21
1 2006 “Classe e a recusa etnográfica” In Etnografias da participação (org. por Claudia Fonseca, Jurema Brites). Santa Cruz do Sul: EDUNISC. Classe e a recusa etnográfica Claudia Fonseca, UFRGS Minha proposta neste artigo é fruto de uma dupla preocupação – por um lado, a de uma antropologia que se define pelo método etnográfico e, por outro, a de um enfoque analítico que coloca classe, ao lado de gênero, geração, etnia e nação como categoria de relevância fundamental para a compreensão da sociedade contemporânea. Essa formulação do problema surge de um certo desconforto com o que vejo como um silêncio ou, pelo menos, murmúrios mal-articulados no campo de análise antropológica hoje onde, em forte contraste a outras áreas temáticas, as pesquisas orientadas por um recorte de classe permanecem pulverizadas. Tal lacuna é preocupante na medida em que a perspectiva etnográfica traz para a discussão de sociedades contemporâneas uma contribuição singular – a tentativa de entender outros modos de vida usando a subjetividade do pesquisador e sua confrontação com o "diferente", como instrumento principal de conhecimento. Nesses termos, a "recusa etnográfica" 1 iguala a proscrever certos grupos ou categorias do campo de análise, definir sua cosmovisão como destituída de qualquer originalidade, e, portanto, passível de compreensão usando apenas conceitos pre-estabelecidos, formulados antes de, ou sem, a pesquisa de campo. Entre antropólogos, considerações sobre classe se encontram, sob diferentes formas, nos estudos de outras áreas temáticas – gênero, etnicidade, religião, etc. Esses estudos se enriquecem e ganham em sutileza pela incorporação do fator classe, mas mantêm o norte definido em função de suas respectivas áreas. Raros são os antropólogos que centram suas análises no recorte de classe. Aqueles que existem tendem a apoiar-se em conceitos e abordagens analíticas desenvolvidos nas disciplinas menos etnográficas – sociologia e ciência política. Chegam a se inspirar também em instigantes paradigmas desenvolvidos para o estudo antropológico de raça, etnia, gênero, etc. Porém, ao contrário dos seus colegas de outras áreas -- raramente se definem em função de seu objeto, em geral não travam discussões entre eles, não chegam a formar escolas. Assim, o estudo antropológico de classe, enquanto área temática, praticamente some do mapa. 1 Este termo é inspirado no artigo de S. Ortner (1995) “Resistance and the problem of ethnograpic refusal”.

Classe e a Recusa Etnográfica

Embed Size (px)

DESCRIPTION

2006 “Classe e a recusa etnográfica” In Etnografias da participação (org. porClaudia Fonseca, Jurema Brites). Santa Cruz do Sul: EDUNISC.

Citation preview

Page 1: Classe e a Recusa Etnográfica

1

2006 “Classe e a recusa etnográfica” In Etnografias da participação (org. por Claudia Fonseca, Jurema Brites). Santa Cruz do Sul: EDUNISC.

Classe e a recusa etnográfica

Claudia Fonseca, UFRGS Minha proposta neste artigo é fruto de uma dupla preocupação – por um lado, a de uma antropologia que se define pelo método etnográfico e, por outro, a de um enfoque analítico que coloca classe, ao lado de gênero, geração, etnia e nação como categoria de relevância fundamental para a compreensão da sociedade contemporânea. Essa formulação do problema surge de um certo desconforto com o que vejo como um silêncio ou, pelo menos, murmúrios mal-articulados no campo de análise antropológica hoje onde, em forte contraste a outras áreas temáticas, as pesquisas orientadas por um recorte de classe permanecem pulverizadas. Tal lacuna é preocupante na medida em que a perspectiva etnográfica traz para a discussão de sociedades contemporâneas uma contribuição singular – a tentativa de entender outros modos de vida usando a subjetividade do pesquisador e sua confrontação com o "diferente", como instrumento principal de conhecimento. Nesses termos, a "recusa etnográfica"1 iguala a proscrever certos grupos ou categorias do campo de análise, definir sua cosmovisão como destituída de qualquer originalidade, e, portanto, passível de compreensão usando apenas conceitos pre-estabelecidos, formulados antes de, ou sem, a pesquisa de campo. Entre antropólogos, considerações sobre classe se encontram, sob diferentes formas, nos estudos de outras áreas temáticas – gênero, etnicidade, religião, etc. Esses estudos se enriquecem e ganham em sutileza pela incorporação do fator classe, mas mantêm o norte definido em função de suas respectivas áreas. Raros são os antropólogos que centram suas análises no recorte de classe. Aqueles que existem tendem a apoiar-se em conceitos e abordagens analíticas desenvolvidos nas disciplinas menos etnográficas – sociologia e ciência política. Chegam a se inspirar também em instigantes paradigmas desenvolvidos para o estudo antropológico de raça, etnia, gênero, etc. Porém, ao contrário dos seus colegas de outras áreas -- raramente se definem em função de seu objeto, em geral não travam discussões entre eles, não chegam a formar escolas. Assim, o estudo antropológico de classe, enquanto área temática, praticamente some do mapa. 1 Este termo é inspirado no artigo de S. Ortner (1995) “Resistance and the problem of ethnograpic refusal”.

Page 2: Classe e a Recusa Etnográfica

2

No Brasil, encontramos algumas notáveis exceções a essa tendência. Creio, por exemplo, que no meio urbano, pesquisadores inspirados na reflexão de Gilberto Velho e voltados geralmente para as camadas médias2 têm formado uma escola de pensamento importante. Hoje, estudantes dessa linha, a base de sólida etnografia, concentram-se nos chamados brokers -- aquelas pessoas que vivem na margem, servindo como mediadores entre um grupo e outro (ver, por exemplo, Velho e Kuschnir 2001). Implícito no uso do termo mediação é o axioma que existem fronteiras simbólicas a serem negociadas, inclusive de classe. No entanto, quando trata-se de sujeitos de origem modesta, a ênfase destes estudos tende a ser em trajetórias individuais (de algum músico ou artista popular), com a estrutura de classe servindo como pano de fundo. Quando o enfoque desloca-se para categorias sociais – empregadas domésticas e suas patroas, por exemplo -- a ótica de análise favorece o território dos dominantes, i.e., a casa das patroas. Não obstante suas valiosas contribuições para a reflexão antropológica, a preocupação desses pesquisadores não é em geral com uma análise da mediação vista de baixo para cima. Nesse volume, reúnem-se pesquisadores trabalhando justamente a idéia de mediação com ênfase nas escalas inferiores da sociedade de classe. Chamo essas escalas -- denominadas variavelmente como classes subalternas, trabalhadores ou simplesmente pobres – de “grupos populares”, lembrando a especificidade do Brasil em que quase um terço da população vive numa situação de pobreza crônica e onde a distância entre rico e pobre, uma das maiores (se não a maior) do mundo é freqüentemente comparada ao fenômeno de apartheid na Africa do Sul (Barros, Henriques e Mendonça 2000). Todos os autores deste volume seguem o princípio, coerente com a reflexão antropológica, de “trabalhar nas margens”, fluxos e entre-lugares, justamente para evitar a reificação de seu objeto. No entanto, têm cuidado em não perder completamente de vista possíveis diferenças nas matrizes simbólicas que ressaltam a especificidade dos grupos subalternos. Encontram inspiração em autores que vêem o gênio da análise etnográfica na descoberta justamente daqueles elementos que surpreendem a lógica dominante ou o senso comum (Bourdieu 1992, Williams 1977, Ortner 1995, J. Scott 1992). Acolhem com ceticismo a alegação de que não existe mais nada “nativo” que não seja explicado pela influência das forças dominantes (ou, se existe, certamente não

2 A não-consolidação dessa área é refletida na variedade de termos usados para descrever fenômenos semelhantes. Nota-se que “classe” com suas conotaçõs marxistas, é um termo freqüentemente preterido em favor de “camadas” que sugere um enfoque mais weberiano (Duarte et al. 1993, Schuch 2002)

Page 3: Classe e a Recusa Etnográfica

3

é digno da atenção dos pesquisadores). Trabalham, ao invés, no espírito de Ortner que, em resposta a tal alegação, sugere que os antropólogos devem, em todo caso, manter a hipótese de algo não imediatamente explicado por esse impacto. “A tentativa de ver outros sistemas de baixo para cima (from the ground level) é a base, talvez a única base, da contribuição distintiva da antropologia para as ciências humanas. É nossa capacidade, elaborada em grande medida pela pesquisa de campo, de assumir a perspectiva do povo no litoral (..) que nos permite aprender qualquer coisa – inclusive na nossa própria cultura3 – além daquilo que já sabemos.” (1994: 388, tradução por CF) Para firmar essa posição, encontramos no Brasil munição em debates de outra área temática de antropologia – aparentemente bem longe da área urbana -- a de sociedades indígenas. Nessa arena, Viveiros de Castro (1999), versando sobre a vida social e simbólica dos povos amazônicos, se vê criticado por não centrar suas análises na influência da sociedade dominante brasileira. Em resposta, sugere, à inspiração de Florestan Fernandes, que sua abordagem, ao mesmo tempo que não tem pretensão de ser a única adequada, tem a vantagem de provocar “uma rotação de perspectiva” em relação aos modelos analíticos usuais – uma “rotação de perspectiva que [permite] encarar os mesmos processos do ângulo dos fatores dinâmicos que [operam] a partir das instituições e organizações sociais indígenas.” Nesse esquema a situação colonial é (apenas) “um contexto de efetuação entre outros” (1999: 115) E ele continua: “É óbvio que se pode estudar os índios sob outras perspectivas; a antropologia não tem direitos de exclusividade sobre essa ou qualquer outra fração da humanidade. O problema só começa quando se pretende substituir globalmente a abordagem distintiva e a agenda variada da etnologia por uma doutrina monolítica que toma o “contato interétnico” como pedra filosofal da disciplina.” (1999: 115-116) Resguardadas as imensas diferenças entre sociedade indígenas e grupos populares urbanos, gostaria de sugerir que ambos tipos de pesquisador enfrentam demandas persistentes de trabalhar seus dados empíricos 3 De forma significativa, essa autora ainda defende o uso do conceito de cultura: “Não obstante todos os defeitos [do conceito de cultura] – a tendência de aplicá-lo para minimizar diferenças políticas internas, e para tornar os outros radicalmente Outro – negar sua presença e força no processo social faz mais violência do que mantê-lo no quadro.” (Ortner 1996: 182) (tradução por CF).

Page 4: Classe e a Recusa Etnográfica

4

exclusivamente em termos do impacto da sociedade dominante e, não abraçando esse como objetivo principal de análise, sofrem o pejo de “culturalista”. Se essa espécie de censura já pesa em outras áreas temáticas (ver Ortner 1997), sugiro que ela encontra seu apogeu na discussão sobre grupos populares, tendo amordaçado, de certa forma, a reflexão etnográfica nesse campo. A tensão entre os antropólogos “clássicos” (os que procuram algo tão ilusório quanto a visão de mundo nativa), e o que Viveiros de Castro chama os “contatualistas” (os que enfatizam as forças de dominação e integração) reflete um debate acadêmico de grande valor. No entanto, este debate se contamina facilmente pelo que Bourdieu (1992) chama de sociologia espontânea – estereótipos e preocupações tirados do senso comum sobre a suposta pureza dos rústicos intocados pela civilização (índios, camponeses, remanescentes de quilombos) contrastada à miséria social e moral do “ralé” ou degenerados. Os grupos populares urbanos, não parecendo, em geral, nada "puros", seriam facilmente classificados do lado dos degenerados. “Hiposuficiência cultural” assim como "carência" afetiva, moral e cultural constam entre as acusações aplicadas igualmente a povos indígenas "corrompidos pela sociedade de consumo" e pobres urbanos. Diante desse quadro, ousar falar de “cultura” entre os variados grupos de baixa renda serve como contrapeso a estereótipos que tenderiam a reduzir essa parte da população a um nível pre-cultural de existência. É de fundamental importância lembrar que nossas pesquisas – pelo menos boa parte delas – são direcionadas simultaneamente para duas platéias -- acadêmica e leiga – de forma que considerações intelectuais e teóricas se confundem inevitavelmente com inquietações políticas. As energias gastas em torno do primeiro eixo são de grande proveito. As acusações, por exemplo, quanto à reificação do nosso objeto têm impulsionado um interesse salutar pela subaltern practice theory e outras abordagens processualistas (Connell 1987, Ortner 1996). O eixo político que se torna mais evidente nas chamadas pesquisas aplicadas também traz desafios estimulantes para o pesquisador. Porém, nesse encontro com setores extra-acadêmicos nem sempre é fácil resistir contra a infiltração de atitudes, típicas do senso comum, que empobrecem a pesquisa. Nos parágrafos a seguir, considero algumas dessas atitudes que, ao meu ver, dificultam o estudo etnográfico realizado em grupos urbanos de baixa renda: 1) Pobre não deveria nem existir; 2) se existe, o trabalho do pesquisador deve ser dirigido exclusivamente para remediar sua situação, transformando-o em rico, e 3) Se não dá para remediar sua situação, só resta ao pesquisador denunciar sua exploração pela sociedade dominante.

Page 5: Classe e a Recusa Etnográfica

5

1. Pobre não deveria nem existir. Uma primeira consideração diz respeito às próprias palavras usadas para descrever os setores em baixo da hierarquia social. Nos últimos tempos, o acento tem sido posto no termo "excluídos", com ênfase no tratamento discriminatório que os setores dominantes lhes reservam. Sem colocar em questão a importância de estudar mecanismos de discriminação, gostaria de sugerir que esse lema traz embutida certa armadilha. Na lógica de certos militantes, desliza-se subtilmente entre a idéia de que a exclusão não deveria existir e a de que o excluído -- e, por extensão, o pobre – não deveria existir. Daí é um curto passo para a convicção de que a vida dessas pessoas é desprovida de interesse, justificando a negligência com a qual são comumente tratadas. A tendência de negar qualquer positividade no modo de vida da população economicamente inferior e politicamente fraca não é monopólio dos militantes, nem dos Brasileiros. Ortner (1991), entre muitos outros, tem constatado a tradicional aversão dos antropólogos norte-americanos para com o tema de classe – atitude essa que Joan Vincent explica como um tipo de mistificação inerente à ideologia americana. A existência de um subproletariado, visto na ótica dessa autora como elemento indispensável da economia capitalista, seria incompatível com a crença generalizada de que os diferentes setores da sociedade vivem uma integração justa e harmoniosa: “...uma economia capitalista exige a divisão de trabalho, deslocamento da mão-de-obra e a existência de um exército industrial de reserva -- e.g. uma "underclass"; a sociedade capitalista [também] exige uma comunidade política, a representação do "real" como a interdependência harmoniosa de setores especializados de trabalho e alocações recíprocas de trabalho – [e] tudo isso torna a aceitação de um "underclass" ideologicamente impossível” (1993: 216) (tradução de CF). O Brasil, é claro, não é os Estados Unidos4. Aqui, finda a ditadura militar e com a reabertura democrática, surge no início dos anos 80 um período de impressionante produção antropológica sobre os setores despossuídos da sociedade – pesquisas reunidas sob o signo do "popular". Os mais brilhantes

4 Bourdieu e Wacquant (1998) nos lembram, no entanto, o quanto modas norte-americanas influenciam o campo intelectual no resto do mundo.

Page 6: Classe e a Recusa Etnográfica

6

estudantes5 se dirigem aos bairros da periferia urbana para estudar as dinâmicas culturais próprias a este contexto: a música, os circos, os clubes de futebol, a organização familiar, as formas de participação política, etc. Eles se inspiram, em grande parte, na escola inglesa: os historiadores no estilo de E.P. Thompson (1998) e os adeptos da escola de Birmingham6. Os termos marxistas (“forças de produção”, “capitalismo”, “classe operária”) que, durante a época da ditadura, significavam uma postura política de oposição cedem o lugar a uma discussão sobre o “popular” (a “cultura popular”, os “grupos populares”, os “bairros populares”...)7. Resultam daí inúmeros debates sobre a definição e as implicações do termo (ver Sader e Paoli 1986, Duarte et al. 1993, Schuch no prelo). No entanto, justamente quando uma produção antropológica sobre os grupos populares no Brasil parece levantar vôo, os ventos intelectuais e políticos mudam. Nos anos 90, diante do clima de crescente conciliação entre partidos políticos da direita e da esquerda assim como do incentivo dado por agências financiadoras internacionais à pesquisa voltada para problemas de gênero, etnia e outras instâncias de « identity politics » (Turner 1994, Ramos 1991, Scott 1992), a questão de classe, e junto com ela a dos grupos populares, parece ter recuado para um segundo ou terceiro plano. Aqueles elementos do panorama popular com claro impacto sobre a política institucional (tais como o orçamento participativo ou o MST) ainda suscitam o interesse de pesquisadores mas, com raras exceções (ver Alencar e Damo, ambos neste volume @), a lente analítica não abarca a possibilidade de entendimentos distintos do processo político que possam ser remetidos, pelo menos em parte, à questão de classe. Certamente as pesquisas sobre gênero e etnia avançam reflexões fundamentais sobre desigualdade e dominação, preenchendo, inclusive, evidentes lacunas nas discussões clássicas sobre classe. Porém, especialmente nas suas variantes pós-estruturalistas, as que escanteam o sujeito intencional ou reduzem a realidade à negociação discursiva de identidades, essas pesquisas tendem a deixar de lado justamente aquele material mais associado ao método etnográfico – práticas e experiências compartilhadas no dia-a-dia no âmbito de um determinado modo ou padrão de

5 Alba Zaluar (1985), A maquina e a revolta: as organizações populares e o significado da pobreza, São Paulo : Brasiliense; . J. Guilherme Cantor Magnani (1984), Festa no pedaço: Cultura popular e lazer na cidade. SP. Brasiliense; Luiz Fernando Duarte (1986), Da vida nervosa nas classes trabalhadoras urbanas, Rio de Janeiro. Zahar; Tereza Caldeira (1984), A política dos outros: o cotidiano dos moradores da periferia e o que pensam do poder e dos poderosos. Rio de Janeiro. Brasiliense. 6 Ver, por exemplo, Willis (1991). 7 Esta nova fase não é do agrado de todos os pesquisadores. Ver Eunice Durham (1986) que lamenta as derrapagens teóricas que acompanham a substituição de “proletariado” por “classes populares”..

Page 7: Classe e a Recusa Etnográfica

7

vida8. As noções que descrevem a globalização de territórios andam de par com as que descrevem a fragmentação da identidade individual diante da sociedade de consumo. Aqui, o popular é subsumido na idéia de [cultura de] massa – deixando poucas brechas para pensar lógicas "outras" calcadas em experiências concretas de vizinhança, por exemplo, onde a segregação sócio-econômica é capaz de ditar gostos e estilos de vida particulares. Alguns pesquisadores pretendem que a realidade é que mudou, que os grupos populares não são mais o que eram. Contudo, é igualmente possível que o desaparecimento do “popular” reflita uma mudança das formas de organização política e das ideologias políticas que as acompanham. Durante os anos 80, na efervescência dos movimentos sociais surgidos para “resistir” às pressões de um estado ilegítimo, o popular era de bom tom – o popular enquanto noção, enquanto campo ético-político produzido pelas forças unidas dos intelectuais de esquerda, dos agentes da Igreja, e das organizações não-governamentais

(Doimo 1995). Já foi amplamente comentado como, na época, o excesso discursivo levava os pesquisadores a “ver” a cultura popular mesmo lá onde ela não existia. Entretanto, cabe perguntar se, no atual clima de conciliação neoliberal, os pesquisadores não fazem o oposto, tomando o silêncio discursivo em torno desse tema como prova da ausência de qualquer realidade distintiva dos setores populares. Será que esses setores deixaram de existir, será que esses indivíduos deixaram de compartilhar experiências e um modo particular de viver quando as camadas dominantes passaram a redefinir o alvo de suas atenções? Não seria mais provável que, com a queda do muro de Berlim e a mudança no clima político mundial, tenha se consolidado a tendência apontada por Ortner e Vincent de simplesmente não ver aquelas dimensões da realidade que se chocam contra a ideologia hegemônica? Ainda caberia perguntar quanto às conseqüências políticas do abandono do recorte analítico “popular”. Sem dúvida, a pesquisa acadêmica dos anos 80 exercia (junto com os movimentos sociais e as ONGS) uma certa influência sobre a realidade dos grupos aos quais atribuía o título de “populares”. Da mesma forma que o movimento "black is beautiful" agilizou uma mudança retórica ("black" no lugar de "negro") para positivar uma categoria estigmatizada, é possível que a substituição do termo "pobre" por "popular" tenha contribuído, durante alguns anos, par uma representação positivada dos pobres urbanos. Então, quais seriam as conseqüências do abandono deste termo? Na paisagem intelectual atual, qual o espaço delegado aos indivíduos

8 Ver, por exemplo, J. Scott (1992) e Ortner (1995) nas suas críticas a análises inspiradas em Spivak.

Page 8: Classe e a Recusa Etnográfica

8

de baixa renda que não se encaixam nas categorias politicamente corretas do momento (negro, mulher, criança...)? Existe no panorama contemporâneo qualquer outro termo senão os “excluídos” -- categoria definida quase inteiramente em termos de suas características negativas?

Page 9: Classe e a Recusa Etnográfica

9

2) Se existe pobre, nossa tarefa é transformá-lo. Afastando-se da hipótese de dinâmicas populares, as análises realizadas nesses últimos tempos tendem a associar a população de baixa renda a assuntos particularmente problemáticos: moradores de rua, jovens em conflito com a lei, tráfico de droga e outras categorias subsumidas na categoria de « violência urbana ». Daí surge o segundo empecilho para o desenvolvimento de uma reflexão etnográfica em torno de grupos populares : a ânsia de intervir para transformá-los. Aqui, a idéia é: se temos que reconhecer a existência de pobres, tudo que nós fazemos em relação a eles -- a própria motivação de pesquisa -- deve ser remediar sua situação. Trata-se de uma preocupação até certo ponto válido (que, de alguma forma, concerne todos nós) e que surge logicamente em função das inúmeras demandas feitas por ONGs e agências do governo convidando o antropólogo a participar da definição, execução e assessoria de políticas de assistência. Seria impossível fazer abstração da escandalosa distribuição de renda no Brasil que condena boa parte da população a viver em condições de extrema pobreza. No entanto, sem preparo adequado o pesquisador cede facilmente às armadilhas da sociologia espontânea, procurando nos dados etnográficos não somente as curas da miséria, como as próprias causas. Estou persuadida que existe uma conexão desastrada entre a ânsia de ajudar e a aspiração de estudar etnograficamente grupos populares. Dá tilt entre uma análise que encontra na política econômica global as causas estruturais da desigualdade e uma pesquisa etnográfica que toma como ponto de partida determinados indivíduos e suas sensibilidades. Num ecletismo pouco convincente, o pesquisador denuncia as estruturas capitalistas como causa última da pobreza ao mesmo tempo que procura, através de sua etnografia, mecanismos educativos (obstáculos culturais a superar, alavancas a acionar...), capazes de provocar uma transformação libertadora de valores entre os próprios pobres. Na melhor das hipóteses, o pesquisador procura “dar uma mão” àqueles elementos já inerentes na cultura local que resistem contra as forças de dominação. Essa abordagem tem o mérito de colocar os sujeitos estudados como agentes de sua própria história, sendo o pesquisador um tipo de auxiliar no processo de transformação histórica do grupo. Porém, ainda corre dois perigos: 1) o da "resistência reificada" quando reduz-se o modo de vida da

Page 10: Classe e a Recusa Etnográfica

10

população estudada a seus aspectos “reativos”, ignorando o que os Comaroff (1992) chamam a “historicidade endógena de mundos locais”9, e 2) o do idealismo romântico em que, admitida a possibilidade de algo “endógeno”, esse modo de vida seja positivado a tal ponto que não se enxerga mais os conflitos, desigualdades ou formas de dominação inerentes às dinâmicas internas do grupo. De uma forma ou outra, produz-se uma imagem caricata do grupo em questão que pouco contribui para a “etnografia densa” da realidade. Mais preocupante, no entanto, é o uso do método antropológico por certos pesquisadores de áreas conexas (serviço social, educação...) que, mesmo tendo travado contato pessoal com seus “nativos”, não conseguem ver nada além da miséria. Numa descrição absolutamente rala mas que carrega a autoridade da pesquisa dita etnográfica, documenta-se a carência moral e espiritual que, na consciência do pesquisador, parece acompanhar fatalmente a carência material. As reiteradas críticas à análise culturalista (exemplificada na obra de Oscar Lewis e sua reflexão sobre « a cultura da pobreza »)10 que parecem atualmente “de rigor” em todo trabalho sobre pobres permanecem ao nível da retórica. As atitudes “ignorantes”, “alienadas”, ou “atrasadas” dos pobres são tacitamente apresentadas como causa principal de sua miséria e, com isso, o “problema” se desloca da pobreza para o pobre. Com um resultado analítico que difere pouco do antigo “culpar a vítima”, abre-se o caminho para programas de intervenção que fazem mais para disciplinar11 as populações incômodas do que para alterar suas condições objetivas de vida. Não é, de forma alguma, minha intenção menosprezar os inúmeros programas de pesquisa-ação entre populações pobres. Sem dúvida, enviar agentes de intervenção para dialogar, frente a frente, com seu público alvo, e descobrir elementos inesperados de sua realidade é uma política que dá resultados positivos. Mas é possível que esses resultados sejam devidos à transformação de mentalidade não dos "nativos" (alvo ostensivo do projeto), mas, sim, dos próprios técnicos de intervenção. Enfim, conforme uma noção de cultura como processo, que implica em constante mutação e negociação de fronteiras, 9 Ortner (1995: 176) reforça essa postura lembrando que: “Ainda que os pedaços da realidade possam ser tomados de empréstimo ou até impostos por outros, são amarrados pela lógica de bricolagem localmente e historicamente evoluída do próprio grupo”. 10 Ver, entre muitos outros, as críticas em Leeds (1971). 11 É difícil imaginar um programa educativo que não encerra algum grau de normatização de comportamentos. Minhas críticas ao "disciplinamento" dizem respeito a instâncias em que a moralização de comportamentos (por exemplo, queixas contra a falta de pontualidade ou de asseio corporal) serve para mascarar o peso de fatores estruturais da desigualdade (por exemplo, a falta de oportunidades no mercado de emprego). (ver Donzelot 1977, Tilly 1999)

Page 11: Classe e a Recusa Etnográfica

11

seria impossível conceber um lado da intervenção separada do outro. Seria ainda mais problemático imaginar qualquer transformação que não englobasse os diversos agentes envolvidos. E, no entanto, parece que é muitas vezes nesse espírito missionário, de mudança unilateral (a verdade levada por "nós" para "eles"), que os projetos de intervenção ocorrem – usando uma versão pobre da pesquisa etnográfica para legitimar o esforço. 3) Se a etnografia não serve para remediar a situação do pobre, pelo menos serve para denunciá-la. Existem etnógrafos que, postulando causas estruturais para a pobreza, têm o bom senso de não procurar a chave da transformação social nos seus dados etnográficos. Entretanto, nesse caso, ainda permanece uma última armadilha. Resolvendo que não é possível remediar a condição do pobre através de estudos etnográficos, o pesquisador decide usar seu estudo para denunciar a miséria. Mais uma vez, há certo mérito nessa perspectiva pois ressaltar os estragos inerentes no sistema vigente poderia servir como estímulo para redirecionar políticas públicas falhas. A minha impressão, no entanto, é que isso raramente ocorre e que a denúncia, ostensivamente formulada para ajudar a causa dos subalternos, contribui muitas vezes para uma leitura maniqueista da realidade. Com o mundo dividido entre algozes malvados e vítimas indefesas, os pobres explorados parecem passivos, apáticos, quase subumanos... à espera da emancipação trazida de fora por pessoas menos embrutecidas. Trata-se, ironicamente, de uma imagem não muito diferente da apresentada por teorias conservadoras já amplamente criticadas. O exemplo mais claro dos perigos desta perspectiva se encontra no trabalho da antropóloga norte-americana, Nancy Scheper-Hughes, advogada da “pesquisa militante”. Num recente artigo (1995), fitando as manifestações mais chocantes de duas localidades onde realizou suas pesquisas [a morte por abandono de crianças doentias no Nordeste brasileiro, o linchamento e execução por fogo de jovens acusados de roubo na África do Sul], ela sublinha a maneira como ela ajudou a literalmente salvar a vida de alguns de seus informantes. Ainda – de forma sistemática – ela aponta o dedo da análise etnográfica para quem é culpado dessas atrocidades. Assim, por exemplo, no caso das crianças brasileiras, a culpa de sua morte é atribuída não somente aos médicos da saúde pública que, cúmplices do sistema capitalista, dão tranqüilizantes e nada mais para calmar a fome dos agonizantes, mas também às próprias mães supostamente lobotomizadas pela miséria. No caso do

Page 12: Classe e a Recusa Etnográfica

12

linchamento dos jovens sul-africanos, ela aponta para a indiferença dos brancos locais (inclusive dos antropólogos), assim como para a crueldade dos homens ‘nativos’. Nesse tipo de narrativa, somos conduzidos a reconhecer a antropóloga como símbolo da sensatez humanitária, mas não aprendemos muita coisa sobre o complexo jogo de forças e as sensibilidades variadas que levaram à situação descrita. A pesquisa militante de Scheper-Hughes já foi amplamente criticada tanto no Brasil (Sigaud 1995) como no exterior (d´Andrade 1995), dispensando delongas. Existe, no entanto, outro tipo de abordagem etnográfica -- também construída em tom de denúncia, e que privilegia a pobreza espetacular – que goza nesse momento de grande popularidade e portanto merece nossa atenção : a de Loic Wacquant. Tal como muitos trabalhos de Scheper-Hughes (ver, por exemplo, 1992), a etnografia de Wacquant sobre o gueto negro de Chicago é, em certos momentos, de uma grande riqueza. Em artigos de cunho sociológico, ele traz uma análise comparativa à discussão, justapondo com grande proveito a « cintura vermelha » (periferia) de Paris e a « cintura negra » de Chicago (Wacquant 2001). Ainda mais, ele evita acusações fáceis contra culpados locais, optando, ao invés, pela descrição de processos macro-estruturais que azeitam os mecanismos de opressão. No entanto, a interpretação que Wacquant faz de seus dados etnográficos é desconcertante, para dizer o mínimo. Consideremos, por exemplo, "Un mariage dans le ghetto" [um casamento no gueto], artigo publicado no Actes de la Recherche (1996). Neste, o autor apresenta uma descrição sensível e reveladora de sua interação com os vários personagens e acontecimentos do cenário. Entretanto, introduz o material com frases que deslizam de enunciados fatuais para interpretações altamente valorativas. De constatações sobre a deterioração de condições econômicas da população estacionada no gueto durante os anos 80, o autor salta para pronunciamentos sobre a pobreza do universo social: o encolhimento das pessoas para um universo de fachadas e jogos de espelho onde cada um se esforça em mostrar que, diferente dos outros, é alguém que vale mais do que o pouco que ela é ou o pouco que possui (1996: 63). Conforme Wacquant, os habitantes do gueto, se satisfazendo de cópias inferiores de bens e ritos dessa sociedade que os rejeita, não ousam resistir, mas simplesmente existem nos termos que essa [sociedade] os concedem (Ibid).

Page 13: Classe e a Recusa Etnográfica

13

O artigo termina com uma visita do autor ao apartamento de um amigo, boxeador amador, recém-casado. Wacquant se diz « alucinado » pela cena e profundamente perturbado pela « incoerência total” de seu amigo. Vale a pena considerar os detalhes etnográficos que inspiram tamanho desconforto. Tendo passado por lixo na rua, grafite nos muros e grades de ferro nas portas, o autor penetra no apartamento de seu amigo onde encontra: « ...paredes nuas, uma cama de criança no chão, [...], roupas dobradas no chão, colocadas em pequenas pilhas em cima de sacos de plástico. No fundo da sala de visita, as duas crianças dormem [...] num sofá de espuma sob uma leve manta vermelha. » (1996:83) Incomodado pelo ambiente tropical (seu anfitrião esquenta o apartamento com água quente do chuveiro já que a calefação não funciona) e a gritaria das crianças, Wacquant se mostra cada vez mais frustrado a medida que seu amigo se esquiva à entrevista planejada e toma conta da conversa. Seu anfitrião, conforme o autor, descamba para uma « torrente verbal » ( interrompida de demonstrações de boxe e de tai-kwondo) alimentada de lembranças de juventude, e julgamentos quanto a um amigo do boxe, a fábrica Ford, o karate, os jovens de hoje, seu bairro, a crescente imoralidade, os estragos da droga entre seus amigos de infância ... Diante dessa profusão de informações, atitudes e outros elementos simbólicos, Wacquant nem arrisca uma análise. Antes, volta, agora num registro mais pessoal, para o mesmo tom calamitoso com o qual abriu o artigo: « Afetado por tanto tormento mental e sonoro, sinto ao mesmo tempo pena e desgosto. Meu Deus, meu Anthony, tão meigo e simpático, como aceitar te ver condenado a essa vida de nada [sic] e explodindo de tantos projetos ilusórios ? » E, « esgotado, desorientado, horrorizado diante de tanto sofrimento e insegurança [...] », Wacquant termina a entrevista « em migalhas » (1996 : 84). Aqui, encontramos a denúncia de uma situação considerada pelo autor como chocante. Porém, tal como no artigo de Scheper-Hughes, a denúncia nos ensina mais sobre as pre-noções do autor e seu desejo ardente de salvar seus informantes (ou, pelo menos incluí-los no rol dos humanos...), do que sobre as ambivalências e ponderações de seus informantes diante dos densos processos sociais e políticos de sua existência.

Page 14: Classe e a Recusa Etnográfica

14

A análise de um segundo artigo escrito por Wacquant e publicado na Miséria do Mundo (1999), volume organizado por P. Bourdieu e com imensa circulação, revela perspectivas semelhantes às do primeiro. Trata-se da transcrição e comentários de uma entrevista com Rickey que nasceu e cresceu no gueto. Aqui, o autor orienta suas perguntas quase exclusivamente sobre os aspectos penosos da vida do informante, conduzindo este para a reflexão sobre sua família pobre, sua infância dura, seu bairro duro, assassinatos, brigas, e assim adiante. Aos poucos, constrói os contornos dessa personagem, apresentando-o como o protótipo do malandro (hustler), uma figura genérica, uma espécie de tipo ideal vivo, que ocupa um lugar central no espaço do gueto negro norte-americano. Qual seria nossa objeção a esse proceder analítico? O leitor nos lembraria, com razão, que estruturar a análise em torno de um caso exemplar é um artifício clássico do texto etnográfico, não suscitando normalmente grandes objeções. O problema é que, no artigo de Wacquant, o argumento desliza subtilmente do malandro como um dos tipos para o tipo do bairro. O gueto, o autor conclui a partir desse relato, possui lógica própria... quase carcerária organizada segundo o princípio de: guerra de todos contra todos. O depoimento de Rickey é apresentado como descrição objetiva da realidade, permitindo ao autor fundamentar conclusões sobre as condições gerais do bairro: a exploração generalizada de mulheres pelos seus amigos homens, a raridade de verdadeiras amizades, a pouca solidariedade entre parentes... Não parece haver muito lugar para ambigüidades neste mundo da malandragem que “se opõe termo a termo àquele do trabalho assalariado”12. O estranho é que quando, em vez de nos limitar às palavras de Rickey, olhamos para os variados dados etnográficos apresentados alhures pelo próprio autor (vide, por exemplo, as diversas formas de sociabilidade e solidariedade em "Um mariage dans le guetto"), saímos com uma impressão muito diferente. Wacquant não foi treinado, é claro, como antropólogo e, portanto, talvez possamos perdoar suas interpretações pouco densas, que descolando dos dados, não parecem explorar a fundo as possibilidade de seu terreno etnográfico. Também explica como comete muitos erros já descritos por antropólogos nas suas críticas à literatura sobre as « underclasses »: homogeneiza a variedade de pessoas no gueto, pinta suas estratégias como

12 As ambiguidades são, antes, na análise do autor que, apesar de evocar a “dolorosa lucidez” de Rickey, ainda insista: "Já que a exclusão faz parte da ordem das coisas, ela [..] priva [o boxeador] da própria consciência de sua exclusão." (1999: 185)

Page 15: Classe e a Recusa Etnográfica

15

meramente compensatórias se não maladaptivas, e privilegia o recorte econômico (como se a única preocupação do pobre devesse logicamente ser sobrevivência e melhoria financeira)13. No entanto, em muitos meios profissionais, o trabalho de Wacquant (e não o de outros pesquisadores, com um olhar mais antropológico) serve como padrão ideal de etnografia entre pobres da sociedade complexa. Seria elucidativo fazer uma comparação do trabalho de Wacquant com o de Ph. Bourgois publicado no mesmo volume (Miséria do Mundo) sobre os moradores de outro gueto norte-americano, essa vez em Boston. Bourgois, contrariamente a Wacquant, aproveita a torrente verbal de um de seus interlocutores (que também ousa tomar conta da entrevista) justamente para mostrar a pluralidade de visões no gueto e as ambigüidades vividas por alguns moradores. Mostra como seu informante, Ramón, apesar de traficar drogas, nunca deixou de ter um emprego « straight » assalariado. Paga impostos, e quando recebe a devolução, investe o dinheiro na compra de drogas para vender. Bourgois, ao contrário de Wacquant, não arrisca no curto espaço desse artigo analisar os valores de Ramón. Antes, contenta-se com a descrição detalhada da trajetória de seu informante – negociações com a esposa, contato com o juiz, problemas de moradia, instabilidade de emprego, abonos recebidos da assistência pública, etc. Por esse artifício, o leitor é levado a sentir que, dentro daquele campo de possibilidades, Ramón, apesar de duros esforços e grande perspicácia, dificilmente alcançará o sucesso – a vida respeitável – que tanto almeja. Em outras palavras, o autor, ao levar o leitor para dentro da experiência de vida do seu protagonista, realiza a denúncia das condições injustas que este enfrenta, sem moralismo. Ramón aparece como analista agudo de sua própria situação, um agente histórico que enfrenta, ao longo de seu caminho, obstáculos quase insuperáveis. Os comentários de Bourgois não descolam dos dados etnográficos. Não há hiatos lógicos na conclusão... A consideração desses diferentes textos não tem como objetivo estabelecer uma hierarquia de autores. Em outros textos, Wacquant traz para a reflexão socio-antropológica insights brilhantes; Bourgois, por sua vez, já produziu textos tão ralos quanto os de Wacquant comentados aqui (ver por exemplo Bourgois 2002, assim como as críticas elaboradas por Seman 2002). Estamos, antes, tentando exemplificar diferentes estilos de análise – uns mais, outros menos fieis à agenda etnográfica, com sua forma particular de 13 Ver, por exemplo, os diversos artigos no número es pecial de Critique of Anthropology 13(3), organizado por Joan Vincent em 1993.

Page 16: Classe e a Recusa Etnográfica

16

empirismo. G. Marcus, no seu recente tratado sobre as ânsias políticas do etnógrafo, coloca preocupações semelhantes às minhas: "Certa parcela da etnografia contemporânea é guiada por conceitos teóricos e sentimentos com os quais ela [a etnografia] é incapaz de lidar de forma coerente. O problema de qualquer etnografia particular é enunciado e pensado em termos que a etnografia, como gênero e método, não foi tradicionalmente equipada para investigar. Ou então, o etnógrafo [...] não fez o trabalho difícil e incerto de traduzir pela pesquisa de campo os termos teóricos para um projeto de investigação. O resultado é a superficialidade que caracteriza tanta etnografia do campo de estudos culturais, e, para dizer a verdade, cada vez mais, a do campo de etnografia antropológica também"14 (Marcus 1998: 18, ênfase minha). Continua o autor afirmando que o discurso de compromisso moral, hoje reconhecido como parte integrante da análise etnográfica, não deve jamais servir como desculpa por uma descrição "rala" -- uma descrição que faz abstração da história, ignora as ambigüidades do sistema, ou que reduz o leque imenso de personagens a um ou dois modelos formuláicos. A etnografia "micro" deve, sim, levar a generalizações e, para fazer sentido no contexto contemporâneo, deve endereçar-se aos múltiplos nexos entre o local e o global. No entanto, sob pena de descambar para uma visão "enlatada" do sistema mundial (evocando, por exemplo, um marxismo estereotipado), "os termos da análise propriamente etnográfica devem ser contestados e reconstruídos 'do chão para cima' , isto é, a partir da experiência da pesquisa" (Marcus 1998: 40). Creio que a grande popularidade de "certa parcela de etnografia" se deve em parte às conclusões bombásticas que soam politicamente corretas. Em muitos trabalhos supostamente etnográficos sobre os "pobres", é na denúncia do estado quase subumano ao qual a sociedade capitalista e consumista reduziu essas pessoas que a pesquisa encontra sua justificativa. Olhando para os textos de Wacquant citados aqui, devemos reconhecer, porém, que tais conclusões são muitas vezes descabidas em termos metodológicos (pois

14 "Some contemporary ethnography is framed by the kind of theoretical concepts and sentiments that it can’t possibly address in any cogent way. The problem of any particular ethnography is thus stated and thought in terms that ethnography itself, as a genre and method, is not traditionally designed to probe. Or else the particular ethnographer has not done the very difficult and uncertain work of translating the theoretical terms into a design of investigation through fieldwork. The result is the thinness that characterizes so much cultural studies ethnography, and for that matter, increasingly, anthropological ethnography as well.”

Page 17: Classe e a Recusa Etnográfica

17

elaboradas independentemente dos dados etnográficos), e ainda duvidosas do ponto de vista político. Se um autor encontra em todo lugar– de Boston a Chicago, e de Nicarágua a Brasil forças idênticas de dominação, agindo como um "hiper-ator" sobre vítimas passivas, podemos deduzir com bastante tranqüilidade que este autor não está aplicando o olhar etnográfico. Pois, neste, através dos múltiplos ajustes provocados pelo exercício comparativo, os conceitos preestabelecidos, tais como "violência estrutural" ou "neoliberalismo", assumem contornos inesperados, revelando a singularidade de cada contexto (ver Seman 2002). Considerações finais A ânsia de contribuir para a transformação da sociedade, acompanhada de uma perspectiva marxista, tem levado certos antropólogos a sugerir uma mudança de alvo etnográfico. Em nome da coerência analítica, pesquisadores tais como Laura Nader (1974) e Joan Vincent (1993) recomendam que, para combater os estragos da sociedade capitalista, ao invés de estudar as camadas dominadas, os antropólogos devem olhar para as camadas dominantes ; devem olhar « para cima » (study up) para as “atividades rotineiras [as técnicas de mistificação e administração] dos legisladores e burocratas que categorizam e administram [as camadas dominadas], e definem seus direitos” (Vincent 1993: 228). No entanto, nesse volume, procuramos demonstrar que, nas mãos de pesquisadores precavidos, que sabem navegar entre os ardis metodológicos do tema, a etnografia de grupos populares pode ser um exercício valido. Afinal, nenhuma pesquisa incluída aqui é voltada para o diagnóstico ou correção de mentalidades retrógradas, tampouco constituem-se exclusivamente em denúncia (que seja contra técnicos de uma política disciplinar do Estado ou contra as forças de um capitalismo reificado). Dessa forma, sem dúvida não agradarão nem a gregos intervencionistas, nem a troianos militantes. Porém é de esperar-se que, mantendo o norte da descrição densa, traz-se uma contribuição não somente para a reflexão acadêmica sobre processos sociais, mas também para planejadores e agentes de intervenção que procuram, através do diálogo com os múltiplos agentes da sociedade contemporânea, instrumentos para combater a desigualdade política e econômica – desigualdade esta que reforça diariamente as fronteiras de classe. Afinal, na melhor da tradição etnográfica, os colaboradores desse volume suscitam mais perguntas do que respostas. Ao mesmo tempo, mantêm em aberto a hipótese

Page 18: Classe e a Recusa Etnográfica

18

de classe como, junto com sexo, etnia e geração, um dos organizadores significativos de idéias e comportamentos na sociedade contemporânea.

BARROS RICARDO, RICARDO HENRIQUES, and ROSANE MENDONÇA (2000) “Desigualdade e pobreza no Brasil: retrato de uma estabilidade inaceitável," Revista Brasileira de Ciências Sociais 15(42) : 123-142.

Bourdieu, Pierre. 1992. “The practice of reflexive sociology”. In An invitation to reflexive sociology. (Pierre Bourdieu and Loic J.D. Wacquant). Chicago: Univ. of Chicago Press. Bourdieu, Pierre e Wacquant, Loic. 1998. “Prefácio: sobre as artimanhas da razão imperialista”. In Escritos da Educação (Maria Alice Nogueira e Afrânio Catani, orgs.). Petrópolis: Vozes. Bourgois, Philippe. 1999. "Homeless in el barrio". IN A Miséria do Mundo (P. Bourdieu, org.) Petrópolis: Vozes. (p. 203-214). Bourgois, Philippe. 2002. "El poder de la violencia en la guerra y en la paz". Apuntes de investigacion (del CECYP). ano IV, No. 8: 73-98. Castro, Eduardo Viveiros de. 1999. O que ler na ciência social brasileira (1970-1995): Antropologia (vol.1). São Paulo: Editora Sumaré: ANPOCS; Brasília, DF: CAPES. Comaroff, John and Jean Comaroff. 1992. Ethnography and the Historical Imagination. Boulder: Westview Press. Connell, R.W. 1987. Gender and Power : Society, the person and sexual politics. Cambridge : Polity Press. D’Andrade, Roy. 1995. “Moral models in anthropology”. Current Anthropology 36!(3): 399-408.

Doimo, Ana Maria. 1995. A Vez e a Voz do Popular. Relume Dumará. Rio de Janeiro.

Page 19: Classe e a Recusa Etnográfica

19

Donzelot, Jacques. 1977. A polícia das famílias. Rio de Janeiro: Graal. Duarte, Luiz Fernando D., Leila Linhares Barsted, Maria Rita Taulois, Maria Helena Garcia. 1993. “Vicissitudes e limites da conversão à cidadania as classes populares brasileiras.” Revista Brasileira de Ciências Sociais 22: 5-19.

Leeds, Anthony (1971) "The Concept of the "Culture of Poverty": Conceptual, Logical, and Empirical Problems, with Perspective From Brazil and Peru," in E. Leacock, ed., The Culture of Poverty: A Critique. New York: Simon and Schuster.

Marcus, George. 1998. Ethnography through thick and thin. Princeton Univ. Press. Nader, Laura. 1974. "Up the anthropologist – perspectives gained from studying up". In Reinventing Anthropology (Dell Hymes, org.) New York: Random House. Ortner, Sherry. 1991. “ Reading America: preliminary notes on class and culture”. Recapturing Anthropologia (Richard Fox, ed.). Santa Fe: School of American Research Press. Ortner, Sherry. 1995. “Resistance and the problem of ethnograpic refusal”. Comparative Studies in Society and History 37(1): 173-193. Ortner, Sherry B. 1996. Making gender: the politics and erotics of culture. Boston: Beacon Press. Ortner, Sherry. 1997. The fate of culture: Geertz and beyond. Berkeley: University of California Press. Ramos, Alcida, “A hall of mirroirs” . Critique of Anthropology 11(2): 155-

169, 1991.

Scheper-Hughes, Nancy (1992) Death Without Weeping: the Violence of Everyday Life in Brazil. Berkeley: University of California Press.

Page 20: Classe e a Recusa Etnográfica

20

Schuch, Patrice. no prelo. Etnia e classe social: uma análise comparativa. Humanas. Scott, Joan. 1992. “The campaign against political correctness: what’s really at stake”. Radical History 54: 59-79. Seman, Pablo. 2002. "Ni demonio ni desiertos". Apuntes de investigacion (del CECYP). ano IV, No. 8: 99-117. Sigaud, Lygia. 1995. “Fome” e comportamentos sociais: problemas de explicação em antropologia. Mana 1(1): 167-174. Thompson, E.P. 1998. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras. Tilly, Charles. 1999. Durable inequality. Berkeley: University of California Press. Turner, Terrance. 1994. “Anthropology and multiculturalism: what is anthropology that multiculturalists should be mindful of it?” Multiculturalism: a critical reader (David T. Goldberg, ed). Cambridge/Oxford: Blackwell. Velho, Gilbert e Karina Kuschnir (orgs.). 2001. Mediação, cultura e política. Rio de Janeiro: Aeroplano. Vincent, Joan. 1993. “Framing the underclass”. Critique of Anthropology, 13(3): 215-230. Wacquant, Loic. 1996. “Un mariage dans le ghetto”. Actes de la Recherche en Sciences Sociales 113: 63-84. Wacquant, Loic. 1999. "A zona". IN A Miséria do Mundo (P. Bourdieu, org.) Petrópolis: Vozes. (p. 177-202) Wacquant, Loic. 2001. Os condenados da cidade. Rio de Janeiro: Revan. Williams, Raymond. 1977. Marxism and Literature. Oxford: Oxford University Press.

Page 21: Classe e a Recusa Etnográfica

21

Willis, Paul. 1991. Aprendendo a ser trabalhador. Porto Alegre, Editora Artes Médicas.