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OS TEMPOS HIPERMODERNOS, DE GILLES LIPOVETSKY se '-'\ ,-r., . pcr'" O ambiente efêmero e DE GILLES l!POVETSKY Tal contexto caracterizava- descontraído da pós- se por uma contenção dos Os tempos hipermodernos modernidade acabou. São Paulo: Editora Barcarolla, desejos, com vistas a um Ao menos é isso o que 2004. 129p. suposto bem-estar futuro e Lipovetsky indica em Os essa repressão seria a causa Por Leonardo de Araúlo e Mata tempos b ipermodernos. do mal-estar que assolava Para ele, adentramos agora Doutorando do Programa de Pós-Graduação em a civílízação '. uma nova fase da moder- Sociologia da Universidade Federal do Ceará. Zygmunt Bauman, nidade, caracterizada pelo Bolsista da CAPES. em O Mal-estar da Pós- processo desestabílizador da globalização e da modernidade, atenta para o fato de que, ao cobrança de uma eficácia individual, cada vez contrário do que Freud diagnosticou quase um maior, sob bases emocionais precárias. Lipovetsky século atrás, a busca por segurança tornou-se uma se propõe a realizar um de uma questão típica heresia nos dias atuais. Na medida em que a das ciências sociais: a relação do homem com perseguição da segurança era premissa básica do uma civilização em permanente processo de processo civilizatório no início do século XX, a mutação. demanda atual por liberdade total reverteu essa O livro está dividido em três partes: a situação, mesmo que o preço a pagar seja a primeira corresponde a uma introdução ao insegurança endêmica. Portanto, "se obscuros e pensamento de Lipovetsky por Sebastién Charles; monótonos dias assombravam os que procuravam na segunda parte, Lipovetsky formula as bases a segurança, noites insones são a desgraça dos livres:". de seu conceito de hipermodernidade e, na parte Em A era do vazio, Lipovetsky observou final, o leitor é conduzido a uma entrevista, através que "o ideal moderno de subordinação do da qual Charles explora o percurso intelectual de individual às regras racionais foi pulverizado">. Lipovetsky, situando-o em relação aos principais A sociedade pós-moderna baseia-se num processo acontecimentos políticos que acompanham sua social onde a realização pessoal adquire trajetória como pensador contemporâneo. proeminência e as antigas utopias são esvaziadas. Organizado dessa forma, o livro possibilita uma A militância política, a revolução, bem como privilegiada imersão no pensamento do autor, ao outros ideais característicos de um tipo de mesmo tempo em que o leitor pode tomar sociedade uniforme e coercitiva não pertencem conhecimento de uma bibliografia minuciosa de mais ao ambiente pós-moderno. Essa nova fase livros e artigos publicados por Lipovetsky. da modernidade caracterizava-se por uma No início elo século XX, quando Freud demanda ampliada de satisfação dos desejos, do escreveu O Mal-Estar na Civilização, ele sugeriu culto à subjetividade e da indiferença descontraída. ue o homem moderno havia renunciado a seus Trata-se de um novo individualismo que tem por stintos em troca de segurança. A supressão base a lógica da sociedade de consumo, onde os - omentânea da sexualidade e da agressividade discursos são formulados na primeira pessoa. ria o carninho para a conquista da felicidade. Instaura-se, assim, um vazio político, sobre o quat MOTA , LEONARDO DE ARAÚJO E 135 os TEMPOS HIPERMODERNOS, DE GILLES LlPOVETSKY. p.135 A 138.

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OS TEMPOS HIPERMODERNOS, DE GILLES LIPOVETSKY

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O ambiente efêmero e DE GILLES l!POVETSKY Tal contexto caracterizava-descontraído da pós- se por uma contenção dos

Os tempos hipermodernosmodernidade acabou. São Paulo: Editora Barcarolla, desejos, com vistas a um

Ao menos é isso o que 2004. 129p. suposto bem-estar futuro eLipovetsky indica em Os essa repressão seria a causa

Por Leonardo de Araúlo e Matatempos b ipermodernos. do mal-estar que assolavaPara ele, adentramos agora Doutorando do Programa de Pós-Graduação em a civílízação '.uma nova fase da moder- Sociologia da Universidade Federal do Ceará. Zygmunt Bauman,nidade, caracterizada pelo Bolsista da CAPES. em O Mal-estar da Pós-processo desestabílizador da globalização e da modernidade, atenta para o fato de que, aocobrança de uma eficácia individual, cada vez contrário do que Freud diagnosticou quase ummaior, sob bases emocionais precárias. Lipovetsky século atrás, a busca por segurança tornou-se umase propõe a realizar um de uma questão típica heresia nos dias atuais. Na medida em que adas ciências sociais: a relação do homem com perseguição da segurança era premissa básica douma civilização em permanente processo de processo civilizatório no início do século XX, amutação. demanda atual por liberdade total reverteu essa

O livro está dividido em três partes: a situação, mesmo que o preço a pagar seja aprimeira corresponde a uma introdução ao insegurança endêmica. Portanto, "se obscuros epensamento de Lipovetsky por Sebastién Charles; monótonos dias assombravam os que procuravamna segunda parte, Lipovetsky formula as bases a segurança, noites insones são a desgraça dos livres:".de seu conceito de hipermodernidade e, na parte Em A era do vazio, Lipovetsky observoufinal, o leitor é conduzido a uma entrevista, através que "o ideal moderno de subordinação doda qual Charles explora o percurso intelectual de individual às regras racionais foi pulverizado">.Lipovetsky, situando-o em relação aos principais A sociedade pós-moderna baseia-se num processoacontecimentos políticos que acompanham sua social onde a realização pessoal adquiretrajetória como pensador contemporâneo. proeminência e as antigas utopias são esvaziadas.Organizado dessa forma, o livro possibilita uma A militância política, a revolução, bem comoprivilegiada imersão no pensamento do autor, ao outros ideais característicos de um tipo demesmo tempo em que o leitor pode tomar sociedade uniforme e coercitiva não pertencemconhecimento de uma bibliografia minuciosa de mais ao ambiente pós-moderno. Essa nova faselivros e artigos publicados por Lipovetsky. da modernidade caracterizava-se por uma

No início elo século XX, quando Freud demanda ampliada de satisfação dos desejos, doescreveu O Mal-Estar na Civilização, ele sugeriu culto à subjetividade e da indiferença descontraída.ue o homem moderno havia renunciado a seus Trata-se de um novo individualismo que tem porstintos em troca de segurança. A supressão base a lógica da sociedade de consumo, onde os

- omentânea da sexualidade e da agressividade discursos são formulados na primeira pessoa.ria o carninho para a conquista da felicidade. Instaura-se, assim, um vazio político, sobre o quat

MOTA , LEONARDO DE ARAÚJO E 135os TEMPOS HIPERMODERNOS, DE GILLES LlPOVETSKY. p.135 A 138.

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se ergue o narcisismo como novo parâmetro moral.No entanto, isso nào provoca nos indivíduossenrimentos insuportáveis, pois a participação éampliada através de outras instâncias resultantesdesses novos processos de individualizaçào.

Para Lípovestky, essa situação transforma-. e radicalmente na transição para a hipermoder-nidade. O ambiente descontraído de A era dovazio não pôde mais se sustentar frente à falênciado Estado do bem-estar, ao desemprego e àrevolução da informática que caracterizam oprocesso de globalização. Narciso, agora, estáacuado e com medo. O perfil de uma sociedadedo efêmero e da abundância deu lugar ao receiodas demissões, da precarizaçào do trabalho e auma sociedade que pretende fazer cada vez mais,com cada vez menos. O indivíduo hiperrnodernoainda continua na primeira pessoa, mas agoraenfrenta a ruína psicológica frente a um contextode permanentes incertezas.

Segundo Lipovetsky,

C ..) deixado a si mesmo, desinserido, oindivíduo se vêprivado dos esquemas so-ciais estruturantes que o dotavam defor-ças interioresque lhepossibiiitatamfazerfrente às desventuras da existência. Àdesregulação institucional generalizadacorrespondernas perturbações do estadode ânimo. a crescentedesorganização daspersonalidades, a multiplicação de distúr-hiospsicológicose de discursos queixososC..) Assim, a época ultramoderna vê de-senvolver-se o domínio técnico sohre oespaço-tempo, mas declinarem as forçasinterioresdo indivíduo. Quanto menos asnormas coletivasnos regem nos detalhes,mais o indivíduo se mostra tenden-cialmentefraco e desestahilizado. Quan-to mais o indivíduo é camhiante, maissurgem manifestações de esgotamentos e"panes"subjetiuas(p. 84).

No início da introdução ao pensamentode Lipovetsky, Charles lembra ao leitor que a

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condenação do presente não representa umanovidade e que, numa perspectiva histórica, é acrítica mais comum feita por escritores, filósofose poetas, desde tempos imemoriais. Ahipermodernidade representa mais umaconseqüência direta do fim dos "trinta anosgloriosos" 0945-1973) e de suas benesses queuma previsão apocalíptica. O mal-estar destanova fase da modernidade, portanto, remete aodeclínio de um período anterior de crescimentodo capitalismo, no qual se verificou umaexpansão da renda e qualidade de vida dostrabalhadores, principalmente nos paísesdesenvolvidos.

A atual precariedade da existência humanadecorre, agora. da condição de permanenteurgência e imediatismo que predomina nasrelações sociais. Palavras como flexibilidade,rentabilidade, just in time e atraso zero ilustrambem essa condição. No entanto, embora essa febrecompetitiva clame por resultados e lucros cadavez maiores, ela acarreta um grande paradoxo:enquanto alguns poucos indivíduos são obrigadosa trabalhar freneticamente para garantir suasposições, muitos outros estão condenados ao ócio.Lipovetsky exemplifica este dilema, discorrendosobre a indecisão dos jovens franceses na escolhade suas carreiras em face do desemprego, aopasso que seus pais também vivem sob constanteameaça de extinção de seus postos.

Comentando Lipovetsky, Charles observa que

c. ..) a desagregação do mundo da tra-dição é vivida não mais soh o regimeda emancipação, e sim soh o da tensãonervosa. É o medo o que importa e oque domina em face de um futuroincerto; de uma lógica da globalizaçãoque se exerce independentemente dosindivíduos; de uma competição liheralexacerbada, de um desenvolvimentodesenfreado das tecnologias da informa-ção; de uma precartzação do emprego;e de uma estagnação inquietante dodesemprego num nível elevado (p. 28).

2004

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Como resultado, no universo incerto dahipermodernidade, observa-se um culto àstradições do passado, ao patrimônio históricoque agora também se reveste de uma lógicamercantil: lembranças e reminiscências dopassado são cornercializadas em alta escala.Lipovetsky também observa o avanço do"fundamentalismo", como defesa às investidasda globalização e do conseqüente desmonte daproteção social. Cresce o interesse pelasreligiões, desta vez mais individualizadas eadaptadas, para atender a grande demandagerada pelas crises pessoais dos adeptos. Nestemeio termo, surge uma ideologia de culto à saúdee à longevidade, quando muitos indivíduospassam a corrigir seus antigos hábitos emedicalizar suas existências, para nãosucumbirem ao mal-estar.

Mas, todo esse frenesi para escapar ao caosgerado pela desintegração das personalidades,não reduz os efeitos de uma lógica instrumentalque clama por uma eficácia cada vez maior. Aliás,a própria sociedade mercantilista da hipermo-dernidade favorece o consumo de produtosdestinados a atenuar o mal-estar. A febre decompras representa um sistema de compensaçãohoje bastante utilizado, uma fuga à rotina caóticado mercado total. '"A compulsão presentista doconsumo mais o retraimento do horizonte temporalaté constituem um sistema" (p. 79).

Se a pós-modernidade representou umperíodo caracterizado pelo hedonismo, ahipermodernidade representa o culto àperformance, ao cálculo e à eficácia. A primeiragerou um narcisismo cool e liberal, a segundapromove um tipo de narcisismo mais comprometidocom a técnica e obcecado pela idéia de sucessopessoal. O segundo Narciso, embora conserve aflexibilidade característica da fase pós-moderna,tornou-se mais sensato e competitivo, ainda queà custa de estafas e depressões cada vez maisfreqüentes.

Em sua análise da sociedade contemporânea,Lipovetsky desmistifica a idéia segundo a qualestruturas norrnativas coletivas seriam mais

prejudiciais que o culto à produtividade e àcompetitividade que caracterizam a hipermoder-nidade. Se a humanidade conseguiu livrar-se demuitos regimes totalitários, o fomento de umaliberdade sem limites também não proporcionouo surgimento de uma ordem social mais justa.Durkheim, a propósito, já observara que umasociedade regida unicamente por trocas mercantisnão produz solidariedade, mas antes instala umcírculo egoísta de convivência que inibe o laçosocial".

No pano de fundo do conceito dehipermodernidade, atualiza-se uma interrogaçãoque inquieta a Sociologia desde os clássicos:somos mais felizes com os nossos desejosindividuais liberados ou contidos? SegundoLipovetsky, a hipermodernidade representa umafase avançada da modernidade, mas que nãopoderá sustentar-se indefinidamente. Isso porqueas tensões que ela engendra não conseguemproduzir a felicidade almejada pelas práticas deconsumo, tampouco solidariedade necessáriapara uma coexistência social saudável. Ao invésdisso, a hipermodernidade pode produzir umatensão quase insuportável, o que não condizcom qualquer projeto humanista.

Todavia, cabe ressaltar que o conceito dehipermodernidade não comunga as concepçõesdo niilismo moderno, pois,

(...) quanto mais se impõe a mercan-tilização da vida, mais celebramos os

direitos do homem. Ao mesmo tempo,o voluntariado, o amor e a amizadesão valores que se perpetuam e até sereforçam. Ainda que se generalizemas trocas pagas. nossa humanidadeafetiua, sentimental, empâtica, não estáameaçada (p. 122).

Sempre que surge um novo conceito nasciências sociais, ele geralmente desperta adesconfiança da possibilidade de um tema antigoestar sendo ressuscitado sob a roupagem de umnovo termo. Em decorrência disto, alguns

MaTA, LEONARDO DE ARAÚJO E 137os TEMPOS HIPERMODERNOS, DE GILLES LlPOVETSKY. p.135 A 138.

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intelectuais não aceitam o termo globalízação,argumentando tratar-se apenas da descrição deuma fase avançada do imperialismo que, de novo,não tem nada". O mesmo julgamento poderia seraplicado ao conceito de hipermodernidade e creioque tais controvérsias logo surgirão. Entretanto,esse componente não subtrai o valor heurísticodo texto de Lípovetsky.

A leitura de Os tempos bipermodernosproporciona uma reflexão apurada da criseexistencial contemporânea e de como estaameaça, cada vez mais, a saúde psicológica demilhares de indivíduos, pois se nos livramosdas amarras das tradições e nos tornamos"emancipados", cabe agora refletir como aexacerbação dos nossos desejos por felicidadeprivada pode, também, provocar o seu avesso.

Notas

1 FREUD, Sigmunel (997). o mal-estar na civiliza-ção. Rio eleJaneiro: Imago.

2 BAUMA , Zigmunt (998). O mal-estar na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

.~LIPOVETSKY, Gilles (989). A era do vazio: ensai-os sobre o tndiuidu altsmo contemporâneo. Lis-boa: Relógio D'á gua, p. 9 .

.j DURKHEIM, Émile 099')). Da divisão do trabalhosocial. São Paulo: Martins Fontes.

'; Cf. HELD, David e McGREW, Anrhony (2001). Prosecontras da globalizaçâo. Rio eleJaneiro: Jorge Zahar.

138 REVISTA DE CIÊNCIAS SOCIAIS V. 35 N. 2 2004