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revista

communicare

Volume 12 – Edição 22º Semestre de 2012ISSN 1676-3475www.facasper.com.br/cip

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Communicare: revista de pesquisa / Centro Interdisciplinar de Pesquisa, Faculdade Cásper Líbero –v. 12, nº 2 (2012). – São Paulo: Faculdade Cásper Líbero, 2012.

SemestralISSN 1676-3475

1. Comunicação social periódicos I. Centro Interdisciplinar de Pesquisa da Faculdade Cásper Líbero.

CDD 302.2

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revista communicareFaculdade Cásper LíberoFundação Cásper Líbero

Presidente da Fundação Cásper Líbero: Paulo Camarda

Superintendente Geral: Sérgio Felipe dos Santos

Diretora da Faculdade: Tereza Cristina Vitali

Vice-Diretor: Welington Andrade

Centro Interdisciplinar de PesquisaCoordenador Geral do CIP: Maria Goreti Juvencio Sobrinho

Monitoria do CIP: Beatriz Pires, José Mauricio Ribeiro e Tahnee Walz

Revista CommunicareFaculdade Cásper Líbero

Editora: Maria Goreti Juvencio Sobrinho

Conselho Consultivo: Adriano Duarte Rodrigues (Universidade Nova de Lisboa), Alessandra Meleiro (UFF e CEBRAP), Alfredo Dias D’Almeida (FAPSP), Ana

Maria Camargo Figueiredo (PUC-SP), Beatriz Dornelles (PUC-RS), Claudia Braga (UFSJ/UNICAMP), Claudio Novaes Pinto Coelho (FCL), Cristiano Ferraz (UFPE),

Dimas Antonio Künsch (FCL), Eneus Trindade (USP), Ernani Ferraz (PUC-Rio), Gilberto Maringoni (UNIFESP), Ivan Cotrim (CUFSA), Ivone Lourdes de Oliveira

(PUC-MG), Joana Puntel (Sepac), João Alegria (PUC-Rio), Henrique Carneiro (USP), Liana Gottlieb (FCL), Lucilene Cury (USP), Luiz Carlos Assis Iasbeck (UPIS-DF

e UCB-DF), Magda Rodrigues da Cunha (PUC-RS), Manuel Dutra (UFPA), Marcus Bastos (PUC- SP), Maria Aparecida Baccega (USP e ESPM), Maria Helena Weber

(UFGRS), Mauro de Souza Ventura (UNESP), Mônica Mata Machado de Castro (UFMG), Monica Rebecca Nunes (FAAP), Ninho Moraes (FCL) Roseli Fígaro (USP),

Sueli Galego de Carvalho (MACK) Teresinha Maria de Carvalho Cruz Pires (PUC-MG), Umberto de Andrade (UNIFESP), Walter Lima (FCL) e Wilson da Costa

Bueno (UMESP).

Pesquisadores do CIP que colaboraram para esta edição: Magaly Prado e Mauro Araújo de Souza

Revisão: Thaís Montenegro Chinellato

Projeto gráfico: Danilo Braga

Arte e editoração: Núcleo Editorial de Revistas da Faculdade Cásper Líbero

Tiragem: 1.000 exemplares.

Redação - Faculdade Cásper Líbero

Av. Paulista, 900 – 6º Andar – São Paulo – SP – CEP: 01310-940

Telefone: (11) 3170-5878

Email: [email protected] / [email protected]

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Pesquisadores do Centro Interdisciplinar de Pesquisa (CIP) e projetos em desenvolvimento durante 2013

Pesquisadores Docentes

Irineu Guerrini Jr.Sangue no ar: um estudo da série “O crime não com-pensa”, transmitida pela Rádio Record de São Paulo

Liráucio Girardi Jr.A “nacionalização” do controle sobre a internet e a ação política em rede (ACTA, PIPA, Hadopi, Doring, Sinde...)

Magaly Parreira do PradoDemocracia digital – o ciberativismo via mídia tor-pedista a pautar o noticiário do Século XXI

Mauro Araújo de SousaAuroras que ainda não brilharam. Nietzsche: comu-nicação e autoeducação ou o além-do-homem desde a comunicação

Ninho MoraesMemória do telejornalismo: o protagonismo da ABRIL VíDEO na TV Gazeta - 1983-1985

Sandra Lúcia GoulartAs drogas ilícitas no Grupo Folha: a cobertura sobre o crack e a maconha

Sônia Breitenwiesser Alves dos Santos CastinoImagem da literatura brasileira contemporânea na imprensa alemã

Tatiana Pacheco BenitesVitrina: o sabor do olhar e desejo de tocar

Tônio Gomes TavaresA comunicação não verbal no filme publicitário: a gestualidade do consumo

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Pesquisadores discentes de iniciação científica

Amanda Helena GreccoCrítica ao apocalíptico contemporâneo: a alie-nação e a restrição da culturaOrientador: Cláudio Novaes Pinto Coelho

Beatriz Helena CanoO surgimento dos jornais feministas “Brasil Mulher” e “Nós Mulheres” e sua inserção nos grupos de mulheres das periferiasOrientador: Francisco Nunes

Camila Batista de AraújoO politicamente correto na comédia stand up brasileira na segunda década do século XXI – Como os profissionais da comédia stand up devem lidar com seu público e com os choques que podem ocorrer na mensagem emitidaOrientador: Francisco Nunes

Elionai Paes GonçalvesHistória em quadrinhos Disney: qual imagem do jornalismo é passada ao público infantilOrientadora: Dulcília Buittone

Érico de Carvalho AbdallaShadows: o cinema estadunidense às sombras das colinas de HollywoodOrientador: Ninho Moraes

Gabriela Bariani Colicigno“Doctor Who” na TV Cultura: um estudo sobre a mudança no perfil dos fãs da série britânica depois do início de sua exibição na TV aberta brasileiraOrientador: Irineu Guerrini Jr.

Letícia Prudência Copiano Estudo de vídeos virais de posicionamento de marcas na redeOrientador: Walter Freoa

Luisa Nishi CoelhoIntervenções artísticas urbanasOrientadora: Daniela Osvald

Murilo Spolador SilvaFé midiatizada: da água benta no rádio para o megashow televisivo. Crença ou circo? Um es-tudo sobre o conteúdo produzido e comerciali-zado pela Igreja Mundial do Poder de Deus na televisão aberta brasileiraOrientador: Luís Mauro Sá Martino

Nathália Batista Rodrigues de AguiarA rede é a mensagem – a teoria mcluhaniana aplicada às redes sociaisOrientador: José Eugênio Menezes

Nathália Luiza de AlmeidaA Assessoria de Imprensa e o campo acadêmico: como a Faculdade Cásper Líbero tem preparado seus alunos para a demanda desse mercadoOrientadora: Carla Almeida

Priscila de Castro KesselringAprendizagem coletiva: potencialidades e al-cances das redes educativasOrientador: Liráucio Girardi Jr.

Rafael Braghetto BezerraPedro Almodóvar e a pós-modernidade: análise do cinema de Almodóvar sob a perspectiva da arte pós-modernaOrientador: Tônio Tavares

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SumárioApresentação: EditorialMaria Goreti Juvencio Sobrinho

Marx e a épicaAna Cotrim

09

Entre o verbal e o não verbal – apontamentos sobre gêneros e seus cruzamentos

Thaís Montenegro Chinellato

Gastronomídia: os ambientes midiáticos e as linguagens da comida e da cozinha

Helena Jacob

Artigos

13

33

71

113

Relatos de experiências de jornalismo hiperlocalMagaly Prado

87

Jornalismo Digital em Base de Dados (JDBD) como um texto da cultura

Daniela Osvald Ramos

Corpo, consumo e espetáculo: mídia e comportamento de crianças e adolescentes nos textos de Rosely Sayão

Tatiana de Bruyn Ferraz Teixeira127

Comunicação, linguagem e educação desde Nietzsche: para uma educação interdisciplinar/perspectivista

Mauro Araújo de Sousa147

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Apresentação

EditorialMaria Goreti Juvencio SobrinhoDoutora em Ciências Sociais pela PUC/SP, Docente e Coordenadora Geral do Centro de Interdisclipina de Pesquisa da Faculdade Cásper Líbero.

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Volume 12 – Nº 2 – 2º Semestre de 2012 09

Maria Goreti Juvencio Sobrinho

A maioria dos trabalhos da edição 12.2 é uma amostra da produção científica dos docentes da Faculdade Cásper Líbero, que, em 2012, concluíram as suas pesquisas de mestrado e doutorado, e de docentes que desenvolveram os seus projetos nas linhas de pesquisa do Centro Interdisciplinar de Pesquisa – CIP e do programa de mestrado desta Instituição. Todavia, em consonância com o projeto editorial Communicare, de esti-mular o intercâmbio interinstitucional e ampliar o campo de reflexão da Comunicação, abordando temas e problemas das demais áreas do conhecimento, a presente edição é aberta com o artigo, “Marx e a épica”, de Ana Cotrim.

A autora recupera e analisa, com esmero, a célebre passagem na Contribuição à crítica da economia política – Introdução (de 1857) na qual o filósofo alemão abor-da especificamente o gênero artístico, a épica, e, também, excertos literários e trechos esparsos na obra marxiana nos quais estão expressas as suas ideias estéticas. Cotrim explica as razões e a maneira como Marx dá a conhecer, entre outros, tanto as proprie-dades específicas da épica, por meio da análise do chão social que lhe deu origem, isto é, das condições materiais e sociais específicas oferecidas por uma determinada fase do desenvolvimento do homem, quanto o por que da arte antiga, que brotou na infância histórica do gênero humano, ter o poder de exercer sobre nós “um eterno encanto”. Não são poucas as inestimáveis questões elucidadas por essa agradável tematização, desde a importância que tem para Marx: o caráter perene do efeito artístico da épica (atributo este não apenas da arte grega, mas de toda grande arte); o processo de desenvolvimento histórico/social dos sentidos humanos (plataforma para produção e fruição artística), até o arremate que a autora faz (a partir da análise imanente dos excertos marxianos, assim como de passagens memoráveis da Odisseia e da Oresteia) do caráter antropo-mórfico da arte, que, por sua vez, permite compreender o processo de fruição artística como experiência de uma dada realidade. No caso das epopeias, explica a autora, “nossa sensibilidade e intimidade se mobilizam porque, por mais distante e estranho que seja o mundo que elas vivificam, nelas experimentamos a nós mesmos em nossa verdade natural (infância)”.

“Não se pode ser mais enciclopédico do que nós, jornalistas. Meio cientistas, meio literatos, meio artistas, meio políticos. E com essas quatro metades não chegamos a compor um inteiro” (F. Martini). Tal fragmento do segundo artigo desta edição não deixa de sintetizar o espírito dos problemas nele abordados por Thais Montenegro Chinellato. Em “Entre o verbal e o não verbal – apontamentos sobre gêneros e seus cruzamentos”, resultado de pesquisa desenvolvida no âmbito do CIP1, a autora perscruta os caracteres determinantes de alguns gêneros jornalísticos, como a crônica, a reportagem, o artigo, o ensaio e as formas de gêneros não verbais, como o cartum, a charge e o fenômeno dos memes. Serve-se para tanto a autora de uma rica bibliografia, formada tanto

1. A íntegra dessa pesquisa está disponível nos arquivos impressos e virtual do CIP.

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10 Revista Communicare

Apresentação: Editorial

por clássicos da literatura nacional e estrangeira, como Mário de Andrade, Antonio Candido e Bakhtin, como por teóricos da comunicação no Brasil. Acompanha o seu texto a íntegra de diversos gêneros jornalísticos, cuidadosamente selecionados pela autora, que, sem deixar de apontar o superficialismo, subjetivismo, frivolidade e desinformação, que marcam grande parte da produção jornalística, põe em relevo a presença de “hibridismos” e “subgêneros” na linguagem jornalística, o que dificulta o discernimento e uma classificação precisa dos textos. Dificuldade essa que teria a ver com o caráter “fronteiriço” do objeto de pesquisa em tela, isto é, “gêneros jornalísticos envolvem sutilezas de classificação, sobretudo quando se franqueiam ao cruzamento de características”, explica Montenegro.

O caráter fronteiriço do texto jornalístico também é abordado pela pesquisadora Daniela Osvald, em “Jornalismo digital em base de dados (JDBD) como texto da cultu-ra”. A semiótica da cultura é a sua base conceitual para analisar as diversas interfaces do jornalismo na era digital. Trabalhando com conceitos como “semiosfera”, a autora enfatiza a necessidade de se pensar o jornalismo digital de base de dados (JDBD) como texto da cultura. O JDBD expressa uma pletora de novas técnicas e instrumentos de registro e circulação de informações, porém, o que é mesmo sublinhado pela autora é a dificuldade de definir e delimitar o texto jornalístico, que está, a rigor, explica Osvald, na “fronteira com outros textos, no sentido semiótico”, zona de “liminaridade”, “trânsito”, “fluidez”; todavia, destaca Osvald, a ‘‘condição digital’ do texto jornalístico na atualidade é uma possibilidade de delimitação estrutural”. É aí que desponta, sugere a pesquisado-ra, um manancial de diferentes “narrativas” e também mais uma razão para se repensar os postulados tradicionais do jornalismo.

Também tratando da nova pletora de recursos tecnológicos, a exemplo dos novos aplicativos disponíveis em aparelhos de celular, smartphones e internet, assim como das possibilidades de exploração jornalística da convergência e interação entre as diferentes mídias, vem a seguir o artigo “Relatos de experiências de jornalismo hiperlocal”, de Magaly Prado, que é obstinadamente infensa aos limites do radiojornalismo tradicional. A pesquisadora docente traz para o primeiro plano de seu texto um conjunto de experiências levadas a cabo por alunos da Faculdade Cásper Líbero e da USP, entre outras, que demonstraram, na prática, as diversas possibilidades de inovação do radiojornalismo. Os resultados de sua tese de doutorado, ora apresentados, são fundamentalmente propositivos para a construção de um novo formato radiofônico, “mais apropriado com os tempos cibernéticos”, argumenta Prado.

Do campo do chamado jornalismo especializado ou segmentado, vem a seguir o artigo “Gastronomídia: os ambientes midiáticos e as linguagens da comida e da cozinha”, resultado da tese de doutorado da pesquisadora Helena Jacob. Uma das referências teóricas desse trabalho também reside na semiótica da cultura, de origem russa (Iúri Lótman), que oferece, segundo a autora, o suporte conceitual para entender a evolução da gastronomídia, que passa por outras linguagens da cultura, como a comunicação do

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Volume 12 – Nº 2 – 2º Semestre de 2012 11

Maria Goreti Juvencio Sobrinho

alimento, a comunicação da culinária e da gastronomia, e “se rearranja simbolicamente em mídia própria, ou seja, que se comunica e se espetaculariza”. Ainda segundo Jacob, a espetacularização da comida é atestada por “uma explosão midiática da comida e, principalmente, das imagens da comida”, o que não significa, ressalva, que tenha crescido “a importância da alimentação”. Poderíamos acrescentar, sem pretender tirar o apetite alheio, que essa explosão midiática da comida (como de resto se assiste no mundo reluzente das mercadorias) também não foi acompanhada pelo crescimento da importância daqueles que não a possuem.

O artigo “Corpo, consumo e espetáculo: mídia e comportamento de crianças e adolescentes nos textos de Rosely Sayão” é assinado pela docente Tatiana Ferraz, que desenvolveu na linha de pesquisa “Produtos midiáticos: Jornalismo e Entretenimento”, do programa de mestrado em comunicação da Faculdade Cásper Líbero, o seu projeto de mestrado. A autora teve como mote os artigos da psicóloga Sayão, publicados no jor-nal Folha de S.Paulo, sobre educação e comportamento. Discorrendo sobre problemas ligados a consumismo, à relação pais e filhos, ao entretenimento e à influência da mídia e das redes sociais na educação e comportamento dos jovens, Ferraz procura articular algumas aquisições dos teóricos da comunicação (como Canclini, Naomi Kleim e Guy Debord) com os temas semanalmente apresentados pela terapeuta Sayão, e, também, chamar especial atenção para a responsabilidade inalienável dos pais pela educação de seus filhos.

A questão da relação entre comunicação e educação também está presente no artigo que fecha a presente edição, “Comunicação, linguagem e educação desde Niet-zsche: para uma educação interdisciplinar/perspectivista”, de Mauro Araújo de Souza, que considera que o “perpectivismo” e o “procedimento genealógico” da filosofia niet-zscheana podem auxiliar numa “reflexão entre comunicação, linguagem e educação”. O intuito do autor é “mostrar no perspectivismo de Nietzsche onde se localizam os pontos para uma critica eficaz aos valores morais estabelecidos e a efetivação de uma educação para a vida”.

Com esta edição especial a Communicare completa o ciclo iniciado com a publicação do biênio 2010-2011 de pesquisas do Centro Interdisciplinar de Pesquisa – CIP, que reafirma o seu compromisso em preservar os espaços e os instrumentos necessários para a constante qualificação dos docentes, meio incontornável, como temos reiterado, para a promoção da excelência acadêmica nos cursos de Jornalismo, Publicidade e Propaganda, Relações Públicas e Rádio e TV desta Instituição.

Agradecemos a todos que colaboraram com a presente edição e aproveitamos para convidar o leitor a participar da próxima, que terá um dossiê sobre as manifesta-ções sociais de junho de 2013 e os meios de comunicação no Brasil.

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Marx e a épica

Ana CotrimUniversidade de São Paulo. Mestre em filosofia.

Este artigo compreende uma leitura da célebre passagem em que Marx aborda a arte grega, em particular a épica, na Contribuição à Crítica da Economia Política – Introdução (1857). Procura salientar a relação entre a historicidade da épica grega e a perenidade de seu efeito artístico, bem como o caráter antropomórfico da arte como traço essencial para a mobilização da sensibilidade. Palavras-chave: Marx, arte, poesia épica.

Marx y la épica Este artículo compreende la lectura

del famoso pasaje en el que Marx se acerca al arte griego,

sobretodo la épica, en Contribución a la Crítica de la

Economía Política – Introducción (1857). Se pretende dar a

conocer la relación entre la historicidad de la épica griega

y la longevidad de su efecto artístico, así como el carácter

antropomórfico del arte como un elemento esencial para la

movilización de la sensibilidad.

Palabras clave: Marx, el arte, la poesía épica.

Marx and the epic This article comprises a reading

of the famous passage where Marx approaches Greek art,

particularly the epic, in Contribution to the Critique of

Political Economy – Introduction (1857). It seeks to highlight

the relation of Greek epic historicity and longevity of its

artistic effect, as well as the anthropomorphic character of

art as an essential feature for the affection of sensitivity.

Keywords: Marx, art, epic poetry.

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14 Revista Communicare

Marx e a épica

Sabemos que Marx não dedicou à arte nenhum texto inteiro e acabado. Sabemos tam-bém que, entretanto, os temas artísticos e literários perpassam a sua obra. Encontramos, esparsas ao longo de seus escritos, passagens sobre os mais diversos temas artísticos, bem como excertos literários. No mais das vezes, essas passagens e excertos são volta-dos não a esclarecer pontos estéticos, e sim a particularizar, definir os conteúdos histó-rico-sociais específicos dos textos, ou seja, os temas que aparecem em primeiro plano.

Sobretudo os excertos literários aparecem assim, destinados a caracterizar aquilo que constitui o tema principal que Marx toma como objeto – vale ressaltar que não se trata de ilustrar leis gerais com casos pinçados da literatura, mas de concretizar. A presença de Shakespeare nos textos de Marx pode atestar isso. Apenas para dar um exemplo, podemos mencionar a fala de Tímon de Atenas citada nos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844 (Marx, 2004: 158) e referida nos Grundrisse (idem, 2011: 111) e em nota no Capital – Livro I (idem, 2006:159), sempre em passagens referentes ao dinheiro e destinada, justamente, a concretizar a inversão dos atributos e relações humanas operada pela generalização do nexo do dinheiro1. (Muir, 1977)

Em outras passagens, temas diretamente estéticos são aflorados para elucidar e particularizar processos históricos. É o caso das referências aos gêneros poéticos para distinguir os diferentes processos de constituição da sociedade burguesa na França e na Alemanha, na Introdução de 1843 (Marx, 2006: 148-149). A queda do antigo regime na França foi trágica, enquanto na Alemanha é cômica; os conflitos de classes na Fran-ça são dramáticos, enquanto na Alemanha são épicos.

Há momentos em que o texto de Marx parece configurar-se como crítica literá-ria. O caso mais desenvolvido é o exame do romance de Eugène Sue, Os mistérios de Paris, em A sagrada família (idem, 2003: 185-233). A fim de objetar o pensamento de Szeliga, que se vale do romance, a análise literária toma o primeiro plano do texto de Marx, cujo título refere o protagonista: “Caminho terreno e transfiguração da ‘Crítica crítica’ ou ‘a Crítica crítica’ conforme Rodolfo, príncipe de Geroldstein”. O exame do romance é extenso para os padrões que normalmente se encontram na obra de Marx, e inclui a análise individual de vários personagens.

Além desse, há ainda o caso do debate epistolar sobre Franz von Sickingen, de F. Lassalle2 (1859), que também é um momento privilegiado de análise marxiana de obra artística. O debate aconteceu entre Marx, Engels e Lassalle, e suscita como ques-tão estética central a oposição entre schillerizar e shakespearizar3. Nesses clássicos, Marx e Engels encontram dois modos diversos de composição trágica, distintos cen-tralmente pela maneira de figuração do conflito trágico em sua dimensão universal.

1. Muir discute o modo como a passagem shakespeariana colabora para a definição de Marx do “nexo do dinheiro”, bem como o modo como a exposição marxiana lança luz sobre o significado de Tímon de Atenas. 2. Há uma tradução para o inglês (Franz von Sickingen – A Tragedy in Five Acts. Tradução de Daniel de Leon. Honolulu: University Press of the Pacific, 2001) e para o italiano (Franz von Sickingen – Uma tragedia storica. Giovanni Scimonello. Tradução de Padova: Editrice Antenore, 1983).

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Volume 12 – Nº 2 – 2º Semestre de 2012 15

Em Shakespeare, a tendência ao concreto, em Schiller a tendência à abstração; em Schiller, a enunciação discursiva, em Shakespeare, a ação presente. Ao contrário de constituírem apenas formas diversas de expressão de um mesmo conteúdo, os meios poéticos moldam a matéria artística e lhe conferem significado, definindo o efeito da obra. Na crítica a Lassalle, Marx e Engels atrelam a escolha da escrita à Schiller às suas insuficientes considerações das lutas de classes, bem como da revolução, provindas da abstração própria à perspectiva burguesa, e ao conseguinte falseamento da colisão trágica que pretende retratar.

De maneiras diversas, a imbricação dos conteúdos de primeiro plano com as suas caracterizações artísticas e estéticas é tal, que tanto se pode tomar a referência artística para elucidar o objeto histórico-social de que se trata – na maior parte das vezes parece ser essa a intenção de Marx – quanto, ao inverso, tomar a história para elucidar as re-ferências estéticas. Observa-se que, em Marx, um mesmo objeto evidencia dimensões históricas, filosóficas, econômicas, artísticas etc., de modo que a divisão tradicional – moderna – das ciências é alheia à construção de seus escritos. Cada um dos temas levantados acima, bem como o exame da imbricação ge-ral dos temas da arte com os demais momentos da sua reflexão, e ainda muitos outros, sem dúvida merecem ser estudados por si sós. Neste artigo, pretende-se examinar a célebre passagem da Contribuição para a crítica da economia política – Introdução (1857) (Marx, 2011: 37-64). Talvez seja essa passagem a mais apropriada para intro-duzir as ideias estéticas de Marx, porque traz a arte para o primeiro plano, apresenta ideias nítidas, embora sintéticas, sobre a objetividade e historicidade do gênero artísti-co, a épica, a mitologia, bem como aponta para o significado universal da arte. Trata-se de um texto inacabado – interrompido, para nosso desespero, antes de uma anunciada reflexão sobre Shakespeare! Marx observa no Prefácio de 1859 para a Contribuição à crítica da economia política que seriam necessários desenvolvimentos para abordar os temas da Introdução pensada para esse livro, e por isso a suprimiu:

Suprimo uma introdução geral que esbocei em tempos porque, depois de refletir bem, me pareceu que antecipar resultados que estão para ser demonstrados poderia ser desconcertante e o leitor que se dispuser a me seguir terá que se decidir a se elevar do particular ao geral. ( 2008, 45-46)

Por isso, ela aparece nas edições dos Grundrisse, que reúnem os manuscritos do perío-

Ana Cotrim

3. A correspondência completa, com as cartas de Lassalle, Marx e Engels, bem como o Prefácio da peça escrito pelo autor, encontram-se em HINDERER, W. (Org.). Sickingen-Debatte. Darmstadt: Luchterhand, 1974; esta coletânea inclui escritos críticos sobre o debate. Em português, as cartas de Marx e Engels são publicadas em MARX, K.; ENGELS, F. Cultura, arte e literatura – textos escolhidos. Organização e Tradução José Paulo Netto e Miguel Makoto Cavalcanti Yoshida. São Paulo: Expressão Popular, 2010. De Lassalle, encontram-se traduzidas uma passagem da Carta a Marx e Engels de 27 de maio de 1859 e a Nota apensa à carta de Marx, de 6 de março de 1859, em MARX, M e ENGELS, F. Sobre literatura e arte. Tradução de Albano Lima. Lisboa: Editorial Estampa, 1974. Coleção Teoria nº 7. Anexo III, pp. 261-276.

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16 Revista Communicare

Marx e a épica

do. Esta leitura da passagem marxiana busca indicar a ligação da historicidade da obra com a perenidade do seu efeito e de sua validade artística; e o caráter antropomórfico da obra, que define seu efeito sensível.

O trecho dessa Introdução em que a arte é abordada segue uma listagem de pon-tos a serem estudados, pertencentes ao contexto das relações entre “meios de produ-ção e relações de produção; relações de produção e relações de circulação”, em que despontam as conexões entre o desenvolvimento das forças produtivas e formas de consciência, de Estado, jurídicas etc. A ideia é que as várias formas da existência e das relações humanas – as relações políticas, estatais, jurídicas, familiares, a cultura, a arte etc. – embora se enraízem, em cada período histórico e em cada localidade, no modo como ali se produzem e reproduzem a vida e os meios de vida, não necessariamente acompanham num sentido progressivo o avanço produtivo, ou lhe são paralelas. No que nos interessa, quer dizer que o desenvolvimento material, o progresso técnico, não traz consigo necessariamente um progresso cultural e artístico; trata-se daquilo que Marx denomina a “relação desigual do desenvolvimento da produção material com o desenvolvimento artístico”. (2011: 62)

Diferentemente da ciência e da técnica, que partem de um dado patamar de de-senvolvimento e, valendo-se dele, em condições mais ou menos propícias seguem um caminho mais ou menos progressivo, o progresso social pode representar um obstácu-lo para certas formas de arte. Para essas, o desenvolvimento da sociabilidade como um todo se constitui como impossibilidade; pode ser que tal avanço material e social abra a possibilidade de novas formas artísticas, mas estas nem sempre são mais elevadas que as anteriores, e podem ser, até mesmo, bem menos significativas. Marx escreve:

Na arte, é sabido que determinadas épocas de florescimento não guardam nenhuma relação com o desenvolvimento geral da sociedade, nem, portanto, com o da base material, que é, por assim dizer, a ossatura de sua organização. Por exemplo, os gregos comparados com os modernos, e mesmo Shakespeare. (2011: 62)

Não significa que as formas artísticas surjam autônomas, à parte da sociedade em que emergem. As formas de arte estão ligadas à sua base social ou sua “ossatura” sem que o elevado florescimento da arte ou de uma forma de arte deva decorrer dire-tamente de um alto desenvolvimento material e social; tampouco, ao inverso, um alto desenvolvimento material e social deve originar formas de arte mais sublimes. Uma forma artística sublime pode ter como base social necessária certa organização que se ergue sobre um baixo grau de desenvolvimento material. A afirmação final mostra que Marx considera a produção artística dos gregos superior à dos modernos, assim como os escritores posteriores a Shakespeare não lhe são igualáveis. Indica assim algumas de suas preferências bem conhecidas.4 Mas o que se destaca na menção aos gregos e a

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Shakespeare é que, vivendo num período histórico de menor desenvolvimento produ-tivo e, por conseguinte, social, têm criação artística mais elevada do que a de povos ou artistas posteriores, vivendo em sociedades mais desenvolvidas.

Na Introdução de 57, Marx toma a arte grega, em particular a epopeia: Para certas formas de arte, a epopeia, por exemplo, é até mesmo reconhecido que não podem ser produzidas em sua forma clássica, que fez época, tão logo entra em cena a produção artística enquanto tal; que, portanto, no domínio da própria arte, certas formas significativas da arte só são possíveis em um estágio pouco desenvolvido do desenvolvimento artístico. Se esse é o caso na relação dos diferentes gêneros artísticos no domínio da arte, não surpreende que seja também o caso na relação do domínio da arte como um todo com o desenvolvimento geral da sociedade. ( 2011: 62-63)

Marx parte da relação entre as formas e gêneros artísticos no interior do evolver da própria arte, indicando que certas formas, como a epopeia, apenas podem exis-tir num momento inicial do desenvolvimento artístico. Manifesta, assim, a ideia do desenvolvimento desigual no interior da história da arte, na concepção de que uma forma elevada da arte, talvez inigualável, é fruto de um estágio rudimentar do evolver das formas artísticas. Em seguida, estende essa ideia para a relação entre o domínio da arte como um todo e o “desenvolvimento geral da sociedade”. Isso significa que formas artísticas elevadas surgem em patamares pouco desenvolvidos da produção social da vida. O que, por sua vez, deixa entrever que o desenvolvimento das formas artísticas segue certo desenvolvimento material. Contudo, enquanto o desenvolvimento mate-rial implica um progresso que se expressa no avanço das forças produtivas, o desenvol-vimento artístico não significa necessariamente o mesmo progresso.

A épica é a primeira forma propriamente poética grega. Emerge como tal na me-dida em que se separa das funções diretamente religiosas dos cantos e hinos aos deu-ses, que são seu germe5 (Lukács, 2013). Na Poética, Aristóteles faz um histórico das formas poéticas mostrando que os cantos e hinos de louvor são o germe da epopeia e esta, o germe da tragédia – assim como os vitupérios são o embrião das sátiras ou

4. Quanto a isso, vale citar a passagem de Franz Mehring em Karl Marx: “Tal como o seu trabalho científico espelhava toda uma época, também os seus favoritos literários eram aqueles cujas criações reproduziam a respectiva época; de Ésquilo a Homero a Dante, Shakespeare, Cervantes e Goethe. Segundo Lafargue, Marx lia Ésquilo no texto original grego pelo menos uma vez por ano. Foi sempre um fiel amante dos gregos antigos, e varreria do templo as almas desprezíveis que impedissem os operários de apreciar a cultura do mundo clássico.” (MEHRING, F. Karl Marx (passagens selecionadas), in MARX, K. e ENGELS, F. Sobre literatura e arte. Tradução de Eduardo Saló. Lisboa: Editorial “A Comuna”, 1974, pp. 136-37).5. Lukács discute essa questão em A peculiaridade do estético. Para uma apresentação do modo como Lukács concebe o surgimento da arte a partir da sua separação das funções imediatas da prática cotidiana ou dos ritos religiosos, ver o capítulo 8, dedicado à Estética, no livro de FREDERICO, C. A arte no mundo dos homens – o itinerário de Lukács. São Paulo: Expressão Popular, 2013.

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narrativas cômicas (que não sobreviveram) e estas, por sua vez, o embrião da comédia. Em A origem da família, da propriedade privada e do Estado6, Engels examina a forma social em que se criou a epopeia. Ao lado da arquitetura como arte, a epopeia emerge no período chamado, por isso mesmo, homérico, em que a forma de organização social é ainda tribal (ou gentílica), embora se encontre nos umbrais da civilização. É uma for-ma criada como representação artística de um povo que exerce pequeno domínio rela-tivo sobre a natureza e que, por conseguinte, encontra nos laços naturais, sanguíneos, o seu próprio vínculo como povo. Trata-se de uma forma de sociabilidade em que o povo, tal como outros assim constituídos, tem uma consciência mitológica de si e do mundo. Evidentemente, não se trata de qualquer organização tribal e qualquer povo, já que, embora todos os povos assim ordenados criem uma mitologia, e uma forma de narrá-la, apenas a mitologia grega fornece o material para as epopeias homéricas, como Marx destaca.

Marx oferece a seguinte definição da mitologia grega: “a natureza e as próprias formas sociais já elaboradas pela imaginação popular de maneira inconscientemente artística” (2011:63). A mitologia é, assim, criada espontaneamente pelo povo, como modo específico de apreender seu mundo natural e social. Nela, as forças da nature-za e relações sociais são plasmadas na imaginação popular, de modo que se trata de uma apreensão espontaneamente imaginativa do mundo. Vale dizer que esse domínio imaginativo plasma as forças naturais e sociais como personas, figuras individuais que têm os traços próprios do humano: deuses e heróis, que agem, sentem, se relacionam, vivem, e suas vidas compõem histórias. Nos termos de Lukács, trata-se de formas an-tropomorfizadoras de apreensão daquelas forças. Nesse sentido, a mitologia é incons-cientemente artística.

O material mitológico da Ilíada e da Odisseia é de autoria coletiva desse povo, e com isso sua forma é espontânea e natural. Isso não contraria o fato de que a orde-nação, versificação e concentração da matéria nos poemas mostrem o trabalho de um autor, e assim que sejam obra do artif ício propriamente artístico. Contudo, as epopeias têm um traço de naturalidade e espontaneidade que as distingue das formas artísticas dos períodos posteriores. O próprio desenvolvimento das formas artísticas ultrapassa essa naturalidade, mas este se funda no progresso material e social.

Desaparecem os pressupostos para a criação de obras na forma propriamente épica tão logo os laços naturais deixam de ser os vínculos determinantes da organi-zação social. A unidade dessa organização deixa de ser gentílica para se tornar local e política, com o desenvolvimento da divisão do trabalho e da propriedade privada, pelo avanço da escravidão, e com a consequente emergência do Estado como vínculo da coletividade. Não se trata de discutir aqui a permanência dos laços comunitários

6. Cf. em especial os capítulos “A gens grega” e “A formação do estado ateniense”.

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efetivos e da mitologia ao lado de outros modos da consciência (filosofia, ciência, e as outras formas artísticas) sobre o mundo. Importa que o progresso da produção e da ordenação social faz com que essa forma específica e grandiosa da arte perca as suas condições de florescimento. Contudo, esse avanço material e social dispõe novas condições para que se criem novas formas artísticas, próprias da civilização: na poesia, a lírica, a dramática (trágica e cômica), nas plásticas, a escultura e a pintura, o teatro como representação etc. Essas formas artísticas que surgem com a cidade aniquilam a forma inerente à ordem tribal.

O mesmo Aristóteles parece considerar que a tragédia e a comédia são formas artísticas superiores à narrativa cômica e à epopeia, quando diz:

Vindas à luz a tragédia e a comédia, os poetas, conforme a própria índole os atraía para este ou aquele gênero de poesia, uns, em vez de jambos, escreveram comédias, outros, em lugar de epopeias, compuseram tragédias, por serem estas últimas formas mais estimáveis do que as primeiras. (1973: 446)

Aristóteles reitera que, embora a tragédia tome o material que chamamos mito-lógico, isso não é necessário. Explica as razões pelas quais os poetas trágicos mantêm os personagens “existentes” (mitológicos)7, mas ressalva que isso não é verdadeiro para toda tragédia (1451b):

Mas na tragédia mantêm-se os nomes já existentes. A razão é a seguinte: o que é possível é plausível; ora, enquanto as coisas não acontecem, não estamos dispostos a crer que elas sejam possíveis, mas é claro que são possíveis aquelas que aconteceram, pois não teriam acontecido se não fossem possíveis. Todavia, sucede também que em algumas tragédias são conhecidos os nomes de uma ou duas personagens, sendo os outros inventados; em outras tragédias nenhum nome é conhecido, como no Anteu de Aragão, em que são fictícios tanto os nomes como os fatos, o que não impede que igualmente agrade. (1973: 446)

Compreendida como conjunto de caracteres e ações “existentes”, a predominân-cia da apropriação do material mitológico pela tragédia se explica por serem já conhe-cidos e por isso mais fáceis de ser considerados plausíveis pelo público: o que “acon-teceu” é possível. Entretanto, em seguida, argumenta que não é necessário o uso da mitologia ou sua reprodução exata, defendendo a criação da fábula, do mito, da trama ou história, como of ício central do poeta (1451b):

Não é necessário seguir à risca os mitos tradicionais donde são extraídas as nossas tragédias; pois seria ridícula fidelidade tal, quando é certo que ainda as coisas conhecidas

7. Em Aristóteles, o material mitológico de que a tragédia se apropria parece adquirir um estatuto de fato: o filósofo se refere ao uso do material mitológico pelos poetas trágicos quando diz que a tragédia “mantém os nomes já existentes”, ou que as tragédias que não fazem uso da mitologia mostram “nomes e fatos fictícios”, ou ainda que os personagens mitológicos são “reais”.

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são conhecidas de poucos, e contudo agradam elas a todos igualmente. Daqui claramente se segue que o poeta deve ser mais fabulador que versificador; porque ele é poeta pela imitação e porque imita ações. (1973: 446)

Vemos que o poeta trágico, para Aristóteles, é antes de tudo um fabulador.8

Assim, mesmo quando toma o material mitológico, não deixa, por isso, de ser o criador da fábula, da ação trágica. Essa formulação condiz com a ideia de que o trabalho do artista molda e transforma significativamente o seu material, para tratar dos temas próprios da cidade. Um caso privilegiado para evidenciar esse trabalho é o modo como a morte de Agamenon aparece na Odisseia e na Oresteia.

Na épica, o episódio é centrado em Egisto, e se trata de um caso de usurpação do reino, embora inclua a traição de Cliptemnestra, amante de Egisto (Cantos III e XI). Contando a Telêmaco o destino de diversos heróis gregos após a vitória sobre Troia, Néstor narra assim a morte de Agamenon (Canto III, na bela tradução de Trajano Vieira):

Soubeste em Ítaca, que assim que chega o atrida, Egisto o enreda em catastrófica desdita? (Homero, 2011: 75; 191-192)

E adiante: Enquanto nós nos arriscávamos em Ílion, Tranquilo nos recessos de Argos pluriequina, ele encantava, bom de lábia, Cliptemnestra. (idem, 2011: 79; 262-264)

Ainda à frente, refere a vingança e Orestes: Enquanto Menelau coleta ouro e víveres navios entre falantes de linguagens múltiplas, Egisto concluiu seu lúgubre projeto: atrida assassinado, o povo lhe obedece, sete anos soberano na Micenas áurea, até chegar, no oitavo, da urbe ateniense o algoz do matador do rei dos reis: Orestes, que deu um fim no dolo sinuoso Egisto. E o vingador ofereceu repasto fúnebre, por sua mãe odiosa e por Egisto, a argivos. (idem, 2011: 81-83; 301-310)

8. Para nossos propósitos, não convém aqui discutir a ideia presente nessa passagem, de que a imitação de ações coincide com a criação de ações – criar a fábula consiste em imitar ações.

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Vemos que Egisto é quem mata Agamenon, motivado por seu plano de tomar Micenas, e seduz Cliptemnestra para colaborar com seu projeto. Também no Canto XI, quando Odisseu conversa com os mortos, Agamenon lhe conta:

mas quem tramou o epílogo do meu destino foi, com minha consorte deletéria, Egisto: serviu-me a ceia em sua casa e, feito um boi no parol, me abateu. (idem, 2011: 341-343; 409-412)

Em conformidade com o sujeito e o motor do crime, a vingança de Orestes visa primei-ramente Egisto usurpador, ainda que se estenda para a mãe, sua cúmplice.

A tragédia centra-se em Cliptemnestra, embora tenha a ajuda do amante Egisto, e trata da vingança pelo sacrif ício da filha Ifigênia. É dela a vingança e é ela quem mata o marido. Assim, toda a trilogia plasma a oposição entre o crime contra o patriarca e o crime contra parentes consanguíneos. A mesma matéria mitológica é trabalhada para trazer uma contradição de valores sociais própria da cidade, qual seja, a “luta entre o direito materno agonizante e o direito paterno” (Engels, 2010: 24), o direito gentílico e o direito político, que não poderia existir como tema artístico na ordem tribal. A vin-gança de Orestes, de que participa a irmã Electra – que não aparece na epopeia – visa, primeiramente, à mãe, assassina do pai. Seu drama consiste, justamente, em ter de voltar-se contra a mãe para cumprir a obrigação para com o pai. A última tragédia, As Eumênides, acaba com a absolvição de Orestes do matricídio. O caráter trágico reside no destino das deusas do matriarcado: as fúrias (Erínias) se tornam as benevolentes (Eumênides) e se submetem à condição de deusas do passado a quem a cidade deve render cultos, mas não mais obedecer: os laços sanguíneos cedem lugar aos laços cita-dinos, políticos, patriarcais.

Assim, o poeta trágico é sobretudo um “fabulador”. As epopeias mostram tam-bém o trabalho de um poeta, mas estão mais próximas da mitologia como criação coletiva, tanto em seu conteúdo como em sua forma, isto é, tanto no que respeita às próprias histórias quanto na forma da narração cantada. Distinguem-se, nesse sentido, das formas criadas na cidade. Significa que, no decorrer do desenvolvimento artístico, as formas de arte mais antigas, cujo material é criado de modo coletivo, espontâneo e natural, são substituídas por formas novas; com isso, extinguem-se as bases da epo-peia. Esse parece ser o sentido da afirmação de Marx segundo a qual a épica não pode ser produzida em sua forma clássica “tão logo entra em cena a produção artística en-quanto tal”, ou seja, tão logo se elaborem as formas artísticas próprias da civilização.

Mas a ideia do desenvolvimento desigual estende-se para o próprio domínio da arte. O progresso material e social pode dispor ou extinguir as bases para certas formas de arte e, mesmo, como no caso do capitalismo avançado, criar um ambiente social hostil à produção artística. Para explicitar o desenvolvimento desigual, Marx destrincha

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a relação da arte grega com seu material e as condições de existência desse material:Consideremos, p. ex., a relação da arte grega e, depois, a de Shakespeare, com a atualidade. [Como dissemos, o texto se interrompe antes de tratar de Shakespeare]. Sabe-se que a mitologia grega não foi apenas o arsenal da arte grega, mas seu solo. (2011: 63)

Marx parte do fato de que o material da arte grega é a mitologia grega. A mito-logia é uma forma de apreender o mundo natural e social própria de um momento histórico de baixo domínio da natureza, quer dizer, baixo desenvolvimento material. O argumento caminha no sentido de evidenciar que o baixo desenvolvimento material não constituiu empecilho ao florescimento da arte grega, mas antes, compôs sua con-dição real, na forma da consciência mitológica. Marx escreve:

A arte grega pressupõe a mitologia grega, i. e., a natureza e as próprias formas sociais já elaboradas pela imaginação popular de maneira inconscientemente artística. Esse é o seu material. Não uma mitologia qualquer, isto é, não qualquer elaboração artística inconsciente da natureza (incluindo aqui tudo o que é objetivo, também a sociedade). A mitologia egípcia jamais poderia ser o solo ou o seio materno da arte grega. Mas de todo modo, uma mitologia. Por conseguinte, de modo algum um desenvolvimento social que exclua toda relação mitológica com a natureza, toda relação mitologizante com ela; que, por isso, exige do artista uma imaginação independente da mitologia. (2011: 63)

A mitologia é o material da arte grega, sem o qual não pode existir. O poeta organiza e trabalha artisticamente a mitologia espontaneamente criada. Marx parece referir-se aqui à arte grega em geral, não apenas à épica. As artes que emergem com a cidade compartilham com a épica o material mitológico, embora moldem esse ma-terial para plasmar conflitos próprios da cidade, constituindo-se, assim, como formas da “produção artística enquanto tal”. Isso significa que a cidade mantém, de maneira distanciada e mediada, até mesmo crítica, e ao lado de outras formas de domínio da natureza, um traço da relação mitológica com a natureza e a sociedade.

Sendo esse o seu pressuposto, a arte grega não poderia existir numa sociedade que prescindisse absolutamente da mitologia, em que o artista teria de moldar inde-pendentemente os materiais extraídos da realidade; não poderia emergir numa socie-dade em que a mitologia não constituísse uma forma do domínio humano sobre o mundo. Da sua maneira caracteristicamente espirituosa, Marx explicita como o pro-gresso social tem de acabar com as condições de apreensão mitológica do mundo e, assim, com as bases para a produção de certas formas de arte, como a epopeia:

A concepção da natureza e das relações sociais, que é a base da imaginação grega e, por isso, da [mitologia] grega, é possível com máquinas de fiar automáticas, ferrovias, locomotivas e telégrafos elétricos? Como fica Vulcano diante de Roberts et Co., Júpiter diante dos para-raios e Hermes diante do Crédit Mobilier? Toda mitologia supera, domina e plasma as

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forças da natureza na imaginação e pela imaginação; desaparece, por conseguinte, com o domínio efetivo daquelas forças. Em que se converte a Fama ao lado da Printing House Square?9 (2011: 63)

Como uma forma de domínio humano das forças naturais e sociais pela imagi-nação, a mitologia tem de desaparecer com a efetiva dominação das forças naturais – material, prática – exemplificada aqui pelas aquisições técnicas da época de Marx. As técnicas tornam impossível apreender essas mesmas forças de maneira imaginativa, antropomorfizada. É preciso que o mundo natural se imponha como desconhecido e incontrolado para que seja dominado e plasmado como mitologia. A produção de máquinas por máquinas supera o forjador divino, assim como os para-raios anulam o ajunta-nuvens, o financiamento de ferrovias aniquila o mensageiro de sandálias aladas, e o Times ultrapassa a Fama.

Outras referências de Marx envolvem o tema e os meios artísticos da Ilíada, bem como o seu papel social:

De outro lado, é possível Aquiles com pólvora e chumbo? Ou mesmo a Ilíada com a imprensa ou, mais ainda, com a máquina de imprimir? Com a alavanca da prensa, não desaparecem necessariamente a canção, as lendas e a musa, não desaparecem, portanto, as condições necessárias da poesia épica? (2011: 63)

Novamente, o maior guerreiro entre os gregos, ainda com a armadura e cavalos divinos, desaparece diante da pólvora e do chumbo. No que tange aos meios e ao lugar social da epopeia, Marx opõe a prensa à função de cantar os mitos revelados pelas musas. Essa função não pode ser dissociada de seu meio e material próprio: o canto (voz, melodia, ritmo) e a mitologia (ações humanas inconscientemente moldadas de forma artística) constituem em conjunto a sua forma específica e compartilham a so-ciabilidade. Uma vez que essa desaparece, com o desenvolvimento produtivo e social, sua forma deve necessariamente perecer. Ao lado de todos os outros que contribuem para extinguir a relação mitológica com o mundo, a prensa é um desenvolvimento que explicita com nitidez o desaparecimento desse lugar social que é intrínseco à epopeia.

Assim, certa imaturidade produtiva e social é pressuposto da epopeia clássica. Outras formas sociais, estágios do desenvolvimento, são tantos outros pressupostos e obstáculos a tantas formas da arte. Para Marx, a ligação das formas de arte com os modos de existência social em que emergem na história não constitui um problema. Sobre as contradições entre baixo desenvolvimento social e grandeza artística, Marx

9. Roberts et Co. foi uma construtora de locomotivas e máquinas para indústrias; Crédit Mobilier foi uma instituição financeira responsável por empréstimos para a construção de estradas de ferro e infra-estrutura; Printing House Square é uma praça em Londres onde se localizou a imprensa real e depois a redação e a prensa do jornal The Times.

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escreve: “Tão logo são especificadas, são explicadas” (2011: 63). A questão para ele não é a determinação histórica da épica, mas sim a longevidade de seu efeito artístico, que transpõe seu berço histórico:

Mas a dificuldade não está em compreender que a arte e o epos gregos estão ligados a certas formas do desenvolvimento social. A dificuldade é que ainda nos proporcionam prazer artístico e, em certo sentido, valem como norma e modelo inalcançável. (2011: 63)

O fato de não poder ser criada na forma clássica não prejudica a permanência do efeito artístico da épica, a validade perene de sua forma, ainda que irrealizável como tal. Nesse momento do texto, o problema passa das condições de criação da arte gre-ga para a verdadeira “dificuldade” estética. Pertencente a um momento particular da história humana, que figura como seu objeto, criada por e para um povo cujo modo de ser não é o nosso, ainda assim a épica nos proporciona prazer artístico. Como forma artística, embora impossível de se reproduzir nas sociedades posteriores, mantém-se como “norma e modelo”, parâmetro, diretriz para a criação artística. A épica – assim como, para Marx, a arte grega em geral e, podemos acrescentar, toda a grande arte – ultrapassa as condições de sua gênese social.

Lukács discute esse problema e cita essa passagem no capítulo final de sua Intro-dução a uma estética marxista, em que se volta ao problema da perenidade do gozo artístico diante de obras de períodos anteriores. Para ele, explicá-la pela afirmação de que a arte figura algo como um “humano universal” é dar “uma falsa resposta a uma pergunta justificada”.

Para a ciência, é legítimo estudar as leis gerais comuns de uma formação econômica (e mesmo de todas as formações); para qualquer obra de arte, ao contrário, o objeto imediato da representação só pode ser, sempre, uma determinada etapa concreta. Esta verdade indubitável foi obscurecida, durante muito tempo, pela teoria idealista do “humano universal” como matéria da arte. (1978: 286)

As leis gerais ou princípios universais são objeto da ciência ou da filosofia. O efeito artístico se estende para além do período histórico e local de sua criação, e nesse sentido pode ser “universal”, mas este caráter não se separa da “etapa concreta” que constitui o seu objeto imediato. Isso significa que a matéria da arte é sempre concreta.

Contudo, tampouco se deve cair na ideia oposta, defendida pelo “marxismo vul-gar”, de que o significado e efeito artísticos se restringem ao escopo de sua gênese:

O marxismo vulgar identificou imediatamente a gênese social da arte com a sua essência, chegando por vezes a conclusões absurdas, como, por exemplo, à afirmação de que na sociedade sem classes as grandes obras de arte criadas nas sociedades classistas cessariam de ser compreendidas e apreciadas. (1978: 286)

Para esses ditos marxistas,10 o fato de a arte ter como objeto um momento de-

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terminado do evolver histórico, uma matéria concreta, e ligar-se indissoluvelmente ao período em que se criou deve restringir seu efeito e validade a tal período, tornando-se insignificante no decorrer da história. Ao contrário, como as passagens de Marx evi-denciam, trata-se não de questionar, mas explicar como a épica (e em geral a arte gre-ga) propicia prazer estético e permanece como referência artística. Lukács escreve que

o próprio Marx colocou a questão de um modo inteiramente diverso daquele dos seus vulgarizadores. Também para ele, naturalmente, a gênese social é um ponto de partida; mas a tarefa real da estética só começa quanto tal gênese está esclarecida. (1978: 287)

Marx parte, portanto, do vínculo necessário da arte com a particularidade da condição histórica em que emerge, e define que seu efeito duradouro não é apenas compatível com a sua particularidade histórica, como, em verdade, reside nela. A res-posta que Marx oferece à sua própria questão, em referência às epopeias homéricas, mostra o sentido profundo e o alcance que a mimese artística tem para ele:

Um homem não pode voltar a ser criança sem tornar-se infantil. Mas não o deleita a ingenuidade da criança, e não tem ele próprio novamente que aspirar a reproduzir a sua verdade em nível superior? Não revive cada época, na natureza infantil, o seu próprio caráter em sua verdade natural? Por que a infância histórica da humanidade, ali onde se revela de modo mais belo, não deveria exercer um eterno encanto como um estágio que não volta jamais? /.../ O encanto de sua arte [da arte grega], para nós, não está em contradição com o estágio social não desenvolvido em que cresceu. Ao contrário, é seu resultado e está indissoluvelmente ligado ao fato de que as condições sociais imaturas sob as quais nasceu, e somente das quais poderia nascer, não podem retornar jamais. (2011: 63-64)

Marx vê nos gregos antigos a infância histórica da humanidade, quer dizer, a infância da humanidade como gênero. Considera que reviver esse estágio infantil do desenvolvimento humano significa reviver o seu próprio caráter natural. Não é possí-vel que a ingenuidade e espontaneidade desse período voltem a presidir a vida num es-tágio maduro da história humana, mas esta humanidade madura pode aspirar a reviver sua infância como gênero e compreendê-la a partir de um desenvolvimento superior, assim como o adulto revive sua própria infância quando diante da criança e aspira compreendê-la a partir de capacidades maduras. A apreciação da arte grega é, para Marx, reviver a infância humana. O encanto que a arte grega exerce em nós é o encanto do adulto diante da criança que não somos mais.

O caráter perene da grande arte não consiste em figurar um traço imutável do ser humano. Antes, consiste justamente na plasmação viva de uma época histórica que compõe o evolver humano como um de seus momentos, pertencendo ao gênero humano como uma fase do seu desenvolvimento. Por isso, diz respeito ao gênero em todas as suas épocas posteriores e aí reside a sua capacidade de proporcionar gozo

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estético. Assim, novamente, o caráter universal da arte não está em contradição com a sua determinação histórica; antes, deriva dessa determinação. Na sua historicidade reside a longevidade de seu efeito artístico e a permanência de sua forma como “norma e modelo inalcançáveis”. Vimos como a ligação com a natureza, própria da vida no pe-ríodo homérico, se reflete na forma épica, em especial pelo seu nexo com a mitologia, o domínio imaginativo espontâneo da natureza. A forma artística é produto e espelho desse modo de ser.

Como prazer artístico, sensível, não se trata de um conhecimento tal como adquirido por documentos históricos, tomando as obras artísticas como “veículos de informação”. Lukács distingue obras que se mantêm importantes em épocas posteriores pelo seu conteúdo histórico, e aquelas que sobrevivem pelo valor artístico. Sobre essas últimas, ele escreve: “É necessário, pelo contrário, recordar sempre o valor evocativo imediato da forma artística” (1978: 288; grifo meu). Significa que a arte grega reproduz com vivacidade esse período da história humana, evocando imediatamente seu modo de ser, sentir, sua consciência de si. A épica é uma figuração autêntica, verdadeira e inigualável da época histórica em que emergiu, compondo, assim, um conhecimento vivo de um momento que não pode mais voltar. Mas, novamente, não se trata de aprender essa realidade como “fatos exteriores”, a partir de um interesse exterior, informativo ou apenas “formal” no estrito sentido técnico.

A ideia do conhecimento artístico, saber evocado sem mediações pela forma ar-tística, que afeta diretamente a sensibilidade, pode ser pressentida no modo como a própria epopeia plasma, artisticamente, a função e recepção ou efeito dos cantos épi-cos. Se observarmos aedos que aparecem na Odisseia, veremos que, para além da sua elevada posição e distinção, seus cantos são figurados como fontes privilegiadas de conhecimento – revelado pelas musas – que se dirigem à sensibilidade e encantam os ouvintes. É marcante o episódio em que Odisseu escuta de um aedo as próprias aven-turas vividas em Troia e não controla a emoção (Canto VIII, 83-95; 531-534; 577-585), fazendo desconfiar o anfitrião Alcínoo, a quem afinal se revela (Canto IX , 19); chama atenção também o fato de que, ao ser chamado a narrar os seus sofrimentos na volta a ítaca, seja como aedo que ele o faz (Cantos IX a XII) (não podendo ser de outro modo) e, como heroi de múltiplos dons, seu canto é admirado (Canto XIII, 3).

Mas a passagem em que ele enfrenta as sereias é inestimável para quem se volta à épica, porque figura com inigualável beleza o efeito dos cantos épicos sobre os ou-vintes, o que significavam ao próprio povo no interior do qual e para o qual se criaram. O poder de atração do canto das sereias, na Odisseia, não se limita à voz, à melodia: estas são irresistíveis porque entoam uma poesia, que é épica e conta, entre outras, as histórias dos herois de Troia (tal como os aedos). Sobretudo, seus cantos atraem pelo modo como trazem o conhecimento de tudo o que se passou com os guerreiros gregos e troianos, e tudo o que se passou ou passa na terra. Vale citar os versos, na mesma bela tradução de Trajano Vieira (Canto XII, 182-195):

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Volume 12 – Nº 2 – 2º Semestre de 2012 27

A uma distância em que se pode ouvir o grito, notaram-nos. Cristal na voz, entoam o canto: ‘Aproxima, Odisseu plurifamoso, glória argiva. Escuta nossa voz, a voz das duas! Em negra nau, ninguém bordeja por aqui sem auscultar o timbre-mel de nossa boca e, em gáudio, viajar, ampliando sua sabença, pois conhecemos tudo o que os aqueus e os troicos sofreram na ampla Ílion – numes decidiram-no. Quanto se dê na terra amplinutriz, sabemos.’ A bela voz assim ressoou. Meu coração queria ouvir. Mandei que os sócios me soltassem sobrelevando as celhas, mas, em arco, mais remavam. ( 2011: 367)

O encanto está no “timbre-mel” que leva a “viajar, ampliando a sua sabença”: o encanto da sensibilidade é o encanto do saber – assim, o coração quer ouvir. O canto das sereias, espécie de protótipo dos aedos, caso mágico e extremo do encanto que os cantos épicos exercem sobre quem os escuta, dirigem-se a um tempo aos ouvidos, ao coração, à inteligência. Traz à tona a unidade das faculdades humanas da sensibilidade, sentimentos e razão, como órgãos da recepção da arte, órgãos do efeito artístico.

Essa ideia ecoa nos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844. Na passagem em que trata das relações entre natureza e sociabilidade, mostrando que a própria natureza humana se torna social pela atividade do trabalho, assim como o mundo natural se faz social, humano, Marx suscita a formação dos sentidos. Ali, a arte aparece como objeto privilegiado de formação dos sentidos, em sua unidade com as demais faculdades – embora, em Marx, a formação conjunta das faculdades humanas não se restrinja à produção e apreciação artística, mas seja parte da atividade de autoconstrução. Objetivamente, a atividade do trabalho cria o mundo objetivo social; subjetivamente, a apreensão dos objetos sociais, criados pelo e para o homem, engendra o ser social, tanto espiritualmente como em sua natureza (sensibilidade). Assim, os sentidos humanos tal como existem, em sua capacidade de apreensão acentuadamente aprimorada, se comparada aos sentidos rudes, é resultado de toda a história transcorrida: “A formação dos cinco sentidos é um trabalho de toda a história do mundo até aqui” (Marx, 2004: 110).

O olho se faz um olho humano, aprende a apreciar a beleza da forma, na medida em que aprecia o objeto belo, a forma bela, “proveniente do homem para o homem”. O ouvido se torna musical, enquanto apreende a beleza da música. Mas a sensibilidade formada na apropriação da beleza artística está em conjunção com os sentidos espiri-tuais e os sentidos teóricos. Trata-se do desenvolvimento humano dos sentidos natu-rais, a humanização da natureza objetiva e subjetiva. Na prática de produção do mundo

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humano, e de maneira privilegiada na criação e fruição artística, os sentidos se formam em conjunção imediata com os “chamados sentidos espirituais, os sentidos práticos (vontade, amor etc.)”, ou os atributos próprios do “coração” (afetos). Marx denomina, simplesmente, “o sentido humano, a humanidade dos sentidos” quando se refere aos cinco sentidos humanos, formados em unidade com os sentidos práticos ou espirituais.

Os sentidos humanos, assim entendidos, adquirem também para Marx uma di-mensão diretamente teórica. Considerando a capacidade sensível de apreensão artís-tica, a capacidade de o olho e o ouvido humano apreciarem a arte plástica e a música, Marx escreve: “Por isso, imediatamente em sua práxis, os sentidos se tornaram teoréti-cos”. (2004: 109). Na fruição artística, a sensibilidade se liga diretamente ao pensamen-to. Partindo, por outro lado, do pensamento em direção à sensibilidade, Marx se refere à linguagem. O âmbito teórico ou conceitual do ser social existe apenas na forma da linguagem, que é o seu modo próprio de exteriorização e, portanto, como abstração existe somente no meio sensível: “O elemento próprio do pensar, o elemento da exter-nação da vida do pensamento, a linguagem, é de natureza sensível.” (2004: 112)

Esse tema exige maior desenvolvimento, que escapa às intenções desse artigo. Cabe apenas pontuar que Marx se volta à unidade e comunicabilidade das faculdades humanas, criadas como tais na atividade prática de produção do mundo humano. As-sim como a separação tradicional dos campos da filosofia ou das ciências, também a separação das faculdades humanas é algo estranho ao pensamento marxiano. No que nos importa, isto é, quanto aos órgãos da fruição artística, Marx parece reverberar e explicar a intuição presente na passagem homérica do canto das sereias: o ouvido capaz de apreciar a beleza dos cantos épicos não é o ouvido puramente natural, mas o ouvido musical, conformado como capacidade humana (natureza humanizada), por-tanto diretamente teórico e afetivo. O ouvido se regala ao mesmo tempo com a melo-dia, o saber, a emoção – ouve como coração.

Nosso olhar se volta, então, aos atributos artísticos capazes de mobilizar (e con-formar) a sensibilidade entendida conforme Marx. Novamente, convém frisar que, na fruição artística, trata-se de reviver, experimentar uma realidade. Essa propriedade de evocar a vida e dirigir-se ao indivíduo em seu interesse interior, como vivência ín-tima, é um traço da arte. No caso das epopeias, nossa sensibilidade e intimidade se mobilizam porque, por mais distante e estranho que seja o mundo que elas vivificam, nelas experimentamos a nós mesmos em nossa verdade natural (infância). Revivemos sensivelmente nosso passado genérico como nossa própria verdade. Assim, reiteramos que não se trata de um conhecimento teórico transmitido por meio de expedientes sensíveis, como a melodia e o ritmo etc. Como Aristóteles acentua em sua Poética, não é o verso que faz a poesia: a versificação não torna em arte um tratado científico.

O que, então, faz a poesia? A propriedade essencial da arte é o seu caráter antro-pomórfico. A poesia faz experimentar um mundo, passado ou presente, próximo ou distante, enquanto conduz a viver outras vidas, quer dizer, enquanto figura destinos

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humanos. Se retomarmos a passagem em que Marx define a mitologia, veremos como, ali, o “artístico” se identifica à antropomorfização. A mitologia, isto é, a apreensão ima-ginativa das forças naturais e sociais como personas, é, por isso mesmo, uma elabora-ção inconscientemente artística. O artístico, portanto, consiste na elaboração das for-ças naturais sociais na forma do homem, de figuras humanas individuais. O elemento da forma que confere a vivacidade e capacidade de fazer experimentar é a criação de caracteres e ações humanas individuais.

Mas os caracteres e ações individuais moldados na forma artística constituem ao mesmo tempo, como vimos no caso exemplar da épica grega, figurações de um mo-mento da vida social da humanidade como gênero. A arte figura traços universais da época nas vidas particularíssimas que apresenta; molda caracteres e ações individuais, mas estes ultrapassam o imediato da vida, carregando um sentido universal (histórico). A intenção genérica da arte busca a individualização. Aí se encontra o motor de seu efeito sensível, de um saber que se dirige ao coração.

Referências bibliográficas

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Entre o verbal e o não verbal – apontamentos sobre gêneros e seus cruzamentos

Thaís Montenegro ChinellatoMestre em Ciências da Comunicação (ECA/USP). Doutora em Semiótica e Linguística Geral (FFLCH/USP). Professora da Fundação Cásper Líbero.

Cotejo de exemplos de alguns gêneros do jornalismo (crônica, artigo, comentário, crítica, resenha, ensaio, perfil e obituário) nos quais, além de seus aspectos distintivos, identificam-se cruzamentos de características, tendo por fundamentação não apenas teorias afins, mas a metalinguagem jornalística. Sobre gêneros não verbais (caricatu-ra, charge, cartum, fotojornalismo), observam-se seus efeitos parodísticos e a influência da imprensa fescenina. Palavras-chave: Jornalismo, gêneros, discurso não verbal.

Entre lo verbal y no verbal – notas sobre el género y sus intersecciones Una

aproximación de géneros del periodismo (crónica, artículo,

ensaio, perfil del obituário etc): teoria, exemplos y análisis de

sus aspectos distintivos y sus contaminaciones segun teorias

propias y la metalinguagem. Estan includos apontamientos

sobre el discurso non-verbal (caricatura, charge, cartum,

fotoperiodismo) como modelos representativos por sus

efectos parodísticos y la influencia del periodismo erotico.

Palabras clave: Periodismo, gêneros, discurso no-verbal.

Between the verbal and non-verbal –notes on gender and its intersections This

article unites theory, examples and analysis of some crossed

journalistic genres of the verbal essay (article, criticism,

obituary etc), with models of opinion based on theories and

journalism metalinguistic. The study includes the non-verbal

genres (caricature, cartoon, comic strip, photojournalism),

as well are representative models of parodic effects and

influence of the erotic midia.

Keywords: Journalism, genres, non-verbal essay.

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Entre o verbal e o não verbal - apontamentos sobre gêneros e seus cruzamentos

Não contem para minha mãe que sou jornalista. Prefiro que ela continue pensando que toco piano num bordel”. (dito popular espanhol)

Gêneros designam certo modo culturalmente compartilhado de organizar ideias e re-cursos expressivos – inesgotáveis possibilidades em domínios continuamente comple-xos, observam os estudiosos. Na amplitude dos gêneros jornalísticos, cujos cânones põem teóricos entre concordâncias e dissonâncias, abordagens diferenciadas distin-guem jornalistas que extraem da própria prática as possibilidades para ousar – como ensaístas, críticos, cronistas –, conferindo caráter fronteiriço a seus textos.

No ensaio, pode avultar a fluidez reflexiva de uma crônica; no artigo, a contundên-cia de uma crítica; no obituário, a intimidade de um perfil; e, nessa mobilidade que os faz limítrofes, um impressionismo tomado à literatura. A contaminação de caracterís-ticas entre gêneros do jornalismo ultrapassa acepções fundantes – no que se refere, por exemplo, a informar, opinar, entreter –, permitindo reconhecer singulares hibridismos e subgêneros que revitalizam, entre formas e estilos, a linguagem jornalística.

José Marques de Melo, Juarez Bahia, Luiz Beltrão, Martín Vivaldi e Ana Atorresi figuram entre os nomes que se ocuparam em pesquisar ou sistematizar produções pe-riodísticas. Para Atorresi, versada no jornalismo portenho, ponto de vista e intencionali-dade permitem diferenciar os conceitos de gêneros opinativos. Opinião é a “formulação de um juízo pessoal e subjetivo acerca de um acontecimento”. Interpretação é a relação entre “determinados dados ou acontecimento de modo tal que o leitor deduza os nexos”. Por “crítica especializada” entende-se a formulação de juízos por parte de um especialis-ta, “como resultado de uma análise aparentemente objetiva, metódica e fundamentada”. As três abordagens “podem conviver em cada um dos gêneros de opinião.” (1995:36)

São recorrentes os exemplos de procedimentos que se cruzam, dificultando uma classificação precisa: “se certas características discursivas nos permitem uma primei-ra definição de um gênero e seu reconhecimento ao longo de sua evolução, é inegável que os gêneros se contaminam, ou seja, tomam algumas características de outros gêne-ros”(1995:40). Heterogeneidade e experimentação compactuam com a multiplicidade de conteúdos simbólicos na mídia, para escapar à uniformização da linguagem, se con-siderarmos os veículos dominados pela lógica do mercado que massifica a recepção de informação. Consoante analisa Fábio Lucas, “as redações hoje em dia estão povoadas de ‘técnicos’ que processam a canonização dos textos sem estilo, carregados de simpli-cidade palmar, neutralidade e redundância.” (2010:38). Ele atesta que o menor esforço favorece a linguagem uniforme, banal, repetitiva.

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Volume 12 – Nº 2 – 2º Semestre de 2012 35

Crônica – contemporização de gêneros

“Vizinhos no momento da partida, distantes quanto ao objetivo, assemelhados nos meios que empregam, apartados no processo de tais meios, as letras e o jornal

caminham bem próximos, ou até entrelaçados.’’ (Otto Lara Resende)

Na hierarquia dos gêneros literários, a crônica está na base de uma pirâmide em cujo topo está a poesia; no jornalismo, muitas vezes, seu mote está no excedente da no-tícia (daí Lourenço Diaféria dizer que é feita de cinzas). Foi pensada para a efemeridade do jornal, mas aspira ao livro. Emigrada de sua condição jornalística, passa a respirar no território da literatura, metaforiza Ledo Ivo. Novidade, surpresa, devaneio, variedade – qualidades que a tornam apetecível – são justamente os agentes de sua desintegração; “a crônica morre daquilo de que se nutre”. Afastada do sentido que lhe emprestaram os franceses, encontrou aqui sua naturalização– “se gaulesa na origem, a crônica naturali-zou-se brasileira”, afirma Massaud Moisés.

O texto enobrece, explica Edith Pimentel Pinto, “quando a crônica passa a inti-tular-se conto”. Quanto à liberdade do autor para classificá-la, Mário de Andrade foi truístico: “conto é tudo o que seu autor assim o quiser”; já Fernando Sabino, sentiu-se à vontade ao parodiá-lo: “é crônica o que o autor quiser que seja crônica”; e ainda arre-matou: “acho que o gênero se classifica atualmente como as doenças: se não for aguda, é crônica”. Clarice Lispector foi além, ao publicar como crônica, no Jornal do Brasil, o capítulo de um romance; e tripudiou sobre os críticos: “gênero não me pega mais”.

Na condição de entretenimento fugaz, parece destinada a ser um “gênero menor”, justifica Antonio Candido: há na crônica certa profundidade e acabamento de forma que fazem dela uma inesperada, embora discreta, candidata à perfeição. Sobre a perme-abilidade da crônica, Moacir Amâncio resume: “Ontem, disfarçou-se em digressões so-bre o cotidiano. Amanhã será poema em prosa. Assume ainda características de ensaio, ou de experimentação estilística (…).” (1991:9-10)

Efeitos estéticos definidores da função poética encontram-se numa tipologia do gê-nero: a crônica-comentário funde reflexão à densidade opinativa, a metalinguística busca seu próprio fazer; a anedótica amplifica a narrativa de humor; a lírica extrai arroubos da subjetividade. Exemplo de crônica-comentário com índole crítica: Arte e mistificação

Se o poeta é fingidor, segundo um deles, o artista, sempre que pode, mistifica. Talvez seja uma coordenada inerente à arte. Um caso que ilustra essa mistificação é o quadro ‘Guer-nica’, que muitos consideram o mais importante do século.O próprio Picasso e os partidos comunistas de todos os quadrantes foram os primeiros a classificá-lo como a denúncia do horror desencadeado pelo fascismo na Guerra Civil da Espanha, prenúncio do horror posterior a cargo dos nazistas. Existem toneladas de livros

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Entre o verbal e o não verbal - apontamentos sobre gêneros e seus cruzamentos

analisando a crueldade dos aviões de Goering despejando bombas na indefesa cidade espanhola. Pior mesmo foram os críticos que interpretaram aqueles pedaços de touro e cavalo, de mulher e casa. Viram naqueles destroços os sinais da bestialidade nazifascista. Acontece que o quadro foi pintado antes do bombardeio. Picasso idolatrava o toureiro Joselito, morto tragicamente, e dedicou-lhe uma tela de oito metros de largura por três e meio de altura. Intitulou-a ‘A morte do toureiro Joselito’. Usou cores sombrias, fúnebres, que iam do preto ao branco. O pintor chegou a se esquecer do quadro, até que lhe encomendaram um trabalho para o pavilhão republicano da Exposição Universal de Paris. Com alguns retoques, mandou a morte do toureiro. O nome foi mudado para ‘Guenica’. Como era isso que esperavam dele, ninguém reparou. Teve início uma das mais ridículas interpretações críticas na história das artes. Tanto o cavalo do picador como o próprio touro estão em lugares de destaque no quadro. A expressão de horror das cinco figuras humanas é comum nas arenas. A criança morta no colo da mãe é uma alusão à personalidade de Joselito, uma espécie de menino grande e heroico. García Lorca também dedicou belo poema a um toureiro (...). Mas aí foi diferente (Carlos Heitor Cony, Folha de S.Paulo)

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Thaís Montenegro Chinellato

Volume 12 – Nº 2 – 2º Semestre de 2012 37

Valendo-se da prerrogativa do gênero, que dispensa o rigor da fonte de informa-ção, Cony produz uma crônica-comentário em cuja contundente revelação sobressai a crítica. Em favor de uma provocação desafiadora, o cronista investe contra o discurso de autoridade dos teóricos da história da arte (e, por extensão, dos críticos de arte). Na informação que surpreende está latente a indignação que a fraude suscita. Sua certifica-ção encontra correspondência nos esboços composicionais de Picasso reunidos numa publicação disponível no museu Reina Sofia, em Madri.

Trata-se dos registros sequenciais da obra (2003:14): nos esboços 10º e 12º (da-tados, respectivamente, de 8 e 25/5/1937), as figuras centrais são o touro, o cavalo e o toureiro. O touro apresenta-se em duas versões – estático e em simulado movimento –, tendo o cavalo do picador à frente, apoiado nas patas dianteiras, sob as quais jaz o toureiro com a lança. Ao fundo, uma ef ígie feminina surge diferente em cada qual. A propósito do significado de “Guernica”, Alberto Manguel reproduz a evasiva de Picasso: “São animais, animais massacrados. Só isso, pelo que me diz respeito. Cabe ao público ver o que deseja ver.” (2001:20).

Monteiro Lobato e Fernando Pessoa são intertextualidades reveladoras do reper-tório de Cony. Sem a pretensão de oferecer um elucidário sobre um símbolo pictórico da luta antifascista, importa instigar o leitor que, até então, compactuou com a valorização de uma iconografia consagrada como alteridade de Picasso. O cronista articula detalhes biográficos do pintor aos episódios marcantes que auratizaram “Guernica”, justificando a pecha de um oportunismo silenciado e a perpetuação de um engodo.

No exemplo seguinte, o compartilhamento de características entre reportagem e crônica: Para apreciadores assumidos

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“(...) os clientes que esperavam para entrar no The Stinking Rose tumultuavam a calçada num dos trechos mais movimentados de North Beach, a Little Italy de São Francisco. Caso você não tenha se dado ao trabalho de decifrar o nome, The Stinking Rose significa ‘A Rosa Fedorenta’, e é usado em língua inglesa como um apelido para o alho. Não conheço eufemismo mais sincero. Juntar ‘rosa’ e ‘fedorento’ na mesma locução é algo que só os alhófilos (alhistas? Alhíticos? Alhomaníacos?) poderiam ter humor para conceber.O que leva centenas de pessoas a enfrentar uma fila a céu aberto para entrar num restaurante que só serve pratos à base de alho? O mesmo instinto selvagem que leva outros a clubes de sexo. É preciso ser tarado por alho para encarar um menu em que o alho está presente do aperitivo à sobremesa. E o mais interessante é ver que os outros alhoadictos são pessoas aparentemente tão normais e aborrecidas quanto você (você no sentido de ‘eu’ – se é que você, no sentido de você, entende). Ali, naquela calçada movimentada da Columbus Avenue, estamos celebrando nossa orientação alimentar: a fila do Stinking Rose é uma espécie de Parada Gay, só que para homens e mulheres alhosexuais. Uma vez vencida a fila, você é levado pela atendente por um labirinto de corredores e salinhas que não combinam umas com as outras – num possível sinal de que o restaurante foi crescendo aos poucos, com o acréscimo de novos territórios por meio de aberturas secretas à medida que a fila de alhopatas vai se formando na calçada. Inicia-se a refeição, religiosamente com uma bagna caoda – um potinho de manteiga quente e derretida habitada por dentes inteiros de alho quase se desmanchando de tão assados. A ideia é acabar de amassar o alho na manteiga e passar no pão ciabata. Basta uma dentada e você já pode marcar sua viagem à Transilvânia, que nada de mau lhe acontecerá. (...) Olhando no cardápio do site (thestinkingrose.com) eu, sem dúvida, pediria a galinha aos 40 dentes de alho para arrematar (não existiam há 10 anos), acho que passaria. Se você souber de algum restaurante parecido, só que dedicado ao coentro, me avisa?” (Ricardo Freire, O Estado de São Paulo).

No itinerário de uma reportagem está a irreverência de uma crônica – da contingência da fila às peculiaridades dos pratos. Por amálgama, uma efusão descritiva cujo impressionismo intensifica a bem-humorada análise que extrai do prosaico ingrediente o máximo da excentricidade de seus apreciadores, os quais, por força do humor, recebem epítetos de cunho linguístico e patológico. Dois gêneros confluem para reportar uma experiência que alicia (vale o trocadilho) pela cumplicidade entre olfato, visão e paladar. No crescente entusiasmo pelos detalhes do percurso gastronômico, acentua-se a função emotiva da linguagem. Buscando a empatia do leitor, a sugestão de cardápio arremata a espirituosa apologia a uma preferência culinária e ao reduto de seus partidários.

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Sinônimos imperfeitos, gêneros vizinhos

“Não se pode ser mais enciclopédico do que nós, os jornalistas. Meio cientistas, meio literatos, meio artistas, meios políticos. E com essas

quatro metades não chegamos a compor um inteiro”. (F. Martini)

Aproximações e distanciamentos implicam distinções formais entre a crônica, o artigo e o ensaio; teóricos concordam que o articulista tem autonomia sobre o tema, sua opinião e sua expressão verbal. Tomando a forma de colaboração para a imprensa, observa Alexandre Eulálio (estudioso da evolução dos gêneros), articulismo e ensaísmo, sinônimos imperfeitos, “são obrigados a coincidir de todo nas condições culturais do Brasil.” (1992:53)

Para comparar o que há de móbil nas categorias textuais e sua classificação, é oportuno atravessar fronteiras. No jornalismo francês, por exemplo, há vinte gêneros sob quatro nomenclaturas (informativos, comentários, artigos de fantasia e elaborados), segundo Martin-Lagardette, estudado por Mônica Gonçalves Macedo (2002:21-22). Na imprensa brasileira, José Marques de Melo sistematiza doze gêneros representativos, sob duas denominações principais (informativos e opinativos), além de outros nove (que afirma não serem encontrados significativamente), os quais se dividem em três categorias (interpretativos, diversos e utilitários).

Marques de Melo ao cotejar teóricos brasileiros e estrangeiros, assevera: “artigo é um ensaio curto e o ensaio é um artigo longo”. Estendendo-se sobre os procedimentos de cada qual, ele esclarece: “A argumentação utilizada no artigo baseia-se no próprio conhecimento e sensibilidade do articulista; no ensaio ela se apoia em fatos que se legitimam pela sua credibilidade documental” (1985:65). Para Luiz Beltrão, o artigo apresenta características idênticas às do editorial (introdução, discussão, argumentação e conclusão), podendo ser assinado por “pensadores, escritores e especialistas em diversos campos.” (1989:65)

Ana Atorresi insiste que não apenas o artigo, mas todos os gêneros jornalísticos são objeto permanente de “troca” de procedimentos entre si (1995:38). Quanto às peculiaridades que dividem teóricos de outras culturas, Gonzalo Martín Vivaldi é uma referência no estudo do periodismo em língua espanhola. Ele destaca a dificuldade metodológica em estabelecer limites e precisar as diferenças no enlace de gêneros: artigos símiles da crônica, bem como reportagens cujo tom e enfoque tocam o campo da crônica e do artigo. Embora não se defina por sua extensão, “a regra geral pede que seja breve”, lembra Vivaldi: “o bom artigo é um comentário interpretativo da atualidade. E sua exposição pode ser filosófica, poética ou humorística”. É um gênero “tão variado, tão múltiplo, tão pessoal, que a definição-delimitação (...) sempre resultará incompleta ou aproximada”. Sobre o aspecto estilístico, ele acentua a “liberdade absoluta. Nada de

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normas nem de regras.” (1993:76-77). Conforme sua síntese, se o jornalismo tem três funções fundamentais, informar, orientar e distrair, no artigo elas se reduzem a duas. Antigos jornalistas, lembra Marcelo Coelho, costumam dar “uma dica meio cínica, mas não destituída de sentido”, sobre artigos de jornal: “Se tiver uma ideia só, muito bem. O melhor artigo, contudo, é aquele que se limita a meia ideia. Nada mais.” Exemplo de progressão argumentativa num artigo/ensaio curto: Educação no Futuro – entre o telescópio e o caleidoscópio

Um telescópio que permitisse divisar o cenário da educação no Brasil, num horizonte anos adiante, revelaria vertiginosa complexidade. Focando-o à esquerda, vejo o efeito de um caleidoscópio em cujos espelhos novas estruturas se formam continuamente.Adolescentes aprendendo sozinhos conceitos avançados em matemática, f ísica e outros domínios utilizam objetos de aprendizagem encontrados na internet de última geração, dispensando separações artificiais por faixa etária ou graus de escolaridade. Cursos de apreciação musical, artes, literatura e cinema atravessarão a educação formal (cuja meta é o diploma) e a informal (que fornece habilidades ou saber específicos). Ambas competirão com êxito e se estenderão ao longo da vida, estruturadas essencialmente para estimular duas capacidades fundamentais: pensar e comunicar-se com extrema clareza. Chips implantados no cérebro permitirão a ‘entrega de conhecimento’ quando solicitado, via satélite ou por outro meio sem fio, como no filme ‘Matrix’. O semestre desaparecerá; novos cursos poderão durar horas, dias ou semanas (não necessariamente meses). Demonstração de capacidade intelectual, crítica e volitiva prevalecerão, permitindo ao aluno montar seu elenco de disciplinas e escolher o sistema presencial, à distância (TV ou internet) ou uma combinação de ambos, em instituições locais ou internacionais. Sem interferência de professores, a internet proverá cursos totalmente automatizados (como a pioneira University of Southern Queensland, na Austrália). Em todos os níveis, os currículos serão organizados em torno de grandes temas ou metáforas, como ‘ciências da vida’, ‘artes do espetáculo’, ‘participação pública’ ou sociedade de autoaprendizado’. Os trabalhos serão feitos em multimídia. Alunos e professores (...) terão acesso aos pequenos e grandes repositórios de conhecimento do mundo. Não haverá necessidade de comprar livros. Sob demanda, teremos e-book (livro eletrônico) e e-papers (folhas que recebem da rede carga elétrica, podendo ser apagadas e reaproveitadas). A jornada profissional será reduzida à média de cinco/seis horas diárias; o tempo de lazer se estenderá entre experiências ricas e variadas. Menos braços e mais cérebro, a maior parte dos profissionais exercerá tarefas que basicamente envolverão duas ações – aprender (identificando problemas, achando soluções) e agir (aplicando soluções). Os espéculos multifacetados revelam seus contrários: renovações aceleradas e contínuas acabarão por invalidar certas habilidades e/ou o acúmulo de informações factuais. Diplomas terão validade efêmera, tal como passaportes, exigindo renovada comprovação de competência, uma atualização do saber. Quando viro o telescópio/caleidoscópio à direita, observo um setor público com menos capacidade de sustentar uma educação

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gratuita exemplar, transferindo cada vez mais responsabilidade para empresas, ONGs e outros setores interessados em desenvolver os recursos humanos. Mas o futuro poderá ser arruinado por seu próprio êxito: a homogeneização e pasteurização educacional (sua ‘macdonaldização’) aparentemente mais econômica, mas talvez com consequências qualitativas inesperadas ainda não mensuráveis. Nem céu nem inferno, a educação que nos desafia utopicamente será ao mesmo tempo o reflexo e o determinador implacável da sociedade do futuro. (Fredric M. Litto, Folha de S.Paulo)

À maneira de “ensaio curto”, progridem analogias num percurso do figurativo ao temático – dois aparatos óticos (já no título) encaminham uma abordagem dedutiva, presumindo o impacto tecnológico na tomada coletiva do conhecimento. A incisiva simetria argumentativa põe em causa a crise do imaginário digital; evidências persuasivas encontram a adesão de um leitor instado a antever a evolução da autonomia cognitiva. O exemplo a seguir encerra (na terminologia de Marques de Melo) um comentário-personalista, variante do artigo: Sou católico, apostólico, baiano

Sou devoto de Santo Antônio e de Nossa Senhora do Carmo. Entrei no candomblé, tardiamente, aos 20 e tantos anos. Fui consertar o telhado do Gantois, e o Gantois consertou minha vida. O candomblé não é religião. É culto aos antepassados, às forças da natureza. É moderno. Já era ecológico antes que a ecologia entrasse em voga. Não exclui opções sexuais. Ao contrário, acolhe. Os deuses do candomblé têm ira, inveja e raiva. Xangô é colérico. Oxum é ciumenta e chorosa. Ogum tem pavio curto. Não é muito chique ser do candomblé. Pelo menos na parte do país em que vivo. Como toda cultura vinda dos vencidos, é visto como desvio, coisa de gente desajustada ou artista. E confesso que isso, ao contrário de me afastar dele, sempre me instigou a caminhar contra o vento. Toda sexta-feira vejo o olhar jocoso com que algumas pessoas me olham vestido de branco. O candomblé é o culto do bem. Tantas vezes confundido com feitiço. Se alguém usou esses poderes santos para o mal, é descaminho. E contra ele a força deve ter se voltado. O catolicismo não pode ser julgado a partir dos padres pedófilos. E o candomblé não pode ser julgado a partir de pais-de-santo picaretas. Candomblé é magia. Aquela energia que a gente sente na Bahia vem dele. Aquela música, aquela sensualidade e aquela pimenta vêm dele. (...)Mas não posso negar o bem que mãe Cleusa me fez e que mãe Stella me faz. E o bem que fazem pelos pobres. O candomblé sempre foi e continua pobre. Não tem catedrais, nem TVs, nem rádios. Não faz coleta de dinheiro. Ao contrário, as grandes mães-de-santo doam. Vivem franciscanamente. E nunca fizeram voto de pobreza. Porque os pobres não precisam disso. Saúdo sua Santidade e peço a Xangô e a Oxum que guiem seus caminhos para que ele possa ser uma grande mãe ao longo de seu papado. Que, além de encíclicas e regras, ele nos dê colo e carinho. Que ele seja uma espécie de mãe Menininha global. Porque, ao fazer isso, honrará o trono de Pedro e terá cumprido seu papel no tempo e na história.” (Nizan Guanaes, Folha de S. Paulo)

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No tom assertivo, avultam experiências pessoais e preceitos seculares; enquanto pequenos episódios revelam sua significação, a isenção de proselitismo evoca atitude. Na argumentação indutiva, identifica-se o candomblecista que faz do texto o breviário de um legado cultural-religioso. Eivado de poética confessional, sua fé se traduz em leveza de crônica. A sucessão de períodos curtos torna ágil a leitura e cortante o estilo; as frases declarativas finais deixam que o entono de prece exerça seu encanto.

Na sequência, hibridismo de coluna de conselho e gênero utilitário (orientação sobre produtos e serviços), pautado numa sugestão para o Dias das Mães: Você já percebeu que só faltam oito dias para o Dias das Mães?

Se o que dar a sua mãe já está em sua cabeça, maravilha. Corra às lojas e etiquete a missão antes que as filas cheguem. Mas, se você ainda não pensou nesse assunto e adoraria um palpite-curinga, lá vai. Neste ano, atinja o coração da mulher mais importante de sua vida com um belo roupão caseiro.Pelo que eu saiba, ainda estão para inventar uma mãe que não ame zanzar pela casa dentro de um roupãozinho bem bacana. Parece até que é dessa peça que todas as mães extraem seu poder de comando. A bordo de um roupão elas ficam impossíveis. Dão suas melhores sacadas, as piores broncas, os mais sinceros toques, todo seu carinho. Agora você me pergunta por quê, em vez de roupão, eu não me atrevo a usar a palavra penhoar. Eu respondo: mães modernas têm ojeriza à palavra penhoar. O termo roupão parece a elas mais jovial, prafrentex, alegrinho. Penhoar, dizem várias mães, lembra sono, desânimo, Doris Day e depressão. Enquanto roupão evoca sensualidade, bem-estar, Julia Roberts e lua-de-mel. Pois é, filhote. Neste Dia das Mães apareça na casa de sua cara genitora com um belo roupão – de seda, toalha, piquê ou algodão – super bem embrulhado e abafe. Desde que não diga a ela ‘Achei esse penhoarzinho a sua cara’. (Suzana Camará, Folha de S. Paulo).

Entre enumerações, descrições e linguagem figurada, o texto alia às amenidades de fait-divers o despojamento exortativo e o intento de conversa íntima. Fugindo à aridez referencial de uma seção de serviços, o coloquialismo insinua a função conativa (na voz imperativa do verbo, no vocativo) e apropria-se de clichês do comportamento materno como recurso persuasivo. Na sutileza do humor, a função poética por consequência.

Alcances do ensaio

“O ensaísta é o corredor de maratona. Já o crítico, se não é um corredor de 100 metros rasos, é pelo menos um atleta dos 400 metros com barreiras.” (Wilson Martins)

“Quando a lenda se torna realidade, publica-se a lenda”. (James Warner Bellah)

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A propósito do ensaio jornalístico, cabe lembrar sua gênese na obra de Michel de Montaigne (1533-1592), que produziu textos de feição informal, marcadamente sub-jetivos, com temática variada e destituídos de artificialismos e afetação (atributos que sobrevivem no ensaísmo contemporâneo).

Alfabetizado em latim, ele se revelou um humanista inclinado ao ceticismo e aficcionado por autores clássicos (Sêneca, Lucrécio, Cícero e muitos outros): “apropria-se de sua substância para fins imprevistos”, assinala Jean Starobinski (1993:35). O mergulho no imaginário e os saltos temáticos, lembra Leda Tenório Mota, fazem ver em Montaigne a invenção da subjetividade moderna, inaugurando a conversa direta com o leitor; o gosto do pensador francês pela autodescrição torna-se prosa coloquial, digressiva e fluente. Sua escrita lembra “um falar informe e sem regras”, aponta Sérgio Milliet nas notas introdutórias da tradução de seus ensaios (1968:86). Resultavam da “inclinação ao devaneio, à meditação e à análise”, mas também das obras lidas, vindo-lhe ao espírito “sem ordem nem propósito”. Leitor assíduo de Sêneca, Montaigne encontra nele os lugares-comuns da sabedoria antiga e o estilo por empréstimo. Um modelo de Montaigne: Da Presunção

Há outro tipo de glória que consiste em termos opinião demasiado boa de nós mesmos. Essa afeição imprudente faz que nos representemos aos nosso próprios olhos diferentes do que somos. E atua como a paixão amorosa, que empresta ao objeto de seu amor a beleza e a graça, turvando e alterando a razão de quem ama e fazendo da pessoa amada um ser muito mais perfeito do que é. Não quero, entretanto, passando de um extremo a outro, que um homem se despreze ou se estime menos do que vale. Nosso julgamento deve conservar sua retidão e é justo que nisso, como em outras coisas, veja em que consiste a verdade. Se é César, que se considere corajosamente o maior guerreiro do mundo. Tudo é convenção; as convenções guiam-nos e nos levam a menoscabar a realidade. Penduramo-nos aos galhos e largamos o tronco, que é essencial. Ensinamos as mulheres a corar ao ouvirem o que em absoluto não receiam fazer; não ousamos chamar o nosso sexo pelo nome certo, mas não tememos empregá-lo na devassidão. Não querem as convenções que nos refiramos aos atos lícitos e naturais que entretanto praticamos; a razão aconselha-nos a não cometer os ilícitos e maus, mas ninguém a ouve. Eu mesmo, neste momento, estou sendo tolhido por essas regras que as convenções nos impõem e que nos recomendam não falarmos de nós mesmos, nem bem nem mal. Mas não as observamos. (...) A presunção exerce-se de duas maneiras: em nos superestimando e em subestimando os outros. Quanto à primeira maneira, parece-me que certas considerações devem ser ponderadas. Sou vítima de um erro sentimental que me desagrada e se me afigura iníquo e ainda mais importuno. Tento corrigi-lo mas não posso libertar-me: subestimo o valor

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das coisas que possuo e, ao contrário, super avalio as que não me pertencem ou se acham fora de meu alcance. (...) (Michel de Montaigne, antologia de Pierre Villey)

Note-se que o texto constrói-se sob contradições, como convém a Montaigne, in-sistente em sua subjetividade. Ao aventar situações mundanas e discorrer sobre suas convicções, avultam a metalinguagem e as metáforas. Assim, as abstrações ganham efei-to ilustrativo e o próprio ensaísta protagoniza exemplos. Cada asserção tem efeito de máxima filosófica.

Para Joseph Bonenfant, na incompletude das reflexões do “ensaio livre” de Montaigne “não se deve ver uma falta de perfeição, nem no fragmentário um sinônimo de truncado”, pois é da natureza de sua escrita mover-se no inacabado. É a aceitação da desordem confessa. (1989:61). Luiz Roncari considera comum “vermos o ensaio caracterizado como gênero impuro. Mas a impureza é uma característica dos gêneros complexos”. Numa combinação de conteúdos literários, científicos ou filosóficos, sua prática reclama “um valor extra, poético.” (1989:70)

Quando lançou no mercado editorial a coletânea do próprio ensaímo, o jornalista Otávio Frias Filho declarou-se leitor de Montaigne: “o peso desse autor na cultura ocidental é tamanha que dificilmente alguém que escreve estaria livre de seu fantasma”. Por mais trivial que seja o tema, o ensaio cativa por infiltrações subjetivas. Nos cadernos de cultura eventualmente são publicados textos de maior complexidade, como explica o jornalista Nelson Ascher: “(...) um jornal se beneficia ao colocar à disposição do público, além do noticiário, ensaios densos e complexos que o inspirem ou ajudem a pensar.”

Pode-se designar o texto a seguir, de Arnaldo Jabor, como um ensaio travestido de crônica ou uma crônica que aspira ao ensaio: Travesti na terceira margem do rio

O travesti não quer ser mulher. Ele quer muito mais. (...). O travestimento não se contenta com pouco. O travestimento está na mesma origem do barroco. Não existem travestis clássicos, só existem travestis maneiristas. (...) O travesti não é viado. Ele tem coragem, coragem de ser duplo, coragem do ridículo, coragem do perigo, no horror da madrugada. Tudo isso o travesti suporta pela grana, claro; mas também pelo supremo prazer do místico hiper-espaço da esquina do Hilton. Por que o mundo fica tão cheio de mistério com o travesti por perto? (...). Um homem dito ‘normal’ tem tesão no travesti; vejam o ódio que eles despertam em machões.Por uma simples bicha eles não têm nem ódio nem tesão. De repente surge a Marlene Dietrich com botas de couro no meio dos faróis e lá está o pai de família perdido de loucura. O travesti cria o ‘racha’ real do mundo de hoje, porque ele age diretamente sobre o sexo e a perda da identidade. Ele é uma alegoria da transparência do mal. O travesti não brinca em serviço; ele tem orgulho de ser quem ele é. Ele não é uma puta, ele é um ascendente. Ele tem um orgulho shakespeariano, um clima mágico que nem o cliente tem, nem a puta tem.(...).O travesti é perigoso, você pode se apaixonar e viver feliz para sempre. Quem se casa com puta vira um ‘benfeitor’. Humilha para sempre a mulher

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que ele salvou da ‘vida’. Quem se casa com travesti, pode virar escravo. Você é que tem de lhe agradecer. (...)O travesti não dá uma boa esposa; você pode virar uma boa esposa para o travesti: ‘Querida, já lavei sua saia de oncinha...Você não tira um travesti da vida ; ele é que pode te tirar da tua. Veja o ‘Ano das 13 Luas’, do Fassbinder. O pai de família larga tudo e vai ser travesti. (...). Ele está em perpétuo amor consigo mesmo. Ele é um casal. Se você entrar, você é o terceiro, e pode ser excluído. O travesti sabe de tudo que um homem quer. Como o desejo do travesti é masculino, ele conhece a mulher ideal. O travesti procura a mulher ideal, e só o homem pode ser a mulher ideal. (...) Ele não é da área moral, como a puta; ele é da área artística. Você não pode dizer que um travesti é imoral; quem está sendo imoral, o homem ou a mulher nele? A bicha é uma caricatura da mãe; o travesti é um ideal de homem. Um ideal de mulher e homem. O travesti tem algo de caubói; em nós desperta a mesma admiração que um John Wayne. Você está na paz, ele está na guerra. Quem passa em seu Monza da paz é atraído pela terceira margem do rio do travesti. Ele está na terceira margem do Rio.” (Arnaldo Jabor, O Estado de S. Paulo)

Depois de publicar seu texto na Folha de S. Paulo, Jabor reproduziu-o em O Estado de S. Paulo (com novo título), desbastando-o de termos mais desairosos. Ao longo da leitura, observa-se a estrutura amorfa própria à crônica reflexiva (a paragrafação pode ser alterada sem comprometer a fieira de ideias), prolongando-se em fragmentos des-contínuos (procedimento que Adorno admite sobre o ensaio).

Expressões ferinas idealizam estereótipos entre tautologias enfáticas, afirmações contundentes e referências de cunho erudito. Supõe um chorrilho de argumentos pen-dentes – símiles de um mosaico (dramaturgia inglesa do século XVI, história da arte, cine-ma alemão, literatura brasileira) – o suficiente para o leitor sentir-se um privado cultural. Na referência a Sheakespeare, está imanente a cena de “Hamlet, príncipe da Dinamarca”, cujo monólogo mais lembrado (To be or not to be, que os críticos consideram uma logo-marca do teatro universal), saltou da dramaturgia para ganhar identidade no travestismo.

As anáforas – repetição introdutória da palavra “travesti” – têm o tom passional de admoestação e depreciação; aura de prosa poética a um tema polêmico. Nos ade-manes e afetações do travesti estaria sua “origem” barroca. Para o leitor que se regozija em reconhecer as charadas do discurso, são imanentes as ilações com a estética na qual irrompem antíteses: o cromatismo vibrante, o claro/escuro, a intensidade da luz. Con-siderada aberrante em suas diagonais dinâmicas, sua extravagância pictural, é a arte da tensão, do excessivo, do recamado; expressão máxima do dualismo e do movimento convulsivo. O movimento maneirista, por sua vez, consoante a História Geral da Arte, foi uma reação artística em que a teoria racional da perspectiva, o equilíbrio das formas e os ideais clássicos do belo estavam a caminho da expansão dos contornos barrocos;

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imitar a natureza é uma categoria estética. O maneirismo resume o processo de disso-lução do classicismo – o sentido rafaelesco da graça e da corporalidade das formas de Michelangelo em gestos e posturas.

Na menção ao conto de Guimarães Rosa (“A Terceira Margem do Rio”), a metáfora é literária, mas a realidade é carioca. O dialogismo presumido (Você não tira...”, “Você é que tem...”) confere ao chulo sua autenticidade. Jabor, na condição de cineasta, parece portar uma câmera fora de prumo, entre ambivalências de gênero: homem/mulher, ser/não ser, ensaio/crônica, expandindo analogias cinematográficas no destampatório de um pensamento em livre prospecção. A fraseologia sincopada enreda o leitor num anár-quico roteiro até o corte final, em prefiguração de tragédia clássica.

Para Marcelo Coelho, o termo ensaio sugere “certo descompromisso especulativo” em que “o mundo dos fatos, das obras de arte, dos livros famosos, das discussões políticas, o mundo ‘objetivo’, enfim, passa a ser tratado como matéria-prima da experiência pesso-al.” Articulista da Folha, ele surpreende não apenas pelo estilo titânico, mas pelas discus-sões em que se engaja; as investidas interpretativas e o fulgor imaginativo devem-se a seu extenso tirocínio humanístico. Exemplo de segmento de seu ensaísmo: Gak do barulho

(...) ‘Geleca’ era uma espécie de plástico vivo, rebelde a qualquer esforço de modelagem, com tremulações opacas de mercúrio. A superf ície tensa se rompe facilmente, com filamentos de chiclete. É o chiclete incomível em sua adiposidade gélida e nojenta. Manipulável e viscoso, matéria-prima do Nada, seio diminuto e flácido (...). Trata-se, a rigor, de um brinquedo educativo, pois mistura as sensações de prazer e de repulsa. O prazer que há em ter em mãos algo de esmagável, dócil ao contato. E a repulsa de perceber que, nessa forma vaga de vida, não há resposta ao contato f ísico, há só frieza estratosférica: e, na matéria líquida, pressente-se a contaminação de um grudento antinatural (...). Inventaram produto melhor. É esse ‘Gak do Barulho’ (...). Alegria das crianças, o ‘Gak do Barulho’ é uma máquina de promover sons reprimidos. Do estampido seco e triunfal à meditação lenta de um silvo sutil e penetrante, todas as gamas e matizes de digestão humana encontram, nesse aparelho, sua representação sonora. Borborigmas agônicos, revolvimentos indiscretos do duodeno, flatulências metralhadas ou bombas silenciosas do intestino grosso, o brinquedo ‘Gak do Barulho’ desenvolve e arbitra muitos dos fenômenos involuntários do organismo. É uma festa. As crianças aprendem pelo menos uma coisa: a ver os próprios prazeres digestivos em seu total ridículo, num estado de terceira pessoa, sub-espécie alteratis. É a máquina, não eu, quem fez esse barulho. De modo que, voltando ao raciocínio psicanalítico, que pode ser bem escandaloso às vezes, imagino que se a ‘Geleca’ ou o ‘Gak’ estrito senso faziam a criança abandonar o estágio oral, aquele em que a sexualidade se dirige ao seio da mãe, provavelmente o ‘Gak do Barulho’ força a criança a abandonar seu próprio erotismo anal – aquele que, em constipações e traques, em exibições sonoras e em discrições de roupa de baixo, em efusões de coprolalia e espremidos esfincterianos, era, segundo Freud, o segundo estágio

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f ísico do prazer. Pois agora inventou-se um aparelho capaz de conferir esses mesmos prazeres sem que as calças se sujem”.

Na desenvoltura argumentativa confirma-se um gênero herdeiro da fórmula de Montaigne. A verticalidade cobrada à crítica soma-se ao desprendimento estrutural da crônica reflexiva. O empenho descritivo sustenta uma análise essencialmente impres-sionista. À vontade com escatologias, Marcelo Coelho ultrapassa o senso comum, tra-zendo a psicanálise para o lúdico a fim de melhor interpretá-lo. A caracterização tátil, auditiva e visual é excitada antes pelo paroxismo imaginativo que pela percepção de sensações fisiológicas e psicológicas. Detendo-se numa inusitada descrição de processo (o manuseio de uma engenhoca), o ensaísta desafia o saber prévio do leitor.

Crítica e resenha – a arte de julgar

“Caro Sr. Milland, sou fã devotado de cinema e alcoólatra crônico. Nunca fui tão tocado por qualquer filme como fui por ‘Farrapo Humano’. Depois de ver

seu retrato magistral de um bêbado nesse filme, resolvi abandonar...o cinema”. (Bilhete dado a Ray Milland, protagonista de ‘Farrapo Humano’, 1945)

Por que temos que ficar farejando arte onde as pessoas estão procurando diversão? (A.O.Scott, N.Y.Times)

Honoré de Balzac considerava todo crítico um autor impotente. Idiossincra-sias e preferências estéticas podem gerar apreciações controversas ou arbitrárias, es-pecialmente quando se discute, na contramão do gosto do leitor, o valor artístico de determinadas produções da cultura de massa. A palavra crítica, que deriva do grego krinein=quebrar, está também na raiz de crise (lembrando Arthur Nestroviski, quebra-se uma obra em pedaços, pondo em crise a ideia que se fazia dela).

João Marcos Coelho lembra que, assim como Sartre, Wittgenstein apreciava fil-mes de faroeste e romances policiais, sobretudo os mais populares (gêneros despreza-dos pelos intelectuais europeus). Assegurando nosso caráter polifônico, João M. Coelho (retomando a esquematização marxista segundo a qual gosto e classe relacionam-se) afirma que a elite gosta de música erudita e arte moderna abstrata; a classe média fica com a porção menos provocativa das artes de vanguarda, mas diz que adora a grande arte; e o populacho curte mesmo a música popular e as telenovelas – divertimento bá-sico do chamado “lixão cultural” televisivo. Produtos eruditos (teatro, ópera, concertos, bienais), destinam-se quase sempre a uma elite, afirma Jorge da Cunha Lima, sobrando para o resto da sociedade cardápios que dispensam a mediação da inteligência: produ-

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ções ditas cultas são referendadas, por exemplo, pelo meio acadêmico e pelos círculos de leitura – mecanismos institucionais que realimentam o circuito ideológico de uma obra, reconhecendo-a como “artística” ou “elevada”.

O descontrolado movimento da população afluente ao mercado, explica Fábio Lucas, dita decisões de consumo na sociedade industrializada, cujos produtos parecem submetidos a teorias socioanalíticas: a indústria cultural pertence à estratégia expansionista da produção de símbolos e do controle da informação: “A obra literária é, por natureza rebelde e apologista da liberdade. Eterna protagonista de protestos. (...) Para efeito comercial, alguns autores preferem explorar os textos repugnantes, impregnados de linguagem tatibitate, de cenas de violência e sexualidade explícita, fisiológica, apoiada em palavrões, distante do jogo amoroso. Dirigem-se os autores a um público massificado, destituído de formação mais sofisticada. Evita-se a visão armada, apta ao exercício da escolha, já que o gosto literário se tornou manipulado pelo monopólio da informação”. (2010:37)

O julgamento do gosto sofre condicionamentos, exemplifica Antonio Candido: “Em 1837 Liszt deu em Paris um concerto onde se anunciava uma peça de Beethoven e outra de Pixis, obscuro compositor já então considerado de qualidade ínfima. Por inadvertência, o programa trocou os nomes, atribuindo a um a obra do outro, de tal modo que a assistência, composta de gente musicalmente culta e refinada, cobriu de aplausos calorosos a de Pixis, que aparecia como sendo de Liszt, e manifestou fastio desprezo em relação a esta, chegando muitos a se retirarem. Este fato verídico ilustra, com mais eloquência do que qualquer exposição, o que se pretende sugerir, isto é, que mesmo quando pensamos ser nós mesmos, somos público, pertencemos a uma massa cujas reações obedecem a condicionamentos do momento e do meio.” (1967:41)

Reservada ao caderno cultural, a crítica é gênero cujo conteúdo, forma e dimensões éticas apresentam problemas que começam nas limitações de espaço e estendem-se ao requisitório do qual fala Marcelo Coelho: “a multiplicidade de assuntos a serem cobertos, a luta pela superação do subjetivismo e do arbítrio individual do jornalista, a correspondente tendência para a ‘hiperobjetividade’ das estatísticas (bilheterias, listas dos mais vendidos, números do Ibope), muitas vezes acompanhada de uma excessiva submissão ao gosto do público ou à pura linguagem do marketing cultural” (2006:348). Sobre seu exercício como crítico, ele admite: “o sujeito se torna arrogante, vaidoso, cria a seu respeito a ilusão de ser o dono da verdade, e cria sobre o mundo moderno a ideia de que tudo é sinal de decadência e degeneração.”

José Geraldo Couto, discorrendo sobre cadernos culturais, aborda questões de suscetibilidade quando críticos “assumem um tom palpiteiro, ofensivo, maledicente (...): quanto mais leve, frívolo e desinformado for o texto, mais chance ele tem de conquistar a simpatia imediata do leitor médio, corrompido sistematicamente pela idiotia televisiva, pela triunfante cultura do imediato e do superficial. (...) Os intelectuais e críticos convidados a ocupar esses suplementos o fazem com ensaios palavrosos e não raro ininteligíveis, como a querer defender sua seara da invasão dos bárbaros da

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incultura de massas.” (1995:5) Criando “zoometáforas”, Cesare Sagre classifica os críticos literários segundo uma provocativa fauna metafórica: os cucos têm inveja dos escritores; os camaleões mimetizam-se na obra que estudam; os pavões preocupam-se em mostrar o próprio gênio.

Ser potencialmente polêmica é um atributo ao qual a crítica não deve ceder; cabe ao gênero restringir-se a ideias e não a pessoas, observa Luiz Zanin Oricchio quanto à literatura. Afirmando que a crítica jornalística é “muitas vezes esnobada” por sua congênere universitária, Wilson Martins assegura que, na universidade, não se faz crítica, mas ensaio. Mas é Oricchio quem completa: “O ensaísta só vem depois do crítico e trabalha justamente sobre o longo assentimento forjado por gerações de críticos que tiveram o topete de dar sua opinião”. A cultura geral, por exigência, implica a recusa da especialização (“a erudição de nada vale sem a intuição e vice-versa”):“quem sabe só literatura não sabe nem literatura.” (2001:D-4)

Cabe situar também os limites que sutilmente apartam a resenha e a crítica, na proverbial definição de Wilson Martins: “o leitor da resenha quer ser informado; o leitor da crítica quer ser obrigado a pensar”. Há jornalistas que consideram tênue ou inexistente uma distinção, em razão da equivalência de procedimentos, já que, de acordo com Daniel Piza, ambos os gêneros referem-se à veiculação de bens culturais (livros, discos, shows, lazer em geral). Ele enumera os atributos que uma resenha deve apresentar: “Primeiro, todas as características de um bom texto jornalístico – clareza, coerência, agilidade. Segundo, deve informar ao leitor o que é a obra ou o tema em debate, resumindo sua história, suas linhas gerais, quem é o autor etc. Terceiro, deve analisar a obra de modo sintético mas sutil, esclarecendo o peso relativo de qualidades e defeitos, evitando o tom de ‘balanço contábil’ ou a mera atribuição de adjetivos. Até aqui, tem-se uma boa resenha. Mas há um quarto aspecto, mais comum nos grandes críticos, que é a capacidade de ir além do objeto analisado, de usá-lo para uma leitura de algum aspecto da realidade.” (2003:76)

José Marques de Melo classifica a resenha em quatro categorias: clássica, relatorial, panorâmica e impressionista, algumas das quais Daniel Piza endossa: “As resenhas mais rotineiras são chamadas ‘impressionistas’, em que o autor descreve suas reações mais imediatas diante da obra, lançando adjetivos para qualificá-la”. Há ainda aquela que aponta aspectos estruturais da obra, características de linguagem e eventuais transformações ao longo do tempo. Outra resenha “muito comum no jornalismo brasileiro” concentra-se no autor, sua importância, “seus modos, seus temas, sua recepção”, em lugar de “analisar aquela obra específica ou sua contribuição intelectual ou artística no conjunto”. Para ele, “a boa resenha, portanto, e ainda que em pouco espaço, deve buscar uma combinação desses atributos: sinceridade, objetividade, preocupação com o autor e o tema.” (2003:77)

Contextualizando o jornalismo cultural, Daniel Piza condena juízos de valor e alinha competências: “argumentar em defesa de suas escolhas, não se bastando apenas em adjetivos do tipo ‘gostei’ ou não gostei’(...). Isso tudo significa escrever bem: evitar o

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banal, evitar o exagero e o deslumbre (como confusão entre o autor e o personagem (...), autor e obra)” (2003:77-78). Renato Janine Ribeiro questiona a validação hegemônica da mídia: “Sei que comprei vários livros por causa da crítica e os detestei”. A propósito de temas e linguagens questionáveis no cinema, o crítico e ensaísta Nelson Ascher sentencia filmes “descaradamente manipuladores e demagógicos, tão mecânicos e transparentes em sua em sua má-fé”, que levam o espectador atento a se sentir a um tempo vítima e cúmplice de uma trapaça. Ele cita “Sociedade dos Poetas Mortos”, película que criticou como uma “abominação”, provocando a ira dos leitores.

Uma “retórica institucional”, segundo Bardwell, teórico do cinema americano, explica a crítica como ramificação da publicidade da indústria cinematográfica, porque promove o filme e potencializa “o costume de ir ao cinema. Como parte do jornalismo, a crítica de cinema opera dentro da categoria discursiva da ‘notícia’; como ramificação da publicidade, utiliza material dos discursos da indústria cinematográfica; como tipo de crítica, baseia-se em certas formas conceituais e linguísticas, especialmente aquelas que implicam descrição e avaliação. E como retórica, utiliza as táticas e estratégias tradicionais”.

Importa ainda contrapor o cinema “comercial” (padrão de produtores e estúdios) ao “de autor” (experimentação, ousadia, estilo acima dos padrões – enquadramento, movimento de câmera). Cássio Starling Carlos, sobre a preocupação classificatória, reprova excessos: “nosso hábito, que virou mania, de distinguir filmes comerciais de filmes de autor acabou fortalecendo um maniqueísmo nefasto tanto para nosso juízo como para quem cria”. A norte-americana Pauline Kael saiu em defesa da subjetividade: “Se um crítico não pode empolgar-se, de que serve um crítico?” Para Nelson Ascher, ela foi um “exemplo de inteligência”, acreditando “que cinema de verdade é o de público, grande público, pois se trata mesmo de cultura de massa”. Kael condenava expressões vagas, imprecisão e generalidades. Sua crítica cobriu toda a produção cinematográfica da segunda metade do século 20. Sob seu ponto de vista, “A Primeira Noite de um Homem” (dir. Mike Nichols, Oscar de melhor filme em 1968), é um psicodrama: “o formato representava a verdade; os mais velhos, a impostura e a sexualidade corrupta. E essa visão de ‘fosso geracional’ entre juventude e velhice entrou na corrente sanguínea americana; muitos espectadores iam ver o filme repetidas vezes” (2004:124). Numa reexibição no Brasil, o Guia da Folha registrou a rara unanimidade de seus cinco críticos na cotação máxima:

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Quanto à crítica de artes cênicas, Bárbara Heliodora assim designa a função que exerceu por mais de 60 anos na imprensa carioca: “Numa crítica honesta, detalhada, arrazoada, os realizadores teatrais terão a sua melhor orientação a respeito do desenvolvimento de seu trabalho, e ao crítico não deve faltar nem o entusiasmo pelo que é bom, nem a condenação do que é mau, pois tanto uma observação como a outra terá seu justo lugar quando feita dentro de um critério estético reconhecível” (2007:67). A arte teatral exige do crítico o saber indispensável que lhe dá autoridade para discutir propostas cênicas (autores, montagens, movimentos artísticos, correntes estéticas). Já Sérgio Sálvia Coelho, especifica que o crítico deve instigar, pois o endosso pleno é tarefa do divulgador, e a condescendência é a pior forma de desprezo.

Para Susana Singer, há que se evitar o exibicionismo estilístico: expressões incompreensíveis, porque vagas e retóricas, configuram mau jornalismo. Ombudsman da Folha, ela põe em questão a cobertura do jornal, citando trechos inviáveis: “Suas falas fluem como jorros assonantes de significados múltiplos condensados”; “tensiona fronteiras entre territórios estáveis da dimensão espetacular para encontrar novos limites”; “num mundo cada vez mais ‘pirandelliano, em que milhares de verdades habitam uma mesma realidade, a peça decreta o respeito à liberdade absoluta da incerteza”. (2011:A-8)

Embora o teatro seja para todos, as críticas são para poucos, prossegue Singer: “a preocupação em ser compreensível não existe. Os textos, alguns inexpugnáveis, são feitos para os que trabalham na área ou para ‘eruditos’. O leitor, coitado, termina sem entender o que é a peça e sem condição de decidir se vai ao teatro ou se corre para o cinema. Mesmo quando se trata simplesmente de apresentar uma estreia, não de criticá-la, muitas vezes o jornalista se esquece de resumir a trama, citar os atores, dar a duração do espetáculo. Há uma preocupação excessiva com a cenografia, a luz e com referências a outros dramaturgos, que, em geral, fazem parte do repertório de quase ninguém.”

Com relação à crítica de música, Álvaro Pereira Júnior sugere que o domínio de alguma base técnica é desejável, mas não essencial. Mais importante é entender da história do gênero musical a ser criticado, saber contextualizar informações, escrever corretamente, não errar informação. Apontando vaidades (“críticos que sabem demais escrevem para outros críticos, para músicos e nerds de música”), ele propõe sete dicas para quem aspira à função: “1) Ouça música desesperadamente. Você não precisa ser músico, saber diferenciar um ré de um mi. Mas precisa ter conhecimentos históricos (...). 2) Leia livros e revistas (...), para chegar a um jeito próprio de escrever (...). 3) Apren-da inglês. Cerca de 99,99% do que conta no chamado “mundo das artes” acontece em inglês. (...) 4) aceite sua insignificância. Ninguém saudável compra ou deixa de comprar um CD por causa de uma crítica.(...) O leitor normal – aquele que tem uma vida, famí-lia, amigos etc. – está pouco se lixando para o que o crítico pensa. 5) Não fique amigo

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dos músicos (...), se fizerem um disco ruim, é isso que você tem que dizer. 6) Pratique a crítica construtiva.(...) No Brasil, a prática do compadrio e da ‘brodagem’ é recorrente entre jornalistas, músicos e gravadoras (...). 7) As críticas assinadas são uma parte muito pequena do que o jornalista faz na redação, o que inclui (...) escrever títulos, bolar legen-das de fotos, escrever matérias não-assinadas (...), ser esculachado pelo chefe” (2008:E9). Um mix de resenha e crítica: Relíquia macabra de Cazuza chega às lojas

Objetos funerários sempre causam o ‘frisson’ selvagem do público, sobretudo quando se trata de pop. Vide Jim Morrison, Janis Joplin, Jimi Hendrix e Orlando Silva – todos alvos de um desabusado xintoísmo de massa. Um novo ex-voto macabro chega ao mercado esta semana prometendo êxito e lágrimas (...). O disco não passa de fruto de um artista perdido e cego para o amanhã. É despojo composto de 10 faixas não incluídas no álbum duplo ‘Burguesia’ (1989) (...). Soa amanhecido. (...) A voz de Cazuza – um trapo – (...) se atreve em outros três ‘remakes’ de chorar (...). Mas não há prótese que recobre a não-voz. (...) Trata-se de um disco inaudível porque documenta um percurso findo e mal-articulado. A eternidade é um gênero de dif ícil prática e, para quem ansiava por ela, esse ‘Por aí...’ tem o efeito inverso: consiste num produto com validade vencida, tributário de uma errância excessiva. Cazuza consolidou seu sucesso ao construir sua própria arte tumular. Foi um Tutankamon do pop brasileiro. Como o faraó, Cazuza autofetichizou-se necrofilicamente. Em vida, tratou de lançar em torno de si a fumaça da ameaça letal, chamando atenção para sua estética tardo-contracultural. Após o último êxtase de consumo que deve provocar, vai esperar três milênios para adquirir algum interesse arqueológico. (...) Em Cazuza, a morte cumpriu função de melancia no pescoço. Não precisava disso. Deveria ter tido consciência de parar enquanto era tempo.” (Luís Antônio Giron, Folha de S. Paulo)

Como resenha, são avaliados os principais aspectos da antologia musical; como crítica, o título justifica a opinião extremada: seu campo semântico é uma isotopia funé-reo-predatória cujos deméritos tecem uma mortalha retórica sobre o cantor e sua obra lançada postumamente. Giron apontou para o produto, mas alvejou o defunto, supondo um oportunismo mercadológico. Para Daniel Piza, “o crítico não deve fazer ataques pessoais; mesmo que uma obra o desagrade fortemente, é ela que você deve criticar, não o artista em si e sucumbir ao vedetismo, buscando efeitos para impressionar o leitor. Infelizmente, no Brasil, essa tradição é comum.”

A seguir, resenha que mimetiza uma obra: Alemão escreve romance com apenas um ponto final

A editora Tordesilhas está lançando no Brasil o mais novo experimento ficcional do escritor alemão Friedrich Christian Delius, o romance ‘Retrato da Mãe Quando Jovem’, uma obra que explora todas as potencialidades das orações subordinadas e relativas, ao construir uma prosa de fôlego, que procura prender o leitor ao longo de um parágrafo único, com apenas um ponto final – como este texto –, no fim da obra, pois, segundo

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o autor, ‘enquanto escrevia, percebera que estava muito dif ícil colocar um ponto final, por causa do ritmo do texto, da respiração, do pensamento, que estavam estreitamente conectados na narrativa, de modo que não cabia ponto final’, diz o vencedor, no ano passado, do Georg Büchner Preis, principal prêmio literário em língua alemã (...), ao alcançar o tão aguardado ponto final, deixa o leitor em vias de desespero, querendo mais linhas do arrojado relato.” (Marcio Aquiles, Folha de S. Paulo)

Em duas longas colunas, o texto decalca a linguagem vertiginosa do romance re-

senhado. Simulacro de um desatado fluxo de consciência, os processos de subordinação excessivamente articulados geram a repetição viciosa do que (queísmo), num aranzel fraseológico. Na recusa das pausas convencionais, o resenhista admite a metalingua-gem, exaurindo o leitor, impelido compulsivamente ao fim do derramamento textual. Assim enleada, a resenha atípica condensa literatura e jornalismo, radicalizando a con-cessão à estetizada prolixidade.

No exemplo seguinte, um trocadilho no título opõe dois gêneros: Críticos esporti-vos e cronistas de artes

(...) Em arte, temos um ‘crítico’. Em esportes, apenas um ‘cronista’. (...) Mas as diferenças não param na semântica. No dia a dia, elas também podem ser observadas. Por exemplo, se o crítico e o cronista forem a uma festa, o anfitrião servirá um scotch 12 anos ao primeiro, mas para o segundo vai perguntar: “E aí? Vai aquela caipirinha?” Com a comida não será diferente. Enquanto o crítico é contemplado com um coquetel de camarões, o cronista recebe um prato com fatias de salaminho. Da sobremesa, nem farei comentários, apenas digo que as opções são crepe flambado e gelatina. Alguns leitores podem crer que essa discriminação tem origem numa real superioridade do crítico sobre o cronista. Nada mais equivocado. Se uma dessas duas críticas é hoje superior, sem dúvida é a esportiva. Tendo-se em vista que um bom crítico deve ter imparcialidade, relatividade e clareza, façamos uma comparação item por item: Imparcialidade: poucos textos são mais parciais do que as críticas sobre artes. Dependendo se o crítico tiver ou não simpatia pelo autor, um filme tanto pode ser monótono como reflexivo, e um livro tanto pode ser considerado ágil como superficial. Já o cronista de esportes não sofre desse mal. Mesmo que seja um santista fanático, falará mal de Zetti se ele tomar um frango e bem de Marcelinho se ele fizer um golaço. Relatividade: muitas vezes o crítico coloca sua opinião como verdade. É raro ler-se numa crítica palavras como ‘eu acho que’ ou ‘para meu gosto, esse filme..’. A opinião é sempre taxativa. Em geral, eles dizem ‘esse filme não vale nada’ ou ‘os diálogos são desencontrados’. Já os cronistas esportivos têm um espírito muito mais democrático e aberto a outras opiniões.(...)O crítico de esportes entende que sua opinião é uma observação particular, e não um postulado de Euclides. Clareza: filha do beletrismo, a crítica das artes aborrece-se da objetividade. Seu prazer não está em dizer algo como: ‘Amaral não jogou bem. Fez apenas cinco desarmes completos e, dos 23 passes que deu, errou 14’. A crítica artística

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prefere algo como: ‘Frederic conduziu a aveludada orquestra com emoção contagiante e fez dessa peça setecentista uma grandiosa epifania.’ Muito adjetivo, pouco substantivo. Enfim, creio que a crítica esportiva evoluiu do primitivismo romântico para a análise mais confiável, porque se tornou mais racional, deixando o emocionalismo tribal restrito às torcidas. Já na crítica de artes ainda venera a nebulosidade, a imprecisão e a tempestade de adjetivos. Talvez ela esteja precisando de uma caipirinha. (José Roberto Torero, Folha de S.Paulo)

Usando da metalinguagem para questionar a crítica de artes, José Roberto Torero faz espirituosa crônica sobre prerrogativas imerecidas por parte dos críticos (cujo status e artif ícios verbais impressionam) e o desprestígio de cronistas de esportes (cuja lingua-gem é precisa e destituída de adjetivação pretensiosa). Simulando didatismo, ele moteja sobre diferenças estéticas: a impertinente afetação de um lado (extensão do discurso das artes) e a objetividade de outro (inerente ao meio esportivo). É apologético sobre o assunto que domina (futebol) e irônico sobre o gênero que pratica (crônica).

Perfil e Perfil de obituário – gêneros de vida e morte

“(...) se você tiver que morrer, é melhor morrer no ‘Times’.” (A.M. Rosenthal, N.Y.Times)

Encontramos o perfil no jornalismo como um fragmento ou súmula da biografia de um entrevistado ou de alguém cuja história de vida e personalidade interessam ao leitor, seja uma celebridade, um herói ocasional, ou mesmo um notório sociopata (a mídia se farta em exemplos). A reportagem, a entrevista, a resenha, a crônica estão entre os gêneros que comportam o perfil. Os estudiosos concordam: o humano é sua fonte primordial. No perfil (que contribui para diminuir a rigidez de outros gêneros, como a notícia e a reportagem),“é possível criticar sem ofender; alfinetar sem ferir; homenagear sem trair; retratar sem granular”, sublinha Sérgio Vilas Boas (2003:16). Considerando perfil um “gênero interessante de reportagem interpretativa”, Daniel Piza afirma que o jornalista deve contar passagens relevantes da vida e carreira do entrevistado, “colher

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suas opiniões ouvir o que dizem dele os amigos e os inimigos – em geral, os perfis ter-minam sempre glamourizando o personagem ou desancando-o”.

Apresentando o gênero como próprio à reportagem descritiva, Muniz Sodré e Maria Helena Ferrari afirmam que, mesmo uma personagem de projeção secundária, destaca-se num recorte ilustrativo (uma interrupção da narrativa principal), tipificando um perfil compacto – miniperfil. Confirma-se, assim, um gênero inserido em outro, como um subgênero descritivo. Já Oswaldo Coimbra, designa o perfil como reportagem narrativo-descritiva de pessoa. Em seu caráter humanizante, o gênero pode lembrar, ainda, a jornada do herói mítico, tema ao qual se dedicou Mônica Martinez, a propósito de narrativas biográficas curtas. Nessa linha, precedeu-a Edvaldo Pereira, que ressalta o foco na experiência humana frente ao que há de rígido, cartesiano e funcionalista no jornalismo convencional.

A composição do perfil descortina, pois, traços personalistas e experiências vitais, resultado de entrevista com o próprio perfilado ou com alguém que tenha privado com ele. A exemplaridade de um perfil indireto, tomado às circunstâncias, é devida a Gay Talese, que espreitou um dos mais populares cantores dos anos 50/60, a quem não con-seguiu entrevistar. A celebridade e seus achaques resumem-se no título: “Frank Sinatra está resfriado”. Na sequência, um inventivo cruzamento de reportagem e perfil, “Tudo sobre meu pai – Dalma Maradona conta como é ser um esperma de Deus”:

(...) Dalma Maradona estreou em Buenos Aires numa peça sobre a relação dela com o pai, Diego Armando. Título? Filha de Deus. É mais ou menos como se o filho de Pelé, Edinho, saísse por aí dizendo que é Jesus. Mas na Argentina ninguém estranhou(...). Tendo acabado de chegar de Dubai, onde exercia as funções de técnico, Deus, ele mesmo, estaria na plateia. Dalma avistaria também a mãe, Claudia Villafañe, uma Nossa Senhora loira e divorciada. O ator Ricardo Darín era outro que refulgia nessa noite repleta de figuras divinas da corte celestial portenha. (...) Vinte e cinco anos, baixinha como Maradona e loira falsa feita a mãe, Dalma conta que foi uma adolescente rebelde que buscava compreender a adoração desmedida que os argentinos têm pelo pai. Maradona entrou para o panteão dos deuses meses antes de Dalma nascer. Quatro anos antes, o poderio militar britânico havia recuperado a soberania das ilhas Malvinas, chaga aberta no corpo da nação argentina. O resto se sabe: dois gols para a história; um deles considerado o mais belo de todos os tempos; o outro, tido como a maior de todas as burlas. (...)“Fiz o gol com a cabeça, se houve mão, foi a mão de Deus”, declarou logo depois, canonizando o próprio punho. Quando a filha veio ao mundo, em 2 de abril do ano seguinte, a Argentina já se convertera à adoração coletiva de seu pai. Os jornais declaravam que Maradona era mais famoso do que Jesus e, presume-se, também John Lennon. Seu rosto e sua mão foram tatuados na pele de um sem-número de fiéis (...)Fez-se campanha para estampar a cara de Maradona na nota de 10 pesos, o número de Sua santa camisa. Algum burocrata amargo não permitiu.Em 1998, talvez descontentes com os rumos seculares do maradonismo,

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uma ala mais radical de crentes fundou a Igreja Maradoniana. Localizada em Rosário, a igreja realiza casamentos em volta de uma bola. Os fiéis estão no ano 51 d.D (depois de Diego) e o ano-novo é comemorado em 30 de outubro, aniversário Dele. Nos cultos, reza-se o Pai-Nosso: “Diego nosso que está no estádio. Santificada seja Sua esquerda. Venha a nós a Sua magia. Que seus gols sejam recordados assim na terá como no céu. (...) Não nos deixais cair em impedimento, mas livrai-nos de Havelange e Pelé. Certo dia Dalma foi parada na rua por um homem que estendeu a mão para tocá-la, sob o argumento de que ela era um “esperma de Deus”. (...) Emocionado com a homenagem, o Divino Soluçante subiu ao palco e se jogou nos braços da filha. (...) Alguém pergunta que nome daria a uma peça sobre Dalma. “Pai da Deusa”, respondeu, triunfante.” (Kelly Cristina Spinelli, “piauí”)

Parodiando o título de um filme de Almodóvar, a cobertura de uma estreia teatral reúne aspectos pitorescos da vida do ex-jogador Diego Maradona, reverenciado como deidade argentina: descrevem-se feitos e comportamentos de um venerando persona-gem, egresso do futebol e elevado à condição de objeto de culto nacional. A aura de sa-cralidade compreende um campo semântico cujo tom viperino e galhofeiro dá nuances de crônica à reportagem, entremeando contexto cênico, episódios futebolísticos e até conflito bélico – pauta que se cumpriu pela sutileza em pontuar o miniperfil de uma personalidade polêmica, em detalhes ora graves, ora prosaicos, num estilo coloquial e bem-humorado.

José Marques de Melo qualifica o perfil entre os gêneros interpretativos; já a infor-mação de necrologia, corresponde a um serviço utilitário. O perfil necrológico, tradição em jornais americanos e europeus, é poético tributo a pessoas comuns, especialmente sob a assinatura de jornalistas que dão dimensão literária ao gênero. William Vieira, cuja rotina de trabalho foi descrita na “piauí”, prefere o tipo “personalidade B”: anônimos, mas reconhecidos em seu meio. Precavido, mantém um banco de mortos (brinca, di-zendo que ninguém morre na quarta-feira). Costuma fazer mais de um perfil, publica o melhor e deixa o restante numa espécie de purgatório. Interessando-se por um finado, procura informações sobre ele e telefona para a família, que, inicialmente, estranha o motivo do contato.

Uma antologia com 57 necrológios jornalísticos de pessoas anônimas (“mas im-portantes pelo que fizeram”), “O Livro das Vidas” (organizado pelo jornalista Matinas Suzuki Jr.) foi resenhado por William Vieira, que nobilita o gênero e seus mestres, como Alden Whitman, por cujo estilo tornou-se o pai do obituário moderno, pois entrevistou os perfilados, em vida, sobre a própria morte. O “Times” já teve mais de 2.000 textos prontos “na gaveta, à espera da morte”. Entre dezenas de exemplos, um episódio ficou notório: o escritor Ernest Hemingway, tido por morto, acabou lendo o próprio obituário – “o que continuaria fazendo, todas as manhãs, com uma taça de champanhe”.

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Para Matinas Suzuki Jr., o gênero chegou perto do jornalismo literário; sua valori-zação difere entre as culturas anglo-saxã, que celebra o morto, e a ibero-católica, estig-matizada pela dor e pelo silêncio. O que se pretende é mudar a morbidez do obituário: “Uma boa história humana, próxima e bem narrada, é tudo o que o leitor quer no café da manhã”. Na sequência, um perfil in-memoriam no qual a vida íntima é posta em relevo, ao gosto do público masculino: Ronaldo Bôscoli.

Veja você, caro leitor, como os agraciados com dom de ser playboy conseguem transpor obstáculos que normalmente afastariam os simples mortais do maravilhoso mundo do bon vivantismo. Tome o exemplo de Ronaldo Bôscoli, que nunca soube tocar um instrumento sequer e, ainda assim, tornou-se um dos maiores nomes da Bossa Nova. Carioca stricto senso, Bôscoli gastava seus dias observando beldades na praia e as noites se dedicando a elas nos bares, onde fez brilhante carreira – especialmente entre belas cantoras. Perceba a perspicácia do rapaz: antenado com o que havia de mais bacana na época, intuiu que comandar espetáculos nas boates do lendário Beco das Garrafas poderia ser uma boa opção para ampliar seu leque de contatos. Acabou amigo da nata do banquinho e violão, conhecendo também muitas da garotas bronzeadas com corpinho de violão que costumavam escoltar essa rapaziada. Assim, cercou-se de amigos famosos e sempre circulou muito bem acompanhado: era cunhado de Vinícius de Moraes e andava com Tom Jobim, Carlos Lyra e João Gilberto. Com o violoncelista Roberto Menescal, escreveu as letras de clássicos do gênero como ‘O Barquinho’ e ‘Nós e o Mar’, que facilitaram bastante o exercício de passar o rodo, isto é, seduzir cantoras e aspirantes bossa-novistas. Tanto é que conquistou a ninfeta Nara Leão quando ela tinha 15 anos (sim, é isto mesmo), frequentando o famoso apartamento da família da moça em Copacabana. Chegaram a ficar noivos, mas notícias de jornais dando conta de que Bôscoli andava se engraçando para os lados da cantora Maysa demoveram Nara da ideia. Uma saída clássica para a velha armadilha do casório. A próxima a cantar baixinho no ouvido de Bôscoli foi Elis Regina. Com esta não teve jeito. Entre gritarias e brigas públicas, o casamento durou cinco anos. Bôscoli ainda viveu com a atriz Mila Moreira e com a advogada Heloísa Paiva. Morreu ao 58 anos o Playboy da Bossa Nova que nunca dispensou uma garota de Ipanema.” (Jorge Lukács, Revista “Playboy”)

Quando o glamour do perfil transforma em picardia o que há pode haver de paté-tico no obituário, sobrevém um estilo que a revista Playboy urdiu para leitores chegados às insinuações do discurso erótico, num aparentemente improvável perfil necro-lúbrico. A bossa nova personifica-se em Ronaldo Bôscoli no cenário carioca dos anos 50 e 60, numa homenagem maliciosamente póstuma. Suas surtidas amorosas (em simbiose com a vida profissional) são laudatoriamente rememoradas em detalhes aos quais não faltam lascívia e humor: artistas com quem privou e lugares em que, por privilégio, reinou, são reunidos num apanhado de boutades, com espontaneidade de conversa de bar.

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Imprensa fescenina e sátira visual

“O riso celebra sua liturgia, confessa seu símbolo da fé, une pelos laços do matrimônio, cumpre o ritual fúnebre, redige epitáfios, elege reis e bispos.” (Mikhail Bakthin)

Entre os gêneros verbal e não verbal, a paródia produz ironia, mordacidade, humor crítico. Exorbitando elementos do original parodiado, do qual muitas vezes reconhece-mos somente vestígios, sua intenção transgressora incide sobre o repertório ilimitado de valores estratificados e dos múltiplos códigos básicos da cultura. O primeiro exemplo em epígrafe – o clímax de uma narrativa infantil (“Os três Porquinhos”), na versão do cartunista Laerte, apresenta-se com características de cartum (um único quadro) e de HQ (o balão). O segundo exemplo, uma premiada caricatura do ex-presidente Lula, as-sinada pelo colombiano Omar Turcios, encontra ressonância no grotesco.

No terceiro exemplo, a blague do chargista Benett: um esmoler, entregue à própria penúria à frente de um outdoor, supõe incidental interferência num slogan ufanista (que anima políticos carreiristas de todas as siglas). O ruído semântico (o arremedo de um “f”) produz o alento sardônico. A charge alimenta-se da atualidade, do que há de execrá-vel no cenário socioeconômico e político – temática atemporal (porque perversamen-

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te continuada), favorecendo a migração do gênero, que se permite ler também como cartum. Se expressões chulas e impropérios são interditos nos segmentos nobres do jornal (Primeira Página ou editorial, por exemplo), a linguagem do humor visual ignora melindres e impõe ousadia.

Em 25 de julho de 1822, a primeira edição de “O Marimbondo” trazia como cari-catura um corcunda (os portugueses) perseguido por marimbondos (os brasileiros): sa-tirizava aqueles que se curvavam às ideias liberais, explica Luciano Magno sobre o con-texto favorável à criação da caricatura, numa imprensa nascente, com sentido nativista. Em 1837, Manoel de Araújo Porto-Alegre tornou-se o primeiro caricaturista profissio-nal do país. Entre 1864 e 1865, o pintor italiano Ângelo Agostini, chargista, ilustrador e retratista, um dos pioneiros do desenho satírico e da história em quadrinhos, publicou em São Paulo o semanário humorístico “Diabo Coxo” (anterior à imprensa fescenina): de circulação dominical e grande espaço dedicado às ilustrações em tom de mofa, tinha como propósito “escancarar os segredos da vida paulistana.” (Hughes, 1994:66)

A sátira visual no jornalismo é confiada ao cartum e à charge, como ilustração bufa. O cartunista Jaguar compara o cartum ao uísque (desobrigado de prazo de valida-de), qualificando-o como gênero de humor que prescinde de contexto exterior – fonte da charge. O cartunista Laerte resume afinidades: charge é um cartum editorial; cartum é um desenho de humor – a primeira, toma acontecimentos de repercussão midiática (a política é majoritária); o segundo, atemporal, apropria-se de qualquer tema. Variantes caricaturais particulares podem ser produzidas até por meio de um aplicativo para ta-blet, que permite fotografar um rosto, comprimi-lo e esticá-lo, hiperdimensionando-o ou minimizando-o em repuxos ridículos. Os resultados são risíveis momices, anamor-foses, reduções ou inchaços, em múltiplos ângulos.

Sob o condão do deboche, a paródia na imprensa ganhou contornos de brasilida-de. Em seu estudo sobre periódicos de teor obsceno publicados ao longo do século XIX (especialmente em sua última década, quando já ascendia uma imprensa industrial), Dino Preti aponta o crescimento da publicação de tabloides da “imprensa fescenina” (artesanal, fortuita, de circunstância); alguns avançaram mais de meio século.

No contexto heterogêneo do periodismo que florescia, Preti identificou a imitação de congêneres parisienses. Destacaram-se dezoito títulos (entre os quais “O Coió”, “O Rio Nu”, “Tam-Tam” e “Está bom, deixa”). Dúbia e maliciosa na linguagem, sua licencio-sidade incluía trocadilhos, pequenas narrativas, versos de motivos libertinos, comen-tários crítico-humorístico, capítulos de folhetim, piadas, charadas, mexericos, palpites para jogo do bicho, intrigas de bastidores teatrais e propaganda. Seus redatores e cola-boradores, com pseudônimos, eram boêmios cariocas (entre os quais Arthur Azevedo e Olavo Bilac); no tom faceto e na identificação burlesca, essas produções correspondiam ao estilo e à ideologia da vida boêmia da belle époque.

A comicidade nativa, em sua função democrática e emancipadora, recebe atenção de Nicolau Sevcenko, que configura a belle époque na passagem da sociedade escravista

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para o trabalho assalariado, sob uma crise histórica de amplas proporções: “engastada entre o peso de um passado do qual nunca se livrou e os impulsos de uma modernidade que nunca assimilou por inteiro, a nação se tornou presa fácil de uma horda implacável de pândegos, estroinas e debochados, algozes das elites e heróis aclamados do popu-lacho”; num país incapaz de definir sua identidade e consolidar instituições, desfilava, impune, na mídia de então, entre versos desaforados e ilustrações hilárias, uma legião de bufões, pacholas, chacoteiros. (2002: E-1)

Entre os anos 60 e 70, período mais repressivo da ditadura militar, o tabloide independente “O Pasquim” tornou-se referência à renovação da linguagem na imprensa; uma voz de resistência e provocação. Lançado alguns meses após o AI-5 (ato institucional que restringia liberdades civis), é parte importante da história midiática. Colaboraram cartunistas, artistas e intelectuais. Jaguar lembra que o nome do semanário alternativo era uma afronta à grande imprensa, que “iria criticá-lo, chamando-o de pasquim”. Seus articulistas ousaram com textos que mais lembravam uma conversa com o leitor: “embora a modernização da imprensa brasileira seja anterior a seu advento, ‘O Pasquim’ mudou convenções e imprimiu um tom mais autoral e menos empolado à linguagem jornalística, posteriormente absorvido e reprocessado por veículos da grande imprensa.” (2006:E5)

Jaguar salienta que a fórmula surgiu por acaso, por ele não saber copidescar ou adaptar um texto ao padrão jornalístico. “O Pasquim” era a contraparte da ditadura militar. À mesma época, despontou a revista “Mad”, que segundo versados no gênero, promovia uma catarse das frustrações cotidianas, subvertendo os costumes, a cultura e questões morais: tripudiava sobre valores sedimentados e atividades humanas con-denadas à previsibilidade, tirando do prumo até irrelevantes aspectos da sociedade ca-pitalista, desbancando celebridades e vencendo pelo satírico as frustrações do homem comum. Achacava personagens e produtos da mídia.

Nos anos 80, a imprensa de humor teve por marco a revista “Casseta Popular” – mais escrachada e anárquica que “O Pasquim”. No final dos anos 90, surgiu a revis-ta “Bundas”, trazendo entrevistas, crônicas e charges. Tratava-se de uma paródia de “Caras” (nicho da frivolidade de artistas e celebridades – para Marilene Felinto, uma representação épica da intimidade, opondo a opulência privada à indigência pública). A “Bundas” trazia na capa e no slogan um chiste editorial transbordante, numa sin-tomática brasilidade: “Quem mostra a bunda na Caras não mostra a cara na Bundas”. Expandindo humor crítico, de cunho político e social, a revista renovava o ideário de “O Pasquim”, já que editada por alguns de seus remanescentes.

Símile desse recurso, o blog humorístico “Falha de São Paulo” (suspenso por uma liminar) usou logotipo idêntico ao da Folha para fazer paródia de notícias e insultar jornalistas: a ombudsman Suzana Singer defendeu a proteção da marca e seu domínio eletrônico), sem entrar no mérito do direito à sátira. O chiste tende à economia e produz prazer, teorizou Sigmund Freud sobre sua tipologia e efeito desviatório: “A classificação que encontramos na literatura descansa, por um lado, no uso que se faz deles no dis-

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curso (chistes usados com o objetivo de caricatura, de caracterização ou de afronta).” (1977:27). O humor, para Freud, é o triunfo do ego e do princípio do prazer. Implica fugir à compulsão para o sofrimento, com a criação de desvios – construções mentais numa série que começa com a neurose e culmina com a loucura.

A disposição mental para criar o universo cômico da sátira, da ironia e da zomba-ria é estudada também por André Jolles, que, distinguindo gêneros do humor, prioriza as possibilidades do chiste cuja consequência é a descarga de uma tensão: “certos escri-tores do Renascimento que se interessaram pelo gracejo e a facécia falam-nos, a esse respeito, de relaxatio animi, um relaxamento do espírito.” Destaque-se também Henri Bergson, para quem os defeitos alheios compreendem costumes, ideias (e até precon-ceitos) os quais podem tornar-se cômicos “em razão de sua insociabilidade mais do que por sua imoralidade.” (1993:72)

Alegorias e mimes do imaginário fotográfico

“A necessidade de síntese à qual é levado o fotógrafo, que em apenas uma imagem deve dar conta de narrar uma história complexa, torna a fotografia um campo

que, muitas vezes, se vale de citações à história da arte e de imagens que repousam no inconsciente coletivo.” (Eder Chiodetto, fotógrafo)

A perpetuação de símbolos envolve o fenômeno dos memes. Trata-se de unidades de informação cultural que se replicam, transformam-se ou desaparecem, as quais Richard Dawkins explica segundo sua teoria do “gene egoísta”. Nos conteúdos midiáticos, nas artes, na moda, entre outros segmentos, é recorrente a disseminação de memes. Arquétipos universais explodindo em microcosmos. O fotojornalismo é gênero pródigo em exemplos.

No imaginário de muitas culturas, alegorias aladas preenchem nosso imaginário em diferentes campos (pintura, escultura, folclore, mitologia, literatura), personificando ideais libertários, angelitude, vitória ou imperialismo. Insígnia de elevação ou destrui-ção, seres alados são mediadores da vontade dos deuses, em suas benignidades ou ma-lef ícios. Com a primeira edição de “Iconologia” (Cesare Ripa, 1593), alegoria designava uma “lógica da imagem”, para descrever e interpretar obras do gênero emblemático. (2006:180-182). O artista figurativiza “um emblema, uma divisa, um enigma ou outra forma alegórica”, depois de pensado um conceito: se a invenção é produto do pensamen-to do artista, a imitação serve-lhe de instrumento e a arte é sua execução.

Sobre discursos marcados por dialogismo, polifonia e intertextualidade, José Luiz Fiorin, Diana Luz Pessoa de Barros e Leonor Lopes Fávero analisaram, sob os funda-mentos de Mikahil Bakthin, a “incorporação de um texto em outro”. É um processo que admite a citação, a alusão e a estilização. Para Leonor L. Fávero, a paródia é marcada por

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uma luta entre vozes, o que determina “seu caráter dialógico, dissonante e polissêmico.” (1994:60). Quando textos se sobrepõem, distinguem-se processos entre automatização e desautomatização: na paráfrase (desvio mínimo), na paródia (desvio total), na estiliza-ção (desvio tolerável) e na apropriação (colagem de fragmentos do discurso alheio) – a apropriação corrosiva introduz a paródia. Para Affonso Romano de Sant’Anna, “uma sociedade totalmente burocratizada em sua linguagem é vizinha da morte, assim como a sociedade continuamente inovadora se identifica com o caos”.

Gêneros não verbais compartilham temas, técnicas e procedimentos no fotojor-nalismo, seja na fotografia artística, nas artes gráficas ou na propaganda. Numa seleção extraída do jornalismo, exemplos de afinidades aladas nas quais encontramos valências de paródia, estilização e apropriação:

A precisão: Antônio Gaudério capturou a na-tureza rendida ao lixo; na iminência de alçar voo, a garça encontra lodo e entulho, num ins-tante de poesia visual.

O Acaso?: Flávio Damm, nos anos 50, flagrou Juscelino Kubistschek aguardando um helicóp-tero no Palácio do Catete, no Rio de Janeiro, o que lhe deu o epíteto de “Presidente Voador”.

A apropriação: a publicidade do jornal Valor Econômico fez um aproveitamento hiperbólico da nota de um real. Igualando-a ao dólar, justifi-ca as vantagens de ser assinante.

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A paródia: Caio Guatelli registrou um inciden-tal e impertinente adorno num cenário às costas do ministro da Cultura, Gilberto Gil. Sobrepo-sição que arremeda o chiste que deu asas a JK.

A estilização: Luiz Gonzales Palmas, arquiteto e fotógrafo, clicou combinações: segundo Eder Chiodetto, ele enxergou efeitos de luz e cor, mas, insatisfeito, o artista pintou, colou, rasgou e remendou o que o arquiteto e o fotógrafo ha-viam pensado.

A Garra: Alegoria e metáfora se cruzam nos atributos reais e simbólicos da águia: a destreza no mundo selvagem equivale ao perfil combati-vo da senadora Heloísa Helena; cabe também a impressão de vulnerabilidade a críticas preda-tórias, por sua veemente militância.

O estranho no ninho: Gregory Colbert tem por ideário estético criar identidades entre o humano e o mundo natural. A imagens são devolvidas ao tempo em que marrom e sépia eram matizes do envelhecimento.

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Hagiológio do fotojornalismo – apropriações, condensações, deslocamentos –

“Em um primeiro tempo, a fotografia, para surpreender, fotografa o notável; mas logo, por uma inversão conhecida, ela decreta notável aquilo que ela fotografa. O ‘não importa o quê’ se torna então o ponto mais sofisticado do valor”. (Roland Barthes)

Se aceito julgar um texto segundo o prazer, não posso ser levado a dizer: este é bom, aquele é mau. Não há quadro de honra, não há crítica, pois esta implica sempre um objetivo tático, um uso social e muitas vezes uma cobertura imaginária. Não posso dosar, imaginar que o texto seja perfectível, que está pronto a entrar num jogo de predicados normativos: é demasiado isto, não é bastante aquilo. (Roland Barthes)

Multiplica-se no jornalismo uma recorrência de memes, entre a coincidência e a provocação, em fotos reveladoras de “ruídos” visuais, como os halos iridescentes que se tornaram uma espécie de franquia preferencial. Nos extremos, personalidades públicas. Nas imagens que ilustram a epígrafe, coincidem a disposição dos elementos, a gestualidade e os análogos f ísicos: a temática sacra que o cristianismo consagrou ultrapassa a matriz pictórica: “A Descida da Cruz”, de Rubens (1577-1640) replica-se no registro de um resgate ao fim de um motim penitenciário. Para Umberto Eco, mesmo um flagrante não deixa de ser uma escolha.

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Protetor: no gesto de repouso dos braços, o enlace das mãos tem a cumplicidade do olhar, dando a José Serra, então ministro da Saúde, inesperada aura veneranda – sua cabeça justapõe-se à imagem ampliada de um preservativo estilizado com aletas de anjo; um ideal simbólico de proteção perdendo a seriedade para o humor circunstancial que Givaldo Barbosa fotografou e a revista Imprensa pôs em destaque.

Esplendor: de “Rei do Futebol” a santo involuntário, na ilusão de um esplendor que o cinge, Pelé assemelha-se às iconografias sacras, fotografado por Domício Pinheiro em frente a uma tuba, durante a execução do Hino Nacional, num amistoso da seleção, em 1968.

Iluminado: a foto venceu, “na categoria retratos”, a 51ª edição do World Press Photo, resultado que a Folha de S. Paulo publicou com um comentário: “o presidente da Rússia, tido como homem de ferro, aparece, em foto de luz esplêndida, com olhar gelado”. A incidência constante desse efeito tornou-se uma espécie de fran-quia que se repetiu com outros nomes da política.

Demo: poderoso como um deus, cruel como o diabo. O ex-presidente George Bush (em foto de Jason Reed) provocou reações de indignação ao justificar práticas de tortura em interrogatório de suspeitos de terrorismo. A foto provocativa ilustra a correspondente notícia. Quando o papa Francisco foi capa da “Time”, os vértices da letra “m”, apontando acima de sua ef ígie, instigaram os críticos, segundo a imprensa, a ver ali um par de chifres.

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Painho: num evento em Salvador, o ex-governador Antônio Carlos Magalhães à frente de uma baiana caracterizada – tem-se, inicialmente, a impressão de vê-lo tipicamente paramentado, como se incorporasse o espírito da Bahia. Antecedeu-o, num instantâneo similar, o ex-presidente João Batista Figueiredo, em Brasília, tendo atrás de si o quepe de um militar batendo continência – síntese e ícone de um país que tinha a ditadura por retaguarda. Na foto maior, governador e prefeita de S. Paulo – memes da coincidência num 7 de Setembro.

(Des-)encarnado: reconhecer Mickey Mouse já seria o suficien-te para transformar a respeitabilidade protocolar em motivo de troça. Na legenda (“Aprendiz de feiticeito”, homônima da música de Paul Dukas, The Sorcerer’s Apprentice), o efeito parodístico: Hugo Chávez, ex-presidente da Venezuela, lembra personagem do desenho “Fantasia” (W. Disney,1940) cujos poderes estão nos voleios de uma varinha mágica. Animada franquia.

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Considerações finais

Não foi o mundo que piorou. As coberturas jornalísticas é que melhoraram muito” (K. Chesterton)

Gêneros jornalísticos envolvem sutilezas de classificação, sobretudo quando se franqueiam ao cruzamento de características. Crônica, artigo, crítica, resenha, ensaio, perfil e obituário compreendem alguns gêneros nos quais se encontra representativa versatilidade de compartilhamento, num produtivo expansionismo.

O ensaio pode reverberar a crítica. O artigo pode ser um comentário interpretati-vo. Na entrevista, na resenha ou na reportagem, pode sobressair um perfil. No obituário, o perfilado pode encontrar, por último entrecho, um pendor lírico de crônica – o gênero mais expletivo. Nos modelos compulsados, identificam-se recursos estilísticos e mane-jos linguísticos nos quais se depreende a tendência ao livre trânsito do coloquialismo e ao predomínio da função poética. Contra a escrita anódina, a metalinguagem impõe-se em enlaces inventivos.

Nesse contexto, a crônica prova seu caráter contemporizador, favorecendo a emu-lação a outros gêneros, aos quais empresta a reflexão, o lirismo, o humor (assim como é receptiva à crítica, à interpretação, à análise); é de sua natureza distributiva promover desdobramentos de estilo e combinações inesperadas: os gêneros afinam-se, pois, com a irreverência opinativa, o impressionismo descritivo, a leveza narrativa. Há que se de-fender, como genéricos, os termos “artigo” ou “matéria”, em especial no repertório do leitor mediano.

Entre os gêneros não verbais, a caricatura, a charge e o cartum ganham expansões de bufonaria, pelo que têm de burlesco e deformante; a caricatura, em especial, torna-se cúmplice parodística do jornalismo opinativo, de que a imprensa fescenina é prece-dente. Condensações, deslocamentos e exageros polimorfos reconfiguram o noticiário como crônica visual, para escarnecer de fatos que mobilizam a mídia ou daqueles que os protagonizam. Já o fenômeno crescente dos mimes, no fotojornalismo, atesta imagens replicantes – entre o acaso e a intencionalidade –, tendo por resultado o estranhamento ou a derrisão.

Do prosaico ao excêntrico, o jornalismo expande aproximações entre gêneros – dos verbais aos icônicos –, cuja exemplaridade impõe-se como permanente objeto de estudo. Confrontar conceitos, abordagens e incidências estilísticas revela prof ícuas co-mutações de procedimentos que tornam limítrofes os gêneros na malha de conteúdos e estilos renovadores da linguagem jornalística.

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Entre o verbal e o não verbal - apontamentos sobre gêneros e seus cruzamentos

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Thaís Montenegro Chinellato

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Jornalismo Digital em Base de Dados (JDBD) como um texto da cultura1

Daniela Osvald RamosProfessora de Novas Tecnologias da Comunicação na Faculdade Cásper Líbero e Doutora pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Email: [email protected]

Neste artigo observamos o Jornalismo Digital de Bases de Dados (JDBD) como um texto da cultura e pontua-mos sua implicação nas mudanças estruturais no campo do jornalismo. Para isso, encadeamos os conceitos de texto da cultura, modelização, semiosfera e fronteira, da escola de semiótica russa de Tártu-Moscou, notada-mente os autores Iuri M. Lotman e Irene Machado. Também discutimos a delimitação do texto JDBD, o jorna-lismo como um texto de fronteira, suas variantes e invariantes. Apontamos as bases de dados como o centro da criação jornalística e iniciamos a discussão da geração das linguagens digitais e da narrativa nas novas mídias.Palavras-chave: Jornalismo Digital de Bases de Dados, Texto da cultura, Jornalismo.

Periodismo Digital de Base de Datos (PDBD) como un texto de cultura En este

artículo observamos el Periodismo Digital de Bases de Datos

(PDBD) como un texto de cultura y puntuamos su implicación

en los cambios estructurales en el campo del periodismo. A tal

fin, vinculamos los conceptos: texto de la cultura; modelización;

semiosfera; y frontera, de la escuela semiótica de Tartu-Moscú,

en particular los autores Yuri Lotman e Irene Machado. También

discutimos la delimitación del texto PDBD, el periodismo como

un texto de frontera, sus variantes e invariantes. Señalamos

las bases de datos como el centro de creación periodístico

y comenzamos la discusión de la generación de lenguajes

digitales y la narrativa en los nuevos medios.

Palabras-clave: Periodismo Digital de Bases de Datos, Texto

de cultura, Periodismo.

Digital Journalism in Database (DJDB) as a text of culture In this article we look at Database

Digital Journalism (DDJ) as a text of culture and we score its

implication in the structural changes in the field of journalism.

To that end, we link the concepts: text of culture; modelling;

semiosphere; and border, from the Russian Tartu-Moscow

Semiotic School, with an emphasis on the authors Yuri

Lotman and Irene Machado. We also discuss the delimitation

of the DDJ text, journalism as a border text, its variants

and invariants. We point out the databases as the center of

journalistic creation and we start the discussion on the digital

languages generation and the narrative in the new media.

Keywords: Database Digital Journalism, Text of culture,

Journalism.

1. Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Estudos do Jornalismo do XX Encontro da Compós, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, de 14 a 17 de junho de 2011.

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Jornalismo Digital em Base de Dados (JDBD) como um texto da cultura

1. Introdução: conceitos da Semiótica da Cultura

Para nós o Jornalismo Digital em Base de Dados (JDBD) é um texto da cultura. “Texto”, neste sentido, não é somente o signo verbal, e não é constituído por uma só linguagem, mas “(...) um dispositivo complexo que contém códigos diversos, capaz de transformar as mensagens recebidas e de gerar novas mensagens” (Lotman, 1996:82, tradução nossa, assim como as subsequentes)2. Determinados textos da cultura operam com diversas linguagens, “(...) o texto é heterogêneo e heteroestrutural, uma manifestação de várias linguagens de uma só vez” (Ibidem., p.88)3. Também (Ibidem., p. 97) “O texto é um espaço semiótico no qual as linguagens interagem, se interferem e se auto organizam hierarquicamente”4. Texto, anota Lotman nesta passagem, é uma palavra empregada de modo polissêmico, por isso é recorrente a expressão “neste sentido”. Nestas citações está implicado também o conceito de semiosfera e de fronteira. A semiosfera configura um espaço de semiose, sem a qual não há produção de mensagens. Este espaço tem caráter abstrato e é o próprio espaço semiótico, como entende Lotman (1996: 21-42; 2000: 123-130). “A Semiosfera é o espaço semiótico fora do qual é impossível a existência mesmo da semiose” (1996: 24)5. Ainda, a semiosfera tem uma característica de heterogeneidade semiótica (Lotman, 1996:30): “A não homogeneidade estrutural do espaço semiótico forma reservas de processos dinâmicos e é um dos mecanismos de produção de nova informação dentro da esfera.”6 Também pode ser caracterizada por uma série de “traços distintivos” (rasgos distintivos, expressão empregada pelo autor) que se dividem em duas categorias: a) seu caráter delimitado e b) irregularidade semiótica.

A delimitação da semiosfera, por sua vez, implica justamente a noção de fronteira, o que já foi comentado anteriormente. Este encadeamento de conceitos é importante para percebermos tanto a estrutura e a dinâmica de aplicação da Semiótica da Cul-tura como escola de método teórico aplicável aos estudos do jornalismo, bem como o funcionamento mesmo da semiosfera. Por sua vez, a noção de fronteira implica a compreensão de que a fronteira atua na individualidade do sistema semiótico. Portanto, pressupõe determinada homogeneidade semiótica para que seja percebido como “dife-rente de”. Ou seja, certa homogeneidade é previsível entre a heterogeneidade, para que os sistemas possam ser percebidos com características próprias, diferentes de outros sistemas, e assim proporcionar a troca e as transformações advindas dos contatos entre as fronteiras.

2. “(...) un complejo dispositivo que guarda variados códigos, capaz de transformar los mensajes recibidos y de generar nuevos mensajes.”3. “(...) el texto es heterogéneo y heteroestructural, es una manifestación de varios lenguajes a la vez”.4. “El texto es un espacio semiótico en el que interactuán, se interfieren y se autoorganizan jerárquicamente los lenguajes”.5. “La Semiosfera es el espacio semiótico fuera del cual es imposible la existencia mismo de la semiosis”.6. “La no homogeneidad estructural del espacio semiótico forma reserva de procesos dinâmicos y es uno de los mecanismos de producción de nueva información dentro de la esfera”.

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Assim como na matemática se chama fronteira um conjunto de pontos que pertencem simultaneamente ao espaço interior e exterior, a fronteira semiótica é a soma dos tradutores-‘filtro’ bilíngües através dos quais um texto é traduzido a outra linguagem que esteja fora da semiosfera dada (Lotman, 1996: 24)7.

Este é o movimento dinâmico segundo o qual a cultura se transforma no contato das fronteiras com os não-textos ou textos alosemióticos, desprovidos de semiose de forma relativa ao sistema dado. O segundo traço distintivo da semiosfera é a irregula-ridade semiótica interna como lei de organização, a simetria/assimetria e também sua divisão em núcleo, que são sistemas semióticos dominantes e periferia, que podem ser tanto fragmentos de linguagens ou textos isolados. (Ibidem, p.30-31)

Estes conceitos nos servirão mais adiante quando apontamos a necessidade da compreensão do jornalismo como um texto de fronteira. Antes, queremos observar a existência do texto da cultura denominado Jornalismo Digital de Bases de Dados (Barbosa, 2007), um texto que opera mudanças estruturais no campo do jornalismo, Para iniciar nossa tarefa, consideramos a forma cultural base de dados fundamental para entendermos a estrutura deste texto, já que esta forma modeliza a experiência cultural contemporânea, ou seja, é a partir desta forma cultural que organizamos nossas experiências culturais. “Na verdade, o banco de dados é a potência capaz de modelizar as novas linguagens”, coloca Machado (2000 : 221), com quem concordamos.

2. Jornalismo Digital em Base de Dados (JDBD) como um texto da cultura

Manovich (2006: 63-103) entende as características da forma cultural base de da-dos como os “princípios das novas mídias”, quais sejam: a representação numérica, pois o signo informático (Contreras, 1998) é, em sua essência, número, convertido em código binário. A partir daí é que são gestados os conteúdos capazes de gerar as semio-ses. Por isso, os meios agora são programáveis e podem ser modificados automatica-mente, por meio de um algoritmo.8 A modularidade, pois um objeto da nova mídia mantém a mesma estrutura em diferentes escalas, como um fractal. A automatização (ou automação), possível pela representação numérica e modularidade, com o que se automatiza os objetos das novas mídias, desde sua criação, manipulação, até o acesso às

Daniela Osvald Ramos

7. Grifo do autor. “Así como en la matemática se llama frontera a un conjunto de puntos perteneciente simultáneamente al espacio interior y al espacio exterior, la frontera semiótica es la suma dos los traductores-‘filtro’ bilingües pasando a través de los cuales un texto se traduce a otro lenguaje (o lenguajes) que se halla fuera de la semiosfera dada.”8. “Um algoritmo pode ser definido como uma seqüência de passos que visam atingir um objetivo bem definido.” (FORBELLONE & EBERSPACHER, 2000, p. 3).

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Jornalismo Digital em Base de Dados (JDBD) como um texto da cultura

bases de dados. Além disso, o usuário pode modificar qualquer objeto da nova mídia em softwares (processos de automatização pré-definidos por algoritmos). Temos dois níveis possíveis de automatização: a de baixo nível, que é a criação e modificação de um objeto por meio de algoritmos simples (como o software Photoshop, por exemplo), e a automa-tização de alto nível, a da inteligência artificial, pois o computador precisaria entender o significado dos objetos gerados e responder automaticamente a isso. O autor Steven Johnson (2001), escreve sobre isso na forma dos agentes inteligentes. As pesquisas e a utilização crescente de princípios do campo da websemântica nos levam a entender que estes agentes são a base do funcionamento da chamada “web 3.0”, organizada com base na classificação de conteúdos por palavras-chave, ou tags (etiquetas, em tradução literal do inglês):

Estes agentes são sistemas computacionais capazes de interagir autonomamente para atingir os objetivos do seu criador. Os agentes possuem algumas características como autonomia, reatividade (percebem o ambiente e tomam as decisões), têm comportamento colaborativo, possuem objetivos, são flexíveis, sociáveis e têm a capacidade de aprender. A web semântica possuirá vários agentes interagindo entre si, compreendendo, trocando ontologias, adquirindo novas capacidades racionais quando adquirirem novas ontologias e formando cadeias que facilitam a comunicação e a ação humana (Bertocchi, 2009: 14).

Depois, temos a variabilidade, que torna um objeto da nova mídia variável, po-tencialmente, em diferentes e infinitas versões. Por exemplo, uma fotografia pode ser usada e variar de ilustração em um texto a fazer parte de uma sequência narrativa em um áudio-slideshow, constituindo a variabilidade de modalidade e formato. Antes, os elementos eram combinados através de uma sequência única e fixados em um suporte (papel, película). Sua ordem, uma vez determinada, era imutável. O original podia ser copiado fielmente, pois esta é a lógica da sociedade industrial, mas a matriz não era vari-ável. Agora, ao contrário, as novas mídias são “variáveis”; ou melhor, seus componentes são variáveis.

Por último, a transcodificação, tida como o princípio mais complexo dos cinco. Observamos aqui (Semiosphera, versão on-line) que a modelização pode ser compre-endida como um processo justamente de transcodificação, “(...) um processo gerativo de linguagem e de signos, através do qual os objetos culturais constroem sua própria signicidade”. Para Manovich (2006), um elemento da nova mídia pode ser traduzido para outro formato através deste postulado, de modo programável, sendo codificado através de outros códigos que não o da sua origem. Assim foi possível a formulação da hipótese do JDBD, que se estende a outros meios de comunicação, como os já citados rádio e televisão, mas também para as revistas e os jornais, pois as bases de dados de-veriam ser a estrutura organizacional das empresas de comunicação. Este princípio é o que justifica nossa afirmação de que as bases de dados modelizam as manifestações culturais contemporâneas:

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Daniela Osvald Ramos

“(...) pode-se pensar nos novos meios em geral como se fossem constituídos de duas camadas diferenciadas: a ‘camada cultural’ e a ‘camada informática”. Como exemplos de categorias que pertencem à camada cultural, temos a enciclopédia e o conto, a história e o enredo, a composição e o ponto de vista, a mímese e a catarse, a comédia e a tragédia. Enquanto que, como exemplos de categorias da camada informática temos o processo e o pacote (como os pacotes de dados que são transmitidos pela rede), a classificação e a conformidade, a função e a variável, a linguagem informática e a estrutura de dados.Como os novos meios são criados, distribuídos, guardados e arquivados com computadores, cabe esperar que seja a lógica do computador que influencie de maneira significativa na tradicional camada cultural e nos meios. Ou seja, cabe esperar que a camada informática afete a camada cultural. As maneiras com que o computador modela o mundo, representa os dados e nos permite trabalhar; as operações fundamentais que existem por trás de qualquer rotina informática (como buscar, coincidir, classificar, e filtrar) e as convenções da sua interface – em resumo, o que se pode chamar de ontologia, epistemologia e pragmática do computador – influem na camada cultural dos novos meios, em sua organização, em seus gêneros emergentes e em seus conteúdo (Manovich, 2006: 93)9.

Estes princípios, como os chama Manovich, são fundamentais para compreen-dermos as possibilidades de organização do texto da cultura do jornalismo digital, já que são estruturais. Podemos entender estes princípios fundantes como as variantes deste texto, assim como identificamos invariantes, ou seja, princípios em comum aos textos do jornalismo impresso, do jornalismo eletrônico e do jornalismo digital, que é o próprio exercício do jornalismo reconhecido como tal. É o que Lotman (1978 a: 54-55) chama de “(...) modelo abstrato de invariante do segundo grau”. Algo existe em comum entre estes três textos. O pesquisador, que analisou o texto artístico, especifica-mente a literatura em A estrutura do texto artístico e o cinema em Estética e semiótica do cinema,10 cita o texto jornalístico quando trata das condições de surgimento do texto cinematográfico. Lotman introduz a questão da técnica na cultura, fundamental para

9. “(...) se puede pensar en los nuevos médios en general como si constaran de dos capas diferenciadas: la ‘capa cultural’ y la ‘capa informática’. Como ejemplos de categorías que pertenecen a la capa cultural, tenemos la enciclopedia y el cuento, la historia y la trama, la composición y el punto de vista, la mímesis y la catarsis, la comedia y la tragédia. Mientras que, como ejemplos de categorias de la capa informática tenemos el proceso y el paquete (como los paquetes de datos que se transmiten por la red), la clasificación y la concordância, la función y la variable, el lenguaje informático y la estructura de datos. Como los nuevos medios se crean, se distribuyen, se guardan y se archivan con ordenadores, cabe esperar que se ala lógica del ordenador la que influya de manera significativa en la tradicional lógica cultural e los medios. Es decir, cabe esperar que la capa informática afecte a la capa cultural. Las maneras en que el ordenador modela el mundo, representa los datos y nos permite trabajar; las operaciones fundamentales que hay tras todo programa informático (como buscar, concordar, clasificar y filtrar); y las convenciones de su interfaz – en resumen, lo que puede llamarse la ontologia, epistemologia y pragmática del ordenador – influyen en la capa cultural de los nuevos medios, en su organización, en sus gêneros emergentes y en sus contenidos.” (MANOVICH, 2006, p. 93)”10. Ambos publicados em 1978 em língua portuguesa pela Editorial Estampa, Lisboa. Ver bibliografia.

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Jornalismo Digital em Base de Dados (JDBD) como um texto da cultura

entendermos a história do cinema, justamente o ponto do qual parte Manovich (2006), para lançar as estruturas para a definição do texto digital. Diz Lotman (1978 b: 26):

Todos os melhoramentos técnicos são espadas de dois gumes: destinados a servir o progresso e o bem da sociedade, foram empregados com igual sucesso para fins opostos. Uma das maiores aquisições da humanidade – a comunicação através dos signos – não escapou a este destino. Chamados a servir a informação, os signos serviram muitas vezes para desinformar. A “palavra” foi na história da cultura por mais de uma vez, e simultaneamente, símbolo de sabedoria, conhecimento e de verdade (veja-se no Evangelho: “No princípio era o Verbo”) e sinônimo de mentira, de engano (Hamlet: “Palavras, palavras, palavras”; Gogol: “O terrível reino das palavras sob a aparência de factos”). A assimilação dos signos com a mentira e o combate contra eles travado (rejeição do dinheiro, dos símbolos sociais, das ciências, das artes, da própria palavra) encontram-se constantemente no mundo antigo, na Idade Média, em diferentes culturas do Oriente, e constituem, na época moderna, uma das ideias directrizes da democracia europeia, de Rousseau a Tolstoi. Este processo é paralelo à apologia da cultura dos signos e à luta pelo seu desenvolvimento. O conflito entre estas duas tendências é uma das contradições dialécticas mais constantes da civilização humana. Sobre o pano de fundo desta contradição desenvolveu-se uma oposição mais particular, mais constante: “Texto que pode mentir – texto que não pode mentir.” O que tanto pode ser a oposição “Mito-história” (na época que precedeu o aparecimento dos textos históricos, o mito pertencia à categoria dos textos cuja autenticidade era indiscutível), como a oposição “poesia-documento” etc.

Notamos que o autor deixa explícito, nessa passagem, como a cultura é dinâmica e que há uma luta pela sobrevivência da informação, ou seja, a cultura tem características de um dispositivo pensante, capaz de gerar novos textos. Este é o fenômeno mesmo da cultura. Não podemos deixar de observar também nesta passagem outro tema caro ao debate da semiótica da cultura, que é entender a cultura como parte da natureza humana e não oposta a ela, já que sem os signos não haveria comunicação que gera linguagem. Também o binarismo é estrutural na cultura como forma de organização na oposição “Texto que pode mentir – texto que não pode mentir”. A seguir o autor localiza a reportagem jornalística como parte desta oposição (Lotman, 1978 b: 27):

No rápido desenvolvimento da civilização burguesa na Europa do século XIX, a reportagem jornalística conheceu o apogeu da sua importância cultural, a que se seguiu um rápido declínio. A expressão “mente como um repórter” provava que este gênero também abandonara a “prateleira” dos textos que não podiam deixar de ser verdadeiros e passara para a “prateleira” oposta. O seu lugar foi ocupado pela fotografia, que tinha simultaneamente as características de documento indiscutível e da autenticidade, e era então considerada como algo que se opunha à cultura, à ideologia, à poesia, a tudo que provinha da interpretação; ela era entendida como sendo a própria vida, na sua realidade

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Daniela Osvald Ramos

e autenticidade. Tornou-se assim o texto-documento mais digno de fé, no sistema dos textos do princípio do século XX. E isto foi reconhecido por toda a gente, desde os criminologistas aos historiadores e aos jornalistas.

Sem dúvida uma das fontes de credibilidade do texto jornalístico é a noção coletiva de “texto que não pode mentir”. A escola de jornalismo norte-americano tentou fazer valer esta afirmação com a escola do método científico no jornalismo, que geraria o re-sultado da “imparcialidade”, outra noção problemática para o campo. Se a fotografia to-mou impulso no início do século XX como “texto que não pode mentir”, no século XXI, depois de todas as discussões teóricas sobre a veracidade e possibilidade de manipula-ção também da imagem e não somente da palavra, qual seria hoje um “texto que não pode mentir”? Lotman já nos diz: o documento. Não à toa, nos últimos anos assistimos à proliferação dos dossiês nas capas de jornais e revistas, com ou sem grampos telefô-nicos, no jornalismo brasileiro. Os documentos não mentem, no limite, mas dependem também de uma interpretação e de um contexto para a sua análise, e é aí que mais uma vez entra o texto jornalístico.

Não nos cabe aqui fundar uma nova teoria do jornalismo, mas há um impasse a ser contornado pelos teóricos do campo: a diferença entre o jornalismo “ideal”, que é ensina-do nas escolas, e o praticado no mercado de trabalho. Mas o “jornalismo ideal é um pro-jeto pessoal”, diz Chaparro (2001: 36). “Faltam definições para o jornalismo”, diz o autor (Ibidem: 37). Idealmente, a produção de informação segundo a ótica do texto jornalístico não pode ser influenciada por interesses comerciais, de mercado, que visam lucro:

A primeira lealdade do jornalismo é com os cidadãos. (...) É um acordo implícito com o público que garante aos leitores que as críticas de filmes são honestas, as críticas de restaurantes não sofrem influência dos anunciantes, a cobertura em geral não reflete interesses particulares, nem é feita para agradar amigos da casa. A noção de que os jornalistas não devem encontrar obstáculos na hora de cavar a informação e contá-la com veracidade – mesmo à custa de outros interesses financeiros do dono do jornal – é um pré-requisito para dar as notícias não só com exatidão, mas também de forma convincente. É dessa maneira que nós, cidadãos, acreditamos numa empresa jornalística. É essa a fonte de sua credibilidade. É, em resumo, o maior patrimônio da empresa e daqueles que nela trabalham. Assim, o profissional de imprensa não é como os empregados de outras empresas. Ele tem uma obrigação social que na verdade pode ir além dos interesses imediatos de seus patrões, e ainda assim essa obrigação é a razão do sucesso financeiro desses mesmos patrões (Kovach e Rosenstiel, 2004, : 83).

Esta definição pode ser entendida no nosso contexto como uma invariante do tex-to jornalístico, mas contraditoriamente gera todas as condições para a produção de um “texto que pode mentir”, o que varia de acordo com o interesse de cada empresa. No

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entanto, sabemos também que, na prática, o jornalismo é e precisa ser um negócio, sujeito a regras enquanto tal, e à sobrevivência no mercado. Assim, o comprometimen-to total com o cidadão nem sempre é cumprido. Mesmo se o jornalismo não fosse um negócio estabelecido, como era no início da burguesia, comprometido que estava com o surgimento desta nova classe, poderia atender totalmente aos padrões estabelecidos por Kovach e Rosenstiel? É possível que não, se tomarmos como ponto de partida a reflexão de Lotman sobre o contínuo embate dialético da cultura. Tal contradição nos impede de ver com clareza os limites do texto jornalístico, tornando-o um texto carente de uma noção mais ou menos clara de sua delimitação (Lotman, 1978 a: 104-106), sendo um texto essencialmente de fronteira com outros sistemas semióticos, como a literatura e o documentário. O combate ao contato das fronteiras impede o desenvolvimento de mensagens mais elaboradas com e pelas linguagens, que se desenvolvem no contato da heterogeneidade semiótica. Aventamos a hipótese de este ser um dos fatores de crise do jornalismo como instituição (Kovach e Rosenstiel, 2004).

O papel delimita o jornalismo impresso; a televisão e o rádio, o jornalismo ele-trônico; mas o computador não delimita o jornalismo digital: é a condição digital que delimita o jornalismo digital, no sentido de sua condição ser a da representação numé-rica, independente do suporte ser o computador, um celular, ou, mais recentemente, o lançamento tido como “o futuro das revistas”, o Tablet PC (computador pessoal similar a uma prancheta) da empresa Apple, o iPad. Em francês a palavra digital é traduzida por le numérique, o próprio limite do texto digital: os números. Sobre isso Irene Machado, ao resenhar The Language of New Media, primeira edição do livro de Manovich (2000), anota que o termo digital é evitado pelo autor, pois é comumente empregado de forma imprecisa, “sobretudo pela sua ambiguidade e imprecisão”. Por isso, queremos definir qual é o nosso intuito com a utilização do termo digital neste artigo:

(...) tanto significa conversão do analógico para o digital, quanto uso de um código comum de representação ou ainda representação numérica. Tirando os dois primeiros, somente o último tem o poder de definir as novas mídias. É a representação numérica que permite a constituição do banco de dados, uma vez que a conversão é realizada diretamente sobre os códigos (Machado, 2002: 222).

Continuando nosso debate sobre a delimitação do jornalismo, Chaparro (2001: 22-23) ainda diz que:

O conceito “jornalismo” precisa ser separado do conceito “jornal”. Jornal é negócio, cada vez mais negócio, e como negócio é pensado e gerido. Trata-se do objecto concreto, mensurável, comercializado, produto industrial que dá lucro, e pela lógica do lucro é controlado.Jornalismo pertence ao lado dos valores. Integra o universo da cultura, como espaço público dos discursos sociais conflitantes. É objecto abstracto, inserido no cenário humano da complexa construção do presente.Como linguagem, ambiente e processo, do jornalismo se exige a virtude da confiabilidade, sem

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a qual fracassará. Para ser e persistir confiável, terá de actuar com independência e liberdade. E por independência e liberdade é preciso lutar, em todos os momentos e circunstâncias.

Assim, compreendemos que é preciso separar ou tomar o jornalismo como uma invariante do texto jornalístico, independente do meio, e situar o seu ideal como uma luta constante e assumi-lo como um texto de fronteira, em constante contato com ou-tros sistemas semióticos. O negócio e a prática da técnica do jornalismo podem ter delimitações bastante claras; no entanto, ao texto jornalístico é negada uma delimitação clara e definitiva. Neste sentido, podemos dizer que o jornalismo é um texto na fronteira com outros textos, no sentido semiótico, uma “zona de liminaridade e espaço de trân-sito, de fluidez, de contato entre sistemas semióticos. À medida que a estruturalidade garante a organicidade correlacional do sistema semiótico, é impossível admitir a exis-tência de limites rígidos e precisos” (Machado, 2003: 159). O jornalismo literário, neste aspecto, é um texto que faz fronteira com o jornalismo e com a literatura. Apesar destas constatações subsiste na cultura o ideal do texto jornalístico, condensado por Kovach e Rosenstiel (2003: 22-23):

A primeira obrigação do jornalismo é com a verdade.Sua primeira lealdade é com os cidadãos.Sua essência é a disciplina da verificação.Seus praticantes devem manter a independência daqueles a quem cobrem.O jornalismo deve ser um monitor independente do poder.O jornalismo deve abrir espaço para a crítica e o compromisso público.O jornalismo deve empenhar-se para apresentar o que é significativo de forma interessante e relevante.O jornalismo deve apresentar as notícias de forma compreensível e proporcional.Os jornalistas devem ser livres para trabalhar de acordo com sua consciência.

Este texto jornalístico “ideal” deve ser um invariante mesmo sob a condição digi-tal. No entanto, sua prática não depende do exercício da profissão, mas do projeto ideal de profissão de cada jornalista, o que exigirá um embate constante e também a parti-cipação do público como um agente de vigilância do jornalismo praticado. Nesta seara não podemos delimitar com precisão o texto jornalístico, mas podemos dizer que sua “condição digital” é uma possibilidade de delimitação estrutural, cuja noção está ligada à hierarquia do texto. “Convém notar que o caráter estrutural e a delimitação de um texto estão ligados”, diz Lotman (1978: 106), ou seja, ao mesmo tempo em que é próprio do texto uma organização estrutural, esta mesma organização tem também a função de delimitá-lo. Para nós, então, a representação numérica, a modularidade, a automa-tização, a variabilidade e a transcodificação estruturam e delimitam o texto jornalístico digital. Além disso, Lotman coloca também a questão da relação dos limites com os níveis hierárquicos que delimitam um texto:

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Jornalismo Digital em Base de Dados (JDBD) como um texto da cultura

Visto que alguns dos elementos são os sinais de um limite qualquer e outros, de alguns limites que coincidem numa posição comum no texto (o fim de um capítulo é também o fim de um livro), visto que a hierarquia dos níveis permite falar da posição dominan-te destes ou daqueles limites (os limites de capítulo dominam hierarquicamente sobre os limites de estrofe, o limite de um romance sobre o limite de um capítulo), abre-se a possibilidade de uma comensurabilidade estrutural do papel destes ou daqueles sinais de delimitação (Lotman, 1978: 106).

Podemos entender também o conceito de texto pela sua expressão: “Um texto é fixado por meio de determinados signos e, neste sentido, opõe-se às estruturas extratextuais. Para a literatura, temos, em primeiro lugar, a expressão do texto pelos signos da língua natural” (Lotman, 1978: 104). Como estamos tratando de um texto que tem como unidade mínima o signo informático (Contreras, 1998), um signo composto de números, 0 e 1, que geram sistemas de natureza diversificada, como aponta Irene Machado, “Signo informático gerou o sistema de escrita em que o sistema digital numérico, portanto, de signos discretos, gera sistemas de natureza diversificada” (2010: 10), entendemos que a expressão do texto JDBD pelo signo informático proporciona a delimitação do texto, de acordo com Lotman, como uma delimitação do que pode ser combinado, especialmente porque a geração de informação e linguagens a partir do signo informático se dará por meio destas combinações estruturais dos princípios definidos por Manovich. Ou melhor, esta delimitação é um sistema de combinatória com hierarquia horizontal, na qual o príncipio 1 e 2 se combinam para gerar os outros três princípios, a partir dos quais se torna possível a geração dos textos jornalísticos digitais.

3. Apontamentos finais: bases de dados, geração das linguagens digitais e narrativa

Para compreendermos a estrutura segundo a qual surgem as linguagens digitais, já que estamos tratando do texto JDBD, também é fundamental entendermos as bases de dados como o centro da criação jornalística. No sentido de que fala Lotman, as bases de dados dominam hierarquicamente a criação e a manipulação de conteúdos diversos no texto JDBD. Este é um sinal importante de delimitação do texto, uma determinação estrutural, e é a partir daí que se geram linguagens, modelizadas pelos formatos,11 nos quais se pode ter experiências narrativas, pois a priori, em estado puro, não há narrati-vas nas bases de dados. As bases de dados não contam histórias, não têm começo e nem fim, e estão potencialmente sendo continuamente alimentadas, portanto, em constante

11. Podemos definir brevemente o formato como estrutura para as linguagens digitais, que são escritas com o signo informático. Nos ambientes digitais, o formato atua como a síntese do signo informático.

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mutação. Podemos entender as enciclopédias e as coleções como bases de dados pre-sentes na cultura há algum tempo, assim como o material bruto de uma película para o cinema, o filme e seus fotogramas, como as primeiras bases de dados da cultura. Tal percepção é necessária, pois no contexto da Semiótica da Cultura, percebemos que uma das funções do texto é gerar novos sentidos, e que os textos da cultura são a própria me-mória da cultura, dotados de inteligência no sentido de que são “dispositivos pensantes”, capazes de gerar novas mensagens. Assim, podemos observar como as bases de dados computadorizadas deram novo sentido às bases de dados dos fotogramas, gerando no-vas semioses e implicações culturais.

O que mudou é que depois da digitalização de todos os meios e seu processamento através de computadores, as bases de dados é que são o centro da criação. Uma base de dados é um conjunto estruturado de dados, com uma modelagem informática. Assim, podem-se criar várias interfaces (os formatos) para representar um mesmo banco de dados (variabilidade). Tal possibilidade e caracterização das bases de dados é explorada com profundidade por Barbosa (2007), mais especificamente para o texto JDBD. Esta lógica é oposta à das obras de arte tradicionais, ou da produção da mídia tradicional, nas quais os conteúdos têm uma só interface possível. Ou, no jargão jornalístico, quando o conteúdo é editado uma só vez. Seguindo esta lógica, agora os conteúdos produzidos pelos meios de comunicação e publicados digitalmente podem potencialmente ser edi-tados de muitas formas e manipulados como o usuário das bases de dados quiser.

É importante frisar também que para Manovich (2006: 294-295), a narração, a sequência de fatos, a história, não tem o mesmo estatuto que tinha antes da era do computador. “Se as culturas tradicionais ofereciam às pessoas narrações bem defini-das (mitos e religião) e pouca informação solta, hoje em dia temos muita informação e poucas narrações que podemos ligar entre si” (Ibidem: 282).12 Uma base de dados pode admitir a narração, mas não há nada na lógica do meio que fomente a criação de uma história. Outro aspecto da narrativa como uma navegação em bases de dados é o que Jenkins (2008: 158) chama de “narrativa transmidiática”:

Cada vez mais, as narrativas estão se tornando a arte da construção de universos, à medida que os artistas criam ambientes atraentes que não podem ser completamente explorados ou esgotados em uma única obra, ou mesmo em uma única mídia. O universo é maior do que o filme, maior, até, do que a franquia – já que as especulações e elaborações dos fãs também expandem o universo em várias direções.

Como exemplo de narrativa transmidiática, o autor analisa o caso do filme Matrix (1999), com três sequências, games, animação, sites e fóruns de discussão. “Matrix é um

12. “Si las culturas tradicionales ofrecían a la gente narraciones bien definidas (mitos y religión) y poca información suelta, hoy em día tenemos mucha información y demasiado pocas narraciones que podamos ligar entre sí”.

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Jornalismo Digital em Base de Dados (JDBD) como um texto da cultura

entretenimento para a era da convergência, integrando múltiplos textos para criar uma narrativa tão ampla que não pode ser contida em uma única mídia” (Ibidem: 134), define Jenkins. Entendemos a narrativa transmidiática justamente como uma possibilidade de múltiplas combinações em diversas bases de dados, ou, como diz o autor, em diversas mídias. É o que, por sua vez, Manovich (2006) afirma, que as bases de dados organizam a experiência cultural. Ou, na leitura semiótica, quando afirmamos que a experiência cultural das bases de dados modeliza a narrativa contemporânea.

O “usuário” da narração atravessa um banco de dados seguindo ligações em um ou diversos documentos, tal como estabeleceu seu criador/organizador (um site, por exemplo). Podemos visualizar estas diferenças abaixo:

TABELA 1Comparação entre bases de dados e narração clássica

Bases de dados Narração

Computadores Narrativas literárias, cinema

Listas de elementos Linha de causa e efeito para fatos aparentemente desconectados

Acesso a informação – sites na Web, CD ROM

Imersão

Fonte: Elaboração própria

Para acessarmos uma narrativa em um novo meio, como a internet, precisamos contar com um algoritmo cultural: representações de diversas classes de signos e linguagens, a partir de diversos códigos culturais, escritos em linguagens informáticas que se convertem em números e depois em dados, acessíveis nas bases de dados (Manovich, 2006: 290). A fusão mais significativa da narrativa e das bases de dados são os games, que possuem a capacidade imersiva do cinema, mas cuja estrutura narrativa é composta por algoritmos matemáticos. O jogador é levado a acreditar que está vivenciando uma narrativa imersiva, mas ela é composta por algoritmos e os acontecimentos e rumos da história devem ter sido previstos pelos programadores. A não ser que a automatização seja de alto nível (inteligência artificial), nada que não estiver programado previamente acontecerá. Mais uma vez, a imersão não é nova, já está na cultura há muito tempo, ou, como diz Lotman, “A ilusão de realidade” (1978 b:

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25). Nos games observamos a memória do cinema, a capacidade ilusória da imersão, gerando novas semioses e processos de significação com o auxílio da agência (Murray, 2003), observamos ainda a possibilidade do antes espectador e agora jogador tomar aparentes decisões previstas por algoritmos. Assim podemos nos deter mais uma vez na colocação de Lotman, para quem a cultura é uma forma de inteligência coletiva, um mecanismo que se organiza e desorganiza, um sistema entrópico. Para ampliar nossa compreensão sobre o conceito, Irene Machado (2007, arquivo digital) propõe o seguinte tópico temático para discussão: “Os textos transmitidos pela tradição cultural convivem lado a lado com os textos novos: cada estado sincrônico da cultura reveste-se de um poliglotismo cultural”. Se nos voltarmos para a observação da cultura no tempo, veremos que há uma simultaneidade de convivência de textos, como o jornalismo nos meios tradicionais e o JDBD, por exemplo. Assim, nenhum texto acaba definitivamente com outro, mas há uma recombinação e geração de novas mensagens.

Vimos rapidamente como as bases de dados são o centro da geração de linguagens, já que é uma estrutura comum aos textos digitais, como as redes sociais, a web semântica, os games, a hipermídia, os wikis, a geolocalização, a realidade aumentada, os aplicativos nos celulares e a visualização de dados, para citarmos os mais frequentes (embora a realidade aumentada ainda não seja de uso popular). Também foi necessário pontuar a questão da narrativa, já que a estrutura do texto JDBD coloca em evidência as diferenças entre a narrativa clássica e a narrativa nos novos meios. Com os conceitos da Semiótica da Cultura apresentados inicialmente e sua aplicação à delimitação do texto JDBD e às questões relativas ao texto jornalístico, quisemos iniciar uma discussão estrutural sobre as questões que envolvem as novas mídias e a prática do jornalismo contemporâneo.

Referências bibliográficas

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Jornalismo Digital em Base de Dados (JDBD) como um texto da cultura

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Relatos de experiências de jornalismo hiperlocal

Magaly PradoDoutora em Comunicação e Semiótica e mestre em Tecnologias da Inteligência e Design Digital pela PUC-SP. Jornalista e especialista em Comunicação Jornalística pela Faculdade Cásper Líbero. [email protected]

O artigo é um extrato do estudo1 do radiojornalismo produzido no âmbito da hibridização suscitada na ciber-cultura. A escolha foi mostrar, neste artigo, a relatoria circunstanciada de experiências de pesquisa em webradio-jornalismo produzido com base em dispositivos móveis, as quais uniram geolocalização e mapeamento de ruas da cidade, transmissão e chat em streaming, além de disseminação e colaboração de ouvintes pelas redes sociais.Palavras-chave: Radiojornalismo, redes móveis, webjornalismo, dispositivos móveis, cibercultura.

Informes de la experiencia de periodismo hiperlocal El artículo es un extracto

del estudio del periodismo radiofônico produzido en el ámbito

de la hibridación evocado en la cibercultura. La elección

fue mostrar, en este artículo, lo informe pormenorizado de

experiencias de pesquisa en radio periodismo de internet

basados en dispositivos muebles, unidos con geolocalización

y asignación de calles de la ciudad, transmisión y chat en

streaming, además de la diseminación y colaboración de

oyentes por las redes sociales.

Palabras-clave: Radio periodismo, redes muebles,

webperiodismo, dispositivos muebles, cybercultura.

Experience reports of hyperlocal journalism The article is an excerpt of the radiojornalism

study produced in the scope of the hybridization evoked by

the cyberculture. It was chosen to show, in this article, the

detailed report of research’s experiences in webradiojornalism

that have mobiles dispositives as bases, envolving as well

geolocalization and street mapping, streaming transmition

and chat, and also the listener’s dissemination and

colaboration through the social networks.

Keywords: Radiojornalism, mobile networks, webjornalism,

mobile dispositives, cyberculture.

1. Tese intitulada “Radiojornalismo na Cibercultura: uma reflexão sobre as formas de partilha de conteúdos urbanos em redes móveis”, defendida em 17 de outubro de 2012, no programa de estudos pós-graduados Comunicação e Semiótica, da Pontif ícia Universidade Católica (PUC-SP).

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88 Revista Communicare

Relatos de experiências de jornalismo hiperlocal

El espacio local es un espacio de experiencias compartidas y la proximidad espacial confiere a los acontecimientos un interés particular porque ha sucedido en el mismo

espacio en que se mueven los potenciales receptores de los mensajes construidos por los periodistas para un medio de comunicación, que los difunde. Los datos sobre consumos informativos apuntan que los ciudadanos están interesados en conocer lo que ocurre en

la proximidad. Las acciones próximas (la cercanía puede ser geográfica, social, cultural, psicológica...) a los usuarios de la información les interesan más.

(López García)

Ao se constatar que as formas atuais de se fazer rádio são insuficientes, limitadas e re-trógradas, surgiu a intenção de propor um formato radiofônico inovador, tomando por base as reflexões sobre as mídias digitais móveis. Esta proposta – desenvolvida na Tese “Radiojornalismo na cibercultura - por uma nova experiência de rádio em tempos de re-des sociais e hipermobilidade” e defendida em 17 de outubro de 2012 – possui relevân-cia na medida em que a academia poderá se colocar à frente do mercado, ao vislumbrar uma rádio produzida por dispositivos móveis (celular e GPS), articulando apontamen-tos urbanos geograficamente mapeados e lançados ciberculturalmente.

As mídias móveis, cada vez mais portáteis, mais enraizadas em nossos corpos, reconfiguram a indústria atual, pois incentivam o uso com propósitos comuns aos gru-pos de pessoas que se identificam com os mesmos gostos, com as mesmas afinidades, modificando o jeito de se expressar na coletividade. Antes, determinada audiência ouvia uma rádio ou um grupo de rádios específicas e com isso se tornava parte de uma tribo. Hoje, essa preferência pode mudar à medida que o público tem a oportunidade de en-fatizar o seu gosto e o gosto comum de seus pares nas redes sociais musicais, na assina-tura de audiocasts (a preferência pela utilização do termo audiocast, em vez de podcast, justifica-se pelo desatrelamento necessário da experiência em relação a qualquer marca de aparelho (Prado, 2007), ou, talvez, com a possibilidade de preparar o próprio material de difusão no sentido de melhorar esse gosto, e – por que não? propondo criar gosto na sua comunidade, na rede particular de interessados em produtos segmentados. As-sim, o audinteragente pode transformar a paisagem sonora estabelecida com músicas de qualidade (obviamente, a partir de sua discussão estética), informações precisas e boas histórias, especialmente geosselecionadas para cada ocasião em que cogitar gravar no ambiente detectado pela rede sem fio utilizada, dando tratamento inteligente ao conte-údo gerado. Cébrian Herreros corrobora esse pensamento

Se parte, pues, de una concepción muy abierta de la ciberradio con objeto de poder integrar otras innovaciones más o menos próximas y que tengan como núcleo expresivo principal el sonido. Emerge un mundo sonoro detrás de esta denominación que abarca todo el fenómeno sonoro de Internet o procedente de otras modalidades internas o externas de la Red. Todo ello es posible gracias al paso a la web 2.0 que repercute de

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manera transversal en todos los grandes cambios en Internet hasta dar el salto a una nueva concepción comunicativa basada en el desarrollo de redes sociales. En este caso interesan las redessociales centradas en el audio como prolongación de la ciberradio. (Herreros, 2008:134)

É incontestável que a utilização de um sistema de navegação como o GPS é atraen-te, principalmente em cidades grandes, ou mesmo em cidades menores, porém desco-nhecidas. É atraente, sem dúvida, por conta da dificuldade de se achar os caminhos que levam aos pontos de um roteiro (preestabelecido, planejado, ou mesmo não-definido anteriormente, apenas imaginado em um roteiro mental) direcionado a metrópoles ou a lugares que são visitados pela primeira vez. Evidentemente que o GPS acoplado a um programa de rádio vai muito além de um guia impresso que mostra as ruas, ou um programa de rádio que fornece a agenda cultural da cidade, ou mesmo a imprensa, com todas as habituais informações convencionais.

Nesse sentido, serão apresentadas algumas das novas versões de como se trabalhar com as possibilidades apontadas para uma radiofonia aberta em ensaios científicos, com a finalidade de por à prova as hipóteses.

Os experimentos

As novas formas de práticas com o som que estão surgindo no mundo digital pres-supõem ações das pessoas em mobilidade, porém nem sempre com cunho jornalístico ou mapeadas. Coube, então, ter a pretensão de levantar os preceitos necessários para uma forma de rádio no contexto das mídias móveis com o propósito de refletir sobre a comunicação em tempos velozes na hipermobilidade (Lucia Santaella [2007:187] cunhou o termo); e, como experimento, pensar um projeto de criação de uma progra-mação radiofônica, no formato audiocast, que combina dispositivos móveis para trans-mitir microconteúdos vinculados a lugares específicos. O que se pretendeu desenvolver, como aplicação prática, foi uma programação experimental de rádio com produção ba-seada em aparelhos móveis, como celulares, laptops e tablets, gravada e transmitida em fluxo constante por redes sem fio. Trata-se de áudio com informações digitais, associa-do ao espaço geográfico.

Assim, os audiocasts dessa programação experimental foram armazenados na in-ternet (no site nooradio.net), possibilitando sua captação e audição tanto pelos compu-tadores, tablets ou celulares, quanto por qualquer tocador de MP3. São programas que apontam referências a localidades reais e são alojados no ciberespaço – uma forma de aliar a internet às informações das ruas das cidades.

A interatividade dos experimentos foi propiciada de maneira participativa por

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mensagens de texto SMS, tuítes, postagens no Facebook, Instagram, Foursquare, em redes próprias para enviar conteúdo ligado às coordenadas geográficas, além das ma-neiras tradicionais nos espaços de comentários, permitindo unir as pessoas em torno das possibilidades de trilhas sugeridas. Santaella (2008: 130) levanta a questão da volta transformada da interação humana frente a frente:

Com as redes de comunicação móveis baseadas em localizações ressurgem os pontos de encontro no espaço f ísico de um ambiente urbano. O parâmetro da localização geográfica é assim reintroduzido, mas em atividades que continuam sendo mediadas por computador. O espaço virtual em que a comunicação ocorre é mapeado para o espaço f ísico habitado pelos corpos materiais dos participantes. Assim, o contexto espacial virtual é mapeado no mundo f ísico e o contexto espacial híbrido resultante torna-se a arena do processo interativo.

A proposta previu ainda colocar em circuito ouvintes de redes como a Blip.FM e/ou outras máquinas inteligentes para se fazer rádios investigadas no processo da cria-ção. O estudo visou seguir os vestígios de diferentes tipos de usos de interatividade para distintas necessidades tecnológicas em permanente adaptação dessas comunidades en-volvidas nas redes sociais musicais, que também estão fundidas ao Twitter. Os temas são os sinais do cotidiano, e os textos (de até 140 caracteres por postagem) podem ser enviados, compartilhando-se, assim, o que se faz ao longo do dia, de qualquer lugar em que se esteja. O ato de “tuitar” provoca um movimento de identificação de amigos quan-do um segue o rastro do outro. E a Blip.FM (ambiente para audição de músicas, possi-bilidades de se tornar DJ e relacionamento com os demais audinteragentes) faz com que todos se conheçam mais e mais, ao tomarem conhecimento das músicas escolhidas dos audinteragentes. Isso porque elas entram automaticamente (com comentários ou não), à medida que determinada música está sendo ouvida, na página do Twitter de cada qual e de cada um que o segue.

Relato 1: Walk radio hiperlocal com anotações urbanas

Em uma experiência que uniu geolocalização, redes sociais, gravação e edição em celular, foi possível colocar em prática um experimento de walk radio – audiocast móvel. No programa radiofônico, com duração de cerca de uma hora, foram ouvidas dezenas de pessoas por uma equipe de repórteres e produtores que percorreu os 2.800 metros da Avenida Paulista, onde circulam cerca de 1.500.000 pessoas diariamente, conforme dados da Associação “Paulista Viva” referentes a março e abril de 2010. Todo conteúdo produzido foi automaticamente para a web, o que levou à mobilização de variados ou-vintes na rede, apesar de não ter havido divulgação maciça, pois se tratava de um ensaio.

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Apesar de experiências desse tipo, o estado da arte do rádio no século XXI mostra que o veículo permanece refém de uma mentalidade tecnológica defasada. Quem pro-duz áudio ainda não encontrou uma fórmula para se atualizar, apesar de já ser possível basear-se em patamar tecnológico mais avançado na cibercultura. Enquanto o Brasil está décadas atrasado, o relato da produção realizada de rádio vem para provar que é viável, mesmo constatando que a realidade não abraçou ainda nenhuma tentativa de sair do marasmo que assola a radiofonia. Tratou-se de vincular a urgência de fazer rádio como uma prática viva de realidade cronotópica à reverberação no espaço público de uma cidade sonorizada: São Paulo.

Em 21 de setembro de 2011, alunos da disciplina de Radiojornalismo II, ministrada por esta pesquisadora no 3º ano de Jornalismo da Faculdade Cásper Líbero, realizaram um feito inédito, que só o futuro poderá dizer se foi um marco importante na história do radiojornalismo. Como exercício de aula, os alunos demonstraram ser possível deslocar o rumo do rádio para um sentido mais apropriado com os tempos cibernéticos, híbridos, nos quais ouvintes não se contentam mais com a velha fórmula de audição que insiste em imperar, ignorando a avalanche de ferramentas na forma de aplicativos que podem e devem permear a comunicação, tornando-a elástica e líquida.

O projeto foi dividido em duas partes: a estruturação da ideia (no começo de agosto) e, depois, o planejamento e a pré-produção. As instruções finais foram dadas apenas no dia em que o programa estava marcado para ir ao ar; enquanto parte dos alunos saiu a campo para o desafio, os demais aguardaram o retorno das coordenadas geográficas que viriam da avenida. Após uma hora no ar, a experiência ultrapassou as expectativas, pois ocorreu sem muitos atropelos e ainda deixou alguns vários perplexos. Afinal, para alguns, sair da zona de conforto do rádio tradicional, é dif ícil. O programa, uma experiência de webradiojornalismo geolocalizado, foi transmitido em streaming – conexão de áudio (ou vídeo) que se dá online, ou seja, pode-se ouvir (ou ver) sem a necessidade de fazer download – com chat aberto, proporcionando transparência e interatividade de pessoas de qualquer lugar, que podiam acompanhar o itinerário dos repórteres em suas andanças e que eram chamados pelos âncoras em esquema de revezamento no estúdio da Faculdade.

Este walk radio, como está sendo chamada a experiência, recebeu o título de “Paulista de ponta a ponta”. O slogan escolhido pelos alunos, “Do Paraíso à Consolação”, faz alusão aos dois extremos da avenida Paulista (região central de São Paulo) mapeada desde a avenida Consolação, em uma ponta, até o começo do bairro Paraíso, na outra ponta.

Essa foi uma experiência do hiperlocal ao tratar da cobertura de uma região geo-gráfica específica, tendo os jornalistas a colaboração dos moradores e/ou frequentado-res. No caso da Avenida Paulista, o número de moradores gira em torno de 5.000, segun-do o site da Associação Paulista Viva. O webradiojornalismo proposto teve como tema a Paulista, uma das principais avenidas de São Paulo, para o experimento de topofonia

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na mobilidade. Os dois lados da avenida (o ímpar e o par) foram totalmente esquadri-nhados, tendo um produtor trabalhando com cada grupo de três repórteres para cada divisão em suas 18 quadras. Na íntegra, podem ser vistos os pontos das reportagens.

Transmissão conforme a caminhada pelos números da avenida

O walk radio jornalístico foi previamente produzido com a demarcação dos pon-tos de acesso. Assim, os especialistas, que seriam entrevistados, estavam a postos em seus estabelecimentos ou locais escolhidos para entrar no ar, e responder às perguntas dos repórteres. O programa seguiu a ordem dos números da avenida. Já as persona-gens – pessoas comuns que frequentam a avenida e passavam ou estavam nas localida-des reportadas – foram chamadas na hora da transmissão. O mesmo aconteceu com o “fala-povo”, ou seja, enquetes feitas ao longo da programação, sempre de acordo com a numeração da avenida.

A pré-produção fez o mapeamento e agendou as entrevistas. Nas semanas ante-riores, no roteiro por meio de um arquivo no Google Docs, foram levantadas as pautas possíveis de conteúdos geolocalizáveis e o que poderia ser reportado, no intuito de se ter um bom balanço dos assuntos. As editorias de Cultura, Cotidiano, Entretenimento e, evidentemente, Cidades foram determinadas para pautar os temas. Assim, elas varia-ram entre pontos culturais, como a Casa das Rosas, o Museu de Arte de São Paulo, o Instituto Itaú Cultural, com suas agendas de eventos, ou mesmo acontecimentos cultu-rais ao ar livre, como a exposição Rinomania, mostrando diversos rinocerontes espalha-dos pela avenida, e ainda diversas opções de lazer, como o parque Trianon, ou sugestões de restaurantes e filmes em cartaz na orla dos cinemas. Situações rotineiras, como, por exemplo, apurar como está o policiamento da esquina mais violenta, a da Avenida Briga-deiro, foram checadas, e os números de incidentes apurados com as autoridades, assim como avisar sobre um sebo bem escondido com livros raros. Ir saciando curiosidades, quarteirão por quarteirão, sobre os prédios mais altos ou descobrir o que mais se vende nas bancas e lojas de uma das avenidas mais movimentadas da cidade também foram questões incorporadas.

Cobertura feita com dispositivos móveis

O mais importante, no entanto, não foram os temas abordados no walk radio, mas como se deu essa cobertura móvel com ferramentas geolocais. O fato de ter sido esmiuçada pelos repórteres com depoimentos que ocorreram ao vivo, pelo celular, ilus-trou muito bem o propósito de navegação entre os pontos. Enquanto os repórteres es-

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tavam em campo, coube aos âncoras contextualizarem a avenida, com notas históricas, alternando cada reportagem que entrava no ar ao vivo com as que chegavam gravadas – colhidas no horário do jornal e enviadas pelo próprio celular por e-mail, logo após o momento exato em que foram gravadas na rua. Esse tipo de cobertura foi o ponto alto dessa experiência.

Ninguém precisou de equipamentos muito sofisticados. Na maioria dos smart-phones, é possível gravar. Eles possuem microfone acoplado que grava voz, proporciona edição (básica) e possibilita o compartilhamento. Nessa experiência, o compartilhamen-to se deu com a equipe de edição que cortava os áudios para que entrassem no programa no instante em que ocorria o radiojornal.

Na rua, cada repórter entrava no ar no seu ponto de partida com uma matéria ao vivo e, posteriormente, gravava outra reportagem na sequência, que era enviada aos editores de plantão no estúdio. Estes tinham de cortar o excesso no intuito de tornar as sonoras curtas o suficiente para dar mais dinamismo ao programa. Assim, as reporta-gens que entravam ao vivo tinham um tempo com um pouco mais de um minuto ou um minuto e meio, pois contavam com a participação dos âncoras.

Intercalar, como camadas de informação geolocalizadas, matérias ao vivo e as re-cém-gravadas em trânsito, dava fôlego para que a equipe de reportagem se posicionasse novamente para espaçar a próxima entrada. Entre um repórter e outro, os âncoras liam notas frias (porém pertinentes) para não deixar o programa datado. Aliás, o jornal intei-ro foi pensado com assuntos que conseguissem ficar quentes por um bom tempo para quem quisesse ouvir fora do streaming.

Todo o walk radio contou com a paisagem sonora da própria avenida nas reporta-gens que entravam no ar, e a parte da ancoragem ganhou BG (música de fundo) previa-mente escolhido (de forma a combinar com o tema) para compor o programa. Músicas selecionadas pelos alunos da equipe responsável, que foi instruída a não utilizar trilha branca (o que comumente rádios comerciais usam e deixam todo e qualquer programa repetitivo) trouxe mais personalidade musical ao programa. É bom frisar que a parte técnica (sonoplastia) também foi comandada pelos alunos.

Broadcast now

Como o streaming foi feito pelo aplicativo Flipzu, que simultaneamente posta (como aviso) o início da transmissão no Twitter ou no Facebook, ou nas duas redes so-ciais, se estiverem lincadas, a divulgação entre os seguidores de quem tem conta nessas redes trouxe, de forma virótica, ouvintes variados, principalmente de quem “retuita” (o tuíte é retuitado quando alguém achou por bem replicar o que foi escrito por outra pessoa) ou curte a chamada para a audição (o post automático) como diálogos repercuti-dos. Quando isso ocorre, basta manter a conversação com quem se manifesta pelo chat

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como retorno providencial, garantindo audiência. Porém, grande parte de quem ouve não costuma escrever no chat, o que se constata, depois da transmissão, em razão do número infinitamente maior de quem ouviu.

Redes sociais também servem para reverberar o que está acontecendo ao vivo. Os alunos criaram o Casperwalk, um hot Twitter (espécie de conta no Twitter que somente fica aberta para divulgar ações antes, durante e apenas alguns dias depois do programa ter ido ao ar, em 21 de setembro de 2011).

Twitter Casperwalk

A ideia de colocar o programa em um ambiente como o Tumblr, ou outra plata-forma de blogs, serviu não somente para fazer upload do áudio de cada lado da avenida, como também para incluir os áudios de cada reportagem, separadamente, direcionado a quem quisesse ouvir apenas uma reportagem ou outra (é possível ver e ouvir os áudios no audioblog criado pelos alunos ou ainda no site da nooradio.net). Nesse caso, um mapa mostra os marcadores (o ícone é parecido com um pingo, ou pode ser usado o desenho de um pin) clicáveis no exato local onde estão as matérias. Ao clicar, ouve-se o áudio específico do lugar escolhido. O audioblog também abriga o chat que esteve aberto enquanto o streaming se deu com o áudio, bem como pode, com o áudio gravado, proporcionar a continuação da conversa, discussão ou mesmo novas ideias de pautas, de forma infinita e permanente.

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Print de parte da homepage do blog “Paulista de ponta a ponta”

Foursquare como ferramenta jornalística de apuração

A geolocalização é a “coqueluche” do momento na internet móvel, com as redes so-ciais afloradas como ponto alto dos últimos cinco anos no espaço onipresente da sociedade conectada. É interessante lembrar que redes como o Twitter, por exemplo, nasceram com o propósito de oferecer a possibilidade de postagem ambulante através dos smartphones.

Sabemos também que o ato de tuitar, apesar de fixar um limite de, no máximo, 140 caracteres por tuíte, requer do nosso olhar atenção para a telinha do celular. Porém, desenvolvedores de aplicativos pensaram no que poderia ser um risco entre aqueles

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que por ventura pudessem tropeçar em algo não visto no chão e criaram o programa Walk MSG´n para tuitar andando, no qual o visor da tela aciona a câmera fotográfica do celular, permitindo que se enxergue a imagem do chão enquanto se anda, digita e manda mensagens ao mesmo tempo. (Ferreira; Prado, 2010)

Porém, como a cada dia surgem novidades, gerando alvoroço no panorama da tecnologia móvel, o boom atual já não é somente o relacionamento entre pares, nem apenas a possibilidade de contar fatos corriqueiros, mas consiste em localizar onde se está, a partir de coordenadas geográficas de seu entorno, e, com isso, temporalmente compartilhar informações “aumentadas”, vinculadas aos lugares frequentados, com a ajuda de ferramentas como o GPS.

Check-in: tensão entre localização e mobilidade

Em um próximo passo, a intenção é que os repórteres e/ou a produção, que acom-panha as matérias na avenida, façam check-in em cada local. Nesse caso, pode ser usado o aplicativo Foursquare, ou outro similar que geolocalize o exato local de forma automá-tica, restando, assim, apenas oferecer informações complementares, como o nome da pessoa que está sendo entrevistada ou impressões geradas na cobertura. O ideal seria se todos os entrevistados (as fontes) também fizessem o check-in. Assim, a equipe de repor-tagem poderia afinar a logística do encontro para a realização do trabalho de reportagem.

O uso de aplicativos como este pela produção é providencial para saber, de antemão, se o local que será reportado está com frequência de pessoas que poderão fornecer depoimentos como personagens. Em alguns casos, é possível descobrir quem são essas pessoas antes mesmo de abordá-las, caso elas informem dados em seus perfis. Como o Foursquare aponta por meio dos badges quem é a pessoa que mais frequenta determinado local e mesmo quem comenta mais, é possível entrar em contato e repercutir exatamente com quem sabe mais sobre o lugar. Não é preciso chegar ao extremo e ir à procura do “prefeito” do local (usuário que mais checa nos lugares), embora a prerrogativa não deva ser descartada. Sem contar que as pessoas que mais visitam determinadas localidades, por vezes, podem nos fornecer informações precisas de quem é habitué. O que, por tabela, pode nos render sugestões de pauta (de assuntos) e de perguntas.

Imagem de um dos lugares capturados pelo Foursquare

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Internet pingando nos lugares

Coincidência ou não, o Foursquare chega exatamente na tendência de voltar ao mundo f ísico, porém sem deixar de lincá-lo ao virtual, como a apropriação da “internet das coisas” – expressão recorrente para chamar quem está dentro e fora da internet –, ou mesmo da “internet pingando ou vazando nas coisas ou nos lugares”, movimento defla-grado no final da década passada, tendo Kevin Ashton como aquele que cunhou a expres-são em 1999. Santaella discorre sobre as origens das redes móveis marcando os locais:

O ur-texto das propostas locativas, antes mesmo da existência desse nome, encontra-se no Manifesto Headmap, no qual, já em 1999, Ben Russell lançava ideias utópicas e inspiradoras que o tempo só confirmaria. Com o mote de que a internet já estava começando a “pingar no mundo real”, o manifesto alertava para o enriquecimento de nossa experiência espacial pela sobreposição de camadas de informação – imagens, textos, sons – disponibilizados por dispositivos móveis e computação sem fio habilitados com GPS e alimentados por intenso espírito comunitário. (Santanella, 2010a: 122)

Lemos (2009) afirma não se tratar mais de conexão em “pontos de presença”, mas de expansão da computação ubíqua em “ambientes de conexão” em todos os lugares, que se deve definir, de agora em diante, “como uma complexidade de dimensões f ísicas, simbólicas, econômicas, políticas, aliadas aos bancos de dados eletrônicos, dispositivos e sensores sem fio, portáteis e eletrônicos, ativados a partir da localização e da movi-mentação do usuário”.

É prudente notar que, enquanto Lemos chama esta nova territorialidade nos lu-gares de “território informacional”, Santaella (2008) prefere o termo “intersticial”. “Uma vez que a tendência desses espaços híbridos é a de dissolver as fronteiras entre o f ísico, de um lado, e o virtual, de outro, criando um espaço próprio que não pertence nem pro-priamente a um, nem ao outro, tenho chamado esses espaços de intersticiais.”

Chega o Foursquare com a iniciativa exatamente para se incumbir de dar vazão a esse anseio de mostrar a todos (entrecruzados nas redes sociais, que possuem me-canismos de postagens automáticas em variadas plataformas simultaneamente, sejam elas Twitter, Facebook, Linkedin etc.) as informações de localização com horário, mapa e comentários (críticos ou não) do lugar apontado, no caso, o check-in, atualizando o perfil virtual. Assim, proporcionar, aos que seguem e são seguidos, reciprocidade de sugestões ou microrresenhas críticas.

O intuito é o de mostrar as novas formas possíveis de se relacionar com base nos meios móveis, utilizando ferramentas amigáveis em esquema coletivo com a participa-ção de usuários (Leão & Prado, 2009). Quando alguém acessa o mesmo ponto, recebe as checagens de quem já esteve lá e postou comentários, o que pode ou não alterar seu destino. Às vezes, ocasiona a reação de outras pessoas que frequentam o lugar, concor-

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dando ou não com as opiniões, incluindo novas e mais informações. “O lugar não é mais um problema para acesso e trocas de informação no ciberespaço ‘lá em cima’, mas uma oportunidade para acessar informação a partir das coisas ‘aqui em baixo’”, reforça Lemos (2009: 162).

A maneira de se situar em trânsito, oferecendo anotações urbanas, extrapola a mera informação do paradeiro das pessoas, de sugestões de onde ir próximo ao local em que se está, ou mesmo de provocar encontros f ísicos, juntando aqueles que estão por perto – o que já comprova a utilidade do serviço. Mas aplicativos enredados a dispositi-vos móveis apoderam-se de outras possibilidades, como miragens.

Em vista disso, Santaella (2010) sintetiza ao lembrar que “as antigas fricções da distância desaparecem, para fazer surgir a ubiquidade em seu lugar. Borram-se, assim, quaisquer fronteiras entre vida privada e pública, entre dentro e fora, entre aqui e lá”. Ao se levar em conta que não basta mais apenas a atitude pessoal, a autora acrescenta de forma perspicaz.

Da intersecção resultam complementações, trocas e sobreposições entre a mobilidade f ísica e a virtual, que estão trazendo inesperados significados para espaço e lugar e que podem ser sintetizados nas expressões “mobilidade contínua” e “conectividade permanente”.

Outros aplicativos específicos de geolocalização foram lançados na esteira do

Foursquare, como Gowalla, Birdfeed, Seesmic Web e, ainda, segundo os dados da re-vista Época Negócios, de outubro de 2010, outras redes atuantes. O Twitter lançou, em março de 2010, um recurso que identifica onde o autor está quando publica a mensa-gem; o Facebook colocou uma ferramenta em que seus mais de 500 milhões de usuários compartilham sua localização na rede social; o Google possui o Latitude, cujo compar-tilhamento se dá em um mapa digital, no ar desde fevereiro de 2009, e tem mais de 3 milhões de usuários.

Webcam registra a performance

Uma próxima edição do walk radio “Paulista de ponta a ponta” poderia contar com uma webcam posicionada no estúdio para ficar à disposição dos curiosos em relação à equipe, bem como webcam acompanhando as andanças dos repórteres pela avenida no ato das reportagens. Nesse caso, o audioblog poderia conter janelas de visualização interna e externa. Uma das câmeras da parte interna mostrando a mesa com os âncoras e os produtores transitando, uma segunda câmera mostrando a parte dos sonoplastas e trilheiros trabalhando depois do vidro que os separa (a experiência foi feita em estú-dio tradicional) e uma terceira, com os editores. Uma quarta janela mostraria a câmera

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acompanhando os repórteres na rua. Como as câmeras da reportagem seguem a ordem da numeração da avenida, ela poderia ser passada de mão em mão pelos produtores, conforme as matérias vão sendo feitas, como a passagem de um bastão. Nesse caso, o internauta poderia escolher ver uma das quatro janelas abertas simultaneamente.

Os alunos Liz Terra e Narlir Galvão como âncoras no aplicativo Instagram.

Os alunos em álbum na rede social de fotos Flickr.

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Pós-produção e espaço colaborativo no mapa animado

O mapa online e dinâmico funciona também como mídia. Traz os marcadores dos locais reportados com seus áudios correspondentes, colocados logo após cada radiojor-nal, apontando suas posições no espaço delimitado da cibercidade; nessa experiência, a Avenida Paulista. Os áudios podem ser ouvidos de forma separada ou no rastro do programa, como se traçasse uma memória cotidiana do que acontecia naquele lugar, naquele dia específico.

ícones que distinguem restaurantes de lojas, prédios, serviços, hospitais etc. serão incluídos no mapa animado para melhor visualizar de que trata cada reportagem. Ao clicar e ativar o ponto selecionado para ouvir os arquivos de áudios separadamente, ou ainda se a escolha for ouvir o programa completo, que mapeia a avenida inteira, os internautas podem comentar, se houver uma caixa de comentário, sobre os lugares com impressões de quando estiveram lá ou, caso contrário, demonstrando vontade de frequentá-los. Podem também postar críticas, dicas, recomendações dos lugares apon-tados, e, assim, proporcionar, aos que seguem e são seguidos, reciprocidade de suges-tões ou microrresenhas. E por que não? até provocar encontros f ísicos, marcando com demais internautas rastreados por GPS. Lemos (2008) comenta sobre possibilidades mapeadas em seu blog “Carnet de Notes”:

Novos mapas, abertos e colaborativos, como o projeto <openstreetmap.org>, permitem uma “liberação da emissão”, típica das mídias de função pós-massiva contemporâneas. Emerge uma possibilidade de construção de novos discursos e de sentidos outros que aqueles que emanam dos centros de poder instituídos. Os mapas, como sabemos, sempre foram produzidos por técnicos a serviços de governos e de projetos militares de conquista e expansão de territórios. Hoje, cruzamentos de dados, mashups, web 2.0, mídias locativas estão criando formas bottom-up e colaborativa de discursos e usos (processos de espacialização, de construção social) do espaço, em meio a uma commoditização crescente da “mobilidade” e de “serviços baseados em localização”. Ou seja, o uso dos processos tecnológicos na constituição do espaço, do lugar, da vida social.

Grafite sonoro com QR Code

No Brasil, o uso de QR Code ainda é incipiente, de 2007 [quando surgiu em pri-meiro lugar na publicidade] para cá, apesar do número alto de celulares, nem todos possuem câmeras. Números de celulares no Brasil dão conta de que o Brasil fechou o mês de março de 2013 com 264, 05 milhões de linhas na telefonia móvel. Os dados são da Anatel – Agência Nacional de Telecomunicações.

Outro passo ainda possível na produção de experimentos é colocar em prática o grafite sonoro no início da avenida para dar o início a um audiopasseio até o final dela e

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em cada marcador com sua reportagem. Basta que o áudio completo, ou cada reporta-gem, separadamente, ganhe uma URL. Com o endereço eletrônico, pode-se obter um QR Code, nos softwares que proporcionam isso. Depois, é possível fazer máscaras do código binário e, com um spray, pichar o marco zero (que, na verdade, não é zero porque a avenida começa no número 7) e os locais que possuem audiorreportagem. Pessoas que não ouviram o radiojornal “Paulista de ponta a ponta”, no dia da transmissão por streaming, poderiam acessar o QR Code pelo celular e obter o que estou chamando de “informação aumentada” (em alusão ao termo realidade aumentada) e, assim, ouvir as reportagens e até mesmo ver as fotos dos repórteres, vídeos dos bastidores do estúdio com a equipe trabalhando etc. Como QR Code só faz sentido colocado fora da web para ser acionado por dispositivos móveis (smartphones, tablets) e, assim, acessar-se a web, o audioblog não estampa os códigos. Eles ficariam apenas grafitados nas paredes do entorno do local reportado. Em desdobramento, mais informações podem ser incluídas para ativação pelos aparelhos móveis, como dados sobre os lugares, monumentos, esta-belecimentos. Ou seja, será possível, se a produção for adiante, ouvir a história com da-tas, fatos marcantes, curiosidades, dimensões etc. fornecidas pelo próprio local, que po-derá ter interesse em fazer parte desse trajeto jornalístico ou especializado em turismo.

É viável transmitir o “Paulista de ponta a ponta”, simultaneamente, em uma rádio no dial (AM ou FM) com o streaming na web alojado em um audioblog, mostrando, as-sim, reportagens em um espaço f ísico, levadas ao ciberespaço com pessoas participando ao vivo pelo telefone, pelo chat durante a transmissão, na possibilidade de coprodução online, ou somente pelo chat, após o programa ficar disponível na web.

Relato 2. Exercício hiperlocal multimídia pingando no mapa

Em uma experiência multimídia no curso de jornalismo da FIAM/FAAM (antiga FMU), de São Paulo, alunos do último ano da graduação realizaram exercícios de jorna-lismo hiperlocal. Cada grupo de alunos escolheu uma região e as reportagens geolocaliza-das foram incluídas com pins demarcados em mapas da ferramenta Google Maps. A ideia foi entender a emergência dos novos formatos de webjornalismo dos últimos anos e re-pensar a estrutura da reportagem comum na web, transformando-a, neste caso, em uma matéria com visualização de um entorno esquadrinhado para possibilitar informação aumentada, reconhecendo a necessidade de oferecer mais conteúdo para quem transita pelo local escolhido, e, de quebra, deixá-lo armazenado no banco de dados digital (a rede).

Evidentemente que não se trata de substituir os formatos tradicionais de reportar os quatro cantos da cidade; nem de substituir ou relegar. Volta-se, à velha máxima de que um meio não substitui outro, apenas convive lado a lado com o anterior, ou sobre-posto a ele. Se anteriormente as reportagens ficavam estáticas no papel, inclusive apre-sentando muitas vezes mapas (recortes de mapas, obviamente), agora a visualização

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deixa de ser apenas visualização e passa a ser visualização aliada à navegação, ao dar ao internauta a possibilidade de “passear” pelo mapa indo para frente, para trás, para os la-dos e ampliando a região o quanto quiser. Portanto, a experiência de mapear uma região para mostrá-la não é exatamente mostrá-la melhor, mas, de outro ângulo, ou de seus vários ângulos, ou seja, proporcionar (e entender, já que são experiências) novas formas de consumo de informação, distribuição e estocagem dessas informações.

A localização geográfica de conteúdos por meio de plataformas como o Google Maps é uma das tendências mais fortes do jornalismo. Entender seu potencial e saber interpretar e construir os mapas também são habilidades muito valorizadas em um jornalista (embora já seja aproveitada também por blogueiros e jornalistas cidadãos). (Manual de ferramentas Google para jornalistas. Busca e apuração). (2010)

É possível acreditar, em hipótese, que, em futuro breve, quando alguém entrar (para ouvir, ler ou ver) em uma reportagem, ela terá como praxe sua visualização em mapas à disposição. O conteúdo a ser reportado pode até ser o mesmo de uma repor-tagem convencional, o que muda é a possibilidade de enquadrá-lo em mapas, contri-buindo para refinar a memorização. É fato que o termo “enquadrar” é demasiadamente forte para demonstrar a experiência do mapeamento, pois sugere algo preso em um quadrado. Porém, a proposta é oposta, é exatamente a da reportagem móvel aberta e, ao informar o entorno, ela pode crescer infinitamente, com cada vez mais referências, se houver ajuda dos colaboradores com a confiabilidade de quem esteve lá para atestar o que presenciou.

Uma das características que multiplicam o potencial desta ferramenta de criação de mapas é a colaboração. Qualquer pessoa pode gerar um mapa que será aprimorado por vários colegas ou por centenas de cidadãos. (ibidem)

Aos alunos da FIAM/FAAM foi sugerido trabalhar com demarcação no mapa dos lugares reportados, um deles o <maps.google.com.br.>. E para exemplificar este estudo, foi escolhido o grupo que esquadrinhou a praça Benedito Calixto, em Pinheiros, zona oeste de São Paulo. A ferramenta possui tutorial que explica como criar o mapa e postar as reportagens em diferentes mídias no mapa:

Clicar em Criar novo mapa, inserir um título e uma descrição e convidar os colaboradores do mapa (ou defini-lo como público). O endereço poderá ser divulgado no Twitter, no Facebook etc. Os colaboradores poderão inserir informações sobre os lugares desejados, além de avaliar o mapa e escrever comentários. (ibidem)

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O mapa com os ícones pingados nos locais

Onde emerge a marcação das reportagens é possível ver ícones que a própria ferramenta fornece para especificar o tipo de lugar (restaurante, café etc.). Os áudios possuem o símbolo de corneta (identificador usual de áudios) dentro de um círculo. Ao clicar na corneta, aparece a imagem de um microfone e, ao clicar nele, ouve-se a reportagem em áudio. O ideal, a princípio, é clicar e ouvir direto; porém, o exercício foi verificar as várias possibilidades. A hospedagem usada foi realizada com o agregador de áudios PodcastO-ne <podcast1.com.br>. O primeiro exercício ainda não está liberto dos autores, os alu-nos. A ideia é deixá-lo livre para receber a opinião e demais informações dos cidadãos moradores ou que frequentam a localidade. Sabe-se que ocorre, em muitos casos, duas frentes com que é importante lidar a cada nova empreitada que reúne colaboradores: de um lado, quando a experiência é a primeira realizada, caso do pioneirismo dos alunos da FIAM/FAAM, consequentemente surgem arestas a aparar. De outro lado, há a resis-tência em deixar que toquem no original.

Relato 3. Radiojornalismo hiperlocal temático

É certo que o jornalismo local sempre existiu e, com o ciberespaço, o surgimento do jornalismo hiperlocal se tornou um dos rebentos mais ricos do webjornalismo, ou do jornalismo 2.0. Na outra ponta, o jornalismo internacional realmente ganhou espaço

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por conta da facilidade de ser reportado com o advento da web (aberta), suas ferra-mentas (amigáveis) e seus dados à disposição. Jornalistas não dependem exclusivamente de agências noticiosas do exterior, apesar de elas existirem ainda, como, por exemplo, as conhecidas France Press, Reuters, Efe etc. Correspondentes internacionais também continuam existindo, mas não são os únicos a contar as histórias que acontecem pelo mundo. Muito pelo contrário, hoje existe a parceria dos cidadãos em qualquer cidade, no papel de informantes.

Com o boom do jornalismo sem fronteiras, no qual todos conseguiam, muito ra-pidamente, quase em tempo real, obter as informações dos fatos e dos acontecimentos de todos os cantos do planeta, leitores-internautas passaram a pedir um retorno de no-ticiário sobre sua cidade, seu bairro, sua rua (com ênfase no possessivo). A saturação e a consciência de que tudo está ao alcance das mãos, melhor dizendo, na ponta dos dedos, que deslizam pelos tablets, permitindo acesso às notícias internacionais dos melhores jornais do mundo (ou, pelo menos, daqueles que se escolhem para ler, ao personalizar páginas que os agregam), leva ao questionamento se estão entregando informações sobre o entorno, a quadra. Esse tipo de consumidor quer saber o que acontece na porta da casa dele. Alguém noticia? Como mencionado, essa vontade de saber sobre a comu-nidade de cada um ganhou forte presença, nos últimos anos, com o nome de hiperlocal, pois incorpora a participação dos moradores, frequentadores dos locais, entre outras características. Portanto, é pertinente trazer as palavras de García para assegurar pres-supostos do jornalismo local e constatarmos a similaridade com os experimentos.

Ao longo da história do jornalismo, o fator de proximidade geográfica tem configurado como um eixo como uma espinha dorsal dos conteúdos. Não há dúvida que a proximidade é um fator chave para que muitos meios de comunicação exerçam um papel de conexão entre as pessoas e a sociedade em que vivem. (García, 2008: 9, tradução nossa)

Pode-se, neste ponto, passar para outro relato: a experiência com os alunos da

Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) foi bastante enriquecedora. Por se tratar de um período conturbado pelas manifestações grevistas, (final de 2011), era para não dar totalmente certo. Porém, o acolhimento à continuidade do curso foi bem tranquilo e os alunos, motivados por poderem falar do tema da gre-ve no trabalho, realizaram uma experiência de webradiojornalismo hiperlocal, como os alunos da Faculdade Cásper Líbero e os da FMU/FIAM, relatados anteriormente, com a diferença de que este foi temático. Como o tema era a greve da USP que acontecia no momento, ao contrário dos demais estudantes – fora das salas de aulas por conta da

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greve –, os alunos de radiojornalismo eram quase os únicos a planejar, pautar, produzir e, depois, gravar com streaming e webcam ao vivo para quem quisesse saber ou entender os (reais) motivos do movimento estudantil.

Foi dado o nome “Os pingos nos is” ao programa. E exatamente como diz a expres-são, a ideia era tentar explicar as circunstâncias que provocaram a greve e deixar claro que não era um movimento sem importância como vários veículos da mídia estavam apregoando. Munidos do sentimento de revolta com a própria categoria, os futuros jor-nalistas (alguns já exercendo a profissão em estágios) prepararam um programa no qual todos os pontos eram levantados e todos os lados, ouvidos.

O entorno, a princípio esquadrinhado na própria ECA, foi ampliado para a cidade universitária inteira, já que a proposta foi falar de um tema que envolvia a USP como um todo. Assim, com o exercício, foi inaugurada uma nova modalidade de audiocast, a que envolve uma comunidade que frequenta um campus universitário, no caso, o que é chamado Cidade Universitária Armando de Sales Oliveira (o nome do fundador da uni-versidade, o então interventor do Estado, político liberal paulista), localizado no bairro do Butantã, na zona oeste da cidade de São Paulo.

Para hospedar o programa “Os pingos nos is”, foi criado um ambiente na plataforma tumblr, no endereço eletrônico: <ospingosnosis.tumblr.com/>. Na apresentação (no site do projeto), um resumo do projeto:

Em uma experiência unindo geolocalização, redes sociais, gravação em celular, estamos colocando em prática uma experiência de walk radio hiperlocal. Para um programa radiofônico, no formato audiocast, com duração de cerca de meia hora, estão sendo ouvidas dezenas de pessoas com uma equipe de repórteres, âncoras, produtores e trilheiros. Trata-se de vincular a emergência em fazer rádio como uma prática viva de realidade cronotópica ressoando no espaço público de uma cidade universitária sonorizada: a USP, de São Paulo. O programa, uma experiência de webradiojornalismo, será transmitido em streaming com chat aberto, proporcionando transparência e interatividade de pessoas de qualquer lugar – uma vez que estará na rede. O mapa online e dinâmico postado no Tumbrl funciona como mídia própria e terá espaço para opiniões dos ouvintes. A cartografia traz os marcadores dos locais reportados com seus áudios correspondentes colocados logo após cada reportagem apontando suas posições no espaço delimitado da cibercidade universitária. Os áudios podem ser ouvidos de forma separada ou no rastro do programa como se se traçasse uma memória cotidiana do que acontece naquele lugar num momento específico. Trata-se da internet pingando ou vazando nas coisas, movimento deflagrado no final da década passada.

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A tela do Google Maps está disponível no endereço <http://ur1.ca/ae9be>, que abrigou (e abriga) o mapa com os pins fincados nos lugares onde foram feitas as entre-vistas, indexando dados digitais a cada lugar determinado.

Os pins no mapa da plataforma Google Maps

O programa “Os pingos nos is” in-cluiu quadros de humor, quando satiriza-vam a própria situação, potencializando as características do movimento, quan-do sobrepõe informações deglutidas do cotidiano, nesse caso, tornadas cômicas. Além do radiojornalismo tradicional, baseado em entrevistas, coleta de depoi-mentos e sondagens, o programa deu es-paço a crônicas (sempre levando em con-sideração o tema da greve), mostrando interfaces dialogáveis, quando o cronista, morador do Crusp (alojamento da USP), conversava com os âncoras do programa sobre sua reconstrução do real.

A transmissão, no dia do programa, aconteceu via streaming pelo aplicativo Flip.zu, via webcam e pelo Twitter. Inter-nautas participaram do chat aberto, sina-

Lista das reportagens que aparece no Google Maps.

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lizando que estavam ouvindo e fazendo pedidos de mais quadros de humor. A ferramen-ta funcionou a contento: a interação se deu na medida em que a “conversa” aconteceu. Lopez García, que utiliza o termo “cibermedio”, sintetiza o que se entende desta prática:

Cibermedio local: aquel emisor de contenidos sobre el ente local que tiene voluntad de mediactión entre hechos y público, utiliza fundamentalmente técnicas y criterios periodísticos, usa el lenguaje multimedia, es interactivo e hipertextual, se actualiza y se publica em internet. Em este planteamiento, el ‘ente local’ es el ente que existe o puede existir em um lugar – en um espacio y em um tiempo determinados – y para uma comunidad, definida em términos de identidad compartida y a partir de la relación “securidad-libertad”. (García, 2008: 64)

No perfil do Twitter, as chamadas alimentavam o que estava acontecendo em tem-po real, no estúdio, com as entradas das reportagens ao vivo, com as pessoas envolvidas na comunidade USP. Navegação curva a curva, mapeando o entorno da cidade univer-sitária no dia 26 de novembro de 2011.

Timeline do hot Twitter criado pelos alunos na ocasião do programa

O site “nooradio” com os relatos

O site “nooradio” foi desenvolvido no decorrer da pesquisa, como uma espécie de capítulo, mas em forma digital. Ele hospeda os três experimentos realizados para este estudo. O site está no ar com domínio próprio no endereço <http://nooradio.net> e pode ser acessado para audição de todos os áudios dos experimentos.

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A homepage traz os três experimentos assim denominados: Paulista – de Aveni-da Paulista, dos alunos da Faculdade Cásper Líbero–, USP – dos alunos da Escola de Comunicações e Artes (ECA), da Universidade de São Paulo – e Calixto – de praça Benedito Calixto (zona oeste de São Paulo), dos alunos da FIAM/FAAM.

Homepage do site nooradio com os símbolos dos três experimentos em alusão ao jogo Tetris.

A página da Avenida Paulista mostra o nome “paulista” abaixo do nome do site nooradio. Isso acontece nas demais páginas. O mapa, mantendo a forma geográfica es-colhida, traz ao fundo o próprio mapa da Avenida Paulista. No canto direito, os símbo-los (clicáveis) dos outros experimentos, o mesmo acontece nas outras duas. A página da praça Benedito Calixto segue a mesma linha da Avenida Paulista, o mapa de fundo, os pins fincados no mapa e os símbolos das demais no canto direito abaixo. A página da USP também segue as premissas das outras duas e mostra o entorno da área da Univer-sidade de São Paulo, por onde a equipe de reportagem passou.

As equipes de produção, tanto da Cásper Líbero quanto da ECA/USP, aparecem no site nooradio em vídeo e foto, respectivamente. Já a equipe da FIAM/FAAM não está registrada com imagens. As páginas, contendo os áudios da Avenida Paulista, da Cidade Universitária e da Benedito Calixto, foram hospedadas na plataforma Soundcloud, com os áudios distribuídos nas respectivas páginas de cada experimento.

Este artigo pinçou experimentos dos estudos para o doutorado. Concentrado em radiojornalismo na cibercultura a partir de uma investigação sobre as formas de inser-ção de conteúdos urbanos em redes móveis – buscou apoio no tripé jornalismo, rádio e arte, com as variantes webjornalismo, rádio feito pelo celular e audioarte. Jornalismo, por ser a profissão da autora, rádio, a paixão, e arte, o que move a vida, seja profissional

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ou pessoal (hoje mais misturada do que nunca). Foi interessante notar que o radiojor-nalismo proposto no início deste estudo é produto da cibercultura, inspira-se na arte e se utiliza das tecnologias digitais móveis para existir e chegar (muito) perto das pessoas, ouvintes e/ou colaboradores em suas localidades cotidianas.

Após esta pesquisa com o reconhecimento do estado da arte da rádio, do celular e do webjornalismo, aproximando-se e distanciando-se o tempo todo da arte da deriva, da mobile art e do real time web (nowism), entre outras vertentes imbricadas aos temas ca-ros a este estudo, não seria possível o trabalho apenas com o radiojornalismo tradicional (mesmo aquele que usa celulares e os que estão dentro da internet, o que demonstrava ser pouco para o frenesi infotecnológico instalado no jornalismo), que vem sendo feito, ainda em 2013, de um jeito “duro” (modelo antigo), fechado (fixado e preso em grades de programação), comportado até demais (robótico, sem personalidade). Certamente, não se trata de oposição ao jornalismo regrado, pois, no que diz respeito ao seu conteúdo informativo, é preciso seguir regras. Trata-se de jornalismo e não de ficção; no entanto, esse jornalismo não precisa ser vetusto, lento, atrasado.

É por essas e outras razões que esta pesquisa não foi em vão. É preciso acordar para a realidade digital, saber usar muito bem os aparatos tecnológicos a favor da radio-fonia renovadora, arejada, inspirada. A ideia de propor uma nova forma de fazer rádio não está fechada, mas em progresso, sendo testada a cada nova experiência. Aplicativos são verificados, novas formas de interação e de automatização são experimentadas. Não se pretende impor uma nova estrutura de se fazer rádio, apenas colocar à prova dife-rentes formas de trabalhar o radiojornalismo aliado às tecnologias digitais de ponta. A ideia é mostrar apenas que existem outras possibilidades de se fazer rádio. Mas, quando se fala “rádio”, significa dizer a rádio atual, a rádio multimídia, a rádio com imagens complementares, a rádio com chat aberto, com a ajuda do colaborador, do morador, do frequentador; a rádio recebendo opiniões em tempo real, a rádio conectada nas redes sociais, a rádio que vai atrás de onde o público-ouvinte está (por mais que esta última frase pareça um slogan, é isso mesmo que é desejável dizer); a rádio que não se contenta em repetir o que radialistas vêm fazendo há nove décadas; porque o mundo do jornalis-mo, o da comunicação, e mesmo o da web (apesar de mais recente que os demais) vem sofrendo mudanças e é preciso acompanhá-las, adaptá-las e tirar proveito do que essas mudanças nos trazem de melhor.

Na convicção de que há muito que se fazer para melhorar o estado da radiofonia, tan-to em estudos como este, quanto na prática da profissão, coloco-me à disposição de quem chegou até esse ponto da leitura para receber sugestões e poder, assim, aprimorar este estudo de onde saíram estes relatos circunstanciados de experimentos de pesquisa (dis-ponível na Biblioteca Digital de Teses e Dissertação da PUC-SP- SAPIENTIA em http://www.univerciencia.org/index.php/browse/index/53?sortOrderId=&recordsPage=9).

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Relatos de experiências de jornalismo hiperlocal

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Gastronomídia: los entornos de medios y lenguajes Alimentación y la Cocina Esta comunicación estudia la construcción de la lengua de la

gastronomía y entornos de medios culinarias en los alimentos

y la cocina, y su importancia en el universo mediático contem-

poráneo. Es en este escenario que el sistema constituido por la

cultura mediática es reformulado por el sistema de la cultura

de la comida y viceversa, la construcción de una nueva red de

significados, tanto para la toma y, a continuación, un nuevo

lenguaje dentro de un entorno de medios: a gastronomídia.

Palabras-clave: Mediatización, semiótica de la cultura,

gastronomia, lenguaje, culinaria.

Esta comunicação investiga a construção das linguagens da gastronomia e da culinária nos ambientes midiáticos da comida e da cozinha, e sua importância no universo midiático contemporâneo. Considera-se nesse cenário que o sistema da cultura constituído pela mídia é ressignificado pelo sistema da cultura da gastronomia e vice-versa, construindo uma nova teia de significados para ambos e fazendo daí surgir uma nova linguagem dentro de um ambiente midiático: a gastronomídia. Palavras-chaves: midiatização, semiótica da cultura, gastronomia, linguagem, culinária.

Helena JacobDoutora em Comunicação e Semiótica pela Pontífica Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e docente da Faculdade Cásper Líbero e do Centro Universitário Fecap.

Gastronomídia: os ambientes midiáticos e as linguagens da comida e da cozinha

Gastronomídia: the media environments and languages of food and kitchen This

communication investigates the construction of the language

of gastronomy and culinary media environments in food and

cooking, and its importance in contemporary media universe.

It is in this scenario that the system constituted by the culture

media is reframed by the system of the culture of food and vice

versa, building a new web of meanings for both making and then,

a new language within a media environment: a gastronomídia.

Key-words: Mediatization, semiotics of culture, cousine,

language, cooking.

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Gastronomídia: os ambientes midiáticos e as linguagens da comida e da cozinha

Comer é um dos atos que realizamos com maior frequência ao longo de nossas vidas. Mesmo considerando que se trata de uma necessidade biológica, é certo que não come-mos apenas para matar a fome f ísica, mas também para nos alimentarmos de cultura e, claro, de comunicação. A comida e a cozinha são elementos reconhecidos como espaços de convívio e atos de compartilhamento de experiências e de diálogo. Assim, se vivemos em um tempo quando o compartilhar é mais do que viver, podemos afirmar que “a comida está na moda” e que nunca se trabalhou tanto a comida na comunicação como nos dias de hoje – mesmo se considerarmos a importância elementar da cozinha ao longo da história humana como instrumento de organização social por meio de festas e eventos, entre outros exemplos.

Cabe lembrar que também nos alimentamos de imagens. Afinal, o mundo da ali-mentação é também um mundo de imagens, transfigurado em fotos de revistas, cenas de programas de televisão, fotos de comida compartilhadas nas redes sociais. E também de embalagens, de cartazes, filmes publicitários e até mesmo de espaços imobiliários, tal é a inserção da comida na cultura que vai além da cozinha no contemporâneo.

Foi desse cenário, novo e antigo, simples na superf ície e complexo na amplitude, que se originou a tese “Gastronomia, culinária e mídia: estudos dos ambientes midiá-ticos e das linguagens da comida e da cozinha”, elaborada pela autora deste artigo, sob orientação da prof.ª dr.ª Lucrécia D’Alessio Ferrara no Programa de Estudos Pós-Gradu-ados em Comunicação e Semiótica da PUC-SP, defendida em março de 2013.

A tese estudou a diversidade comunicativa do ato de comer e de cozinhar, e, mais especificamente, a análise de como se processam os vínculos entre as pessoas e a comi-da mediada e mediatizada nos ambientes midiáticos da comida e da cozinha. Mediada porque a comida media relações entre pessoas, ou seja, estabelece vínculos entre quem consome e quem produz a comida, assim como media a relação entre quem cozinha e quem serve a comida, por exemplo. E mediatizada porque amplamente explorada em todos os meios de comunicação contemporâneos e até mesmo no seu próprio conteúdo.

A questão se mostra pertinente ao estudo da comunicação contemporânea, visto que temos assistido a uma explosão da exposição midiática da comida e, principalmente, das imagens da comida. Há culinária, gastronomia, panelas e receitas por todos os lados: na televisão, nos jornais, nas revistas, no rádio, nas livrarias, na publicidade, nas bibliotecas. Não queremos dizer aqui que cresceu a importância da alimentação, mas certamente cresceu o poder de sua comunicação. O quadro hoje observado foi construído ao longo de milênios da história humana, e é por isso que a tese trabalhou com a metodologia arqueológica, explorando a história da alimentação de modo a desvendar pontos-chaves da construção desse cenário tão complexo das linguagens da cozinha e da comida hoje.

Partindo do pressuposto de que a alimentação se comunica a partir de duas linguagens distintas e, ao mesmo tempo, muito semelhantes, a gastronomia e a culinária, fomos em busca dos pontos comunicativos mais importantes nesse entendimento.

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Partindo deste percurso histórico, trabalhou-se o desvendamento das linguagens da cozinha do ponto de vista da semiótica da cultura, considerando a comida e a cozinha sistemas culturais que estruturam linguagens decorrentes de seus processos de funcionamento. Assim, o estudo contínuo pela comunicação do alimento, tendo em vista que o alimento é o código primordial das linguagens de tais sistemas; partimos para o estudo da culinária, aqui entendida inicialmente como a arte de se saber comer e de se saber cozinhar, passando pelo espaço comunicativo entre culinária e gastronomia e chegando à comunicação da gastronomia, essa altamente exposta à linguagem da comida e da cozinha. Por fim, o estudo chegou à Gastronomia como Mídia, hipótese que originou a pesquisa: dada tal explosão midiática estaríamos assistindo a uma transformação da gastronomia em mídia independente, que comunica além do seu suporte? Tal pergunta foi respondida ao final do trabalho e, na sequência desta comunicação, mostraremos as principais conclusões de cada parte da tese.

Antes deste percurso, é importante esclarecer como foi constituída a metodologia e o corpus da pesquisa. A metodologia é a arqueológica, de busca de informações históricas relevantes e capazes de desvendar os objetos em discussão. Já o corpus da pesquisa foi construído por meio de exemplos dos meios de comunicação impresso, audiovisual e digital contemporâneos, além de exemplos pertinentes ao estudo de tais linguagens advindos da publicidade e até do ambiente imobiliário, escolhidos de acordo com o ponto estudado e delimitados a partir de 2002. A última década se configurou como objeto ideal por concentrar um alto índice de transformações da gastronomia do ponto de vista comunicacional, especialmente em relação à criação de mídias especializadas no tema. Ao analisar a representação contemporânea da comida, lançamos luz sobre a construção de imagens da cozinha e da alimentação. E essas imagens passam por uma intensiva mediação do processo industrial alimentar, que recodifica os alimentos e os transforma em outros textos da cultura.

A partir deste ponto, cabe esclarecer que utilizamos no trabalho os conceitos da Semiótica da Cultura de origem russa, advindos principalmente da obra de Iúri Lótman. Esta linha de estudos da semiótica analisa o processo de transformação cultural por meio da observação do funcionamento dos sistemas da cultura, trabalhando com o con-ceito de que os produtos da cultura seriam os seus textos, uma abordagem conceitual que vai muito além da associação imediata com o texto escrito:

El concepto de texto fue objeto de una transformación sustancial. Los conceptos iniciales de texto, que subrayaban su naturaleza unitaria de señal, o la unidad indivisible de sus funciones en cierto contexto cultural, o cualesquiera otras cualidades, suponían implícita o explícitamente que el texto es un enunciado en una lenguaje cualquiera. La primera brecha en esta idea parecía obvia, fue abierta precisamente cuando se examinó el concepto de texto en el plano de semiótica da cultura. Se descubrió que, para que un mensaje dado pueda ser definido como “texto”, debe estar codificado, como mínimo, dos veces. Así, por ejemplo, el mensaje definible como ley se distingue de la descripción

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Gastronomídia: os ambientes midiáticos e as linguagens da comida e da cozinha

de cierto caso criminal por el hecho de que pertenece a la vez al lenguaje natural y al jurídico, constituyendo en el primer caso una cadena de signos con diversos significados, y en el segundo, cierto signo complejo con un único significado. (Lótman, 1996: 78)

A Semiótica da Cultura afirma que a própria cultura é um grande texto, erguida que está na junção e no intercâmbio entre tantos outros textos que ali se constroem e se modificam. No caso deste estudo, a cultura da alimentação agrupa todos os textos já gerados que se relacionam à comida e à cozinha, desde o primeiro alimento consumido pela espécie humana até o prato mais sofisticado surgido em um laboratório experi-mental de cozinha: todo e qualquer texto deste sistema da cultura faz parte do tecido cultural da alimentação. E na junção entre eles estruturam-se os vínculos comunicativos que constroem novos textos, em um processo contínuo de semiose e de recodificação inerente a qualquer sistema cultural.

Nas ambiências da cozinha e do alimento, pode-se observar uma farta geração de textos que, por sua vez, acabam gerando imagens que comunicam significados dessa cultura. Se Ferrara (2008) afirma que “comunicar é representar”, toda constituição de textos gerada pelo processo cultural e pelo processo comunicativo é uma representação que, por sua vez, gera uma imagem.

Unindo o conceito de texto ao de sistema da cultura, pontuamos que a alimentação é um sistema da cultura que produz textos modelizados pelas transformações culturais naturais do processo histórico. Assim, retomando o conceito de texto de Iúri Lótman, lembramos que todo texto da cultura é um arranjo sígnico originado por um sistema da cultura que relaciona e estrutura os códigos ali presentes em certa ordenação que faça sentido, ou seja, que estabeleça uma linguagem. Tal sentido é dado exatamente pela mo-delização dos sistemas, processo de semiose que inter-relaciona sistemas criando novos signos e, portanto, novas linguagens compreensíveis para aquele sistema e para outros sistemas próximos ou correlatos. No caso do sistema cultural da alimentação e da cozi-nha, tal ordenação dá origem a duas linguagens distintas: culinária e gastronomia, que são dependentes da dinâmica própria da cultura para se distinguirem uma da outra e, exatamente por isso, acabam por se confundir e se hibridizar em um grande número de situações comunicativas.

Essa transformação constante e ativa da cultura se dá por meio da ação dos siste-mas modelizantes, que atuam na organização dos textos para que estes sejam compre-ensíveis dentro de uma dada linguagem. O conceito de modelização advém dos siste-mas de máquinas, com origem na cibernética e na informática como observa Machado:

Vale lembrar que o termo ”modelização” foi forjado no campo da informática e da cibernética, para designar a operação que, no contexto das máquinas, se encarregava da auto-organização e do controle sem os quais a comunicação não pode ser pensada como organização do que está disperso. No campo da cultura passa a designar processos de regulação de comportamento de signos para constituir sistemas. Diante disso entende-se

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que a palavra ”modelização” deve ser entendida aqui como “um programa para análise e constituição de arranjos” e não a simples “reprodução de um modelo”, uma vez que a ideia de um programa permite a existência de configurações signicas particulares, especificas e ainda comunicantes, como que postas em continuidade em uma cadeira de linguagens. A modelização cumpre, igualmente, o designio de explicitar a vinculação histórica do sistema que não surge do nada, mas elabora e redesenha procedimentos da experiência cultural. (Machado, 2007:29)

Neste ponto, é fundamental lembrar que a geração de textos do sistema cultu-ral da alimentação organiza e estrutura linguagens, se dá em processos de mediações altamente complexos, que trabalham sempre com a vinculação inerente ao processo de mediações, como a de preparar os alimentos, a de cozinhar ingredientes, de usar o próprio corpo para fatiar, picar e cortar, de mesclar ingredientes para seguir uma receita e obter um prato como resultado final. Todas elas realizam vinculações e comunicações no sistema cultural da comida e da cozinha, lembrando que o próprio ato de cozinhar pode ser visto como uma grande mediação, estruturada na linguagem da culinária e/ou da gastronomia, o que nos leva a processos de midiatização igualmente complexos.

Quando se aborda o processo comunicativo do alimento, é preciso lembrar que existem inúmeros processos mediativos envolvidos nesse sistema, como o do agricul-tor que escolhe uma determinada semente para plantar um tomate e depois o colhe, armazena e vende, ou a mediação da cozinheira que transforma o tomate em molho. A definição de mediação é de uma complexidade ímpar, que pode ser percebida nas palavras de Cimino:

Mediação é um daqueles termos que passou a identificar diversas manifestações comunicativas sem que se tivesse clareza de sua acepção conceitual. Em decorrência disso, ao invés do esclarecimento sobre seus possíveis empregos, esta polissemia acabou revelando sua vagueza terminológica. Tal fragilidade conceitual acabou transformando as pesquisas em comunicação num imbricado campo cognitivo. Consequentemente, isto exige do pesquisador uma enorme precisão analítica acompanhada de um redobrado esforço interpretativo. (idem, 2010: 21)

A autora aponta ainda a necessidade de se trabalhar com o conceito de vinculação como mediação, lembrando que o caráter transformador da mediação só se dá quando há a criação de vínculos. Afinal, a mediação é o ato de estabelecer relações, e, no caso dos estudos comunicativos, de estabelecer processos de comunicação, e a vinculação é fundamental para que se possa obter sucesso no processo:

Portanto, mediação não é uma questão irrelevante. Sua adequação conceitual se justifica na medida em que não é possível estudar os diferentes contextos da comunicação por meio de uma mesma designação (mediações) para todas as formas do agir comunicacional. É necessário, portanto, a construção de determinadas categorias epistemológicas que

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Gastronomídia: os ambientes midiáticos e as linguagens da comida e da cozinha

vão discutir naturezas distintas daquilo que se entende por comunicação. Daí que meio, mediação e midiatização dizem respeito a processos comunicativos distintos, marcados por objetos e procedimentos metodológicos completamente diferentes. As práticas comunicativas mediativas são necessariamente, vinculativas, já que produzem um movimento de desestabilização das hierarquias, dos códigos, dos princípios, dos fundamentos de todo e qualquer ato de comunicação. (Cimino, 2010:22)

Muniz Sodré diz que a midiatização abrange uma nova capacidade de vincula-

ção da sociedade contemporânea, que estaria baseada não apenas numa inevitável midiatização da comunicação, mas transformada por um tempo e espaço virtuais. O autor fala da geração que está em constante interação tecnológica e o quanto essa midiatização – que ele também chama de tecno-interação – estaria impactando a vinculação entre indivíduos:

Um desafio de redescrever o homem diante das novas tecnologias: esta é a questão da antropologia ético-política da comunicação. Redescrever como o homem, o indivíduo, o sujeito humano se situa diante de uma sociedade que é por inteira, mesmo nas suas zonas de pobreza, atravessada por tecnologias. Depois, levar em conta as transformações da consciência, dos jovens que agora estão brincando o tempo inteiro com computador, com videojogos, sob o influxo de uma ordem cultural que é de ordem simulativa. Essa geração parece ter contato com o mundo das simulações. Ocorre um fenômeno novo, que nós poderíamos chamar de midiatização, diferente de uma interação qualquer. O que nós estamos observando agora é uma tecno-interação, uma interação por meio de tecnologia, que se processa desde o telefone até os meios de comunicação. Estamos assistindo a uma multiplicação, uma disseminação das tecno-interações na vida social. Pois bem, tudo isso que é midiatização é um processo abrangente, enorme na vida social; tudo isso diz respeito ao campo da mídia, dos meios de comunicação, mas a comunicação não se esgota aí. A comunicação diz respeito, na verdade, à vinculação, quer dizer, como e por que estamos socialmente juntos. Por que nós nos amamos, ou nos odiamos, nos respeitamos, por que nos matamos, ou por que morremos, às vezes, pelo grupo, numa guerra, para defender a família, sei lá... Significa, no fundo da questão da comunicação, a aproximação humana, e a questão da mídia é um dos aspectos dessa aproximação. A mídia diz respeito mais à relação do que a vinculação; o vínculo passa por músculo, passa por consciência, por carinho, afeto, passa por ódio. (Sodré, 2011)

Levando esse pensamento de Sodré para o universo da alimentação, percebemos que essa tecnointeração está mudando a vinculação do homem com o seu alimento, e mais do que nunca a imagem da comida se comunica mais diretamente com as pessoas do que a própria comida. A imagem do que se vai comer ou o que se pretende comer impacta mais nessa sociedade tecnointerativa do que a própria alimentação, em um

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processo contínuo de midiatização da cozinha e dos alimentos, que começa na comu-nicação do alimento e acaba por se constituir amplamente no surgimento de uma nova linguagem advinda de tais fenômenos, a gastronomídia.

A comunicação do alimento

O biólogo espanhol Faustino Córdon, já na década de 1970, dizia que “Cocinar hizo al hombre”. Tanto acreditava nesta verdade que batizou um de seus livros, escrito em 1979, com ela. Na obra, o autor discute como o domínio das técnicas de cozinha transformou a cultura e a sociedade humanas, destacando especialmente aquelas técni-cas relacionadas ao cozimento dos alimentos. Tal processo culminou em uma transfor-mação no modo como utilizamos os alimentos na comunicação e como mediações são realizadas tendo-os como objetos. Visto que tais mediações transformam os alimentos de modo permanente, podemos afirmar que cozinhar é uma forma de modelizar os ali-mentos, alterando suas características iniciais e transformando-os culturalmente.

No ambiente midiático da comida e da cozinha, essas modelizações podem ser geradas também pelo modo como o alimento se apresenta para consumo. Há alimentos que são modelizados pelo frio, pelo fogo, pela defumação ou até mesmo aqueles que são consumidos crus, mas transformados por técnicas de corte e pela adição ou não de temperos – caso da gastronomia japonesa, por exemplo, que se destaca pelo modo como seus pratos são cortados e pela ausência de temperos em excesso.

A mediação da comida pelo homem sofre a ação inicial da necessidade trazida pela fome, mas também é intensamente modelizada pelo gosto – tanto que uma deter-minada cultura em muitas ocasiões se distingue e até se define por gostar mais de um ou de outro alimento; no Brasil, por exemplo, é senso comum que o arroz com feijão constitui a base da alimentação diária da maioria da população brasileira, que prefere essa combinação às batatas, que predominam em boa parte da alimentação europeia.

Montanari (2009:10) lembra que o gosto é um produto cultural, resultado de uma realidade coletiva e partilhável, em que as predileções e as excelências se destacam, não a partir de um suposto instinto sensorial da língua, mas de uma complexa construção histórica. Ambos, tanto o gosto quanto a fome, têm capacidade comunicativa e cultu-ral de mediar o alimento nos seus processos comunicativos. O processo de exposição midiática comunica um estilo de viver, de se relacionar socialmente e de construir a sua comunicação. No turismo, o alimento atua como elemento de “reconhecimento de terreno”, ou seja, como um modo de se conhecer aquela nova cultura que é visitada. Daí concluímos que a comunicação do alimento parte da necessidade inicial de nos ali-mentarmos e passa pela estruturação das linguagens derivadas da comida e da cozinha enquanto sistemas da cultura.

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Gastronomídia: os ambientes midiáticos e as linguagens da comida e da cozinha

A comunicação da culinária

Ainda que se trate de uma atividade hoje comum, não seria possível conhecer as transformações da culinária ao longo das décadas da história se não houvesse ocor-rido processos comunicativos que possibilitassem a estruturação dessa linguagem. Só podemos dizer, por exemplo, que uma determinada cozinha é típica do Brasil porque as receitas que hoje consideramos representativas do nosso país foram midiatizadas e comunicadas ao longo do processo de constituição da culinária brasileira. No entanto, devemos lembrar que a comunicação não pressupõe necessariamente um aparato midi-ático técnico ou tecnológico para acontecer, confusão que é comum na era contemporâ-nea dominada por dispositivos tecnológicos e midiáticos de todos os tipos.

No caso específico da culinária, a mediação corporal estabelecida pelo profissional de cozinha interfere diretamente na transformação do alimento como texto da cultura e, portanto, na comunicação por ele estabelecida. Ao escolher fatiar, picar, triturar ou moer um alimento, o cozinheiro realiza uma primeira transformação cultural que implicará o tipo de mediação que irá estruturar o texto prato ou receita dessa linguagem culinária.

Desse tipo de processo mediativo estabelecido pela técnica origina-se a tradição do caderno de receitas de família ou, anterior a esta, a passagem oral de receitas de ge-ração a geração. Ambos os processos já revelam uma midiatização da culinária, quando ela deixa o âmbito da cozinha e passa a criar estratégias comunicativas em outros am-bientes. Acreditamos que foi justamente esse tipo de comunicação que deu origem a um dos textos mais comumente associados à linguagem da culinária: os livros de receitas.

O mercado de livros de culinária, obras que ensinam a cozinhar por meio de dicas e receitas simples, revela que o apelo da linguagem da culinária é muito forte, levando editoras de todo o mundo a lançarem inúmeros títulos todos os anos nessa área. Um passeio por livrarias já revela esse uso comunicativo do “aprender a cozinhar” ou do “co-zinhar fácil”, que se destaca amplamente na era do saber rápido, eficaz e hedonista. Saber fazer culinária e cozinhar com rapidez, eficiência e prazer, sem ter como resultado muita louça para lavar ou muito trabalho no final. Tal comodidade certamente sempre virá acompanhada por receitas, a estratégia comunicativa mais representativa da culinária.

Nota-se que, no sistema cultural da culinária, a receita é um tipo de texto-código (Lotman, 1996), que organiza os modos de se fazer um determinado prato e estrutu-ra, assim, a transmissão de informações culinárias em uma organização comunicativa compreensível. Ainda de acordo com Lótman (idem:143) “el símbolo se define como um signo cuyo significado es cierto signo de otra serie o de outro lenguaje”. Acreditamos que a receita é um texto que foi codificado e que estrutura a formação e o arranjo signico dos pratos (textos) originados pela sua ação f ísica.

Fica clara nessa passagem a importância da receita tanto como documento histó-

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rico quanto sociológico, ao indicar que desde os primeiros registros impressos dessas receitas já se qualificava um espaço de comunicação com dimensões complexas, que ia além do gosto ou valor comercial dos alimentos em discussão. É nesse processo que identificamos a receita como o elemento-chave estruturante e demarcatório da comu-nicação da culinária, ou seja, da construção da sua linguagem, pois os modos de repre-sentação das receitas estruturam o saber fazer da cozinha nessa semiosfera.

Da culinária à gastronomia

Se a gastronomia é a linguagem do excesso, do hedonismo de comer e cozinhar, há que se lembrar sempre que sua estruturação depende da linguagem culinária. Assim, pretendemos analisar qual foi o momento histórico do ponto de vista comunicacional que possibilitou, no contexto cultural do Ocidente, a passagem da culinária à gastro-nomia. É possível definir que esse momento ocorreu durante os complexos processos decorrentes da Revolução Industrial do século XIX.

Graças às transformações sociais, políticas, econômicas e culturais que a indus-trialização trouxe para o homem ocidental, uma nova ordem de textos da cultura foi criada e acreditamos que seja nesse momento que a mecanização e a exposição da culi-nária abriu a possibilidade do surgimento da linguagem gastronômica como conhece-mos hoje. Acreditamos que esse momento de explosão da cultura esteja relacionado com a Modernidade e o Movimento Moderno, por terem sido momentos de organiza-ção social impactantes para a estruturação das linguagens comunicativas.

Ao trabalharmos o conceito de explosão da cultura, precisamos lembrar que essa terminologia não é a de destruição, como pode lembrar a ideia de explosão advinda de fenômenos f ísicos. No campo de estudo das ciências humanas, momentos de explosão são aqueles configurados por momentos de alta imprevisibilidade que levam ao surgi-mento de novas configurações no cenário da cultura. Na semiosfera da alimentação, tais momentos de explosão lidam com a heterogeneidade típica das linguagens. Ao tratar especificamente de cultura e explosão, em obra de mesmo nome, Lotman (1999: 159) coloca a importante questão de que o espaço semiótico é formado pelos fragmentos de estruturas variadas, que conservam sua memória inicial, mas quando em choque uns com os outros, acabam por se reconfigurar em novos textos. É a prova de sobrevivência dos sistemas semióticos, pois ao trocarem informações em colisão no espaço frontei-riço, tais sistemas se reconfiguram e, portanto, mantém o seu funcionamento. Dessa explosão, que nasceu com as transformações advindas da Modernidade, nasceu a estru-turação da culinária em gastronomia, criando um processo comunicativo espetacular para esta última linguagem.

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Gastronomídia: os ambientes midiáticos e as linguagens da comida e da cozinha

A comunicação da gastronomia

Devemos pontuar, inicialmente que a linguagem da culinária atua na estruturação básica da gastronomia; visto que é propiciadora de mediações complexas, a culinária se ocupa do cozinhar, enquanto ato técnico, e do congregar e compartilhar, atos sociais. Já a gastronomia depende sobremaneira da comunicação, pois ela precisa “dizer” que existe para de fato existir. O indivíduo que quer pertencer e fazer gastronomia deve anunciar tal intenção. Se o restaurante não for conhecido por um prato em destaque e, principalmente, pelo seu chef renomado, não é gastronomia. Se uma festa não se des-dobra em um grande evento com comidas variadas, também não há a existência da linguagem gastronômica naquele texto.

Gastronomia e culinária, como linguagens que são, mediam relações culturais por meio dos resultados de sua produção em textos, que são receitas, pratos e mídia, por exemplos. Ferrara fala sobre esse movimento da cultura e da comunicação:

Ao lado do comunicar, a cultura se coloca como outro polo que resgata o meio através do qual se assinala a produção, a consecução de um artefato e sua troca. Este meio constitui manifestação material do desenvolvimento humano e do alcance de um modo específico de vida. Desse modo, o reconhecimento da natureza de um meio de comunicação, sua diferença constatada, publicada e divulgada situa e identifica a cultura, ao mesmo tempo em que empresta, à comunicação, território f ísico, político e social” (Ferrara, 2008: 11)

A culinária que se metamorfoseia em gastronomia fornece uma nova constru-tibilidade ao espaço, gerando uma comunicabilidade exponencializada, que cria uma espacialidade do show, do grande acontecimento – aquilo que Lipovetski (2010) afirma ser típico da sociedade do hiperconsumo: a busca pelo diferente e exótico. Ao contrário da sociedade de consumo, não basta possuir e usar marcas famosas; no hiperconsumo, ao se consumir, passa-se a fazer parte da marca, buscando se diferenciar nessa fusão de mente e produto. É preciso ter uma experiência de vida, comer algo muito diferente do seu cotidiano e, principalmente, ter histórias para contar.

Se analisarmos a comunicação que se dá na fronteira entre culinária e gastronomia, notamos que é possível estruturar uma comunicação de cunho culinário sem gastrono-mia, mas o oposto não se observa com frequência. Assim, criar textos da gastronomia sem resquícios da culinária é tarefa praticamente impossível na cultura e na comunica-ção. A gastronomia apresenta-se como uma linguagem muito complexa, por ser formada por uma série de mediações e de modelizações sociais, históricas e econômicas. Se co-memos para satisfazer uma necessidade básica humana, o que nos leva a querer saborear um chocolate qualificado como gourmet, com pedaços de sal marinho, por exemplo?

Essa combinação, inusitada para os padrões normais de uma alimentação ociden-tal como a brasileira, certamente não visa satisfazer uma necessidade biológica, mas sim, um desejo ensejado no ambiente cultural. Isso pode acontecer quando o consu-

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midor tiver contato com a informação de que sal e chocolate podem oferecer um sabor surpreendente e especial, lembrando adjetivos que seriam naturalmente usados na pu-blicidade para descrever o chocolate. Assim, o sabor combinado de tais ingredientes, aparentemente tão díspares, pode se tornar um gosto, uma escolha gastronômica, texto capaz de criar cultura, fixando sentidos, símbolos e valores.

A gastronomídia

Ao final do estudo, chegamos ao ponto de confrontar a hipótese inicial e, sim, observamos que hoje a gastronomia se comunica além dos suportes midiáticos que utiliza, constituindo ambientes de mídia que estruturam uma nova linguagem e se comunicam por meio dela. Esta é a gastronomídia, a gastronomia que se rearranja simbolicamente em mídia própria, ou seja, que se comunica e se espetaculariza (Debord, 1997) por si própria. Cabe pontuar que esta não é uma proposta que busque dizer que a gastronomia passe, assim, a prescindir dos meios de comunicação, especialmente aqueles configurados como de massa, para se comunicar. O que pontuamos é que a gastronomídia atua estabelecendo vínculos diretos entre indivíduos e a comida e a cozinha.

Visto que a gastronomídia trabalha intensamente o espetáculo midiático, pontua-mos que ela se insere naquilo que Muniz Sodré chama de biosmidiático:

Defino mídia não como transmissor de informação mas mídia como ambiência, como uma forma de vida. Mídia como o que o Aristóteles chama de BIOS – isto é, a cidade investida politicamente. É a sociabilidade da polis. Não é carne, o que chamamos de biológico hoje. Aristóteles fala de três bios: do conhecimento, do prazer e da política. Eu descrevo a mídia como o quarto bios, que é o bios midiático, virtual. Da vida como espectro, da vida como quase presença das coisas. É real, tudo que se passa ali é real, mas não da mesma ordem da realidade das coisas. (Rabelo, 2001)

Nesse processo de intensificação do espetáculo que cerca o biosmidiático da cozinha e cria a gastronomídia como linguagem midiática em si mesma, apontaremos a seguir algumas características que a tipificam. Para que todas sejam mais bem compreendidas na sua proposta, lembramos que

Do ponto de vista epistêmico, a ambiência biosmidiática deve acelerar a implosão daquele pensamento que nos conduz às heranças que se consolidaram através de visões dicotômicas entre a natureza e a cultura, como mecanismo de controle e sobrevivência de uma sociedade disciplinar. (Cimino, 2010: 129)

Assim, lembramos que a gastronomídia é fruto, assim como as outras linguagens da cozinha, de uma ecologia comunicativa, que assegura a visualidade da culinária como parte constitutiva de todos os textos da cultura dela derivados ou originados. Não

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Gastronomídia: os ambientes midiáticos e as linguagens da comida e da cozinha

há aqui uma visão dicotômica entre as duas linguagens, que poderia ser facilmente es-tabelecida por meio da comparação entre culinária como uma linguagem natural e gas-tronomia como altamente cultural. A proposta é cognitiva, convergente e biosmidiática: cultura, ecologia, natureza, tecnologia trabalhando em ações culturais e comunicativas inseparavelmente e lançando as ações e consequências desses processos para todas es-sas frentes ao mesmo tempo e nas mesmas espacialidades.

Romano (2004: 63) lembra que “los processos de comunicación humana no sólo possibilitam la conexión sino también la vinculación”: A perspectiva de uma comu-nicação vinculativa entre os indivíduos, que operacionalizam e criam novos textos da cultura, é essencial para entender a ecologia comunicativa dos ambientes midiáticos da gastronomia. Dentro dessa ecologia, precisamos nos ater a fatores que levam à constru-ção da gastronomídia dentro da sociedade contemporânea.

O gastrônomo alimenta-se do novo e do exótico em igual proporção, como vimos no caso dos programas televisivos de gastronomia. A ânsia pelo novo expõe sobrema-neira a visibilidade dos textos da cultura, escondendo sua visualidade. Afinal, não im-porta revelar os bastidores das tendências que ditam que uma ou outra cozinha espe-cífica esteja em evidência, ou que um outro chef seja o preferido da mídia: expõe-se e coloca-se como valor de troca comunicativo a imagem do chef e de sua cozinha.

Ao pontuarmos que a gastronomídia é uma linguagem midiatizada em si, estru-turada dentro do bios midiático, não queremos dizer que exista uma imutável sepa-ração entre culinária, gastronomia e gastronomídia. Pretendemos, na realidade, expor um estado social contemporâneo que estrutura as relações comunicativas por meio de vínculos, usando aquilo que Sodré (2006) chama de estratégias sensíveis. No caso do ambiente midiático da cozinha, a sensibilidade está por toda parte, tanto no afeto do cozinhar, quanto na vinculação da comida com seus consumidores e na apreciação de uma mídia ou texto da cultura desse universo.

Colocar, por fim, a questão do vínculo para fazer uma distinção final sobre o que é cada uma dessas linguagens, nos leva ao princípio da comunicação por vinculação, a mais recente abordagem nesse campo conceitual e teórico. Muito além do simples transporte de informação, hoje se sabe que comunicar é vincular signos e sentidos, criando relações sociocomunicativas que podem derrubar os muros estanques que se-param em caixas distintas os modos de comunicar.

Referências bibiliográficas

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Helena Jacob

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Corpo, consumo e espetáculo: mídia e comportamento de crianças e adolescentes nos textos de Rosely Sayão1

Tatiana de Bruyn Ferraz Teixeira

O presente artigo tem por objeto a coluna semanal da psicoterapeuta Rosely Sayão para o caderno Equilíbrio, da Folha de S.Paulo. Em um conjunto de 34 textos, foram destacados conceitos e problemas relacionados a questões educacionais que têm a ver direta ou indiretamente com o campo de estudo da comunicação. Tais questões, por sua vez, são associadas a temas recorrentes nos textos: o corpo, o consumo, o espetáculo. Os conteúdos contidos na coluna semanal são analisados à luz de referenciais teóricos que incluem nomes de autores como Guy Debord, Christopher Lash, Naomi Klein, Vilém Flusser, Edgar Morin, Norval Baitello Jr., entre outros.Palavras-chave: Comunicação, escola, consumo, espetáculo, Folha de S. Paulo, Rosely Sayão.

Cuerpo, consumo y espectáculo: medios de comunicación y comportamento de los niños y adolescentes en el textos de Rosely Sayão Tiene por objeto la columna semanal de

la psicoterapeuta Rosely Sayão, parte del caderno Equilibrio,

de la Folha de São Paulo. En una conjunción de 34 textos,

fueron destacados conceptos y problemas relacionados

con cuestiones educacionales que tienen a ver direta o

indiretamiente con el campo de estudo de la comunicación.

Las cuestiones, por otro lado, son relacionadas a temas

recorrentes en los textos: el cuerpo, el consumo, el espetáculo.

Los contenidos de la coluna semanal son analizados con base

en marcos teóricos que incluyen nombres como Guy Débord,

Christopher Lash, Naomi Klein, Vilém Flusser, Edgar Morin,

Norval Baitello Jr., entre otros.

Palabras-clave: Comunicación, escuela, consumo,

espectáculo, Folha de S. Paulo, Rosely Sayão.

Body, consumption and spectacle: media and behavior of children and adolescents in Rosely Sayão texts This paper

has as object the weekly articles written by the psychotherapist

Rosely Sayão to the Equilibrio supplement, part of Folha de S.

Paulo.In an amount of 34 texts, were accentuated concepts

and problems linked to educational issues related directly or

indirectly to communication study’s field. This issues, in its

turn, are related to frequent subjects in the texts: the body,

consumption, the spetacle. The contentes of the weekly articles

are analysed under theorical references that include names

of authors as Guy Débord, Christopher Lash, Naomi Klein,

Vilém Flusser, Edgar Morin, Norval Baitello Jr. and others.

Keywords: Communication, School, Consumption, spectacle,

Folha de S. Paulo, Rosely Sayão.

1. Este texto resume os principais conteúdos da dissertação defendida pela autora no Programa de Mestrado em Comunicação da Faculdade Cásper Líbero, em dezembro de 2012, na linha de pesquisa “Produtos Midiáticos: Jornalismo e Entretenimento”. O texto completo da dissertação está disponível em http://www.casperlibero.edu.br/pesquisa.

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Corpo, consumo e espetáculo: mídia e comportamento de crianças e adolescentes nos textos de Rosely Sayão

8 de setembro de 2012. Em pleno feriado da independência, aproveitando os raros dias de folga em família em um hotel fazenda de Serra Negra, interior de São Paulo. Reparan-do nas raras figuras humanas que povoavam o local, eis que notamos um rapaz: novo, cabeludo, com algumas tatuagens pelo corpo. A maioria das figuras desenhadas na pele dele mal se distinguia, mas uma chamou atenção: uma logomarca da Ferrari, com cava-linho e tudo, em amarelo e vermelho, tal como vem estampada nos automóveis.

No dia seguinte, passa pelas ruelas do hotel uma caranga velha, um modelito anos 80, barulhento e chamando muita atenção. E estaciona bem à nossa frente. E quem é o motoris-ta que abre a porta e sai andando? O cabeludo da tatuagem da Ferrari. Inevitável a pergunta da minha filha mais velha, de 12 anos, por pura curiosidade e quase nenhuma maldade:

- Mãe, ele tem aquela tatuagem porque ele queria ter uma Ferrari?E a minha resposta:- Filha, responder a sua pergunta renderia uma dissertação de mestrado...É claro que o assunto morreu ali. Discutir o que faríamos depois do café da manhã

naquele lindo sábado ensolarado parecia muito mais interessante.Os aborígenes da Polinésia, onde o navegador James Koch encontrou as primei-

ras peles tatuadas, costumavam dizer que os adornos cravavam na pele aquilo que os homens tinham na alma. Será exagero imaginar que o tal cabeludo de Serra Negra con-firmaria esta tese?

Talvez para Naomi Klein, Todd Giltlin, Guy Debord e outros autores escolhidos para este estudo não seja exagero.

Os artigos de Rosely Sayão publicados no Jornal Folha de S. Paulo falam basica-mente de educação e comportamento. Não à toa, estão publicados no caderno “Equilí-brio”, que contém reportagens com conteúdos relacionados a saúde, bem-estar, colunas que falam de comportamento sexual e novas descobertas da medicina. Na coluna sema-nal, que ocupa sempre uma página inteira em formato tabloide, Rosely Sayão sempre abusa de títulos que exaltam problemas enfrentados pelos jovens e, consequentemente, pelos seus pais. Ela quase sempre começa o texto com uma história real, com persona-gens anônimos, depois discorre sobre o tema. E, no caso dos textos estudados, percebe-se a recorrência de temas ligados à comunicação: como se o ato de educar um filho ou aluno fosse também o ato de conseguir dialogar com ele e com os diversos meios de co-municação que estão o tempo todo disseminando mensagens nem sempre condizentes com o que os pais ou a escola tentam compartilhar.

Dos 34 textos pesquisados, publicados entre agosto de 2011 e maio de 2012, 28 fa-zem referência ao tema corpo, tanto f ísico quanto parte de cada um de nós que concen-tra descobertas e emancipações (Canclini, 2008). O tema do consumo está presente em 18 textos. O espetáculo aparece em15 artigos. Dois dos três temas (corpo, consumo e es-

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petáculo) aparecem simultaneamente em 22 textos. Os três temas, simultaneamenmte, estão presentes em 5 dos 34 textos.

O corpo gera, mas não educa. Comunica

O processo de educar um filho é praticamente um ato constante de administração da comunicação familiar. Um emaranhado de perguntas, respostas, tons de voz, gestos e atitudes que constroem uma relação, um ser humano, uma história: educar é essencial-mente comunicar. E como afirma Harry Pross (apud Baitello, 2008), toda comunicação – e, portanto, algum tipo de educação – começa e termina no corpo.

Para Harry Pross, ainda segundo Baitello, o corpo é quem detém os primordiais meios de comunicação, os inarticulados e articulados: a voz, os gestos, os odores, as fisionomias, os movimentos. Estalar os dedos, mover os ombros, balançar a cabeça. Quantos destes gestos não são utilizados na educação e comunicação entre pais e filhos? E mais: é ainda na gestação que a comunicação entre dois corpos – ainda fazendo parte de um só – inicia seu maior grau de comunicação. A educação começa na gestação. O desenvolvimento intelectual das crianças ocorre em função das interações sociais e con-dições de vida; o corpo e as mensagens da mãe são as primeiras noções desse ambiente e dessa vida que está começando.

Definindo de maneira simples o conceito de educação como o ato de ensinar e aprender (englobando também a ideia de socialização e endoculturação), podemos en-tender a educação como o ato de comunicar algo no sentido de concretizar a decodifica-ção das mensagens. No caso da mãe para o filho, mensagens que têm sempre o mesmo objetivo: o de socializar o filho, fazendo com que ele compreenda, assimile e consiga con-viver tranquilamente com o mundo no qual foi gerado. Entenda-se aqui como corpo a parte de cada um de nós que concentra descobertas e emancipações (Canclini, 2008:42).

Dentro do ambiente familiar, restrito ao espaço geométrico da “casa”, filhos e pais estão sob as mesmas regras, sob os mesmos códigos. Mas e quando a criança se desen-volve e adquire outros canais de comunicação e compreensão?

Será mesmo possível imaginar uma “autoridade midiática” maior do que o exemplo materno na hora de tomar decisões? Seria esse sujeito hipnógeno sugerido por Baitello um problema a ser explorado em forma de alerta para pais e educadores que se preocupam em formar cidadãos cientes de suas capacidades de agir, pensar e reagir?

Talvez esteja aí um dos principais dilemas da educação entre pais e filhos: a miscelânea do corpo que gera e convive com os outros “corpos” gerados por pessoas, imagens e efeitos que não refletem necessariamente os mesmos pensamentos. Como

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administrar tal conflito tem sido tema de diversos estudos e artigos sobre educação, em especial nos textos jornalísticos da psicopedagoga Rosely Sayão, publicados na Folha de S.Paulo. Neles, Sayão discorre sobre vários temas ligados ao conflito existente entre o que “prega” de um lado a sociedade midiática, os valores de consumo e o espetáculo da vida e, de outro, o que cada pai e mãe tentam refletir dentro de casa. A comunicação corporal materna requer paciência, persistência e muita capacidade de argumentação.

A mídia como corpo

A intenção (ou mesmo intuição e instinto) dos pais é criar vínculos com os filhos desde o momento do nascimento. Mas quando outros ambientes, principalmente os vir-tuais, proporcionam outras maneiras de afeto e ligações com o mundo, o diálogo entre pais e filhos fica ameaçado e embaralhado entre ideias muito distintas. Cria-se assim uma operação complexa definida por Norval Baitello Júnior (2008) como “iconofagia”: corpos que se alimentam de imagens e imagens que se alimentam de corpos. O tocar, saborear e cheirar (por que não?, já que estamos falando de pais e filhos, o abraçar, beijar, demostrar afeto) acabam sendo banidos da comunicação dos filhos, que passam a usar apenas o olhar como sentido de alerta por excelência e da comunicação a distância. O “corpo má-quina” ou “corpo suporte” pode ser um potencial sugador de mensagens que competem com aquelas passadas olho a olho, por corpos reais, afetos concretos fisicamente. A edu-cação passa a ser uma guerra entre o corpo dos pais e os corpos midiáticos portadores de mundos distintos, muito diferentes daqueles gerados desde o momento da concepção.

Aliás, pensando em homens e máquinas, Vilém Flusser (2007) nos faz refletir tam-bém sobre a educação. Entre a geração de um corpo por outro corpo, o início da comu-nicação entre corpos e a intenção de gerenciar ao longo de toda uma vida a comunicação que visa criar vínculos, estabelecer valores e decodificar o mundo existe uma dificuldade: a de desmontar o conceito de que as máquinas possam substituir o corpo humano. Na educação que aprende/ensina, socializa e insere o corpo na cultura local, o homem co-munica, fala, ama, descreve, atua. Mas segundo Flusser, o homem está cada vez mais imitando a máquina e dependendo exclusivamente dela para sobreviver. Computadores e aparelhos de televisão são hoje a maior barreira entre a comunicação de pais e filhos.

E na educação? Como pais, escolas e educadores têm lidado com a proliferação das máquinas e a dependência dessas máquinas por parte dos corpos? Não estariam todos eles delegando à máquina trabalhos educacionais que deveriam ser exclusivos dos corpos? Como falar em educação/comunicação e criação de vínculos, se estamos lidando cada vez mais com máquinas e menos com “coisas”?

A educação, antes formada por gestos e interpretação de gestos humanos, passa

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a ser ditada por imagens e regras que vão além daquilo que os pais pensam dominar.O corpo está em evidência. Em casa, na mídia, e – como não poderia ser diferente – na

escola. Ele é importante, mas não pode sobrepor-se às necessidades “reais” (Gitlin, 2003:30)

O corpo nos textos de Rosely Sayão

Em vários momentos Rosely Sayão utiliza o corpo – real ou metafórico – como questão ligada a comportamento e educação. É o caso dos textos “Meninas que bebem”, “Os jovens e seus uniformes”, “Maduros até a página dois”, “Lancheiras amorosas, por favor” e “Questão de escolha”.

No texto “Os jovens e seus uniformes” (2012), a autora diz que o professor precisa de foco para não se perder na visão da aluna sentada com roupas íntimas: shorts muito curto, sandálias de salto alto e blusa tomara-que-caia em uma menina que tinha por volta de 14 anos.

Sayão ressalta que quase todos os rituais sociais foram extintos, as roupas não mais precisam “se adaptar ao cotidiano”. E mais: segundo ela, o que manda nas situações é o gosto da pessoa, os imperativos do mercado, a erotização infantilizada das relações sociais e do corpo e, finalmente, a busca de visibilidade.Ver e ser visto é o que importa.

No texto “Maduros até a página dois” (2012), a psicóloga ressalta que os jovens pre-cisam de ajuda para enfrentar um mundo que começam a descobrir com o próprio olhar.

Os jovens parecem amadurecer bem cedo: falam como adultos, expõem ideias a respeito dos assuntos em pauta, argumentam como adultos para que seus pedidos se-jam atendidos. Mas nas situações de conflito, principalmente as que envolvem aspectos pessoais das duas vidas – e portanto de seus corpos – perdem toda a segurança que tentam mostrar que têm.

Em “Lancheiras amorosas, por favor” (2012), Rosely Sayão aborda o tema da obe-sidade infantil, uma epidemia mundial. A psicóloga atribui um pouco de culpa aos pais pelo estilo de vida adotado, que não mais comporta a comida caseira, preparada em casa para os filhos. E o resultado disso, segundo ela, é a geração do fast food: quem responde pela tal educação alimentar dos mais novos é o mercado do consumo. E o excesso de peso das crianças, segundo Rosely Sayão, seria fruto desse fato.

Em “Questão de escolha” (2012), Rosely Sayão aborda um mundo no qual o que conta é aderir a comportamentos, concepções e estilos de diversão e lazer: aquilo que o grupo a que se quer pertencer valoriza. Escolher, aí, não é uma questão. Mas a psicóloga ressalta que a vida é sempre fruto das escolhas que fazemos, e viver é cada vez mais escolher. E onde os pais enxergam perigos ou problemas, os jovens enxergam desafios. Desafios excitantes e ameaçadores.

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Corpo, consumo e espetáculo: mídia e comportamento de crianças e adolescentes nos textos de Rosely Sayão

Figura 2. “Meninas que bebem”

Mas é em “Meninas que bebem” que Rosely Sayão evidencia ainda mais a ideia do corpo que comunica, que cerca o comportamento, que mostra um amadurecimento que pode ser inexistente.

Néstor Canclini (2008) define o corpo como um mundo de descobertas e emanci-pações. O que o texto de Rosely Sayão evidencia, principalmente no trecho

Olhe para nossas crianças menores de seis anos. Você percebe que há uma diferença enorme entre meninos e meninas? Meninos são moleques: se vestem e se comportam

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como moleques, têm interesses de moleques e brincam como tal. Já as meninas... Ah.... Elas são pequenas mulheres. Vestem-se como mulheres, se interessam por assuntos de mulheres feitas e gostam de brincar de ser mulher. Sem uma intervenção firme dos adultos, as meninas pulam a fase da infância com a maior facilidade.E por falar em intervenção firme dos adultos, temos feito isso, sim, mas no sentido contrário ao que deveríamos fazer. Meninas de nove anos são levadas pelos pais -pelas mães em especial- a comemorar o aniversário em salões de beleza. Elas ganham roupas provocantes e sapatos de salto precocemente, têm seu próprio arsenal de maquiagem etc. (Sayão, 2012)

Queremos que as meninas sejam adultas logo. E por conta de um mundo de adul-tos, as descobertas podem ser adiadas por conta de uma pressão social. E Sayão chama a atenção para o fato de nós, pais, mesmo contando com a melhor das intenções, pos-samos estar comunicando às meninas a necessidade de crescer para o mundo. O corpo, segundo Canclini (2008), tem uma definição precisa quando se trata de exibir como concentramos nossa própria visão sobre o mundo. E como queremos que os outros nos enxerguem como corpo.

O corpo responde ao mundo aquilo que lhe é comunicado. E o jovem ou a criança podem relacionar-se com um mundo que ainda não conhecem. Ou os pais, criados em um mundo com menos meios de comunicação, não estejam “alfabetizados” para lidar com novas linguagens, que parecem ameaçadoras, mas ao mesmo tempo proporcio-nam, sem sombra de dúvidas, um mundo farto de novas possibilidades.

O consumismo, o individualismo e o ambiente escolar

A escola, em princípio, é um ambiente de aprendizado e convívio social. Em algu-mas ocasiões, porém, a escola – por ser cada vez mais um local que prolonga a perma-nência do aluno em suas dependências – acaba também lidando com outros conceitos: status, marca, estilo, consumo. Pais e filhos acabam transformando o ambiente escolar em um pequeno laboratório sobre o mundo competitivo e consumista que todos vão encontrar além dos muros e da portaria. Muitas vezes nem mesmo ela – a escola – esca-pa do estereótipo consolidado pela mídia e pela publicidade em geral: ela oferece “mais” do que educação: garante um futuro brilhante, uma carreira de sucesso e um “slogan” no currículo. Cabe a nós refletir sobre a origem do problema, que pode estar na própria escola, na sociedade ou até nos próprios pais.

A escola pode se tornar um prolongamento do ambiente social em que prevale-cem os valores individuais. Como bem define Christopher Lasch (1986), a individuali-dade transforma-se numa espécie de bem de luxo, fora de lugar e em uma era de imi-

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nente austeridade: “A preocupação com o indivíduo, aparentemente tão característica de nossa época, assume a forma de uma preocupação com a sobrevivência psíquica”. (Lasch, 1986:57)

Não é dif ícil imaginar, portanto, que os grupos de jovens estudantes se definem não somente por características pessoais como o gosto por esportes coletivos, habili-dades específicas com certas disciplinas, amor pelas pinturas e pelas artes, interesses musicais particulares, habilidade em contar piadas. Mas, às vezes, para ser aceita em certos grupo, a criança precisa ter uma certa marca de mochila, precisa ter ao menos duas peças de roupa de uma marca norte-americana popular e caríssima, uma página no facebook com mais de mil amigos e muita, muita popularidade. Um paradoxo: para ser popular e aceito em certo grupo, o jovem precisa elevar ao máximo seus valores individuais, seu apreço pelo próprio eu, sua habilidade em “fabricar” uma pessoa que esteja nas redes sociais demonstrando total poder e popularidade. Uma admiração por um mundo que é seu, mas que ao mesmo tempo quase não lhe pertence. Uma “resposta’, segundo Lasch.

(...) a individualidade mínima não é só uma resposta defensiva ao perigo, mas se origina de uma transformação social mais profunda: a substituição de um mundo confiável de objetos duráveis por um mundo de imagens oscilantes que torna cada vez mais dif ícil a distinção entre a realidade e a fantasia. (Lash, 1986:13)

O consumismo, o culto às marcas, a valorização demasiada do “eu” são atitudes existentes na sociedade pós moderna, turbinadas pelas redes sociais, a internet e o ex-cesso de programas de reality shows, que transformam desconhecidos em celebridades ricas e dignas de inveja. Mas é no ambiente escolar que esse comportamento acaba se refletindo em maior grau, já que é o ambiente em que crianças e adolescentes passam a maior parte dos seus dias e onde concentram a maior parte de suas atividades.2

Guy Debord, na década de 60 (ainda sem a internet e a proliferação dos canais a cabo e TVs alternativas) já dizia que tudo gira em torno da produção e do consumo de mercadorias. Imaginar o ambiente escolar invadido por esses valores e estimulando as crianças a priorizarem o individual, a imagem virtual e a competição da imagem que

2. Junte-se a esta situação certa “ingenuidade” dos pais. Por exemplo, uma pesquisa feita entre fevereiro e março de 2011 por pesquisadores da Universidade de Brasília levantou que pais e mães acreditam que seus filhos são menos influenciados por publicidade infantil do que os filhos de amigos e conhecidos. Para o coordenador da pesquisa e professor do departamento de psicologia da UnB, Fabio Iglesias, o dado preocupa pois quanto mais um indivíduo se considera imune, mais riscos ele pode estar correndo. A pesquisa foi publicada no jornal Folha de S. Paulo, e está disponível no site <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidiano/ff1110201123.htm>Acesso em 10/11/2012.

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elas e os seus pais fazem sobre elas mesmas deve servir de alerta para famílias e edu-cadores. É possível, sim, – e inevitável – conviver com o consumo. Mas o consumismo exagerado de marcas do próprio “eu” transformado em produto midiático deve ser de-batido por todos. A mídia, as redes sociais, a publicidade e os noticiários precisam ser absorvidos com bom senso por adultos e jovens.

Certa vez, em reunião com a diretora pedagógica da escola dos meus filhos, ouvi um relato impressionante: pais que estavam brigando com a escola para que esta facili-tasse a vida de seus filhos que haviam perdido uma semana inteira de provas. O motivo? A família tinha optado por viajar à Disney na época em que os filhos deveriam estar concentrados, em casa, com seus deveres e obrigações. E a escola, segundo esses pais, tinha a obrigação de ser flexível e proporcionar novas datas para que as avaliações fos-sem feitas em dias diferentes daqueles em que foram aplicadas as avaliações aos demais estudantes do grupo. Mas por que ir à Disney é mais importante do que estudar? Guy Debord (1991) diria que é o reflexo do nosso tempo, em que preferimos a imagem à coisa, a cópia ao original, a representação à realidade, a aparência ao ser.

No espetáculo, uma parte do mundo representa-se perante o mundo, e é-lhe superior. O espetáculo não é mais do que a linguagem comum desta separação. O que une os espectadores não é mais do que uma relação irreversível no próprio centro que mantém o seu isolamento(...) A alienação do espectador em proveito do objeto contemplado (que é o resultado da sua própria atividade inconsciente) exprime-se assim: quanto mais ele contempla, menos vive; quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens dominantes da necessidade, menos ele compreende a sua própria existência e seu próprio desejo”. (Debord, 1991: 98)

Nada contra uma divertida viagem à Disney com a família. Ela renderá momentos muito agradáveis e fotos e vídeos divertidíssimos a serem compartilhados com milhões de pessoas. Estranho é o fato de não se separar o que é educação do que é entretenimen-to. Importante dar exemplos a crianças e adolescentes sobre o que é obrigação e o que é diversão. Inverter estes valores seguindo o exemplo dos próprios pais parece ser um desafio perigoso.

A escola também é refém do consumismo: alguns pais, por pagarem as mensalida-des e escolherem certos estabelecimentos para matricular os filhos em lugar de outros, classificam a escola como parte de seus prestadores de serviços. Se pagam a mensali-dade, podem se dar ao luxo de conseguir violar as regras, ditar outras e intervir quando bem quiserem em algo que deveria estar a cargo exclusivo daqueles que administram um bem precioso: a educação dos filhos. É preciso pensar também que os filhos sempre imitam certos comportamentos dos pais.

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Corpo, consumo e espetáculo: mídia e comportamento de crianças e adolescentes nos textos de Rosely Sayão

O consumismo nos textos de Rosely Sayão

Em “Criança não sabe brincar” (2011), Rosely Sayão evidencia, entre crianças, a descartabilidade das coisas, sugerindo, por exemplo, que num mundo que privilegia o consumo, para brincar, as crianças dependem dos brinquedos. O intervalo de tempo entre ganhar o brinquedo e abandoná-lo para fazer outra coisa é pequeno e nada pro-porcional ao desejo de possuí-lo. Em “Brincando de terapeuta”, a psicóloga alerta que os adultos projetam sobre as crianças que estão sob sua responsabilidade sua busca infantil de prazer imediato. E questiona o prazer dos pais ao comprarem objetos (brinquedos e outros mimos) para os filhos.

Segundo a autora, “quem sente mais prazer nessa hora? As crianças, que na sua imaturidade característica se submetem sem saber aos apelos do consumismo ou os pais, que dedicam uma parte de seus salários para essas aquisições?”

Há um texto, em especial, no qual Rosely Sayão evidencia de maneira mais crítica a abordagem do assunto, e com um tema que apavora e incomoda os pais: as drogas. Será que o consumo delas está relacionado ao consumismo? Segundo Rosely Sayão, a resposta é sim. Para ela, como vivemos em uma sociedade que valoriza o consumo – e não importa de que tipo –, consumir drogas está dentro dessa expectativa. Segundo Sayão, desde pequenas as crianças aprendem com os pais que, para fazer parte de um grupo, precisam consumir as mesmas coisas usadas por esse grupo. Com as drogas, não seria diferente. Mas é em “Creche de marmanjo” (2012) que o assunto consumo, consu-mismo e descartabilidade na escola é colocado em maior evidência.

Aqui, Rosely Sayão relaciona o descarte das coisas com o descarte de pessoas.

Descartamos o computador recente e em pleno funcionamento porque saiu um modelo menor e mais leve; descartamos o sofá da sala que já tem o nosso cheiro e se adaptou ao formato de nosso corpo porque a linha em uso agora é de outro estilo; e o aparelho de TV porque já está ultrapassado etc.Queremos descartar para poder consumir mais. E isso transformou-se em um problema, já que o que não usamos mais atrapalha nossa vida, dá uma aparência a ela que rejeitamos, recusamos. (Sayão, 2012)Figura 4. “Creche de marmanjo”

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Será que num mundo que privilegia o consumo acima de tudo estamos também consumindo a educação? Transformando tudo em “produtos e serviços”? Estaríamos deixando, como sugere Bauman (2011), o consumismo guiar nosso comportamento?

O bom senso e a contenção do consumismo deve começar muito cedo, para que o hábito da descartabilidade no mundo líquido não prevaleça, não se torne um hábito normal. Quando estes assuntos se tornam mais evidentes também nos meios de comu-nicação, através de educadores como Rosely Sayão, provocam em pais e educadores (em maior ou menos grau) um incômodo saudável: o de perder 10 minutos de sono (como sugere a colunista da Folha de s. Paulo) para repensar as próprias atitudes frente a des-cartabilidade. E, assim, amadurecidos os próprios valores de bom senso, repassá-los aos mais jovens e que nos têm como exemplos a serem seguidos.

Guardamos nas máquinas. E na memória corporal?

Os pais às vezes privilegiam o registro eletrônico da vida de forma exagerada. Nada contra ter máquinas digitais de todos os tipos, registrar esses momentos que fatalmente serão distribuídos virtualmente entre todos os familiares e amigos que não puderam comparecer ao evento. O problema está na proporcionalidade, no bom senso que não temos ao usarmos as mídias e o quanto elas estão tomando um espaço cada vez maior em nossas vidas, fazendo, como bem escrevia Vilém Flusser (2007), com que o homem tente imitar a máquina e esteja cada vez mais sendo dominado por ela. O uso indiscrimi-nado da internet, apesar de aumentar exponencialmente as relações de comunicação e amizade, pode também estar fazendo com que as relações pessoais fiquem em segundo plano, sem que nos demos conta disso. Como afirma Todd Giltlin, “fica claro que o fluxo das mídias dentro do lar – sem falar fora dele – se espessou até virar uma torrente de imensa força e constância, um complemento da vida que se transformou em vivência fundamental”. (Giltlin, 2003: 34)

Falando, por exemplo, sobre as festinhas da escola – aquelas que são frenetica-mente registradas pelos pais através de suas máquinas – por que aquele momento que é real torna-se secundário diante da imagem que ele gera eletronicamente? E por que não privilegiar a festa em si, a música, as cores e não outros aspectos mais reais da vida?

Rosely Sayão aborda com frequência estas questões. Ela questiona o papel dos pais e das escolas na formação dos filhos, e sempre acaba chamando a atenção para temas ligados ao espetáculo, à imagem, às mídias e a tantas outras questões debatidas pelos teóricos da comunicação. Em outubro de 2011, por exemplo, ela escreveu justamente sobre o tema das festas de formatura de crianças na faixa dos 5 ou 6 anos de idade. Festas com direito a cerimônias, discursos, bailes de gala e vestidos longos. No artigo, ela cha-ma atenção para o fato de que pais e escolas podem estar “formando para o espetáculo” ao invés de estarem se preocupando com a formação para a vida:

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Corpo, consumo e espetáculo: mídia e comportamento de crianças e adolescentes nos textos de Rosely Sayão

Apesar das mudanças já ocorridas do ensino básico ao universitário,a escola sempre foi organizada em etapas seriadas, em uma escada: para alcançar o degrau seguinte, o aluno precisa antes quitar plenamente suas obrigações com o grau em curso. Formar-se significava, portanto, mudar de patamar. Uma conquista! Em uma sociedade que não valoriza tanto os rituais, principalmente os de passagem, as formaturas foram se transformando, da mesma maneira que os outros rituais não acadêmicos. As formaturas, tanto quanto os casamentos, os aniversários etc. mais se parecem hoje com espetáculos do que com celebração. Pois é exatamente isso que tem acontecido na maioria das escolas de educação infantil: seduzidas pelo espetáculo, pressionadas pelas famílias e sem se importar muito com o sentido da palavra formatura ou com as crianças, armam um circo e promovem a chamada formatura para a educação infantil. Pais de lá para cá com todo tipo de câmera, fotógrafos contratados, lenço por causa das muitas lágrimas, coisa e tal. Crianças excitadas e agitadas, vestidas como adultos e preocupadas com o cabelo, choro dos mais tímidos, um auê. Mas quem liga para elas ou para o sentido de uma formatura se, ao final de tudo, haverá fotos, vídeos, lembranças a serem guardadas? (Sayão, 2011)

E por que tanta preocupação com o que será gravado? Será que tais rituais existem para serem “vivenciados” ou apenas guardados eletronicamente? Seriam eles reais?

Talvez esteja aí a explicação para tantos fenômenos, muitos deles também descritos nos textos de Rosely Sayão na Folha de S.Paulo. Relatos de pais constatando que os filhos deixaram de ser bons alunos pois querem ser “populares”, a competição por um número cada vez maior de amigos nas redes sociais e quase nenhum compromisso social fora das telas do computador. O ambiente escolar reflete essa desordem causada pela superexposição da informação, o culto ao reality-show que quase nada tem de reality e muito de show, o individualismo extremo, a valorização do que está exposto em detrimento daquilo que é vivenciado por cada um de nós. Tratando da psicologia cultural na mídia, Giuseppe Mininni cita a pergunta mais intrigante e recorrente que pode ser formulada da seguinte maneira: as representações difundidas pela mídia são um reflexo da realidade ou contribuem para construí-la?

Por sua extraordinária capacidade de difundir notícias, a mídia se oferece como uma “janela para o mundo” à disposição de quem quer que seja. Apesar disso, geralmente tende a esconder que se trata de uma janela recortada e orientada de uma determinada maneira, e para um determinado mundo, de modo que fica obscurecida a dimensão de propaganda habitualmente tecida no enredo constitutivo da informação.(...) O que a maior parte das pessoas sabe a respeito de muitos contextos possíveis de vida no mundo – distritos policiais ou laboratórios científicos, prisões ou hotéis de alto-luxo – não resulta da experiência direta, mas de seu contato com a mídia. (Mininni, 2008:28)

É como questiona Mininni (2008) em Psicologia cultural da mídia: o que a maior parte das pessoas sabe a respeito de muitos contextos possíveis de vida no mundo não

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resulta de sua experiência direta, mas de seu contato com a mídia. E Giltlin reforça: o próprio fluxo das mídias não é menos humano em sua origem, produto de milhões de pessoas que, por terem sido moldadas por um modo de vida mecânico, imaginaram um número aparentemente interminável de maneiras de aliviar as tensões daquele modo de vida por meios mecânicos. É mesmo a torrente das mídias despertando o que o autor chama de “sentimento descartável”, de “presenças fabricadas” (Giltlin, 2003:47). O shop-ping, as marcas, o consumo, seriam tudo isso. E a torrente das mídias chega cada vez mais cedo. Celulares e joguinhos eletrônicos substituem chocalhos, chupetas e guizos. E as relações entre as pessoas (e isso começa na adolescência) estão cada vez mais baseadas em objetos de consumo (ou de desejo de consumo) que elas tenham em comum.

E aqui a referência final e conclusiva, a de Nestor Canclini, que se refere – talvez algo já previsto por MacLuhan – à extensão do corpo como mídia:

Os jovens que incorporam plenamente essas tecnologias “as colam ao corpo como um elemento a mais de indumentária”, escreve Luis Alberto Quevedo: calças, paletós, jaquetas e mochilas são fabricados com lugar para o celular. A “corporabilidade deve abrigar as tecnologias” (Quevedo, 2007:11). O celular torna os jovens independentes dos pais, porque estes deixam de saber exatamente onde aqueles estão e o que fazem com seus corpos. Para os jovens, torna-se um recurso para novas experiências corporais e de comunicação. Mais do que a localização, importam as redes. Mesmo sentado, o corpo atravessa fronteiras. (Canclini, 2008: 44)

O espetáculo nos textos de Rosely Sayão

O tema “espetáculo” aparece em 14 dos 34 textos analisados. Está muito evidente em “Ser popular é melhor que estudar”, que conta a história de uma mãe que sempre teve um filho estudioso, responsável e com boas notas na escola. Até que um dia ele descobriu que não queria ser mais um “nerd”, e que achava que precisava ser popular – o que não incluía o estudo e bom comportamento. Aqui, o que importa é “fazer aconte-cer e aparecer a qualquer custo”. No documentário francês “Entre les murs”, do diretor Laurent Cantet, há uma cena em que uma adolescente de 14 anos, de volta às aulas após as férias de verão, começa a ter um comportamento insolente com seu professor, com quem até então mantinha uma relação cordial, de amizade, de simpatia. Advertida pelo mestre, a menina vai falar com ele ao final da aula e ele pergunta a ela por que estava se comportando daquela maneira, já que os dois se davam tão bem até o fim do anterior ano letivo. E a resposta foi sucinta: ao perceber que era observada por outras colegas, que a aguardavam do lado de fora da sala, ela responde “Je ne suis plus une gamine”. (“Não sou mais uma mocinha”, no sentido de ser uma criança “bacana”).Em “Os jovens e seus uniformes” também existe a menção ao “espetáculo”: Rosely anali-sa que ver e ser visto é o que importa. Os jovens, segundo ela, são os mais vulneráveis às

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Corpo, consumo e espetáculo: mídia e comportamento de crianças e adolescentes nos textos de Rosely Sayão

pressões do mercado da aparência, da etiquetas de marca e das tendências adotadas por seus pares porque eles ainda não tem o senso crítico. Estão na escola justamente para adquirir ou sofisticar esse tipo de análise.

Mas é em “Caprichos de adultos” (8/11/2011) que o tema “espetáculo” se torna mais evidente.

Figura 5. “Caprichos de adultos”

Como já foi relatado anteriormente, para Giuseppe Miminni (2008), o que a maior parte das pessoas sabe a respeito de muitos contextos possíveis de vida no mundo não resulta da sua experiência direta, mas de seu contato com a mídia. E temos a impressão de que, em algumas situações (como a citada no texto de Rosely Sayão) uma experiência de vida só é “completa” se for registrada eletronicamente e exibida na “rede”.

Não seria exagero detectar uma certa agnosia das pessoas com relação às próprias

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imagens. A noção que temos da nossa própria imagem poderia ser “deformada” quando exibida nas redes sociais? Por que a necessidade crônica de postar absolutamente tudo (tudo o que denota alegria, sucesso, reconhecimento) na rede? Talvez para trazer a si próprio a realização de um perfeito “encaixe”: aquilo que formulamos sobre a nossa pró-pria imagem. E aquilo que propositalmente deformamos para que assuma um contexto de rede social, de currículo. Em “O olhar da mente” (2010), Oliver Sachs afirma que o reconhecimento de representações pode requerer uma espécie de aprendizado, a com-preensão de um código ou convenção além dos necessários para o reconhecimento de objetos. Por isso, dizem que pessoas de culturas primitivas que nunca viram fotografias podem não reconhecer que elas são representações de alguma coisa. Será que na atual fase estamos com a necessidade oposta, a de postar eletronicamente o que pode ser guardado apenas na memória? E somente assim conseguiríamos a sensação completa de que aquilo, agora sim, é realidade?

Ainda segundo Sacchs,Todos nós vivemos em um mundo de visões, sons e outros estímulos, e nossa sobrevivência depende de fazermos uma rápida e acurada interpretação deles. Compreender o mundo à nossa volta tem de ser algo baseado em algum tipo de sistema, algum modo rápido e certeiro de analisar o ambiente. Embora ver objetos, defini-los visualmente, pareça ser instantâneo e inato, constitui na verdade uma tremenda façanha perceptual que requer toda uma hierarquia de funções. Não vemos os objetos como tais; vemos formas, superf ícies, contornos e fronteiras, que se apresentam em diferentes luminosidades ou contextos e mudam de perspectiva quando se movimentam ou quando nos movimentamos. Desse caos visual complexo e mutável temos de extrair invariantes que nos permitam inferir ou supor a qualidade do objeto. Não seria econômico supor que existem representações individuais, ou engramas, para cada um dos bilhões de objetos ao nosso redor. (Sacchs, 2010: 87)

Talvez seja o que Rosely Sayão expresse no texto analisado, em especial no trecho:O que deveria ser um acontecimento íntimo entre pais e filha, olho no olho, com afeto e vínculo, ganhou a intermediação de uma câmera, já com o intuito de exibir ao mundo a reação da criança. Um espetáculo. Há vários outros filmes de crianças na internet. Certamente, caro leitor, você já deve ter visto alguns deles. (Sayão, 2011)

É a necessidade de alertar principalmente os pais para que a exibição e postagem de momentos íntimos não se sobreponha a outros gestos que, na opinião da psicóloga, podem ser mais importantes na formação de crianças e adolescentes. Proteger demais, registrar demais, descartar demais, mostrar demais podem ser atitudes perigosas para quem quer ver os filhos amadurecerem – e, portanto sofrerem – naturalmente.

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Corpo, consumo e espetáculo: mídia e comportamento de crianças e adolescentes nos textos de Rosely Sayão

Rosely Sayão relata em seus textos, na Folha de S.Paulo, situações diversas vividas por pais, filhos e educadores. Os textos, que poderiam até pender para o lado de “auto-ajuda”, acabam de certa forma incomodando aqueles que pensam em ser melhores edu-cadores. Incomodam porque lembram, de certa forma, que nós – os adultos – somos os verdadeiros e primeiros exemplos de vida para crianças e adolescentes. E nós vivemos em um mundo em que o corpo, o consumo e o espetáculo estão na “vibe”, na nossa co-municação cotidiana, nos nossos pensamentos, nas nossas atitudes.

Os 34 textos trazem ideias de uma psicóloga, mas que tem a ver com a mais pura discussão de temas referentes à comunicação: o corpo, os códigos, o crescimento comu-nicacional, o ver e ser visto, o consumismo como marca registrada de comportamentos e relações. Tais idéias vêm sendo discutidas em profundidade por autores como Nestor Canclini, Naomi Klein, Guy Debord e outros, citados neste trabalhos. Sinal de que uma discussão teórica importante vem ocupando cada vez mais espaço também na mídia, em especial aquela dedicada ao comportamento e à edução, como é o caso das colunas de Rosely Sayão na Folha de S. Paulo.

O mundo não está acabando, tampouco estamos vivendo uma época em que se perde o controle sobre o que nos é mostrado através dos meios de comunicação, já que, como aponta Mimini, são tantas as janelas voltadas para ele (o mundo) que acabamos perdendo a noção da quantidade de possibilidades. Todos os autores citados neste tra-balho, cujas ideias podem ser extraídas dos textos de Rosely Sayão publicados em um jornal de grande circulação como a Folha de S.Paulo, podem nos ajudar a compreender e assimilar os códigos e, assim, através de exemplos, transmiti-los com responsabili-dade aos mais jovens. E até eles – os jovens – que já foram alfabetizados com tablets e smartphones, podem ajudar os adultos a não demonizarem os meios que tornam a co-municação exaustivamente difusa, porém altamente capacitada para também construir e aprofundar relacionamentos, juntar ideias, compartilhar também o que nos ajuda a melhor compreender o mundo e relacionar-se com ele.

Os textos de Rosely Sayão, portanto, contém substancialmente conceitos relaciona-dos à comunicação, mais especificamente aqueles que se referem ao corpo, ao consumo e ao espetáculo. Análises psicológicas e comportamentais, extraídas, segundo a própria autora, de observação do cotidiano de famílias, jovens e criança, passam necessariamen-te por conceitos que envolvem as mídias, as marcas, a vaidade consumista e principal-mente as mudanças no comportamento comunicacional de pais, professores, crianças e adolescentes. Já que toda comunicação começa e termina no corpo e a educação faz parte do processo de comunicação, aprendamos a conviver com um novo corpo, um novo código, uma nova era em que os relacionamentos e sentimentos talvez não tenham mudado, mas estão hoje envoltos em um ambiente comunicacional extremamente com-plexo, em que a velocidade das informações muitas vezes não é alcançada de maneira adequada por nós, meros seres humanos, que tanto convivemos com máquinas e tecno-logias, mas continuamos sendo os mesmos animais dotados de instintos como a fome,

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a dor, a carência, a vaidade, a competição. Sigamos tentando compreender, assimilar e deixar às gerações mais jovens conceitos que podem vir embalados em forma de telas, luzes, slogans e trilhas sonoras. Mas que sejam sempre tratados como simples parte de códigos que nos tornam seres que comunicam. Corpos que dialogam, consomem e ten-tam provar todos os dias que existem, mesmo que em constante mudança e movimento.

Que esta breve síntese de ideias comunicacionais contidas nos textos de Rosely Sayão possa ajudar a refletir sobre que tipo de atitude temos diante das mídias, e de que forma nossa reação frente a elas pode ser repassada a nossos filhos, para ajudar a formar pessoas conscientes de que são, simplesmente, humanas.

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Comunicação, linguagem e educação desde Nietzsche: para uma educação interdisciplinar/perspectivistaMauro Araújo de SousaProfessor da Faculdade Cásper Líbero, do Centro Universitário Fundação Santo André e do Instituto Sedes Sapientiae.

O objetivo deste artigo é considerar o quanto o perspectivismo de Nietzsche, assim como o seu procedimento ge-nealógico, apresentam condições de formarem uma base de aliança perspectivista de uma metodologia de espec-tro interdisciplinar entre comunicação, educação e linguagem. E o quanto, em meio a esse entrelaçamento, está presente uma questão maior que envolve um projeto de mudança no âmbito dos valores, incluindo neste trabalho o mote principal da filosofia nietzschiana que é o da transvaloração de todos os valores, enviesado, portanto, por um recorte ético de profunda transformação para as áreas da comunicação, da educação e da linguagem no geral.Palavras-chave: Perspectivismo, genealogia, interdisciplinaridade, comunicação, educação.

Comunicación, lenguaje y educación desde Nietzsche, por una educación interdisciplinaria/perspectivista Tiene por

objeto la columna semanal de la psicoterapeuta Rosely Sayão,

parte del caderno Equilibrio, de la Folha de São Paulo. En

una conjunción de 34 textos, fueron destacados conceptos

y problemas relacionados con cuestiones educacionales que

tienen a ver direta o indiretamiente con el campo de estudo

de la comunicación. Las cuestiones, por otro lado, son

relacionadas a temas recorrentes en los textos: el cuerpo, el

consumo, el espetáculo. Los contenidos de la coluna semanal

son analizados con base en marcos teóricos que incluyen

nombres como Guy Débord, Christopher Lash, Naomi Klein,

Vilém Flusser, Edgar Morin, Norval Baitello Jr., entre otros.

Palabras-clave: Perspectivismo, genealogía, interdiscipli-

naridad, comunicación, educación.

Communication, language and edu-cation from Nietzsche: for an interdis-ciplinary/perspectival The aim of this article

is to consider how Nietzsche´s perspectivism, as well as his

pedigree procedure, present conditions in order to form a

perspectival alliance basis of a methodology for spectrum in-

terdisciplinary communication, education and language. And

how, in the midst of this entanglement, this is a larger issue

that involves a change project within the framework of values,

including work in the main structure of Nietzschean philoso-

phy that is the revaluation of all values, skewed by a cut ethical

profound transformation in the areas of communication, edu-

cation and language in general.

Keywords: Perspectivism, genealogy, interdisciplinarity,

communication, education.

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Comunicação, linguagem e educação desde Nietzsche: para uma educação interdisciplinar/perspectivista

Em primeiro lugar, quem foi Nietzsche em sua época e quem é ele para nós hoje? O filó-sofo alemão nasceu em 1844 (15 de outubro) e morreu em 1900 (25 de agosto). Oriundo do vilarejo de Röcken, na Prússia, filho de luteranos, viveu uma forte atmosfera reli-giosa. Seu pai era pastor da paróquia luterana da pequena cidade. Nietzsche era filho primogênito, depois veio sua irmã, Elisabeth, que, mais tarde, distorceu os escritos do irmão a favor do nazismo, apesar de ter fundado os Arquivos Nietzsche, em Weimar, que guardou os originais hoje pertencentes ao Nietzsche Studien. O filósofo era uma pessoa introvertida. Fora muito abalado pela morte prematura do irmão caçula, Joseph, além de ter perdido o pai quando tinha apenas cinco anos de idade. Nesse sentido, a for-te presença feminina e dominadora faz com que Nietzsche tenha alguns entreveros com as mulheres da família, principalmente com a irmã, também de personalidade dif ícil e dura, uma vez que a mãe era mais flexível. Por fim, por decisão de todos, ele termina por estudar no Colégio Real de Pforta e como bolsista.

Mais tarde, estudará teologia na Universidade de Bonn, assim como filologia clás-sica e, depois, transfere-se para Leipzig. Após isso tudo, como professor na Universi-dade da Basiléia, na Suíça, é conferido a ele o título de doutor pelo reconhecimento do seu saber. É-lhe outorgada a cátedra de Filologia. Lá leciona por dez anos e se retira por afastamento médico. Por esforço de seus amigos, consegue uma pensão vitalícia devido à sua dedicação e às questões de saúde que já o envolviam nessa época.

No século XIX, seu contexto histórico e temporal, ele sente a implantação industrial e a unificação da Alemanha, o surgimento de camadas sociais diferentes e que, emergentes, se identificam com o progresso do tecnicismo, o que afeta a educação e a política. A Alemanha visa expandir seus domínios e o momento do novo império traz conflitos armados. Nietzsche, por exemplo, participa da guerra franco-prussiana e, depois, vê quanta estupidez havia nas guerras, fazendo fortes críticas a isso. E quem Nietzsche tornar-se-á? Um forte crítico da cultura alemã que, para ele, estava se tornando superficial e mercadoria dos novos ventos burgueses que sopravam na Alemanha e que entravam com toda força em uma educação voltada para o mercado, para o tecnicismo, o que despertou muita preocupação no filósofo, levando-o a proferir conferências sobre o assunto, ainda quando professor na Basileia.

Nesse percurso, Nietzsche inicia mais pontualmente sua crítica à Alemanha, que, para ele, perde a qualidade cultural para a quantidade da produção cultural. A mercanti-lização toma conta de tudo. Nesse viés, ele proporá uma transvaloração dos valores, uma mudança profunda na cultura alemã, assim como proporá um novo tipo de homem, lon-ge de toda formação mesquinha pela qual passava toda a cultura rasa e mercantil de sua época, com as crises de valores aí embutidas. Esse é o Nietzsche que lutará com todas as forças para deixar o seu legado que até hoje nos questiona, nos incomoda e nos coloca, no-vamente, defronte a problemas muito parecidos, guardando as devidas proporções, é claro.

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A questão é que o tecnicismo continua aí, a presença forte de uma formação para o mercado também, e, de certo modo, toda uma cultura de massa que, muitas ve-zes, torna medíocre quem dela participa, direta ou indiretamente. Nietzsche, em seus escritos, utilizar-se-á de uma forma bem própria de tratar os conceitos, os valores, ou seja, através do procedimento genealógico e do perspectivismo, sendo este último tó-pico bem próximo da leitura da interdisciplinaridade presente neste trabalho, em um elo entre comunicação e educação. Nessa linha de leitura e reflexão é possível tratar de uma postura, de uma ética nietzschiana, coisa de que muitos duvidam: uma ética em Nietzsche...

Perante isso é que este artigo, para reforçar a referida ideia acima, de um filósofo preocupado com o seu tempo e espaço, é um filósofo que termina por desenvolver uma reflexão sobre comunicação, educação e interdisciplinaridade, ainda que essa última venha através do viés do perspectivismo e do procedimento genealógico de sua filo-sofia. O fato de a filosofia de Nietzsche poder fornecer bases para promovermos esta discussão com abrangência interdisciplinar, coloca-nos no exercício amplo da comuni-cação enquanto linguagem perpassada pela educação, uma vez que ela, a educação, se faz presente em todas as formas de linguagem. De um modo ou de outro, existe sempre uma propagação de valores nessa efetivação interfaciada de comunicação-linguagem-educação. Daí a presença filosófica, também, enquanto cuidadora de valores, com um cuidado que questiona, que procura entender as diversas relações do humano enquanto natureza que cria valores culturais. Trata-se, nesse sentido, de uma ética.

Ora, e por que escolher Nietzsche nesse contexto? Porque, enquanto filósofo críti-co do seu tempo, ele pratica uma filosofia que entende educação como um valor cultural maior. Certamente que sua preocupação com a linguagem está presente nisso. Tão pre-sente que ele aborda a questão da linguagem como uma política. Há uma preocupação pontual em textos do filósofo a respeito do tipo de educação e linguagem que se faziam presentes em sua época e que, de certo modo, se fazem presentes na sociedade de hoje, a qual pretende transformar os homens em máquinas, em “rebanho”. Um exemplo da inserção de Nietzsche comprova-se em seus escritos, nos quais se posiciona claramente contrário a um modelo educacional tecnicista, sem uma formação integral e que não prepara a pessoa para a vida, mas apenas para o mercado.

Em termos de comunicação e linguagem, o filósofo faz a propositura do que deno-mina de “a grande política da linguagem”. Toma como objeto de estudo os valores cuja dimensão está para além de uma vida mesquinha, enredada em inversões de valores na qual pessoas são conduzidas a um controle de suas potencialidades para fins merca-dológicos sustentados por uma “verdade absoluta”, que soa, inclusive, como finalidade “científico”-religiosa-metafísica. Nesse sentido, dirige-se para uma formação educacio-nal que as transforme em pessoas que reproduzam uma educação exclusivamente volta-

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da para o mercado, uma educação de mercenários e demagogos que os ilude em nome de um bem e de uma verdade. Trata-se de bens novamente absolutos, valores de cunho me-taf ísico, universalizantes e uniformizantes, em nome de uma “certa essência” apropriada a pessoas de “rebanho”, expressão essa tão largamente utilizada por ele para considerar aqueles que agem sem autenticidade, sem criatividade, “sem vida”, perdidos entremeio ao comando da voz de pastores que estão, eles próprios, despontencializados. Esses “líde-res” foram sugados pelo tecnicismo e pelo mercado e se tornaram fantoches de todo um enredamento que também criou os meios de comunicação, as escolas, inclusive...

A linguagem falada é de uma extrema pobreza vital, porque a vida virou mercado-ria. Às vezes, ela se transforma em moeda, mas já é uma moeda que está inflacionada pelo autoextermínio.

Desse modo, trata-se, então, desde a filosofia de Nietzsche, de discutir uma for-mação que dialoga com outras instâncias do saber a fim de promover uma formação crítica cultural e perspectivista, que, em termos de uma genealogia, está atenta a que referencial se reporta tal formação, tal paideia. E o valor maior da produção humana em suas diversas instâncias, entre essas a artística (veio principal em Nietzsche), é a de tomar a vida como referencial para tudo, em termos de formação. Eis a que vem a filo-sofia nietzschiana em uma proposta que entrelaça comunicação, linguagem e educação pela via filosófica.

Perspectivismo, procedimento genealógico e formação

Para um início de reflexão, o que é o perspectivismo de Nietzsche? Em seu modo de escrever, Nietzsche não perde o foco, sendo capaz, através de aforismos, de mantê-lo mediante muitíssimos “olhares”, interpretações, não sendo, porém, nenhuma dessas perspectivas nada relativas, pois o filósofo alemão tem muito claro para si o que preten-de ao avaliar e reavaliar, constantemente, todos os valores que passa em revista e que formaram nossa sociedade ocidental. Isso significa que o perspectivismo, ao mesmo tempo em que é um método de amplitude da reflexão, é, também, um marcador de foco, como já mencionado, o que não deixa o filósofo perder-se em suas próprias ma-lhas reflexivas, ainda mais escrevendo por aforismos, caso majoritário nos seus escri-tos. Além disso, o perspectivismo oferece a abertura para novas experiências, já que o experimentalismo faz parte do pensar nietzschiano, ou seja, fazer experiências, e novas experiências, como o pensar.

Já quanto ao procedimento genealógico, Nietzsche persegue os valores desde suas bases avaliativas. Ele busca, nesse procedimento, os critérios das perspectivas utilizadas para a criação dos valores ocidentais cristalizados na sociedade do Ocidente. Também faz toda uma investigação para além da história, porque envolve seu lado filológico e, claro, seu método filosófico: o perspectivismo. De modo que procedimento genealógico

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e perspectivismo se completam nessa tarefa árdua de descobrir os fundamentos da cultura, praticamente, judaico-cristã que envolve a sociedade ocidental. Existe nesse procedimento um vai e vem em que o filósofo alemão relaciona, em um vice-versa, as avaliações com os valores que estão sendo examinados por ele. Não se deve, para Nietzsche, prescindir a avaliação do valor e nem o valor da avaliação. Nesse caso, é bem marcante o tipo de círculo que se fecha na complementaridade entre avaliação e valor, isto é, não se pode tratar de uma, a avaliação, sem tratar do outro, o valor, e o contrário se valida da mesma maneira. Daí, certamente, quanto maior o número de perspectivas sobre uma mesma avaliação que gerou um valor e um mesmo critério de avaliação aí utilizado são percorridos por diferentes ângulos, o que leva a certa “precisão” na compreensão dos conceitos valorativos, chave da filosofia nietzschiana dos valores, de um filósofo que é filósofo da cultura, interessado em uma nova formação cultural, e, desta feita, em uma nova educação, passando todo esse percurso pelo viés da comunicação de avaliações e valores.

Nietzsche não quer manter uma cultura da mediocridade. Na realidade, é essa sua grande luta social, ainda que ele não seja um filósofo marcado por isso, ou seja, por questões sociais, um “militante”. Ainda assim, não se pode negar que o filósofo exerce em suas experiências com o pensar, em seus escritos, saindo disso toda uma função so-cial inserida de uma outra função política: o que ele mesmo denominava de suas “gran-des políticas”, estando entre elas a da linguagem.

Se Nietzsche não tem por objetivo uma vida assentada em idealizações, as quais se furtam a uma vida experimentada para a formação de um tipo humano para além das mediocridades pessoais e sociais, então há que apresentar alternativas. E ele faz isso. Escolhe um método e, por isso, é importante entendermos o seu perspectivismo, assim como seu procedimento genealógico dos valores morais, para uma abordagem interdis-ciplinar com vistas a um alcance maior de certa “objetividade” (GM/GM. III Disserta-ção, §12) na formação educacional-filosófica do mínimo que se pretende de alguém que viva em sociedade: tornar-se cidadão; e isso tudo é perpetrado aqui pela comunicação e linguagem, tema incluso neste trabalho.

A importância de estudarmos os valores com os quais são formados os homens que somos cada um de nós e de como atuamos em nossos diversos papéis sociais, e no maior e mais comprometedor deles: o de cidadão, é a tarefa primordial do desafio proposto neste artigo. E a filosofia de Nietzsche pode contribuir para tal empreita, imprimindo uma postura perspectivista e genealógica na formação geral das pessoas. Aprender a olhar para todas as coisas e pessoas com um olhar múltiplo, aprender a reavaliar os valores dados, aprender a buscar como tais valores foram criados, de que tipos de avaliação surgiram, é uma tarefa que, a princípio, pode não parecer importante, mas à medida que os impactos do método perspectivista nietzschiano vierem à tona, um método que traz um procedimento que lhe é inseparável para sua profundidade de ação, que é o procedimento genealógico, então tais impactos, advindos de descobertas de toda uma

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filosofia dos valores culturais que grassam entre nós, serão impactos transformadores.“[...] para Nietzsche, foi sempre da seiva de uma significação moral que se nutriram as pretensões de absoluto – seja no plano epistemológico, seja no ético-político. Nessas condições, o grande desafio a ser enfrentado por um tal empreendimento [...]” – o da crítica a tudo que se tornou absoluto entre nós, por valores que nos foram impostos como “verdades morais” inquestionáveis, o que erigiu uma sociedade problemática em seus programas de formação dos cidadãos, uma vez que tais “verdades” estão presentes em todos os ramos de nossa atuação, porque o próprio mercado tornou-se absoluto, dando o “tom” de todas as valorações, uma “mora de mercado” – “[...] consiste em evitar os efeitos narcóticos da moral, que colocariam em risco a viabilidade da própria empresa. Trata-se de, como Ulisses, resistir aos encantos da Circe. Com efeito, a moral sempre foi a tentação suprema, a que jamais puderam resistir os filósofos, pois estes acreditavam em “verdades morais [...]”.2 (Giacoia Jr., 2000:89)

É esse o intento que uma política que, de fato, esteja interessada na formação de pessoas mais vívidas e autênticas, mais criativas e, com todo esse elenco de adjetivos, visa a criação de si mesmo: o homem que aprende a ir além do que está aí, do que está dado, da mesquinhez, para “nascer de novo”. O perspectivismo e o procedimento genealógico são mais que ferramentas, portanto. São posturas, como já afirmado an-teriormente. Posturas sem as quais não é possível uma abordagem valorativa de uma discussão sobre comunicação, linguagem e educação desde Nietzsche.

Faz-se mister reafirmar o quanto essas posturas são políticas, pois traçam mu-danças que atingiram a polis. E, como a sociedade não é um contrato para o filósofo alemão, e sim uma tentativa de pessoas viverem uma vida coletiva para suprirem suas necessidades vitais, é preciso que uma formação filosófica dê o tom de uma paideia da autoeducação, isto é, que cada um seja responsável por si mesmo, por tirar de si o me-lhor, por fazer de si o melhor e o melhor em termos de potencializar a vida. Daí, estará cumprido o papel do cidadão: criar condições para que a vida seja potencializada. Vida em abundância, vida forte. E, nesse criar condições, o filósofo de Röcken afirma a ne-cessidade da crítica ao crescente desprezo pela formação humanística e o aumento da tendência cientificista nas escolas, além do que a ênfase dada ao mercado faz com que o sistema educacional se enfraqueça enquanto uma educação para uma cultura mais ampla, com tipos humanos capazes de desenvolverem ao máximo suas potencialidades do espírito. (Dias, 2007:98-99)

2. O que não está em itálico visa explicitar como um plano maior de crítica faz parte da grande política de Nietzsche em relação ao domínio absoluto de valores que necessitam ser revistos pela via da genealogia e de um olhar múltiplo, pois são valores absolutos e, por isso, metaf ísicos, e que, no fundo, não levam em consideração o humano em todas as suas potencialidades vitais, de fazer-se mais corpo, mais vida, em uma formação cultural ampla, da diversidade, mas que, não prime pela superficialidade, tal qual a sociedade em que vivemos.

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Nietzsche é o filósofo preocupado com uma política vital, por isso denomina suas políticas de “grandes políticas”. São políticas presentes em um projeto maior: o da trans-valoração de todos os valores. Ele sabe que sem mudar os valores culturais de uma so-ciedade, que as pessoas não mudando esses valores uniformizadores promovidos por políticas que pretendem, ao invés de criarem cidadãos, criarem “rebanhos” e pessoas voltadas para o imediatismo de um sistema que não leva em consideração o tempo ne-cessário para que o humano possa se lapidar e crescer em sua potência vital, educar-se para uma autonomia do espírito, mas, outrossim, exige dele que sirva aos interesses que resguardam a manutenção da primazia do mercado sobre todas as coisas. E sabendo muito bem o quanto Nietzsche não era inocente a ponto de pensar que é possível viver sem o mercado, a questão é outra: os valores foram invertidos. Mais ainda: a referência dos valores deixou de sê-la. A vida já não é mais referência, porém o quanto ela vale, isso sim. O procedimento genealógico auxilia muito, nesse sentido, a não olharmos as coisas a partir de uma única perspectiva, o que poderia empobrecer, e muito, até mesmo uma crítica a toda formação que fragmenta o humano. Nesse sentido, ir a fundo naquilo que origina esse ou aquele valor é indispensável para que o ponto de partida para uma nova avaliação seja outro. Uma nova avaliação, assim como todo tipo de avaliação, surge de necessidades. Ora, o perspectivismo associado ao procedimento genealógico nos faz chegar às necessidades que movem as avaliações e isso é que é importante, uma vez que das avaliações decorrem os valores. Outra questão interessante em Nietzsche é o como ele nos faz ver o quanto a falta de experiência de vida nos faz sofrer e o quanto uma juventude que não é capaz de várias perspectivas termina por maldizer a si mesma. Por outro viés, o que em nós deve ser sempre juventude? A nossa capacidade de indignação. Ainda nisso entra a prática do perpectivismo.

Nos anos da juventude, ainda veneramos e desprezamos sem a arte da nuance, que constitui nossa melhor aquisição na vida e, como é justo, pagamos caro por atacar de tal modo com Sins e Nãos as pessoas e as coisas. […]. A ira e a reverência, que são próprias da juventude, parecem não descansar enquanto não tenham falseado as pessoas e coisas de maneira tal que possam nelas se desafogar: a juventude é, em si, algo que falseia e engana. […] (JGB/BM, §31)

A falta de experiência de vida, na juventude, nos faz ver muita coisa a partir de poucos pontos de vista, o que diminui nosso campo de visão. Entretanto, é bom prestar-mos atenção que, ainda que com mais idade, também sentimos o peso da nossa falta de experiência de vida, porque nunca temos experiência o suficiente para tudo. E quando sufocamos em nós o que também era próprio da juventude, aquela sede ardente das descobertas e ousadias, descobrimos que estamos revoltados conosco mesmos. Mas, também essa revolta é a juventude em nós. É muito interessante isso em Nietzsche, isto é, como determinadas posturas tornam o espírito aguçado para se abrir a novas pers-pectivas e a um saber sentir-se mais profundamente em termos de novos olhares sobre

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si mesmo. Isso tem a ver com aprendizagem contínua, algo do que uma boa formação não pode abdicar. Quanto mais avançamos, mais nos vemos o quanto não tínhamos inúmeras perspectivas sobre pessoas e coisas... E também sobre nós próprios. Ainda estávamos na juventude. Para um decênio de vida após, sempre é possível perceber-mos que éramos jovens e, até por isso, nos revoltávamos contra a juventude: éramos jovens. “[...] Um decênio depois: e compreendemos que tudo isso também – era ainda juventude”. O final da citação anterior, que se encerra nessa outra citação mostra-nos o quanto sempre podemos ser jovens, porém há graus dessa juventude. Assim ensina o perspectivismo, que há muitas perspectivas, graus dessas perspectivas, o perspectivis-mo sem o qual não teríamos esse olhar múltiplo de que precisamos para uma formação entrelaçada entre comunicação, linguagem e educação, a partir de um norte filosófico, e, no caso, filosófico nietzschiano.

Comunicação, Educação e Linguagem

O que é comunicação? “Em sentido amplo, a comunicação é a troca de informações entre uma fonte ou emissor e um receptor” (Enciclopédia Intercom, 2010:234). E, em termos educacionais, fala-se muito atualmente em educomunicação. Trata-se de ações comunicativas com conteúdos especificamente educacionais, isto é, os educomunicadores cumprem um papel social e educacional mediante suas ações de prepararem as pessoas para reivindicarem seus direitos de acesso às informações, prevendo uma democratização das mídias e mediante a postura solidária frente ao uso das mídias (Cf. Enciclopédia Intercom, 2010:443). E o que é educação? É um processo de formação que ocorre nas relações entre as pessoas, as quais, nas escolas, assumem um aspecto formal/acadêmico. A educação é algo maior que a educação escolar, porém a última é que sistematiza todo o conhecimento filosófico e científico, e, por isso mesmo, deve colocá-lo a serviço de todos na sociedade. A educação, no geral, se pauta pela formação integral da pessoa, sendo uma paideia. Nesse sentido, sua importância é fundamental e indispensável para o desenvolvimento da pessoa. Por isso, é necessário que todos tenham acesso a ela na sociedade e, em especial, à educação escolar, para que não aconteça como costuma acontecer, isto é, que muitos se tornem excluídos de sua própria formação, faltando-lhes esse direito de cidadão. Educação também tem a ver com conhecer, saber fazer, tornar-se um ser e participar de uma coletividade. Nessa perspectiva é que educação rima com vida: viver é educar-se na relação com o outro, particularmente conviver com as diferenças, já que as pessoas não crescem de qualquer modo e sem qualquer referência. E dominar o saber fazer com que o outro aprenda mais é que resulta no que denominamos de ensino, sem o qual não há formação, ainda mais no que tange à educação escolar, que exige de nós que conheçamos a realidade

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que nos cerca em seus aspectos culturais os mais diversos, assim como nos exige o domínio da filosofia e da ciência para uma participação ativa na sociedade, garantindo nessa participação nossos direitos à dignidade, ao respeito, ao desenvolvimento das nossas potencialidades e à nossa liberdade de nos autoafirmarmos sem prejuízo de outrem (Brandão, 2007:54-110). Nesse contexto de educação e comunicação, entra a linguagem, mas... O que é linguagem? Segundo o professor João Wanderley Geraldi (1984:43) existem três concepções de linguagem: 1. A linguagem como expressão do pensamento: representa o pensamento e o conhecimento humanos. Daí que, quando nos expressamos bem, pensamos bem (Será?3). 2. A linguagem como instrumento de comunicação: transmite mensagens através de códigos. Signos que nos possibilitam a comunicação. 3. A linguagem como forma de interação humana: remete às ações sociais, ou seja, nas práticas sociais as pessoas se inter-relacionam. Linguagem, então, é estudada como um acontecimento social e histórico. E tudo isso junto nos leva a uma concepção de educação diferenciada, porque é na linguagem como expressão privilegiada de constituição das relações sociais que as pessoas se fazem e acontecem, é na linguagem que elas se tornam o que são, enquanto pessoas que pensam.

Mais especificamente no viés da filosofia primordial, temos que a linguagem é a “fala” do próprio universo através do ser humano. Isso é fartamente encontrado no que, por exemplo, muitos filósofos pré-socráticos entendiam por “logos”. O fato é que pensamento e linguagem sempre estiveram entranhados na filosofia. De modo que, para o ser humano, “falar” queria dizer “ser”. Não é por acaso que Heidegger, que trata do assunto sobre pensamento e linguagem, afirma que a linguagem é a morada do ser. (Heidegger, 2008:326)

Entrando nessa seara da linguagem, em uma filosofia da linguagem, ainda que de relance, e do ponto de vista de outro filósofo, Wittgenstein, temos que tudo não passa de “jogos de linguagem” (1996:7). Esses jogos definem-se como “um todo, consistindo de linguagem e das atividades a que ela está ligada”. São os usos e funções da linguagem que determinam seu valor, seu próprio significado. Bem... É por esse caminho que devemos trilhar neste texto, já que pelo olhar nietzschiano entraremos na questão da valoração pela linguagem, a qual expressa significados, valores, os quais indicam, enfim, nossa visão de mundo, nossas formas de nos relacionarmos com ele, com as pessoas, e, nesse entremeio, retornamos à importância do procedimento genealógico dos valores em relação ao perspectivismo. Destarte, podemos tratar de uma educação perspectivista no filósofo alemão e o quanto ela pode contribuir para aproximar comunicação, educação e linguagem como uma característica interdisciplinar que possui de modo endógeno em sua prática.

3. Coloco essa pergunta porque, afinal, podemos expressar bem certas coisas que não foram bem pensadas por nós, o que resulta em expressar bem o que foi, por exemplo, mal compreendido por nós mesmos.

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Comunicação, linguagem e educação desde Nietzsche: para uma educação interdisciplinar/perspectivista

A prática perspectivista e a educação interdisciplinar

O ponto de vista nietzschiano da prática perspectivista e que podemos entender como prática interdisciplinar na Academia, na educação escolar, faz do espaço acadêmi-co, da sala de aula, um espaço privilegiado de produção do conhecimento, visando aten-der às necessidades de formação crítica das pessoas envolvidas nessa empreita. Trata-se de propiciar uma filosofia experimentalista (termo bastante utilizado por estudiosos de Nietzsche). Desse modo, faz-se mister que todo meio que comunique mensagens possa ser um laboratório de experiências em prol de uma formação para a vida e não de uma formação para o mercado, contra o que Nietzsche lutou até o fim de seus dias. A prá-tica interdisciplinar, na realidade, copia a vida, copia a natureza, a qual se movimenta em conexões diversas, comunica-se em rede. Rede em que muitas perspectivas dessas relações se fazem presentes para que possamos aprender com cada perspectiva com a qual, de algum modo, possamos tomar contato. Quem sabe, a maneira de construirmos valores e enfiá-los nas coisas não mude mediante essa atitude diante da vida... Diante desse acontecimento da própria natureza: de que tudo está envolvido em tudo, de que há conexão entre realidades diferentes naquilo que, universalmente e conceitualmente costumamos chamar de realidade, como se fosse singular, mas que experimentamos da sua pluralidade em nosso cotidiano.

Além disso, cabe também discutir posturas frente às inovações tecnológicas que se fazem presentes na sociedade. Vejamos que a crítica de Nietzsche ao tecnicismo é forte, pois para ele o exagero tecnológico transforma o tipo humano em máquina, sub-misso a um tecnicismo, a uma técnica de decadência. Desse modo, sob que perspectivas tipos humanos vivem em uma sociedade que se faz, cada vez mais, desafiadora para a vivência cotidiana? Em se tratando disso, consideraremos os valores de resistência que podemos enfrentar, valores de coadunação a um tipo de sociedade tecnocientífica. E, certamente, ações críticas de interferência ética e cultural mediante impactos sociais causados por estas novas tecnologias deverão ser efetivados.

Isso tudo implica, em âmbito maior e junto aos representantes políticos responsá-veis pela gestão pública, cobranças que devem ser feitas em busca de ações em nome do bem maior da sociedade: a vida dos seus cidadãos, a vida de cada um de nós, a qualidade de vida que está à mercê de impactos sociais e ambientais que assistimos em nosso dia a dia, tanto em escala micro quanto em escala macro. Não se trata mais de agirmos em nome de um “bem” cuja existência nem sabemos direito, como é o caso de uma postura metaf ísica que, muitas vezes, pauta-se na transcendência de discursos vazios, evasivos, em detrimento do aqui e agora, próprios de uma retórica que nenhum bem concreto traz à sociedade, no sentido de buscar resolver os problemas mediante um “telefone do além”, como costuma lembrar Nietzsche.

No viés político, e para enfatizarmos o que o filósofo alemão deseja com sua ex-

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pressão “grande política”, muitas ações podem ser concretizadas nesse sentido, inician-do-se dentro da casa de cada cidadão até atingir os espaços de todos nas cidades por eles habitadas, regiões por eles ocupadas e assim por diante. Nisso, o teor perspectivista de uma educação com chave em Nietzsche pode contribuir e muito, já que promoverá uma formação interdisciplinar para tais ações, pois a ação em ensino possibilita essas múltiplas relações de perspectivas, discussões e toda uma formação necessária para a vivência da filosofia contemporânea, ou seja, para ser suprimido o dualismo que ainda impera na relação entre teoria e prática, relação que sugere, cada vez mais, a interdisci-plinaridade como fundamental, a proximidade, cumplicidade, entre o que, não raras ve-zes, nos aparece separado. Trata-se de executar ações em rede diante de uma sociedade em rede, de múltiplas perspectivas que se entrecruzam direta ou indiretamente em uma transdisciplinaridade e multidisciplinaridade.

Assim, a relação entre perspectivismo e educação (tanto em sentido maior como no sentido formal-escolar) voltada para uma filosofia da cultura, portanto, para uma filosofia dos valores que promovam a formação integral da pessoa-cidadã, prevê um es-paço de discussão através da avaliação das perspectivas genealógica e perspectivista de Nietzsche sobre o que são tais valores promotores não de “imperativos categóricos”, de ações com embasamento metaf ísico, mas voltados e disparadores de ações com emba-samento teórico o suficiente para interferências exemplarmente práticas, locais, regio-nais e que, mediante uma pluralidade de pontos de vista, se enriqueçam não com aquela intenção universalizante que, por vezes, sufoca o que é local e regional. Outrossim, a partir do local onde se está, com trocas de experiências bem concretas, de perspectivas efetivadas, experimentadas, inclusive com experiências do pensamento para mudanças de posturas frente a questões éticas suscitadas em nosso cotidiano e de culturas as mais diversificadas, é o que se busca em termos de uma paideia nietzschiana. Até porque, e isso não é nenhuma novidade, as relações com pessoas de diversas culturas nos enrique-cem em nossas localidades, assim como nossas idas e vindas nos fazem presentes em outras localidades que não as nossas de origem.

Por isso, uma filosofia pespectivista (de amplitude) das discussões sobre questões a serem enfrentadas no cotidiano existencial e social, para que a filosofia dos valores se transforme numa ação pluralista em nome da qualidade de vida é um viés bem próprio do enlace aqui presente entre comunicação, educação-cultura e linguagem. É a vida em muitas perspectivas. E o que é isso? Vida em muitas perspectivas? O que estou considerando, para reforçar, são as constituições vitais de diferentes grupos de pessoas e pessoas individuais, os quais são vidas em diferentes interpretações, regiões, espaços bem concretos de atuações diversas de todos nós. Para mim, interessa o estudo do perspectivismo como aquele olhar múltiplo sobre um valor que viabiliza o que denomino de postura educacional perspectivista e que as investidas comunicacionais e linguísticas estariam juntas nessa empreita. Trata-se, também, de aprender a amar-se enquanto

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vida em movimento para aquele plus de vida de que trata Nietzsche, principalmente o Nietzsche da maturidade4. Portanto, não se trata de enganos e superficialidades de propostas de autoajuda, como algumas pessoas “entendem” a “tal filosofia”.

A intenção, ao basear-me no perspectivismo, não é a de formar nietzschianos e, sim, utilizar essa postura sobre os valores expostos na sociedade como ensaio para uma postura pluralista, com pessoas mais abertas e aptas para exercerem melhor sua cidadania5. Trata-se, pois, de um método aliado ao procedimento genealógico, que não deixa de ser um método perspectivista também, que, adotado por Nietzsche, contribui para estudarmos o que, no momento, significa um determinado valor para este ou aquele grupo, para cada de um de nós, para a sociedade, enfim.

Trata-se de começar a encontrar uma plausibilidade para a questão de uma educação interdisciplinar e perspectivista em uma sociedade pluralista. Como pessoas com vínculos culturais tão diferentes poderiam estar trocando experiências para seu próprio crescimento, tendo em vista uma filosofia de seus próprios valores e outros que lhe são apresentados? Nesse sentido, estaria propondo uma relação diferente ao que, muitas vezes, é denominado de “relação” e que, afinal, é uma superposição de valores das instituições sobre os indivíduos e que os “disciplinam” no sentido da crítica foucaultiana. O que pretendo mostrar é que uma filosofia perspectivista, de cunho interdisciplinar6, percebe o poder controlador da moral como uma perspectiva, mas que há outras perspectivas mais salutares à formação das pessoas para que se tornem capazes de se relacionarem mais criticamente com os outros, defendendo a vida acima das observâncias de dogmas institucionais que, não raras vezes, postulam-se como “verdade”, o que é algo bem próprio da metaf ísica adotada por essas instituições. Metaf ísica e controle moral formam uma verdadeira máquina controladora das pessoas, máquina de controle social. Nesse sentido, ousadia diante do estabelecido faz parte da discussão aqui proposta.

Por certo, a exigência acadêmica pede clareza; contudo a firmeza teórica não pode significar “certas perspectivas de utilidade bem definidas, projetadas erroneamente na essência das coisas” (Dicionário básico de filosofia, 211). Explicar o perspectivismo é uma coisa além da qual há considerações necessárias para uma educação filosófica, uma real paideia em conjunto com a comunicação e a linguagem, com base no viés perspectivista do filósofo, buscando a possibilidade de uma ação múltipla e plural no campo educacional e pela propagação comunicada por uma linguagem filosófica. E

4. “Maturidade” porque alguns pesquisadores dividem as obras do filósofo em três períodos: no primeiro, são fortes as presenças das ideias de Schopenhauer e do compositor Wagner; no segundo, ele elogia Voltaire e se aproxima de Comte; no terceiro período, o da maturidade, faz a crítica a todos eles e cria sua própria filosofia, suas marcas filosóficas, estando entre elas o perspectivismo e o procedimento genealógico, além de outras, é claro, que não convêm aqui.5. Destaque para evitar equívocos interpretativos sobre este ponto de vista.6. Friso a fusão entre perspectivismo e interdisciplinaridade.

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linguagem múltipla porque sempre perspectivista e plural. E tudo devido à diversidade das perspectivas; e também “dialogante” enquanto interdisciplinar e transdisciplinar.

O percurso aqui é o seguinte: mostrar no perspectivismo de Nietzsche onde se lo-calizam os pontos para uma crítica eficaz aos valores morais estabelecidos e a efetivação de uma educação para a vida frente a um projeto pedagógico interdisciplinar dessa pai-deia filosófica, mediante os desafios que impõem para nós uma sociedade tecnológica.

Considerações finais

Tecer uma reflexão interdisciplinar entre comunicação, linguagem e educação, to-mando como referência uma reflexão filosófica e perspectivista, nietzschiana, é um de-safio. Muitas pessoas preferem acreditar mais em posturas absolutas, universalizantes e, portanto, metaf ísicas, o que dificulta, e muito, uma abertura maior a uma prática efetiva da interdisciplinaridade, a qual, na maioria das vezes, permanece, sim, como escopo te-órico, mas que dificilmente se concretiza, até mesmo em termos de uma coerência entre teoria e prática, o que é algo de imprescindível necessidade para uma coesão de diálogo nas duas esferas que, sabemos, estão sempre se conflitando em termos da falta da coadu-nação que costumamos praticar. E, muitas das vezes, inclusive na separação, por exem-plo, entre ensino e pesquisa, como não é incomum constatarmos no mundo acadêmico.

Daí que a reflexão deste pequeno artigo é uma teimosia em termos de mais uma provocação para que a interdisciplinaridade comece a efetivar-se com mais força nos meios em que atuamos. Para isso é que este trabalho reforça o entrelaçamento, as in-terfaces abertas ou sutis, entre comunicação, linguagem e educação. Sabemos o quanto estamos tratando de três aspectos fundamentais para nossa vida e como as esferas da comunicação, da linguagem e da educação, se bem afinadas, podem contribuir para uma nova proposta de formação do ser humano integral.

Nesse esteio é que a filosofia de Nietzsche, e, em especial, através do seu método perspectivista, juntamente com uma ação genealógica dos valores esparramados em nossa sociedade, que sua filosofia nos oferece uma possibilidade de pensarmos a partir de uma outra perspectiva filosófica o quanto há, no filósofo alemão, toda uma forma de trabalhar a cultura para que um novo tipo humano venha à tona. O tão mencionado além-do-homem, o Übermensch nietzschiano, mas ainda também tão mal compreen-dido por tantos entre nós, não é outro que um novo homem acima do homem mesqui-nho formado, inclusive, por nossas instituições de ensino, por nossas mídias e nossos desusos da linguagem. Por isso, uma experiência interdisciplinar entre comunicação, linguagem e educação, em uma ótica nietzschiana, nos faz ver como percebemos, ao longo do texto aqui elaborado, o quanto o perspectivismo nos coloca diante de novas possibilidades. E é justamente dentro de uma filosofia do experimentalismo que pre-tendo provocar um pensar a partir de Nietzsche, assim como outras propostas surgem

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de outras tendências do pensamento filosófico, as quais também merecem o espaço do diálogo para o qual lutam.

Portanto, o que apresentei nestas linhas não foi outra coisa que uma forma didática outra de ver o mundo no qual estamos inseridos... De ver e de agir...

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Revistas e periódicos

CADERNOS NIETZSCHE. São Paulo: GEN (Grupo de Estudos Nietzsche), números até 2011.DISCURSO: revista do Departamento de Filosofia da USP. São Paulo: Discurso Editorial, nos. 18 e 21 (publicação anual), 1990 e 1993.ECO: revista de la cultura de Occidente. Nietzsche: 125 anos. Bogotá: Colombia, tomo XIX/5-6-7, sept/oct/nov – 1969.LUMEN: revista de estudos e comunicações, São Paulo, 3 (6) e 5 (10), jun. 1997 e jun. 1999 (FAI-SP: Faculdades Associadas do Ipiranga).SÍNTESE NOVA FASE. Paradigmas da modernidade, Belo Horizonte, 25 (80) jan-mar. 1998.

Siglas das obras de Nietzsche usadas neste texto

GM/GM – Zur Genealogie der Moral (Genealogia da Moral)JGB/BM – Jenseits von Gut und Böse (Para além de bem e mal)

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Normas para o envio de originais

A Revista Communicare, do Centro Interdisciplinar de Pesquisa da Facul-dade Cásper Líbero, tem por objetivos promover a reflexão acadêmica, difundir a pesquisa e ampliar o intercâmbio científico com pesquisadores das diversas insti-tuições de pesquisa.

Os autores podem enviar artigos cujos temas estejam relacionados às seguintes linhas de pesquisa desenvolvidas no Centro: Comunicação: Tecnologia e Política, Comunicação, Meios e Mensagens e Comunicação e Mercado, como também de acordo com a temática do dossiê divulgada no Call for paper.

Linhas de pesquisa:

Linha de Pesquisa 1: Comunicação: Tecnologia e PolíticaEmenta: Estuda os processos de comunicação no contexto das modificações tec-nológicas e culturais proporcionadas pelas redes da sociedade contemporânea, os novos formatos de rádio e televisão, a participação dos meios de comunicação na constituição do espaço público e as políticas institucionais e/ou públicas de comuni-cação. Eixos temáticos: Políticas de comunicação; Tecnologia e cultura de rede; Rádio e Televisão no universo das redes; Comunidades virtuais e processos colaborativos.

Linha de Pesquisa 2: Comunicação: Meios e MensagensEmenta: Estuda os conteúdos e/ou produtos veiculados pelos meios de comuni-cação, a comunicação nos meios tradicionais e nas novas mídias, as relações entre informação e entretenimento/espetáculo, o imaginário e a cultura da imagem, bem como as formas de interação dos receptores/usuários com os meios e suas men-sagens. Eixos temáticos: Comunicação e cultura visual; Jornalismo e espetáculo; Narrativas da contemporaneidade; Comunicação e Recepção.

Linha de Pesquisa 3: Comunicação e MercadoEmenta: Estuda e/ou propõe respostas às demandas institucionais e mercadológicas contemporâneas nos campos de atuação da Publicidade, da Propaganda e Marketing, das Relações Públicas e do Turismo; investiga o processo de inserção dos profissionais formados pela Cásper Líbero nos mais diversos setores da sociedade.Eixos temáticos: Cultura e Mercado Publicitário; Ética e Comunicação Organizacional; Pesquisa Aplicada em Turismo; A inserção social dos profissionais formados pela Cásper Líbero.

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A publicação destina-se à divulgação de trabalhos inéditos de pesquisadores e docentes da Faculdade Cásper Líbero e de outras instituições, na qualidade de au-tores e coautores, com a titulação mínima de mestre, exceto artigos escritos em coau-toria orientador e orientando. As colaborações poderão ser apresentadas em forma de artigos, resenhas, levantamentos bibliográficos ou informações gerais, e estarão condicionadas à aprovação prévia da Comissão Editorial e do Conselho Consultivo.

Os trabalhos publicados serão considerados colaborações não remuneradas, uma vez que a Revista tem caráter de divulgação científica e não comercial. Tanto o conteúdo quanto o compromisso com o ineditismo dos textos são de total respon-sabilidade de seus autores. O envio de artigo para a Revista Communicare implica automaticamente autorização para publicação. Os direitos autorais de desenhos, ilustrações, fotografias, tabelas e gráficos que acompanhem os textos serão de ex-clusiva responsabilidade do colaborador.

Artigos

1. Os artigos devem ser encaminhados para o email [email protected] ou [email protected] com a identificação do autor – local onde lecio-na, maior titulação e instituição pela qual obteve o título;

2. Recomenda-se que os textos sejam escritos em Word 2003, fonte Arial, tamanho 12, espaço de entrelinha 1.5 pt, e tenham de 20 mil a 35 mil caracteres, incluindo espaços;

3. Sugere-se que o autor faça uma rigorosa revisão do texto antes de enviá-lo;

4. Os textos devem ser enviados obedecendo à reforma ortográfica;

5. A estrutura do texto deve obedecer à seguinte ordem: Título, Resumo (em 600 caracteres no máximo), Palavras-Chave; Corpo do Texto e Referências, sendo que o Título e o Resumo (Abstract) deverão ser acompanhados de versões para o Inglês e Espanhol;

6. Ilustrações e/ou fotografias deverão ser enviadas no formato TIFF ou JPEG (ar-quivos .tif e .jpg), com tamanho mínimos de 2000 pixels de altura e largura. A reso-lução não deve ser menor que 300 dpi;

7. Tabelas e gráficos devem ser numerados e encabeçados pelo seu título;8. Desenhos, ilustrações e fotografias devem ser identificados por suas respectivas

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legendas e pelo nome de seus respectivos autores;

9. Citações e comentários no corpo do artigo deverão ser inseridos ao longo do tex-to. As citações devem seguir o padrão: (Sobrenome em caixa baixa, ano da publi-cação: número da página); Exemplo: (Zanini, 2000:45).

10. As referências deverão estar dispostas no final do artigo. A lista de referências segue a ordem alfabética, sendo que as normas para cada referência variam de acordo com a autoria e natureza das obras utilizadas no trabalho. A Communicare adota como padrão o destaque em negrito.

No caso de obras com um único autor, é este o padrão: AUTOR (SOBRENOME EM CAIXA ALTA, Inicial nome.). Título em

Negrito (bold). Edição. Cidade: Editora, Data da publicação.

Exemplo: URANI, A. Constituição de uma matriz de contabilidade social para o Brasil. Brasília, DF: Ipea, 1994

11. Publicações em meio eletrônico devem conter o endereço eletrônico e data de acesso no padrão: 01/01/2001. Exemplo: ALVES, C. Navio negreiro. [S.l.]: Virtual Books, 2000. Disponível em: http://www.terra.com.br/virtualbooks/freebook/port/Lport/navione greiro.htm. Acesso em: 10/01/2002, 16:30:30.

12. Publicações periódicas deve conter dados como volume(v), número (n), páginas(p), mês e ano, sendo que apenas o nome da publicação vem em negrito.

Exemplo: BENNETTON, M. J. Terapia ocupacional e reabilitação psicossocial: uma relação possível. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, São Paulo, v. 4, n. 3, p. 11-16, mar. 1993.

13. Cada autor receberá cinco exemplares da edição.

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Resenhas

1. Recomenda-se que os textos sejam escritos em Word 2003, fonte Arial, tamanho 12, espaço de entrelinha 1.5 pt, e tenham de 2800 a 5600 caracteres, incluindo espaços;

2. A resenha deve vir acompanhada das referências bibliográficas completas da obra em pauta (Autor, Obra, Cidade, Editora, Data, ISBN, número de páginas);

3. Solicita-se que a resenha seja acompanhada de um exemplar da obra ou de ima-gem digitalizada da capa em formato tif, para publicação, de acordo com as pos-sibilidades de editoração;

4. Cada autor receberá cinco exemplares da edição.

Endereço

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