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1 Departamento de MedicinaPreventiva e Social,Faculdade de CiênciasMédicas, UniversidadeEstadual de Campinas. RuaTessália Vieira de Camargo126, Cidade UniversitáriaZeferino Vaz. 13083-970Campinas SP.gastaowagnermpc.com.br
Cogestão e neoartesanato: elementos conceituais para repensaro trabalho em saúde combinando responsabilidade e autonomia
Democratic management and new craft: concepts to rethinkintegration between autonomy and responsibility in health work
Resumo Este artigo discute tensões entre a racio-nalidade gerencial dominante e o trabalho emsaúde. Valendo-se de conceitos da filosofia e derevisão de autores que estudaram o trabalho emsaúde, aponta-se que as práticas, clínicas e emsaúde pública, são estruturadas conforme o con-ceito de práxis, definido por Aristóteles. Não fun-cionam mecanicamente e dependem de um sujei-to mediador que reflita e tome decisões na maio-ria dos casos, alguém que estabeleça uma media-ção entre o saber estruturado e o contexto singu-lar. Nesse sentido, recomenda-se a adoção de mo-delo de gestão que possibilite e favoreça a combi-nação de autonomia profissional com responsa-bilidade sanitária.Palavras-chave Cogestão, Trabalho em saúde,Filosofia e saúde
Abstract This article analyses tensions betweenthe dominant management rationality andhealth work. By means of philosophical conceptsand bibliography revision it was found that clin-ical and public health practices are structured aspraxis, a term defined by Aristotle. It does notwork automatically, depending on a human be-ing to reflect and decide in most situations, mak-ing mediation between established knowledge andsingular context. So, it is recommended the adop-tion of a management model that enables and fa-vors the combination of professional autonomyand sanitary responsibility.Key words Democratic management, Healthwork, Health and philosophy
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Racionalidade gerencial hegemônica
Há vários anos, tenho investigado a hipótese deque a maioria dos métodos de gestão, desenvol-vidos no século XX, tinha como estratégia, explí-cita ou implícita, a utopia de controlar absoluta-mente o trabalho humano1. Denominei de “raci-onalidade gerencial hegemônica” as várias teoriasou métodos que buscam regular o trabalho doser humano. Valendo-se de distintos recursos, seesforçam para aproximá-lo do funcionamentode uma máquina. Um mecanismo concebido emuma lógica mecânica ou cibernética, com essa fi-nalidade foram criados tanto métodos de con-trole direto – supervisão –, quanto modos indi-retos de controle, como a avaliação de resultados.
Por que haveria se conformado esta obses-são histórica com a moldagem da força de tra-balho a padrões mecânicos de funcionamento?Por que os modelos de gestão pretendem, demodo sistemático, reduzir a autonomia do serhumano inserido em cadeias produtivas? Por quetal concepção transformou-se no modo hege-mônico para se pensar e operar sistemas de pro-dução de bens e serviços?
Há justificativas políticas, econômicas e ci-entíficas que sustentam essa racionalidade. Con-sidero que haja três elementos fundamentais quea constituem e justificam as pretensões de con-trole sobre o trabalhador. A primeira é a tendên-cia a subordinar o trabalho a modos de funcio-namento padronizados a priori. Tenta-se redu-zir o espaço para reflexão e decisão autônomadurante a execução das tarefas. A realização des-sa estratégia dependeu de uma aproximação en-tre o discurso próprio da gestão com o discursocientífico2. Não foi por acaso que o livro quefunda essa perspectiva controladora denominou-se de Princípios da administração científica, deautoria de Taylor3. Para a ciência de base positi-vista, seria possível, mediante a acumulação deevidências quantificáveis, construir-se padrões enormas que regulassem o trabalho em um de-terminado processo específico. Segundo essaconcepção, somente os especialistas ou os diri-gentes conheceriam “the best way” para cons-truir-se alguma coisa. Entretanto, conformeapontaram vários autores4, essa tendência a es-vaziar a capacidade de imaginação, de criação ede decisão dos trabalhadores durante o traba-lho, funda-se em discursos racionais sobre anatureza do trabalho humano. Apostam em di-minuir ao máximo a imprevisibilidade do tra-balho5. Ricardo Antunes6 menciona a tendênciacontemporânea dos modelos de gestão, apesar
de todo o discurso sobre qualidade total e fun-ção polivalente do operador, de priorizar o tra-balho morto sobre o trabalho vivo em ato, pro-duzindo a “liofilização” do trabalhador e do seutrabalho (ressecamento de sua dimensão huma-na). Esforça-se para condicionar a rede produ-tiva a protocolos, que definiriam as condutas ecomportamentos apropriados; essa é a metabuscada pela racionalidade gerencial contempo-rânea. Postura que indica uma maior confiançano saber previamente acumulado, e com baseem evidências, do que no tirocínio dos trabalha-dores. É evidente que, com base em justificativascientíficas, há todo um esforço histórico parareduzir o sujeito do trabalho a um instrumentofuncional, a procedimentos definidos com ante-cedência. Alguns autores falam em “reificação”do trabalhador7, em mecanismos de controlepara restringir a livre expressão de sua subjetivi-dade, de seus valores e mesmo de sua experiên-cia prévia. A racionalidade gerencial hegemônicapersegue a utopia de reduzir o sujeito do traba-lho a um objeto, a um recurso maleável confor-me o planejamento e programas definidos peladireção ou por “quem entende do assunto”, emgeral especialistas que pensam e planejam afas-tados do espaço onde se realiza o trabalho.
Uma segunda característica da racionalidadegerencial dominante, decorrente da pretensãoanunciada acima, é a de pensar-se como um ins-trumento disciplinar, como um modo de con-trole sobre o trabalho em geral e sobre os traba-lhadores em particular. Para esse discurso, a de-mocracia organizacional seria um contrassenso,um modo para produzir-se o caos, um caminhopara a ineficiência e ineficácia dos processos pro-dutivos. Centralização normativa e descentrali-zação executiva. Ao máximo, convocam-se tra-balhadores para corrigirem erros nas linhas demontagem, sempre em acordo com o programapreestabelecido, sempre para repor o funciona-mento “normal”, sempre para atenderem-se aosprotocolos, metas e diretrizes definidas alhures.Para alcançar-se esse objetivo de controle, a ima-ginação gerencial tem sido pródiga; ora recorre àtruculência, ao poder de excluir os rebeldes, osinaptos; ora, busca socorro na psicologia, sele-ção de trabalhadores com personalidade adequa-da à função, estratégias de sedução, treinamen-tos de novas sensibilidades funcionais ao espíri-to da organização e, ainda, em outra vertente, sevale da noção de “interesse”, prêmios financeirosou de status para os produtivos, etc.8. A demo-cracia não é um elemento valorizado pelas váriasteorias de administração, ainda que se a reco-
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mende para o mundo situado fora das empresase organizações.
A terceira característica do discurso gerencialdominante é que as escolas ou teorias da admi-nistração tendem a adotar uma visão “essencia-lista” sobre a natureza humana, o ser humanotenderia a comportar-se segundo seu interesseimediato independente do contexto ou de sua his-tória social. As correntes filosóficas que pensam oser de modo mais complexo não lograram influ-enciar o discurso gerencial. Assim, o controle pre-tendido pelas escolas de administração não obje-tiva ampliar a solidariedade ou formar cidadãoscultos e reflexivos. Ao contrário, para a racionali-dade gerencial hegemônica, o ser humano seriaincapaz de funcionar autonomamente sempre queinserido em processos coletivos de trabalho; ouseja, com o fim do artesanato, com a introduçãodo trabalho em série, em linhas de produção, ha-veria se criado a necessidade de um cérebro cole-tivo, uma instância que administrasse a tendênciaà dispersão de pessoas tendentes a decidir segun-do seu interesse individual (homo aeconomicus)ou conforme a tradição9. A racionalidade cons-truída pelo pensamento gerencial apresenta-se,portanto, como um pensamento pragmático eoperacional, uma racionalidade de ferro ordena-da em função de alcançarem-se determinados re-sultados – a qualidade de certos produtos, deter-minada produtividade. Daí, talvez, advenha a per-sistência histórica da denominação de “recursoshumanos”, predominante no discurso gerencial,como uma referência tanto aos trabalhadoresquanto ao seu potencial produtivo. Os seres hu-manos, quando trabalham, deveriam ser mani-pulados como um “recurso”.
Gestão e democracia:uma contradição em termos?
Seria possível escapar-se do dilema entre auto-nomia profissional e o estabelecimento de for-mas rígidas de controle, de padronização ou denormatização dos processos de trabalho? Seriapossível por meio da autogestão das organiza-ções pelos próprios trabalhadores, no limite, sealcançar o bem-estar comum? Estaríamos obri-gados a optar entre uma visão ingênua e român-tica, que imagina trabalhadores e organizaçõescompletamente autônomos, isentos de qualquerforma externa de controle e outra tradicional,ainda que cínica e pragmática, que considera ademocracia institucional incompatível com o tra-balho produtivo?
Karl Marx, na Ideologia alemã10 – um dos ras-cunhos mais citados como bibliografia, aindaquando seu autor o tenha atirado em uma gave-ta, já que não mereceria destino melhor do que a“crítica dos ratos”–, argumentou contra as con-cepções que pensam o ser humano em abstrato,como portador de características gerais indepen-dentes da história e das condições concretas deexistência. Para ele, o ser humano teria potencia-lidades que poderiam ou não se realizar a depen-der da interação entre o próprio sujeito e seu con-texto histórico e social. Segundo essa lógica, pou-co se poderia afirmar sobre os trabalhadores emgeral; em princípio, os trabalhadores não estari-am centralmente preocupados com a sobrevivên-cia, com interesses corporativos, com a qualidadee beleza de suas obras ou com as necessidades dosusuários. Segundo Marx, haveria que se averi-guar, em cada contexto histórico, o modo de fun-cionamento concreto dos sujeitos, e mais, haver-se-ia que os analisar como produtos e produto-res de certa estrutura cultural, econômica e social.A ordem econômica, social e cultural, bem comoa história, os induziria ora ao corporativismo,ora a preocupar-se com a sua obra ou com asociedade, ou com os usuários, etc. Entretanto,no Capital ou mesmo no Manifesto comunista, épossível se ler uma concepção sobre a classe ope-rária bem menos dinâmica do que aquela de seusescritos de juventude. Nessas duas obras, perce-be-se o autor preso a uma determinação estrutu-ral da natureza do ser humano: a classe operária,por sua posição no modo de produção capitalis-ta, tenderia à solidariedade e, ao buscar sua pró-pria libertação, liberaria também à maioria dasociedade. Os trabalhadores não teriam nada aperder a não ser suas cadeias11!
Quando da constituição da Saúde Coletivabrasileira, havia uma predominância do pensa-mento estruturalista ou neoestruturalista entreos intelectuais críticos. Um modo de conceber adinâmica social que chegou a imaginar o desapa-recimento do sujeito e o apagamento do ser hu-mano diante da força do instituído, do estrutu-rado12. Alguns explicavam a liquidação da auto-nomia humana pela força do mercado e da eco-nomia, outros, pela cultura ou pela tradição, vá-rios, pelo poder do saber ou dos paradigmasepistemológicos; alguns atribuíram a instituiçãoda sociedade de controle ao poder do Estado oude uma rede de micropoderes13.
Entretanto, tendo a concordar com a con-cepção expressa na Ideologia alemã; há evidênciasde que os seres humanos são ativos, reflexivos emodificam as condições que os condicionaram,
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reagem ao domínio do estruturado, produzindoespaços singulares de existência. Trabalho com aconcepção de que o ser humano é potente paracoproduzir situações e contextos, algo próximoao descrito por Marx. Valeria discutirem-se, emoutra oportunidade, os elementos de proximi-dade e os desacordos entre essa compreensão doser humano e, portanto, do ser humano enquan-to trabalhador e o conceito de “ser aí” (daisen) deHeidegger14. As perguntas formuladas a partirda idéia de que nos coproduzimos, entre a inicia-tiva do sujeito e o condicionamento do mundo,são instigantes: como se conformará um médicogeneralista na atenção básica brasileira? O que éo “ser aí” do enfermeiro em um contexto concre-to? O que é pensar sobre uma equipe como pro-duto e produtora de uma história concreta – se-res dependentes e agentes, ao mesmo tempo,moldados pela universidade, origem social, aspi-rações profissionais, modelo de gestão etc., mascapazes de reagir e de alterar alguns destes mol-des estruturais?
Enfim, adotando-se tal concepção dinâmicasobre o modo de ser dos humanos, bem comodo trabalhador em particular, instaura-se umprofundo desconforto, lógico e ético, ante o dis-curso gerencial hegemônico. Que modo de ges-tão seria compatível para ordenar processos emque seres humanos estão envolvidos? Como es-tabelecer algum grau de ordem, de padroniza-ção, de controle, sem massacrar a capacidade dereflexão e os espaços para tomada de decisãodaqueles imersos na tarefa de produzir saúde?Enfim, partindo-se destes pressupostos, caberiao desafio de inventarem-se organizações que le-vem em consideração a relação entre estrutura esujeito. Como fazer isto sem a compreensão dosujeito e de seus atributos, entre eles o trabalho,sem investigar sobre sua conformação histórica,isto é, sobre o modo como foram coproduzidos,sobre a genealogia concreta de sujeitos concre-tos? Como formar médicos, enfermeiros, psicó-logos, no Brasil? Por que uma parte se dirigiupara atenção básica, para o SUS? Seria possívelgerenciar o trabalho em saúde levando em contaa complexidade destas relações?
Estas indagações fazem eco a uma afirmaçãode Michel Foucault, que, ainda no final dos anossetenta, reconhecia não haver sido inventadodurante o século XX, quer no socialismo ou emsistemas públicos, uma “governomentalidade”(um modo de governar seres humanos) distintadaquela tradicional, desenvolvida pelo capitalis-mo ao longo dos séculos XIX e XX15.
Tensão estrutural e políticaentre o trabalho em Saúdee a racionalidade gerencial hegemônica
Parto do pressuposto que o trabalho em saúdetem algumas peculiaridades que ampliam a ten-são entre a racionalidade gerencial hegemônica eo desenvolvimento das potencialidades do serhumano.
Aristóteles distinguia o saber humano em duasmodalidades: o teorético ou contemplativo e osaber prático. O saber prático é aquele conheci-mento produzido a partir da ação ou do agir hu-mano. O saber prático poderia ser classificadoem dois tipos: técnica e práxis. A técnica seria aque-la atividade humana em que o conhecimento pré-vio, estruturado, dispensaria o agente de qual-quer reflexão, deliberação ou escolha em ato, ouseja, durante a execução de certo trabalho16. Ummarceneiro constroi uma mesa definindo o mo-delo da mesa a priori, ele teria que ser valer de“técnicas” conhecidas e aplicá-las tendo em vistao diagnóstico sobre o tipo de madeira, instru-mentos disponíveis e o desenho do objeto previa-mente elaborado. Ao contrário, a práxis seriaaquela atividade humana em que o saber prévio,trabalho morto acumulado (diria Marx) não isen-ta o agente da necessidade de uma reflexão pru-dente (diria Aristóteles) durante a execução daatividade ou do trabalho em questão. Na práxis,o agente da ação, ademais do planejamento pré-vio com base no saber acumulado, deverá consi-derar o contexto singular em que sua ação se rea-liza: outros sujeitos envolvidos, valores, circuns-tâncias históricas, etc. A ética, a política, a justiçaestariam, para Aristóteles, nessa categoria17.
Ora, me parece ser essa exatamente a descri-ção da modalidade de trabalho a ser exercida peloclínico ou pelo sanitarista ao elaborar um proje-to de intervenção para enfrentar uma epidemiaou endemia em um contexto histórico singular.Klíno (clínica), em grego, refere-se à necessidadedo médico inclinar-se sobre o paciente. Nessesentido, tento a interpretar essa denominaçãopara o trabalho médico como um reconhecimentode que o profissional deveria sustentar uma po-sição inclinada (nem vertical ou horizontal) en-tre o saber médico dos compêndios e o sujeitoenfermo, restrito a um leito ou a uma cadeira. Aposição vertical indicaria uma prática técnica,incapaz de reconhecer a singularidade de cadacaso, a variabilidade da ordem genérica (doençaenquanto um ser, uma ontologia) encarnada emum indivíduo. Assumir a posição horizontal, omédico acostado junto ao paciente, por outro
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lado, indicaria um abandono do lugar profissio-nal e assunção da função de cuidado familiar,lugar do amigo ou do parente.
Considero, portanto, o trabalho em saúdeuma práxis. Como em toda práxis, é impossíveloperar-se sem algum grau de saber acumulado,sem teoria, método e técnicas previamente expe-rimentados. Entretanto, caberia ao profissional,à equipe responsável por cada caso clínico ousanitário, construir um novo modo de agir combase tanto no saber estruturado, quanto tam-bém no diagnóstico da situação específica e emvalores do sujeito ou da cultura; ou seja, lhe ca-beria adaptar o saber tecnológico ao contextosingular. Os métodos sugeridos para a elabora-ção de projeto terapêutico singular ou de projetode intervenção partem destas considerações18.Óbvio que há procedimentos médicos, parcelasdo trabalho em saúde, que se aproximam do tra-balho técnico. A realização de um determinadoprocedimento cirúrgico, uma vez definido umdiagnóstico e um projeto terapêutico, guardaanalogia com a prática técnica. Entretanto, casoocorra algum imprevisto durante a cirurgia, umaqueda de pressão, a descoberta de uma anoma-lia congênita, a evidência de uma comorbidade,um sangramento, em qualquer destes casos, oprofissional, a equipe, estarão obrigados a refle-tir e a tomar decisões não previstas no padrãotécnico. Estratégias para controlar uma epide-mia de aids, ou de dengue, dependerão do estadoda arte, de conhecimentos estruturados com baseem experiências e evidências anteriormente veri-ficadas; contudo, deverão ser modificadas emacordo à singularidade do território e da popu-lação a ser protegida.
Observe-se que o exercício do trabalho, se-gundo a lógica da práxis, depende de sujeitos tra-balhadores com importante grau de autonomiae de responsabilidade com o outro e com as ins-tituições. Conforme demonstrei, a racionalidadegerencial dominante aposta em outra direção,buscando, em suas várias vertentes, restringir assituações em que o processo de trabalho depen-de de decisão autônoma dos trabalhadores.
Vários autores têm demonstrado a tendên-cia do trabalho em saúde, particularmente dotrabalho médico, constituir-se como tecnologiapura19. De fato, a especialização, a fragmentaçãodo trabalho clínico e o esforço político da racio-nalidade gerencial são forças que dificultam apráxis clínica ou sanitária.
A tese defendida nesse artigo é diferente. Ar-gumento sobre a necessidade de se respeitar essacaracterística estrutural do trabalho em saúde –
a práxis, buscando-se modelos de gestão quecombinem autonomia, necessária para a práxis,com controle sobre o trabalho, considerando-seo saber estruturado, valores políticos e direitosdos usuários. Outros autores reconhecem haverdificuldade em subordinar o trabalho em saúde,particularmente aquele do médico, à lógica dagestão20. Escritores da corrente estruturalista atri-buem essa dificuldade ao fato do profissional desaúde deter, quase em regime de monopólio, ocontrole sobre o saber fazer em saúde. Isto lhesasseguraria autonomia relativa ao executaremações clínicas e, em consequência, dificultaria ocontrole da gestão sobre o trabalho em saúde,particularmente aquele de natureza clínica21. Ain-da que este argumento deva ser levado em conta,seria importante assinalar que há outras áreasdo trabalho profissional em que o saber especi-alizado é quase exotérico e, mesmo assim, houveenquadramento dos processos de trabalho a pro-tocolos e sistemas de monitoramento.
Há uma importante linha de pensadores daSaúde Coletiva que tem se valido da filosofia e daciência social para compreender e a intervir so-bre o trabalho em saúde. Particularmente, há umatradição investigativa sobre o trabalho médico esobre o exercício da clínica. Uma estudiosa pio-neira desse tema foi a professora Maria Cecília F.Donnangelo (1975) que, em seu livro Medicina eSociedade22, apresentou uma série de inferênciassobre modificações na prática desses profissio-nais. Professora Donnangelo procurou averiguarse, com as transformações no modo de produ-ção da atenção a saúde no Brasil, ocorria subor-dinação do trabalho liberal quando de sua inser-ção em empresas (hospitais e clínicas) de capitalprivado ou estatal. Ela identificou que havia mé-dicos liberais clássicos, pequenos produtores au-tônomos, e que emergia, no cenário da época,com grande força, tanto médicos proprietários(empresários), ainda que em pequeno número,quanto uma maioria de assalariados em organi-zações públicas ou privadas. Entretanto, para suasurpresa, ela constatou que mais de dois terçosdos médicos investigados trabalhavam em umaforma estranha a essa classificação clássica. A essaquarta forma de inserção no mercado de traba-lho ela denominou de “autonomia”. Formas derealizar a clínica que [...] poderiam ser considera-das intermediárias ou transacionais entre o libe-ral e o assalariado, na medida que envolvem umcontrole parcial dos meios de trabalho ou da clien-tela [...].
Entretanto, tanto a professora Donnangeloquanto Ricardo Bruno23 consideraram esse esti-
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lo de prática profissional como “categoria resi-dual”; ou seja, como uma modalidade de traba-lho tendente a desaparecer, quer nas empresasprivadas, quer nos modernos sistemas de saúde.Em minha tese de mestrado, Os médicos e a polí-tica de saúde24, analisei esse fenômeno de outraforma. Considerei que os médicos se valeram daação política, sindical e corporativa para defen-der essa autonomia relativa mesmo em situa-ções em que não eram proprietários dos meiosde trabalho. Ainda mais, constatei que, em mui-tos casos, em quase todo o trabalho hospitalar,por exemplo, os médicos conseguiram imporessa forma de organizar a atenção aos gestores.O conceito e a organização do trabalho segundoa lógica de corpo clínico, em hospitais públicos eprivados, confirmam essa hipótese.
Além da luta política em defesa da autono-mia, considero que haja duas características dotrabalho em saúde que permitiram a conserva-ção de autonomia relativa para médicos e outrosprofissionais de saúde. A primeira é a complexi-dade do processo saúde, doença e intervenção,fato que ganhou divulgação após a crítica aoparadigma biomédico elaborada pela Saúde Co-letiva e promoção à saúde. Em alguma medida,na prática, não somente ao se lidar com casoscrônicos, mas em muitas outras situações, temse tornado difícil não incorporar o usuário comopessoa, ficando-se tão somente com a doençacomo objeto da clínica (dimensão psicossocial).A segunda característica estrutural que propiciacontexto favorável à essa autonomia relativa dasequipes de saúde é a variabilidade do processosaúde e doença, gerando a relação paradoxal en-tre padronização e singularidade dos casos (noespaço e no tempo).
Cogestão e neoartesanato em saúde:a democracia necessária?
Poderemos considerar, portanto, que haja sin-gularidade dos casos no trabalho em saúde, oque exige improvisação e criatividade em ato: clí-nica da fusão de paradigmas e de protocolos. Aprática em saúde assemelha-se, portanto, mes-mo quando realizada em equipe ou em rede, aotrabalho artesanal, um neoartesanato ainda a serdesenvolvido em sua plenitude. O que depende-rá da construção de modelo de gestão do traba-lho segundo lógica não maquínica ou burocráti-ca. Ao contrário, haveria que se superar o mal-estar histórico entre gestão e a clínica, incômodoque se explica pela tradição (neo)taylorista de
controle sobre a clínica e pela insistência em seretirar o poder de decisão do clínico e da equipe edeslocá-lo para o protocolo, ou para algum ges-tor, ou para um regulador situado ao final deum rede informatizada25, conforme sugerido porvárias escolas de gestão, particularmente peladenominada de managed health care26.
A construção de outra racionalidade gerencialem saúde dependerá de uma reconstrução críticaem vários planos, o da política, da sociabilidade,da gestão e mesmo da epistemologia. Dentro dis-to, esse artigo defende a necessidade de tambémgestar-se outro paradigma para a gestão em saú-de. Um paradigma que reconheça e conviva coma autonomia relativa dos trabalhadores, mas quedesenvolva formas de controle sobre o trabalhosegundo a perspectiva dos usuários e tambémtomando em consideração o saber estruturadosobre saúde. Há vários pesquisadores investigan-do e experimentando reformas no processo deprodução de conhecimentos e no trabalho emsaúde. A construção de um novo paradigma emgestão beneficiou-se bastante com o esforço paraarticular saberes sobre a subjetividade com temasligados ao trabalho em saúde27. Vale também res-saltar o esforço para introduzir a razão e o agircomunicativos habermasianos na gestão e no pla-nejamento28 em saúde. A política do Ministérioda Saúde denominada de Humaniza-SUS, em lar-ga medida, busca trazer para o Brasil esse novomodo de pensar a gestão e o trabalho em saúde29.Insere-se dentro desse movimento, voltado paraa construção de uma nova racionalidade gerenci-al, que valorize a autonomia dos trabalhadores eusuários, a discussão sobre clínica ampliada30 esobre a busca da integralidade e de novas formasde cuidado no trabalho em saúde31.
Parece-me que a incorporação destes novosconceitos depende de reformas organizacionais etambém do processo de trabalho voltadas paraampliar a democracia institucional. É nesse sen-tido que venho sugerindo a adoção de sistema decogestão e de apoio institucional; ou seja, refor-mas que concretizem formas de poder compar-tilhado entre gestor e equipe, entre clínico e equi-pe, entre profissionais e usuários. Há alguns con-ceitos e arranjos organizacionais que possibili-tam – não garantem – a cogestão do trabalhoem saúde. Entre eles, vale destacar o esforço parase combinar graus autonomia dos profissionaiscom definição explícita de responsabilidade sani-tária. Segundo essa perspectiva, o planejamento,a avaliação e, mesmo, eventuais contratos demetas dever-se-ão realizar de modo participati-vo e com apoio institucional.
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Ao contrário do que recomenda a racionali-dade gerencial dominante, seria conveniente as-segurar à equipe de referência responsável pelocaso a condução do projeto terapêutico, com aindicação de internação, acesso a exames ou aespecialistas; ou seja, o grosso da “regulação”deveria depender da equipe, reservando-se aos“reguladores” papel de ordenação e de coorde-nação. Dentro dessa lógica, a construção de dire-trizes, protocolos e campos de cuidado obedece-riam a estratégicas dialógicas de busca de con-senso e envolvimento das equipes (agir comuni-cativo e cogestão). O novo modelo de gestão su-gere que usuários e clínicos façam parte da ges-tão em todas suas etapas, ainda que com papeldistinto dos administradores. Assegurar tambémao paciente/usuário a condição de sujeitos comautonomia e poderes relativos: cogestão do pro-jeto terapêutico; almejar-se não somente a pro-dução de saúde, mas também considerar a auto-nomia do usuário como critério de qualidade(antídoto contra medicalização, consumismo edependência).
Há alguns elementos operacionais conheci-dos e que possibilitam tanto a cogestão quanto aampliação da clínica e do trabalho em saúde. Parapossibilitar o neoartesanato no trabalho em saú-de, sem desprezar a tradição dos Sistemas Nacio-nais de Saúde, seria importante armarem-semecanismos que assegurem relação usuário eprofissional diacrônica (horizontal no tempo),estimulando a construção de vínculo e corres-ponsabilidade terapêutica32. A tradição concei-tual dos sistemas nacionais de saúde, sintetizadano Relatório Dawson, recomenda que a defini-ção do encargo (responsabilidade) sanitário paracada serviço ou equipe deverá ocorrer com rela-ção a pessoas e território33.
Há ainda algumas estratégias organizacionaisque permitem atenuar os efeitos destrutivos dafragmentação do trabalho em saúde:
. Profissional de referência: coordenador decaso e responsável pelo projeto terapêutico;
. Equipe de referência (espaço interprofissio-nal): célula do modelo de gestão – deslocamentode parte do poder das corporações para equipes;
. Equipe interdisciplinar de apoio matricial:responsável por atenção à saúde a um conjuntode pessoas e território;
. Integração entre equipe de referência e apoiomatricial: organizar trabalho compartilhado me-diante: (1) atendimento conjunto de casos; (2) aten-dimento pelo especialista e contato com equipe quedefine seguimento complementar; (3) troca de co-nhecimentos e de orientações diálogo sobre proje-tos terapêuticos entre apoio e equipe e (4) busca demecanismos para personalizar a relação entre pro-fissionais de referência e contrarreferência, estimu-lando contato direto entre referência e apoio;
. Unidade de produção: departamentos dosserviços de saúde organizados segundo lógicainterdisciplinar e modo de produção da atençãoà saúde (processo de trabalho, objeto e objetivoscomuns); com essa lógica, se busca saltar do de-partamento corporativo ao departamento temá-tico e interdisciplinar;
. Apoio Paidéia como metodologia para a co-gestão da clínica: coconstruir capacidade de aná-lise/compreensão sobre si mesmo (saúde e do-ença) e sobre relações com o mundo da vida.Ampliar capacidade de intervenção sobre si mes-mo e sobre organizações e contexto. Com esseobjetivo, há alguns elementos metodológicos doapoio Paidéia a ser considerados, tais como com-binar ofertas provenientes do saber sanitário comdemanda/interesse e valores do usuário; buscara construção dialógica de um projeto terapêuti-co ou de intervenção; procurar analisar objetosde investimento e necessidades sociais do sujeitoou do coletivo, sentido e significado para o pro-jeto de atenção. O método de apoio constroi-secom centralidade mediante a reflexão sobre aprática: falar sobre dificuldades da prática, emgeral, tende a produzir uma abertura da resis-tência dos sujeitos e a busca de outras discipli-nas, valores e possibilidades subjetivas34.
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Artigo apresentado em 29/04/2010Aprovado em 18/05/2010Versão final apresentada em 31/05/2010
Referências
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