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COLETÂNEA DE TEXTOS INFORMATIVOS PROFESSOR: Lucas Rocha DISCIPLINA: Redação DATA: 05/02/2012 ————————————————————————————————————————————— 1 Nº 03 Sedução para o consumo (RENATO NUNES BITTENCOURT) Da tradição tecnicista vem a "necessidade vital" do consumo, e as poderosas técnicas da publicidade têm no homem atual presa fácil pelo vazio existencial proporcionado na era pós-moderna UMA REEFLEXÃO filosófica sobre as influências comportamentais das práticas comunicativas na subjetividade do indivíduo regido pelos signos do ideário capitalista não pode se furtar em analisar criteriosamente os mecanismos publicitários da persuasão sobre as qualidades atribuídas aos produtos disponíveis no sistema de mercado no qual estamos inseridos. O grande motor da propaganda consiste na sua habilidade em estimular o indivíduo a consumir um dado produto, destacando-se as características que se julga como potenciais fontes de atração da percepção do indivíduo. As técnicas publicitárias geralmente associam a imagem do produto divulgado com elementos que não correspondem imediatamente ao objeto destacado, pois esse procedimento gera, na mentalidade do consumidor, a ideia de que, ao adquirir um produto específico, as qualidades supostamente contidas nesse produto serão assimiladas. O especialista em Comunicação Social, Gino Giacomini Filho, destaca que ―a publicidade nasceu com o claro propósito de fomentar a transação econômica, principalmente diminuindo a resistência do consumidor‖¹. O consumidor caracterizado por seguir os normativos mandamentos publicitários, propagadores das imagens espetaculares de sucesso pessoal e profissional, se encontra na obrigação de ser feliz, mas esse estado de beatitude não se concretiza da maneira esperada na vida cotidiana. Este é seu maior malogro, havendo assim uma descontinuidade entre aquisição de bens materiais e felicidade genuína. Conforme complementa Adriana Santos, especialista em Imagens e Culturas Midiáticas: ―Cada vez mais, os meios de comunicação, não apenas sinônimos de troca de informação como também de publicidade e propaganda acenam com maiores quantidades de objetos de desejo para os consumidores, fazendo com que, um dia, o paraíso e o bem-estar prometidos por tais produtos possam ser finalmente encontrados‖². O prazer existencial prometido pelo consumo de bens materiais não se encontra de modo algum imediatamente associado a esses, ainda que haja uma maciça campanha publicitária que promova o poder mágico desses bens como acessórios por excelência para que o consumidor conquiste o patamar de satisfação material esperado. Consumir é sempre uma atividade supressora do estresse; logo, por qual motivo não se aproveitar da sensação geral de instabilidade psíquica reinante nos agitados centros urbanos para se promover a comercialização dos diversos tipos de objetos disponíveis, revestindo-os com os efeitos espetaculares da propaganda? Vejamos o parecer crítico de Schröder e Vestergaard: ―Mostrando gente incrivelmente feliz e fascinante, cujo êxito em termos de carreira ou de sexo – ou ambos é óbvio, a propaganda constrói um universo imaginário em que o leitor consegue materializar os desejos insatisfeitos da sua vida diária‖³. Os critérios ―morais‖ da sociedade consumista, herdeira do tecnicismo industrial, consistem na obrigação incondicional do indivíduo se apresentar publicamente como alguém plenamente capacitado a consumir, mesmo sem que isso resulte na realização de uma necessidade vital básica; com efeito, a lógica consumista faz da disposição de consumir coisas uma necessidade vital irrevogável. A doutora em crítica literária, Lucia Santaella, destaca que, ―fascinado diante da miríade de estímulos, diante do espetáculo volátil das luzes, das imagens, dos cenários e das coisas, nas grandes cidades, o olhar moderno aprendeu a desejar o corpo enfeitiçado das mercadorias que, sacralizadas pela publicidade, ficam expostas à cobiça por trás dos vidros reluzentes das vitrines. 4 O discurso da publicidade consumista se utiliza da insatisfação existencial do indivíduo para melhor dominá-lo, insuflando-lhe tendências heterônomas em relação ao seu apreço pelos bens materiais.

COLETÂNEA DE TEXTOS INFORMATIVOS PROFESSOR: … · Para o filósofo francês Gilles Lipovetsky, ―a sedução tomou o lugar do dever, o bem-estar tornou-se Deus, e a publicidade

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COLETÂNEA DE TEXTOS INFORMATIVOS

PROFESSOR: Lucas Rocha

DISCIPLINA: Redação DATA: 05/02/2012

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Nº 03

Sedução para o consumo (RENATO NUNES BITTENCOURT)

Da tradição tecnicista vem a "necessidade vital" do consumo, e as poderosas técnicas da publicidade têm no homem atual presa fácil pelo vazio existencial proporcionado na era pós-moderna

UMA REEFLEXÃO filosófica sobre as influências comportamentais das práticas comunicativas na subjetividade do indivíduo regido pelos signos do ideário capitalista não pode se furtar em analisar criteriosamente os mecanismos publicitários da persuasão sobre as qualidades atribuídas aos produtos disponíveis no sistema de mercado no qual estamos inseridos. O grande motor da propaganda consiste na sua habilidade em estimular o indivíduo a consumir um dado produto, destacando-se as características que se julga como potenciais fontes de atração da percepção do indivíduo. As técnicas publicitárias geralmente associam a imagem do produto divulgado com elementos que não correspondem imediatamente ao objeto destacado, pois esse procedimento gera, na mentalidade do consumidor, a ideia de que, ao adquirir um produto específico, as qualidades supostamente contidas nesse produto serão assimiladas. O especialista em Comunicação Social, Gino Giacomini Filho, destaca que ―a publicidade nasceu com o claro propósito de fomentar a transação econômica, principalmente diminuindo a resistência do consumidor‖¹.

O consumidor caracterizado por seguir os normativos mandamentos publicitários, propagadores das imagens espetaculares de sucesso pessoal e profissional, se encontra na obrigação de ser feliz, mas esse estado de beatitude não se concretiza da maneira esperada na vida cotidiana. Este é seu maior malogro, havendo assim uma descontinuidade entre aquisição de bens materiais e felicidade genuína. Conforme complementa Adriana Santos,

especialista em Imagens e Culturas Midiáticas: ―Cada vez mais, os meios de comunicação, não apenas sinônimos de troca de informação como também de publicidade e propaganda – acenam com maiores quantidades de objetos de desejo para os consumidores, fazendo com que, um dia, o paraíso e o bem-estar prometidos por tais produtos possam ser finalmente encontrados‖².

O prazer existencial prometido pelo consumo de bens materiais não se encontra de modo algum imediatamente associado a esses, ainda que haja uma maciça campanha publicitária que promova o poder mágico desses bens como acessórios por excelência para que o consumidor conquiste o patamar de satisfação material esperado. Consumir é sempre uma atividade supressora do estresse; logo, por qual motivo não se aproveitar da sensação geral de instabilidade psíquica reinante nos agitados centros urbanos para se promover a comercialização dos diversos tipos de objetos disponíveis, revestindo-os com os efeitos espetaculares da propaganda? Vejamos o parecer crítico de Schröder e Vestergaard: ―Mostrando gente incrivelmente feliz e fascinante, cujo êxito em termos de carreira ou de sexo – ou ambos – é óbvio, a propaganda constrói um universo imaginário em que o leitor consegue materializar os desejos insatisfeitos da sua vida diária‖³.

Os critérios ―morais‖ da sociedade consumista, herdeira do tecnicismo industrial, consistem na obrigação incondicional do indivíduo se apresentar publicamente como alguém plenamente capacitado a consumir, mesmo sem que isso resulte na realização de uma necessidade vital básica; com efeito, a lógica consumista faz da disposição de consumir coisas uma necessidade vital irrevogável. A doutora em crítica literária, Lucia Santaella, destaca que, ―fascinado diante da miríade de estímulos, diante do espetáculo volátil das luzes, das imagens, dos cenários e das coisas, nas grandes cidades, o olhar moderno aprendeu a desejar o corpo enfeitiçado das mercadorias que, sacralizadas pela publicidade, ficam expostas à cobiça por trás dos vidros reluzentes das vitrines.4 O discurso da publicidade consumista se utiliza da insatisfação existencial do indivíduo para melhor dominá-lo, insuflando-lhe tendências heterônomas em relação ao seu apreço pelos bens materiais.

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Conforme destacam os sociólogos Philippe Breton e Serge Proulx, ―a publicidade, se inserindo na problemática de marketing das empresas, tornou-se um mecanismo essencial para a organização da produção da demanda e das necessidades a preencher pelo consumo‖5. A publicidade fabrica consenso para atender aos interesses do poder econômico, prosperando assim por meio das carências existenciais de cada indivíduo, que consomem sofregamente em nome de uma postulada ―satisfação interior‖. O sociólogo polonês, Zygmunt Bauman, argumenta com muita precisão que ―a liberdade do consumidor significa uma orientação da vida para as mercadorias aprovadas pelo mercado, assim impedindo uma liberdade crucial: a de se libertar do mercado, liberdade que significa tudo menos a escolha entre produtos comerciais padronizados.‖6

A aquisição de bens materiais traz não só a ilusão da felicidade, mas a “obrigação” de ser feliz. Promessas reiteradas da publicidade que não se concretizam ao não preencherem verdadeiramente o homem

Torna-se tecnicamente impossível pensarmos em ―liberdade de escolha‖ ou ―liberdade individual‖ quando existe um mecanismo social, a publicidade, que cria, em nome de conveniências econômicas, demandas desiderativas que exigem da parte do consumidor a sua satisfação imediata, para que a paz psíquica se estabeleça em sua consciência. O comunicólogo francês, Abraham Moles, afirma que ―o papel da agência de publicidade é, de um lado, manter as necessidades, e de outro, transformar os ―desejos‖ em ―necessidades‖, na medida em que o indivíduo tenha uma margem de escolha imposta‖7.

Os publicitários conhecem um campo de possibilidades de reações dos indivíduos diante de um produto e com a propaganda que é feita em torno dele. Detendo uma ampla percepção psicológica da afetividade do consumidor, o profissional da publicidade consegue elaborar um tipo de discurso que se encaixa perfeitamente nas aspirações pessoais da massa consumidora, levando-a ao pronto consumo da coisa divulgada na propaganda social, que é usualmente contextualizada em situações de prazer, de alegria, contando com a presença de pessoas belas e saudáveis.

Para o sociólogo e filósofo francês, Jean Baudrillard, ―o narcisismo do indivíduo na sociedade de consumo não é fruição da singularidade, é refração de traços coletivos‖ 8. Tal colocação desmistifica o discurso ideológico da publicidade que apregoa a capacidade mágica de singularizarão do ser humano por meio da aquisição dos produtos revestidos de uma aura soteriológica, capaz de libertar o consumidor de sua mediocridade existencial.

Marilena Chaui destrincha esse paradoxo ideológico da moral publicitária, argumentando que ―a propaganda tenta garantir ao consumidor que ele será, ao mesmo tempo, igual a todo mundo e não um deslocado (pois consumirá o que os outros consomem) e será diferente de todo mundo (pois o produto lhe dará uma individualidade especial)‖9.

A OBRA DE JEAN Baudrillard, A Sociedade de Consumo, discute o consumismo como mito que se transforma na nova moral do mundo moderno e como somos impelidos a consumir orientados pelos meios de comunicação

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É impossível negarmos a inexistência de qualquer responsabilidade social dos agentes publicitários, especuladores dos desejos coletivos, em forjar novas demandas consumistas, como forma de pretensamente outorgar aos consumidores tanto uma sensação de pertencimento social quanto destatus quo. Para o sociólogo, Don Slater, ―as pessoas compram a versão mais cara de um produto não porque tem mais valor de uso do que a versão mais barata (embora possam usar essa racionalização), mas porque significa status e exclusividade; e, claro está, esse status provavelmente será indicado pela etiqueta de um designer ou de uma loja de departamentos‖10.

A sociedade de consumo faz com que os indivíduos, psicologicamente massificados pela ideologia mercantilista apregoada pela publicidade comercial, atuem de maneira heterônoma no tocante ao ato de aquisição dos gêneros ofertados, o que resulta no curioso caso de que muitas vezes os indivíduos adquirem os produtos à disposição do mercado consumidor em decorrência direta dos estímulos externos transmitidos pelos mecanismos midiáticos. O desenvolvimento das técnicas do neuromarketing, dispositivo comunicacional caracterizado pelo uso de mecanismos subliminares na divulgação da propaganda é um dos fatores que geram a criação artificial de demandas consumistas nos indivíduos seduzidos pelas imagens prometedoras do gozo existencial mediante o usufruto do produto divulgado. Uma pergunta se torna imprescindível: comprovando-se a propaganda subliminar, é possível pensarmos na ideia de liberdade de escolha do consumidor?

O consultor corporativo dinamarquês, Martin Lindstrom defende a ideia de que em breve um número cada vez maior de empresas vai se esforçar para manipular medos e inseguranças a respeito de nós mesmos para nos fazer pensar que não somos suficientemente bons, que se não comprarmos um determinado produto, estaremos de alguma forma perdendo algo.11 A infinidade de impulsos inconscientes em busca de satisfação, manipulados com maestria pelo sistema publicitário, pode ser considerada como a motivação ao ato de comprar através desses estímulos da propaganda, mantendo-se, todavia, uma distância muito estreita entre desejo e gozo.

É IMPOSSÍVEL NEGARMOS A INEXISTÊNCIA DE QUALQUER RESPONSABILIDADE SOCIAL DOS AGENTES PUBLICITÁRIOS, ESPECULADORES DOS DESEJOS COLETIVOS, EM FORJAR NOVAS DEMANDAS CONSUMISTAS

Diante da infinidade de produtos disponíveis no mercado, o indivíduo

economicamente viável não é capaz de ater sua atenção para apenas um objeto, excitando-se assim com a miríade de marcas que flutuam perante sua consciência submetida aos efeitos sedutores dos gêneros de consumo. A mente do indivíduo, imersa na realidade espetacular das imagens impactantes, somente consegue deter sua preciosa atenção para os produtos acompanhados de promessas de felicidade instantânea e envernizados pelo palavreado demagógico da propaganda.

Na dimensão comercial da sociedade capitalista, quem promove a exaltação mágica dos produtos é a publicidade, que reveste com propriedades especiais os objetos destinados para compra, em uma relação nitidamente fetichista, conforme a acepção marxista: uma relação social definida, estabelecida entre os homens, assumindo a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas12. O produto alardeado pela publicidade dos meios de comunicação de massa deixa de ser algo puramente material, utilitário, e se torna algo dotado simbolicamente de vida própria, granjeando a simpatia e adesão do consumidor, que deposita em tal produto a oportunidade de obter a sonhada felicidade.

O indivíduo que recebe essas informações é levado a acreditar que, se ele consumir esse produto, ele também será feliz e bonito, tal como veiculado pelo garoto- -propaganda. Para o filósofo francês Gilles Lipovetsky, ―a sedução tomou o lugar do dever, o bem-estar tornou-se Deus, e a publicidade é seu profeta. O reino

Os meios de comunicação, seja rádio, internet ou TV cada vez mais se prestam aos desígnos da publicidade, com enxurradas de propagandas a todo o momento

O sociólogo polonês alertou para a falsa sensação de liberdade do consumidor, que tem à disposição apenas produtos padronizados previamente aprovados pelo mercado

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do consumo e da publicidade exprime muito bem o sentido coeso da cultura pós-moralista. Assim, as relações entre os homens ficam sendo sistematicamente menos simbolizadas e apreciadas do que as relações entre os homens e as coisas‖13.

A relação sedutora produzida pelo sistema das mercadorias apresentadas ostensivamente na experiência cotidiana, operada pelo ardil publicitário, pretende justamente exigir de cada indivíduo o consumo dos produtos maravilhosamente expostos nos grandes altares comerciais, as prateleiras, as vitrines, os mostruários, fazendo com que o consumidor se relacione com tais produtos a partir de uma experiência devocional secularizada.

Tal situação, que se encontra na base da grande maioria das atividades publicitárias, é merecedora de uma série de reflexões sobre as implicações éticas da propaganda social e da sua capacidade de in-fluenciar na tomada de decisão dos gostos individuais.

Afinal, o consumo de um dado produto pode até proporcionar ao indivíduo um estado de bem-estar, mas isso não fará desse consumidor a pessoa extraordinária que a campanha publicitária apregoa de forma tão enfática. Para a psicanalista Maria Rita Kehl, ―a aliança entre a expansão do capital e a liberação sexual fez do interesse das massas consumidoras pelo sexo um ingrediente e- ciente de publicidade.

Tudo o que se vende tem apelo sexual: um carro, um liquidificador, um comprimido contra dor de cabeça, um provedor de internet, um tempero industrializado. A imagem publicitária evoca o gozo que se consuma na própria imagem, ao mesmo tempo em que promete fazer do consumidor um ser pleno e realizado. Tudo evoca o sexo ao mesmo tempo em que afasta o sexual, na medida em que a mercadoria se oferece como presença segura, positivada no real, do objeto de desejo‖14.

A PUBLICIDADE É MERECEDORA DE REFLEXÕES SOBRE IMPLICAÇÕES ÉTICAS DA SUA

CAPACIDADE DE INFLUENCIAR NA TOMADA DE DECISÃO DOS GOSTOS INDIVIDUAIS

Certamente é muito difícil suprimirem-se essas falácias subjacentes ao discurso publicitário, pois que este depende,

sobretudo, desse sistema de ilusões. Com efeito, se fossem extirpadas as falsas promessas dos produtos defendidos pela propaganda, esta praticamente se extinguiria.

Para o filósofo e teólogo espanhol, Niceto Blázquez, ―a publicidade é praticada como uma retórica contrária à liberdade interior dos potenciais compradores mediante o recurso franco às técnicas persuasivas mais eficazes. Como serviço de informação comercial é muito conveniente e útil. Mas até que ponto é eticamente lícito condicionar a liberdade alheia como meio para lucrar, embora oferecendo produtos e serviços necessários?‖15.

Para aqueles que não conseguem participar desse culto materialista regulado pelas trocas econômicas, resta o desprezo e a exclusão social proveniente da impossibilidade de participação na valoração identitária de um dado grupo. A sociedade de consumo, caracterizada por seu sectarismo excludente, não aceita a presença dos indivíduos imputados como economicamente inviáveis.

A sensação de pertencimento do status quo muitas vezes se dá pela aquisição do material que está atrás das vitrines reluzentes e sedutoras

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Enquanto a publicidade padroniza, ela tenta também fazer o consumidor ter a sensação de ser diferente entre os demais, com uma falsa sensação de individualidade especial

PERSUASÃO DO BEM?

Na estrutura capitalista em vigor seria tecnicamente impossível pensarmos na delimitação da atividade publicitária apenas ao ato de divulgação pura objetiva dos produtos, sem quaisquer outros oreios discursivos e imagéticos visando o encantamento do consumidor. A publicidade e sua extensão propagandística, para se sustentarem comercialmente, necessitam da existência desse suporte retórico e espetacular com o qual os produtos são adornados.

Por conseguinte, trata-se de uma falácia ideológica o discurso de defesa da publicidade que apregoa a ideologia segundo a qual a propaganda não ―obriga‖ o consumidor a adquirir o produto alardeado. O próprio fato de a publicidade revestir os produtos propagandeados com qualidades inexistentes, visando conquistar a adesão do consumidor, retrata o seu falseamento dessa relação.

Os objetos possuem apenas qualidades funcionais, técnicas, nada mais do que isso: qualquer outro acréscimo é apenas projeção psicológica do próprio consumidor, que deposita extrema confiança na capacidade ―soteriológica‖ do produto em lhe proporcionar um satisfatório estado de gozo a partir da sedução publicitária original que promete tais benesses ao usuário. Portanto, a manutenção da vida vazia do indivíduo alienado de si na sociedade capitalista é potencializada pelo sistema publicitário, braço comercialista dos meios de comunicação. Obviamente não há uma coerção concreta exigindo o ato de consumo, mas existe a coerção simbólica que requer do indivíduo sua participação econômica nessa lógica comercial, para que ele possa assim ser aceito nos padrões sociais de comportamento.

Em linhas gerais, a proposta desse texto não consistiu em demonizar a atividade publicitária, mas proporcionar uma análise crítica sobre os seus efeitos existenciais e comportamentais nos indivíduos, promovendo assim um razoável esclarecimento sobre as suas técnicas comunicativas de persuasão.

¹GIACOMINI FILHO, Consumidor versus propaganda, p. 14.

²SANTOS, Os meios de comunicação como extensões do mal-estar, p. 67 ³SCHRÖDER & VESTERGAARD, A linguagem da propaganda, p. 179 4SANTAELLA, Corpo e Comunicação – sintomas da cultura, p. 116. 5BRETON & PROULX, Sociologia da Comunicação, p. 111 6BAUMAN, Modernidade e ambivalência, p. 277. 7MOLES, O Cartaz, p. 121. 8BAUDRILLARD, A Sociedade de Consumo, p. 96 9CHAUI, Simulacro e Poder: uma análise da mídia, p. 38. 10SLATER, Cultura do consumo e modernidade, p. 156. 11LINDSTROM, A lógica do consumo, p. 172. 12MARX, O Capital, I, v. 1, p. 81 13LIPOVETSKY, A sociedade pós-moralista, p. 31-32. 14KEHL, Sobre ética e psicanálise, p. 189. 15BLÁZQUEZ, Ética e meios de comunicação, p. 604.

A infinidade de marcas e tipos de produtos contribuiu ainda mais para a exacerbação do consumo. Há que se pensar em publicidade não apenas como um ato de divulgação objetivo

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Referências

BAUDRILLARD, Jean. A Sociedade de Consumo. Trad. de Artur Morão. Lisboa: Ed. 70, 2007. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Ambivalência. Trad. de Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. BLÁZQUEZ, Niceto. Ética e meios de comunicação. Trad. de Rodrigo Contrera. São Paulo: Paulinas, 1999. BRETON, Philippe & PROULX, Serge. Sociologia da Comunicação. Trad. de Ana Paula Castellani. São Paulo: Loyola, 2002. CHAUI, Marilena. Simulacro e Poder – uma análise da Mídia. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo, 2006. GIACOMINI FILHO, Gino. Consumidor versus Propaganda. São Paulo: Summus Editorial, 1991. KEHL, Maria Rita. Sobre ética e psicanálise. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. LINDSTROM, Martin. A lógica do consumo. Verdades e mentiras sobre por que compramos. Trad. de Marcello Lino. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009. LIPOVETSKY. A sociedade pós-moralista. O crepúsculo do dever e a ética indolor dos novos tempos democráticos. Trad. de Armando Braio Ara. Barueri: Manole, 2005. MARX, Karl. O Capital. Livro I, Vol. 1. Trad. de Reginaldo Sant‘Anna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. MOLES, Abraham. O Cartaz. Trad. de Miriam Garcia Mendes. São Paulo: Perspectiva, 1987. SANTAELLA, Lucia. Corpo e Comunicação – sintomas da cultura. São Paulo: Paulus: 2006. SANTOS, Adriana Bacellar Leite e. Os meios de comunicação como extensões do mal-estar. Rio de Janeiro: MAUAD, 2002. SCHRÖDER, K. C; VESTERGAARD, T. A linguagem da propaganda. Trad. de João Alves dos Santos. São Paulo: Martins Fontes, 2004. SLATER, Don. Cultura do consumo e modernidade. Trad. de Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Nobel, 2002.

RENATO NUNES BITTENCOURT é doutor em Filosofia pelo PPGF-UFRJ, professor do curso de Comunicação Social da Faculdade CCAA e da Faculdade Flama e membro do Grupo de Pesquisa Spinoza & Nietzsche. Revista FILOSOFIA, Fevereiro de 2012.

Os supermercados e o interesse público (JOÃO GALASSI)

A CAMPANHA ―Vamos Tirar o Planeta do Sufoco‖, desenvolvida pela Apas (Associação Paulista de Supermercados) reflete uma demanda da sociedade, cada vez mais atenta às questões ambientais. Não se pode ignorar o enorme volume de material desnecessário despejado no ambiente. Como forma de contribuir para amenizar o problema, os supermercados vêm adotando várias medidas para substituir as sacolas plásticas descartáveis por sacolas reutilizáveis.

A campanha tem apoio do governo do Estado de São Paulo, de várias prefeituras, de inúmeras entidades da sociedade civil organizada, de órgãos oficiais ambientalistas e de ONGs que se dedicam ao ambiente. Ela também está alinhada com a Política Nacional de Resíduos Sólidos. O incentivo ao transporte das compras de modo sustentável é o início de um projeto maior, com ações sustentáveis mais amplas, passando até pela construção e pela reforma de lojas, projeto já iniciado pela Apas com o lançamento de um guia da loja verde.

Sabemos que as mudanças são gradativas e deveriam começar por uma ponta. Optamos pela substituição das sacolas descartáveis por entender que esse é o ponto mais sensível para o cumprimento das normas de gestão de resíduos, que começam a vigorar em 2014, deixando de despejar no ambiente 7 bilhões de sacolas ao ano no Estado de São Paulo. O foco da ação está no fim da cultura do descarte. Iniciamos a ação com um projeto-piloto, em Jundiaí.

O resultado desse trabalho -que uniu prefeitura, Procon, supermercadistas e associação comercial- foi extremamente positivo, conforme demonstrado pela pesquisa Ibope Inteligência. Dos entrevistados, 77% aprovaram a iniciativa, 83% apoiaram a expansão da campanha para outros tipos de comércio, 52% perceberam a cidade mais limpa e 86% consideraram um bem para a sociedade a não utilização de sacolas descartáveis.

Ficamos especialmente motivados ao constatar que 68% entendem que a iniciativa elevou o sentimento de cidadania. Implantado o projeto-piloto e assinado o acordo com o governo paulista, passamos os últimos 18 meses percorrendo o Estado para divulgar a campanha.

Nesse tempo, apresentamos formalmente a campanha em 130 prefeituras. Além de Descalvado, onde já havia uma lei, mais seis cidades suspenderam a distribuição de sacolas descartáveis: Monte Mor, Americana, Itapetininga, Marília, Piracicaba e Socorro. Depois de conquistar o apoio do poder público e a adesão dos nossos 1.200 associados, partimos para as ações de conscientização, levando informações fundamentais pela mídia e formadores de opinião e participando de debates.

Em paralelo, as dez regionais da Apas ajudaram os supermercados no treinamento dos seus colaboradores que lidam com o público. Criamos um serviço de 0800 para esclarecer as dúvidas dos associados. Decoramos as lojas e fizemos divulgação via mídias sociais e via campanha publicitária.

Atraímos atenção do país inteiro para uma intervenção urbana na capital paulista com 12 "sacolonas", instalação artística de material reciclado com quatro metros de altura. O ápice das ações em 25 de janeiro não foi o fim da campanha. Inicia-se agora uma nova fase que comprovará o quanto o legado da mudança de hábito do consumidor trará benefícios ao meio ambiente.

JOÃO GALASSI, 44, é presidente da Apas (Associação Paulista de Supermercados). Folha de São Paulo, Fevereiro de 2012.

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Sem saída (RUY BRAGA)

O modelo de desenvolvimento brasileiro não apresenta refúgios para a classe trabalhadora

Bancários de todo o país entram no décimo dia de greve

AS RECENTES greves dos bancários e dos trabalhadores dos correios tornaram-se objeto de inúmeras controvérsias. Nos longos dias da paralisação, a mídia destacou um debate a ser retomado aqui: se o governo federal controla a CUT, como explicar um embate tão longo entre os trabalhadores e o Banco do Brasil, a Caixa Econômica Federal e a ECT? Se a CUT controla a maioria das federações e sindicatos engajados nesses movimentos, como interpretar as derrotas que as assembleias sindicais impuseram aos acordos negociados com as empresas por seus representantes? Para além da concorrência de elementos específicos, como o desconto de alguns dias não trabalhados, a iminente privatização dos correios ou o endurecimento dos bancos estatais nas negociações, um processo salta aos olhos de quem acompanhou a radicalização dos trabalhadores no país: estávamos diante de uma verdadeira rebelião das bases em relação ao controle governamental exercido sobre os trabalhadores pelos sindicatos. No começo do ano, foram as greves nos canteiros de obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) que deram o alerta. A greve dos professores do ensino fundamental e médio em diferentes estados e o sucesso da atual campanha nacional pelo investimento de 10% do PIB na educação lograram organizar a indignação das bases. Ao analisar todos esses movimentos, arriscaria duas hipóteses: objetivamente, os ganhos salariais não acompanham a elevação da produtividade do trabalho. Em outras palavras, os trabalhadores estão se matando em condições cada dia mais deterioradas de trabalho sem uma contrapartida salarial que minimize o aumento do estresse, do adoecimento e da fadiga física. Subjetivamente, os trabalhadores começam a perceber que o atual modelo de desenvolvimento econômico pilotado pelo governo federal simplesmente não os favorece. Ao contrário, o casamento da "comodificação" da economia com a financeirização do capital limitou de tal maneira a ação do próprio governo que já não há mais espaço para concessões. A Sociologia pública do trabalho presente no livro Saídas de emergência (Boitempo Editorial ), organizado por Robert Cabanes, Isabel Georges, Cibele Rizek e Vera da Silva Telles, exige uma reflexão crítica acerca do atual modelo de desenvolvimento social pilotado pela burocracia lulista. Por meio de minuciosos relatos etnográficos, somos lançados à infernal realidade da classe trabalhadora paulistana vivendo na periferia da grande metrópole e inseridos nas entranhas do áspero e degradado universo limítrofe entre o legal e o ilegal, cuja principal marca é a experiência da precariedade social em suas mais diferentes formas: mercado de trabalho, violência policial, ambiente familiar, vida comunitária, participação religiosa e resistência política. Depois de ler os registros contidos no livro fica fácil compreender por que a paciência dos trabalhadores está se esgotando.

Apesar de toda a propaganda governista em torno da desconcentração de renda entre aqueles que vivem do trabalho, uma conclusão nada óbvia começa a se impor à consciência dos subalternos: o atual modelo não tem nada a

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oferecer a eles. Em um mundo tomado pela indignação contra a maneira como os governos estão destruindo o futuro a fim de salvaguardar lucros de bancos e de grandes grupos privados, tal conclusão pode se tornar politicamente explosiva.

*Texto publicado originalmente no blog da Boitempo Editorial

RUY BRAGA, professor do Departamento de Sociologia da USP e ex-diretor do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania

(Cenedic) da USP, autor de diversos livros. Revista SOCIOLOGIA, Fevereiro de 2012.

Cooperar ou Desertar (THIAGO JOSÉ BENEDITO EUGÊNIO)

As relações sociais são jogos de interesses cujas regras remontam à história evolutiva da espécie, muito embora o contexto seja o responsável pela elaboração e expressão das estratégias individuais

BOAS CONVERSAS surgem em uma mesa de bar ou diante das estantes de livros. É comum no final de um happy

hour as pessoas dividirem as despesas e, mais comum ainda, alguém não ter dinheiro para ajudar a pagar a conta. Nessa hora, sempre existe um amigo que coopera e empresta o dinheiro. "Prometo que pago você amanhã, obrigado" é a resposta mais corriqueira para tal ato de camaradagem. Doce ilusão, o tempo passa e o devedor nunca mais toca no assunto, enquanto que quem emprestou nunca esquece. Será que em outra situação, no futuro, este devedor receberá ajuda do seu amigo?

Ou, então: um amigo chega à sua casa. Diante dos seus livros, você faz uma apresentação dos assuntos que está estudando e trabalhando. Após alguns comentários, seu amigo avista um livro que lhe chama atenção. Depois de folhear e elogiar o livro, ele o pede emprestado e promete que devolverá, assim que terminar de lê-lo. Os meses se passam e o livro emprestado não é devolvido. Você comunica o seu amigo, envia um e-mail dizendo que está precisando da obra. Mas ele diz que sempre se esquece de devolvê-lo ou, então, simplesmente ignora seu pedido e não responde. O que sente o indivíduo que gentilmente emprestou o livro? Ele emprestará outro livro para seu amigo?

Há uma infinidade de situações como essas, afinal, a cooperação e a trapaça estão no centro do comportamento social humano. Mas, afinal, por que o ser humano apresenta essa bipolaridade? Por que em algumas situações nos comportamos como mocinho, em outras, somos o vilão da história? Até meados do século XX, a sociedade e sua ordem eram compreendidas como uma entidade orgânica e coesa, e seus cidadãos, meras partes. Nesta vertente, os indivíduos eram negligenciados e a mente que importava era aquela pertencente ao grupo.

A negação da autonomia da cultura em relação às mentes individuais também foi articulada pelo fundador da sociologia, Emile Durkheim (1858-1917), que escreveu: "A causa determinante de um fato social deve ser buscada entre os fatos sociais que o precederam, e não entre os estados de consciência individual" (Pinker, 2004, p. 46). Assim, justificavam-se as diferenças entre os grupos étnicos exclusivamente com base nas diferenças culturais. Logo, a partir desta perspectiva, o comportamento social do ser humano não poderia ser explicado por mecanismos e propriedades inatas da mente.

Até meados do século XX, a sociedade e sua ordem eram compreendidas como uma entidade orgânica e coesa

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Perspectiva evolucionista

Nas últimas décadas, contudo, tem havido uma renovação fascinante da literatura no que concerne à origem e à evolução desse sistema de normas nas sociedades. Uma série de evidências aponta que o comportamento humano parece também ser um produto de forças e propósitos evolutivos, isto é, influenciado pelas predisposições biológicas moldadas durante a evolução da espécie para lidar com as demandas ecológicas impostas, sobretudo, aos nossos ancestrais.

Interpretações modernas sobre a evolução da ordem social e cooperação têm-se centrado no estudo comparativo com outras espécies e na evolução de estratégias reprodutivas dos indivíduos, as quais dependem do tamanho, estruturação dos grupos e dos padrões de interação entre os integrantes do grupo. Essa perspectiva vislumbra a ordem social como um subproduto da evolução

das estratégias individuais engendradas por um longo processo histórico-evolutivo. Nesse sentido, as normas sociais, sob esta nova óptica, são vistas, portanto, como um produto e não causa das ações

dos indivíduos. O cerne desta perspectiva encontra-se nas ideias de Charles Darwin sobre a evolução das espécies. Para Darwin (1859/1996), o ambiente seleciona os indivíduos que detêm características que trazem mais benefícios do que custos - concedendo-lhes mais chances de sobrevivência e de reprodução -, e isso implica uma seleção natural, a qual é responsável pela modificação das espécies ao longo do tempo e do espaço. A seleção natural é, dessa forma, o processo através do qual variantes favorecidas em uma população sobrevivem e se reproduzem mais. Nesse processo, o ambiente seleciona os indivíduos - passando esse conjunto de traços para as gerações seguintes (Cronin, 1995).

No final de uma happy hour, é comum as pessoas dividirem as despesas, mas sempre tem alguém que pede emprestado e nunca paga a dívida. A cooperação e a trapaça estão no centro do comportamento social humano

Se aceitarmos os pressupostos da teoria da evolução, os quais alegam que características, tais como órgãos e dentes, são produtos da seleção natural, por que não admitir que a nossa mente também seja um produto do processo evolutivo? Esta é a proposta central da Psicologia Evolucionista, que se utiliza de conceitos e da lógica darwinista para compreender como as pressões ambientais moldaram o cérebro humano ao longo do tempo. Nesse sentido, a perspectiva evolucionista amplia o estudo do comportamento humano para além da análise física e de suas causas próximas - mecanismos fisiológicos - e passa a considerar e investigar também os mecanismos psicológicos evoluídos. Para tanto, se debruça sobre o seu surgimento na história da vida, adotando o método comparativo com outras espécies, entre indivíduos e entre os sexos, e procura compreender a sua função ou o valor para a sobrevivência e reprodução do indivíduo.

Os mecanismos psicológicos existentes atualmente teriam evoluído para resolver problemas vivenciados por nossos ancestrais caçadores-coletores há milhões de anos, subjazendo o comportamento humano

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Do abstrato ao lógico

Para testar suas hipóteses, primeiramente, os pesquisadores aplicaram em estudantes universitários a tarefa de seleção de Wason. Esse teste consiste na apresentação de quatro cartões mostrando, por exemplo, os caracteres "A", "B", "3" e "4"; é explicado que cada carta possui, em uma face, uma letra e, na outra, um número, e a regra condicional é: "Se uma carta tem uma vogal de um lado, tem um número par do outro. Nesse caso, o participante deve dizer quais cartas ele deve virar, no mínimo, para confirmar a regra". As primeiras constatações foram de que em relações que envolviam o raciocínio lógico e abstrato a maioria dos estudantes não acertava na escolha dos cartões. Entretanto, o desempenho dos estudantes mudava quando a hipótese condicional se referia a uma regra social não abstrata. Nessa versão, foi solicitado aos estudantes que se imaginassem como um barman, o qual deveria cumprir uma lei que proíbe a venda de bebidas alcoólicas para menores de 20 anos. Dessa forma, as cartas representavam os fregueses: "bebendo cerveja", "bebendo refrigerante" (que equivaleriam às letras "A" e "B", respectivamente), com "16 anos" e com "22 anos" - que equivaleriam as "3" e "4", respectivamente. Esse experimento permitiu aos pesquisadores concluírem que, na espécie humana, teriam evoluído adaptações específicas que tornariam o homem mais habilidoso para detectar possíveis trapaças no seu meio social a partir de contratos sociais e não abstratos.

Sob o ponto de vista evolutivo, o ato de cooperar implica em custos para o executor e em benefícios gerados para quem recebe a ajuda, enquanto a trapaça é compreendida quando alguém não retribui um favor ou àqueles que retribuem, mas oferecem muito menos do que recebem; ou, ainda, quando alguém usufrui de um benefício sem pagar os devidos custos. É dessa forma que podemos compreender a cooperação e a trapaça como extremos de um continum que envolve as relações e os jogos sociais.

Desta forma, os mecanismos psicológicos existentes atualmente teriam evoluído para resolver problemas vivenciados por nossos ancestrais caçadores- coletores há milhões de anos e são esses mecanismos que, modelados pelo ambiente, subjazem o comportamento humano.

Partindo do pressuposto que somos seres essencialmente sociais, é esperado que, durante a evolução da espécie humana, tenha evoluído um sistema de normas de convivência a fim de regular as interações assim como as trocas sociais entre os indivíduos.

Assim, mecanismos emocionais e cognitivos, tais como detecção de trapaça, senso de justiça, vigilância; teoria da mente e reputação, teriam originado e evoluído para regular nossa natureza humana social benevolente e egocêntrica.

Teoria do Contrato Social

Os pesquisadores John Tooby e Leda Cosmides, da Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara, nos Estados Unidos, propuseram a Teoria do Contrato Social para explicar a evolução dos mecanismos reguladores das trocas sociais e da cooperação na espécie humana.

Para tanto, levantaram a hipótese da existência de adaptações cognitivas específicas para regular as trocas sociais, entre elas: capacidade de identificar e reconhecer diferentes indivíduos; relembrar diversos aspectos históricos de interações com os indivíduos; detectar possíveis sujeitos violadores das regras sociais na população; expressar e compreender os desejos e as necessidades dos outros e representar os custos e benefícios nas trocas sociais dos mais diversos itens (veja quadro Do abstrato ao lógico).

Após os estudos com o teste de seleção de Wason, novas questões foram feitas pelos psicólogos evolucionistas. Por exemplo, o que afeta a cooperação em um grupo? Quais são os mecanismos psicológicos e emocionais evoluídos para coibir a trapaça? Para responder a essas questões, pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em Natal, estudaram o comportamento moral de crianças por meio de um jogo, conhecido como bens públicos - um dos famosos modelos propostos pela Teoria dos Jogos. Nesse jogo, cada criança recebia três chocolates e decidia quantos ela doaria para um fundo comum. Para cada chocolate doado era acrescentado mais dois no bem comum e, no final do jogo, este era dividido igualmente entre todos os indivíduos.

● A mente e o contratualismo ●

A Teoria da Mente é proposta inicialmente pelos primatologistas Premack e Wooddruff em 1978 e é definida, em Psicologia, como a capacidade para imputar estados mentais aos outros e a si próprio. Nesse sentido, ela é essencial quer para a autorreflexão como para a coordenação da ação social. A Teoria do Contrato Social ou contratualismo é uma teoria sobre o contrato social que se difundiu entre os séculos XVI e XVIII e que tenta explicar os caminhos que levam as pessoas a formar Estados e/ou manter a ordem social. Thomas Hobbes (1651), John Locke (1689) e Jean-Jacques Rousseau (1762) são os mais famosos filósofos do contratualismo.

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As crianças foram separadas em grupos pequenos e grandes. Foi observado que nos grupos menores a generosidade foi maior, pois os indivíduos monitoravam o comportamento dos colegas. Entretanto, nos grupos maiores, em que não é fácil perceber quem doa, a cooperação caiu rapidamente, mostrando que o egoísmo prevalece quando o indivíduo não percebe um ambiente propício para a cooperação (Alencar, Siqueira e Yamamoto, 2008).

Uma série de evidências aponta que o comportamento humano parece ser um produto de forças e propósitos evolutivos

O estudo feito em campo reproduz de forma elegante um descompasso temporal, uma vez que no ambiente ancestral da espécie humana a organização social provavelmente era igualitária, sem privilégios para alguns membros e nem ocorrência de trapaceiros. O tamanho reduzido do grupo proporcionava uma fiscalização mais rigorosa do comportamento de cada um (Broom, 2006). Nesse sentido, a fiscalização era importante para coibir os trapaceiros; aqueles indivíduos que usufruem do benefício, mas não pagam o custo devido pelo mesmo (Trivers,

1971). Com o tempo, entretanto, os grupos foram crescendo e, por consequência, a identificação dos trapaceiros se tornou uma tarefa mais difícil (veja quadroVigilância).

A capacidade de expressar e compreender os desejos e as necessidades dos outros é outra adaptação cognitiva específica para regular as trocas sociais. Premack e Woodruff (1978) estudaram o comportamento de chimpanzés que, assim como os humanos, pensam em seus coespecíficos. Assim, cunharam a expressão "Teoria da Mente", que significa a capacidade para imputar estados mentais aos outros e a si próprio. Neste sentido, ela é essencial quer para a autorreflexão como para a coordenação da ação social.

Com humanos, é empregado o clássico experimento "Problema da Sally-Anne", no qual é exibida uma cena para os sujeitos. Primeiramente, Sally entra, guarda uma bola em um local, por exemplo, atrás do sofá, e sai da cena. Entra em cena a Anne, que retira a bola de trás do sofá, a coloca em outro local, por exemplo, dentro de uma caixa, e sai. Sally retorna em busca da bola - nesse ponto a cena é interrompida. Em seguida, pergunta-se para o sujeito: "Onde Sally irá procurar pela bola?"

Vigilância

Pistas sutis de vigilância parecem também influenciar o comportamento dos indivíduos. Rigdon e colaboradores (2009) solicitaram para alguns sujeitos compartilharem um recurso de forma arbitrária com outros, que deveriam aceitar de forma passiva a oferta. Devido a esse caráter, esta situação é conhecida na literatura como jogo do ditador. Os pesquisadores, no momento da tomada de decisão, entregaram para os "ditadores" um cartão com três pontos - dispostos como uma face (figura a). Em outra condição, os ditadores viam o mesmo estímulo, no entanto, rotacionado 180º (figura b). Observou-se que os participantes ditadores alocaram mais recurso para os receptores quando eram submetidos à condição de vigilância. Os pontos distribuídos como se fosse uma face parecem ativar a área fusiforme do cérebro - responsável pelo reconhecimento de faces - sendo, portanto, suficiente para modificar o comportamento social dos ditadores.

a = Pontos dispostos como uma face (condição de vigilância). b = Pontos rotacionados 180o (condição neutra). Adaptado de Rigdon et al., (2009)

● Teoria dos jogos●

É uma teoria matemática utilizada para o estudo da tomada de decisão e interação de dois ou mais indivíduos. Para isso, faz uso de diferentes jogos para compreender as estratégias dos indivíduos para alcançar o melhor desempenho, maximizando os seus ganhos. A aplicação dessa teoria à Psicologia tem sido importante para o estudo empírico do comportamento social, sobretudo da cooperação em humanos

Com o teste de seleção de Wason, constatou-se que, na espécie humana, teriam evoluído adaptações específicas que tornariam o homem mais habilidoso para detectar possíveis trapaças no seu meio social, a partir de contratos sociais

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Recurso cognitivo Os pesquisadores observaram que, até três anos de idade, as crianças apresentam dificuldades de entender que

diferentes pessoas podem ter representações distintas de uma mesma realidade. Nesse caso, essas crianças respondem, em geral, que Sally irá procurar a bola dentro da caixa. Todavia, quando a mesma pergunta era feita para crianças com mais de seis anos, quase todas as crianças respondiam corretamente, que Sally iria procurar no local onde tinha deixado a bola, isto é, atrás do sofá. No que se refere à idade crítica no desenvolvimento da "Teoria da Mente", há divergências entre os pesquisadores (Ottoni, Rodriguez & Barreto, 2006). No entanto, é inegável que, com tal recurso cognitivo, o ser humano pôde, por exemplo, planejar estratégias e tomar decisões críticas numa situação social. Além disso, tornou-se possível ao Homo sapiens prever que ideia os outros estariam formando a seu respeito, bem como tornou mais sofisticadas as relações e a comunicação intra e intergrupo, habilitando-o a entender artifícios da expressão humana como a ironia, a dissimulação, o sofrimento, o interesse e a falsidade.

Pode ser verdade que nossa moralidade é, em última análise, um meio pelo qual os indivíduos induzem o moralismo no próximo para satisfazer seus próprios interesses (Cartwright, 2000) e que, por mais niilista que

seja isso, somos hospedeiros de genes egoístas usurpadores, cujo objetivo maior é sobreviver e se reproduzir.

Mas assumir isso não nos inviabiliza o planejamento e a criação de contextos que burlem os desígnios da nossa essência genética e egocêntrica. Somos seres humanos imbuídos em um mundo social: viemos ao mundo equipados com predisposições para aprender a cooperar, a distinguir o justo e virtuoso do traiçoeiro, a praticar e prezar pela lealdade, a conquistar boa reputação diante dos nossos semelhantes, intercambiar produtos e informações, a dividir o trabalho e a modelar sua individualidade e vínculos sociais a partir das reações do outro. Nisso, somos uma espécie única. Referências

Alencar, A. I., Siqueira, J. O, & Yamamoto, M. E. (2008). "Does group size matter? Cheating and cooperation in Brazilian school children". Evolution and human behavior, 29, 42-48. Broom, D. M. (2006). "The evolution of morality". Applied Animal Behavioral Science, 100, 20-28. Cartwright, J. (2000). Evolution and human behavior. London: MacMillan Press. Cosmides, L. & Tooby, J. (1992). "Cognitive adaptations for social exchange". In: H. J. Barkow, L. Cosmides & J. Tooby. The adapted mind: Evolutionary psychology and the generation of culture (p. 163-228). New York: Oxford University Press. Cronin, H. (1995). A formiga e o pavão: altruísmo e seleção sexual de Darwin até hoje. Campinas: Papirus. Darwin, C. (1859/1996). The origin of species. Oxford: Oxford University Press. Hamlin, J. K., Wynn, K., & Bloom, P. (2007). "Social evaluation by preverbal infants". Nature, 450, 557-559. Nowak, M. A., Page, K. M., & Sigmund, K. (2000). "Fairness versus reason in the ultimatum game". Science, 289, 1773-1775. Pinker, S. (2004). Tábula rasa: a negação contemporânea da natureza humana. São Paulo: Companhia das Letras. Ottoni, E. B., Rodriguez, C. F. & Barreto, J. C. (2006). "Teoria da Mente e compreensão da representação gráfica de conteúdos mentais (balões de pensamento)". Interação em Psicologia, 10, 225-234. Rigdon, M., Ishii, K., Watabe, M. & Kitayama, S. (2009). "Minimal social cues in the dictator game". Journal of Economic Psychology, 30, 358-367. Trivers, R. (1971). "The evolution of reciprocal altruism". Quarterly Review of Biology, 46, 35-57.

THIAGO JOSÉ BENEDITO EUGÊNIO é jornalista e escreve para esta edição. Revista PSIQUE, Fevereiro de 2012.

Hamlin, Wynn e Bloom (2007) sugerem que os seres humanos têm um sentido moral desde o "início da vida": após assistirem a peças infantis, bebês mostram preferência pelos personagens que cooperam em cena

A capacidade ampliada de prever que ideia os outros estariam formando a seu respeito tornou mais sofisticadas as relações e a comunicação intra e intergrupo, permitindo ao ser humano planejar estratégias

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Crack e tabu (MARCOS FLAMÍNIO PERES)

Ex-secretário de Justiça do governo Dilma, Pedro Abramovay critica a ação do governo de São Paulo na cracolândia

UM ANO ATRÁS, Pedro Abramovay já era bem mais que uma jovem promessa: ocupava a Secretaria Nacional de Justiça do recém-empossado governo Dilma, subordinada ao Ministério da Justiça. Mas bateu de frente com o ministro José Eduardo Cardozo ao defender o fim da prisão para pequenos traficantes. Desautorizado, deixou o cargo três semanas após assumi-lo, aos 31 anos.

A CULT foi ouvi-lo sobre a ação conjunta desencadeada em janeiro passado pelos governos municipal e estadual de São Paulo na região da cracolândia, centro da capital, focada sobretudo na ação

repressiva. ―Isso é enxugar gelo‖, lamenta Abramovay, que afirma ter havido uso eleitoral do episódio. Em 2001, foi assessor do gabinete da prefeita de São Paulo, na administração Marta Suplicy.

Ele também ataca a falta de uma política pública consistente para drogas no país, mas elogia a atitude do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que tem assumido ―posturas mais críticas‖ sobre o tema. Sobre a internação compulsória de viciados, ela só deve ocorrer, diz, em casos específicos – caso contrário, ―pode se tornar uma política de internação da pobreza‖.

Professor de direito penal e de violência e crimes urbanos na Fundação Getulio Vargas (RJ), Abramovay prefere não falar de sua polêmica saída do governo – ―Só comento do ponto de vista pessoal‖ – e se sente melhor hoje em dia: ―Foi uma ótima decisão. Estou morando no Rio e posso cuidar de perto do meu filho de 4 meses‖.

CULT – Como avalia a recente ação do Estado na cracolândia, em São Paulo? Pedro Abramovay – Ela cometeu erros muito graves. O principal deles foi a utilização da polícia como principal instrumento. Qualquer política pública tem que estabelecer seu objetivo de maneira clara, seja porque é a única maneira de haver políticas eficientes, seja porque só assim a população pode compreender e avaliar o que o poder público está fazendo. Qual é o objetivo da polícia na cracolândia? Lidar com o problema do crack? Garantir a segurança dos comerciantes da região? Revitalizar o centro? Pelas declarações das autoridades, não dá para compreender, pois todas essas justificativas se misturam. E as ações, na verdade, não enfrentaram nenhum desses problemas. Do ponto de vista da segurança pública, a ação é um erro porque as experiências internacionais mostram que o foco no usuário e no pequeno traficante é completamente equivocado – não diminui a violência ligada ao tráfico e muito menos a oferta de drogas. É um trabalho de enxugar gelo; mas não é inócuo, pois causa danos à possibilidade de tratar o tema pelo lado da saúde pública. Do ponto de vista da política de drogas, também é um desastre. Afinal, a ação que tem a polícia como principal ator impede a abordagem de agentes de saúde e assistentes sociais.

Houve uso político do episódio, em razão das eleições municipais deste ano? Isso sempre acontece quando se fala de política sobre drogas, pois os políticos sabem que qualquer posição dura contra elas traz dividendos. Mesmo que seja ineficiente e provoque sérios danos às pessoas.

A ação também poder ter sido motivada por pressão de setores interessados na valorização imobiliária da região, que vem sendo chamada pelo poder público de “Nova Luz”? Certamente. Há e sempre houve um debate sobre o centro de São Paulo, entre aqueles que acreditam que sua revitalização passa pela expulsão de toda a população de baixa renda da região e aqueles que defendem que é possível revitalizá-lo com essas pessoas, de forma inclusiva. A atual gestão da prefeitura, desde o governo Serra, tem uma posição muito clara de promover políticas de urbanização excludentes. E a ação na cracolândia é absolutamente coerente com essa postura.

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Há hoje duas percepções contraditórias sobre a cracolândia: ora é um problema social, ora um problema de polícia – e, considerando-se a cobertura que a imprensa deu ao episódio, parece que esta última está ganhando a batalha da opinião pública. Como vê o papel da mídia nessa questão? Ela tem um papel bastante complicado em relação ao tema das drogas, mas há que se reconhecer que o debate está se tornando mais aberto. Nos últimos anos, vários jornais, sobretudo após a tomada de posição do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, têm assumido posturas mais críticas. Mesmo no caso da cracolândia, comparativamente com outros momentos, acho que a visão da mídia foi razoavelmente crítica. Mas talvez não houvesse mesmo como defender uma postura tão truculenta e irracional.

Mas em uma sociedade com um histórico recente de regime militar como a brasileira, como convencer a população de que a violência policial não é a melhor medida a ser tomada nesse caso? Esse é sem dúvida o grande desafio. Não existe política pública legítima se não houver o convencimento da população. E, em segurança pública, mais especificamente no caso de drogas, os agentes políticos costumam buscar essa legitimidade por meio de respostas imediatistas. O objetivo de uma política sobre drogas é melhorar o acesso à saúde dos cidadãos e diminuir a violência, mas esses objetivos nunca são alcançados e nem sequer mencionados nas avaliações. Sempre que se avalia a política repressiva são apresentados indicadores de processo, e não de cumprimento do objetivo. Apresentam-se a quantidade de drogas apreendidas e o número de presos (quando não o de mortos), e isso não quer dizer nada se não houver diminuição da violência e do consumo. Acho que o Rio de Janeiro deu um grande passo no sentido de mostrar que a política de segurança pode ganhar legitimidade rompendo com a truculência. O começo do governo de Sérgio Cabral, com o secretário [de Segurança, José Maria] Beltrame já à frente da pasta, foi muito truculento. Mas tiveram a inteligência de perceber que essa política não funciona e conseguiram criar um programa no qual a presença da polícia comunitária, acompanhada de programas sociais, está no centro da estratégia.

Qual é a melhor estratégia para lidar com o crack? Em que ela deve se diferenciar daquela usada com outras drogas? O crack como substância tem problemas muito similares aos de outras drogas pesadas. Do ponto de vista da dependência química, ele é, segundo os médicos, mais fácil de ser tratado do que outras, como o álcool, por exemplo. A grande questão é o fato de ser muito barato e haver entrado de modo muito perverso nas camadas mais excluídas da sociedade. E é essa combinação de exclusão e droga pesada que produz resultados tão chocantes. Por isso, a política para o crack em tal contexto de miserabilidade – e é importante frisar que esse não é o único contexto, há uso de crack na classe média também – deve conseguir aliar políticas de assistência social e políticas de saúde. Elas precisam compreender que o usuário deve ser, na medida do possível, tratado dentro do seu contexto. A internação é um instrumento, mas nunca a regra. Pelo contrário, ela cria uma situação artificial e muitas vezes desestrutura ainda mais a vida do paciente. É claro que há casos em que isso é necessário, mas são minoria. Os casos internacionalmente reconhecidos como exitosos são aqueles que privilegiam o atendimento ambulatorial e que conseguem reduzir os danos do uso – e, quando possível, retiram a droga da vida da pessoa sem retirar a pessoa de sua própria vida.

Então não é favor da internação compulsória dos dependentes? Ela é muito complicada, pois admiti-la como parte da política pode, sem dúvida, abrir espaço para a violação de direitos humanos, porque uma política depende muito de quem a implementa. Se um prefeito decide colocar a internação compulsória como foco, ela pode se tornar uma política de internação da pobreza. Não dá para não pensar na metáfora de Machado de Assis – a internação compulsória pode levar todos à Casa Verde [hospício criado por Simão Bacamarte em ―O Alienista‖]. É claro que há situações em que pode ser necessário internar alguém que não consiga externar sua vontade. Mas, de novo, esses casos são realmente exceções.

Não parece anacrônico o recente debate sobre a liberalização da maconha em um momento em que drogas mais pesadas e viciantes, como o crack, se alastram pelo país? Acho que parece anacrônica uma ação como a da cracolândia, em um momento em que o mundo todo está adotando posturas críticas às políticas repressivas, quando [até] o presidente da Colômbia [Juan Manuel Santos Calderón] pede que se descriminalizem as drogas. Com relação à maconha, acho que, se for possível estabelecer um consenso regulatório mais inteligente que o atual, seria interessante. O que não faz sentido é mantermos a atual política repressiva, que prende pessoas que nunca praticaram um ato de violência e aproxima os jovens do crime organizado. Além disso, a criminalização faz com que políticas de prevenção e saúde adequadas não possam ser implementadas. Não é por acaso que a única droga de que se conseguiu reduzir o consumo por meio de políticas públicas foi o cigarro, que é uma droga legal.

A experiência pioneira de Portugal pode ser aplicada ao Brasil? Com certeza. Portugal descriminalizou o porte para consumo de todas as drogas. Elas continuam sendo proibidas, mas o porte de pequenas quantidades não é mais crime. Passados dez anos desde a aprovação dessa lei, os resultados são muito animadores. O consumo não aumentou e até caiu entre os jovens. A polícia trabalha focada nos grandes traficantes e melhorou muito sua eficiência e mesmo a imagem internacional. E o acesso à saúde dos usuários é muito maior do que antes.

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Como avalia o governo Dilma nesse setor? Há que se ressaltar um fato histórico. O plano de drogas, que é um plano robusto, teve como porta-voz o ministro da Saúde. Temos que lembrar que até 2010 eram os militares que cuidavam do assunto. Ele coloca, pela primeira vez, recursos importantes na área da saúde para políticas sobre drogas, e isso é fundamental. Mas há um ponto que ainda não está muito claro. A regulamentação do plano abre a possibilidade para o investimento em consultórios de rua, o que é perfeito. Mas também dá muito dinheiro para internação em clínicas privadas, que nem sempre têm métodos científicos de tratamento. A intenção do governo é positiva, mas, se não houver fiscalização do governo e da sociedade, quem for implementar a política – Estados e municípios – pode utilizar esses instrumentos de forma muito equivocada. Não se pode deixar, por exemplo, que os consultórios de rua virem verdadeiras carrocinhas para carregar as pessoas para as clínicas com o único intuito de esconder a pobreza. Há várias clínicas de reabilitação administradas por religiosos, evangélicos sobretudo. Elas deveriam ser reconhecidas pelo governo? Esse não é um tema simples. O governo, no Plano de Enfrentamento ao Crack e Outras Drogas, reconheceu as comunidades terapêuticas, que são unidades de tratamento e internação de usuários – e muitas são controladas por instituições religiosas. Atualmente 70% dos atendimentos a usuários são feitos fora do Sistema Único de Saúde (SUS). Assim, é preciso reconhecer que as comunidades terapêuticas exercem um papel importante e que o Estado talvez não tenha como substituí-las do dia para a noite. Mas isso não significa que o Estado não possa regular de maneira bastante rígida os métodos de tratamento. Não é possível admitir que se dê dinheiro público para sessões de exorcismo de usuários de drogas. E isso, no Plano, precisa ser claramente mais bem regulado do que foi até agora.

MARCOS FLAMÍNIO PERES é jornalista e escreve para esta edição. Revista CULT, Fevereiro de 2012.

João e o “metrôzinho” da alegria (MALU FONTES)

A POUQUÍSSIMOS dias do Carnaval e com a cidade em plena alta temporada turística de verão, com múltiplas festas e ensaios a cada esquina, paradoxalmente Salvador poucas vezes esteve tão feia, mal cuidada e pouco receptiva para os milhares de turistas que recebe. A infra-estrutura da orla, antes acusada de estar mais para uma estética favelizada, desandou de vez após a derrubada de todas as estruturas que ofereciam algum serviço aos banhistas nas praias sem que absolutamente nada tenha sido colocado no lugar. As emissoras locais de televisão não cansam de mostrar, a cada matéria que veiculam sobre as praias em Salvador, os níveis de improviso que hoje imperam na orla. Se as velhas barracas de praia eram acusadas de serem feias, sujas e poluentes, agora a coisa está tão medonha quanto. Ou pior. O que se vê, para além de mesas de plástico encardidas, sombreiros puídos e lanches preparados e servidos em circunstâncias que fazem o diabo revolver as vísceras, são toneladas de lixo espalhadas por todas as praias de Salvador, enfeiando até mesmo um dos principais cartões postais da cidade, a praia do Porto da Barra, onde até um riacho de esgoto recentemente fez companhia ao lixo na areia. Sem falar no lixo jogado ao mar que se acumula no fundo da água. UM CONSULADO - Simultaneamente à feiúra vista na cidade, seja a olho nu ou através das matérias que diariamente a imprensa impressa e televisiva veicula, um fenômeno político chama atenção: a decadência da gestão do prefeito João Henrique Carneiro, um saltador de partidos políticos que em seu segundo mandato resolveu abrir mão oficiosamente do cargo e se transformar em um dublê de muito mau gosto. O dar de ombros do prefeito é tamanho que há muito deixou de dar entrevistas sobre os problemas da cidade e quando aparece é com factóides que merecem mais ovos que os atirados contra o prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, quando da ida à missa pelo aniversário de 458 anos da cidade de São Paulo. Recentemente o prefeito faz-de-conta resolveu fazer um barulhinho na imprensa com uma iniciativa risível se ele não fosse tão desprovido de graça: escreveu uma carta a Hillary Clinton, secretária de estado dos Estados Unidos no Governo Barack Obama pedindo nada menos que um consulado dos Estados Unidos em Salvador. Se isso não é factóide, o que seria? Enquanto isso, os serviços públicos mais básicos, como assistência à saúde, limpeza urbana, transportes e educação parecem estar sob colapso e o prefeito finge não ter nada a ver com isso. Quando a imprensa questiona o caos, o prefeito escala seus subalternos doublês para dizer asneiras solenemente. A desaparição do prefeito das questões graves e feias que a cidade enfrente é tão absoluta que ele sequer se deu à obrigação de cumprir um dos compromissos mais formais do mandato: abrir os trabalhos da Câmara de Vereadores para 2012 na última quarta-feira. Uma Câmara, aliás, composta de tantos ausentes quanto o próprio prefeito. Uma vereadora que atende pelo nome fofo de ‗Tia' Eron, apontada como a mais ausente da legislatura, preferiu, no dia da reabertura, tomar um cafezinho esperto na sala destinada a esse fim, quem sabe para testar o poder de ressurreição física da cafeína para o trabalho. Outra vereadora famosa, Léo Kret, esteve ausente, mas por um motivo que seu eleitorado deve considerar razoável: está confinada num trio elétrico onde se encena o primeiro reality show genuinamente baiano. Para quem não viu o Trio Reality, na TV Aratu/SBT, recomendam-se nervos estéticos fortes. Especula-se, inclusive, que a equipe de produção do programa tem de trabalhar mais que dobrado, pois se 10% do que a vereadora do sexo masculino diz no reality for ao ar, o mandato da moça-moço vai para as cucuias por falta de decoro. E vale lembrar que, para perder um mandato de vereança

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em Salvador por falta de decoro, a indecorosidade deve ser do arco da velha. Diz-se também que para além e aquém de Léo Kret, as estripulias sexuais cometidas (e jamais mostradas, por conta do horário) pelo povo do Trio Reality fazem a casa do BBB parecer o Castelo Ratimbum. GATALHO - Quanto ao prefeito e sua indisfarçável decisão de cruzar braços e pernas quanto aos problemas da cidade muito antes do fim do seu mandato, sua última aparição digna de registro se deu em um vídeo singelo que há uma semana circula nas redes sociais, mostrando-o animadérrimo com a mulher recém-conquistada, Mrs. Paraíso, formando um trenzinho, ou melhor, um metrozinho da alegria (para não perder a piada com o inacabável metrô de Salvador) para lá de constrangedor ao som de uma trilha sonora que, para a população, tem tudo a ver com os personagens envolvidos na dancinha: ao som de um dos hits de Cláudia Leite cujo versinho singelo entoa ―safado, cachorro, sem-vergonha‖, o prefeito e a consorte Paraíso encenavam um animado trenzinho bailante no Festival de Verão na semana passada. Sim, prefeito, a imagem é uma preciosidade, sobretudo levando em conta seu novo figurino, composto por camisas justérrimas, algo meio slim, no melhor do melhor da linha ‗gatalho‘. Enquanto isso, a TV exibe e repete trocentas vezes por dia campanhas publicitárias institucionais da Prefeitura de Salvador, com um refrão cínico dando conta de que, durante a gestão atual, essa mesma, a de João versão Paraíso no trenzinho, dá para ver o que mudou na cidade. Para melhor, claro. Um chefe de Executivo municipal que leva a terceira capital do país para a decadência que Carneiro levou deveria ser proibido por lei de mentir publicitariamente em anúncios dando conta das qualidades de sua gestão. Que mudança, cara pálida? Que as coisas mudaram, mudaram, mas para pior. Recomenda-se ao prefeito um luau com a nova primeira dama no Terminal Marítimo de Plataforma, onde há uma semana uma equipe da TV Bahia foi surpreendida com um roubo. Enquanto jornalistas da emissora gravavam uma matéria sobre a insegurança, a decadência e a completa falta de estrutura do lugar, o motoboy que leva a fita para a emissora com o material gravado teve o capacete roubado. Dá pra ver que mudou, né? Se isso é estar na melhor, pô, o que é estar na pior, né, Salvador?

MALU FONTES é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 05 de Fevereiro de 2012, no jornal A Tarde, Salvador/BA. [email protected]

Um apartheid silencioso (FERNANDO LUÍS SCHÜLER)

A ÚLTIMA edição do Pisa, avaliação realizada em 65 países com alunos de 15 anos, pela OCDE, apresenta um dado perturbador. Os nossos alunos das escolas privadas tiveram nota média de 502, semelhante à nota dos estudantes dos EUA. Os nossos alunos das redes estaduais e municipais de ensino alcançaram uma média de 387, semelhante à da Albânia.

Os dados do Enem mostram o mesmo quadro. Das mil escolas mais bem posicionadas (contando apenas as escolas que tiveram mais de 75% de participação dos estudantes), 92% eram particulares. O fato é que estamos alimentando, no Brasil, uma espécie de apartheid educacional entre os jovens de classe média e alta, cujas famílias há muito "privatizaram" a educação de seus filhos, e os estudantes de famílias mais pobres, que são levados a estudar nas redes estaduais e municipais de ensino, com seus problemas crônicos de gestão.

É uma situação paradoxal: o sistema público de educação, que deveria assegurar uma base de oportunidades igual para todos, é ele mesmo uma máquina geradora de profundas desigualdades sociais. Alguns dirão que não é possível debitar os resultados pífios da educação pública às deficiências estruturais do sistema. Pesaria a condição das famílias para apoiar os filhos em suas atividades fora das salas de aula. É um argumento que pode tranquilizar o nosso sono, mas é inaceitável. Caberia ao Estado exatamente criar as condições para compensar essas assimetrias sociais. Recursos não faltam para isso.

Nosso sistema estatal é caro e ineficiente. Escolas estatais são repartições públicas. Não têm autonomia para tomar decisões com a racionalidade e a rapidez que a educação requer no dia a dia -como atualizar laboratórios, bibliotecas e fazer obras de infraestrutura. Elas sofrem com a burocracia, com o corporativismo e com a visão antimeritocrática comum no serviço público brasileiro. É fácil constatar esse quadro e dizer que tudo poderia ser diferente. Mas não é o que a experiência demonstra. Penso que chegou a hora de apostar em uma mudança de paradigma no Brasil. Uma mudança estrutural de longo prazo: repensar a relação entre o Estado e a sociedade brasileira no que se refere à educação.

Em vez de continuarmos tentando o que se tentou no século 20 -ou seja, nivelar o acesso à educação pela oferta do ensino estatal-, podemos buscar soluções efetivamente possíveis no século 21: assegurar o acesso de todos ao ensino não estatal -composto por escolas com ou sem fins lucrativos, desde que elas tenham qualidade, uma gestão ética e uma relação positiva entre custo e benefício. O Brasil tem apresentado inovações importantes nessa direção. Basta observar o ProUni e o Fies. O Estado financia (via abatimento fiscal para as instituições ou via juros subsidiados para os estudantes) a matrícula dos alunos nas instituições particulares.

É, grosso modo, o que, há décadas, propunha-se no país sob o conceito de "voucher" para a educação. Em vez de criar e administrar repartições públicas de ensino, o Estado utiliza a capacidade disponível das redes privadas, deixa que as famílias escolham onde querem estudar e concentra a sua ação na criação de indicadores e na exigência de qualidade. Fica

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a pergunta: por que esse não se torna o padrão de atuação dos governos na educação também no ensino médio e fundamental?

Por que continuar abrindo repartições públicas educacionais e continuar (como os indicadores mostram) aumentando o fosso social brasileiro? Não seria melhor apostar em modelos transparentes de parceria entre Estado e sociedade, com o financiamento direto aos estudantes, deixando que eles escolham onde estudar? Alguém já comparou a relação entre custo e benefício dessas duas alternativas? O Brasil fez muitas revoluções nas duas últimas décadas. Precisamos agora de mais uma. Uma revolução para que exista igualdade de oportunidades, que vai começar quando tivermos alguma coragem para revisar velhos conceitos.

FERNANDO LUÍS SCHÜLER, 46, doutor em filosofia e mestre em ciências políticas pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), é diretor acadêmico do Ibmec-RJ. Folha de São Paulo, Fevereiro de 2012.

O crack e a soberania humana (GABRIEL CHALITA)

VIVE-SE UMA EPIDEMIA de crack. Isso é fato. A droga surgiu nos anos 1980, nos Estados Unidos. Ela entrou com força em nosso país nos anos 1990. Chegou sorrateira e, aos poucos, foi ganhando as proporções de uma epidemia. O preço reduzido e a imediata dependência foram alguns dos fatores que "popularizaram" essa praga. Vimos, na última década, crescer o uso do crack nas áreas centrais da cidade de São Paulo. Um caos da miserabilidade humana. Liberdades individuais e coletivas foram devastadas pela droga.

A cracolândia é apenas um pequeno retrato dessa crise. Há vários outros espaços onde a ausência do poder público permite a proliferação daquilo que é ilegal, daquilo que é incorreto, daquilo que rouba a liberdade e a dignidade humana. Um estudo recente da CNM (Confederação Nacional dos Municípios) revelou que o crack está presente em 91% das cidades brasileiras. Em todos os casos, o número de usuários está crescendo.

Houve muita polêmica em relação à ação do poder público na cracolândia. Vamos esquecer os eventuais culpados. O tema não deve se prestar a disputas ideológicas. Este é um momento de união e de busca de soluções. A primeira ação deve ser a preventiva. Temos que cuidar das nossas crianças e adolescentes para que eles possam compreender os danos à liberdade e à vida que essa e outras drogas acarretam.

Precisamos de educação e de saúde juntas. Esse é um papel da família, do Estado, da mídia, das igrejas, dos clubes de serviços, de toda a sociedade organizada. Temos que coibir a ação dos traficantes. Temos que cuidar daqueles que, sem políticas de prevenção e sem orientação adequada, entraram nesse círculo vicioso.

A internação de um dependente químico não é simples. É preciso contar com a experiência de numerosas comunidades terapêuticas, que vêm conseguindo realizar um bom trabalho. O tratamento é penoso e exige uma ação generosa de respeito ao próximo, de amor fraterno e de auxílio efetivo a esses cidadãos (infelizmente, tratados como invisíveis) e às suas famílias.

Vimos, com pesar, o lamento das mães em busca dos seus filhos. Com igual pesar, vimos as cenas trágicas de grávidas sem a liberdade de abandonar o vício e de crianças com o futuro esvaziado pela ausência de possibilidades. Não podemos correr o risco de implementar políticas higienistas. Pessoas não são coisas. Expulsas de um lado, elas continuam a existir em outro, com os mesmos problemas. Se forem cuidadas, entretanto, elas podem construir a própria história. E é nisso que acreditamos.

Uma grande cidade é aquela que sabe cuidar dos grandes projetos que dão base ao progresso e à melhor qualidade de vida, mas é também aquela que não abandona os seus filhos. Avancemos na construção de uma nova e forte aliança com a vida. Vamos nos unir na reconquista do direito de cada um de viver e de conviver em sociedade. Dignamente. Livremente. Somos responsáveis uns pelos outros.

GABRIEL CHALITA, 42, professor e escritor, doutor em filosofia do direito e em comunicação e semiótica, é deputado federal (PMDB/SP). Foi secretário de Estado da Educação de São Paulo (2002-2006). Folha de São Paulo, Fevereiro de 2012.

HOMENS ou MULHERES? (CONTARDO CALLIGARIS)

HÁ TRÊS ANOS, Laerte, 60, cartunista da Folha, usa roupas femininas e maquiagem em seu dia a dia. Na terça retrasada, pelo protesto de uma cliente que o reconheceu como Laerte (e, portanto, como homem), ele foi proibido de ter acesso ao banheiro feminino de uma pizzaria paulistana.

Quem está certo, Laerte ou a cliente que protestou? A questão é, no mínimo, complexa. Em regra, na nossa cultura, na hora de usar um banheiro público, a gente se divide em HOMENS e MULHERES. Por quê? Perguntei ao meu redor e obtive dois tipos de respostas.

1) Na hora em que nos dedicamos a funções que são naturais, mas das quais nos envergonhamos, é mais confortável saber que não seremos objetos de desejo sexual. Problema: segundo esse princípio, os homossexuais masculinos deveriam frequentar os banheiros femininos e vice-versa. E os bissexuais fariam xixi em qual banheiro?

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2) A divisão dos banheiros públicos não teria a ver com o sexo, mas com o gênero. Seja qual for o objeto de nosso desejo, na hora de exercer as funções excretórias, preferiríamos estar entre pessoas com uma anatomia igual à nossa. Nesse caso, Laerte, que só se veste de mulher, não poderia usar o banheiro feminino.

Problema: o que aconteceria com um(a) travesti ou com um(a) transexual, ou seja, com alguém que transforma seu corpo até encarnar o gênero oposto? Yasmin Lee, Lea T ou um transexual de mulher para homem iriam para qual banheiro? Simplificando ao máximo, na esperança de esclarecer:

"Cross-dresser" é quem gosta de se vestir com roupas do outro sexo -ocasionalmente ou, como Laerte, o tempo inteiro. Isso não implica uma preferência sexual específica. Muitos "cross-dressers" masculinos desejam só mulheres. Outros se mantêm castos, porque seu único prazer está no fato de habitar, por assim dizer, a pele do outro gênero. "Travesti" implica uma transformação do corpo (hormônios, implantes) e a presença de uma fantasia sexual, que é diferente para cada um, mas na qual a "ambiguidade" do travesti funciona como um fetiche (para ele mesmo e para os outros).

Ser "transgênero" ou "transexual" significa ter a clara sensação de que seu corpo é inconciliável com seu sentimento profundo de identidade: você nasceu num corpo errado, que você odeia, sobretudo a partir da puberdade, quando ele desenvolve seus atributos de gênero. Os primeiros capítulos do livro de João Nery, "Viagem Solitária, Memórias de um Transexual 30 Anos Depois" (Leya), são perfeitos para entender o drama de quem descobre que ele discorda de seu próprio corpo.

A condição de transexual é independente de orientação ou preferência sexuais. Posso nascer num corpo de mulher e desejar homens, mas viver esse corpo como uma prisão e querer (ou melhor, precisar) me tornar homem; mudando de gênero, continuarei desejando homens. No fim, nascido mulher, eu me tornarei homem homossexual. Só para atrapalhar: qual banheiro frequentarei? Na realidade complexa (e confusa) de sexo, gênero e orientação sexual, as categorias que descrevi se misturam e não designam destinos -ainda menos destinos claramente reconhecíveis desde a infância.

No lindo, delicado (e imperdível) filme de Céline Sciamma, "Tomboy" (maria-rapaz), a jovem Laura (extraordinária Zoé Héran) se vale de sua bonita figura andrógina (a puberdade ainda não chegou) para passar por menino entre seus novos amigos. No fim, o espectador decide: o que foi que a gente viu? O começo de um mal-estar transexual? O nascimento de uma homossexualidade? Ou apenas a brincadeira de um verão, que permanecerá como uma lembrança divertida num futuro heterossexual e sem incertezas? Não sabemos e, de fato, nada permite dizer.

Aos nove anos, a menina que seria João Nery foi levada a uma terapeuta. A razão era que ela agia e pensava como um menino, e a mãe gostaria que lhe explicassem o porquê dessa conduta e lhe dissessem como ela deveria se comportar diante disso. Nery escreve: "O diagnóstico indicou que era fixado no meu pai, com uma necessidade de imitá-lo por ser a filha do meio. Assim, tentava me sobressair para ter mais atenção e afeto. Minha mãe não deveria me forçar, impingindo-me roupas femininas ou coisas do gênero, pois tudo passaria com a idade". Com a idade, nada passou. A terapeuta se enganou? Não exatamente: ela não tinha mesmo como saber.

[email protected]. Folha de São Paulo, Fevereiro de 2012.

Mais dinheiro federal na educação básica (DANIEL CARA)

AO ASSUMIR o comando do MEC (Ministério da Educação), Aloizio Mercadante terá pela frente um conjunto considerável de problemas a serem enfrentados. Para resolver boa parte deles, há consenso sobre quais devem ser as prioridades na educação básica: é urgente a necessidade de valorização dos profissionais da educação (em termos de formação, remuneração e carreira); é imprescindível tornar dignas as condições de infraestrutura das escolas; e é necessário avaliar melhor a qualidade do ensino, além de ser pertinente uma boa reforma curricular.

Apesar da tensão gerada pelas diferentes visões sobre como resolver cada um desses problemas, há um fator estrutural que necessita ser equacionado: a inexistência do regime de colaboração. Em respeito aos dispositivos constitucionais e como consequência da própria organização histórica da administração do ensino no Brasil, as redes públicas municipais, distrital e estaduais são responsáveis por mais de 43 milhões de matrículas de educação básica, gerindo cerca de 85% de todas as vagas ofertadas nesse nível.

Ou seja, a resolução da maior parte dos problemas educacionais passa por políticas a serem implementadas pelas administrações públicas locais, distrital e estaduais. No entanto, segundo dados de 2010 do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social da Presidência da República, a União retém 57,1% dos recursos disponíveis arrecadados, sobrando 24,6% para os 26 Estados e para o Distrito Federal e apenas 18,3% para os mais de 5.000 municípios.

Mas, segundo dados de 2009 do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, a cada R$ 1 público investido em educação, Estados e o Distrito Federal despenderam R$ 0,41, os municípios investiram R$ 0,39 e a União colaborou com só R$ 0,20. Sendo a concentração de recursos no governo federal um problema histórico, a Constituição de 1988 determina que os entes federados organizem um regime de cooperação (artigo 23) para gerir diversas políticas públicas, especialmente as políticas sociais.

No caso da educação, também no artigo 211, é determinada a necessidade de implementação de um regime de colaboração, cabendo à União prestar assessoria técnica e financeira a Estados e municípios. Até hoje, nenhum dos dois dispositivos constitucionais foi devidamente regulamentado. As recorrentes notícias sobre as diversas redes municipais que

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descumprem a lei do piso do magistério -que alcançou o irrisório valor de R$ 1.187,00 em 2011- se devem, em grande medida, ao esgotamento das possibilidades orçamentárias das prefeituras. Falta apoio da União.

O importante debate em voga na tramitação do Plano Nacional de Educação, dedicado a deliberar se o Estado brasileiro deve investir 7%, 8% ou 10% do PIB em educação pública, torna-se inócuo se não vier acompanhado da precisa determinação de como vai ser dividida a conta entre os entes federados. O desafio é complexo, o problema é histórico. Até o momento, nenhum ministro da Educação quis ou soube enfrentar a espinhosa agenda para regulamentar o regime de colaboração. Cabe a Mercadante decidir se quer fazer história.

DANIEL CARA, 34, mestre em ciência política pela USP, é coordenador-geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação e membro titular do Fórum Nacional de Educação (FNE). Folha de São Paulo, Fevereiro de 2012.

Ministério da Educação de Base (CRISTOVAM BUARQUE)

DURANTE OS MESES em que fui ministro do presidente Lula, recebi centenas de parlamentares em audiências. Apenas um deles fez um pedido relacionado ao ensino fundamental. Poucos falaram sobre as escolas técnicas. Quase todos trataram do ensino superior. Na verdade, o MEC (Ministério da Educação) é um Ministério do Ensino Superior e das Escolas Técnicas. As ações educacionais de base para crianças e adolescentes estão sujeitas à falta (e à desigualdade) de recursos dos Estados e municípios.

O ministro comemora as suas realizações e assume responsabilidades apenas no que se refere ao ensino superior. Ele não assume a responsabilidade pelo analfabetismo e pelo atraso educacional. Os governos FHC e Lula aumentaram o número de alunos no sistema superior e criaram novas escolas técnicas, mas o Brasil não saiu da vergonhosa tragédia de sua educação de base. E tanto a ampliação do sistema universitário quanto a do ensino profissional estão fracassando por falta de base educacional de seus alunos.

Temos uma história de apoiar o ensino superior, menosprezando a educação de base. Temos um programa "Universidade para Todos", mas não temos um programa ambicioso para "Todos Alfabetizados". Não há também o "Todos com Ensino Médio de Qualidade". Assumimos o ensino superior como questão nacional e deixamos a educação de base como questão local, Estadual ou municipal. A prova é que, em 2009, o governo federal cobriu apenas 3% dos gastos diretos com a educação de base, chegando a 13% se incluirmos o ensino profissional.

Graças ao programa Bolsa Escola, que não é mais administrado pelo MEC, foi possível avançar na universalização da matrícula, mas não na frequência, na assistência e na permanência -e ainda menos no aprendizado. Lula sancionou a lei do Senado para o piso salarial do professor, mas o valor é mínimo e até hoje não é cumprido pela maioria dos Estados e municípios. O Brasil precisa de um ministério que se dedique à educação de base, como no passado fez com a saúde, com a cultura e com o esporte.

Para cada setor da sociedade, temos um ministério. Só na área econômica, são cinco. Mas não há qualquer autoridade nacional responsável pela educação de base. Em diversos países, além do ministério da educação de base, há outro dedicado apenas ao ensino superior. Sugeri isso ao presidente Lula antes da sua posse. Hoje, com 38 ministérios, é difícil justificar mais um. Mas é possível concentrar o MEC na educação de base, migrando a Secretaria de Ensino Superior para o MCT, que passaria a ser o Ministério da Ciência, Tecnologia, Ensino Superior e Inovação.

A principal justificativa para isso é político-administrativa. O ministro dedicado apenas à educação de base terá de concentrar a sua atenção nesse setor. Há também uma justificativa do ponto de vista estratégico: criar no Brasil um sistema nacional do conhecimento, que será eficiente quando todos receberem uma boa educação de base. Esse é um passo necessário e decisivo para transformar o setor que mais emperra o avanço civilizatório do Brasil, propiciando o salto para economia baseada no conhecimento e quebrando a desigualdade social por meio da igualdade no acesso à educação de base. Esse é o objetivo do projeto de lei do Senado 518/2009.

CRISTOVAM BUARQUE, 67, é professor da UnB (Universidade de Brasília) e senador pelo PDT-DF. Folha de São Paulo, Fevereiro de 2012.

O carnaval do governador (JANIO DE FREITAS)

OS FEITOS da violência na Bahia mostraram, em sua gratuidade na rua e irresponsabilidade no palácio, o mesmo espírito carnavalesco que, como sempre, há semanas invadiu Salvador por antecipação.

A quebra dos limites que levou aos saques e destruição de lojas, a outros roubos e violências, e mesmo a tantos crimes de morte, não foi causada diretamente pela greve da Polícia Militar. Veio da espontaneidade que tem o motivo único e simples de estar liberado.

Para vestir o que quiser ou desvestir-se, cantar e dançar nas ruas, assaltar, encher-se de bebida ou de tóxicos, roubar e saquear, agarrarem-se uns aos outros, soltar-se para o sexo ou para o crime: o carnaval autêntico e o carnaval da violência permitidos pela mesma ausência de impedimentos.

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A cota mais pesada de responsabilidade pelos distúrbios criminosos na Bahia cabe ao governador Jaques Wagner, o mais prestigiado por Dilma Rousseff. Não é imaginável que a greve da sua polícia o surpreendesse. Ainda que o fizesse, já no começo da semana estava concretizada e, portanto, evidente.

Logo se comprovava que o governador não adotou medidas preventivas. Não cuidou de sustar a eclosão da greve, não preparou o deslocamento de contingentes policiais discordantes do plano de greve, não se articulou com os comandos militares para eventualidades previsíveis, e não se coordenou com o governo federal para o auxílio da Força Nacional. Se fez alguma outra coisa útil, e de seu dever, não se sabe.

Diante disso, nem importa saber onde estava e o que fazia o governador enquanto a sua PM cuidava de deixar a capital do Estado desprovida de policiamento, como também outras áreas. A seu favor (se é), só o fato de que não esteve sozinho na omissão. Os secretários de Segurança e de Justiça, o comando da PM e várias assessorias o acompanharam na ausência de ação. Os fatos o atestam.

Efetivada a greve e iniciadas suas consequências sobre a população, o governo baiano tardou ainda dois dias, ou algumas horas menos, para adotar providências perceptíveis. Só na quinta-feira foi possível perceber algumas delas, sobretudo a pedida presença de militares nas ruas.

Greves de serviços públicos essenciais, em especial os chamados de saúde (a rigor, falta de) e os de segurança da população, sempre serão polêmicas. Não precisam, porém, ficar nesse limbo em que permanecem no Brasil. Entre direito, abuso, consequências públicas e particulares desrespeitadas pelo poder público, e outras muitas obscuridades artificiosas. Mas convenientes aos governantes e aos parlamentares, que assim escapam aos ônus eleitorais, em qualquer sentido, da posição definida.

Quando escrevo, as indicações do número de mortos continuavam contraditórias. Mais de 20, por certo. Em circunstâncias também mal definidas. Teriam ocorrido, todas, fossem diferentes a greve e o que se passou à sua volta no governo? Ora, isso não importa aos poderes públicos que têm mais o que fazer. E de preferência o que não fazer.

QUEM SABE?

Pergunta sem resposta: por que um deputado federal se movimenta, como Vicente Cândido, do PT paulista, para que se faça aos fabricantes de cerveja a gentileza de liberar bebidas alcoólicas nos estádios? Não só na Copa: sempre e em todos os estádios. A proibição foi uma batalha áspera. Já a liberação, exigida na Copa pela casa de negócios Fifa, depende.

Folha de São Paulo, Fevereiro de 2012.