escola secundária, é profundo e intransponível. E sua consequência é uma desastrosa cisão na uniformidade educacional do desenvolvimento [...]” (read, 2001, p.261-262)

Esse “abismo” pode ser observado, por exemplo, na passagem da

educação infantil para o ensino fundamental quando a criança deixa

de ter o processo de ensino baseado no brincar, que inclui uma liber-

dade maior de uso do corpo e do espaço físico, para uma abordagem

em que se exige disciplina, autocontrole do impulso motor (para que

a criança fique sentada na carteira e focada completamente na tarefa

durante a atividade pedagógica), diminuição da relação aluno-aluno

para uma quase que exclusiva relação aluno-professor, dentre outras.

O modo de abordagem dos conteúdos também muitas vezes passa por

uma mudança radical no qual muitas vezes o trabalho integrado en-

tre os vários campos do saber passa a ser segmentado. E, caminhando

ainda mais no percurso escolar, chegará o momento em que haverá

um professor específico especializado em cada disciplina ou área do

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Betania Libanio Dantas de Araujo • Érica Aparecida Garrutti de Lourenço150

conhecimento. É importante ressaltar que o problema não reside em

haver estas mudanças no formato e modo de funcionamento escolar,

mas o fato das mudanças acontecerem de forma muito abrupta, sem

preparar as crianças e jovens para as novas fases.

Já em relação à formação do professor da educação infantil, tanto

aquele que atua com educação musical, como o que atua com educação

através da música e mesmo para aquele que atua com música como re-

creação na escola, faz-se necessário uma formação ao mesmo tempo pe-

dagógica e musical. É comum ouvirmos que o professor “generalista”,8

usualmente graduado em Pedagogia ou em Curso Normal Superior, na

maior parte das vezes não teve uma formação musical sistematizada e

consistente e se sente inapto a trabalhar com música nos moldes descri-

tos neste texto. No entanto, consideramos que esta eventual lacuna possa

ser preenchida por meio de educação continuada.

Segundo as educadoras musicais Patrícia Furst Santiago e Betânia

Parizzi (2016), é importante que os professores generalistas (que minis-

tram os vários conteúdos e as várias disciplinas na educação infantil e nas

sérias iniciais do ensino fundamental) também possuam uma formação

musical que lhes permita trabalhar com a música uma vez que, na atual

situação de nosso país, não é possível contar apenas com os professores

licenciados em música para atuar em toda a educação básica.

Neste sentido, desde 2011, é realizado na Universidade Federal

de Minas Gerais um curso de capacitação em música para professores

de educação infantil e anos iniciais do ensino fundamental no qual os

professores estudam música (teoria e prática) e são instrumentaliza-

dos a trabalhar com música com seus alunos a partir de um processo

pautado na aprendizagem realizada através de vivências que integram

a ação corporal e o fazer musical, na aprendizagem colaborativa, que

incentiva a liberdade de expressão coletiva e individual, na ludicida-

8 Chamamos aqui de professor “generalista” o professor regente de sala que atua com os vários campos do conhecimento na educação infantil.

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Clareira luminosa 151

de, no aumento gradual, progressivo e contínuo de complexidade dos

conteúdos abordados, na transmissão oral do conhecimento musical e

ênfase na percepção auditiva, e, na elaboração de projetos de criação

musical. Este curso de musicalização e instrumentalização de profes-

sores generalistas está inserido em um projeto mais amplo que envolve

diversas ações, incluindo, também: favorecimento da formação de pro-

fessores especialistas (licenciados em música) voltados para o trabalho

na escola regular na educação básica; confecção de materiais pedagó-

gicos-musicais (destinado tanto aos licenciados em música como aos

professores generalistas); e, desenvolvimento de pesquisas sobre a for-

mação musical de alunos da escola regular e de professores licenciados

e generalistas. (parizzi et al, 2010; santiago; parizzi, 2016).

Isto não quer dizer que os professores generalistas possam substi-

tuir completamente e definitivamente os professores licenciados em

música na educação infantil ou em qualquer outro nível da educação

básica. Pelo contrário, os professores com formações diferenciadas e

aptidões diferenciadas devem dialogar para que cada um possa atuar de

acordo com as necessidades do sistema escolar e, principalmente, de

acordo com suas competências, para que haja uma ampliação da oferta

de trabalhos bem realizados de música na escola, quer seja sobre a óti-

ca da educação musical propriamente dita, da música como recreação

na educação ou mesmo da educação através da música.

Tanto na educação infantil como nos outros níveis de ensino,

há espaço para que os professores de música e os generalistas possam

desenvolver trabalhos complementares, por exemplo, os professores

de música realizando o que denominamos neste artigo como educa-

ção musical, e os professores generalistas desenvolvendo trabalhos

que poderiam ser classificados como educação através da música e

com música como recreação na escola. Somente assim, com diálogo

e trabalho em equipe, teremos como transpor e superar o “abismo”

mencionado por Read.

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Betania Libanio Dantas de Araujo • Érica Aparecida Garrutti de Lourenço152

Para Saber Mais

CDs e DVDs

Apresentamos algumas sugestões de CDs e DVDs com mate-

riais úteis para o trabalho com música e para o ensino de música na

Educação Infantil.

CDs, DVDS e songbooks do Selo Palavra Cantada (Sandra Peres

e PauloTatit), tais como: “Canções de Ninar”, “Canções de Brincar”,

“Carnaval Palavra Cantada”, “Pé com Pé”, a coleção “Brincadeirinhas

Musicais” etc.

www.palavracantada.com.br

CDs, DVDs e Livros de Márcio Coelho e Ana Favaretto, tais

como: “Vida Colorida”, “Curuminzada”, “Eu não gosto de cebola”, os

livros da coleção “Batuque Batuta” etc.

www.marciocoelhoeanafavaretto.com.br/

CDs de artistas brasileiros da MPB dedicados ao público infan-

til como: Toquinho, Vinícius de Morais, Chico Buarque e Adriana

Calcanhoto, dentre outros: “Casa de Brinquedos”, “Arca de Noé”,

“Adriana Partimpim”, “Os Saltimbancos”, “Toquinho no Mundo da

Criança” etc.

CDs de outros grupos e artistas dedicados ao público infantil,

com destaque para Duo Rodapião, Bia Bedran, Aline Barros, Barba-

tuques, Pequeno Cidadão, Hélio Ziskind, Antonio José Madureira,

entre vários outros.

CDs de música erudita: diversos, com destaque para as músicas

de Heitor Villa Lobos, Wolfgang Amadeus Mozart, Johann Sebastian

Bach, Georg Friedrich Händel, Claude Debussy, Peter I. Tchaikovsky,

C. Saint-Saëns e Joseph Haydn que, pelas estruturas composicionais e

orquestrações, são mais acessíveis para as crianças pequenas.

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Clareira luminosa 153

Livros e Songbooks

Além dos livros e artigos listados nas Referências deste capítulo,

sugerimos a leitura dos seguintes livros e songbooks, dentre os muitos

disponíveis em língua portuguesa:SAMPAIO, R.T. Educação Musical para Crianças Pequenas. Ma-

terial Didático do Curso de Aperfeiçoamento em Educação Infantil, Infâncias e Arte. São Paulo: UNIFESP/COMFOR, 2015(b). p.37-48. Disponível em <http://repositorio.unifesp.br/handle/11600/39159>. Acesso em 16 fev 2017.

BRITO, T. Música na Educação Infantil. São Paulo: Peirópolis, 2003.

CHAN, T. Dos pés à cabeça. São Paulo: Vitale, 1997.CHAN, T.; CRUZ, T. Pirralhada: Jogos e Canções para a Educação

Infantil. São Paulo: Via Cultural, 2002.FRANÇA, C.C. Poemas Musicais. Belo Horizonte: Editora UFMG,

2003.FRANÇA, C.C. POPOFF, Y. Festa Mestiça: O Congado na sala de

aula. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.KATER, C. Erumavez…uma pessoa que ouvia muito bem. São Pau-

lo: Musa Editora, 2011. MARQUES, E. Colherim: ritmos brasileiros na dança percussiva das

colheres. São Paulo: Peirópolis, 2013.MATEIRO, T.; ILARI, B (Eds.) Pedagogias Brasileiras em Educação

Musical. Curitiba: Intersaberes, 2016.MIRANDA, C.; JUSTUS, L. Desvendando a orquestra. São Paulo:

Formato Editorial, 2012.MOURA, I.C.; BOSCARDIN, M.T.T.; ZAGONEL, B. Musicali-

zando Crianças: teoria e prática da educação musical. Curitiba: Ibpex, 2011.

PAREJO, E. Estorinhas para ouvir: aprendendo a escutar música. São Paulo: Vitale, 2007.

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Betania Libanio Dantas de Araujo • Érica Aparecida Garrutti de Lourenço154

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Maria Cecilia Sanches1

Este texto aborda a questão do corpo e do movimento na educa-

ção infantil problematizando, inicialmente, qual o pensamento tradi-

cionalmente disseminado na escola a esse respeito. Em seguida passa

a discutir a gênese do movimento a partir das dimensões orgânicas e

sociais, recorrendo aos estudos psicogenéticos de Henri Wallon (1968),

1 Doutora e Mestre em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), Graduada em Pedagogia pela PUC/SP. Docente do Departamento de Educação, da Universidade Federal de São Paulo (Uni-fesp), Campus Guarulhos. E-mail: [email protected]

VI. O corpo e o movimento na Educação Infantil:

problematizações e desafios

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Betania Libanio Dantas de Araujo • Érica Aparecida Garrutti de Lourenço160

que salienta o papel da cultura nesse processo e destaca a alternância

entre as funções afetivas e cognitivas na constituição da pessoa huma-

na. O diálogo com Gallardo (2005) permite algumas sugestões de ati-

vidades com as crianças, mas é na interlocução com a área de Dança

Laban (1978), Marques (2012) e Rengel (2003) que encontra referên-

cias para promover uma formação que não despreze o repertório de

movimentos com os quais a criança chega à escola, mas potencialize

suas referências e seus recursos motores, fortalecendo a formação de

sua subjetividade e consciência do mundo.

Qual o pensamento de educadoresa respeito do corpo e movimento na escola?

Vamos pensar quem sempre teve autoridade para falar sobre corpo

e movimento no âmbito escolar. Historicamente essas questões foram

atribuídas quase que exclusivamente à área da Educação Física, por

meio de seus professores. Por isso parece ser interessante compreender

com qual pensamento essa área foi sendo constituída dentro da escola.

No final do século XIX, com a crescente expansão industrial e os

movimentos migratórios, a Educação Física adentra a escola sob forte

influência dos conhecimentos advindos da Biologia e da Medicina,

marcados por uma visão higienista e da eugenia. No contexto do Es-

tado Novo (anos de 1930) de preparação do homem moderno e sau-

dável, essa área do conhecimento é atraída pelo paradigma da aptidão

física e dos esportes.

Quando a Educação Física recorre a bases científicas para ob-

ter maior sustentação epistemológica, o desenvolvimento motor ga-

nha força sob a perspectiva da Psicologia do Desenvolvimento.2 A

2 A forte influência da Psicologia é explicitada na organização interna da es-cola moderna, que busca aproximações com as etapas do desenvolvimento propostas por essa área de conhecimento. A escola se orienta pelo desen-volvimento da criança e,ao mesmo tempo,o dirige (OLIVEIRA, 1993).

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Clareira luminosa 161

educação do movimento passa a ser a forma privilegiada de olhar o

movimento humano.

Figura 14. Ginástica para meninas: aula de educação física escolar em Porto Alegre na década de 1930 (acervo Ceme)

Esses olhares subsidiaram – e ainda subsidiam – a Educação Físi-

ca escolar em uma ótica reprodutora, ou seja, a escola passou a repro-

duzir, em seu interior, práticas existentes fora dela: esportes, ginástica,

movimentos militarizados, testes ergométricos. “Esse cenário no qual

ciências de aferição e estratégias higienistas se misturam no trato da

criança, será constante desde a chegada da República e perdurará,

sofisticando-se, na era Vargas”. (freitas, 2002, p. 352)

Quando pergunto aos meus alunos do curso de Pedagogia quais

as práticas escolares da qual se lembram, relacionadas ao movimento

do corpo, a imensa maioria elenca uma série delas, todas ligadas às

aulas de Educação Física. Os destaques são para práticas esportivas,

em geral, queimada para as meninas e futebol para os meninos. A bola

surge como o instrumento mais usado, num único espaço: a quadra es-

portiva. Ao serem instigados, conseguem perceber o caráter excludente

desse componente escolar, uma vez que muitas crianças podiam ser

dispensadas das aulas quando não se adequavam ao perfil exigido, seja

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Betania Libanio Dantas de Araujo • Érica Aparecida Garrutti de Lourenço162

por problemas de saúde, questões de limitação física ou julgadas como

“inaptas” para a atividade.

Outras lembranças referem-se a ginástica; movimentos orien-

tados pela letra de uma música (e, portanto, bastante empobrecidos,

como veremos mais adiante); ensaios para a quadrilha da festa junina;

brincadeiras de roda; exaustivos ensaios para apresentações em datas

comemorativas ou às famílias nos finais de ano.

Vamos analisar qual a lógica que sustenta essa prática, cuja visão

foi historicamente compartilhada dentro do contexto no qual a escola

se institucionalizou:

O controle do educador sobre a criança e suas atividades;

A submissão da criança aos comandos do professor;

Descrença no potencial da criança que, portanto, precisa ser comandada;

Não promoção de autonomia;

Necessidade de adestramento;

Crença na existência de movimentos certos e errados; e

Desvalorização do repertório de movimentação com o qual se chega à instituição.

Sob tal ótica, a criança é vista como um ser “vazio”, que chega

à escola desprovida de uma movimentação adequada, que precisa ser

ensinada a comportar-se corretamente, aprendendo a usar a bola com

destreza, comer elegantemente, sentar-se adequadamente, formar filas,

obedecer a comandos. Seus desejos e vontades devem ser sufocados, pois

sua individualidade só é valorizada se servir como modelo aos demais.

Para aprofundar um pouco mais a reflexão a respeito do pensa-

mento de educadores sobre o movimento na escola, vejamos os dados

trazidos por uma pesquisa feita com 20 professores de escolas públicas

no município de São Paulo, formados em Educação Física nas décadas

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Clareira luminosa 163

de 1970 e 1980. Daolio (2007, p. 93) analisa as representações desses

docentes e o papel que esse componente ocupa na instituição.

Seus dados concluem que a:

prática pedagógica, de maneira geral, ainda se caracteriza pela busca de um tipo de treinamento ideal para todo um grupo, pelo desejo de uma classe homogênea de alunos, pelo desta-que da melhoria da aptidão física como objetivo de ensino. Em outros termos, todos os alunos devem correr o mesmo número de voltas, fazer tantas repetições do mesmo exercício, saltar a mesma metragem. Vemos professores realizando testes físicos no início e no final de um período letivo para verificar o pro-gresso dos alunos em termos de força, velocidade, resistência e flexibilidade corporais.

Nesse sentido os profissionais da área entendem o corpo dos alu-

nos como uma matéria prima que precisa ser lapidada, ou seja, um

corpo natural que deve ser conformado por meio de regras e técnicas,

de modo a formar o cidadão. Esses profissionais atuam com um padrão

de movimento que desconsidera o que as crianças trazem de casa e

de seu convívio social. A construção dessa representação é histórica,

segundo o autor, por conta dos significados socioculturais com os quais

o conceito de corpo, ou melhor, de movimento humano, se constituiu.

Nessa direção a escola silencia vozes, impõe significados, transmi-

te uma visão de mundo única, exclui os que não se adaptam ao modelo

imposto, fomenta relações de desigualdade e conformistas, pois visa

“unicamente o desenvolvimento físico de todos os alunos da mesma

forma” (daolio, 2007, p. 94).

E os professores que atuam na educação infantil e anos iniciais

do ensino fundamental e, que, portanto, formam crianças muito pe-

quenas, como compreendem o corpo e o movimento? Minha larga

experiência em escolas demonstra que a grande maioria dos educado-

res desse segmento da educação básica não se sente muito a vontade

quando o foco recai sobre esse tema. Muitos afirmam não terem forma-

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Betania Libanio Dantas de Araujo • Érica Aparecida Garrutti de Lourenço164

ção na área e recorrem a seu repertório pessoal, baseado em músicas e

brincadeiras de sua infância, buscam alternativas reproduzindo outros

modelos já prontos. As festas de final de ano são exemplos disso: as

crianças reproduzem os gestos dos educadores, ou movimentos ensaia-

dos exaustivamente.

Nesse cenário temos, por um lado, as crianças naturalmente

guiadas por uma impulsividade motora até os seis ou sete anos. Por

outro, a concepção de muitos docentes de que o movimento serve

apenas para gastar energia ou para desenvolver músculos. Fora isso

é sinal de bagunça, de falta de atenção e, portanto, deve ser evita-

do na escola por meio de repreensões e advertências. Nesse cenário,

inevitavelmente a interação entre esses dois grupos será marcada por

conflitos, como aponta o estudo feito por Galvão (1996), que sugere

uma revisão sobre a concepção de movimento infantil, bem como do

espaço dado a ele na escola.

Seguindo essa sugestão, vejamos, no item a seguir, a concepção

de movimento à luz da teoria psicogenética de Henri Wallon, para

compreendermos mais de perto as necessidades e possibilidades das

crianças e, sobretudo, para elucidar uma questão importante: nossa

movimentação, isto é, nossas atitudes e gestos são construídos desde

o nascimento e ao longo de nossa vida, a partir do grupo social em

que convivemos. Isso quer dizer que as crianças (assim como seus

professores) já chegam à escola com um repertório advindo de seu

grupo familiar, do bairro em que moram, da cidade onde vivem,

que continuará a ser construído com as relações tecidas na esco-

la. Diferentemente do que concebem muitos professores, a criança

não é uma folha em branco a ser preenchida ou uma matéria prima

a ser lapidada.

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Clareira luminosa 165

E como se forma esse repertório de movimentos com os quais as crianças chegam à escola?

Como o educador pode explorá-lo?

Ele se forma a partir do desenvolvimento fisiológico de cada ser,

em interação com seu ambiente. Possuímos uma lógica biológica orga-

nizada, com uma evolução prescrita em um calendário maturativo que

prevê o aparecimento de funções naturais, cada qual em seu momento

próprio, controladas por processos neurológicos e hormonais, e abertas

às influências do meio ambiente. Essa abertura não é ilimitada, veja

bem, mas é uma abertura às funções de adaptação social. A fala é o

exemplo mais comum: uma função que surge a partir do desenvolvi-

mento biológico, mas que precisa essencialmente do meio social para

se concretizar. A criança fala a linguagem característica de seu meio.

Com o movimento não é diferente.

No Brasil, quando se diz “eu”, apontamos para o coração. No Japão,

ao dizer a mesma palavra, as pessoas apontam para o nariz! Esse gesto

foi uma invenção daquele grupo específico e, uma criança que conviva

nesse grupo, muito provavelmente, vai aprender esse movimento. O ges-

to acaba sendo “naturalizado”. No Japão as pessoas se curvam ao dizer

“bom dia”, tiram os sapatos para adentrar nas casas, usam dois “palitos”

para comer. Por sua vez, no Brasil, uma pequena movimentação com a

cabeça pode acompanhar o cumprimento pela manhã, os sapatos po-

dem permanecem nos pés em qualquer ambiente e usam-se talheres

para as refeições. Obviamente toda a movimentação que acompanha

essas situações é aprendida em cada grupo social. Desde o nascimento

a movimentação, de estritamente orgânica, começa a ter, cada vez mais,

o meio social como referência para ir sendo constituída. Nosso corpo

aprende uma linguagem de gestuais própria de seu meio social e, por

meio dela, podemos identificar a procedência das pessoas. Isso nos leva

a afirmar que nos constituímos no meio social.

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Segundo Wallon (1968) a mãe já percebe a movimentação do

feto em seu ventre por volta dos quatro meses. Após o nascimento o

bebê possui um movimento mais ligado a espasmos, ainda muito indis-

criminado, com atividades musculares ainda mal delimitadas e só aos

poucos, nos meses posteriores, começa a ocorrer um ajuste sensório-

-motor. Seus sentidos vão sendo ajustados:

Por exemplo, passando a sua mão no seu campo visual, chega a altura em que a imobiliza diante dos olhos, afasta-a e volta apro-ximá-la, e depois aprende a agitá-la de diferentes modos, ávida de conhecer os seus aspectos e deslocações... Este ajustamento preciso do gesto ao seu efeito... O olho e a mão passarão a estar estreitamente associados para a exploração e manejo das coisas ambientes. Mas o exemplo mais evidente é sem dúvida o das séries auditivas e vocais que a criancinha passa longos momentos a constituir com os seus gorjeios. (wallon, 1968, p. 167).

Inicialmente a criança tem bastante dificuldade em adaptar seus

gestos às diferentes e diversas circunstâncias de seu ambiente. Sua mo-

vimentação é mais global e dificilmente consegue se libertar do grupo

muscular a que pertence, pois esse controle só será adquirido com sua

evolução fisiológica. Sua percepção, aos poucos, vai sendo ajustada ao

ambiente: é dele que partem os estímulos que asseguram a regulação

fisiológica do movimento. E o que a criança encontra nessa ambiência

na qual se encontra mergulhada? Encontra pessoas e objetos. Pessoas

que já têm um comportamento muito peculiar, ligado ao grupo no

qual convivem e partilham de uma linguagem própria, uma forma de

sentar, de preparar os alimentos, de se vestir etc.

Nesse ambiente são essas pessoas que oferecem ao bebê os objetos

próprios de seu meio: um determinado tipo de brinquedo, uma deter-

minada comida preparada de tal forma. Serão elas que contarão, para a

criança, histórias e apresentarão canções aprendidas em seu meio social.

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Clareira luminosa 167

O documentário francês Babies3 ilustra muito bem isso, ao apre-

sentar o primeiro ano de vida de quatro bebês em quatro diferentes

culturas - Namíbia, Mongólia, Japão e Estados Unidos. Na relação

entre eles e suas mães vemos cenas semelhantes apresentadas em con-

textos diferentes: os cuidados da mãe na hora do banho, os brinquedos

oferecidos aos pequenos, as roupas que usam, enfim, a forma como

interagem com o ambiente.

A respeito da ambiência social Wallon destaca que a criança sente

uma poderosa atração pelo adulto. Nesse sentido, a imitação é aponta-

da como um recurso importante no desenvolvimento infantil:

Nas suas imitações espontâneas, a criança não possui uma imagem abstracta ou objetiva do modelo. Longe de saber dis-tinguir-se dele, começa por se lhe unir numa espécie de intui-ção mimética. Só imita as pessoas que exercem sobre ela uma profunda atracção os as acções que a cativaram. Na base de suas imitações está o amor, a admiração e também a rivalidade (wallon, 1968, p. 174).

E sobre a ambiência física o autor enfatiza que os objetos que

mais agradam a criança são aqueles cujo significado mais depende de

sua atividade. Rasgar uma folha de papel é muito mais interessante do

que o presente que ela envolve. Movimento, percepção e objeto vão

sendo constituídos de modo imbricado.

Esse autor evidencia, por meio de sua teoria, que sujeito e objeto

são construídos concomitantemente. Dependendo da idade e dos recur-

sos físicos que a criança dispõe, um tipo particular de interação é estabe-

lecido entre ela e seu meio, pois é dele, como vimos, que saem os recur-

sos para seu desenvolvimento. Dentre suas possibilidades e necessidades,

a criança escolhe em que aplicar sua conduta: sobre os aspectos físicos

do ambiente ou sobre as pessoas à sua volta, que, juntamente com os co-

nhecimentos próprios de cada cultura, formam o contexto de sua ação.

3 Babies: França, 2010. Direção Thomas Balmes.

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Betania Libanio Dantas de Araujo • Érica Aparecida Garrutti de Lourenço168

De uma forma mais didática, recorrendo aos estudos de Wallon

(1968) vamos agrupar as crianças segundo suas potencialidades físicas

e focos de interesse sobre o mundo físico:

Quadro 1. Faixa etária, recursos físicos e focos de interesse.

Faixa etária Recursos físicos Foco de inte-

resse

Conjunto

funcional em

evidência

Até um

ano

Extrema depen-

dência do adulto

para atender suas

necessidades

As pessoas e o

espaço de seu

próprio corpo

Afetividade

(construção do

eu e da subjeti-

vidade)

Entre um e

dois anos

A fala e o andar

independente

Coisas, objetos

próximos, pois

já tem recursos

para explorar

o espaço a sua

volta

Cognição

(construção do

mundo e da

objetividade)

Entre três e

cinco anos

Imitação / crise

de personalidade

Oposição e

Imitação de

pessoas/ gestos

com simboli-

zação

Afetividade

(construção do

eu e da subjeti-

vidade)

Seis anos

Em diante

Disciplinas men-

tais promovem

maior controle do

próprio compor-

tamento

Mundo

objetivo e a

necessidade de

categorizá-lo:

idade escolar

Cognição

(construção do

mundo e da

objetividade)

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Clareira luminosa 169

O principal objetivo do trabalho com o corpo e o movimentedu-

cação infantil é promover a autonomia e a independência das crianças

com relação aos adultos, por meio de atividades desencadeadas por

ações motoras. Assim, amparados por Wallon e pelos conhecimentos

de Gallardo (2005), vejamos didaticamente algumas propostas de ativi-

dades para cada idade apresentada no quadro 1.

Até o primeiro ano de vida o bebê é ainda bastante dependente

do adulto. Sem o recurso da fala e do andar sobre dois pés, todos os

seus desejos precisam de outra pessoa para ser atendidos e são elas que

oferecem o contorno de suas ações, sendo sua maior referência. Seu

maior interesse está nas pessoas a sua volta e em seu próprio corpo.

Até os quatro meses, o recurso para se comunicar com o mun-

do exterior é pelo movimento reflexo. O educador, portanto, pode se

concentrar em ações de aconchego: canções de ninar; acompanhar o

ritmo do canto com o embalar; usar brinquedos coloridos e pouco ba-

rulhentos; dialogar muito com o bebê, respondendo a seus apelos. Um

de seus objetivos é promover experiências que permitam a transição do

movimento reflexo para o movimento voluntário.

Entre quatro e sete meses os primeiros movimentos voluntários

surgem e, paulatinamente, a criança passa a dominar ações que podem

ser exploradas pelo educador: empurrar, puxar, carregar e transportar,

pois é esperado que a criança já consiga rastejar, sentar e engatinhar.

Já pode apreender um copo, uma colher, experimentar diferentes

alimentos, gostos, texturas, cores, formas, odores. As ações devem ter

como foco estimular o engatinhar independente e a posição sentada,

assim como a coordenação motora fina: olho-mão, ouvido-olhar etc.

O educador deve sempre estar próximo às crianças, no chão, na areia,

pois ele é sua maior referência.

Entre sete e doze meses o bebê já possui maior controle da coor-

denação motora fina dos membros superiores e domínio parcial dos

membros inferiores, adquirindo mais equilíbrio. Nesse sentido é inte-

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ressante criar um ambiente lúdico para o engatinhar e chegar à posição

em pé com apoio, assim como estimular sua coordenação motora.

Até o primeiro ano de vida o ajuste sensório motor permitirá a

discriminação de sons, de objetos, de movimentos. Entre outras ações,

contar histórias com entonações diversas: aconchego, medo, alegria

etc, cantar músicas ritmadas, deixar o bebê explorar o espaço permitin-

do o ajuste da percepção.

“Mas o andar e depois a linguagem, que se desenvolvem ao longo

do segundo ano, vêm ainda alterar o equilíbrio do comportamento”

(wallon, 1968, p. 229). A criança empilha objetos, os empurra, abre e

fecha armários, entra em caixas e sacos, concentrando-se em explorar

o mundo a sua volta.

Entre o primeiro e o segundo ano a criança já apresenta o domínio

do andar e alguns movimentos fundamentais rudimentares como subir

e descer, saltar e cair, lançar e receber, que devem ser cada vez mais

incentivados no decorrer da educação infantil. O maior objetivo aqui é

promover o andar independente, já que apresenta menor dependência

em relação ao adulto. As cirandas podem ser exploradas, as histórias,

o faz de conta, assim como o ritmo marcado das músicas por meio do

próprio corpo e dos instrumentos. A criança já pode ser incentivada a

lavar as mãos sozinha, brincar com água, andar descalça, dependurar-se,

interagindo em um rico ambiente organizado especialmente para ela.

“Aos três anos começa a crise de oposição e depois a imitação,

que durará até os cinco” (wallon, 1968, p.229). Nessa etapa suas ações

se voltarão, novamente, para as relações interpessoais. Seu desenvol-

vimento psíquico já se mostra capaz de distinguir e selecionar objetos

segundo características de cor, forma, tamanho e sua percepção já se

torna mais abstrata.

Entre três e cinco anos a exploração de movimentos oferecerá

experiências para um maior controle corporal. Histórias contadas po-

dem ser dramatizadas: caracterizar as crianças com figurino, montar

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cenários; usar materiais para facilitar a compreensão do enredo tais

como lenços, saias, instrumentos musicais ou uso de sons produzidos

pela boca e pelo corpo; pode-se explorar ritmos de músicas do nosso

folclore; organizar objetos por cores, formas e tamanhos; ensinar brin-

cadeiras com regras simples.

À medida que conseguir um maior domínio do próprio corpo, por

volta dos quatro anos, poderá descobrir e diversificar seus movimentos

e habilidades. O principal recurso é, como sempre, a brincadeira, ago-

ra com a participação de várias crianças ao mesmo tempo.

Por volta dos cinco anos os pequenos já podem vivenciar ativida-

des de cooperação, responsabilidade, amizade, por meio de jogos com

regras prontos ou criados por elas próprias, com a ajuda do professor.

A estimulação da verbalização das histórias e situações é um elemento

importante para ajudar as crianças a contar e representar uma história

com começo, meio e fim. Devem ser incentivadas a se vestir sozinhas

e estão muito próximas de desenvolver com muita habilidade os mo-

vimentos fundamentais de lançar e receber, subir e descer, saltar e

cair, que podem ser combinados com movimentos cada vez mais com-

plexos como jogos e brincadeiras de seu meio social, jogos esportivos,

danças populares e folclóricas.

A partir dos seis anos, mais ou menos, anuncia-se o início da cha-

mada idade escolar, em que o interesse da criança vai se transferir do

eu para as coisas, numa passagem lenta e difícil.

Voltando ao Quadro 1 podemos observar que novos recursos físi-

cos permitem a alternância do foco das ações da criança sobre o meio,

que ora se concentra mais acentuadamente nas relações entre as pes-

soas próximas e na construção de sua personalidade, seu “eu”, ora se

concentra nas ações sobre o mundo das coisas físicas, na objetividade.

O desenrolar de seu comportamento alterna a dimensão cognitiva e

afetiva, o que não quer dizer que uma exclua a outra!

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Como promover uma formação escolar que não despreze, mas potencialize os recursos e o repertório próprio dos pequenos?

Vimos que a escola sempre deu muito valor – e ainda dá – à di-

mensão cognitiva em detrimento da afetividade. E Wallon nos ensi-

na que na educação infantil as crianças são basicamente guiadas pela

emoção! Assim, um grande alimento para sua formação pode ser bus-

cado na literatura e nas artes, áreas que lidam com o inexplicável, com

o imaginário, que tornam possível o impensável e que podem ser expe-

rimentadas por todos, sem distinção.

Vejamos como a área da Dança pode nos ajudar a responder a

questão posta acima. Sendo bem direcionada para a formação escolar

essa área pode promover a autoconfiança, a autonomia, a criatividade e

a compreensão do mundo sob outra ótica. Assim, proponho responder

essa questão com outra problematização. Como seria mais adequado o

trabalho com o corpo e o movimento na educação infantil: o educador

faz os gestos e seus alunos o imitam, reproduzindo seus movimentos

ou ele deve colocar uma música e deixar que as crianças se expressem

natural e livremente?

Vamos refletir, pensando em tudo o que vimos até aqui. Repro-

duzir os movimentos do professor (ou de qualquer outra pessoa) não

parece trazer grandes contribuições à formação das crianças. Embora a

imitação faça parte de seu desenvolvimento, como vimos anteriormen-

te, uma educação escolar não pode parar aí, ou seja, não há nada de

formativo em o professor colocar seus gestos no corpo da criança para

que seja reproduzido de modo passivo. Estaríamos desprezando todo

repertório e potencial de cada criança.

Por outro lado, achar que é possível fomentar a criatividade e

imaginação deixando que os movimentos surjam natural e esponta-

neamente, é um grande erro. Vimos anteriormente que nossa movi-

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mentação surge do ambiente no qual vivemos, a partir das relações

que tecemos nos grupos sociais dos quais cada um de nós pertence.

Nesse sentido não existem movimentos naturais ou espontâneos, mas

sim construídos e partilhados em sociedade. Nesse sentido, a resposta

mais coerente seria: o professor pode instigar a criatividade de seus alu-

nos promovendo ações guiadas pelo repertório que as crianças já têm,

para então ampliá-lo e aprofundá-lo.

No item anterior vimos que dependendo dos recursos do próprio

corpo e daquilo que é disposto em seu ambiente, muitas das ações da

criança ora têm foco no conhecimento de si, na construção de sua

subjetividade e afetividade, ora o foco recai sobre o conhecimento do

mundo objetivo que a cerca e a cognição é mais proeminente. Essas

duas construções ocorrem simultaneamente, como vimos. Com isso em

mente, podemos planejar ações pedagógicas que envolvam o corpo e o

movimento pensando na formação da criança sob essas duas vertentes.

Destaco que as sugestões a seguir decorrem das diferentes leituras

que fiz, das quais destaco a mais central, Laban (1978), e outras como

Rengel (2008) e Marques (2012) e também de um material que pro-

duzi (sanches, 2015).

1.Ações com foco no conhecimento de si:

Têm como objetivo levar a criança a conhecer e ter consciência

de seu próprio corpo, nomear suas partes, explorar os cinco sentidos,

ter noções de ritmo, explorar diferentes movimentos do corpo e seus li-

mites. A improvisação é um recurso muito frutífero nesse sentido, pois:

Libera a capacidade criadora e ajuda o ser humano a achar uma relação corporal com a totalidade da existência. Toda pes-soa possui um repertório de impressões sensitivas registradas e guardadas, que se encontra à disposição para novas experiên-cias e transformações. Nesse momento, a improvisação signi-fica a exteriorização das impressões exteriorizadas, numa ex-ploração espontânea, experimental e livre. (tadra, 2009, p.80).

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Nosso corpo faz tantos movimentos e é capaz de fazer muitos mais.

O educador pode explorar o seu corpo e o de suas crianças oferecendo a

elas um vocabulário corporal para que tenham mais recursos para se ex-

pressar e, afinal, se corpo e mente não se separam, desenvolver um voca-

bulário de movimentos, significa aprimorar um vocabulário intelectual!

O professor pode propor, por exemplo, que as crianças se movi-

mentem a partir de ações: expandir, encolher, cair, rastejar, dar cam-

balhotas, girar, esticar, dobrar, levantar, saltar, cair, ir para frente, para

trás, para as laterais, cambalear, etc. Os verbos indicam movimentos

que podem ser exploradas de diferentes formas. Não existe uma única

maneira saltar. Cada um pode criar o seu próprio movimento e mos-

trar aos demais: saltar com os pés juntos, com as pernas encolhidas, de

costas, de um jeito engraçado etc.

Figura 2. Andar, chutar, empurrar (acima); fechar, abrir, torcer (abai-xo). (Acervo da autora)

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Clareira luminosa 175

Diferentes verbos podem ser escolhidos para essa atividade. Po-

demos escolher ações para fazer com as crianças criando um faz de

conta. Por exemplo: meu corpo virou um sorvete, mas está um calor

tão grande que sinto meu corpo derreter. Vou colocá-lo na geladeira

para ele congelar... o dicionário pode ajudar a encontrar outras ações:

esticar, dobrar, torcer, girar etc. É possível usar antônimos também:

abrir/ fechar; levantar/ cair; aumentar/ diminuir; empurrar, puxar etc.

As crianças podem contribuir com sugestões e, juntamente com o edu-

cador elaborar um sequência coreográfica com diferentes ações. Por

exemplo: Esticar o corpo todo, encolher, expandir para os lados, balan-

çar para um lado e outro, contrair, derreter, rolar, sentar. Repetir essa

sequência várias vezes ao som de uma música, enquanto verbaliza cada

ação; adaptar a mesma sequência com outro ritmo musical.

Um mesmo movimento pode ser muito explorado. Por exemplo:

abrir. Como podemos fazer a ação de abrir usando apenas uma parte

do corpo, por exemplo, apenas com o ombro? E com o cotovelo? Cada

criança pode demonstrar o seu jeito de abrir. É um gesto muito pessoal,

se pensarmos bem. Agindo dessa forma o professor consegue orientar

um movimento que cada criança “criará” dependendo de seus pró-

prios recursos e evitando ter um “modelo” a ser copiado.

Os movimentos que fazemos diariamente podem ser desconstru-

ídos: andar, escovar os dentes, comer, beber, sentar, correr, andar de

ônibus, a cavalo ou de bicicleta etc. Seria possível fazer as mesmas

coisas de um jeito bem diferente?

Na verdade, o movimento do cotidiano é muito diferente do

movimento artístico. A forma como sentamos, como andamos, como

ligamos um controle remoto etc. acontece praticamente sem muita

consciência de nossa parte. Já no movimento artístico investimos muita

atenção e consciência. Ele deve buscar o novo, o diferente, o esquisito

e o corpo deve falar por si, sem o uso de uma linguagem verbal. Veja-

mos um exemplo: estou com muita sede. Abro uma porta e vejo um

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copo de água sobre uma mesa. Caminho até ele. Pego o copo e bebo,

satisfazendo minha sede. Cada uma dessas ações pode ser feita de

modo “natural”, em nosso cotidiano. Agora pense em fazer cada ação

com movimentos “artísticos”, bem diferentes, esquisitos e exagerados:

como demonstrar muita sede; abrir uma porta; ver o copo; caminhar

até ele; pegá-lo; beber; sentir satisfação.

Conversar sobre ações corporais que as crianças fazem em casa, as que seus pais, irmãos ou parentes fazem e depois listá-las na lousa pode ser um bom começo para que o cotidiano vire dança, para que ele seja ressignificado, (marques, 2012, p.91)

O educador pode organizar o espaço, colocar uma música (ou

não) e escolher uma ação rotineira como tema. Por exemplo, andar.

Vamos andar de outros jeitos? De costas, de lado, como um leão, uma

cobra, um robô, com passos largos, passos curtos, saltando, de mãos

dadas com um colega, com três colegas, como um velhinho, como

uma formiguinha etc.

Desse modo cada criança explora seu corpo, experimenta novas

formas e limites. Se pensarmos bem, nosso corpo usa apenas três for-

mas diariamente: andar, sentar e deitar. Que pobreza de movimentos

cotidianos nós temos! E aqui encontramos a relevância de um trabalho

com o corpo e o movimento na educação infantil: usar e abusar de

problematizações e desafios.

Essas atividades devem ser adaptadas a cada idade. Se as crian-

ças forem muito pequenas, os questionamentos são bem mais simples.

Caso sejam maiores, é possível propor movimentos mais complexos.

O grande pressuposto dessa perspectiva de trabalho é o seguinte:

não é o adulto quem faz o movimento para as crianças copiarem. Ele

apenas as orienta e propõe desafios: “Como anda um gigante? E um

anão? Agora vamos andar de um jeito bem esquisito? Muito bem! Ve-

jam como a Maria está fazendo! Olhe, o Pedro está usando apenas um

dos pés para caminhar! Nossa, me ensine, João, quero andar como um

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robô igual ao seu!” O educador deve aceitar sugestões das crianças para

incorporar à atividade.

2. Ações com foco no conhecimento do mundo

Têm como objetivo explorar o espaço no qual nossa movimenta-

ção ocorre e também explorar as relações sociais que podem ser estabe-

lecidas nesse mesmo espaço. Vejamos cada um desses objetivos:

2.1. Exploração do espaço: os locais em que a criança mais fre-

quenta na escola são a sala, o parque e o pátio. O professor pode plane-

jar ações tendo como objetivo deslocamentos em diferentes direções,

trajetórias e planos. Vejamos cada um deles:

2.1.1. Deslocamento em diferentes direções: para frente, para trás,

para cima, para baixo, para a esquerda, para a direita. O professor pode

sugerir as mesmas ações do item anterior, pedindo agora que seja acres-

centado o deslocamento em diferentes direções.

2.1.2. Trajetória: O deslocamento do corpo com movimentos

sobre diferentes percursos: O educador pode organizar a sala ou o

pátio com linhas desenhadas no chão ou usar materiais com texturas

diferentes para as crianças percorrerem diferentes trajetos como, por

exemplo, em linha horizontal, reta, curva, ondulada, inclinada, ver-

tical, quebrada ou espiral.

Figura 3. Exemplos de trajetórias no espaço.

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2.1.3. Planos em relação ao chão – plano alto: quando o corpo se

movimenta em pé, na ponta do pé, saltando ou mantendo os membros

superiores acima do pescoço. Plano médio: quando o corpo se movi-

menta abaixo do plano alto, com as pernas flexionadas, por exemplo.

Plano baixo: quando o corpo se movimenta no chão.

Figura 3. Plano médio (no alto à esquerda); Plano alto (à direita) e pla-no baixo (embaixo à esquerda). (Acervo da autora).

É possível criar coreografias com diferentes verbos, assim como

visto nas atividades de autoconhecimento, mas o educador vai adicio-

nando outros ingredientes: “fazer uma sequência de verbos usando ao

menos dois sentidos diferentes, usando dois planos diferentes”. Em res-

posta as crianças podem fazer, por exemplo: expandir, recolher, girar

e saltar indo para a esquerda, primeiramente, depois para a direita,

usando, alternadamente, o plano médio e alto.

2.2. Exploração das relações sociais: o corpo se movimenta e cria

relações com pessoas e objetos. Assim, o educador também pode pro-

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Clareira luminosa 179

por novos desafios para serem solucionados em duplas, trios e grupos.

Temos um vasto repertório cultural de danças, jogos e brincadeiras que

podem servir de referência.

O faz de conta é um recurso importante para a consolidação do

pensamento simbólico. Por meio dele a criança pode elaborar perso-

nagens e criar com recursos para vencer limites e enfrentar conflitos,

vivenciando experiências para além da vida real. Para realizar o faz

de conta, a criança lança mão de diferentes movimentos expressivos

que ampliam seu repertório corporal, pode se relacionar ludicamente

com seu próprio corpo, com o corpo de seus colegas e com espaço que

compartilham.

Como exemplo, histórias podem ser recontadas por movimentos

artísticos criados pelas crianças com a orientação do professor. É pos-

sível extrair sons do corpo para fazer a sonoplastia (pesquise sobre o

grupo Barbatuques na internet), as crianças podem construir o cenário

e figurino.

Vale destacar que um professor atento garantirá a experimenta-

ção das crianças em diferentes papéis no grupo - ora liderando, ora

sendo liderada, ora sendo quem conta a história, ora quem a reproduz

- evitando que fiquem sempre com o mesmo papel ou com o mesmo

colega, possibilitando uma participação ativa, produtiva e motivada.

O trabalho com o corpo e com o movimento, para ser eficaz, deve

passar pelo nosso corpo, ou seja, deve ser experimentado e inCOR-

POrado. E é justamente isso que este texto tentou apresentar quando

comparou a forma tradicional com novas formas de se pensar esse tra-

balho. Com poucas palavras podemos ilustrar as diferentes lógicas que

guiam o trabalho do professor e as atividades escolares.

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Quadro 2. Diferentes perspectivas para o trabalho escolar

Considerações Finais

Como vimos, nos constituímos no meio social e nossa linguagem

corporal se constitui a partir dele e dos recursos biológicos que são

conquistados desde muito cedo em nossa vida. A educação infantil não

pode desprezar os recursos com os quais as crianças chegam à escola,

mas sim potencializá-los segundo uma nova lógica, na qual o professor

é indispensável e de grande relevância. Ele é fundamental nesse pro-

cesso, pois é quem organizará as atividades a partir do conhecimento

que tem de seu grupo de crianças, de suas necessidades e potencialida-

des. Quanto menor for a criança, mais o professor deve estar atento às

demandas motoras próprias da idade e usar de diferentes recursos para

garantir uma formação de qualidade.

Uma sugestão para conhecer melhor o meio em que as crianças

vivem é observar as ações dos responsáveis por elas na hora da entrada

e saída da escola, saber como as famílias são compostas, no que traba-

lham, como vivem, fazer um levantamento das lembranças da infância

dos pais, como brincadeiras e músicas, conhecer as características do

entorno da escola, do bairro etc. para que seja possível compreender

os usos e costumes daquele determinado grupo, a característica de sua

gestualidade e postura.

A educação infantil deve trabalhar com a cultura patrimonial do

grupo familiar de modo integrado com as diferentes áreas de conheci-

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Clareira luminosa 181

mento propostas para esse segmento de ensino. É importantíssimo esse

trabalho conectado à cultura familiar de modo que o repertório pessoal

possa ser cada vez mais aprofundado e ampliado e que a criança se

aproprie e produza cultura.

É importante destacar a relevância do papel do professor sob essa

nova perspectiva: ele tem a voz de comando para dirigir, problemati-

zar, desafiar, orientar, organizar as crianças e conduzi-las por meio de

sons e imagens que elas mesmas inventam e, juntos, vão criando his-

tórias que aguçam a imaginação e se concretizam em movimentos. É

uma visão inclui todos, sem distinção, acredita no potencial da criança

e abre espaço para sua criatividade e imaginação.

Um trabalho como o que se propõe neste texto não consegue pre-

ver resultados, pois tudo depende de como cada grupo se organizará

para resolver os desafios propostos, a partir de seus recursos motores,

de suas referências de movimentos, das parcerias que fizer, da criativi-

dade e da improvisação. E nada disso pode ser definido a priori. Cada

criança é única, assim como cada agrupamento na educação infantil

apresenta uma configuração única e singular.

Para saber mais...

HASELBACH, B. Dança, improvisação e movimento: expressão cor-poral na educação física. Rio de Janeiro: Ao livro técnico. 1988.

Aborda o trabalho com improvisação na educação de modo prático, trazendo também exemplos de jogos para fazer com as crianças.

NISTA-PICCOLO, V. Corpo e movimento na educação infantil. São Paulo: Cortez. 2012.

É uma obra que trata da corporeidade associada à criatividade e à ludicidade, com sugestões de atividades práticas como jogos, brincadeiras, atividades rítmicas e expressivas.

RENGEL, L. Dicionário Laban. São Paulo: Annablume. 2003.

O livro é um dicionário de movimentos que pode ser manuseado

várias vezes e pode ajudar muito em experiências práticas na escola.

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Referências

DAOLIO, Jocimar. Da Cultura do Corpo. Campinas, SP: Papirus. 2007.

FREITAS, Marcos C. Da ideia de estudar a criança no pensamento social brasileiro: a contraface de um paradigma. In: FREITAS, Marcos Cezar; KUHLMANN Jr., Moysés (org.). Os intelectuais na história da infância. São Paulo: Cortez, p. 352-2002.

GALLARDO, Jorge. S. P ; MORAES, L. G. C. Educação infantil e um pouco de história. In: GALLARDO, Jorge. S. P (org.). Edu-cação física escolar: do berçário ao ensino médio. Rio de Janeiro: Lucerna. 2005.

GALVÃO, Izabel. A questão do Movimento. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 98, p. 37-49, ago. 1996.

LABAN, Rudolf. Domínio do movimento. São Paulo: Summus. 1978.

MARQUES, Isabel A. Interações: crianças, dança e escola. Coleções interAções. São Paulo: Blucher, 2012.

OLIVEIRA, Marta Kohl. Vygotsky. Aprendizado e Desenvolvimento. Um processo sócio-histórico. São Paulo: Scipione, 1993.

RENGEL, Lenira. Dicionário Laban. São Paulo: Annablume, 2003.

______. Os temas de movimento deRudolf Laban. (I, II, III, IV, V, VI, VII, VIII). São Paulo: Annablume, 2008

TADRA, Debora S. A. Metodologia do ensino de artes. Volume 2: Linguagem da dança. Curitiba: IBPEX, 2009.

SANCHES, Maria Cecília. Contribuições do trabalho com o corpo e o movimento com foco na força. São Paulo: Repositório Institucional da Unifesp, 2015. p. 13-23. Disponível em: http://repositorio.uni-fesp.br/handle/11600/39159. Acesso em: 14 de dez. 2016.

WALLON, Henri. As sucessivas idades da infância. I:: WALLON, H. A evolução psicológica da criança. Lisboa, Portugal: Edições 70. 1968, p. 225-233.

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Esta obra foi publicada em formato e-book

em São Paulo na primavera de 2017. No

texto foi utilizada a fonte Electra em corpo

10 e entrelinha de 15,5 pontos.