Cocaína - Robin Cook

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COCANA ROBIN COOK Para David e Laurel E sua nova vida em conjunto A cocaina irrompeu na veia antecubital de Duncan Andrews numa avalancha concentrada, depois de impelida pelo mbolo de uma seringa. Soaram imediatamente alarmes Qumicos. Numerosas clulas do sangue e enzimas de plasma reconheceram as molculas de cocaina como pertencentes a umafamilia de compostos denominados alcalides, manufacturados porfbricas, que incluem substncias fisiologicamente activas como cafeina, morfina, estricnina e nicotina. Numa tentativa desesperada, mas infrutfera, para proteger o corpo da sbita invaso, enzimas de plasma, chamadas colesterases, atacaram a cocana e separaram algumas das molculas intrusas em fragmentos fisiologicamente inertes. Mas a dose de cocana era esmagadora. Em poucos segundos, avanava atravs do lado direito do corao e propagava-se aos pulmes, para se disseminar por todo o corpo de Duncan. Os efeitos farmacolgicos da droga comearam quase instantaneamente. Algumas molculas da cocaina tombaram nas artrias coronrias e principiaram a contrai-las e a reduzir ofluxo de sangue ao corao. Ao mesmo tempo, a cocaina iniciava a difuso dos vasos coronrios para o fluido extracelular e banhava as atarefadas fibras musculares do corao. A, o composto intruso comeou a interromper o movimento de ies de sdio, atravs das membranas das clulas do corao, parte critica dafuno contrctil muscular deste ltimo. O resultado consistiu no incio da insuficincia da condutividade e contractilidade cardacas. Simultaneamente, as molculas de cocaina espalharam-se pelo crebro, depois de ascenderem ao crnio atravs das artrias cartidas. Como faca em manteiga, a cocaina atravessou a barreira do crebro constit uida pelo sangue. Uma vez dentro do crebro, alagou as clulas cerebrais indefesas e introduziu-se em espaos chamados sinapses, atravs dos quais as clulas nervosas comunicavam. No interior das sinapses, a cocana principiou a exercer os seus efeitos mais perversos. Tornou-se uma personificadora. Por irnica deformao do destino qumico, uma poro exterior da molcula de cocanafoi reconhecida erradamente pel as clulas nervosas como um neurotransmissor - epinefrna, norepinefrina ou dopamina . semelhana de chaves-mestras, as molculas de cocaina insinuaram-se nas bombas moleculares responsveis pela absoro desses neurotransmissores, fecharam-nas e obrigaram-nas a parar subitamente. O resultado era previsvel. Como a reabsoro dos neurotransmissores estava bloqueada, o efeito estimulante destes ltimos manteve-se. E a estimulao provocou a libertao de mais neurotransmissores numa espiral ascendente de excitao eufrica. Clulas nervosas, que normalmente regressariam ao repouso e serenidade, passaram a explodir num autntico frenesim. O crebro aumentou progressivamente de actividade, em particular os centros de prazer embebidos em profundidade abaixo do crtice cerebral, onde a dopamina era o principal neurotransmissor. Com uma predileco perversa, a cocaina bloqueou as bombas de dopamina, cuja concentrao se avolumou. Circuitos de clulas nervosas, ligadas divinamente para garantir a sobrevivncia da espcie, vibraram de excitao eencheram diferentes passagens de acesso ao crtice de mensagens extticas. Mas os centros do prazer no eram as nicas reas afectadas do crebro de Duncan - apenas algumas das primeiras. Afaceta tenebrosa da cocaina no tardou a encetar os seus efeitos. Filogeneticamente mais velhos, outros centros caudais do crebro, que envolviam funes como a coordenao muscular e a regulao da respirao, passaram a ser afectados. A prpria rea termorreguladora comeou a ser estimulada, assim como a parte do crebro responsvel pelos vmitos. A situao era, por conseguinte, grave. No meio dofluxo de impulsos apraziveis, esta va a gerar-se uma condio ominosa. Formava-se no horizonte uma nuvem negra que augurava uma tempestade neurolgica. A cocaina preparava-se para revelar a sua ndole traioeira: um lacaio da morte disfarado numa aura de prazer enganador. PRLOGO A mente de Duncan Andrews funcionava a toda a velocidade, como um comboio desarvorado. Apenas um momento antes, estivera mergulhado numa letargia titubeante de drogado. Em escassos segundos, as vertigens e apatia tinham-se evaporado como um gotejamento de gua numa caarola crepitante. Consumia-o um afluxo de euforia e energia que o fazia sentir-se subitamente poderoso. Afigurava-se-lhe que era capaz de tudo. Num fulgor de nova clareza, reconhecia-se infinitamente mais forte e sagaz do que jamais supusera. Mas quando principiava a saborear a cascata de pensamentos eufricos e a viso iluminada das suas capacidades, passou a sentir-se dominado por intensas vagas de prazer. Teria gritado de alegria se a boca pudesse formar as palavras apropriadas. Mas no conseguia falar. Os pensamentos e as sensaes repercutiam-se no esprito demasiado rapidamente para se vocalizarem. Qualquer receio ou desconfiana que tivesse experimentado poucos minutos antes fundia-se no novo deleite e xtase. No entanto, semelhana do torpor, o prazer foi de curta durao. O sorriso de felicidade que se lhe formara no rosto converteu-se num esgar de terror. Uma voz advertiu-o de que as pessoas que temia se aproximavam. Os seus olhos esquadrinharam o aposento, dominados pelo pnico. No viu ningum, mas a voz prosseguiu a sua mensagem. Espreitou rapidamente por cima do ombro, para a cozinha. Estava deserta. Tornou a mover a cabea e observou o corredor at ao quarto. No viu ningum, porm a voz persistia. Agora, murmurava uma predio mais terrvel: ele ia morrer. - Quem voc? - gritou, levando as mos s orelhas, como se quisesse impedir o som de entrar. - Onde est? Como entrou? - Os olhos voltaram a percorrer a sala com ansiedade. A voz no respondeu. Ele no sabia que provinha do interior da sua cabea. Descobriu, surpreendido, que estava deitado no cho da sala. Quando se levantava, o ombro colidiu com a mesa de caf. A seringa que se cravara muito recentemente no seu brao rolou para o cho. Duncan olhou-a com um misto de dio e pesar e estendeu a mo para a esmagar entre os dedos. Imobilizou-se a curta distncia dela. Os olhos arregalaram-se de confuso mesclada com um novo medo. Sentiu imediatamente a comicho inconfundvel de centenas de insectos que rastejavam pelos braos. Desinteressou-se da seringa e estendeu as mos, com as palmas voltadas para cima. Podia notar as pulgas quetrepavam pelos membros, mas por mais que procurasse no conseguia v-las. A pele parecia perfeitamente limpa. De sbito, a comicho propagou-se s pernas. - Aaahhh! - uivou. Tentou limpar os braos, imaginando que os insectos eram demasiado pequenos para que os pudesse ver, mas s conseguiu que a comicho se agravasse. Com um estremecimento de medo profundo, acudiu-lhe a ideia de que os organismos tinham de estar sob a pele. Haviam-lhe invadido o corpo. Talvez se encontrassem na seringa. Servindo-se das unhas, comeou a coar os braos, numa tentativa frentica para permitir que se escapassem. Estavam a devor-lo por dentro. Passou a coar com mais fora, desesperadamente, e cravou as unhas na pele at que comeou a sangrar. A dor era intensa, mas a comicho dos insectos muito pior. Apesar do terror que eles lhe provocavam, parou de se coar ao aperceber-se de um novo sintoma. Levantou a mo ensanguentada e viu que tremia. Baixou os olhos para o corpo e verificou que o tremor se generalizara e era cada vez mais intenso. Por um breve instante, considerou a possibilidade de marcar 911, para pedir auxlio. Ao mesmo tempo, porm, reparou noutra coisa. Estava quente. No, estava a escaldar. - Meu Deus! - conseguiu balbuciar, quando notou que a transpirao rolava pelo rosto. Pousou a mo trmula na fronte - estava a arder! Tentou desabotoar a camisa, mas o tremor dos dedos no lho permitiu. Impaciente e desesperado, rasgou-a com um puxo, despiu-a e largou-a no cho. Fez o mesmo s calas. Apesar de ficar apenas com as cuecas vestidas, continuava a sentir um calor sufocante. De repente, ps-se a tossir, engasgou-se e vomitou num jacto irreprimvel, que atingiu a parede por baixo de uma litografia assinada por Dali. Cambaleou em direco casa de banho. Graas a um assomo de fora de vontade, arrastou o corpo trmulo para debaixo do chuveiro e abriu a torneira de gua fria. Permaneceu sob a cascata quase gelada, ofegante, respirando com dificuldade. O alvio foi de curta durao. Escapou-se-lhe dos lbios um gemido plangente e a respirao tornou-se penosa, enquanto uma dor excruciante se cravava no lado esquerdo do peito e propagava ao longo do brao. Duncan pressentiu intuitivamente que se desencadeara um ataque cardaco. Apertou o peito com a mo direita. O sangue dos braos feridos pelas unhas misturava-se com a gua do chuveiro e escoava-se pelo ralo. Quase rastejando, abandonou a casa de banho e dirigiu-se para a porta do apartamento. No se preocupava com o facto de estar desnudo, pois precisava de ar. O crebro em turbilho estava prestes a explodir. Recorrendo derradeira reserva de energia, rodeou o puxador com os dedos e abriu a porta. - Duncan! - exclamou Sara letherbee, abismada, a mo suspensa no ar a poucos centmetros da porta dele, pois preparava-se para bater, quando esta se abrira de rompante. - Meu Deus! - prosseguiu,ao v-lo e m cuecas. - Que te aconteceu? Duncan no reconheceu a amante dos ltimos dois anos e meio.Precisava era de ar.A dor intensa no peito transmitira-se aos pulmes,e tinha a impresso de que o apunhalavam repetidamente. Precipitou-se para a frente, enquanto estendia o brao para afastar Sara do caminho. - Duncan! - repetiu ela,perplexa com o que via: a nudez, os arranhes nos braos,o olhar esgazeado e trejeitos de dor no rosto.Recusando desviar-se,pousou-lhe as mos nos ombros e deteve-o.- Que se passa? Onde vais? Ele hesitou.Por um breve momento,a voz dela penetrou na sua demncia.A boca abriu -se como se fosse dizer alguma coisa. No entanto, no conseguiu proferir uma nica palavra.Ao invs,novo gemido,que terminou numa exclamao abafada,enquanto os tre mores coagulavam em estremecimentos espasmdicos e os olhos desapareciam no interior da cabea.Misericordiosamente inconsciente, tombou nos braos de Sara. A princpio,ela esforou-se para o manter de p,mas no conseguiu,em especial porque os tremores convulsivos se tornavam progressivam ente mais violentos.Por fim,com a maior suavidade possvel,deixou o corpo agitado deslizar para o cho.Quase no mesmo instante em que pousaram no soalho,as costas d e Duncan formaram um arco e os tremores cristalizaram rapidamente nas contraces es pasmdicas de uma doena grave. - Acudam! - gritou Sara,olhando em volta. Como era de prever,no apareceu ningum.Alm do rudo que Duncan produzia,o nico som que conseguia ouvir eram os acordes ensurdecedores de um equipamento de alta-fidelidade. Desesperada por obter ajuda,conseguiu passar por cima do corpo convulsivo de Du ncan.O vislumbre da boca ensanguentada e coberta de espuma aterrorizou-a ainda m ais.Ansiava por que aparecesse algum,mas no sabia o que fazer alm de chamar uma amb ulncia.Com o dedo trmulo,premiu os botes do telefone da sala para ligar ao 13911. E nquanto aguardava com impacincia que atendessem, ouvia a cabea dele bater repetida mente no cho. Sara estremecia de pavor ante cada embate e rogava aos cus que o aux ilio chegasse sem demora. Ela afastou as mos do rosto e olhou o relgio. Eram quase trs horas da madrugada. En contrava-se sentada naquela cadeira de frmica da sala de espera do Hospital Geral de Manhattan havia mais de trs horas. Esquadrinhou pela milsima vez o apinhado aposento, que tresandava a fumo de cigarro, suor, lcool e roupa de l hmida. Havia um grande letreiro mesmo em frente dela que dizia: NO FUMAR, Mas o aviso era totalmente ignorado. Os doentes misturavam-se com aqueles que os acompanhavam. Havia bebs e crianas de tenra idade que comeavam a andar, ruidosos, brios feridos por espancamento ou outras causas similares e alguns pacientes que envolviam um dedo cortado num pedao de pano ou com uma toalha encostada a um queixo esfaqueado. A maioria fixava o olhar no espao sua frente, com indiferena, alheia espera interminvel. Uns estavam obviamente doentes e outros sob o efeito de dores agudas. Um homem trajado de forma irrepreensvel tinha o brao em torno da no menos elegante companheira. Poucos momentos antes, travara-se de razes com uma enfermeira de ares intimidativos, que no se mostrara impressionada com a sua ameaa de telefonar ao advogado se a mulher no fosse observada imediatamente. Por fim, resignado, tambm olhava um ponto indefinido sua frente. Sara voltou a fechar os olhos e sentiu o latejar das pulsaes nas tmporas. A imagem vvida de Duncan dominado por convulses entrada do apartamento no lhe abandonava o esprito. Ela sabia que, independentemente do que acontecesse naquela noite, jamais conseguiria varrer a viso da mente. Depois de chamar a ambulncia e indicar o endereo dele, voltara para o seu lado. Recordara-se vagamente de que devia ser introduzido alg o na boca de uma pessoa sob oefeito de convulses para que no mordesse a lngua. No entanto, por mais esforos que f izesse, no conseguira descerrar-lhe os dentes, como que grudados. Pouco antes da apario do mdico, Duncan parara finalmente de se agitar em estremecimentos espasmdicos. A princpio, Sara ficara aliviada, mas apercebera-se a seguir, com renovado alarme, que ele no respirava. Limpou-lhe a espuma e os vestgios de sangue dos lbios e tentou a respirao boca a boca, mas descobriu que tinha de lutar contra a nusea. Entretanto, haviam acudido ao corredor vrios vizinhos de Duncan e, ante o alvio dela, algum disse que fora enfermeiro na marinha e, juntamente com outro indivduo, prestou assistncia ao sinistrado at chegada da ambulncia. Sara no conseguia imaginar o que acontecera. Apenas meia hora antes, ele telefonara-lhe para que o procurasse. Julgara detectar uma ponta de tenso na voz, mas, de qualquer modo, no se achava minimamente preparada para o encontrar em semelhante estado. Estremeceu mais uma vez ao v-lo estendido na sua frente entrada do apartamento, com as mos e braos ensanguentados e o olhar esgazeado. Dir-se-ia que enlouquecera. Viu-o pela ltima vez, num instante fugaz, depois de chegarem ao Hospital Geral. Tinham-na autorizado a seguir na ambulncia, que efectuou o percurso a uma velocidade alucinante pelo trfego intenso de Nova Iorque. Eles levaram-no atravs de um par de portas de vaivm e desapareceram nas entranhas da unidade de emergncia. Ela ainda tinha presente o momento em que a maca de rodas as transpusera, com o mdico a efectuar compresses no peito. - Sara - chamou uma voz, que a arrancou das cogitaes. - Sim? - articulou, erguendo os olhos. Um jovem mdico que apresentava uma barba por fazer e trazia uma bata branca algo salpicada de sangue materializara-se diante dela. - Sou o doutor Murray. Importa-se de vir comigo? Preciso de falar consigo por um momento. - Com certeza - assentiu Sara, com nervosismo. Levantou-se e ajeitou a correia da carteira a tiracolo, aps o que principiou a caminhar atrs do mdico, que dera meia volta quase antes que ela tivesse tempo de responder. As mesmas portas que haviam tragado Duncan trs horas antes fecharam-se agora atrs de ambos. O doutor Murray deteve-se quase imediatamente e virou-se para a encarar. Sara fitou com ansiedade os seus olhos fatigados, empenhada em divisar uma rstia de esperana, que, no entanto, se achava totalmente ausente. - a namorada do senhor Andrews? - comeou ele, num tom que denunciava igualmente cansao. Fez uma pausa, enquanto ela aquiescia com um leve movimento de cabea. - Em regra, falamos primeiro com a famlia, mas sei que veio com o paciente e tem estado todo este tempo espera. Lamento que demorasse tanto, mas chegaram vrias vtimas de uma cena de tiros que nos monopolizaram por completo. - Compreendo - murmurou Sara. - Como est o Duncan? - Tinha de fazer a pergunta, embora no se achasse muito ansiosa por conhecer a resposta. - Posso garantir-lhe que o pessoal clnico fez tudo o que estava ao seu alcance. Infelizmente, no foi possvel salv-lo. Ele estava DOA. Sinto muito...Olhou-o com incredulidade, desejosa de notar uma ponta do mesmo pesar que se avolumava no seu ntimo. No entanto, a nica coisa de que se apercebia era cansao. A aparente ausncia de sensibilidade dele ajudou-a a manter a serenidade. - Que aconteceu? - perguntou, quase num murmrio. - Estamos noventa por cento convencidos de que a causa imediata foi um enfarte macio do miocrdio, ou ataque cardaco - informou ele, obviamente mais vontaDe com a sua terminologia profission al. - Mas a principal parece residir numa toxicidade de drogas, ou overdose. Ainda no sabemos qual era o seu nvel sanguneo. uma coisa que tarda algum tempo. - Drogas? - repetiu Sara, perplexa. - Refere-se a alguma em especial? - Cocana. O mdico da ambulncia at trouxe a agulha que ele utilizou. - Nunca me constou que o Duncan consumisse cocana. Disse mais de uma vez que no queria nada com as drogas. - As pessoas costumam mentir acerca do sexo e das drogas. E, sobre a cocana, h casos em que uma vez basta. Pouca gente est ao corrente do perigo que representa. A sua popularidade infundiu uma falsa sensao de segurana. De qualquer modo, precisamos de contactar com a famlia. Sabe o nmero do seu telefone? Aturdida pela morte de Duncan e a revelao do aparente consumo de cocana, Sara recitou em voz tona o nmero do telefone dos Andrews. O facto de pensar em drogas permitia-lhe evitar concentrar-se na morte. Ao mesmo tempo, interrogava-se acerca de h quanto tempo ele se injectaria sem o seu conhecimento. Era to difcil de compreender. . . E ela convencida de que o conhecia muito bem! CAPTULO 1 NOVEMBRO, SEGUNDA-FEIRA, 6 horas NOVA IORQUE A campainha do velho Westclox de corda nunca deixava de arrancar Laurie Montgomery das profundezas de um sono reparador. Embora possusse o despertador desde o primeiro ano da universidade, ainda no se habituara ao temvel retinir. Acordava-a sempre com um sobressalto, e ela precipitava-se invariavelmente sobre a malfadada maquineta, como se a sua vida dependesse do facto de desligar o alarme to depressa quanto o humanamente possvel. Aquela manh chuvosa de Novembro no constitua uma excepo. Quando pousou o despertador no parapeito da janela, sentia o corao palpitar aceleradamente. Era o jacto de adrenalina que tornava o episdio quotidiano to eficiente. Mesmo que pudesse voltar para a cama, nunca conseguiria tornar a adormecer. E acontecia o mesmo ao Tom, o gato castanho de dezoito meses, que, ao soar a campainha, se refugiava nas profundezas do armrio do quarto. Resignada com o incio de mais um dia, Laurie levantou-se, enfiou os ps nos chinelos de pele de carneiro e ligou o televisor para se inteirar das ltimas notcias. O apartamento compunha-se de uma nica assoalhada num prdio de cinco andares da Rua 19, entre a Primeira e a Segunda avenidas. Situava-se no quarto, nas traseiras, e as duasjanelas abriam-se para uma coelheira de ptio. Ligou a mquina de caf na minscula cozinha. Na vspera, antes de se deitar, deixara-a preparada para agora no ter de perder tempo. Em seg uida, entrou na casa de banho e observou-se ao espelho. - Que horror! - murmurou, enquanto esquadrinhava os estragos produzidos por mais uma noite de sono insuficiente. Tinha os olhos inchados e congestionados. No gostava de se levantar cedo, era uma ave nocturna inveterada, alm de que lhe agradava ler at tarde, apenas pelo prazer que a leitura lhe proporcionava, indiferente ao facto de se tratar de um tratado de patologia ou de um best-seller. No tocante fico, os seus interesses eram catlicos. As prateleiras da estante estavam cheias de obras dspares que incluam sagas romnticas, romances de suspense, livros de histria, cincia geral e at psicologia. Na noite anterior, fora a vez de um enigma policial, que no largara at se inteirar do desfecho. Antes de apagar a luz, no teve coragem de ver as horas. Como de costume, de manh jurou a si prpria no voltar a ficar acordada at tarde. Debaixo do duche, a mente desanuviou-se o suficiente para que comeasse a ponderar os problemas que enfrentaria nesse dia. Decorria o seu quinto ms de patologista no Gabinete da Inspeco Mdica Principal da Cidade de Nova Iorque. No fim-de-semana anterior, estivera de servio, o que significava que tivera de trabalhar sbado e domingo, durante os quais realizara seis autpsias - trs em cada dia. Alguns desses casos exigiam exames posteriores antes de poderem seguir os trmites usuais, e comeou a elaborar uma lista mental do que tinha de fazer. Por fim, abandonou o chuveiro e secou-se apressadamente. Congratulava-se com o facto de se tratar de um dia de expediente, o que significava que no lhe atribuiriam autpsias adicionais. Assim, disporia de tempo para se ocupar dos relatrios das que j efectuara. Aguardava a chegada de material do laboratrio, das investigadoras do Gabinete, dos hospitais ou mdicos locais ou da polcia sobre vinte casos. Era essa avalancha de papelada que ameaava constantemente sufoc-la. De novo na cozinha, Laurie encheu uma chvena de caf e voltou casa de banho para se maquilhar e secar o cabelo. Esta ltima operao era sempre a mais demorada. Orgulhava-se do cabelo que possua, castanho-alourado, longo e denso. Na realidade, considerava-o o seu melhor atributo. A me aconselhava-a constantemente a cort-lo, porm ela preferia-o assim. Quanto aos retoques no rosto, partilhava do princpio de que uo mnimo o melhor. Por ltimo, satisfeita com o resultado dos seus esforos, pegou na chvena e encaminhou-se para o quarto. Entretanto, principiara o programa "Bom Dia, Amrica", que escutou enquanto vestia a roupa que deixara preparada de vspera. Embora a patologia legal constitusse um mundo de predominncia masculina, Laurie gostava de acentuar a sua feminidade com a indumentria. Assim, enfiou uma saia verde e camisola de gola alta a condizer. O espelho revelou-lhe um resultado satisfatrio, alm de que nunca usara aquele conjunto. Fazia-a parecer mais alta do que o seu metro e setenta e at mais esbelta do que os cinquenta e cinco quilogramas permitiam antever. Depois de tomar o caf, tragar um iogurte e deixar comida para o gato no respectivo recipiente, vestiu o impermevel. Aseguir, pegou na carteira, no embrulho do almoo, que tambm preparara na vspera, e na pasta e abandonou o apartamento. Necessitou de um minuto para fechar a coleco de dispositivos de segurana da porta a um legado do inquilino que a precedera. virou-se para o el evador e premiu o boto de descida. Como que em obedincia a um sinal, no momento em que a velha cabina iniciou a ruidosa ascenso, ela ouviu o estalido do fecho da p orta de Debra Engler, que se entreabriu, e a corrente de segurana ficou tensa, en quanto um dos olhos congestionados da mulher surgia no estreito espao. Acima do olho, via-se uma madeixa de cabelo grisalho. Laurie assumiu uma expresso de desafio. Dir-se-ia que a vizinha assomava porta ao mnimo som registado no corredor. A intruso repetitiva irritava-lhe os nervos. Afigurava-se-lhe uma espcie de violao da privacidade, embora o corredor constitusse uma rea comum. - melhor levar o guarda-chuva - recomendou Debra, na habitual voz rouca de fumadora. O facto de ela ter razo contribuiu para intensificar a contrariedade de Laurie. Na verdade, esquecera-se do guarda-chuva e retrocedeu para o ir buscar. Cinco minutos mais tarde, quando se encaminhava de novo para o elevador, viu que o olho congestionado de Debra continuava atentamente vigilante. A irritao dissipou-se gradualmente, enquanto a cabina descia, e Laurie concentrou as reflexes no caso que mais a preocupara durante o fim-de-semana: o garoto de doze anos atingido no peito por uma bola de softball. "A vida no justa"!, murmurou para consigo, ao pensar na morte prematura do rapaz. Na verdade, as mortes das crianas eram dificeis de compreender. Acalentara a esperana de a escola mdica a imunizar contra semelhantes injustias da Providncia, mas tal no acontecera. E a residncia no Departamento de Patologia to-pouco. Agora que trabalhava na patologia legal, aqueles desenlaces revelavam-se ainda mais dificeis de aceitar. E eram tantos! At ao momento do acidente, o garoto atingido pela bola fora perfeitamente saudvel, exultante de vitalidade. Ela conseguia rever o pequeno corpo na mesa de autpsias - uma imagem de sade, aparentemente adormecido. No obstante, fora obrigada a pegar no bisturi para o retalhar como um peixe. Engoliu com dificuldade no momento em que o ascensor se imobilizou. Os casos como o daquela criana levavam-na a duvidar da carreira que escolhera, e perguntava-se se no teria sido prefervel optar pela pediatria, em que s se lhe deparariam garotos vivos. Com efeito, o ramo de medicina que escolhera podia revelar-se sinistro. Apesar de tudo, estava grata a Debra por lhe fazer lembrar as condies atmosfricas. O vento soprava com rajadas fortes e a chuva desabava com intensidade. O aspecto da sua rua num dia daqueles obrigou-a a pr em causa a escolha do local para viver, como antes acontecera acerca da profisso. Na realidade, a artria em que os detritos se amontoavam no constitua um espectculo atraente. Talvez devesse ter preferido uma cidade menos antiga e mais asseada, como Atlanta, ou de Vero perptuo, como Miami. Com um leve suspiro de resignao, abriu o guarda-chuva e colocou-o na posio apropriada para enfrentar o vento, enquanto se dirigia para a Primeira Avenida. Entretanto, pensava numa das ironias da sua carreira. Escolhera a patologia por vrias razes. Antes de mais,considerara que um horrio de trabalho relativamente fixo lhe tornaria mais fcil combinar a medicina com a constituio de uma famlia. Mas o problema consistia em que no tinha famlia, a menos que considerasse os pais, que, no fundo, no contavam para o efeito. Na verdade, no mantinham um contacto significativo. Laurie nunca imaginara que, aos trinta e dois anos, no teria filhos e muito menos que seria solteira. O breve trajecto num txi conduzido por um homem de cuja nacionalidade no fazia a menor ideia levou-a esquina da Primeira Avenida com a Rua 13. A utilizao daquele meio de transporte no era vulgar. Em circunstncias normais, a combinao de chuva e perodo de ponta indicava a ausncia de txis. Nessa manh, porm, algum se apeara de um no momento em que ela alcanava a Primeira Avenida. Em todo o caso, mesmo que tal no acontecesse, as consequncias no seriam catastrficas. Era uma das vantagens de morar a apenas onze quarteires do local de trabalho. Havia dias em que fazia aquele percurso a p nos dois sentidos. Depois de pagar ao motorista, comeou a subir os degraus de acesso ao Gabinete da Inspeco Mdica Principal da Cidade de Nova Iorque. O edifcio, de cinco pisos, era reduzido sua aparente insignificncia pelo resto do Centro Mdico da Universidade de Nova Iorque e do complexo do Hospital Bellevue. A sua fachada compunha-se de tijolos azuis e brilhantes, com caixilhos de janelas e portas de alumnio de uma configurao moderna destituda de atractivos. Normalmente, Laurie no prestava ateno ao edifcio, mas naquela segunda-feira chuvosa de Novembro no o poupou ao seu olhar crtico, como acontecera rua em que vivia. O conjunto era deprimente, como se via forada a reconhecer. Meneava a cabea, duvidando de que o arquitecto se sentisse sinceramente satisfeito com a sua obra, quando se apercebeu de que o trio estava cheio de gente. A porta principal achava-se escancarada, apesar da temperatura e tempo desagradveis, e o fumo de tabaco irrompia numa nuvem. Curiosa, abriu caminho por entre a multido, em direco ao Departamento de Identificao. Marlene Jilson, a recepcionista habitual, estava obviamente confusa com a avalancha de perguntas que pelo menos dez pessoas postadas em torno da secretria lhe disparavam. Registava-se uma invaso dos media, com cmaras, gravadores, camcorders de TV eflashs. Era indiscutvel que acontecera algo de invulgar. Aps breve pantomima para atrair a ateno de Marlene, Laurie conseguiu transferir-se para a rea interior, e experimentou uma sensao de alvio no instante em que a porta se fechou e extinguiu a indesejvel mescla de vozes agitadas e fumo acre de cigarro. Fez uma pausa para dirigir uma olhadela sala sombria onde membros de famlias se reuniam para identificar os corpos sem vida, e ficou levemente surpreendida ao v-la deserta. Depois da balbrdia entrada, esperara avistar um grupo de pessoas assaz compacto. Por fim, encolheu levemente os ombros e passou ao Departamento de Identificao. A primeira pessoa que viu foi Vinnie Amendola, um dos tcnicos morturios. Alheio ao pandemnio na rea de recepo, tomava caf e lia a seco desportiva do New York Post, com os ps pousados na borda de uma das secretrias de metal. Como sempre antes das oito horas da manh, era a nica pessoa na sala, e tinha a seu cargo fazer caf na enorme mquina estilo comercial que se encontrava no gabinete contguo, que cumpria numerosas funes, entre as quais a de rea de concentraoinformal. - Que se passa? - perguntou Laurie, enquanto pegava na escala de autpsias para o dia, pois, mesmo que no estivesse escalada, tinha sempre curiosidade em saber que casos haviam chegado recentemente. - Complicaes - replicou Vinnie, secamente, baixando o jornal. - De que espcie? Ela observou, atravs da porta de acesso sala de comunicaes, que as duas recepcionistas do turno de dia estavam ocupadas ao telefone, enquanto os quadros sua frente tinham diversas luzes acesas, indicativas de chamadas que aguardavam atendimento. - Mais um belo homicdio. Uma adolescente estrangulada aparentemente pelo namorado. Sexo e drogas. Coisas de gente rica. Foi nas proximidades da Taverna Verde. Devido ao rebulio provocado pelo primeiro caso, h um par de anos, os media no nos desamparam a loja desde a chegada do corpo. Laurie encheu uma chvena de caf e fez estalar a lngua. - Uma tristeza para todos. Uma vida perdida e outra arruinada. - Adicionou leite e acar. - Quem se ocupa do caso? - O doutor Plodgett. Foi chamado pelo mdico de servio e teve de se apresentar no local, cerca das trs da madrugada. No pde evitar um suspiro de compaixo por Paul. Um assunto daquela natureza resultaria sem dvida penoso, devido sua relativa inexperincia, como se passava consigo prpria, depois de exercer as funes de mdico associado durante mais de um ano, enquanto ela prestava servio no hospital havia apenas quatro meses e meio. - Onde est ele agora? No seu gabinete? - No. Ocupa-se da autpsia. -J? - estranhou. - Para qu tanta pressa? - No fao a menor ideia, mas os tipos que saam de servio do "cemitrio" disseram-me que o Bingham chegou por volta das seis. Suponho que o Paul os chamou. - O caso est a tornar-se cada vez mais intrigante - comentou, reflectindo que o doutor Harold Bingham, de cinquenta e oito anos, era o inspector-mdico principal de Nova Iorque, cargo que o tornava uma figura poderosa no campo da medicina legal. - Acho que vou at cova ver o que se passa. - No seu lugar, teria cautela - advertiu Vinnie, voltando a concentrar-se no jornal. - Eu prprio tencionava ir at l, mas ouvi dizer que o Bingham no est nos seus melhores dias. No que isso constitua uma excepo. . . Laurie inclinou a cabea e afastou-se. Para evitar a multido de reprteres na rea de recepo, deu uma volta em direco aos elevadores, atravs das Comunicaes, onde as duas secretrias estavam demasiado atarefadas para a saudar. Acenou a um dos dois detectives de servio na seco do inspector-mdico, sentado no cubculo que servia de escritrio, sada da sala de comunicaes, o qual tambm se encontrava ao telefone. Depois de transpor nova porta, Laurie assomou entrada de cada um dos gabinetes das investigadoras de medicina legal para lhes dar os bons-dias, mas ainda no chegara qualquer delas. Uma vez diante dos elevadores principais, premiu o boto de subida e, como de costume, teve de aguardar pacientemente que o velho mecanismo actuasse. sua direita, avistou a massa de reprteres na rea de recepo, atravs da porta ao fundo do corredor.Enquanto subia ao seu gabinete no quarto piso, especulava mentalmente sobre o significado de presena to matutina, no s no edifcio mas tambm na sala de autpsias, ocorrncias raras que lhe aguavam a curiosidade. Como a sua companheira de trabalho, doutora Riva Mehta, ainda no chegara, permaneceu l apenas alguns minutos. Guardou a pasta, carteira e almoo no seu ficheiro metlico, que fechou chave, e vestiu a bata verde de servio. Como no tinha de fazer qualquer autpsia, considerou desnecessrio proteger-se com a habitual segunda camada de roupa impenetrvel. De novo no elevador, desceu ao nvel da cave, onde se situava a morgue. No se trata va propriamente de uma cave, porque, na verdade, se situava altura da rua do lado do edifcio na Rua 13. Os corpos chegavam morgue e abandonavam-na pela plataforma de carga e descarga dessa seco. No vestirio, que raramente utilizava, pois preferia mudar de roupa no seu gabinete, Laurie muniu-se de galochas de proteco, um avental, uma mscara e respectivo capuz. Uma vez com a nova indumentria, como se fosse praticar uma interveno cirrgica, impeliu a porta da sala de autpsias. A "cova", como lhe chamavam com ternura, era uma sala de cerca de dezassete metros de comprimento por dez de largura, outrora considerada provida de todos os requisitos modernos. Mas essa poca pertencia a um passado distante. semelhana de outros lugares oficiais da cidade, a assistncia meticulosa e constante e a modernizao haviam-se ressentido da falta de fundos. As oito mesas de ao inoxidvel estavam velhas e manchadas devido ao nmero incontvel de autpsias nelas efectuadas. Ao longo das paredes, viam-se bacias de lavatrio, caixas para viso de radiografias, armrios antigos de vidro despolido e seces da canalizao expostas. No havia uma nica janela. Apenas uma mesa se achava em funcionamento: a segunda a contar do fundo, direita de Laurie. No momento em que a porta se fechou atrs dela, os trs mdicos de bata, mscara e capuz agrupados em torno da mesa ergueram a cabea por uns instantes para ver de quem se tratava, antes de reatarem a sinistra tarefa. Estendido na mesa, encontrava-se o corpo desnudo, branco como o marfim, de uma adolescente, iluminado por um nico conjunto de tubos fluorescentes azulados directamente por cima. A lgubre cena era agravada pelo som de suco produzido pela gua que deslizava para o esgoto aos ps da mesa. Laurie sentiu o impulso quase irresistvel de dar meia volta e sair, mas conseguiu domin-lo. Ao invs, avanou para o trio. Como os conhecia bem, identificou-os, apesar do uniforme de trabalho, que tambm inclua culos de lentes largas. No lado oposto da mesa, de frente para Laurie, encontrava-se Bingham, um homem baixo, atarracado, de feies graves e nariz bolboso. - Com mil demnios, Paul! - vociferou. - a primeira vez que efectua uma disseco do pescoo? Tenho marcada uma conferncia de imprensa e voc est para a a tentear como um estudante de medicina do primeiro ano! D c o bisturi! Arrancou o instrumento da mo do interpelado e debruou-se sobre o corpo. Um raio de luz reflectiu-se na lmina cortante de ao inoxidvel. Laurie acercou-se mais da mesa e postou-se direita de Paul. Este pressentiu a sua presena, voltou a cabea e, por um momento, os seus olhares cruzaram-se. Ela apercebeu-se de queo colega estava perturbado. Tentou incutir-lhe nimo com a mirada, porm ele apressou-se a desviar a sua. Laurie dirigiu uma olhadela ao tcnico da morgue, que se abstinha de virar a cabea para aquele lado. A atmosfera era explosiva. Por fim, ela baixou os olhos para observar o que Bingham fazia. O pescoo da morta fora aberto por meio de uma inciso algo antiquada que se prolongava da extremidade do queixo at ao topo do esterno. A pele tinha sido puxada para o lado, como a gola de uma blusa, e Bingham preparava-se para libertar os msculos em redor da cartilagem tiroideia e do osso hiide. Laurie viu sinais de trauma pr-mortal, com hemorragia nos tecidos. - O que ainda no percebi - volveu o cirurgio, sem erguer os olhos - porque no ensacou as mos. Quer ter a gentileza de me elucidar? O olhar dela tornou a cruzar com o de Paul, e compreendeu instantaneamente que ele no tinha qualquer explicao plausvel. Gostaria de o ajudar, mas no vislumbrava como. Assim, embora compartilhasse do desconforto do colega, afastou-se da mesa e, conquanto envergasse a indumentria apropriada, acabou por a bandonar a sala de autpsias. A tenso era excessiva para que permanecesse ali, e no queria agravar a situao de Paul fornecendo a Bingham um auditrio mais numeroso. Regressou ao seu gabinete, depois de se desembaraar da camada exterior de vesturio protector, sentou-se secretria e comeou a trabalhar. A fase inicial consistia em completar o que pudesse sobre as trs autpsias a que procedera no domingo. O primeiro dos casos referia-se ao rapaz de doze anos, enquanto o segundo dizia claramente respeito a uma overdose de herona, apesar do que reviu os factos. Tinham sido encontrados apetrechos relacionados com a droga junto da vtima, um toxicmano conhecido. A autpsia revelara numerosas picadelas de injeces intravenosas, antigas e recentes. No brao direito, via-se uma tatuagem: "Nascido para Perder." Internamente, existiam os sinais usuais de morte por asfixia, com um edema pulmonar espumoso. Embora ainda se achassem em curso estudos microscpicos no laboratrio, Laurie estava razoavelmente convencida de que a causa da morte fora acidental. O terceiro caso diferia substancialmente dos anteriores. Uma hospedeira de bordo, de vinte e quatro anos, fora descoberta em casa, em roupo de banho, tendo aparentemente cado inanimada no corredor junto da casa de banho, pela jovem com quem vivia. Tratava-se de uma moa saudvel, que acabava de regressar de uma viagem a Los Angeles, alm de que, que se soubesse, no consumia drogas. Laurie efectuara a autpsia, mas no encontrara qualquer indcio revelador. Tudo o que se lhe deparara podia considerar-se absolutamente normal. Preocupada com o caso, pedira a uma das investigadoras mdicas que localizasse o ginecologista da vtima, com o qual mais tarde falara, e obtivera a informao de que a jovem desfrutava de excelente sade. O ltimo exame datava de h poucos meses. Como tivera um caso similar recentemente, Laurie indicara investigadora que visi tasse o apartamento da hospedeira de bordo e trouxesse todos os utenslios elctricos existentes na casa de banho. Agora, em cima da secretria, achava-se uma caixa de carto com um bilhete da investigadora em que referia que o contedo era tudo o que conseguiraencontrar. Com a unha, Laurie retirou a fita gomada que selava a caixa, levantou a tampa e espreitou para dentro. Continha um secador de cabelo e um ferro de frisar. Em seguida, transferiu os dois utenslios para o tampo da secretria, e da gaveta inferior do lado direito extraiu um aparelho chamado ohmmetro. Comeando pelo secador, verificou a resistncia elctrica entre os terminais da ficha e o aparelho. Em ambos os casos, obteve uma leitura extremamente baixa. Suspeitando de que seguia a pista errada, repetiu a experincia com o frisador de cabelo e, surpreendida, viu-se perante um resultado positivo. Entre um dos terminais e o envoltrio, a leitura revelou zero ohms, o que significava a passagem livre de corrente. Pegou em algumas ferramentas bsicas que guardava na secretria, entre as quais uma chave de fendas e um alicate, abriu o frisador e descobriu imediatamente o condutor sem revestimento que contactava com o envoltrio. No restavam dvidas de que a infortunada hospedeira de bordo fora vtima de electrocusso de baixa tenso. Como acontecia com frequncia, a vtima tivera tempo de largar o aparelho e sair da casa de banho antes de sucumbir a uma arritmia cardaca fatal. Por conseguinte, a causa da morte devera-se a electrocusso e a forma fora acidental. Com o frisador de cabelo "autopsiado" em cima da secretria, Laurie pegou na sua mquina fotogrfica e disps as peas para expor a ligao deficiente. Em seguida, levantou-se para lhes apontar a objectiva directamente de cima. Enquanto espreitava pelo visor, sentia-se satisfeita com o caso. No pde evitar um sorriso modesto, consciente de como o seu trabalho diferia daquilo que as pessoas pensavam. No s acabava de esclarecer o mistrio da morte prematura da pobre mulher, como salvara potencialmente outras pessoas do mesmo destino. O telefone tocou antes que pudesse fotografar o frisador, e, devido concentrao em que se encontrava, o som sobressaltou-a. Assim, levantou o auscultador com uma ponta de irritao. Era a telefonista para saber se queria atender a chamada de um mdico do Hospital Geral de Manhattan, acrescentando que ele pedira para falar com o chefe. - Ento, porque ligou para aqui? - quis saber Laurie. - O chefe est ocupado na sala de operaes, e no consigo localizar o doutor Washington. Parece que est l fora a falar com os reprteres. Em face disso, comecei a procurar os outros mdicos. A doutora foi a primeira a responder. - Bem, ligue l - indicou, com resignao. Reclinou-se na cadeira, com um suspiro. Estava convencida de que seria uma conversa de curta durao. Se algum pretendia contactar com o chefe, decerto no se satisfaria com o membro mais baixo da hierarquia. Quando a ligao foi estabelecida, identificou-se e salientou que era uma simples mdica que praticava autpsias e no a chefe. - Sou o doutor Murray, residente do hospital - informou ele. Preciso de falar com algum sobre um DOA de toxicidade por overdose que deu entrada aqui esta manh. - Que pretende saber? As mortes por consumo excessivo de drogas constituam um fenmeno quotidiano no GlMP, e a ateno de Laurie transferiu-se parcialmente para o frisador de cabelo, pois acabava de lhe ocorrer uma ideia melhor para a fotografia. - A vtima chamava-se Duncan Andrews - volveu o doutor Murray. - De trinta e cincoanos, raa branca. Chegou sem actividade cardaca nem respirao espontnea e com a temperatura interna de quarenta e um graus. - Sim. . . - articulou ela, em tom neutro, ao mesmo tempo que, com o auscultador apoiado no ombro, dispunha as peas do frisador. - Havia indcios evidentes de actividade apoplctica, pelo que procedemos a um EEG. Saiu absolutamente liso. O laboratrio obteve um nvel de soro de cocana de vinte microgramas por milmetro. - Ena! - exclamou, com uma breve risada seca de admirao, subitamente interessada. - um nvel elevadssimo. Qual foi a via de administrao: oral? Tratava-se de um daqueles "mulas" que tentam contrabandear a droga engolindo preservativos cheios dela? - Duvido. - Foi a vez do doutor Murray soltar uma risada seca. - Era filho de um dos gnios de Wall Street. No, no foi por via oral, mas por injeco. Ela engoliu em seco, enquanto se esforava por manter submersas recordaes antigas indesejveis. A garganta ficara repentinamente seca. - Havia tambm herona envolvida? - perguntou, pois, nos anos sessenta, uma mistura de herona e cocana, denominada "bola rpida", desfrutava de larga popularidade. - No. Apenas cocana, mas obviamente numa dose gigantesca. Se a temperatura dele era de quarenta e um graus quando a medimos, s Deus sabe que valor teria atingido. - Bem, parece um caso bem claro. Qual a pergunta? Se quer saber se a autpsia se justifica, posso garantir-lhe que sim. - No, j estvamos ao corrente disso. O problema no esse. Trata-se de algo de mais complicado. O fulano em causa foi encontrado pela namorada, que o acompanhou na ambulncia. Mas depois apareceu tambm a famlia dele, e posso dizer-lhe que est bem relacionada, se me fao entender. As enfermeiras apuraram que Duncan Andrews tinha na carteira um carto de dador de rgos, pelo que contactaram com o respectivo coordenador, o qual, sem saber que o caso justificava a autpsia, perguntou aos familiares se permitiam que procedesse colheita dos olhos, nico tecido alm dos ossos que se podia aprovei tar. Devo esclarecer que no nos regemos muito pela posse de cartes dessa natureza, a menos que a famlia do extinto concorde. Ora, esta famlia concordou e afirmou qu e desejava respeitar os desejos dele. C para mim, creio que se pretende estabelec er a convico de que o homem morreu de causas naturais. No entanto, quisemos inteir ar-nos da vossa opinio antes de tomarmos qualquer iniciativa. - Os familiares concordaram? - estranhou Laurie. - Foram mesmo enfticos a esse respeito. Segundo a namorada, ela e o Duncan tinham trocado impresses sobre o problema da falta de rgos para transplantes e acabaram por se dirigir ao Banco de rgos de Manhattan, para se inscreverem, em resposta ao apelo lanado pela TV, o ano passado. - Ele deve ter injectado uma dose de cocana muito elevada. Deixou algum bilhete de suicdio? - No, nem se achava deprimido, segundo a namorada. - A situao parece um pouco fora do comum - admitiu, pensativamente. - Acho que a satisfao do pedido da famlia no afectar a autpsia. Em todo o caso, no estou autorizada a tomar uma deciso dessa natureza. Posso indagar junto das altas patentes e dizer imediatamente o resultado para a. - Ficava-lhe grato. Se temos de fazer alguma coisa, quanto mais depressa melhor. Pousou o auscultador e, no sem uma ponta de relutncia, deixou as peas do frisador d e cabelo na secretria e tornou avisitar a morgue. Prescindindo do equipamento de proteco, assomou porta e viu que o doutor Bingham j no se achava presente. - O chefe confiou-te os trabalhos? - perguntou a Paul. Este virou-se para a entrada e proferiu, num tom abafado parcialmente pela mscara: - Agradeamos a Deus os pequenos favores. Por sorte, estava a fazer-se tarde para a conferncia de imprensa. Deve ter-se convencido de que eu era capaz de coser o corpo. - No te impressiones. Como sabes, para ele todos so incompetentes na mesa de autpsias. - Tentarei no me esquecer disso - prometeu sem convico. Laurie utilizou a escada ao fundo do corredor para se dirigir ao rs-do-cho, decidindo que no merecia a pena esperar pelo elevador para transpor um nico piso. O corredor do rs-do-cho estava repleto de membros dos media, pelo que ela experimentou grande dificuldade para alcanar a porta de acesso sala de reunies. Conseguiu descortinar, por cima das cabeas dos reprteres, a calva reluzente de Bingham que reflectia o claro dos projectores da TV. Apercebeu-se igualmente de que respondia a perguntas e transpirava copiosamente, pelo que concluiu que, de modo algum, conseguiria discutir com ele o problema do Hospital Geral. Laurie ps-se em bicos dos ps, para tentar descobrir o doutor Calvin Washington, que figurava logo a seguir a Bingham na escala hierrquica. Em virtude do seu metro e noventa e cinco de altura e cerca de cento e vinte quilos de peso, constitua em regra um alvo fcil de localizar. Ela avistou-o finalmente junto da porta de acesso ao gabinete do chefe. Enveredando pela rea de recepo e atravessando o referido gabinete, conseguiu aproximar-se de Calvin pela retaguarda. No entanto, hesitou, ao recordar-se do seu temperamento tumultuoso. Graas ao aspecto fsico e acessos de mau humor, intimidava a maioria das pessoas, e Laurie no era uma excepo. Por fim, reuniu coragem suficiente e tocou-lhe no brao. Ele voltou-se com prontido e os olhos negros fixaram-se nela com certa agressividade. Era claramente visvel que no atravessava uma fase de boa disposio. - Que h? - inquiriu num murmrio forado. - Pode conceder-me um momento? Trata-se de uma questo de tica relativa a um caso no Hospital Geral. Aps uma mirada ao transpirante superior, assentiu com um movimento de cabea e passou ao gabinete, cuja porta fechou, depois de Laurie o seguir. - Este homicdio j nos est a dar gua pela barba - grunhiu, meneando a cabea. - Detesto os media. No procuram a "verdade", qualquer que ela seja. No passam de mastins abelhudos, e o coitado do Harold tenta justificar a razo pela qual as mos no foram ensacadas no local do crime. Que circo este! - Porque no foram? - perguntou Laurie. - Porque o mdico que acudiu no se lembrou! - explicou Calvin, indignado. - E quando o Plodgett l chegou, o corpo j se encontrava na carrinha. - Mas porque permitiu que o corpo fosse removido antes de o Paul aparecer? - Eu sei l! O assunto uma trafulhice do princpio ao fim. Erros atrs de erros! Ela fez uma pausa para aclarar a voz e disse:- Custa-me falar disto, mas reparei noutro problema potencial, l em baixo. - Sim? De que se trata? - Aquilo que suponho que era a roupa da vtima encontrava-se num saco de plstico em cima de um balco. - Raios! - explodiu Calvin. Levantou o auscultador do telefone de Bingham e marcou o nmero da extenso na "cova". Assim que atenderam, bradou que algum iria parar mesa de autpsias, se a roupa da vtima de homicdio estivesse num saco de plstico. Sem aguardar resposta, cortou a ligao com um gesto brusco e cravou o olhar ardente em Laurie, como se considerasse a mensageira responsvel da m notcia. - Duvido que um fungo destrusse algum indcio importante to rapidamente - aventurou ela. - No essa a questo. No estamos num centro de autpsias do Terceiro Mundo. Lapsos desta natureza no podem ser tolerados, sobretudo durante uma fase de publicidade como a actual. Parece que nos lanaram mau-olhado. Bem, qual o problema do Hospital Geral? Laurie descreveu o caso de Duncan Andrews o mais sucintamente possvel e concluiu com o pedido do mdico de servio, salientando que a famlia pretendia satisfazer o desejo da vtima para doar os rgos. - Se houvesse um patologista decente neste Estado, a dvida nem sequer se levantaria - observou Calvin.Penso que devemos respeitar a vontade da famlia. Diga a esse mdico que, neste tipo de circunstncias, deve recolher os olhos, depois de os fotografar. Convm igualmente que extraia amostras vtreas do interior dos olhos para a Toxicologia. - Vou comunicar-lho imediatamente - declarou ela. - Obrigada. Ele acenou distraidamente, enquanto abria a porta da sala de reunies. Laurie afastou-se atravs da rea do secretariado do chefe e pediu a Marlene que lhe abrisse a porta que dava para o trio principal. Entretanto, a conferncia de imprensa de Bingham continuava. Acabava de premir o boto de chamada do elevador, quando soltou um grito abafado ao sentir uma espcie de cotovelada nas costas, e voltou-se apressadamente para increpar o autor. Esperava ver um colega, mas equivocava-se. Com efeito, tinha na sua frente um desconhecido que aparentava pouco mais de trinta anos, de impermevel desabotoado, n da gravata puxado para o lado, cujo rosto se abria num sorriso quase infantil. - Laurie? Ela identificou-o subitamente. Era Bob Talbot, reprter do Daily News, seu antigo colega na universidade. Havia algum tempo que no se encontravam, e agora, fora do contexto, por assim dizer, necessitara de um momento para o reconhecer. Por fim, apesar da irr itao, retribuiu o sorriso. - Onde tens estado? - perguntou ele. - H que tempo no te via! - De facto, ultimamente tenho sido um pouco associal - concedeu Laurie. - Muito trabalho, sobretudo depois que resolvi dedicar-me patologia. - Muito trabalho e nenhum prazer so contraproducentes. Assentiu com uma inclinao de cabea e tentou sorrir. Naquele momento, a cabina do elevador surgiu e ela entrou e conservou a porta aberta com a mo. - Que pensas deste novo homicdio? - inquiriu ele. - Est a provocar um autntico rebulio.- natural. Parece reunir todos os ingredientes para atrair os media. De resto, acho quej metemos gua. Creio que possui alguns pontos de contacto com o caso anterior. Demasiados, para os meus colegas. - A que te referes? -Para j, as mos da vtima no foram ensacadas. No ouviste o que o doutor Bingham dizia? - Ouvi, mas ele pareceu no lhe atribuir muita importncia. - Garanto-te que importante. Alm disso, a roupa da vtima foi parar a um saco de plstico, o que no se pode admitir. A humidade encoraja a formao de microrganismos susceptveis de afectar os indcios. Outro deslize, portanto. Infelizmente, quem procedeu ao exame mdico um dos funcionrios mais novatos da casa, em vez de algum com experincia. - Segundo parece, o namorado j confessou - lembrou Bob. Tudo isso no ser meramente acadmico? Laurie encolheu os ombros. - Quando o julgamento se realizar finalmente, capaz de ter mudado de atitude. O advogado, pelo menos, h-de pression-lo nesse sentido. Depois, tudo depender das provas reunidas, a menos que aparea uma testemunha, o que raramente acontece nos casos desta natureza. - Talvez tenhas razo - reconheceu ele. - Veremos. Entretanto, preciso de voltar para a conferncia de imprensa. Que dizes a jantarmos juntos, num dia qualquer desta semana? - possvel. No julgues que pretendo fazer-me cara, mas tenho de estudar com afinco para uma eventual promoo. Porque no telefonas, para discutirmos o assunto? Concordou com um movimento de cabea, enquanto ela retirava a mo para que a porta do elevador se fechasse. Em seguida, Laurie premiu o boto do quarto piso e, de regresso ao seu gabinete, telefonou ao doutor Murray, do Hospital Geral, para lhe comunicar o que o doutor Washington dissera. - Obrigado pelo incmodo - agradeceu ele no final. - conveniente dispor de directrizes para seguir, neste tipo de circunstncias. - Procurem obter boas fotografias - recomendou ela. - De contrrio, a situao pode alterar-se. - No haver novidade, por esse lado, pois possumos um departamento fotogrfico competente. Ser um trabalho de profissionais. Depois de desligar, Laurie voltou a concentrar-se no frisador de cabelo, a que tirou vrias fotografias de ngulos diferentes. Em seguida, transferiu a ateno para o nico caso de domingo que restava, e o mais preocupante para ela: o do rapaz de doze anos. Levantou-se da secretria, tornou a descer ao rs-do-cho e visitou Cheryl Myers, uma das investigadoras da casa, qual explicou que necessitava de mais testemunhas oculares do episdio em que o garoto fora atingido pela bola. Dada a ausncia de qualquer indcio positivo na autpsia, precisava de descries pessoais para reforar o seu diagnstico de commotio cordis, ou morte devida a uma pancada no peito. Cheryl prometeu iniciar as diligncias imediatamente. Laurie regressou de novo ao quarto piso e dirigiu-se Histologia, para tentar acelerar a entrega dos slides referentes ao rapaz. Consciente dos momentos de amargura que afamlia da vtima atra vessava, desejava pr termo urgente sua interveno na tragdia. A experincia ensinara-lhe que, depois de conhecerem a verdade, os familiares pareciam chegara uma espcie de resignao. A aura de incerteza sobre uma morte devida a causas desconhecidas tornava o pesar mais difcil de suportar. Aproveitando a visita Histologia, recolheu os slides que j estavam prontos, referentes a casos que autopsiara na semana anterior, aps o que desceu alguns lanos de degraus e muniu-se de relatrios da Toxicologia e da Serologia. Levou tudo para o gabinete e pousou-o na secretria. Principiou ento a trabalhar e, excepo de uma breve pausa para almoar, passou o resto do dia a examinar os slides da Histologia, a comparar os relatrios do laboratrio, a efectuar telefonemas e a completar o maior nmero possvel de fichas. O que lhe aumentava a ansiedade era o facto de saber que, no dia seguinte, lhe destinariam pelo menos duas e porventura mesmo quatro autpsias e, se no mantivesse a faceta burocrtica actualizada, afundar-se-ia num sorvedouro de que difcilmente se libertaria. Nunca havia um momento de cio no Gabinete da Inspeco Mdica Principal de Nova Iorque, que se ocupava de quinze a vinte mil casos por ano, o que se traduzia em aproximadamente oito mil autpsias. O estabelecimento recebia, em mdia, dois homicdios e outras tantas overdoses de droga por dia. Cerca das quatro da tarde, ela comeou a abrandar o ritmo de trabalho. O volume e a intensidade da aco a que se dedicava principiavam a fazer-se sentir e, quando o telefone tocou pela centsima vez, atendeu com voz fatigada. No entanto, ao inteirar-se de que se tratava da senhora Sanford, secretria do doutor Bingham, empertigou-se instintivamente na cadeira. Na verdade, no era todos os dias que recebia um telefonema do chefe. - O doutor Bingham gostava que comparecesse no seu gabinete, se lhe for possvel. - Vou j - disse Laurie, ao mesmo tempo que sorria, devido expresso empregada pela senhora Sanford: "se lhe for possvel". Como conhecia bem o chefe, depreendeu que se tratava da traduo diplomtica de "Diga doutora Montgomery que a quero aqui imediatamente! ". Pelo caminho, tentou em vo imaginar o que ele pretenderia. - Pode entrar - indicou a senhora Sanford, olhando-a, com um sorriso, por cima dos culos de leitura. - Feche a porta! - ordenou Bingham no instante em que Laurie surgiu no gabinete. - Sente-se! Ela obedeceu em silncio, reflectindo que o tom irado do chefe constitua o primeiro aviso do que se seguiria, e compreendeu que no fora chamada para escutar um louvor. Aguardou, pois, com certa ansiedade, enquanto ele removia os culos de aros metlicos e os pousava no tampo da secretria, num movimento surpreendentemente gil dos dedos grossos. - Sabia que temos um departamento de relaes pblicas? comeou, numa inflexo mista de sarcasmo e irritao. - Com certeza. - Ento, tambm deve saber que o senhor Donnatello responsvel por qualquer informao transmitida aos media e ao pblico. Fez uma pausa, enquanto Laurie assentia com uma inclinao de cabea. - E deve achar-se igualmente ciente de que, excepo da minha pessoa, todo o pessoal tem de guardar para si as suas opinies relativas aos assuntos profissionais.Ela permaneceu silenciosa, porque ainda no compreendia o objectivo do prembulo. De sbito, Bingham abandonou a cadeira e iniciou cadenciado vaivm no espao atrs da secretria. - Duvido que esteja ciente de que, na sua qualidade de patologista desta casa, tem responsabilidades sociais e polticas significativas. - Estacou e cravou o olhar na subordinada. - Entende o que digo? - Creio que sim - admitiu Laurie, embora ainda houvesse uma parte significativa do discurso de Bingham que lhe escapava e no fizesse a menor ideia do que ocasionara aquela diatribe. - "Creio que sim" no constitui uma resposta satisfatria persistiu ele, pousando as palmas das mos na secretria e inclinando-se para a frente. Ela desejava, acima de tudo, conservar a serenidade. No queria parecer emocional. Desprezava as situaes daquela natureza e a confrontao no constitua um dos seus pontos fortes. - Demais, no sero toleradas infraces ao regulamento concernente informao privilegiada! Estou a ser suficientemente claro? - Est - replicou, esforando-se por evitar lgrimas indesejadas. No se sentia amargurada ou indignada; apenas enervada. Com a quantidade de trabalho que efectuara ultimamente, no sejulgava merecedora de semelhante tirada. Posso saber o fundamento de tudo isto? - Sem dvida. Perto do final da minha conferncia de imprensa sobre o homicdio no Central Park, um dos reprteres levantou-se e comeou a fazer uma pergunta com o comentrio de que voc afirmara especificamente que o caso no estava a ser tratado da melhor maneira por este departamento. Comunicou isso ou no a um reprter? Encolheu-se involuntariamente e tentou sustentar o olhar acerado de Bingham, mas teve de desviar o seu. Invadiu-a uma vaga de embarao, culpa, clera e ressentimento. Chocava-a o facto de Bob ter cometido aquela insensatez e desrespeitado o grau de confidencialidade das palavras que lhe ouvira. Por ltimo, conseguiu recuperar a voz para admitir: - Afirmei algo do gnero. - Bem me parecia. Ele no teria coragem e arrojo para inventar uma coisa dessas. Bem, considere-se advertida, doutora Montgomery. Pode retirar-se. Laurie abandonou o gabinete do chefe quase sem se dar conta. Humilhada, no se atreveu a trocar um olhar com a senhora Sanford, com receio de perder o controlo das lgrimas que at ento contivera. Subiu a escada a correr, sem esperar pelo elevador, esperanada em no se cruzar com ningum. Congratulou-se por a colega, com a qual partilhava o gabinete, continuar ausente na sala de operaes. Fechou a porta atrs de si e sentou-se pesadamente secretria. Sentia-se esmagada, como se os meses de trabalho rduo tivessem resultado inteis devido a uma indiscrio irreflectida. Por fim, levantou o auscultador com um gesto determinado. Queria telefonar a Bob, para que soubesse o que pensava do acto que cometera. De repente, porm, hesitou e voltou a pous-lo no descanso. De momento, no dispunha de nimo para nova confrontao. Encheu os pulmes de ar e expeliu-o com lentido. Tentou reatar o trabalho, mas no conseguia concentrar-se e acabou por abrir a pasta e guardar alguns dos relatriosincompletos. Depois de recolher as suas coisas, meteu-se no elevador em direco cave e saiu pela porta da morgue na Rua 13. No queria correr o risco de esbarrar com algum conhecido na rea de recepo. Em harmonia com o seu estado de esprito, continuava a chover enquanto percorria a Quinta Avenida. A cidade apresentava um aspecto ainda pior que de manh, com uma cortina de fumo de exaustores suspensa entre os edifcios alinhados ao longo da artria. Ao mesmo tempo, olhava para o cho, a fim de evitar as poas de gua oleosa, detritos e olhares dos que no tinham domiclio. At o prdio do seu apartamento parecia mais sujo que usualmente e, ao aguardar que a cabina do elevador aparecesse, notou o odor pungente de cebola frita com carne demasiado gordurosa. Quando atingiu o quarto andar, cravou o olhar na frincha da porta de Debra Engler, desafiando-a a emitir qualquer comentrio, e soltou um suspiro de alvio ao ver-se finalmente em casa. Nem o prprio Tom conseguiu elevar-lhe o moral, quando se roou nas suas pernas, antes de ela se afundar numa poltrona, aps deixar o impermevel e o guarda-chuva no bengaleiro. No entanto, recusando ser ignorado, o gato subiu para o seu regao e comeou a fazer deslizar a pata pelo seu ombro, com as unhas devidamente re colhidas. Por fim, Laurie reagiu, acariciando-o distraidamente. Lamentava a sua vida, enquanto a chuva continuava a embater na janela como gros de areia. Pela segunda vez naquele dia, acudiu-lhe ao pensamento o facto de no ser casada. As crticas da me afiguravam-se-lhe mais merecidas que nunca, e perguntou-se mais uma vez se teria optado pela carreira apropriada. Que aconteceria dentro de dez anos? Poderia ver-se imersa no mesmo atoleiro de uma vida quotidiana solitria, esforando-se por manter a papelada em dia, ou assumiria responsabilidades mais administrativas, como as de Bingham? Descobriu pela primeira vez, com uma sensao de choque, que no desejava ser chefe. At quele momento, tentara sempre distinguir-se pela eficincia, tanto na universidade como na escola mdica, e a aspirao a um cargo de chefia adaptar-se-ia a esse molde. A tendncia traduzira uma espcie de rebelio, uma tentativa para levar o pai, importante cirurgio de doenas cardacas, a reconhecer o seu valor. Mas nunca resultara. Ela sabia que, na opinio do progenitor, no conseguiria substituir o irmo que morrera aos dezanove anos. Voltou a suspirar. No era seu hbito estar deprimida, e o facto de tal acontecer entristecia-a. Nunca sejulgara to sensvel s crticas. Talvez fosse infeliz sem se aperceber conscientemente, devido ao trabalho constante e avultado. Reparou que a luz vermelha do atendedor de chamadas piscava. A princpio, ignorou-a, mas, medida que escurecia, o claro parecia mais insistente. Depois de o observar durante cerca de dez minutos, a curiosidade acabou por vencer, e decidiu-se a escutar o que fora gravado. A chamada provinha da me, Dorothy Montgomery, a qual lhe pedia que telefonasse mal chegasse. - S me faltava isto! - exclamou Laurie. Ponderou se o deveria fazer, consciente da capacidade da me para a enervar, mesmo nas circunstncias mais animadoras. No tinha disposio para suportar mais uma dose de negativismo maternal e conselhos no solicitados. Escutou a mensagem pela segunda vez e, depois de se convencer de que ela parecia sinceramente apreensiva, resolveu fazer achamada. Dorothy atendeu logo aps o primeiro toque. - Graas a Deus que ligaste! - proferiu, ofegante. - De contrrio, no sei o que faria. J estava a pensar em enviar um telegrama. Organizamos um jantar, amanh, e quero que compareas. Vir algum que desejo apresentar-te. - Por favor, me! - protestou Laurie, exasperada.No tenho grande disposio para um jantar formal. Foi um dia horrvel, hoje. - No digas disparates. Mais uma razo para te ausentares desse horrvel apartamento. Vers que passas umas horas agradveis. A pessoa que te quero apresentar o doutor Jordan Scheffteld, um oftalmologista maravilhoso, conhecido em todo o mundo, segundo o teu pai me garantiu. E, como se isso no bastasse, acaba de se divorciar de uma mulher horrvel. - No estou interessada em me encontrar com um desconhecido replicou, irritada, custando-lhe a acreditar que a me no s ignorasse o seu estado mental, como pretendesse impingir-lhe (era o termo adequado) um oftalmologista divorciado. . . - mais que tempo que conheas algum do teu nvel - volveu Dorothy. - Nunca compreendi o que viste naquele Sean Mackenzie, um autntico rufia desequilibrado de influncia nefasta. Ainda bem que cortaste com ele definitivamente. Laurie fez rolar os olhos. Naquele dia, a me achava-se numa forma rara. Mesmo que houvesse alguma verdade no que dizia, de momento no lhe apetecia escut-la. Costumava encontrar-se com Sean, sem regularidade, desde os tempos da universidade. O relacionamento revelara-se agitado quase a partir do primeiro dia e, conquanto no fosse exactamente um rufia, tinha uma espcie de atractivo de fora-da-lei, com a sua motocicleta e maus modos. Houvera um perodo em que a sua personalidade "artstica" a excitara. Nessa poca, mostrara-se suficientemente rebelde para experi mentar drogas com ele em vrias ocasies. No entanto, confiava em que a ltima ruptura tivesse sido a definitiva. - Tenta estar c s sete e meia - recomendou Dorothy. - E veste qualquer coisa atraente, como, por exemplo, o fato de l que te dei em Outubro pelos teus anos. Usa o cabelo puxado para trs. Bem, gostava de continuar a falar contigo, mas tenho muito que fazer. At amanh, querida. Adeusinho. Laurie afastou o auscultador do ouvido e olhou-o com incredulidade na penumbra. A me desligara sem lhe dar tempo a responder ao arrazoado. No sabia se devia praguejar, rir ou chorar. Por fim, pousou o auscultador no descanso e soltou uma gargalhada. No havia dvida de que Dorothy Montgomery era um grande "ponto". Ao invocar a conversa que acabavam de manter, custava-lhe a crer que a mesma tivesse ocorrido. Dir-se-ia que falavam em frequncias diferentes. Com um suspiro de resignao, acendeu a luz e correu os cortinados. Protegida do mundo exterior, soltou o cabelo e despiu-se. Ao mesmo tempo, por razes que no conseguia definir, sentia-se melhor. O dilogo irreal com a me sacudira-a para fora da atitude depressiva. Enquanto entrava na casa de banho e abria a torneira do chuveiro, admitia para consigo que tinha tendncia para se tornar mais emocional em situaes de servio do que na verdade preferiria. O reconhecimento do facto irritou-a. No se importava de trajar femininamente, mas no desejava parecer uma mulher frgil e volvel. De futuro, tentaria ser mais profissional. Tambm reconhecia que cometera um erro grave ao confiar em Bob. Precisava de passar a reservar as opinies para si prpria, em particular se a Imprensa estivesseenvolvida. Na verdade, podia considerar-se afortunada por Bingham no a ter despedido. Sob o jacto de gua reconfortante, decidiu preparar uma salada e em seguida estudar para as provas de Patologia. De sbito, voltou a pensar no jantar do dia seguinte, em casa dos pais. Embora a sua reaco inicial tiv esse sido indiscutivelmente negativa, comeou a reconsiderar. Talvez constitusse um a soluo de continuidade interessante na sua rotina. Por fim, ponderou que o oftalm ologista recm-divorciado decerto era um sensaboro insuportvel. Ao mesmo tempo, porm, perguntava a si prpria que idade teria. CAPtULO 2 SEGUNDA-FEIRA, 21 e 40 QUEENS, NOVA IORQUE - Tenho de fazer alguma coisa - disse Tony Ruggerio, deslizando para o lado do passageiro do banco da frente do Lincoln preto de Angelo Facciolo. - H quatro noites que estamos sentados frente mercearia de Agostino. No aguento isto de no fazer nada, percebes? Preciso de aco, envolver-me em qualquer coisa. Os olhos percorreram com nervosismo a rua alagada pela chuva sua volta. O carro encontrava-se estacionado junto de uma boca de incndio, na Avenida Roosevelt. A cabea de Angelo virou-se para o lado com lentido. Os olhos de plpebras pesadas observaram o "mido" de vinte e quatro anos e expresso juvenil que lhe fora atrelado. O nervosismo e o impulsivismo do companheiro bastavam para lhe pr a pacincia prova. Considerava que o "mido", cuja alcunha era "o Animal", representava um perigo permanente na sua prpria actividade, como no deixara de salientar a Cerino. Mas para nada. O efeito no seria diferente se se dirigisse a uma parede. Cerino afirmara que a principal caracterstica do mido era a ausncia de medo. Arrojado e ambicioso, tinha poucos escrpulos e ainda menos conscincia. Asseverara mesmo que precisava de mais gente como Tony, porm Angelo no partilhava dessa opinio. Tony era baixo, com o seu metro e sessenta e cinco, e seco. E o que lhe faltava como intimidao em termos de estatura tentava compensar com a musculatura. Trabalhava com regularidade no Ginsio Americ ano, em Jackson Heights, e revelara a Angelo que tomava suplementos de protenas e, ocasionalmente, esterides. Tinha fisionomia redonda, tnica, de italiano meridional, com cabelo preto, brilhante e denso. O nariz era levemente abaulado e torcido para o lado direito devido a alguma prtica de pugilista amador. Crescera em Woodside e no chegara a completar o curso do liceu, onde brigava com frequncia por causa da estatura e da irm, Mary, que era "espampanante". Sempre manifestara tendncia para a proteger, convencido de que, no tocante ao sexo oposto, todos os homens tinham os mesmos objectivos que ele. - No posso continuar aqui metido - grunhiu.Preciso de arejar. - E estendeu a mo para o fecho da porta. - Calma! - recomendou Angelo, em tom suficientemente ameaador para lhe conter os mpetos, ao mesmo tempo que lhe pousava a mo no brao. Cerino agira bem, de certo modo, ao junt-los, pois Angelo, "Janota", constitua um contraste convenientecom o impetuoso Tony. Parecia mais velho que os seus trinta e quatro anos, alto e magro, com feies angulosas, como que talhadas a machado. Se o companheiro se mostrava sensvel com a altura, Angelo era-o com a pele. Na verdade, o rosto exibia as marcas profundas da varola que o atacara aos seis anos e do acne que persistira entre os treze e os vinte e um. Ao contrrio do temperamento arrebatado e irreflectido de Tony, revelava-se sereno e calculista - um sociopata aparentemente calmo, cujo carcter fora moldado por uma srie interminvel de lares adoptivos e um perodo numa priso de segurana mxima. Ambos se mostravam presunosos no que se referia indumentria. No entanto, Tony nunca conseguia aparentar a elegncia que desejava, pois os fatos, apesar de caros, assentavam sempre mal no seu corpo desproporcionadamente musculado. Por outro lado, Angelo apresentava-se invariavelmente trajado com esmero, graas ao bom gosto, compleio fsica favorvel e roupa de qualidade. Tony reclinou-se no banco e olhou Angelo de soslaio. Reconhecia intimamente que era uma das poucas pessoas que respeitava, temia e at invejava. Na verdade, a sua reputao podia considerar-se lendria. - O Paulie disse-me que o Frankie DePasquale viria a esta mercearia - declarou Angelo. - Por conseguinte, vamos ficar aqui espera durante um ms, se for preciso. - Safa! - articulou Tony, entredentes. Em vez de sair do carro, introduziu a mo no casaco e puxou da sua Beretta Bantam de calibre.25. Soltou a mola de segurana, extraiu o carregador e contou as balas, como se alguma das oito pudesse ter desaparecido desde que procedera contagem pela ltima vez, meia hora antes. Quando o viu puxar o gatilho da arma descarregada, Angelo fez rolar os olhos e indicou: - Guarda isso. Que bicho te mordeu? - Est bem, est bem! - Tony voltou a introduzir o carregador e colocou a pistola no coldre. - Calma, homem. - Olhou-o e, compreendendo que estava irritado, ergueu as mos num gesto conciliador. - Pronto, j guardei. O outro no replicou e tornou a concentrar-se na entrada da loja de Agostino, prestando ateno s pessoas que a transpunham nos dois sentidos. Tony suspirou pesadamente e desabafou: - Tem sido um ms dos diabos desde que os filhos da me atiraram cido cara do Paulie. Talvez se separassem e abandonassem a cidade. Pelo menos, o que eu faria. Raspava-me no dia seguinte. Ia para a Florida ou para a Costa. Podemos estar aqui sentados espera para nada. J pensaste nisso? - O Frankie foi visto - redarguiu Angelo. - Aqui, na loja do Agostino. - Como aconteceu? Como conseguiram aproximar-se do Cerino? - No foi complicado. O Vinnie Dominick convocou a reunio com ele. Ambos desarmados. Eles e os eventuais acompanhantes tinham de deixar a artilharia nos carros. At utilizmos um detector de metais que o Cerino surripiou do Aeroporto Kennedy. Quando o Terry Manso comeou a servir o caf, atirou uma chvena de cido cara do Paulie. Sabemos que o Frankie estava envolvido, porque apareceu com ele. - Como se escapuliu o Frankie? - As luzes apagaram-se nesse momento e estabeleceu-se um autntico pandemnio, com o Paulie aos gritos e todos procura de refgio na escurido. Eu estava ao p da janela da frente, que escavaquei com uma cadeira, e sa por ela. Foi ento que vi o Manso a fugir pela porta da rua, enquanto o Frankie j subia para um carro. Passou-se tudo to rapidamente que poucos puderam reagir. - Como conseguiste apanhar o Manso? - Foi uma corrida, e ele perdeu. O meu carro estava mesmo em frente do restaurante, com a pistola no banco do condutor, para o caso de as coisas darem para o torto. Disparei duas vezes, quando o Manso tentava entrar para o seu. No lhe foi possvel. As duas balas cravaram-se nas costas. - Quantas pessoas estavam envolvidas? - quis saber Tony, que ardia de curiosidade acerca do episdio do cido desde que se inteirara da sua ocorrncia, mas receara abord-lo. - Segundo os meus clculos, pelo menos duas, alm do Manso e do DePasquale. para nos certificarmos que pretendemos conversar com o Frankie. - incrvel! - exclamou, meneando a cabea. - Quanto seria que a malta do Lucia prome teu pagar por esse tipo de atentado? - Ningum sabe ao certo. Consta mesmo que os rufias agiram por sua alta recreao, convencidos de que seriam recompensados pela malta do Lucia. No entanto, na medida em que nos foi possvel apurar, eles nem sequer se deram por achados. - Que falta de respeito... cido na cara. Gaita! - A propsito, arranjaste o cido para a bateria? - Com certeza. Est na maleta de mdico do velho Doc Travino, no banco de trs. - ptimo - aprovou Angelo. - O Paulie vai ficar contente. um toque requintado. Tony espreguiou-se e conservou-se calado por uns momentos. Por fim, aclarou a voz e aventurou: - Que dizes a eu sair por um instante? Gostava de efectuar umas elevaes dos braos. Tenho os ombros rgidos. Angelo mastigou uma imprecao e confidenciou ao companheiro que achar-se com ele no carro era o mesmo que estar trancado num quarto com um mido de dois anos. - Lamento, mas estou acostumado a mais actividade do que esta. Tony entrelaou os dedos e executou uma srie de exerccios isomtricos. A meio de um, parou e arregalou os olhos. - Com a breca! - proferiu, excitado. - No o Frankie DePasquale que vai a passar ao nosso lado? Angelo inclinou-se para a frente, a fim de olhar na direco indicada. - Pelo menos, parece. - At que enfim! Tony estendeu uma das mos para a janela, enquanto sacava da arma com a outra, porm o companheiro imobilizou-lhe o brao do seu lado e ele fitou-o com perplexidade. - Ainda no. Temos de nos certificar de que o tipo est s. No podemos meter a pata na poa. Talvez seja a nossa ltima oportunidade, e o Paulie no quer mais complicaes. Como um co de caa que se continha com dificuldade perante a presa ao seu alcance, Tony viu Frankie desaparecer na concorrida mercearia. E a sua surpresa no foi pequena quando Angelo ligou o motor do carro. - Que ideia essa? - Vou recuar um pouco. Tudo indica que ele se encontra s. Apanhamo-lo quando sair. Encostou ao passeio, no espao destinado paragem de autocarros, e conservou o motor em movimento.Vinte minutos mais tarde, Frankie reapareceu com embrulhos em ambos os braos e co meou a caminhar na direco do local em que Angelo e Tony aguardavam. - Parece um adolescente - disse o primeiro. - E . Tem dezoito anos. Era condiscpulo da minha irm antes de comear a andar com as companhias erradas e abandonar os estudos. - Agora! - ordenou. Movendo-se com extraordinria rapidez, apearam-se e enfrentaram o estupefacto Frankie DePasquale, que entreabriu a boca e exibiu uma expresso de incredulidade. - Ol, Frankie - disse Angelo, calmamente. - Precisamos de conversar. O interpelado reagiu largando os embrulhos, dos quais rolaram latas de conserva de tomate, deu meia volta e comeou a correr. Tony alcanou-o sem dificuldade, puxou-o pelo brao e atirou-o ao cho. Em seguida, conservando-o dominado, revistou-o rapidamente e retirou de um dos bolsos interiores do casaco uma pequena Saturday Night Special. Apressou-se a guard-la e obrigou o aterrorizado rapaz a voltar-se. De perto, Frankie parecia nem ter completado dezoito anos. Na verdade, dava a impresso de que ainda no se barbeava. - No me faas mal! - gemeu. - Cala o bico! - retorquiu Tony, quase enojado com a atitude do outro. Entretanto, Angelo levara o carro para junto deles e desceu sem desligar o motor. Alguns transeuntes tinham-se detido debaixo dos seus guarda-chuvas para contemplar o espectculo, boquiabertos. Angelo abriu caminho entre eles e vociferou: - Circulem, por favor! Somos da polcia! E exibiu um velho crach que conservava sempre na algibeira para situaes daquela natureza. O facto de o mesmo se referir rea do Parque Ozone, quando se encontravam na de Woodside, carecia de importncia. A configurao e o brilho do metal bastavam para produzir o efeito pretendido, e a pequena multido comeou a dispersar. - No so nada da polcia! - gritou Frankie. Tony respondeu ao apelo da presa apontando-lhe a Beretta Bantam nuca. - Mais uma palavra e passas histria. Com Angelo num lado e Tony no outro, levantaram o rapaz do cho e arrastaram-no para o carro, onde o impeliram para o banco de trs. Tony entrou atrs dele e Angelo instalou-se de novo ao volante. Com um guincho agudo dos pneus, seguiram para oeste, para a Avenida Roosevelt. - Para que isto? - bradou Frankie. - Que mal lhes fiz eu? - Caluda! - advertiu Angelo, que olhava com insistncia pelo espelho retrovisor. Se notasse algum indcio de perseguio, cortaria para o Bulevar de Queens, mas como tal no acontecia continuou em frente. A Avenida Roosevelt cedeu o lugar Greenpoint, e ele comeou a descontrair-se. - Muito bem, traste. Podes comear a falar. - De qu? - Do trabalho que tu e o Manso executaram no Paulie Cerino. Com certeza j depreendeste que trabalhamos para ele. Os olhos de Frankie moveram-se do rosto de Tony para a arma que lhe apontava, e a seguir para a imagem de Angelo no espelho retrovisor. - No fui eu - protestou, aterrorizado. - Estava presente e mais nada. A ideia partiu do Manso e eles obrigaram-me aacompanh-los. Eu no queria, mas ameaaram a minha me. - Eles, quem? - inquiriu Angelo. - Refiro-me ao Terry Manso. Foi o principal responsvel. Num movimento brusco, Tony atingiu-o na face com o cano da pistola. Frankie soltou um grito de dor e pousou a palma da mo no rosto, enquanto um fio de sangue deslizava por entre os dedos. - Julgas-nos estpidos? - No o maltrates por enquanto - indicou Angelo. - Talvez queira colaborar. - No me batam mais, por favor! - suplicou o rapaz, entre soluos. Tony soltou uma imprecao com ar desdenhoso e introduziu-lhe o cano da arma entre os dedos, na direco da boca. - Os teus miolos vo cobrir o interior do carro se no tomares juzo e parares de nos querer intrujar. - Quem mais estava envolvido? - insistiu Angelo. Tony retirou o cano da arma para que o interpelado pudesse falar. - S o Manso - soluou Frankie. - E obrigou-me a acompanh-lo. - bvio que no queres colaborar. - Angelo abanou a cabea com simulado desalento. - Lembra-te da luz. Apagou-se no mesmo instante em que o Manso atirou o cido. No foi coincidncia. Quem o fez? E o carro. Quem o conduzia? - No sei nada sobre a luz - balbuciou Frankie.E no me lembro de quem guiava. Algum que no conheo, contratado pelo Manso. Angelo meneou a cabea mais uma vez. J nada era fcil como dantes. Detestava aquele tipo de trabalho sujo. Acalentara a vaga esperana de que o rapaz falasse abertamente, a partir do momento em que o trouxessem para o carro. Afinal, tudo indicava que tal no aconteceria. Volveu o olhar para o espelho retrovisor e vislumbrou o rosto de Tony, o qual exibia um sorriso indicativo de que os acontecimentos se desenrolavam em conformidade com as suas preferncias. Na realidade, o companheiro conseguia por vezes provocar-Lhe apreenso. Quando alcanaram a rea das docas de Greenpoint, em Brooklyn, Angelo virou direita, para a Rua Franklin, e depois para a esquerda, para a Java. O local era pouco frequentado, em particular mais prximo da gua. Armazns abandonados alinhavam-se ao longo da artria. Setenta e cinco a cem anos atrs, o movimento intenso quase nunca se interrompia, mas a situao alterara-se gradualmente, medida que vrias empresas se transferiam para outras paragens, restando apenas um nmero reduzido, como a fbrica da Pepsi-Cola, para os lados de Newtown Creek. No beco sem sada onde a Rua Java terminava, no East River, Angelo conduziu o carro atravs de um porto encimado por uma tabuleta com os dizeres AMERICAN FRESH FRUIT COMPANY e travou um pouco adiante. - Toca a descer, toda a gente! - ordenou. Achavam-se estacionados sombra de um vasto armazm, num cais que se internava durante quase cem metros no East River. Do outro lado do rio, erguia-se a massa reluzente dos edifcios de Manhattan. Tony apeou-se, segurando a pequena maleta de Doc Travino, e indicou a Frankie que o imitasse. Angelo abriu o cadeado da porta do armazm, puxou-a para cima e fez sinal ao rapaz para que entrasse. Este ltimo hesitou e articulou em voz trmula: - Disse-lhes tudo o que sabia. Que pretendem de mim? Tony aplicou-lhe um empurro que o fez cambalear para a frente. O estalido do interruptor da luz ecoou no cavernosoarmazm e os tubos de vapor de mercrio acenderam-se gradualmente, at que iluminaram as volumosas sacas de bananas verdes amontoadas em volta. - Por favor! - uivou Frankie. No entanto, os outros dois ignoraram-no e encaminharam-se para a retaguarda, onde abriram outra porta, e Angelo acendeu o tubo suspenso do tecto por um simples arame. A pequena sala continha uma velha secretria de metal sem gavetas, algumas cadeiras e uma larga abertura no cho. No fundo desta, a gua do East River tinha mais o aspecto de leo. - Garanto-lhes que disse a verdade - tornou Frankie. - Foi tudo obra do Manso, que me obrigou a acompanh-lo. No sei mais nada. - Pois claro, rapaz - retrucou Angelo. Virou-se para Tony e acrescentou: - Amarra-o a uma cadeira. O "mido" pousou a maleta na secretria e abriu-a, para extrair um pedao de corda de nylon. Em seguida, com um sorriso malicioso, ordenou a Frankie que se sentasse numa das cadeiras. O rapaz obedeceu e, enquanto Tony o atava, Angelo acendeu um cigarro. Por fim, Tony puxou a corda para se certificar de que os ns estavam slidos, endireitou-se e acenou a Angelo, que se dirigiu de novo ao prisioneiro. - Pela ltima vez, rapaz. Quem mais esteve envolvido no episdio do cido? Alm de ti e do Manso. - Ningum - afirmou Frankie, voltando a soluar.Estou a dizer a verdade. Angelo soprou-Lhe o fumo para o rosto e voltou-se para o companheiro. - altura de lhe aplicar o soro da verdade. Tony muniu-se de um pequeno frasco de vidro e de um conta-gotas da maleta de Doc Travino e entregou-lhos. Angelo desenroscou a cpsula, cheirou o contedo e desviou a cabea repentinamente. - Safa, que forte! - Pestanejou vrias vezes e limpou as lgrimas dos cantos dos olhos. - Ainda ests a tempo de alterar a tua verso - observou calmamente, depois de se aproximar de Frankie. - Disse toda a verdade! - reiterou este ltimo. Angelo indicou a Tony: - Puxa-lhe a cabea para trs. - Aguardou que a ordem fosse cumprida e debruou-se sobre o rosto do rapaz, virado para cima. - Conheces a expresso "olho por olho, dente por dente"? S ento Frankie se apercebeu do que acontecia, mas, apesar das tentativas desesperadas para conservar os olhos fechados Angelo conseguiu esvaziar o conta-gotas na plpebra inferior direita. Registou-se um leve crepitar, enquanto o cido sulfrico destrua os delicados tecidos da vista. Angelo moveu o olhar para Tony e notou que o sorriso deste se alargara. No pde deixar de se perguntar o que se passava com a nova gerao. O "mido" desfrutava como um califa, ao passo que para ele aquilo no constitua um divertimento, mas apenas ossos do ofcio. Nem mais nem menos. Por fIm, pousou o frasco de cido na secretria e chupou o cigarro por uns momentos. Quando os gritos de Frankie se atenuaram e converteram em soluos estrangulados, inclinou-se para ele e tornou a perguntar serenamente se pretendia alterar a verso. - Fala! - ordenou, quando pareceu que o outro o ignorava.- Disse toda a verdade - conseguiu o rapaz proferir mais uma vez. - Que gaita esta! - grunhiu Angelo, voltando a pegar no frasco, ao mesmo tempo que indicava por cima do ombro: - Torna a puxar-lhe a cabea para trs. - Esperem! - gemeu Frankie. - No me torturem mais. Vou dizer-Lhes o que pretendem. Angelo voltou a pousar o frasco e acercou-se dele, para olhar em silncio, por um momento, os efeitos produzidos pelo cido. - Ento, fala. Quem mais esteve envolvido? - Vo buscar alguma coisa para a vista. As dores so insuportveis. - Tratamos disso assim que nos disseres o que queremos saber. V l, antes que se me esgote a pacincia. - O Bruno Marchese e o Jimmy Lanso. Angelo consultou Tony com o olhar e este acenou a cabea afirmativamente. - Ouvi falar do Bruno. um tipo de c. - Onde os podemos encontrar, se desejarmos conversar com eles? - Na Rua Cinquenta e Cinco, trinta e oito, vinte e dois, apartamento um - informou Frankie. - A seguir ao Bulevar Norte. - De quem foi a ideia? - perguntou Angelo, enquanto anotava o endereo num pedao de papel. - Do Manso. Disse que, se o fizssemos, nos tornaramos todos soldados do Lucia, pertencentes ao crculo ntimo. Mas obrigaram-me a participar, porque eu no queria. - No podias ter revelado tudo isto no carro? Poupavas-nos trabalho e maus tratos. - Tinha medo que os outros me matassem se descobrissem que falara. - Tens mais receio dos teus amigos que de ns? - estranhou, colocando-se atrs de Frankie. - curioso. Mas no interessa. J no precisas de te preocupar com eles, porque vamos cuidar de ti. - Arranjem qualquer coisa para aplicar na vista. - Com certeza. Num movimento suave e sem a mnima hesitao, puxou da pistola Walther TPH Auto e premiu o gatilho. A bala embebeu-se na nuca de Frankie, cuja cabea tombou para o peito, segundos antes de o corpo se tornar inerte. A brusquido do acto final surpreendeu Tony, que estremeceu e recuou um passo, antevendo abundante derramamento de sangue. Mas tal no aconteceu e ele acabou por perguntar a meia voz: - Porque no me deixaste tratar disso? -Cala-te e desamarra-o. No estamos aqui para te proporcionar divertimento. Trata-se de uma tarefa da profisso, lembras-te? Quando o "mido" retirou a corda de nylon, Angelo ajudou-o a levar o corpo sem vida para junto da abertura no cho. Contaram at trs em unssono e lanaram-no ao rio. Ele observou o resultado durante o tempo suficiente para se certificar de que a corrente o arrastava para o largo. - Voltemos a loodside para uma visita social aos outros. O endereo que Frankie fornecera correspondia a uma casa de dois pisos, com um nico apartamento em cada um. A porta da rua estava fechada. Porm, possua um mecanismo incapaz de resistir a um carto de crdito, e os dois homens transpuseram-na em poucos minutos. Depois de se postarem em cada lado da porta do apartamento um, Angelo bateu. No obteve resposta, apesar de terem visto darua que a luz estava acesa. - Mete-a adentro - indicou. Tony retrocedeu alguns passos e aplicou um violento pontap na porta, que cedeu. Num abrir e fechar de olhos, encontraram-se dentro, de pistola em punho. O apartamento estava deserto, com vrias garrafas de cerveja meio vazias numa mesinha no centro da sala e o televisor ligado. - Que te parece? - perguntou Tony. - Devem ter-se alarmado ao verem que o Frankie no voltava. Angelo acendeu um cigarro e reflectiu por um momento. - E agora? - Sabes onde mora a famlia do Bruno? - No, mas posso averigu-lo. - Ento, trata disso. CAPtULO 3 TERA-FEIRA, 7 horas. MANHATTAN Estava uma manh estupenda quando Laurie Montgomery abandonou o apartamento e segu iu para norte, na Primeira Avenida, em direco Rua 13. A prpria cidade de Nova Iorqu e conseguia apresentar um aspecto aprazvel, aps dois dias consecutivos de chuva in tensa. A temperatura baixara e constitua uma advertncia desagradvel do aproximar do Inverno. Mas fazia sol e soprava vento suficiente para dispersar o fumo dos esc apes dos veculos. Os passos dela aceleravam-se medida que se aproximava do local de trabalho, e es boou um sorriso ao pensar em como se sentia diferente naquela manh, em comparao com a vspera, quando regressara a casa. A reprimenda de Bingham fora contundente, mas merecida, pois ela procedera mal. No lugar dele, no estaria menos irritada. Quando comeava a subir os degraus da entrada, perguntou-se que novidades Lhe trar ia o novo dia. Um dos aspectos do seu trabalho que mais apreciava era a imprevis ibilidade. Sabia apenas que estava escalada para "autopsiar". No fazia a menor id eia da natureza dos casos que lhe caberiam e do gnero de enigmas intelectuais que se lhe deparariam. Praticamente, cada vez que tinha de fazer uma autpsia surgia algo que nunca vira e at de que jamais ouvira falar. Na verdade, tratava-se de um a profisso que significava descoberta contnua. Naquela manh, a rea da recepo achava-se relativamente calma, embora ainda estivessem presentes alguns representantes dos media, em busca de mais elementos sobre o h omicdio no Central Park, que, na vspera, merecera honras de primeira pgina nos matu tinos locais. Acabava de tran