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Revista Communicare Vol. 8 – nº 2 – 2º semestre 2008 – ISSN 1676-3475

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Revista Communicare

Vol. 8 – nº 2 – 2º semestre 2008 – ISSN 1676-3475

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COMMUNICARE

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COMMUNICARE

COMMUNICARE8

Revista de PesquisaRevista de Pesquisa

CIP - Centro Interdisciplinar de Pesquisa

Vol. 8 - nº 2 - 2º semestre 2008 - ISSN 1676-3475

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Faculdade Cásper Líbero

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Communicare: revista de pesquisa / Centro Interdisciplinar dePesquisa, Faculdade Cásper Líbero. – v. 8, nº 2 (2008). – São Paulo: Faculdade Cásper Líbero, 2008.

SemestralISSN 1676-3475

1. Comunicação social periódicos I. Centro Interdisciplinar de Pesquisa da Faculdade Cásper Líbero

CDD 302.2

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Faculdade Cásper Líbero

Faculdade Cásper Líbero

Fundação Cásper Líbero

Presidente da Fundação Cásper Líbero: Paulo CamardaSuperintendente Geral: Sérgio Felipe dos SantosDiretora da Faculdade: Tereza Cristina Vitali

Centro Interdisciplinar de Pesquisa

Coordenador Geral do CIP: José Eugenio de Oliveira MenezesMonitoria do CIP: Andressa Carrara Umbelino, Juliana Regina Machado, Priscilla Coradete de Almeida.

Revista Communicare

Faculdade Cásper Líbero

Editor: Luís Mauro Sá Martino

Conselho Consultivo:Adriano Duarte Rodrigues (Universidade Nova de Lisboa) / Alberto Efendy Maldonado (Unisinos) / Dimas Antonio Künsch (FCL) / Erasmo de Freitas Nuzzi (FCL) / Guilhermo Orozco Gómez (Universidad de Guadalajara) / Heloíza Gomes de Matos (FCL) / Ivone Lourdes de Oliveira (PUC-MG) / Joana Puntel (Sepac) / Juremir Machado da Silva (PUC-RS) / Laan Mendes de Barros (FCL) / Liana Gottlieb (FCL) / Luiz Carlos Assis Iasbeck (UPIS-DF e UCB-DF) / Magda Rodrigues da Cunha (PUC-RS) / Malena Segura Contrera (UNIP) / Margarida Maria Krohling Kunsch (USP) / Maria Aparecida Baccega (USP e ESPM) / Maria Tereza Quiroz Velasco (Universidad de Lima) / Mauro de Souza Ventura (UNESP)/ Monica Rebecca Nunes (FAAP) / Nilda Jacks (UFRGS) / Roberto Coelho (USJT) / Teresinha Maria de Carvalho Cruz Pirez (PUC-MG) / Wilson da Costa Bueno (UMESP).

Comissão Editorial desta edição:

Versão para o inglês: Anna Carolina Negrini Fagundes.

Versão para o espanhol: Antón Castro Míguez.

Ilustrações: Hamilton Dertonio, Juliana Regina Machado, Luísa Oliveira Cardoso, Priscilla Coradete de Almeida, An-dressa Carrara Umbelino, Arthur Fujii, Filipe Augusto Damião de Carvalho e Silva Pereira.

Revisão: Sonia Breitenwieser Alves dos Santos Castino, Gilberto Maringoni, Nanami Sato, Antônio Roberto Chiachiri, Luís Mauro Sá Martino, Anna Fagundes.

Projeto gráfico e arte: Terra Comunicação Editorial.

Diagramação: Vivian Dumelle Gonçalves.

Tiragem: 1.000 exemplares.

RedaçãoFaculdade Cásper LíberoAv. Paulista, 900 - 6º andar - São Paulo - SP - CEP: 01310-940Telefax: (11) 3170-5878E-mail: [email protected] / [email protected]

Deseja-se permuta / Exchange is desiredExemplares avulsos: www.facasper.com.br/cip

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Pesquisadores docentes no 2º semestre de 2008 e pesquisas em desenvolvimento

Ana Maria Camargo Figueiredo A teledramaturgia como lócus de intersecção das teorias da Comu-nicação e das Ciências Sociais.

Antoine Pascal MarioliO negócio do turismo em São Paulo.

Antonio Roberto Chiachiri FilhoO sonoro e o verbal tecendo a malha de significações – uma aná-lise semiótica de peças fonográficas.

Celso Toshito MatsudaTecnologia e cultura de rede.

Edson FlosiLições de jornalismo: os bastidores da criação literária em jornalismo.

Eliany Salvatierra MachadoPráticas e teorias educomucacionais na Comunicação - um estudo dos trabalhos apresentados na Intercom de 2000 á 2007.

Elisa MarconiO silêncio nas minisséries – um estudo sobre a criação que pode existir quando se faz silêncio.

Erivam OliveiraAs diferentes formas do olhar: o candomblé de Pierre Verger e José Medeiros.

Gilberto Maringoni de OliveiraComunicações na América Latina: avanço técnico, difusão e con-centração de capital (1870-2008).

Guilherme GrandiAvaliação e mensuração de projetos em Relações Públicas: análise de dois modelos de valorização dos resultados.

Irineu Guerrini JúniorCoisa de louco? Um estudo comparativo de programas de rádio realizados por pessoas com transtornos mentais.

Júlio César BarbosaRelações Públicas e os processos de implantação da governança corporativa nas empresas brasileiras.

Liráucio Girardi JúniorA metáfora da conversação e as trocas simbólicas no ciberespaço.

Maria Goreti J.S. FrizzariniA cobertura da política externa brasileira feita pela imprensa latino-americana: análise comparativa entre os jornais: argentino, O Cla-rín; venezuelano, El Nacional; boliviano, La Razón, durante 2007.

Roberta Cesarino IahnAs redes de criação publicitária – Os processos de criação e a formação profissional na contemporaneidade.

Rodney NascimentoNão tem preço: a comunicação alterando a forma de consumo.

Sérgio José Andreucci JúniorA formação acadêmica e o novo perfil profissional do Relações Públicas no mercado brasileiro.

Sílvio Henrique Vieira BarbosaA telenovela como divulgadora dos ideais de cidadania.

Viviane Regina MansiComunicação como competência de liderança – o papel da comuni-cação interna nos processos de inovação e mudança organizacional.

Walter FreoaA comunicação em rede baseada nas comunidades virtuais – a publicidade pessoal versus o isolamento social.

Pesquisadores discentes no 2°semestre de 2008 e pesquisas em desenvolvimento

Beatriz Menezes Vieira (Orientador: Prof. Rodney Nascimento)Crescimento do mercado de luxo: ao que se deve?

Daniela Fernandes Cabreúva (Orientador: Prof. Liráucio Girardi Júnior) A identidade do jornal impresso na era digital: o caso dos jornais “Folha de S. Paulo” e “O Globo”.

Filipe A. D. de C. e S. Pereira (Orientadora: Profª. Eliany Salvatierra Machado)O Processo de Recepção na Revista G Magazine.

Gabriela Brasileiro Nascimento (Orientador: Prof. Sílvio Henrique Vieira Barbosa)A Buena Onda: como o colapso econômico de 2001 afetou o con-teúdo dos filmes argentinos.

Lígia Maria Marques Silva (Orientador: Prof. Dimas A. Künsch) O jornalismo e a vida que ninguém vê.

Luiz Eduardo Giaconi (Orientadora: Profa. Maria Goreti J. S. Frizzarini)O papel do jornal “A Tribuna da Imprensa” na queda do governo Getúlio Vargas.

Mônica Pestana (Orientador: Prof. Liráucio Girardi Júnior) Flâneur Marginal: o exercício do olhar na periferia paulistana.

Murilo Bansi Machado (Orientador: Prof. Sérgio Amadeu da Silveira)Aspectos da sociedade em rede: estudo da dinamica em comuni-dades em torno do software livre no Brasil.

Natália Cabral da S. Ranhel (Orientadora: Profa. Roberta Cesa-rino Iahn)A relação das empresas com ONGS (Case Greenpeace).

Pedro Zambarda de Araújo (Orientadora: Profa.Dulcília Buitoni)Escritores e jornalistas: a relação das duas vocações na carreira e vida de Albert Camus.

Rafael Potenza Fernandes (Orientador: Prof. Irineu Guerrini Jr.) Herói ou vilão? Análise Comparativa entre Batman – do gibi Bat-man – O Cavaleiro das Trevas e Capitão Nascimento, do filme Tropa de Elite.

Thales Figueiredo da Silva (Orientadora: Profa. Monica Brincalepe) United 93: ficção construída na linguagem documental.

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APRESENTAÇÃO

Questão de diálogoA question of dialogueLuís Mauro Sá Martino ........................................................................................................ 9

ENTREVISTA

On Media and IdentityAn interview with Dr. Sanna Inthorn – University of East Anglia, Great BritainLuís Mauro Sá Martino e Silvio H. Barbosa ....................................................................... 11

ARTIGOS

COMUNICAÇÃO: TECNOLOGIA E POLÍTICA

A voz do sujeito-navegador na página eletrônica da Caros Amigos The voice of the subject-navigators in the webpage of “Caros Amigos”Lucília Maria Sousa Romão e Daiana Oliveira Faria ......................................................... 15

O Estadão e a diplomacia do “pragmatismo responsável” The “Estado de S. Paulo” newspaper and the diplomacy of the “responsible pragmatism” Igor Fuser ............................................................................................................................ 25

Estratégias de posicionamento e disputas na implantação da TV Digital no Brasil Strategies of thread and disputes in the implantation of the digital TV in Brazil Roberto Bazanini e Mauricio Donato ................................................................................. 33

COMUNICAÇÃO: MEIOS E MENSAGENS

Mario Schenberg – Crítica de Arte e ComunicaçãoMario Schenberg – Art and Communication Criticism Alecsandra Matias de Oliveira ............................................................................................ 51

Produção e reprodução de informações no Blog do NoblatProduction and reproduction at Blog do NoblatMônica Prado e Luiz Humberto Viana ................................................................................ 65

Da literatura sobre som Of the literature on soundElisa Marconi ........................................................................................................................ 77

Carpeaux crítico da modernidade: uma interpretação de Wege nach Rom Carpeaux as a critic of modernity: an interpretation of “Wege nach Rom” Mauro Souza Ventura ........................................................................................................... 95

Sumário

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Rádio educativo no Estado de São Paulo: o ideal e o realEducational radio in São Paulo state: the ideal and the realIrineu Guerrini Jr. .............................................................................................................. 103

A divulgação da violência no telejornal da TV Cultura: o tratamento dado ao tema por uma emissora educativa The broadcast of violence in the TV Cultura Broadcast News: the way this educational channel approaches the themeCarlos Alberto de Souza e Karine Wenzel ....................................................................... 115

COMUNICAÇÃO E MERCADO

Por um Novo Balanço Social: muito além dos cânones da Comunicação CorporativaFor a New Social Balance: way beyond the Corporative Communications canonMitsuru Higuchi Yanaze e Eduardo Augusto ................................................................... 127

A Expressividade da Comunicação Oral e sua Influência no Meio Corporativo The Expressivity of Oral Communication and its Influence in Corporate MediaMarta Terezinha M. C. Martins e Waldyr Gutierrez Fortes ............................................. 139

RESENHAS

Sob o risco contemporâneoBAUMAN, Zygmunt. Medo Líquido. Tradução de Carlos Alberto Medeiros.Isaac Gil .............................................................................................................................. 151

A Semiótica e o processo de criação de uma obraSALLES, Cecilia Almeida. Redes da Criação: Construção da obra de arte.Izabelle Prado .................................................................................................................... 153

NA ESTANTE

Para pensar a cultura Heitor Ferraz ...................................................................................................................... 155

CLÁSSICO

Liberdade, imprensa e liberdade de imprensa MARX, Karl. A liberdade de imprensa. Tradução de Cláudia Schilling e José Fonseca. Francisco José Nunes ........................................................................................................ 157

Normas para o envio de originais 159

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screver uma tese é dizer o que todo mundo sabe de uma ma-neira que ninguém entende”.

Essa frase, ouvida em uma conversa com uma amiga alemã, estudante de doutorado, foi seguida por uma recomendação: “Tem um texto de Peggy Kamuf sobre isso”. Virtualmente, o texto estava na caixa de entrada horas depois.

Escrevendo sobre o sistema univer-sitário norte-americano, Kamuf (1995) questiona porque a pesquisa acadêmica raramente vai além das fronteiras da Universidade: o texto acadêmico não é complicado demais para ser apropriado pelo público? O discurso acadêmico, cria-do na gestão legitimada do saber, é aces-sível apenas à quem dispõe decifra sua linguagem, em contraste com o contexto de margem desprovido dos elementos

Apresentação

Luís Mauro Sá MartinoDoutor em Ciências Sociais pela PUC-SP

Docente da Faculdade Cásper Líbero e [email protected]

Em busca das identidades marginais

Towards a marginal identity

“E necessários para sua apropriação. Mas poderia ser de outra maneira?

Terry Eagleton (1986:75) lembra que a noção de “explicar alguma coisa” se dissol-ve em perspectiva: se um assunto pode ser explicado é porque não é tão difícil, mas a linguagem usada para explicar um texto complexo talvez não seja fácil. Dessa manei-ra, como propõe Gayatri Chakravorty Spivak (1993), a questão talvez não seja o texto, mas as condições de produção de um discurso etiquetado como “centro” ou “margem” em locais específicos de apropriação.

Para ela, em outro texto (1988), inver-ter a polaridade dos discursos e olhar o centro a partir das margens tem o mérito de abrir outra perspectiva, mas não escapa das oposições binárias construídas no discurso – centro e margens continuam existindo, não importa onde fica disposto

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Em busca das identidades marginais

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século 20 e, como outros de sua geração – Walter Benjamin e Ernest Bloch – exilado. Em trânsito entre áreas do saber, também está o físico Mário Schenberg, interpretado por Alecsandra Oliveira como critico de arte.

Desmontando o texto político, Carlos Alberto Souza e Karine Wenzel estudam a cobertura da violência na TV Cultura, enquanto Igor Fuser mostra a montagem dos editorias em O Estado de S. Paulo. A distância quebrada na comunicação digital é o objeto de Lucília Romão e Daiana Faria sobre a página da Caros Amigos, e o blog de Ricardo Noblat é estudado por Mônica Prado e Luiz Viana. Maurício Donato e Roberto Bazanini se dedicam às questões da TV digital no Brasil. Para pensar a tecno-logia, Elisa Marconi avalia a pesquisa sobre rádio e Irineu Guerrini estuda a atuação do Rádio na educação, elemento chave para desmontar oposições margem/centro.

A construção das oposições entre cen-tro e margem parece também nas micro-políticas (Foucault, 1997) do poder coti-diano, e, nesse sentido, Mitsuru Yaganaze e Eduargo Augusto analisam a comunica-ção corporativa, enquanto Marta Terezinha e Waldyr Fortes reforçam a importância da interação oral nesse contexto.

Na Estante, Heitor Ferraz traz uma se-leção de livros sobre crítica cultural. Fran-cisco Nunes, no Clássico, comenta artigos jornalísticos de jovem chamado Karl Marx, outro alemão em trânsito que encontrou na Inglaterra o espaço para sua obra.

o olhar da câmera, na metáfora do filósofo Evaldo Coutinho (1976). A desconstrução das oposições centro/margem pode ser fei-ta quando se sai do sistema questionando as condições de sua existência – o discur-so perde seu centro na desnaturalização de sua condição (Derrida, 1972).

Construído a partir de regras específi-cas e consciente dessas regras, a produção da pesquisa acadêmica em Comunicação se afirma na desmontagem de textos cria-dos sobre e a partir de discursos fixados no senso comum. Como lembra Gabriel Cohn (1987), ir além da aparência tem caráter político – o saber, autoquestionan-do sua produção, pode dizer alguma coisa sobre as relações sociais que o envolvem. Nesta edição, vários textos questionam a oposição centro/margem, a produção e disseminação de saberes acadêmicos.

Na entrevista, Sanna Inthorn, professo-ra da Universidade de East Anglia (Reino Unido), comenta seu German Media and National Identity (2007). Nascida na Ale-manha, formada na Universidade de Car-diff, em Gales, escrevendo em inglês sobre identidade germânica, Inthorn mostra o delicado balanço entre nacionalismo e tolerância nos discursos da mídia, focando em particular a cobertura da vitória brasi-leira contra a Alemanha em 2002.

O caminho por várias margens, é o tema de Mauro Ventura, decifrando Otto Maria Carpeaux. Nascido Otto Karpfen em Viena, foi um dos principais críticos culturais do

Referências bibliográficas

COHN, M. G. “A pesquisa nas ciências sociais”. Cadernos Cedes, São Paulo, Cortez, 1987.COUTINHO, E. O lugar de todos os lugares. São Paulo, Perspectiva, 1976.DERRIDA, J. Positions. Paris, Minuit, 1972.EAGLETON, T. Against the grain. Londres, Verso, 1986.FOUCAULT, M. Il fault defendre la societe Paris, Seuil, 1997.KAMUF, P. “Going Public: the university in deconstruction”. In. HAVERKAMP, A. Deconstruction

Is/In America. Nova York, NY University Press, 1995.SPIVAK, G. C. “Can the subaltern speak?” in NELSON, C. e GROSSBERG, L. Marxism and the

Interpretation of Culture. Urbana, University of Illinois, 1988. SPIVAK, G. C. Outside the teaching machine. London, Routledge, 1993.

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r. Sanna Inthorn is lecturer at the School of Political, Social and Cultural Studies at the University

of East Anglia, Great Britain. She was born in Germany – in Bavaria, as she likes to highlight – and got her academic degrees in Media and Cultural Studies at the Uni-versity of Cardiff, in Wales.

In 2007, she released her second book, German Media and National Identity, whe-re she explores the construction of identity through media discourses about food, clo-thing, citizenship and football. This last item focus on the German media coverage of the 2002 World Cup – particularly, on the media-constructed figure of the Brazi-lian so coach, Luis Felipe Scolari.

In this interview, professor Inthorn talks about the concepts of ‘identity’ in a globalized world, the method of Cultural

Entrevista

Luís Mauro Sá MartinoDoutor em Ciências Sociais pela PUC-SP

[email protected]

Silvio H. BarbosaDoutor em Ciências da Comunicação pela USP

Docente da Faculdade Cásper Lí[email protected]

On Media and IdentityAn interview with Dr. Sanna Inthorn –

University of East Anglia, Great Britain.

Sobre mídia e identidadeEntrevista com Dr. Sanna Inthorn,

da University of East Anglia, Grã-Bretanha.

D Studies to explore everyday life, and ex-plain why the media is important to set a concept of national identity

Your academic formation is in “Media and Cultural Studies”. How do you define this area?

“Media and Cultural Studies” is like an interest in popular culture, and in “everyday”. We are trying to take the everyday culture very seriously, looking at the negotiations of social identities and power. What I like about my subject is this interest in power and in everyday culture.

Is there any border between media studies, cultural studies and popular culture studies?

Yes. I always think about cultural studies like something that is beyond the

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On Media and Identity

12C o m m u n i c a r e

media, like food or clothes, for example. Their notion of “everyday culture” goes beyond television and press.

Is it possible to identify a particu-lar object for Cultural Studies?

I think what Cultural Study need is this everyday studies, where you have an addition of things to look at, for example, not to see only opera, but also to read that comic book, and all of that can be an object of study. In Cultural Studies there’s no single thing that they would look at; they look at culture in all its terms.

In your book, you mention the importance of media in creating a

national identity. Can you give an example?

Media do it in various ways. There is the argument that they do it through regu-lar events, like the broadcas-ting of Football World Cup’s final or things that are really occurring and big events that make people think about, like the funeral of Princess Diana. It was an event in which the nation could ima-gine itself as being part of it, and imagine what sorrow

can one experience. Everyone is at home, watching this thing and experiencing it.

When we talk about media discourse analysis, sometimes newspaper people complain that they “didn’t mean to say that”. What do you think about the gap between academic analysis and newspaper people routine?

I will start with the argument that people say “I didn’t mean it”. Sometimes people think it is evil to say racist things without meaning. They think, “I didn’t mean to be racist”, and there was no intention behind

it. But, nevertheless, they reproduce this language. We have to say, “you did repro-duce it, though you might not have meant it, but you used that bit of language”.

Language is about making comments and ways of trying to understand the world. Sometimes you might make a racist or a sexist joke, because we use what is available. Some language patterns that are very common and we just reproduce them. So it is possible to be racist and sexist without thinking “I’m gonna be racist or sexist now”.

When they say “I didn’t mean that”, I can show you that this meaning is there, ecause texts are polissemic, and even if you tried to produce one meaning, it can be perfectly interpreted in a different way.

It is not a big conspiracy of journalists to put these things in, it is just their part of a wider culture, and therefore this lan-guage is in the text that they produce.

You wrote your book in Wales. Would your book be different if it had been written in Germany?

Well, I don’t think it would get publi-shed (laughs). I think it would be tougher to do it with the approach that I did it, because that part of cultural studies is not well looked on by German academics, because of the method.

Cultural Studies, as it is taught in Bri-tain, isn’t really taught in Germany and in many places. I think German Academia, when it comes to media and communica-tion, is very much about finding a proper method and a lot of quantitative work, and I haven’t done that, and that would have been a problem. I think it would have been publi-shed, actually. German Academia publics a lot of books about German national identity, national culture, and it’s not just Academia, but in Germany itself, Germany produces too much about German identity.

I would have been a bit afraid of that because If you tell them what you think

We should not assume that people think “oh, the mass media do everything to us, they have control over our minds”

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13Volume 8 - Nº 2 - 2º sem. 2008

Dr. Sanna Inthorn

their nation is about, it’s a very personal thing, and specially within Germany no one likes to hear what I essentially say that people still are, that is in media, and I see a lot of racism, and in academic circles they have an established argument that a lot of people would say that we kind of know that, but for the general public these are difficult things.

What is the media role in creating a personal identity?

I do not think the media are necessarily the main source of identity. We think that discourses about fashion or beauty are very important, and for political identities also. But we should not assume that people think “oh, the mass media do everything to us, they have control over our minds”. People are too remarkably resistant to what there is in the media. Media are part of the discourse available to us, and all the institutions have discourses, in the public and the private fields. And we cannot say that the media has the same effect or impact on everyone.

In your book, you identify two concepts of identity, the ethni-cal and the civic one. Could you explain the difference?

In the German context, the “civic” understanding of “being German” mean an attitude for democratic system and human rights. Things you associate with Western political values, and have nothing to do with heritage and culture. A civic identity is the assumption of the cultural identity is routed in the law and in political values. It means that pretty much everyone can have access to the national community, because if it means that “I believe in demo-cracy, I believe in the rule of Law”, than it shouldn’t matter what your religion is, or if your grandfather was German or not.

The “ethnic” concept is about cultu-ral heritage, which matters very much. Someone from London cannot join the German community, because his culture

and country traditions are very different, the language is very different. This cultu-ral notion very often hides assumptions about ethnic heritage.

Is it possible to think about a natio-nal identity without talking in ethni-cal or even fundamentalist terms?

It is possible if you understand natio-nal identity as a disgusted construct, if you think it is kind of “I would approach it to something that it is what people make”. Sometimes the way we think of the national identity can be a mix of areas, it can be seen in kind of an ethnic way, and sometimes it becomes very much culture and ethnic stuff, and it sometimes becomes very much about the politics of it. I do not see it ever being entirely free of intercultural notions.

Is it possible for a German to think about his identity without thinking about the past? How was the discursive construction of the German past? Do you remember your own experience?

I owe it to my grandparents. I learned about the German past through quite amusing anecdotes, stories your grandfa-ther might tell you. He only told funny stories about the war, like when he had his leg shot in Poland. He made a hilarious story out of it. It was only when I went to school that the war suddenly became a very serious thing. Family does kind of a selective story of what war is about. My own grandmother is very confused now, but she still praises the Autobahn. Her sister was only three years older and very critical. When we were older she did talk to us about how her Jewish school friend’s family just disappeared, and no one knew where they had gone.

Even within my family there might be people who are quite willing to talk about their memories. They used the ar-gument that we had such a bad time and

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On Media and Identity

14C o m m u n i c a r e

people should have known that as well. And therefore I would not try to prevent access from my own in honor of this. And when I went to school it was very much. We studied German, German Literature and German History, and Geography. It was everywhere. The generation of young people in Germany is kind of fed up and they want to move on.

In the chapter on football and national identity, you say that German media praised Luis Felipe Scolari, the Brazilian coa-ch, because of his “German” vir-tues. How does national identity become international?

I found that a really in-teresting question, because “German” becomes an adjec-tive like any other, like you say “green” or “fast”. “German” is just one of those things that describes the person, but you can’t attach to anyone, like if he’s from Brazil but you can call him German.

It is a positive ste-reotype in Brazil, it means that things are going to work.

And I think it’s also in Germany, be-cause we think of “what’s wrong in being punctual, what’s wrong with his work”? These are not things that you think “oh, it’s about being relaxed, and kind of friendly and welcoming”. And it is very curious when people praise me for these things, even in my work.

I myself have this kind of fear of not doing or speaking by the rules. I know it’s not German, because they don’t speak by the rules at all, but I have this thing, when I do speak by the rules and people say “oh, you’re so German”, I feel like “oh yes, I’m sorry”. I know that’s something meanin-gless but sometimes I like to say that I come from Bavaria, because it makes me more relaxed looking, which is a pathetic attempt to trying to be German myself, it’s what I like in my regional identity.

How did this “German” stereo-type go around the planet?

In terms of football, that’s kind of media, so, yes. But I think this stereotype just comes from the media. If you watch films in which there is a German, even if it is a minor character, he will be very, very German. This kind of stereotype will be widely available.

A final question: July 2002, World Cup final match. How was the media coverage of the event, in terms of Brazil? I mean, I would like to see Brazil through German eyes.

Watching Brazil is like having lots of expectation of watching good football. Even though there is this discourse that says “Oh, the Brazilians don’t even play like the Brazilians anymore”, but look, they’re winning, and they’re organized. Brazil is admired for having managed to have this culture, and so, having good people, and this kind of football, that is still there, and when it’s not there, where has it gone? It should be there…

It is possible to be racist and sexist without thinking “I’m gonna be racist or sexist now”

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Artigos

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Comunicação: Tecnologia e Política

Resumo

Tomando como referencial a Análise do Discurso de filiação francesa, caracterizamos a inscrição de sentidos dos sujeitos-navegadores no site da Revista Caros Amigos. Tomamos por base os conceitos de sujeito, formações ideológicas, formações discursivas, memória discursiva para especular como o sujeito-navegador é interpelado pela ideologia que promove a circulação de dizeres que, à primeira vista, poderiam parecer evidentes. A topologia da rede e o hipertexto dão margens à dispersão dos sentidos, e a internet se caracteriza como um novo espaço, profícuo para a inscrição histórica dos sentidos, que deslizam entre hiperlinks e hipertextos.

Palavras-chave: sujeito, memória discursiva, ideologia, internet, Caros Amigos.

Abstract

Taking as theoretical framework Franch Dirscouse Analysis, this work focus on the register of navigator-subject senses in Caros Amigos website. We use the concepts of ideological formations, discursive formations, and discursive memory to speculate how is the subject-navigator questioned by an ideology that promotes a discourse circulation that, at first sight, could be evident. We take into the account net topology and hypertext mechanisms that make room to the dispersion of the senses, and that the Internet is char-acterized as a new space, useful for the historical registration of the senses, as they slide between hyperlinks and hypertexts.

Key words: subject, discursive memory, ideology, internet, Caros Amigos.

Resumen

Tomando como referencial teórico los presupuestos del Análisis del Discurso, teoría de filiación francesa, buscamos en este trabajo caracterizar la inscripción de sentidos de los sujetos-navegadores en la página electrónica de la Revista Caros Amigos. Para ello, tomamos por base los conceptos de sujeto, formaciones ideológicas, formaciones discursivas, memoria discursiva para especular cómo el sujeto-navegador es interpelado por la ideología que promueve la circulación de decires que, a primera vista, podrían parecernos claros evidentes. Consideramos la topología de la red y el hipertexto mecanismos que dan márgenes a la dispersión de los sentidos y tuvimos en cuenta que la Internet se caracteriza como un nuevo espacio, proficuo para la inscripción histórica de los sentidos, que vagan y deslizan por entre los hiperlinks e hipertextos.

Palabras clave: sujeto, memoria discursiva, ideología, Internet, Caros Amigos.

A voz do sujeito-navegador na página eletrônica da Caros Amigos

The voice of the subject-navigators in the webpage of “Caros Amigos”

Lucília Maria Sousa RomãoDoutora em Psicologia pela FFCLRP-USP

Professora do Curso de Ciências da Informação e DocumentaçãoProjeto Individual de Pesquisa FAPESP

[email protected]

Daiana Oliveira FariaAluna do curso de Ciências da Informação e

da Documentação FFCLRP-USPBolsista do Programa Ensinar com Pesquisa da

Pró-reitoria de Graduação da [email protected]

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Introdução

partir dos pressupostos teóri-cos da Análise do Discurso, de tradição francesa, iniciada com

os estudos de Michel Pêcheux (1969), buscamos no presente artigo flagrar a ma-neira pela qual o sujeito navegador produz sentidos na chamada grande teia mundial, world wide web. Para isso, nos ancoramos em alguns conceitos essenciais da teoria em questão, tais como sujeito, formação discursiva, interdiscurso, ideologia den-tre outros, e mobilizamos também alguns trabalhos sobre mídia e internet, que nos orientaram para caracterizarmos esse novo espaço tão inquietante de produção e circulação de sentidos.

Tendo em vista o nosso objeto de estudo e pesquisa, que é o discurso instituído pela revista Caros Amigos, abordaremos como corpus de análise alguns comen-tários dos leitores em rela-ção ao texto “A questão da nomenclatura”, escrito por Guilherme Scalzilli, pos-tado no dia 6 de setembro de 2007, na sessão correio caros amigos, 305º edição.

Em rede: a (des)construção do mito

Antes de abordarmos os conceitos da teoria de Análise do Discurso que susten-tam este trabalho, convém contextualizar-mos o cenário tão curioso instalado pela Internet e explicar, também, um pouco do que é o projeto da Revista Caros Amigos. Inicialmente tomamos o depoimento de Sérgio de Souza, um dos jornalistas da revista Realidade, periódico alternativo de considerável notoriedade, nos anos 60, e criador do projeto Caros Amigos:

A revista nasceu de uma conversa casual com o jornalista José Carlos Marão, que

Atambém havia trabalhado em Realidade e manifestava a intenção de criar uma pu-blicação que falasse sobre o bairro de Vila Madalena. O projeto, no entanto, cresceu, deu uma forte guinada, as discussões incorporaram outros personagens, dentre eles Alberto Dines, Mathews Shirts, Fran-cisco Vasconcellos, João Noro e Roberto Freire, grande companheiro de Sergio desde os idos de Realidade. (Pereira Fi-lho, 2004:111).

Assim, em abril de 1997, chega às bancas a primeira edição de Caros Amigos, em formato tablóide, trazendo na capa, em branco e preto, uma foto do jornalista Juca Kfouri. Desde o princípio, a revista mani-festa a vontade e desejo de proporcionar aos seus leitores a grande reportagem, o texto narrativo de fôlego e profundidade, as matérias de compreensão do mundo, as histórias bem contadas (Pereira Filho, op.cit.). Possuindo um jornalismo inter-pretativo, a revista apresenta-se como uma nova possibilidade de leitura e entendi-mento dos fatos e do mundo, sustentan-do-se a partir da inscrição histórica dos sentidos de resistência no jornalismo.

Podemos dizer que Caros Amigos enuncia de um lugar diferente, visto que se trata de uma publicação mensal, mantida apenas pela receita das vendas em banca, de publicidade e das assinaturas, além de ser dirigida por um grupo de jornalistas e não de empresários. Por isso, a revista é tida como representante da imprensa dita “alternativa”, na medida em que apresenta um discurso diferenciado daquele institu-ído pela chamada “grande imprensa”.

No tocante à Internet, segundo Romão (2005:59), “a rede eletrônica abre espaço para a emergência de novos modos de constituir, formular e fazer circular os discursos, inscrevendo sujeitos em outras posições de dizer, poder e dizer (...)”. A própria estrutura da rede já propõe outras formas de comunicação entre as pessoas que se dá não mais de um para um, como no telefone, ou de um para muitos, como

no rádio ou na TV. Com a net, os efeitos de

Gostaríamos de romper com a transparência do efeito ideológico de que a rede é de todos ou de qualquer um

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do computador, todo mundo está em pé de igualdade. Não há mais hierarquia a priori” (Wolton, 2003:88). Predomina-se a ilusão de um mundo aberto, acessível a todos, sem hierarquias nem fronteiras, quando, na realidade, sabemos que essas novas tecnologias de informação e comu-nicação, dentre elas a Internet, implicam alguns pré-requisitos não preenchidos pela maioria da população, tais como acesso à energia elétrica, endereço fixo ou pagamento em uma lan house, poder aqui-sitivo, conhecimento técnico, domínio da língua portuguesa e rudimentos de língua inglesa. A tecnologia por si só impõe a sua hierarquia, posto que ela se dá a conhecer aos que têm acesso a bens de natureza material e imaterial, ou seja, “àqueles que desconhecem a realidade fora da barriga da miséria” (Romão, 2004:43).

Adentramos o universo do digital, afetadas pela certeza de que é preciso des-construir o mito que o sustenta, pondo, na teia das redes de sentidos já-aí, a certeza de que o sujeito nunca é livre para tudo dizer e, independente do suporte, não existe a certeza de que algo nos coloque em pé de igualdade com os outros, a não ser no plano das ilusões, que aqui queremos colocar em xeque.

O sujeito do discurso e o discurso em rede(s) de filiação

Importa-nos aqui caracterizar o su-jeito-navegador da pagina eletrônica da Revista, pois, para a Análise do Discurso, o conceito de sujeito é bastante caro. Ele é entendido, não como o sujeito empírico, ser humano individualizado, passível de generalizações ou categorizações, mas sim como sujeito de/à linguagem, ou seja, como uma posição no discurso (Pêcheux, 1969). Ao enunciarmos, ocupamos uma determinada posição, a qual é determi-nada pelas condições de produção sócio-

histórico-ideológicas, isto é, as palavras

comunicação entre as pessoas dão-se de muitos para muitos, ressaltando que esse significante muitos é um número que foge ao nosso alcance, um verdadeiro sem-nú-mero inimaginável. A Internet impulsiona relações fluídas, instantâneas e voláteis, “permitindo que qualquer indivíduo, em qualquer lugar do mundo, possa estar em contato imediato – transmitindo voz, texto e imagem que ele escolher – com qualquer outra pessoa e lugar do planeta” (Sorj, 2003:40). Gostaríamos que ressalvar aqui, que embora a net abra mesmo as possibili-dades descritas acima – de transmissão de voz, animação, sons diversos, imagens e impressos criando novos gêneros textuais – não são todos que igualitariamente têm acesso à entrada no ciberespaço, posto que estatísticas otimistas indicam que não mais do que 10% da população brasileira está on-line. Com essa formulação, gosta-ríamos de romper com a transparência do efeito ideológico de que a rede é de todos ou de qualquer um, desconstruindo o mito da acessibilidade infinita para todos.

Em relação ao discurso jornalístico eletrônico, consideramos importante registrar que as palavras divulgadas na rede não precisam, obrigatoriamente, passar pela “tesoura” do editor ou pelas “amarras” da censura como acontece na redação do impresso, posto que um blog, por exemplo, pode acomodar enunciados do próprio jornalista sem que ele tenha que mostrar a um outro antes de publicar e fazer circular. Nesse sentido, a world wide web instala os efeitos de maleabilidade e autonomia sem restrições e barreiras burocráticas dadas a priori pelos cartéis midiáticos. Essa condição leva o sujeito à grande ilusão de simetria em relação ao(s) outro(s), igualdade social, liberdade e potência diante do seu dizer, que seria tão ilimitado quanto à rede, tão poderoso quanto a tecnologia e tão livre quanto o sujeito imaginariza ser em um espaço apa-rentemente sem bordas. Talvez por isso sustente-se o imaginário de que “diante

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do sujeito promovem sentidos de acordo com o contexto da enunciação e da posi-ção que ele ocupa para poder enunciar. É a idéia de movimento e deslocamento que fundamenta a noção de sujeito: um lugar tomado para que, a partir do qual, se possa enunciar e, ressaltando, esse lugar não é sempre o mesmo, visto que o sujeito pode migrar de uma posição a outra. Segundo Mariani (1998), “é o sujeito que ao ocupar uma posição faz a língua entrar em funcio-namento e esse funcionamento é afetado pela memória do dizer (interdiscurso)”.

É preciso também considerar a memó-ria discurso, isto é, o interdiscurso como a relação de um discurso com outros vários e entendendo que esta relação é o que dá

a particularidade que cons-titui todo discurso. É neste sentido que podemos dizer que “o interdiscurso é o con-junto do dizível, histórica e lingüisticamente definido” (Orlandi, 1992:89). Assim, o intradiscurso tem relação com a memória discursiva e com o já-dito, que sustenta todo ato de dizer (Romão e Pacífico, 2006 b), ou seja, as formulações dos enuncia-dos fazem falar o conjunto de formulações já feitas,

significando de maneira particular as redes de memória, rompendo-as, retomando-as, cristalizando e atualizando sentidos já ditos (Orlandi e Rodrigues:2006).

E tais movimentos de retomada ou ruptura são orientados pela ideologia, que naturaliza sentidos para o sujeito, que torna evidente o sentidos de certas palavras e apaga outras, que indica ser uma formulação a mais exata deixando as demais na sombra do esquecimento. É preciso, então, considerar o processo de interpelação ideológica, pensada a partir da linguagem e não sociologicamente, compreendida aqui não como visão de mundo, mas como estrutura do processo

O sujeito navega por águas alheias, mobili-zando palavras que não são suas

de significação e como mecanismo que produz certas evidências para o sujeito e não outras (Pêcheux, 1969), disponibi-lizando ou interditando regiões de dizer. Considerar estes mecanismos de retorno e deslocamento dos sentidos dados pela memória discursiva, observar a errância do sujeito em meio a palavras que não são suas e investigar o processo de inter-pelação ideológica que possibilita ao su-jeito inscrever-se em uma dada formação discursiva, ou seja, filiar-se àquilo que pode e deve ser dito por ele a partir de uma determinada posição, em um dado momento e em uma dada conjuntura são o nosso fazer de analistas, que será posto em discurso a partir daqui.

Uma rede a partir de uma textualização: janelas de dizer na página eletrônica da Caros Amigos

O nosso corpus de análise foi cons-tituído por recortes de textualizações, inscritos na página eletrônica da revista Caros Amigos, em relação ao texto A questão da nomenclatura, de Guilherme Scalzilli, postado no dia 6 de setembro de 2007, na sessão correio caros amigos, dis-ponível no sitio <www.carosamigos.com.br>. Foram analisados exatamente cinco comentários, sendo três que concordam com o que foi escrito por Guilherme e dois que discordam.

Nos três comentários dispostos a se-guir, há um interdiscurso sustentando os sentidos sobre a mídia, fazendo falar os efeitos de manipulação e de massificação do sentido dominante inscrito nos jornais e revistas das grandes corporações, que aqui se quer desautorizar.

Brilhante artigo, escrito sem a paixão odiosa da grande mídia elitista. Os go-vernos passados podiam tudo, até mesmo assistirem passivamente ao assassinato covarde de 111 presos no massacre (que

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escandalizou o mundo) do Carandiru. O atual governo, somente porque não faz todas as vontadinhas de uma imprensa nojenta a serviço de poderosos, muito lodo estará sendo culpado até por algum cocô de passarinho que passe pelos ares e o solte na peruca de alguma senhora da daslu ou na careca de algum executivo de transnacional.

Nas seqüências “brilhante artigo, escrito sem a paixão odiosa da grande mídia elitista” e “imprensa nojenta a serviço de poderosos”, podemos ver que o sujeito atualiza os sentidos de mídia como a voz produtora de estabilização dos sentidos dominantes a serviço de alguns, “os poderosos”. Isso nos mostra que esse leitor tem acesso aos sentidos do que é um órgão de imprensa no país, qual é a função social dele, que relações de poder estão implicadas no ato de narrar, relatar e dar informações para além da evidência de verdade que a mídia atribui a sua voz. O sujeito, então, duvidando da transparência da linguagem e da verdade dos relatos mi-diáticos, inscreve-se, não como um mero “olhador” dos textos da mídia, ou seja, aquele que só dá uma olhadinha e corre para a próxima notícia, mas como crítico desejoso de artigos inteligentes, tecer co-mentários, enfim, dialogar com ela.

A seguir o sujeito passa a enunciar sobre o governo do país: “Os governos passados podiam tudo, até mesmo assistirem passiva-mente ao assassinato covarde de 111 presos no massacre (que escandalizou o mundo) do Carandiru”. Nesses trechos, ao falar do governo, o sujeito ancora-se na posição discordante do uso oficial da violência, da forma como ao Estado sobrou apenas o papel de coibir, patrulhar, conter e, no limite, matar. Marcando discursivamente os desmandos políticos, o sujeito retoma os fios dialógicos do que foi Carandiru, não como acontecimento isolado, mas como ícone do “assassinato covarde de presos”, memória que se desdobra aqui guardando vestígios de indignação e desacordo.

Seu texto é oportuno e esclarecedor. Certamente, não és uma voz solitária, muitos têm essa percepção e assim como você, combatemos diariamente em nossas trincheiras, a vergonhosa manipulação da mídia golpista sobre as forças progressis-tas do Brasil e da américa latina. É um trabalho desigual, afinal eles têm todo o arsenal para nos destruir (forças arma-das, parte da OAB, parte da igreja, parte dos políticos, empresários, enfim toda a sócia), mas somos fortes, acreditamos no futuro porque o sonho de igualdade está em nossas mentes. O sofrimento do nosso povo é o farol de nossa marcha. Não nos conhecemos, não nos vemos, mas nossos corações batem no ritmo das canções revolucionárias, pois lutamos por uma causa perene na humanidade.

Tal qual no fragmento anterior, aqui também podemos anotar que o sujeito navega por águas alheias, mobilizando palavras que não são suas e retomando o dizer já naturalizado sobre a mídia para, assim, tecer deslocamentos. Ao fazer re-ferência aos sentidos postos em discurso pelo texto de Scalzilli, o sujeito enuncia que “certamente, não és uma voz solitária, muitos têm essa percepção e assim como você, combatemos diariamente em nossas trincheiras, a vergonhosa manipulação da mídia golpista”. podemos ver também um discurso influenciado pelo já-dito sobre mídia, um discurso naturalizado pelo senso comum de que os órgãos de imprensa manipulam. Vemos que a voz desse sujeito dita o que muitos falariam, “não és uma voz solitária”, diz ele, para isso, é necessária a relação desse discurso com discursos outros sobre essa imagem da mídia, o que põe em jogo os conceitos de memória discursiva e de interdiscurso, mais uma vez. Ao dizer, “não és uma voz solitária”, o sujeito marca que há outras vozes afinadas com a do autor, e continua “não nos conhecemos, não nos vemos, mas nossos corações batem no ritmo das canções revolucionárias, pois lutamos por uma causa perene na humanidade”. Consideramos que o uso dos verbos na

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e outros não. Agora, que o governo lula sucateou todo o sistema de controle e segurança do tráfego aéreo isso é indis-cutível [...] Quanto aos acidentes de carro e congestionamentos na capital paulista, não cabe comparação, pois é outra coisa completamente diferente do caos aéreo. Aceito que o governo estadual e/ou muni-cipal tenham parcela de culpa. Mas querer inocentar o governo lula pelo caos aéreo só porque existem problemas de con-gestionamentos ou acidentes fatais com carros nas capitais... ah! Isso é idiotice, ou melhor militância de petista lulista que mora no ‘brasil das maravilhas do pt’.

O sujeito assume um dizer de ironia, não apenas em relação ao texto de Scalzilli, mas também em relação às mensagens e aos e-mails postados na página da revista. Besteira não é algo que se parabenize, no entanto é que este sujeito faz: “parabéns pela maravilha de besteira de escreveu”; e besteira também não é nenhuma maravi-lha, se é besteira, não é maravilha. Inferi-mos, então, que essa formulação significa o contrário do que está escrito, o que, para a Análise do Discurso, é importante, posto que as palavras não estão em estado de dicionário, não devem ser tomadas em sua literalidade,mas apresentam sentidos movediços que se deslocam de acordo com as condições de produção. Aqui essa ironia jocosa faz falar a crítica em relação aos sentidos discursivizados pelo autor já citado acima.

“Mas querer inocentar o governo lula pelo caos aéreo só porque existem proble-mas de congestionamentos ou acidentes fatais com carros nas capitais... ah! Isso é idiotice, ou melhor militância de petista lulista que mora no ‘brasil das maravilhas do pt’.”, essa formulação afirma, novamen-te, o tom irônico em que o sujeito assume uma posição de crítica, não só ao autor do artigo, mas também deslocando-a ao governo “lula”, aqui marcado com letra minúscula. Se antes os dizeres vinham tecendo um debate sobre o papel da mí-dia, aqui há uma ruptura em que o sujeito

primeira pessoa do plural é indiciário de que esse sujeito faz falar a voz imaginária de muitos outros, que tece, no fio de seu discurso, a virtualidade de muitos outros sentidos e sujeitos indignados com a mí-dia dominantes, muitos que talvez nem tenham acesso ao canal da Caros Amigos e que nem estejam on-line.

Muito bom e esclarecedor o artigo de Guilherme Scalzilli. O problema é sempre o mesmo: a grande mídia não vê esses elementos e poucos têm acesso à mídia alternativa e mais sincera e verdadeira. Caros Amigos não deveria faltar em nenhuma família brasileira, aí as coisas mudariam e muito. Abraços.

Neste recorte, temos retomados sen-tidos já falados sobre a designação “mí-

dia alternativa”; por meio do interdiscurso, há uma atualização do efeito de re-sistência que nos remete ao período áureo do movimen-to alternativo na imprensa, a época da impressa “nanica”. O sentido atualizado aqui é o de que, em “uma mídia al-ternativa mais sincera e ver-dadeira”, existiria chance de inscrição de algo “muito bom e esclarecedor”. In-terpelado pela ideologia

e afetado pela suposta verdade de que toda imprensa alternativa é boa, o sujeito formula que a revista seria capaz de ga-rantir a mudança nas casas, nas famílias e no país, o que confirma e naturaliza, no avesso do que está posto em relação aos cartéis midiáticos, os mesmos efeitos de manipulação da imprensa.

Inscrevendo-se em outra formação dis-cursiva e assumindo uma posição-sujeito diferente das anteriores, encontramos o comentário abaixo.

Parabéns pela maravilha de besteira que escreveu. Não existe uma fórmula padrão para todos os casos. É lógico que teremos casos em que os governos serão culpados

O uso dos verbos na primeira pessoa do plural é indiciário de que esse sujeito faz falar a voz ima-ginária de muitos outros

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culpabiliza o governo em relação ao caos aéreo e silencia sentidos sobre a mídia.

A maior parte dos artigos da “imprensa neo-liberal” é tão parcial e viciada quanto artigos como este que o Sr. acaba de postar na Caros Amigos. Vocês se queixam do modo como o Estadão se porta em rela-ção ao PSDB, mas agem da mesmíssima forma em relação ao PT. Estamos muito carentes de uma Imprensa minimamente independente neste país...

Nesse último recorte, o sujeito se coloca numa posição contrária à revista, colocan-do que os sentidos, provocados por seus di-zeres, significam a mídia dita “alternativa” da mesma forma que as outras. A formação discursiva na qual se insere este sujeito enuncia sobre a mídia em geral, fazendo a inscrição de que ela, de maneira homo-gênea, é “parcial e viciada”, sem exceção. Assim, o sujeito discursiviza sentidos de revolta, decepção e insatisfação diante do que lhe é disponível para ler.

As análises acima nos permitem inferir que os sentidos instituídos pelos sujeitos-leitores da revista Caros Amigos e sujeitos-navegadores do portal da ver-são eletrônica litigiam sentidos sobre a própria mídia. Criam, assim, uma arena discursiva em que há disputa e heteroge-neidade, ora marcando os efeitos de críti-ca e denúncia em relação própria revista, o que não acontece nos canais da “grande mídia”; ora materializando simpatia e

filiação às mesmas redes de memória que sustentam o dizer da revista.

Considerações finais: fechando a(s) rede(s) de nossa análise

A partir do exposto, podemos inferir que o caráter aparentemente “aberto” e “li-vre” da internet convida o sujeito a dizer de si e do outro, marcando resistências, simpa-tias ou críticas, por vezes ferrenha, desaba-fos, elogios, reclamações, enfim, podemos dizer que a suposta falta de um editor possibilita a inscrição fecunda de sentidos e sujeitos. Ao abordarmos a sessão correio da página eletrônica da revista Caros Ami-gos, observamos ser este um espaço próprio para manifestações dos mais diversos sujei-tos, instituindo, por isso, os mais diversos sentidos, convergentes ou dissonantes. É nesse espaço que procuramos caracterizar a voz do sujeito-navegador, por meio do estofo conceitual da Análise do Discurso, teoria esta tão pertinente para olhar o estar-na-rede e o estar-na-linguagem. Levando em conta a materialidade discursiva da inscrição histórica dos sentidos na rede eletrônica, não tivemos a ilusão de dar cabo a todas as inquietações que ela promove, tampouco de fechar a navegação em uma única direção; ante disso, pretendemos, sim, lançar idéias e reflexões acerca de tão provocante questão.

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Comunicação: Tecnologia e Política

Igor FuserDoutorando no Departamento de Ciência Política da USP

Docente da Faculdade Cásper Lí[email protected]

Resumo

O artigo analisa os editoriais do jornal O Estado de S. Paulo sobre a política externa do governo Geisel (1974-1979), período em que a diplomacia do país adotou o chamado “pragmatismo responsável e ecumênico”. Essa orientação diplomática visava reafirmar a autonomia do Brasil no cenário mundial, rompendo com o “alinhamento automático” às posições dos Estados Unidos e ao maniqueísmo da Guerra Fria. O Estadão se colocou, com uma postura de crítica sistemática e agressiva, à frente dos que criticavam essa postura, por considerá-la uma traição aos “valores ocidentais”.

Palavras-chave: O Estado De S. Paulo, Jornalismo Opinativo, Política Externa Brasileira.

Abstract

The following article analyses the editorials from the “O Estado de S. Paulo” newspaper on the foreign policies of the Geisel government (1974-1979), a moment when the country’s diplomacy adopted a so-called “responsible and ecumenical pragma-tist”. This diplomatic orientation wished to reaffirm Brazil’s autonomy in the world scenario, breaking with the “automatic alignment” with the positions from the United States and the Manichaeism of the Cold War. The “Estadão” placed itself with a posture of systematic and aggressive critic, ahead of those that criticized this posture, considered a betrayal of the “Occidental values”.

Key words: O Estado de S. Paulo, opinion journalism, Brazilian foreign politics.

Resumen

El artículo analiza los editoriales del periódico O Estado de S. Paulo sobre la política externa del gobierno Geisel (1974-1979), período en que la diplomacia del país adoptó el llamado “pragmatismo responsable y ecuménico”. Esa orientación diplomática tenía como objeto reafirmar la autonomía de Brasil en el escenario mundial, rompiendo con el “alinea-miento automático” a las posiciones de los Estados Unidos y al maniqueísmo de la Guerra Fría. El periódico O Estado de S. Paulo se puso, con una postura de crítica sistemática y agresiva, al frente de los que criticaban esa postura, por considerarla una traición a los “valores occidentales”.

Palabras clave: O Estado de S. Paulo, periodismo de opinión, política externa brasileña.

O Estadão e a diplomacia do “pragmatismo responsável” The “Estado de S. Paulo” newspaper and the diplomacy of the “responsible pragmatism”

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OEstadãoeadiplomaciado“pragmatismo...

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editorial, gênero jornalístico por meio do qual a empresa de comunicação expressa a sua

opinião sobre os temas mais candentes do momento, pode ser entendido como “um espaço de contradições” (Marques de Mello, 2003:104). Ao mesmo tempo em que expõe a opinião da empresa, bus-ca articular um consenso que abrange os diferentes interesses que se aliam para dar sustentação a um veículo de comunicação. “Além dos acionistas majoritários”, obser-va Marques de Mello, “há financiadores que subsidiam a operação das empresas, existem anunciantes que carreiam recur-sos regulares para os cofres da organização através da compra de espaço”.

No caso brasileiro, há ainda a presença avassala-dora do Estado, presente em todos os níveis da vida social. Daí decorre, segundo Marques de Melo, que os editoriais, embora se dirijam formalmente à coletivida-de ou à opinião pública, “na verdade encerram uma relação de diálogo com o Estado”. Essa suposição, formulada em plena vigên-cia do regime democrático instaurado em 1985, terá

sua validade dramaticamente ampliada no regime militar, quando o peso da opi-nião pública era muito menor do que na atualidade e a influência estatal, incom-paravelmente mais poderosa.

O jornal e os militares

Assim como a maioria das empresas de comunicação, o jornal O Estado de S.Paulo (OESP) aplaudiu o golpe de 1964, do qual foi um dos principais ar-ticuladores civis. A partir de 1966, no entanto, OESP começou a se distanciar do regime militar, adotando uma postura oposicionista que se intensificou a partir

O da decretação do AI-5, em 13 de dezembro de 1968. No dia seguinte, a publicação do editorial “Instituições em frangalhos”, com uma condenação frontal ao endu-recimento político, levou o jornal a ser apreendido. Entre 1972 e 1975, OESP e sua versão vespertina, Jornal da Tarde, foram submetidos à censura prévia.

Um breve retrospecto das posições do jornal sobre assuntos internacionais reve-la um aparente contraste com sua linha editorial para as questões domésticas. Em 1973, em plena vigência da censura prévia, OESP compartilhou, tanto nos editoriais quanto na cobertura noticiosa, o apoio do governo Médici ao golpe militar que depôs o presidente chileno Salvador Allende. Em compensação, o período decisivo da aber-tura política iniciada pelo presidente Geisel, que culminou com a redemocratização em 1985, foi marcado por uma postura alta-mente crítica de OESP em relação à política externa brasileira. O jornal atacou de forma veemente e sistemática, entre outras iniciati-vas de Brasília, a aproximação com os países árabes e o apoio brasileiro à independência das ex-colônias portuguesas na África.

Contra a “opção africana”

A política africana do Brasil passou por uma reviravolta no governo Geisel. Após a Revolução dos Cravos, em 25 de abril de 1974, Geisel pressionou o governo português para reconhecer a independência de Guiné-Bissau e favore-cer as de Angola e Moçambique. O Brasil reconheceu o governo independente de Guiné-Bissau antes mesmo que Portugal o fizesse. Na medida em que o processo de independência na África Portuguesa evoluiu, dentro de um contexto marcado pelas clivagens ideológicas da Guerra Fria, os editoriais do OESP assumiram um tom crescentemente combativo, denunciando a diplomacia brasileira por falhar em seu compromisso com o Ocidente.

O jornal OEstadodeS.Paulo (OESP) aplaudiu o golpe de 1964

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lismo português estava sendo substituído por uma suposta dominação da União Soviética. Afirma em seu parágrafo final o editorial, com data de 9/7/1975, intitulado “Pragma-tismo antinacional e antiportuguês”:

(...) “não podemos conformar-nos com o fato de ser um colonialismo substituído por outro, isto é, que em nome da desco-lonização se proceda a uma nova coloni-zação. Com efeito, este parece ser o caso das três colônias portuguesas que acabam de ser emancipadas (Guiné-Bissau, Mo-çambique e, agora, Cabo Verde) sob a égide de um partido único, totalitário, marxista-leninista, que se submete e submete o país que governa à proteção neo-colonialista da URSS. Eis a razão por que duvidamos da responsabilidade e do ecumenismo do pragmatismo do Itamaraty”.

O repúdio do Estadão à política africa-na de Geisel atingiu seu ápice a partir de 11 de novembro de 1975, quando o Brasil se tornou o primeiro país do mundo a reconhecer oficialmente a independência de Angola, sob o governo socialista do MPLA. Aí o processo político nas antigas colônias portuguesas da África deixou de ser encarado pelo jornal como um problema puramente diplomático para se inserir no terreno da segurança. As teses geopolíticas do início do século XX foram desarquivadas e a questão passou a ser discutida no contexto de um suposto projeto soviético de dominar o Atlântico Sul a partir da conquista de posições estratégicas em Angola. O editorial de 28/11/1975, “Angola e a diplomacia bra-sileira”, introduziu o assunto ao apontar, pela primeira vez, o reconhecimento do regime do MPLA em Angola como risco para a segurança do Brasil:

“Se conseguirem instalar-se em Angola, os russos poderão controlar as rotas petrolíferas que abastecem a Europa e o Brasil. Além disso, o Brasil ficará ao alcance dos aviões de longo raio de ação e de foguetes que os russos, sem dúvida alguma instalarão nas bases aéreas de An-gola, após a vitória do MPLA, reconhecida pelo Brasil”.

A instalação de um governo de tran-sição liderado pelo Movimento Popular para a Libertação de Angola (MPLA), de orientação marxista, colocou os diri-gentes brasileiros diante de uma opção delicada. Tratava-se de estabelecer desde logo um relacionamento político com o MPLA ou de aceitar a linha defendida por Washington que, juntamente com a África do Sul, apoiava o movimento rival, a Unita. Também em Moçambique um grupo de orientação marxista, a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), preparava-se para assumir o poder. No intuito de assegurar uma presença política e econômica no novo país, o Brasil, ainda durante a transição, estabeleceu uma re-presentação política especial em Luanda, que se transformaria depois na nossa em-baixada. Nesse período, OESP começou a manifestar preocupação com os rumos da política externa brasileira na África. A preocupação se transformou em alarme a partir da intensificação dos conflitos na antiga África Portuguesa e da atitude da diplomacia brasileira, encarada pelo jornal como incompatível com a condição do Brasil de inimigo das forças comunistas no contexto polarizado da Guerra Fria. Afirma o editorial “Dignidade dos Estados e Pragmatismo”, de 26/6/1975:

Agora é tarde para condenar inequivo-camente o colonialismo que deixou de existir, mas seria hora de tomar posição diante das novas relações de poder que se estabelecem em Portugal e nos territórios já emancipados. (...) Se nossa diplomacia fosse realmente pragmática, chegaria à conclusão de que Moçambique, indepen-dente, não se orienta para o Brasil, mas para o bloco comunista e para o Portugal em vias de comunização. (...) O governo brasileiro deveria compreender que esta política de ‘pragmatismo responsável’ é bem mais perigosa para o país do que a infiltração comunista na imprensa”.

O tom alarmista se acentua em outro editorial, que reverte a discussão sobre a in-dependência ao afirmar que o antigo colonia-

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O fantasma de um Atlântico Sul domi-nado pela bandeira da foice-e-martelo é o tema de um novo e dramático editorial, de 21/12/1975, com o seguinte título: “In-sistimos: quem determina nossa política externa?”:

“Nesta área oceânica contígua ao nosso território, a poucas horas de avião de nos-sos centros vitais, um movimento – títere da Rússia Soviética, armado, municiado e subsidiado pela Rússia Soviética e contan-do com milhares de soldados regulares da Cuba de Castro, prepara-se para transformar Angola numa base logística de domínio do Atlântico Sul por essa superpotência tradicionalmente estranha – e hostil – ao cenário geopolítico do Brasil. E, no entanto, a nossa diplomacia correu pressurosamente a sancionar como seu reconhecimento o governo comunista de Luanda, apesar de as forças lideradas por Agostinho Neto acharem-o ainda em luta como dois movi-mentos rivais.”.

Guerra ao chanceler

Como passo seguinte, OESP começou a esboçar uma campanha pela destituição de Azevedo da Silveira, apontado como o principal culpado pela “irresponsabi-lidade” na política externa, que estaria levando o país a trair seus compromissos com o “campo democrático” no cenário internacional dominado pela Guerra Fria. Em editorial de 14/8/1976, o jornal lançou um ataque personalizado ao chanceler por ocasião de sua ida protocolar à Comissão de Relações Exteriores do Senado. Segun-do o editorial “Diplomacia sem ética e sem eficácia”, o diplomata, ao invés de “prestar contas” das iniciativas que tomou dentro do “pragmatismo ecumênico”, limitou-se a fazer alguns esclarecimentos superficiais e “pouco convincentes” sobre sua gestão. O que chama atenção nesse ataque é a afirmação de que, na sua fala, Azeredo da Silveira valeu-se de seu espírito “dialéti-co” – uma insinuação que, no contexto repressivo da época, praticamente equi-valia a chamá-lo de marxista.

O editorial de 28/8/1976 (“A ameaça que o Itamaraty não vê”) especulou so-bre supostas divergências entre a cúpula militar (formada por generais totalmente comprometidos com a ideologia da “se-gurança nacional”) e o Itamaraty, que, com sua orientação, levaria o Brasil a uma identidade de posições com os inimigos do “mundo livre”. Para OESP, o Itamaraty deveria “representar e defender os mesmos interesses nacionais definidos pelas altas patentes das Forças Armadas”, das quais faria parte o fortalecimento gradativo da área oceânica do território brasileiro, visto que “o expansionismo do mundo comunista” tinha “seu braço armado” já “debruçado sobre o Atlântico”, configurando uma ameaça con-creta que o Itamaraty não reconhecia.

OESP bateu novamente nessa tecla em editorial de 4/9/1976, cujo título é a pergun-ta “A qual destas vozes se deve dar ouvido?”. O jornal opinou sobre o que chamava de “crescentes divergências” entre os pontos de vista do poder militar sobre os interesses nacionais no âmbito internacional e a políti-ca do Itamaraty. Essa perigosa dicotomia na orientação de dois importantes setores do Poder Executivo, o militar e o diplomático, seria capaz, segundo o jornal, de afetar a imagem do Brasil no exterior. No editorial de 16/10/1976 (“A vulnerável defesa do Atlântico Sul”), o jornal afirmou que nada menos que “a existência nacional” estaria ameaçada pela presença de um país aliado à União Soviética no litoral atlântico da África. Em outro parágrafo, introduziu um novo tema, quando, ao criticar a rejeição pelo governo brasileiro da proposta estadu-nidense de um pacto militar no Atlântico Sul, lembrou em tom reprobatório que o Itamaraty invocara, entre os motivos para essa atitude, “nossa incombatibilidade com o apartheid na África do Sul”. Ou seja: entre se alinhar com o regime racista sul-africano ou se aproximar dos regimes esquerdistas nas ex-colônias portuguesas, a primeira era, de longe, a alternativa da preferência da família Mesquita.

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O “voto anti-sionista”

Até o início da década de 1970, o Brasil procurava se manter afastado do conflito árabe-israelense, pautando-se por uma atitude de cautela. Essa políti-ca, denominada de “eqüidistância”, era aceita na medida em que agradava as duas partes, sem constituir um obstáculo ao desenvolvimento das relações. A “crise do petróleo” levou o Brasil a mudar sig-nificativamente sua postura. A guinada ocorreu no final do governo Médici. Em 31 de janeiro de 1974, o chanceler Mario Gibson Barbosa afirmou pela primeira vez que a retirada de Israel de todos os terri-tórios ocupados era condições essencial para uma paz justa e duradoura no Oriente Médio. A guinada diplomática não passou despercebida nas páginas de editoriais de OESP, que via no apoio aos países árabes uma demonstração inequívoca de oportunismo e falta de princípios sob a camuflagem do pragmatismo.

Na 30ª sessão da assembléia-geral da ONU, em 1975, ocorreu o controvertido voto brasileiro a favor do projeto de re-solução que incluía uma condenação do sionismo como uma forma de racismo e discriminação racial. OESP, pró-isra-elense, reagiu com o furioso editorial, “Um voto difícil de se entender”, em que dizia: “O voto do Brasil não é apenas moralmente injustificável, mas é também incompreensível politicamente”.

A partir daí, o jornal passou a acusar a diplomacia brasileira de submissão aos interesses árabes, em prejuízo da inde-pendência política do país. Ao comentar determinadas posições do Brasil na ONU, o jornal afirmou, em 22/10/1975, que a crise do petróleo não justificava o alinhamento da diplomacia brasileira aos países árabes. O editorial situou a guinada brasileira em relação ao Oriente Médio num quadro mais geral de revisão diplomática que era encarado pelo OESP com grande preocupação:

“Basta ler com atenção seus últimos dis-cursos, proferidos nos mais diversos foros, para verificar que dia a dia o Itamaraty procura afastar-se de um alinhamento automático com o Ocidente para afirmar a adesão do Brasil ao Terceiro Mundo”.

Novo editorial, em 12/11/1975, sob o sugestivo título “Mexicanização da diplomacia”, afirma mais uma vez que Azeredo da Silveira confunde o pragma-tismo ecumênico com a Política Externa Independente anterior a 1964. O chanceler brasileiro seguiria, com seu “progressismo diplomático”, o presidente mexicano Luis Echeverría -- daí a “mexicanização da diplomacia brasileira”. Em tom de acu-sação, os editorialistas relembraram que o chanceler confirmou o voto brasileiro sobre o reconhecimento do sionismo como discriminação racial. O Brasil estaria “ali-nhando-se automaticamente” com o bloco socialista, disse o editorial. Mais tarde, em 4/12/1975, OESP apresentou novo argumento contra a aproximação com os árabes: os magros frutos econômicos obtidos com essa guinada política. Amar-gamente, o editorial incluiu, de passagem, a seguinte constatação: “E a colaboração nem por isso nos trouxe os pretendidos petrodólares nem qualquer desconto no preço do petróleo”...

A questão chinesa

Quando o Brasil resolveu, no início do governo Geisel, ampliar seu leque de vínculos internacionais e passar a se re-lacionar com todos os países do mundo (salvo exceções, como Cuba), essa opção diplomática enfrentava uma limitação evidente: a inexistência de laços com a Re-pública Popular da China, a “China comu-nista”, assim chamada em contraposição à República da China, ou seja, Taiwan. Mas o pragmatismo acabou impondo, também nessa região, um ajuste à política externa

brasileira e, em 15 de agosto de 1974, o Brasil restabeleceu relações diplomáticas

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a uma a legitimidade da representação do povo chinês, por imposição da outra. A China comunista impôs unilateralmente ao Brasil o rompimento com Taipé, como condição para o estabelecimento de rela-ções, como se estivesse fazendo um gran-de favor ao aceitar tal estabelecimento. E o Itamaraty cedeu sem nada objetar.”

O tema do reatamento das relações foi retomado no ano seguinte, num editorial mais abrangente sobre a política externa brasileira, de 24/5/1975, intitulado “As Omissões do Itamaraty”. OESP acusou a diplomacia brasileira de renunciar às suas convicções, valores e princípios, deixando-se conduzir pelas correntes mais poderosas em cada momento, de um modo submisso e oportunista. Em última ins-tância, o que estaria em jogo era a própria condução soberana da política externa.

Brasil-EUA em fase espinhosa

O período foi o mais difícil nas relações do Brasil com os EUA em toda a história do contato entre os dois países. Geisel rompeu a colaboração nuclear com os EUA e firmou com a Alemanha o Acordo Nuclear, em 27 de junho de 1975. O governo estadunidense procurou inviabilizá-lo exercendo fortes pressões sobre o Brasil e a Alemanha. O contencioso colocou em tensão os dois alicerces da linha editorial do jornal em política externa: a defesa dos interesses brasileiros, de um lado, e o alinhamento com os Estados Unidos, do outro. Em 26/7/1975, um mês depois da assinatura do acordo, OESP, apesar do seu notório pró-americanismo, avaliou a medida como positiva, em editorial intitulado “O acordo nuclear com a Alemanha”:

A série de providências ostensivas, isto é, tornadas públicas, dos governos que se sucederam a partir de março de 1964 pa-rece-nos, hoje, coerente. Reafirmada nossa posição pelo direito do País à posse do armamento atômico, na selva das relações internacionais, quando e se o desejar....

com a China continental, acompanhando uma tendência mundial.

OESP se insurgiu contra o reconhe-cimento da República Popular da China pelo Brasil – uma posição difícil de sus-tentar, uma vez que a iniciativa ocorreu quando já estava em curso a reaproxima-ção entre a China e os Estados Unidos, na famosa “diplomacia do ping-pong”, e na própria ONU já se articulava a substi-tuição de Taiwan pela China continental. Ainda assim, passados apenas dois dias do histórico anúncio da decisão de reatar as relações Brasília-Pequim, OESP publi-cou, em 17/08/1974, editorial que, sob o sóbrio título “As relações entre Brasil e China”, afirmava:

“Não temos nenhum motivo para festejar o estabelecimento de relações diplomáticas entre o Brasil e a China Popular e nem para reconhecer nessa decisão, fazendo coro com os círculos oficiais, um importante passo da nova diplomacia, inspirada, como se diz, no princípio do ‘pragmatismo responsável’ e do ‘ecumenismo’”.

Esse editorial voltou a afirmar que a nova diploma-cia seguia os passos de uma orientação diplomática que

julgava superada (a Política Externa Inde-pendente, adotada nos governos de Jânio Quadros e João Goulart). De acordo com o jornal, o Itamaraty cometia um erro ao utili-zar o argumento do “consenso” para justifi-car sua posição em relação à China – àquela altura, os EUA e mais 106 países já tinham estabelecido alguma relação diplomática com Pequim. Mas o “consenso”, insistia o editorial, é a fórmula diplomática dos que temem o isolamento e tomam posições com base no que os outros países fazem:

“Para agir como país realmente inde-pendente, o Brasil deveria, enquanto dependesse de sua vontade, reconhecer a existência de duas Chinas e, não negar

OESP começou a manifestar preocupação com os rumos da política externa brasileira na África

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O jornal voltou ao assunto em 20/9/1975, ao comentar o pronuncia-mento do chanceler Azeredo da Silveira no Senado Federal. O editorial avaliou que as negociações com a Alemanha foram “consistentes com o objetivo de independência”. Nesse terreno, o jornal assumiu um viés que, de alguma maneira, matizava a sua entusiástica defesa do oci-dentalismo. No campo dos contenciosos comerciais com os EUA, por exemplo, a tônica era a defesa de uma posição altiva, sem submissão, de modo a fortalecer os negociadores brasileiros. Ainda assim, o jornal recomendou ao governo cautela para evitar os “excessos” retóricos que pudessem prejudicar uma aliança que, em suas linhas gerais, deve ser preservada.

Num período em que as relações entre os dois países se encontravam tensas, a postura do jornal passou a ser a de monitorar a con-dução da diplomacia brasileira, no sentido de mobilizar os atores políticos capazes de exercer pressão para evitar os excessos “ter-ceiro-mundistas” (no entender do Estadão, evidentemente), sem claudicar, ao mesmo tempo, na defesa dos interesses nacionais que o jornal considerava legítimos.

Conclusões

Encarando-se a questão sob a pers-pectiva do tempo, resulta impressionante verificar o contraste entre a avaliação que os historiadores e pesquisadores da política externa brasileira fazem hoje em dia do período do “pragmatismo respon-sável e ecumênico” e o julgamento que essa mesma política diplomática recebeu dos editorialistas de O Estado de S.Paulo durante o período da sua implementação. Na visão consensual dos analistas, a ges-tão de Azeredo da Silveira no Itamaraty é um marco de referência fundamental. Trata-se, nesse ponto de vista, de um divisor de águas entre um período de imaturidade em que o país oscilava entre o “alinhamento automático” com a po-

tência hemisférica (os Estados Unidos) e as buscas infrutíferas de uma autonomia que acabava se inviabilizando por falta de suporte político doméstico e de circuns-tâncias favoráveis no contexto do sistema internacional. Nesse período, conclui esse raciocínio, assentaram-se os alicerces de toda a diplomacia brasileira posterior, garantindo-se uma linha de coerência que atravessa os mais diversos governos, garantindo a vigência concreta do postu-lado definidor da diplomacia: o de que os interesses do Estado não se confundem com os interesses do governo.

Nas páginas editoriais de OESP, no entanto, a avaliação que transparece é diametralmente oposta. Naqueles quatro anos, a identidade política e os próprios valores da nação brasileira estiveram sob a ameaça de uma conduta irresponsável na representação externa do país. Os objetivos que levaram os militares – com apoio civil, inclusive do próprio jornal – a tomar o poder em 1964 estariam sendo contrariados na arena diplomática, siste-maticamente inclinada a posturas conci-liatórias em relação ao campo comunista e às iniciativas de viés terceiro-mundista, afastando-se do que o jornal entende como a vocação natural da inserção internacio-nal do Brasil.

Para o jornal, atitudes como o reconhe-cimento dos jovens países africanos ou o (relativo e limitado) alinhamento do Brasil com o lado árabe no Oriente Médio não seriam atitudes pontuais ou mesmo deci-sões movidas simplesmente por interesses pragmáticos, mas um sintoma de algo mais grave que ameaçaria a própria identidade ideológica do regime instaurado em 1964. Para o jornal, os votos da diplomacia brasileira na ONU e outros organismos internacionais apóiam o que eles chamam de “autêntica guerra contra a civilização ocidental”. O Itamaraty, portanto, teria culpa no cartório ao compartilhar de uma atitude generalizada de omissão perante o terrorismo internacional.

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Nem num tópico em que a posição brasileira acompanhou exatamente a pos-tura da diplomacia dos Estados Unidos – o reconhecimento diplomático da China continental, isto é, a “China comunista” – os editorialistas do Estadão pouparam o Itamaraty de acusações de “terceiro-mun-dismo” e de filo-comunismo. Diante da impossibilidade de argumentar em favor da manutenção das relações com Taiwan (na época, conhecida como Formosa) em detrimento da nação mais populosa do planeta, o jornal toma posição em outra trincheira: a do direito soberano do país de tomar suas decisões sem se submeter ao diktat de outros atores no sistema interna-cional. O ponto em que o jornal se apoiou ao condenar o reconhecimento do regime de Pequim foi o de que, ao fazê-lo, o Brasil aceitou a imposição dos dirigentes comu-nistas chineses no sentido do rompimento das relações com Taiwan – algo inadmissí-vel, na visão do OESP. Nesse ponto, o an-ticomunismo da publicação se apresentou como algo mais sólido e inflexível do que a própria posição da Casa Branca.

A postura fortemente ideologizada do OESP trouxe dificuldades quando o que estava em jogo eram impasses mais concre-tos do que o embate maniqueísta da Guerra

Fria. Já não se tratava de tomar posição sobre assuntos distantes, mas de algo com conseqüências efetivas e imediatas: a ma-triz energética brasileira. Diante da ruptura da cooperação do Brasil com os EUA no campo da energia atômica e a assinatura do Acordo Nuclear com a Alemanha, o Estadão assumiu um tom marcadamente diverso, no qual as preocupações ideológicas passaram momentaneamente a um segundo plano, para dar prioridade à defesa do interesse na-cional, ainda que em prejuízo das “relações especiais” com os EUA. Nesse ponto, o jor-nal, ainda que mantendo sua postura hostil à presença de Azeredo da Silveira à frente do Itamaraty, mostrou-se mais flexível.

As posições do jornal, formuladas com uma eloqüência e brilho estilístico que infelizmente pertencem ao passado da im-prensa brasileira, oferecem ao pesquisador uma oportunidade rara de verificar como o entranhado liberal-conservadorismo de uma parcela significativa de nossas elites se choca com as iniciativas mais criativas dos responsáveis pelo Estado (ainda que no contexto de um regime autoritário), provocando uma tensão que só encontra alívio quando as pressões inadiáveis da conjuntura conduzem à flexibilidade e ao senso comum.

Referências bibliográficas

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Comunicação: Tecnologia e Política

Roberto BazaniniDoutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP

Docente do mestrado da [email protected]

Resumo

Essa pesquisa caracteriza o posicionamento dos agentes fomentadores em relação ao padrão de TV digital a ser implantado com base na evolução da digitalização da TV; Decreto 5820/06, convergência das mídias e multi-programação. Por intermédio de pesquisa exploratória de natureza qualitativa, análise pós-factum, serão analisados os discursos propostos na perspectiva da metodologia da Análise Retórica. Em virtude do dinamismo dos debates, na defesa de seus respectivos interesses, os atores foram modificando suas posições iniciais em resposta a uma nova situação retórica que se apresentava como decorrente da correlação de forças presentes no ambiente.

Palavras-chave: Comunicação Digital, TV digital, TV brasileira, Análise Retórica.

Abstract

The research focus on the side taken by the “Responsible Actors” in relation to the Brazilian digital TV standard, based on the digital TV evolution, Decree 5820; media’s convergence; multiprogramming and consequently to characterize the positioning adopted for the agents in their relation to the new television standard. The research use qualitative methods, pós-factum analysis to analyze speeches inside the perspective of Rhetorical Analysis methodology. To defend their interests, the actors had their positions changed through time, as a response to new rhetorical situation related to the surrounding interests and forces.

Key words: Digital Communication, Digital TV, Brazilian TV, Rhetorical Criticism.

Resumen

Esta investigación caracteriza el posicionamiento de los agentes fomentadores en relación al patrón de TV digital con base en cuatro elementos: evolución de la digitalización de la TV; Decreto 5820/06/; convergencia de los medios; multiprogra-mación. Se pretende caracterizar el posicionamiento estratégico adoptado por los agentes en relación al nuevo patrón de televisión. Por intermedio de investigación exploratoria de naturaleza cualitativa, análisis pos factum, se analizarán los discursos propuestos en la perspectiva del análisis retórico. En virtud del dinamismo de los debates, en la defensa de sus respectivos intereses, los actores fueron modificando sus posiciones iniciales en respuesta a una situación retórica que a cada nueva fase presentaba decurrente de la correlación de fuerzas presentes en el ambiente.

Palabras clave: comunicación digital, TV digital, TV brasileña, Análisis Retórico.

Estratégias de posicionamento e disputas na implantação da

TV Digital no Brasil Strategies of thread and disputes in the implantation of the digital TV in Brazil

Mauricio DonatoMestre em Comunicação pela Faculdade Cásper Líbero

Docente da Faculdade Cásper [email protected]

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Estratégiasdeposicionamentoedisputas...

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Introdução

objetivo do trabalho está em investigar as estratégias de po-sicionamento empregadas pelos

principais agentes envolvidos no processo de implantação da TV digital no Brasil e, concomitantemente, analisar e discutir os interesses de cada um desses agentes fo-mentadores como participativos da decisão técnica/política da escolha do padrão de TV digital que passou a vigorar a partir de 02 de dezembro de 2007 na capital paulista e posteriormente terá inclusão em outras capitais fechando o ciclo de conclusão até 2009 (previsão ANATEL).

Em virtude do dinamismo dos debates, na defesa de seus respectivos interesses, os

atores foram modificando suas posições iniciais em resposta a uma nova situação retórica que a cada nova fase apresentava decorrente da correlação de forças presen-tes no ambiente. Foi adotado o padrão japonês, em perfeita consonância com os inte-resses dos Radiodifusores e do Governo Federal, em detrimento dos interesses da sociedade civil (bus-cavam a democratização)

e da Indústria de Telecom (favorável ao modelo europeu). As indústrias de Eletro-eletrônicos acentuaram a necessidade da interatividade, embora para esses, tanto a multi-programação, bem como a mono-pro-gramação, são aceitáveis uma vez que não provoca interferências no seu modelo de negócio. Por isso, o discurso dessa Indús-tria primou por um posicionamento efetivo em relação à adoção de uma tecnológica nativa que mesmo não sendo inteiramente viável fosse constituída com componentes nacionais. A academia, que defendia o pa-drão brasileiro, buscou identificar-se com a posição do Governo Federal, visto que são dependentes das verbas de pesquisa. Em

Osíntese, o interesse comercial prevaleceu em detrimento da diversidade cultural.

Revisão bibliográfica

Existem inúmeros trabalhos acadêmi-cos que discorrem sobre a relação entre es-tratégia, retórica e emissoras de televisão. Dentre essas pesquisas pode-se destacar duas vertente predominantes: 1. Posicionamento estratégico e análise do

discurso (Bazanini,1998): Globo e Uni-versal: Tudo a Ver. A Disputa Merca-dológica pelo Controle do Imaginário Popular. Ofensiva e Contra-Ofensiva Retórica analisa os componentes dos formatos organizacionais empregados pelos grupos de poder voltados para o mercado de bens simbólicos em duas emissoras televisivas brasileiras: Rede Globo e Rede Record.

2. Abordagens de caráter sociológico (Tor-res, 2005): O Mercado de TV por Assi-natura no Brasil: Crise e Reestruturação Diante da Convergência Tecnológica analisa as estratégias empregadas em decorrência das alterações no mercado de TV por assinatura no Brasil em um momento, identificado pelo autor, como “de reestruturação e reposicionamento das empresas diante da crise financeira e da convergência tecnológica”.Especificamente em relação ao tema

implantação digital, na perspectiva, também, da análise sociológica, alguns trabalhos merecem destaque. A tese de Fernando Cronomo (2004): TV Digital e Produção Interativa: A Comunidade Recebe e Manda Notícias. Nela o autor propõe um processo para que seja possível o exercício pleno da interatividade, uma das principais qualidades da prometi-da TV digital brasileira. Outra tese, do pesquisador Renato Cruz (2006): Fora da Caixa: O processo de decisão sobre o sistema de TV digital no Brasil, leva em conta as questões políticas, tecnológicas

e econômicas da escolha do padrão digital

A estratégia pode ser concebida como um conjunto coerente de decisões e responsabilidades

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RobertoBazaninieMauricioDonato

Bardin (1997), a técnica da entrevista em profundidade junto aos principais agentes fomentadores buscou confirmar a atuação dos diferentes agentes atuando como retores na defesa dos interesses de seus respectivos grupos.

A entrevista em profundidade foi realizada entre fevereiro e outubro de 2007, com os seguintes atores: Governo Federal, Ara Minassian (Superintendente da ANATEL); Radiodifusores, Roberto Franco (Diretor de Tecnologia do SBT e presidente da SET) Indústria de Eletro-Eletrônicos, Morris Ardid, Vice-presiden-te da Gradiente; Sociedade Civil, Diogo Moisés (Diretor do Coletivo Intervozes); Academia – Marcelo Zuffo ( Universidade São Paulo – USP).

FasesdaPesquisa

Com o intuito de detectar o posicio-namento de cada agente envolvido a pesquisa foi dividida em três fases dis-tintas: primeira fase (1994-2003); segunda fase (2003-2006) e por fim à terceira fase (2006-2007).

A primeira fase corresponde ao pe-ríodo de 1994 a 2003, no qual foram realizados os primeiros testes relativos aos padrões de modulação dos sistemas: Europeu (DVB), Norte-Americano (ATSC) e Japonês (ISDB).

A segunda fase compreende o período de 2003 a 2006, com ênfase no Decreto 4901/03 que define 11 (onze) objetivos para o Sistema Brasileiro de TV Digital (SBTVD), quase todos de natureza social ou cultural: inclusão digital, promoção da cultura brasileira, expansão da educação à distância, fomento ao desenvolvimento industrial e tecnológico nacional, fortaleci-mento das emissoras atuais e o estímulo à entrada de novos produtores e difusores. O decreto determinou ainda que recursos do Fundo Nacional para o Desenvolvimento das Telecomunicações (Funtel) fossem aplicados em pesquisas para o desenvol-

vimento de um sistema brasileiro de TV

da TV brasileira. O livro TV Digital Inte-rativa: Conceitos, Desafios e Perspectivas para o Brasil, de Carlos Montez & Valdecir Becker (2005), aborda, basicamente, as diferenças entre a TV analógica e a TV digital; Godoy Piccolo (2008) Interação na TV Digital: Estudo e Proposta de Apli-cação em Governo Eletrônico.

Entretanto, se existem várias pesquisas relacionadas aos aspectos sociológicos resultantes da implantação da TV digi-tal, o mesmo não ocorre em relação às abordagens voltadas para a análise do discurso e estratégias de posicionamento empregadas pelos principais atores que estiveram diretamente envolvidos na decisão da escolha do novo padrão da televisão para o Brasil.

Assim, o presente trabalho pretende preencher essa lacuna ao apresentar e analisar as características das estratégias de posicionamento empregadas na im-plantação da TV digital no Brasil, con-tribuindo, desse modo, para um melhor entendimento sobre o tema.

Metodologia

Na elaboração desse trabalho, ini-cialmente, procedeu-se uma revisão da bibliografia sobre o tema com base em três referenciais teóricos: Estratégias De-cididas Continuamente, a Nova retórica com ênfase no estudo do emprego das estratégias retóricas na perspectiva da metodologia da Análise Retórica, mais especificamente no modelo dos seis pas-sos propostos pela pesquisadora Tereza Lúcia Halliday (1987), para análise das estratégias empregadas pelos retores das organizações na defesa de seus interesses e, consequentemente, na consecução de seus objetivos.

Posteriormente, por intermédio de pesquisa exploratória de natureza qualita-tiva, análise pós-factum, com emprego de instrumento de coleta de dados voltados para análise de conteúdo, como propõe

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digital. Durante dois anos, 20 consórcios universitários, com recursos de aproxima-damente R$ 60 milhões, desenvolveram quase todos os módulos necessários à montagem de um sistema, inclusive as camadas de modulação, compressão de sinal e middleware.

A terceira fase, de 2006 a 2007, abordou com especial relevância as discussões que culminaram na outorga do Decreto 5820/06, definindo algumas regras, tais como: o governo pretende conceder um canal adicional, em UHF, a cada atual emis-sora de TV, sendo que ao final de dez anos a emissora devolverá ao Estado o seu atual canal VHF analógico, retendo o digital. Assim, o decreto indica que essa concessão provisória será em “consignação”.

Referencial teórico

PosicionamentoEstratégicoeRetórica

Como atributo caracteristicamente humano, a estratégia pode ser concebida como um conjunto coerente de decisões e responsabilidades que um determina-do agente assume, em face das diversas eventualidades que será levado a enca-rar, em virtude tanto das circunstâncias exteriores quanto interiores, como em virtudes de hipóteses que incidem sobre o comportamento dos outros agentes interessados em tais decisões. Bazanini (2007:262) esclarece:

“Todas as definições de estratégia se assentam na inseparabilidade entre a or-ganização e o meio ambiente que, se por um lado representa uma condicionante à sua atividade, por outro lhe oferece oportunidades que importa aproveitar. É esta relação entre organização e o meio ambiente envolvente que dá sentido ao conceito de estratégia.”

Nessa mesma perspectiva proposta no texto acima, Baltazar Gracian (1987:12) escreveu:

“A vida humana é um combate contra a malícia do próprio homem. O homem hábil nela emprega como armas os estra-tagemas da intenção... E depois, quando, seu artifício fica conhecido, aprimora a dissimulação, servindo-se da própria verdade para enganar. Ele muda de jogo e de bateria, para mudar seu ardil. Seu artifício é os não ter mais, e toda a sua sagacidade está em passar da dissimu-lação precedente à candura. Aquele que o observa e tem penetração conhecendo a habilidade de seu rival, acautela-se e descobre as trevas revestidas de luz. De-cifra um procedimento tanto mais oculto quanto tudo nele é sincero.”

Os referenciais teóricos das estratégias empresariais estão fortemente relaciona-dos aos pensadores que discorrem sobre política e arte militar, daí a pertinência da integração estratégia, retórica e posiciona-mento. Nessa perspectiva, ao conceber que se determinado argumento é verdadeiro, falso ou mesmo semi-verdadeiro isso se torna irrelevante para o estrategista que busca acima de tudo posicionamento favo-rável, como bem adverte Ries (1994:4):

O posicionamento trata de reestruturar percepções. Assim a verdade é irrelevan-te. O que importa são as percepções que existem na mente. A essência da idéia de posicionamento consiste em aceitar as percepções como realidade e então rees-truturar essas percepções a fim de criar a posição que você deseja

Desse modo, o posicionamento da organização em relação ao contexto em que a empresa está inserida pode ser considerado um dos elementos indispen-sáveis para se alcançar vantagem com-petitiva no mercado de bens simbólicos, cujo substrato condicionante propõe a inseparabilidade entre a organização e meio ambiente. Nessa perspectiva, Za-carelli (2000) elabora instrutivo quadro sobre as origens da estratégia: estratégia emergente, estratégia aprendida, estraté-gia aprendida e formalizada, estratégia decidida continuamente.

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ANovaRetóricaeaAnáliseRetórica

Empregadas como instrumento de análise no competitivo mercado de bens simbólicos pela sua flexibilidade e ime-diatismo, tendo como premissa básica o estudo e monitoramento permanente das ações concorrenciais, a Nova Retórica é um sistema teórico e metodológico inovador que rejeita todo e qualquer tipo de idéias dogmáticas e absolutistas, seja a verdade absoluta ou o relativismo absoluto. Por sua vez, a Análise Retórica (incorporado pela Nova Retórica) é um antigo método de análise do discurso, acentuadamente prag-mático, cujas ações podem ser alteradas a qualquer momento pelos enunciadores do discurso e detectadas, prontamente, pelos críticos visto que, permite avaliar a situação retórica em sua totalidade (con-texto, intenções do emissor, limitações da audiência). Para se ter uma idéia da aplicabilidade desse instrumento, nos Estados Unidos da América, o Quaterly Journal publica análises completas dos mais diferentes discursos, tendo como su-porte um determinado referencial teórico,

decorridos somente alguns momentos de seu pronunciamento.

Em termos estratégicos, a Nova Retó-rica acompanhada da Análise Retórica possuem três características básicas:1. Expressão da subjetividade — A arte de

bem falar para conquistar um determi-nado público através da persuasão. O caráter argumentativo da retórica sempre esteve presente: persuadimos através de argumentos, porém, o nosso adversário também faz o mesmo, daí sua relação com a estratégia de sinalização, que pode ser entendida como uma estratégia com-plementar. Zacarelli (2000:186) define a estratégia da sinalização como: “aquela que visa a divulgação, seja ela verdadeira ou não, do que convém que os outros acreditem sobre a empresa...” Nessa perspectiva, retórica e argu-mentação são sinônimos. Ambos são processos racionais de tomada de decisões através do uso da linguagem em situações de incerteza, verossimi-lhança e probabilidade.

2. Conceito de razoável e lógica do bom senso – Adesão e negociação são com-

Origem da Estratégia

Fonte da EstratégiaCaracterísticasFrase-chave

Perigo

1 Emergente ExperiênciaSe deu certo no passado, de-verá continuar no futuro.

Perda de relevância com o passar do tempo

2 Aprendida Livros

Se a liderança é altamente recompensadora, o lider deve copiar a estratégia do oponente

Aprendizado incom-pleto

3ªDecidida e formalizada

EstudoFormalmente organizada e aprovada na empresa. Escri-ta. Nunca é completa

Tornar-se inflexível, ficar conhecida pe-los concorrentes

3bDecidida con-tinuamente

Estudo e monitora-mento permanente das ações dos concorrentes

Pode ser alterada a qualquer momento

Fonte: Zacarelli 2000:54.

Quadro 1. Origens da Estratégia

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uma vez que estamos diante de uma situação retórica universal que pode ser resolvida por meio do discurso.

OsseispassosdaAnáliseRetórica

Os seis passos do método enunciados por Halliday (1986:126-131) permitem compreender as motivações implícitas e explícitas do emissor, as expectativas dos receptores e as contingências do contexto:1) Os Antecedentes da Situação. Reconsti-

tuem-se os elementos históricos, políti-cos e culturais que pré-condicionaram a instância como uma situação problemá-tica. Segundo Campbell (1982:37):

“nos antecedentes da situação busca-se identificar a situação de momento com as variáveis de ameaças e oportunidades presentes num determinado contexto.”

2) O Problema Retórico. Um conflito ou desequilíbrio entre a perspectiva ou posicionamento de um público face ao tema, questão ou situação e a pers-pectiva ou posicionamento que o retor gostaria que esse mesmo público tives-se. Segundo Campbell (1982:69):

“Um problema é um hiato entre o que te-mos e o que queremos ter. Na ação retórica, um retor (o comunicador) confronta um público que percebe, entende, ou acredita de um jeito e (esse mesmo comunicador) quer que esse público perceba, compreen-da ou acredite de outro jeito. O problema retórico é um conceito abrangente que inclui todos os obstáculos enfrentados por comunicadores.”

3) Anatomia do ato retórico. Identificação dos arqui-argumentos e seus suportes: vocabulários, figuras de linguagem, especialmente as metáforas e slogans que constituem a própria estrutura do discurso. Segundo Tereza Lúcia Halliday (1986:127):

“Faz-se necessário identificar cada parte do ato retórico, fazendo um levantamento de seu vocabulário, argumentos e figuras de linguagem, que constituem a anatomia do discurso.”

plementares. A Nova Retórica propõe que a finalidade da retórica é a adesão: O objeto desta teoria é o estudo das técnicas discursivas que permitem provocar ou aumentar a adesão dos espíritos às teses apresentadas ao seu assentimento (Perelman, 1996:5). Por sua vez, a Análise Retórica concebe a re-tórica basicamente como negociação: A retórica possui função reparadora num mundo repleto de facções e interesses conflitantes, no qual o dilema da convi-vência humana faz surgir uma situação retórica universal Burke (1966:34).A adesão de Perelman e a negociação de Burke convergem para um mesmo ponto: a atividade retórica é o encurtamento (ou

o alargamento) da distância entre os sujeitos referente a um determinado problema, daí sua relação com outras estratégias complementares, como as alianças estratégicas. Zacarelli (2000) afirma que as alianças estratégicas, ou es-tratégicas coletivas, são muito importantes para incrementar as vantagens competitivas das organizações que se aliam na consecução de seu objetivos.3. Crítica e questionamento – É possível para qualquer

cidadão ser um analista do discurso, seja de forma crítica, por vezes de for-ma ingênua, por vezes de modo coeren-te, através de questionamentos sobre as situações, fatos e acontecimentos à nossa volta, conforme propõe as premissas da abordagem da Nova Re-tórica e da Análise Retórica. Perelman (1996:4) ao concebe a retórica como comunicação persuasiva que busca o assentimento daqueles a quem o dis-curso se dirige, inspirado no modelo de Burke (1966:22) segundo o qual nas sociedades democráticas a defesa dos interesses das organizações pela pala-vra se faz cada vez mais habilmente,

A Nova Retórica é um sistema teórico e meto-dológico inovador que rejeita todo e qualquer tipo de idéias dogmáticas

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4) As Contingências do Discurso. As li-mitações encontradas pelo retor para realizar seu discurso. Segundo Tereza Lúcia Halliday (l986:128):

“Todo ato retórico sofre limitações e restrições que contribuem para limitar o conteúdo e a forma.”

5) Interpretação. A interpretação do ato retórico segundo determinado arca-bouço filosófico.

6) Julgamento. Analisa-se a validade do ato retórico sob a ótica da eficiência, qualidade e ética.Esses seis passos enunciam as carac-

terísticas básicas da Análise Retórica que ressaltam a expressão da subjetividade, as diversas definições de retórica, a crítica e o questionamento que constituem o cerne da utilização do discurso para a resolução de problemas.

Resultados da Pesquisa

O comunicador empresarial é um retor e um negociador de significados ao definir a realidade de certo ponto de vista para exercer influência sobre situações.

Genericamente, pode-se afirmar que, por ocasião dos treze anos de discussão sobre a implantação da tv digital no Brasil, em decorrência do monitoramento perma-nente das ações dos agentes fomentadores envolvidos e as inúmeras mudanças de posicionamento realizadas, prevaleceram em relação aos discursos dos agentes, ações relacionadas à estratégia decidida continu-amente nas diferentes fases dos debates.

Particularmente, é possível identificar e classificar o posicionamento e discurso dos agentes fomentadores em consonância com seus respectivos interesses: 1) Governo Federal, com maior foco sob o mandato do Presidente Luis Inácio Lula da Silva e repre-sentado pelo Ministério das Comunicações, o CPqD e a ANATEL; 2) Radiodifusores; 3) Sociedade Civil, representada pelo Coletivo Intervozes; 4) Indústria Eletro-eletrônica: 5) Indústria de Telecomunicações; 6) Consór-cio das Academias.

Esses agentes fomentadores estiveram envolvidos diretamente nas discussões iniciadas em março de 1994 para escolha do padrão da TV digital brasileira, com base em três sistemas.

Governo Federal • Integração e desenvolvimento: Propiciar educação à distância, tele-me-dicina, disseminação cultural, comércio eletrônico, serviços bancários, informações sob demanda, bate-papo e correio eletrônico.

Radiodifusores • Interesses predominantemente comerciais: Levar conteúdo em alta definição de som e imagens e manter o modelo de negócio atual, baseado na venda de audiência para os anunciantes.

Sociedade Civil • Democratização da informação: A importância do acesso à informação, entretenimento e interatividade a todos os segmentos da sociedade.

Indústria Eletro-eletrônica

• Interesses predominantemente comerciais: Impulsionar as vendas de televisores e celulares no país.

Indústria de Telecomunicações

• Interesses predominantemente comerciais: Implantar o padrão Europeu de TV digital (DVB), uma vez que esse padrão representa seus interesses comerciais e já está estabelecido em mais de cinqüenta países disseminado entre Europa, Ásia, África, Oceania e Oriente Médio.

Consórcio das Academias • Interesse pela pesquisa: Desenvolver um padrão com tecnologia nacional.Quadro elaborado pelo autor.

Quadro 2. Discursos dos Atores da TV Digital no Brasil

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As estratégias e posicionamento e as disputas na implantação da TV digital no Brasil tiveram como aspectos predomi-nantes na perspectiva da Análise Retórica três fases distintas:

PrimeiraFase:“1994A2003”

1º.passo–AntecedentesdaSituação.

Nesse período iniciaram-se os pri-meiros debates sobre a possibilidade de implantação da TV digital no Brasil. A situação era incerta quanto aos rumos que os debates tomariam. Os defensores da necessidade da imediata implantação de um padrão digital eram os radiodifusores. O Governo federal acenava, timidamente, com essa possibilidade e os demais agen-tes ainda não tinham se envolvido efeti-vamente nos debates. Segundo relato de seu representante, Roberto Franco, nesse período, a posição assumida pelos radio-difusores apontava para o Brasil entrando, o mais rapidamente possível, na era digi-tal, visto que o mundo caminhava nessa direção. O atraso no desenvolvimento desse projeto poderia acarretar sérias con-seqüências, tanto no campo tecnológico quanto no campo social. Afirma Roberto Franco – Presidente da SET / Diretor de Tecnologia do SBT:

““Havia uma preocupação já que o Japão tinha implantado o MUCE num sistema de alta-definição e a Europa falava em adotar um sistema de alta-de-finição, o Eureka e outros formatos que eles imaginavam, e os Estados Unidos

se via pressionado por demanda do telespectador que queriam um sinal de maior resolução, de maior qualidade, o produtor de conteúdo queria poder en-tregar conteúdos mais ricos, a caminhar por um sistema de alta-definição e havia uma dificuldade muito grande no mundo analógico para se fazer isso...Em 1994, quando o assunto já vinha sendo discuti-do, quando já existia o padrão americano sendo proposto até surgir o padrão DVB e o padrão japonês ainda não estava pron-to, não estava formalizado. Nós formamos um primeiro grupo de trabalho conjunto de emissoras com coordenação da SET, parceria com a ABERT e o envolvimento posterior da ANATEL, promovido aí na época do ComTV, em que se criou um primeiro grupo de trabalho formal sobre o assunto TV Digital.

2º.passo-OproblemaRetórico.

Os interesses do grupo de radiodifu-sores, predominantemente comerciais, objetivavam fazer a transição do modelo analógico para o modelo digital. Para isso era necessário convencer os órgãos com-petentes da pertinência desse empreendi-mento. Esse período ficou marcado pelos testes desenvolvidos pelos engenheiros brasileiros, em conjunto com a acade-mia, que avaliaram os três sistemas que estavam em debate no mundo: O Norte Americano (ATSC), o Europeu (DVB) e o Japonês (ISDB).

“Fizemos os testes, que até hoje são considerados como os mais profundos, e foram base para as propostas que nós fizemos ao ITU sobre metodologia de teste comparativos de sistemas internacionais, que hoje é a recomendação ao ITU sobre

Quadro elaborado pelo autor

Quadro 3. Sistemas de modulação da TV Digital

1) O Norte Americano – Advanced Television Systems Committee (ATSC), adotado pelos Estados Unidos, Canadá, México e Coréia do Sul;

2) O Europeu – Digital Vídeo Broadcasting (DVB), adotado em mais de cinqüenta países, incluindo toda a Europa, Austrália, Nova Zelândia, Índia, Cingapura e Taiwan;

3) O Japonês – Integrated System Digital Broadcasting (ISDB), usado apenas no Japão.

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comparação, ela nasce com a proposta brasileira, ela é praticamente a proposta brasileira. Eu vejo que esse processo de implantação da TV digital é de grande orgulho para a radiodifusão no Brasil e não só a radiodifusão mas todos os setores envolvidos, eu falo radiodifusão porque o processo iniciou na radiodifusão e talvez o radiodifusor tenha sido o agente mais en-volvido durante toda a história” (Roberto Franco – Presidente da SET / Diretor de Tecnologia do SBT).

O Governo Federal percebeu que a TV digital transcendia a questão meramente técnica e começou a discutir o assunto do ponto de vista político e estratégico.

“O grupo Set/Abert, especialmente SET, desde o início em 2001 ela considerou que o melhor sistema era uma modula-ção COFDM e que o sistema japonês lhes atendia porque ele tinha alta definição e definição standard. Quando a Anatel juntamente com o CPqD foi em campo nós ratificamos o resultado observado em cam-po pelas emissoras e nós nunca tivemos dúvida de que a modulação COFDM era melhor do que a modulação 8VSB. Então, dentro da transparência, a agência colocou o resultado de tudo isso aí em consulta pública e além disso, a Anatel naquela ocasião, em 2001, disse o seguinte: “eu estou vendo aqui um cenário ou questões estratégicas por detrás da escolhas deste padrão”. Então o Brasil poderia tirar tam-bém algum proveito em termos de país ao introduzir essa tecnologia” (Ara Minasian - Superintendente de Comunicação de Massa da Anatel).

A indústria de telecomunicações, cujos interesses maiores também eram comerciais, passaram, naquele momento, a empregar um discurso de que o foco deveria ser sempre voltado ao consumi-dor, pois, a exemplo da discussão que houve na implantação de tecnologia de celular no Brasil (no período de 1997 a 2000), o debate tomou rumos a favor dos europeus (em detrimento do sistema Norte-Americano), que queriam impor o foco na indústria. Afirma o representante da indústria de Telecom:

“Mas a discussão pública ela veio a tona em 2.000 mesmo, através de uma consulta pública da Anatel no que seria melhor para o Brasil, ficar no modelo americano ou ir para o modelo europeu, que naquele momento já tinha sido globalizado. Então a discussão foi muito difícil porque nós já tinhamos uma coisa implantada, mas prevaleceu o bom senso naquela época, porque a discussão era aberta, era pú-blica e era centrada na vantagem para o consumidor. Esse era o ponto central. E, após vários anos nós vimos a penetração do celular que não é um aparelho muito barato, excepcionalmente alto, então foi uma história de sucesso.”

A Academia iniciou seus trabalhos de pesquisa a partir de 1.996, fazendo testes de transmissão do padrão MPEG-2 em alta-definição, conforme comentário do Profes-sor Livre-Docente da Escola Politécnica da USP, Marcelo Zuffo:

“Os nossos trabalhos iniciam-se em 1996 com testes de transmissão do padrão MPEG-2 em alta definição. A TV digital no Brasil é uma história longa, de quase dez anos...”

A indústria de Eletro-eletrônica esteve pouco envolvida nesse período. Os deba-tes ficaram mais acalorados logo após a promulgação dos decretos que fomentaram a TV digital no Brasil. Como ressalta Mor-ris Arditti, vice-presidente da Gradiente:

“Após o decreto 4901/03 os setores re-presentantes do negócio da TV digital sentaram pela primeira vez e conversaram e negociaram, fazendo os compromissos no sentido de ceder ou deixar de ceder em torno das especificações.”

A sociedade civil representada pelo Coletivo Intervozes, nesse período, estava ausente das discussões sobre TV digital. Começam a ter uma participação mais efetiva nos debates a partir de 2003, no iní-cio da gestão do Deputado Miro Teixeira frente ao Ministério das Comunicações:

“Eu acho que foi o primeiro grande ponto de virada, aonde você teve no governo Fernando Henrique de tomar a decisão de

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no final do seu mandato, não tomar deci-são alguma sobre a TV digital no Brasil, ele não teve segurança” (Diogo Moysés / Conselho diretor do Intervozes).

Em síntese, pode-se afirmar que, nesse primeiro período, começam a ficar claras as parcerias que seguiram, ao longo das discussões, aproximando os agentes fomen-tadores. Também começam a ficar caracteri-zadas as posições assumidas por cada ator em defesa de seu próprio interesse.

3º.passo–AnatomiadaMensagem

A linguagem dos radiodifusores, nesse período, caracterizou-se pela apologia e desenvolvimento, assentada em expres-sões do gênero:

“não podemos mais ficar esperando para migrar para era digital, pois se não entrare-mos na berlinda da tecnologia e ficaremos a mercê do que foi definido por outros países” (Roberto Franco – Presidente da SET / Diretor de Tecnologia do SBT).

A linguagem do Governo federal, acen-tuadamente cautelosa, reforçou a idéia de que tal decisão deveria ser analisada em profundidade antes de qualquer definição.

“Na realidade nós, até 1995, acompanhá-vamos os trabalhos da TV digital mas depois disso as autoridades do governo entenderam que a questão da TV digital transcendia uma questão técnica e a Ana-tel era responsável por questões técnicas. Então começou-se a discutir o assunto do ponto de vista político e estratégico e a gente entende que TV digital é uma estra-tégia” (Ara Minasian - Superintendente de Comunicação de Massa da Anatel).

A linguagem da academia voltou-se para a necessidade de desenvolver tec-nologia nacional. Como destaca Marcelo Zuffo, Professor Livre-docente da USP:

“...eu sempre fui um defensor da im-portância do desenvolvimento de uma tecnologia nacional e foi com esse intuito que todo o meu interesse é norteado, a possibilidade de se ter componentes essenciais desse processo de TV digital

com o domínio tecnológico e cientifico brasileiro. Isso poderia criar as bases virtuosas de uma indústria de base tec-nológica, geradora de emprego e que nos propiciasse o domínio de algum setor de atividade econômica.”

O Telecom manteve um discurso vol-tado para o consumidor e a possibilidade de termos escalabilidade de produção no set top Box (caixa conversora), fazendo com que os custos da TV digital no Brasil fossem confluentes com o padrão social do nosso país.

“Devemos centrar qualquer tipo de dis-cussão no consumidor, se você deixar cada ator vai puxar a sardinha para a sua brasa, então é função do órgão regulador do governo ou quem quer que esteja discutindo esse assunto de por o foco no consumidor e deixar os atores debaterem, porque cada um deles tem o seu interesse, e todos os interesses são lícitos. Mas você tem que fazer aquilo convergir em torno do consumidor, se você não fizer isso, você está indo, possivelmente, pelo cami-nho errado” (Representante da Indústria de Telecom).

O vocabulário exposto pela Indústria de Eletro-eletrônico e do Coletivo Intervo-zes nessa fase tiveram papel de pequena relevância conforme seus representantes esclarecem:

“...se formou um Fórum da TV digital, composto só por empresários e uma pontinha da academia, cujo objetivo era propor as especificações técnicas para a TV digital que seriam aprovados pelo comitê de desenvolvimento, só que para compor esse comitê, além de você ter que ser uma empresa você teria que pagar alguns milhares de reais, então toda a sociedade civil ficou sem acesso ao que estava sendo discutido” (Diogo Moysés / Conselho diretor do Intervozes )”

“Antes do decreto, nós, em termos de indústria, fomos muito pouco envolvidos. Eu até costumo dizer que nos meus 35 anos de carreira essa é a primeira vez que eu sento, porque a televisão alguém trans-mite e alguém recebe, e esses dois setores nunca sentaram juntos, pelo menos aqui

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no Brasil.” (Vice Presidente da Gradiente Eletrônica S.A., Morris Arditti )

O texto acima mostra o pioneirismo nas discussões que posteriormente se seguiriam. Foi proposto pelos radiodi-fusores, sendo que, somente em 1997, o Governo, representado pelo COM-TV (comissão assessora de assuntos de televisão), aceita essa idéia, embora a Sociedade Civil, a Indústria de Tele-com, a Indústria de Eletro-eletrônico e a Academia não compactuassem com essa urgência na implantação de um novo padrão de televisão.

4º.passo–ContingênciasdoAtoRetórico

Os radiodifusores, para alcançar seus interesses, deveriam omitir a relação cus-to/beneficio presente no empreendimento. A opção do padrão japonês se mostrava cara para a economia brasileira, visto que era uma tecnologia nova em relação aos outros dois padrões pesquisados e, por conta disso, já tinham seus custos diluídos em seus respectivos países.

“Se discutiu muito, olha tem que discutir o modelo do negócio, tem que discutir isso e aquilo, porque o radiodifusor tá induzindo, porque alguém tá induzin-do. A preocupação nossa e que eu acho que tá a prova de quem quiser checar, o Brasil adotou a tecnologia que está mais em estado da arte e é a mais ampla (...). A plataforma é muito flexível, ela é muito robusta, ela permite, claro que não é uma coisa sem limites, claro que não é uma coisa utópica que você possa pensar, mas para o estado atual do que você tem imaginado de modelos de negócio ela suporta todos e até tem certa margem de evolução bastante grande. Eu acho um conforto muito grande um País como o nosso que está se construindo, que está se definindo, que está se rediscutindo” (Roberto Franco – Presidente da SET / Diretor de Tecnologia do SBT).

O Governo federal não poderia se posicionar claramente a favor das discus-

sões, pois a influência dos radiodifusores poderia ficar bastante evidente para a população.

“...o sucesso de um empreendimento ocorre quanto mais cedo a sociedade optar por aquela vertente, porque se a sociedade não optar não tem jeito você terá de buscar outra solução. Porém, nós estamos num governo que se preocupa com o lado so-cial, e aliás todos eles deveriam se preocu-par. Mas isso não quer dizer que você vai introduzir uma tecnologia excluindo uma classe, isso jamais pode estar na cabeça de alguns, ou você acha que vai introduzir uma tecnologia começando pelas classes D e E; alguém tem que pagar a conta, então ou essa tecnologia começa a se tornar mais cara para as classes A e B para suportar um subsídio que existiria ou você fomenta, começa por cima e depois vai embora” (Ara Minasian - Superintendente de Co-municação de Massa da Anatel)

Nesse momento, a academia utilizava o discurso de atacar a indústria nacional, de-clarando o setor como totalmente reativo a todo o processo de TV digital, contrário à alta-definição, ao padrão MPEG-4, a toda e qualquer proposta de inovação tecnoló-gica. Como relata Marcelo Zuffo, professor livre-docente da USP:

“É uma indústria de imagem, é uma in-dústria de contrabando, é uma indústria do cinza, é uma indústria que oferece ao consumidor brasileiro uma tecnologia obsoleta sob o argumento de ser obsoleta pelo baixo custo e portanto acessível à população.”

A indústria de Telecom, nesse mo-mento, não poderia ressaltar que sua tecnologia estava obsoleta em comparação à tecnologia japonesa. Ela tinha o foco na multi-programação e na portabilidade, porém não no desafio da alta-definição.

“No mundo não é um grande negócio ainda, mais já está acontecendo é algo que não podemos mais classificar de embrio-nário. Então tudo isso vai acontecer e irá gerar uma nova dimensão para a mídia. Antigamente a gente dizia que você tinha um televisor fixo e de uso coletivo e você

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transmitia conteúdo em Standard Defi-nition e essencialmente grátis e agora as dimensões mudam aonde o televisor agora vai para o PC ou para o Lap Top e você vai para o celular também. O televisor não é mais um televisor agora mudou bastante, o fixo está indo claramente para o móvel, mídia não é mais só mídia, agora você está juntando com Telecom e T.I. que são modelos pagos, aonde agora não é só grátis (transmissão broadcasting). O Standard Definition do passado está indo em duas grandes direções, no High Definition para telas grandes e no Low Definition para celulares, seria a idéia do uso coletivo indo para o uso pessoal” (Representante da Indústria de Telecom)

A indústria Eletro-eletrônica não podia mostrar fraqueza no momento dos testes de análise de qualidade dos três padrões em pesquisa, pois, o setor tinha uma fragilidade no quesito de concorrência do set top box e toda a linha de produtos eletrônicos para atender o segmento da TV digital. Como destaca Morris Arditti, vice-presidente da Gradiente:

“Se fosse puramente japonês, puramen-te europeu, ou puramente americano, tanto faria pois a indústria brasileira iria fazer os receptores, mas iria sofrer uma concorrência daquelas empresas que já atuam com produtos nesse tipo de sistema. Ao escolher um sistema bra-sileiro ou qualquer um dos outros três com adaptações brasileiras isso acabou tirando a vantagem que as empresas de fora tinham no processo.”

É interessante ressaltar que o Coletivo Intervozes, na fase inicial do processo de testes dos padrões, ficou literalmente excluído do debate.

“O intervozes começa a ter uma parti-cipação mais efetiva a partir de 2003, assim que o Miro Teixeira assumiu o MI-NICOM alguns meses depois da entrada do governo Lula, e no mês de novembro culminou-se o primeiro decreto o 4901, e o então responsável da casa civil nesse período era o deputado José Dirceu, eu acho que foi o primeiro grande ponto de virada...” (Diogo Moysés / Conselho diretor do Intervozes)

SegundaFase:“2003A2006”

1º.passo–AntecedentesdaSituação

Decorrente do período anterior, no qual foram feitos testes sobre os três siste-mas — Japonês (ISDB), Norte-Americano (ATSC) e Europeu (DVB) —, ficaram evi-denciadas algumas discussões realizadas pelos agentes envolvidos. No final desse período, em 26 de novembro de 2003, surge o decreto 4.901/03 que privilegiava o modelo europeu e direciona o foco no sentido da democratização da informação, postura que interessava ao grupo Intervo-zes e aos Telecoms.

2º.passo-oProblemaRetórico

O Governo federal, na defesa de seus interesses, voltado para integração e de-senvolvimento de tecnologia nacional, durante atuação de Miro Teixeira (em parceria com o Deputado José Dirceu) como Ministro das Comunicações, pri-vilegia os interesses da sociedade civil, representados pelo Coletivo Intervozes, em detrimento da tecnologia que os radio-difusores defendiam.

De certo modo o decreto 4901/03 prejudicava os interesses comerciais dos proprietários das mídias televisivas, fato esse que acarretou sólida divergência com os interesses que os radiodifusores tinham em manter seu modelo de negócio base-ado em publicidade. O referido decreto privilegiava a pulverização da mídia, pos-sibilitando, dessa maneira, a inserção de novos players. Por isso, os radiodifusores se uniram para alterar esse decreto. Ar-gumentavam que a tecnologia do padrão europeu (MPEG-2) estava ultrapassada e, se o Brasil adotasse essa tecnologia, não estaria privilegiando a alta-definição, visto que ela não contemplava tal função, utilizando apenas a faixa de 6MHz que estava disposta no decreto.

Para a indústria Eletro-eletrônica não in-teressava que fosse implantado um padrão

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proprietário, ou seja, puramente Japonês, Europeu ou Norte-Americano. Eles ficariam dependentes dessas tecnologias e teriam um custo mais alto para produzi-la no Brasil.

Nesse cenário, os interesses da academia estavam sendo favorecidos, visto que o Go-verno estava fomentando a pesquisa com repasse de verbas — chegando ao montante aproximado de 60 milhões de reais. Para a academia esse foi o melhor período. Nesse momento a academia estava interessada em desenvolver uma tecnologia 100% nacional, dessa forma poderia exportar a tecnologia para toda América Latina. Estávamos diante de um impasse, ou, na linguagem de Burke, “diante de uma situação retórica abran-gente”. Tanto que a academia discordava radicalmente da Indústria de Telecom em implantar o padrão europeu, pois, propu-nha tecnologia nacional como gestão do conhecimento o que, certamente, conduzi-ria ao desenvolvimento de algum setor da economia do país.

3º.passo-AnatomiadaMensagem

Tanto o Governo quanto o grupo In-tervozes e Telecom estavam direcionados para a possibilidade da democratização da informação, com o foco no consumidor. As palavras-chave que predominaram no discurso desse período foram: democratiza-ção, integração, desenvolvimento, inclusão digital e cidadania. A “Academia” utilizava no seu discurso o desenvolvimento de uma tecnologia totalmente nacional, fomento a pesquisas e acalentando possibilidades de uso na educação à distância, caminhos para a interatividade plena. O discurso ressalta-va, basicamente, o nacionalismo.

Nesse momento, o radiodifusor coloca-va a questão da alta-definição e da robustez do sinal em primeira instância de todos os debates. Contrariamente à posição do Governo Federal, Telecom e Intervozes, predominantemente voltavam-se para a tecnologia de ponta, indicavam o absurdo de se implantar um padrão superado, da qualidade em detrimento da abrangência.

A indústria de Eletro-eletrônica posicio-nava-se ao lado do radiodifusor, argüindo a possibilidade de uma tecnologia híbrida.

4º.passo–Contingências

Em nenhum momento desse período o Governo aponta para questão tecnológica como determinante. Insiste sempre no aspecto social. O grupo Intervozes evita, também, qualquer referência à tecnologia. Os Telecoms insistiam no barateamento da tecnologia e escondiam o fato do sis-tema DVB obrigar que a veiculação do sinal de TV para celulares passe por uma operadora de telefonia. Gerando um custo adicional para o consumidor que desejasse adquirir esse serviço.

A indústria de Eletro-eletrônicos evitava fazer referência a falta de tecnologia de pon-ta, pois isso comprometeria seus interesses. E a academia evitava abordar a tecnologia, uma vez que o padrão europeu era inferior ao japonês. Por isso, insistiam nos aspectos sociais, como a geração de empregos. Por sua vez, o radiodifusor, em nenhum momento desse período, destaca a possibilidade da multi-programação como um diferencial dentro do sistema de TV digital, pois, essa possibilidade contrariava seus interesses.

TerceiraFase:“2006a2007”

1º.passo–AntecedentesdaSituação

Essa fase inaugura um novo cenário: com a queda do Chefe da Casa Civil (o Deputado José Dirceu) e a entrada do Ministro Hélio Costa, o direcionamento toma novos rumos. É elaborado o Decreto 5820/06 (em substi-tuição ao decreto 4901/03), estabelecendo o funcionamento da TV digital brasileira, sendo o sistema japonês escolhido para ser o padrão definitivo da TV digital no Brasil.

2º.passo-OproblemaRetórico

O problema retórico do Governo Fede-ral, com a mudança no Ministério e as novas

alianças, agora, era outro. Era preciso enfati-

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zar os aspectos tecnológicos em detrimento dos aspectos sociais presentes no decreto anterior (4901/03) que privilegiava, pela pressão dos Telecoms, o padrão europeu.

Os radiodifusores, de certa maneira, com seus interesses atendidos, defendendo a mono-programação (HDTV), queriam manter o seu padrão de negócios para não pulverizar a publicidade. Deixaram de lado as críticas ao Governo e passaram, então, a criticar aqueles que não entendiam a ne-cessidade de se adotar tecnologia de ponta, justamente aquela do padrão japonês.

O grupo Intervozes, tendo o seu foco sempre voltado para a democratização da informação, sofreu uma grande derrota em relação aos seus interesses, limitando-se

à intensificar suas críticas ao padrão japonês. Enfatiza, também, que não havia neces-sidade de tamanha urgência nessa implantação.

Os Telecoms, por sua vez, não tinham mais como impor a sua tecnologia. Restando ao grupo, apenas, defender a existência do canal de retorno, indispensável para possibili-tar a interatividade plena.

Os interesses da indústria de Eletro-eletrônicos, com o padrão híbrido definido pelo

decreto, acabaram não sendo afetados. Por isso, mantiveram-se, a partir de então, indi-ferentes. A Academia com seu foco dúbio, também primou por certa neutralidade. Se, por um lado, foi prejudicada ao cessar o investimento em pesquisa, por outro, foi favorecida, ao se possibilitar que uma parte da tecnologia pesquisada por ela fosse contemplada dentro do sistema TV digital brasileira através do middleware Ginga.

3º.passo–AnatomiadaMensagem

O Governo primou pela valorização do desenvolvimento tecnológico. O que interessava como discurso, nesse momen-to, era a qualidade do som e da imagem

e a robustez da TV móvel (portabilidade e mobilidade). A não democratização da informação passa a ser justificada em seus discursos. Os radifodifusores enfatizaram a questão tecnológica, com termos vol-tados para um novo tempo: desenvolvi-mento, tecnologia de ponta, qualidade da programação. Os Telecoms insistiam no barateamento da tecnologia e evitavam abordar os aspectos relacionados à tecno-logia de alta-definição, pois o seu sistema não comportava tal qualidade em 6 MHz.

Contrariamente a esses, o Grupo Inter-vozes denunciava, como anti-democrática e elitista, a posição do Governo e dos radio-dfiusores. Ressaltava a valorização da tecno-logia em detrimento do consumidor, usando vocabulário que inseria termos como: denúncia, fraude, favorecimento, etc.

4º.passo–Contingências

As omissões passaram a ser constantes; tanto o Governo Federal quanto os radiodi-fusores evitavam abordar a questão social, insistindo nos aspectos meramente tecnoló-gicos. O Grupo Intervozes descaracterizava a importância da tecnologia, pretendendo valorizar os aspectos da questão social. Os Telecoms omitiam a questão da tecnologia que dispunham (que não era de alta-defi-nição), por isso insistiam, apenas, no ba-rateamento do sistema, justificando que o foco deveria ter sido sempre o consumidor, e nunca a indústria. A Academia omitia sua dependência do Governo, buscando passar uma imagem de independência. A indústria de Eletro-eletrônico escondia o alto custo dos set top Box, e pressionava o Governo para baratear os impostos dos componentes importados.

Inicialmente, os radiodifusores im-pulsionaram os debates sobre a implan-tação da TV digital no Brasil. Com a promulgação do decreto 4901/03, que indicava o padrão europeu, acirraram-se as discussões. A atuação dos radiodifu-sores e a sua influência sobre o Governo, mais acentuadamente, após mudança

Nessa perspectiva, retórica e argumentação são sinônimos

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do Ministro, permitiu a promulgação do Decreto 5820/06, que conduziu a adoção do padrão japonês como definitivo.

Desse modo, dependendo da mudan-ça do contexto, o problema retórico, a anatomia da mensagem, as contingências também se modificaram.

Até aqui, com base nos quatro passos iniciais da Análise Retórica e seu método histórico-crítico, pode-se perceber, em função das mudanças no contexto, a mu-dança de discurso de cada um dos agentes. Os dois passos restantes: Interpretação do Ato Retórico e Julgamento acentuarão os aspectos filosóficos dos debates.

5º.e6º.passos-InterpretaçãoeJulgamentodoDiscurso

Para interpretar os diferentes discursos representativos dos interesses dos agentes envolvidos, optou-se por destacar dois refe-rencias teóricos diametralmente propostos:

Por um lado, os pesquisadores César Ricardo Siqueira Bolaño e Valério Cruz Brittos, que podem ser classificados como humanistas e, por outro, Gerald Griffin, defensor de uma postura mais pragmática em relação aos grupos de poder.

Assim, para Bolaño e Brittos, o Grupo Intervozes, na defesa da democratização da informação, embora excluídos do Fórum de TV digital, tiveram importante papel ao denunciar os estratagemas utili-zados pelos radiodifusores no sentido de cooptar o Governo Federal para atender seus interesses, em detrimento dos inte-resses da sociedade brasileira. Bolanõ e Brittos. (2007, p.35) afirma:

“Essa baixa participação da sociedade brasi-leira na sua pluralidade, nas dinâmicas de re-gulamentação, tem-se repetido no âmbito da definição da digitalização das transmissões televisivas. Mesmo no período mais recente da história do país, fazendo-se um corte a partir do desencadeamento do processo de sua modernização com a Revolução de 30, não houve uma mudança do sentido de incorporação regular dos trabalhadores e sua visão de mundo na esfera decisória.”

Para Gerald Griffin, os estratagemas fazem parte integrante do mundo dos negócios, no qual a astúcia representa im-portante papel. Nessa perspectiva, os radio-difusores souberam manipular, habilmente, a situação que se apresentava para alcançar seus objetivos. Griffin.” (2007:35) afirma:

“As lutas e as guerras de vida e morte que ocorriam nos campos de batalha agora são travados nas salas de reunião da diretoria. Os capitães de cavalaria foram substituídos por capitães de indústrias. As decisões dos generais não são a respeito de tomar colinas e vales, mas sobre a conquista de novos mer-cados; não são decisões sobre o tratamento a ser dispensado aos prisioneiros de guerra, mas sobre como tratar as pessoas afetadas pela compra de sua empresa.

Desse modo, dependendo da ótica com a qual se analisa a implantação da TV di-gital no Brasil, pode-se tanto conceber que diante das circunstâncias e da correlação de forças estabelecidas os radiodifusores foram eficientes e éticos ou mesmo eficientes e não-éticos. Em relação ao grupo Intervozes, pode-se também afirmar que, embora não contemplados em suas idéias, estiveram determinados a lutar pelos interesses demo-cráticos da sociedade. Nesse sentido, podem ser considerados como não-eficientes, mas, profundamente éticos.

Quanto a Indústria de Telecom, cujo interesse estava na adoção do padrão eu-ropeu pode-se considerar que não foram eficientes uma vez que seus objetivos não foram alcançados. Em relação ao aspecto ético, podem ser classificados como des-providos de ética, uma vez que lançaram mão de subterfúgios na mídia impressa.

Em relação aos interesses da Indústria de Eletro-eletrônicos, a escolha do modelo japonês foi indiferente. Portanto não é possível analisar o grau de eficiência alcan-çada. Quanto ao aspecto ético, nenhum fato de cunho moral teve relevância.

A Academia, em razão de sua subserviên-cia às verbas governamentais, manteve uma

posição dúbia: “inicialmente em oposição aos

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radiodifusores e, posteriormente, em favor dos mesmos”. Esse procedimento pode ser classificado, na perspectiva de Bolaño, como não-ético e oportunista. Já na visão de Griffin, ele seria como natural, uma vez que, ao defen-der o repasse de verbas, está defendendo os interesses da instituição que representa.

Assim, de modo geral, aquele que não teve seus interesses atendidos (Grupo In-tervozes, Telecom), em seu discurso, tende a valorizar os aspectos sombrios que se pode vincular ao poder — pela exploração daquilo que é negativo. Por outro lado, aqueles que impuseram seus interesses (radiodifusores, Governo Federal), fazem emergir o uso “nobre” do poder, ressaltando a legitimidade de sua atuação.

Os beneficiados, mesmo não fazendo parte do grupo de poder, tendem a perma-necer neutros (Indústria de Eletro-eletrônicos). O poder é, por sua natureza, ambíguo, uma vez que não pode ser dis-tribuído eqüitativamente. É preciso, pois, ao pesquisador, verificar a posição ocupada no contexto por aquele que assume tal ou qual postura. Deve-se verificar se está entre os que o possuem ou entre os excluídos do poder, esses úl-

timos em clara condição de subordinação.

Considerações finais

Na perspectiva da metodologia proposta pela Análise Retórica pode-se conceber que as discussões ocorridas nas três fases do processo estiveram relacionadas às disputas de posicionamento, alicerçadas em estra-tégias decididas continuamente, voltadas para duas concepções distintas: interesses comerciais versus democratização da infor-mação. O decreto 5820/06 foi determinante para a escolha do padrão japonês que atendeu, acentuadamente, os interesses co-merciais dos radiodifusores que souberam

manipular habilmente as situações para al-cançar seus objetivos, confirmando, assim, as hipóteses formuladas inicialmente: em nossa contemporaneidade, o comunicador empresarial é um retor e ao mesmo tempo um negociador de significados.

De modo geral, por intermédio da análi-se pós-factum de todo o cenário da disputa, pode-se traçar o seguinte panorama:

As estratégias de posicionamento ven-cedoras foram empregadas pelo Grupo de Radiodifusores e Indústria de Eletro-ele-trônicos ao cooptar o Governo Federal para seus interesses pela hábil manipulação em-pregada na reversão de uma situação desfa-vorável aos seus interesses como aquela que se apresentara por ocasião da possibilidade crescente do padrão europeu que remeteria à multi-programação e, consequentemente, a pulverização da publicidade, fato esse, em franca oposição aos seus interesses. A indicação de Helio Costa (ex-jornalista da Rede Globo de Televisão) para ocupar a pasta de ministro das comunicações repre-sentou a inclusão de um retor na defesa dos interesses dos radiodifusores no âmbito do governo federal. Os Telecoms, embora não tenham alcançado totalmente seus objetivos, souberam adaptar-se ao padrão escolhido.

Se, por um lado, o grupo dos radio-difusores foram os grandes vencedores no emprego das estratégias de posiciona-mento, por outro, os agentes fomentadores derrotados nessa disputa foram a Acade-mia e acentuadamente Grupo Intervozes, representante da sociedade civil.

O Grupo Intervozes somente solucio-naria seu problema retórico pela mobi-lização da sociedade civil em defesa a multi-programação e, consequentemente, na defesa da democratização da informa-ção, o que, efetivamente, apesar de todo empenho, não foi alcançado.

Em relação aos argumentos dominantes empregados pelos retores na defesa de seus respectivos interesses: o Governo Federal, ao ressaltar a integração e o desenvolvimento, justificou sua postura inovadora e moder-

Qualquer cidadão pode ser um analista do dis-curso através de ques-tionamentos sobre as situações à nossa volta

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na. O Intervozes, (um dos representantes da sociedade civil), criticou fortemente o Decreto 5820/06 pela seguintes razões: li-mitado efeito democrático, a não adequação da convergência das mídias e denúncia da não- efetividade da multi-programação. Os Radiodifusores, na pretensão de manter seus privilégios, enfatizaram a necessidade da continuidade do mesmo modelo de negócio, ou seja, a troca de audiência por publicidade. As indústrias de Eletro-eletrônicos acentua-ram a necessidade da interatividade, embora para esses, tanto a multi-programação, bem como a mono-programação, são aceitáveis uma vez que não provoca interferências no seu modelo de negócio. Por isso, o discurso dessa Indústria primou por um posiciona-mento efetivo em relação a adoção de uma tecnológica nativa que mesmo não sendo inteiramente viável fosse constituída com componentes nacionais. As indústrias de Telecoms posicionaram-se pela adoção do padrão Europeu de TV digital (DVB), uma vez que esse padrão, implantado em mais de cinqüenta países no mundo, casava-se melhor com seus interesses comerciais. A academia, que defendia o padrão brasileiro, buscou identificar-se com a posição do Go-verno Federal, visto que são dependentes das verbas de pesquisa.

È possível afirmar, portanto, que a so-lução do problema retórico de cada agente fomentador pode ser explicada a partir dos argumentos que buscaram definir a reali-dade de certo ponto de vista para exercer influência sobre o contexto apresentado e que podem ser assim sintetizados:1. Tanto os representantes dos grupos que

defendiam a imediata implantação do modelo japonês (Governo Federal e Ra-diodifusores) quanto os representantes do grupos que defendiam o adiamento e a adoção do modelo Europeu (Socie-dade Civil e Telecoms), até aqueles que conservaram uma posição neutra em decorrência de seus interesses (Indús-tria de Eletro-eletrônica), tiveram como objetivo central a busca de seus interesses

por meio da persuasão caracterizado em alguns momentos pela disposição de negociar, em outros pela declaração de franca oposição ao modelo adotado, como foi o caso do grupo Coletivo Inter-vozes. Faz-se necessário ressaltar que, as posições assumidas inicialmente, foram se transformando ao longo do processo. O grupo Intervozes, por exemplo, na primeira fase dos debates (1994-2003) era favorável ao ponto de vista da academia que defendia o desenvolvimento de tec-nologia cem por cento nacional. Todavia, na segunda fase (2003-2006) ao perceber que o padrão nacional não seria adotado, assumiu a posição de apoio ao sistema Europeu, sistema esse, que propiciava a multi-programação (democratização), em consonância com os interesses da Indústria de Telecoms, em detrimento da alta-definição presente nos modelos tanto japonês quanto norte-americano.2. Embora os discursos apresentados

pelos diferentes agentes possuam conotações retóricas diferentes o embate estratégico ocorreu em perfeita consonância com os interesses em jogo: o grupo representado pelos Radiodifusores, defensor da adoção do modelo japonês, caracterizado pela presença e unicidade do significado da mensagem transposto para um nível apologético da tec-nologia no qual não há lugar para dúvidas e questionamentos acentuado pelo próprio ca-ráter das expressões enunciadas: integração; desenvolvimento; novo tempo, qualidade e os defensores do modelo Europeu repre-sentado pela indústria de Telecoms, denun-ciando a falta de diálogo nas discussões e o caráter autoritário do Decreto 5820/06.

3. As mensagens alicerçadas no veros-símil, no plausível, no provável acompa-nhadas de fortes componentes afetivos e emocionais, buscavam, concomitantemente, denunciar os procedimentos utilizados pelos grupos concorrentes ao mesmo tempo em que preservavam seus interesses. O Decreto 4901/03 que fazia menção a adoção do mo-

delo Europeu (do qual a multi-programação

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era parte significativa) foi criticado violenta-mente pelos radiodifusores. O mesmo se deu em relação ao Decreto 5820/06 que adotou o japonês (que privilegia a alta-definição e ao mesmo tempo, a mono-programação) foi criticado radicalmente pelo Grupo Intervozes e a indústria de Telecoms.

Enfim, uma das características determi-nantes que possibilita a integração entre os

referenciais teóricos empregados na pesquisa, isto é, Estratégia Decidida Continuamente, a Nova Retórica e a Metodologia da Análise Retórica nos estudos críticos da comunicação está na flexibilidade de respostas possíveis pela adoção do pragmatismo radical, postura essa, que permite responder imediatamente à ação dos concorrentes por meio de uma nova estratégia de posicionamento.

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Comunicação: Meios e Mensagens

Alecsandra Matias de OliveiraDoutoranda em Artes pela USP

Especialista em Cooperação e Extensão Universitária do Museu de Arte Contemporânea da USP

[email protected]

Resumo

Em Mario Schenberg – Crítica de Arte e Comunicação, a preocupação está voltada para as contribuições do físico no setor da crítica de arte nacional. A pesquisa valeu-se de teóricos que, costumeiramente, utilizaram jornais e meios de comunicação e se tornaram prestigiados por isso. A partir daí, é avaliada a originalidade ou não das reflexões artísticas de Mario Schenberg.

Palavras-chave: Mário Schenberg, Crítica, Arte.

Abstract

In Mario Schenberg - Art and Communication Critic, the focus is on the contributions of Mario Schenberg (physicist and art critic) in the area of Brazilian art critics, tracing the general lines of the local scenario, in which some critics were men-tioned to help the comprehension of the artistic context in the country, especially in the period where Schenberg’s critical reflections are inserted. The research has had the help of theorists that, usually, use newspapers and other communication means and become famous for that. From this, it is analysed whether the artistic reflections of Mario Schenberg had or not its own characteristics.

Key words: Mário Schenberg, Art Criticism, Communication.

Resumen

En Mario Schenberg – Crítica de Arte y Comunicación, la preocupación está volcada hacia las contribuciones de Mario Schenberg (físico y crítico de arte) en el sector de la crítica de arte nacional, trazando las líneas generales del escenario de la crítica de arte brasileña, en que algunos críticos fueron mencionados para auxiliar la comprensión del contexto artístico en el país, principalmente en el período de inserción de las reflexiones críticas de Schenberg. La investigación se valió de teóricos que, usualmente, utilizaron periódicos y medios de comunicación y se hicieron prestigiados por ello. A partir de ahí, se evalúa si las reflexiones artísticas de Mario Schenberg poseían o no características propias.

Palabras clave: Mário Schenberg, Crítica, Arte.

Mario Schenberg – Crítica de Arte e Comunicação

Mario Schenberg – Art and Communication Criticism

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MarioSchenberg–CríticadeArteeComunicação

52C o m m u n i c a r e

A importância da crítica de arte é exata-mente mostrar, na criação artística, o que foge das idéias. As idéias são sempre no passado. A crítica tem de mostrar o que não pode ser idealizado agora, o que a próxima geração depois idealizará. Então a função importante hoje em dia não é julgar no sentido do comum, quer dizer, comparar essa coisa com as idéias existen-tes e ver se essa coisa é boa ou ruim à base das idéias existentes - isso é uma castração da coisa nova. O processo, de certo modo, é o contrário: não julgar, aceitar a coisa e pensar como é que poderá ser idealizada depois (Aguilar, 1997:26).

Mario Schenberg

s anos de 1930 constituíram im-portante período de definição da arte brasileira – um tempo que, por

seus condicionantes históricos e sociais, estimulou uma nova orientação na cria-ção estética. Para numerosas pessoas que compunham o ambiente artístico no país, era uma imposição necessária ter uma arte comprometida com a modernidade – questão que se tornava alvo de muitos debates (Zanini, 1990:20).

A problemática ligada à arte, de certa maneira, acompanhava as questões que envolviam as necessidades históricas do Brasil - que se pretendia moderno e bus-cava escapar da suposta inferioridade ad-quirida com o passado colonial. À época, a busca era por modernização da economia, desenvolvimento urbano e industrial e, principalmente, pela inserção do país na esfera internacional (Sevcenko, 1992:231-322)1. A Arte constituía área de incentivo ao aparecimento de movimentos artísticos comparáveis aos movimentos estéticos europeus e, num segundo momento, aos movimentos americanos – eleitos como dois focos de inovação na linguagem artística internacional.

Naquele momento, a figura do crítico de arte2 possuía uma formação diversifica-da, pois, em sua maioria, os críticos eram jornalistas ou literatos que escreviam suas

O

opiniões estéticas em jornais e revistas (Zanini, 1990:77 e seguintes). Muitos se espelharam nas tendências artísticas ori-ginárias de Paris, como centro irradiador de idéias, porém o gosto artístico ainda era regido por um certo provincianismo.

No transcorrer do trabalho artístico, Tarsila do Amaral, por exemplo, demons-trou que, em sua concepção, é o próprio

1 Os termos “moderno” e “modernidade” e seu correlato “novo” adquiriram grande expressividade em meados do século XX, pois indicava o abandono de velhos parâmetros atrasados e a entrada de uma nova época, marcada pela tecnologia e pelo avanço da ciência. Isso, em vários âmbitos: na política, na cultura, na economia, entre outros. Na política, as oligarquias eram combatidas por seus opositores que utilizavam o termo “moderno” como sinônimo de “libertação”. Ao mesmo tempo, na economia o moderno era visto na vida dos grandes centros urbanos e na industriali-zação e considerava-se arcaico o setor de atividades agrárias do país.“Havia, porém um âmbito no qual a questão da modernidade adquiria a sua máxima consistência simbólica e expressão cristalina. Esse âmbito era o das artes, particularmente a música e as artes cênicas, vindo depois às artes plásticas, poesia, literatura de ficção e ensaísmo”. 2 O crítico de arte deve lidar com os diversos paradig-mas que regem a produção e a linguagem artística; sendo a arte um objeto de estudo por natureza subje-tivo e sem conceitos estritamente fechados, é preciso estabelecer critérios para tornar um objeto com valor artístico ou não. Para muitos teóricos, a arte é pura expressão do ser humano e modo de comunicação enigmático - como a natureza de seu próprio criador. O crítico de arte é o profissional responsável por atribui valor estético à obra artística, porém o valor estético não é somente uma característica individual. Para ter-se valor estético é necessário que os valores e o gosto artístico sejam disseminados e aceitos por uma camada significativa da sociedade em que se pretende vê-los generalizado. O papel do crítico consiste em propor hipóteses novas a um certo público, que no caso são os admiradores de obras de arte. Não depende dele que estas sejam aceitas ou não, pois constitui proposta, mas o crítico precisa necessariamente de uma adesão de certo número de pessoas para ver suas teorias aprovadas junto de seus pares. Ele é, por princípio, o elemento mediador entre criador e público, tornando-se agente de difusão da mais importante relevância. É aquele que adapta certas novidades ainda estranhas à grande maioria e permite o amadurecimento das sensações esté-ticas provocadas ao público. Ele fornece a legitimação e a diferenciação das classes sociais. De certo modo, o crítico é intermediário, também, entre as classes sociais e seus códigos artísticos particulares.

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de arte, trazendo apoio à geração nova de críticos e deixando como herança princí-pios estéticos. Além dessas contribuições, o escritor também deixou uma concepção arraigada de valorização da crítica de arte e uma adesão incondicional à arte social-mente motivada, ou seja, para ele, a arte funcionaria como fator de transformação da sociedade produtora dela. Os emba-samentos teóricos de Mário de Andrade, como crítico, forneceram o sustentáculo para os artistas dessa geração, ou seja, de certa forma, sua reflexão legitimou as obras e os criadores modernistas.

A ação do crítico Mário de Andrade foi de vital importância para a aceitação das novas idéias e dos novos valores pre-conizados pelo movimento modernista. Os debates na imprensa, as campanhas nacionais e as “promoções” das artes, no terreno internacional eram ações imple-mentadas por artistas, mas principalmente por escritores que faziam às vezes de críticos, como por exemplo, Oswald de Andrade e Mário de Andrade.

De certa forma, alguns dos embasamen-tos teóricos da crítica de Mário de Andrade servem de referência para a compreensão dos pressupostos críticos utilizados por Mario Schenberg. Em 1942, Mário de An-drade está terminando sua carreira crítica, quando Schenberg está começando.

Em um momento posterior, Schenberg a exemplo de Mário de Andrade, Oswald de Andrade e tantos outros, também teria a função de legitimar e divulgar com suas críticas de arte dois importantes movimen-tos das artes no país, a “segunda vaga do

artista quem deveria escrever e falar sobre sua criação. Essa idéia será recorrente, quase quarenta anos mais tarde, quando os artistas das vanguardas das décadas de 1960 e 1970 assumiram seu papel na elaboração de teorias e explicações de seus próprios trabalhos, compondo textos e manifestos que expunham ao público na tentativa de disseminar suas obras abstratas e de difícil entendimento popular. Como exemplo dessa orientação, é possível citar nomes como: Waldemar Cordeiro e Hélio Oiticica.

Porém, mesmo com idéias semelhantes às da pintora Tarsila, existentes no princí-pio da crítica de arte brasileira, o círculo de críticos assíduos ou de aparições esporádi-cas, nos decênios de 1930 e 1940 incluía nomes considerados como os de Menotti del Picchia, Osório César, Quirino da Silva, Lélio Landucci, Antônio Bento, Lourival Gomes Machado, Maria Eugênia Franco, Flávio de Aquino, Ibiapaba Martins, entre outros (Zanini, 1990:96-104).3

Nesse contexto de crescimento e conso-lidação de várias propostas críticas, além de uma efervescência muito grande dos movimentos artísticos e políticos entre as décadas de 1940 a 1980, são encontradas as reflexões artísticas de Mario Schenberg.

Será ele especificamente um crítico de arte, como Mário de Andrade, Sérgio Milliet, Mário Pedrosa, Lourival Gomes Machado e tantos outros que compuseram o contexto histórico da crítica de arte brasileira?

Ele mesmo afirma que:

[...] aqui no Brasil as exigências em relação ao crítico de arte são muito pequenas, de modo, que qualquer pessoa que tenha algumas idéias sobre arte, algumas expe-riências de arte, já é considerado como crítico. Mas eu acho necessário haver uma crítica de arte baseada em outros critérios que não sejam simplesmente escrever em jornais [...] (Goldfarb, 1994:127).

Mário de Andrade, um dos idealizado-res e realizadores da Semana de Arte Mo-derna de 1922, sempre foi ativo na crítica

3 Ainda é possível citar os nomes de: Frederico Barata, Peregrino Júnior, Henrique Pongetti, Quirino da Silva, Lélio Landucci, João Ferreira, Mozart Firmeza, Arsênio Palácio, Virgílio Maurício, Jorge Amado, Rubem Braga, Manoelito de Ornelas, J. Guimarães Menegale, Rubem Navarra (Rubens de Agra Saldanha), Carlos Cavalcanti, Carlos Scliar, Gonçalves Simões, Brito Broca, Ciro Men-des, Flávio de Aquino, Carlos Pinto Alves, Franco Cenni, Sílvia Chalreo, Mário Barata, Amadeu Mendes, Luís Wa-shington, Flávio Motta, e muitos outros.

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4 “Mário de Andrade tem um ‘projeto brasileiro’, de explicação das raízes culturais da terra: pesquisa a arte, a linguagem, o folclore; visa à nacionalidade como uma etapa da universidade. Sérgio Milliet, mais distanciado (como um europeu), vê o processo artístico brasileiro sem inserir-se nele”. 5 A autora sugere que dessa relação tenha nascido o estilo e a criação da obra Diário do crítico.

modernismo”, representada pelos artistas freqüentadores do Palacete Santa Helena (num primeiro momento de sua crítica) e as tendências abstratas (num segundo momento). Seu círculo de amizade e influ-ência o auxiliaria na divulgação da Arte.

Sérgio Milliet, considerado, por muitos autores como um dos verdadeiros herdeiros e discípulos do pensamento e da crítica de Mário de Andrade (Gonçalves, 1992:52)4, foi sempre claro em sua proposta crítica, especialmente com relação à aproximação entre artista e público, revelando objeti-vamente a função social que a arte exerce sobre a sociedade (Gonçalves, 1992:30).

O período que se estende entre 1930 e 1945 marcou em definitivo a emergência

de Sérgio Milliet como crí-tico de Artes Plásticas (Gon-çalves, 1992:52), pois este manteve uma relação intensa no meio cultural paulista e brasileiro. Milliet é visto como incentivador das novas idéias modernas e um con-tato importante na difusão européia do Modernismo, já que passou anos de estudos na Europa, e particularmen-te, na Suíça, lá adquirindo contatos significativos no meio cultural e intelectual

europeu, além de sofrer influências de Rémy de Gourmont (1858-1915) e André Gide (1869-1951) (Gonçalves, 1992:15)5. Milliet também atuou de forma impressio-nante no ambiente cultural do país, pois participou da organização das Bienais e participou intensamente do debate abstra-ção x figuração, na década de 1950. Nele tomou uma atitude conciliatória e contrária ao sectarismo (Gonçalves, 1992:90).

Em sua visão: “é preciso explicar ao público que a classificação por escolas é de interesse didático e que a arte (sendo expressão) não pode ser entendida de um ponto de vista estreito e unilateral” (Gonçalves, 1992:90).

Algumas idéias de Mário de Andrade servem de referência para a com-preensão de Schenberg

Embora os dois críticos fossem contra o sectarismo, a atitude na reflexão crítica de Sérgio Milliet penderia para uma certa pe-dagogia da Arte, ou seja, é preciso ensinar o público a apreciá-la. Mario Schenberg amenizava o lado pedagógico da crítica de arte para estabelecer uma relação comuni-cativa da crítica, ou seja, o teórico deseja-ria que o público sentisse a expressão do artista através da obra, sem se preocupar com a inteira compreensão desta.

Para outros críticos de arte, como Ani-bal Machado, o apoio era dirigido a uma arte capaz de sensibilizar as camadas po-pulares e identificar-se com elas, enquanto na visão de Lourival Gomes Machado é possível observar a contestação da idéia de que o isolamento da Europa, quando da ocasião da Guerra, fizera a Arte do país descer em seu nível coletivo de criação artística (Gonçalves, 1992:90).

Voltando às reflexões de Sérgio Milliet, é possível notar que o crítico não aceitou a imposição de cânones aos novos artistas; dessa forma, abriu polêmica com Ibiapaba Martins, que apoiava uma arte extrema-mente engajada à problemática social, na direção da mesma linha crítica de que fo-ram seguidores Ciro Mendes, Luis Martins, Quirino da Silva, Osório César e outros.

O que se formou, a partir daí, foram duas linhas orientadoras de reflexões críticas: uma representada por Sérgio Milliet, na qual a tarefa do crítico de arte é fornecer sig-nificação e tornar compreensível a Arte para o público, ou seja, objetivava a inserção de uma interpretação e compreensão da Arte Moderna na comunidade (Zanini, 1990:82 e seguintes). Outra vertente representada por Ibiapaba Martins considerava que a Arte só

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6 “O projeto crítico de Sérgio Milliet evidencia uma orientação pedagógica voltada para o fato artístico, para a formação dos artistas e a informação do público (...) seu objetivo é introduzir a compreensão da arte moderna na comunidade”.7 Durante a década de 1950, a emergente elite industrial - preocupada com a inserção do Brasil na modernidade - decidiu apoiar as Artes Modernas. Cicillo Matarazzo, um exemplo dessa nova mentalidade burguesa, criou a Fundação Bienal de São Paulo e cooperou com projetos para a criação do MAM SP e do MASP. Aliado a esses acontecimentos, partiu de Ulm (Alemanha) o Movimento Concretista em direção à América Latina, chegando primeiramente à Argentina e depois ao Brasil (uma série de conferências foram organizadas para preparação do ambiente frente às novas propostas artísticas) - aqui en-controu as condições atuais para proliferar suas idéias no contexto que se formava, adquirindo maior difusão através das Bienais. A primeira Bienal de São Paulo foi realizada em 1951. No ano seguinte, é formado o Grupo Ruptura, que propunha as regras para o Movimento Concreto Brasileiro, através de manifesto. Desse grupo faziam parte: Waldemar Cordeiro, Charoux, Geraldo de Barros, Haar, Luís Sacilloto, Anatol Wladislaw, Lygia Clark, Hélio Oiticica, Lygia Pape, Amílcar de Castro e muitos outros.

seria válida se respondesse a uma política de conscientização social, ou seja, a criação artística deveria servir e engajar-se somente no social (Gonçalves, 1992:109).6

As polêmicas são fatos freqüentes na proposta crítica de Sérgio Milliet, assim como na maioria dos críticos, inclusive nas reflexões sobre Arte de Schenberg. Uma outra contenda envolveu, ainda, Milliet e os artistas concretos, liderados por Waldemar Cordeiro, e foi expressa através do Manifesto Ruptura, datado de 1952 (Gonçalves, 1992:93). A crítica de Milliet aos concretistas era baseada na radicalização das tendências artísticas dominantes na década de 1950: o crítico acreditava que as obras concretas não precisavam ser tão dogmatizadas para responder ao ideal estético de sua época. Contudo, para Waldemar Cordeiro, as re-gras impostas à Arte serviam para uma ra-cionalização maior do projeto concreto.

Mario Schenberg conheceu Sérgio Milliet e Mário de Andrade, provavel-mente em 1939, mas em seus escritos e relatos não traçou considerações sobre estes. É possível julgar que o convívio entre os três era freqüente, uma vez que Schenberg passou a estar presente nas reu-niões promovidas por Oswald de Andrade – reconhecidamente, uma personalidade mediadora das relações interpessoais exis-tentes entre artistas e intelectuais ligados ao Modernismo e seus desdobramentos.

Outro expoente significativo da crítica de arte brasileira foi Mário Pedrosa, que estreou como crítico em 16 de junho de 1933 e atuou muito tempo em jornais como, o Correio da Manhã, Vanguarda Socialista, Jornal do Brasil, Jornal da República e ou-tros, assim como foi professor de História e Estética em estabelecimentos de ensino importantes no período, como o Colégio D. Pedro II e a Faculdade de Belas Artes do Chile, além de sua participação nas Bienais, na constituição de museus de Arte Moderna do Brasil e do Chile e nas associações e con-gressos de críticos de arte e artistas.7

Vários autores atestam que a sua maior preocupação foi com relação à Arte Abs-trata, pois esta seria o tema central de sua crítica de arte a partir de 1944 - quando publicou dois ensaios sobre Calder em um suplemento do Correio da Manhã. O encontro entre Mario Schenberg e Mário Pedrosa ocorreu em 1958; os dois críticos defendiam, cada um por seus motivos particulares, as produções abstratas.

As produções artísticas orientais, de do-entes mentais e de crianças foram vertentes de estudos inauguradas por Mário Pedrosa. Também as relações existentes entre arte e Ciência foram destaques em suas reflexões. Este crítico sempre realizou uma crítica marxista e permeada pela filosofia da ges-talt. Para Mário Pedrosa, o aspecto social na arte surgiria como resultado do poder comunicativo da forma (Arantes, 1995:350 e seguintes). Nunca perdeu de vista o caráter materialista histórico que a arte e os seus desdobramentos podiam suscitar à realida-de das sociedades (Arantes, 1991:20).

De acordo com as idéias de Pedrosa, o mercado de arte impõe um gosto estético

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no contexto paulistano vivenciado pelo jovem Schenberg, é preciso observar por-menores como os lugares institucionais destinados à arte e como se constituía o circuito de exposições nacionais. Deve-se lembrar que durante a individual Alfredo Volpi ainda não existia nenhuma galeria especializada em arte moderna no Brasil. A exposição de Alfredo Volpi foi realizada em uma galeria de passagem. E, mesmo em momentos anteriores, somente os artistas acadêmicos realizavam com freqüência exposições individuais. Há registros de que, somente no fim da década de 1950, oito ou nove galerias existiam e se dedi-cavam à arte moderna.

O circuito de exposições nacionais, em especial o paulistano, era bastante li-mitado ainda no início da década de 1930. Os espaços institucionais destinados às manifestações culturais eram reduzidos ao Museu Paulista (1893), ao Liceu de Artes e Ofícios (1882), ao Teatro Municipal (1911) e à Pinacoteca do Estado (1905), a qual viria a ser o primeiro museu de arte da cidade. Espaços como o Pavilhão Moderno de d. Olívia Penteado, a Casa Modernista, a Sociedade Pró-Arte Moderna (SPAM), o Clube de Arte Moderna (Clubinho) e ou-tros seriam formados ao longo da década – mesmo assim, não eram locais institu-cionais, mas criados pelos próprios artis-tas e intelectuais ligados a esses espaços (Arantes, 1995:350 e seguintes).

A organização de exposições ocorria em diversos espaços particulares e de trânsito intenso, tais como lojas, hotéis, salas de recepção dos jornais e revistas

como diferenciação das classes sociais:

O mercado de arte é um dos que mais claramente expressam o que significa na sociedade individualista, o fenômeno da acumulação de capital e o sistema de símbolos de prestígio em que se afirma a luta pelo status nesta sociedade8.

Com argumentações desse tipo é possí-vel ver que o crítico Mário Pedrosa atuou de forma peculiar dentro do ambiente sócio-cultural em que viveu, dirigindo sua proposta crítica para o desenvolvimento da compreensão de uma Arte que afetasse to-dos os setores da sociedade. O crítico acre-ditava no estabelecimento de uma atitude na qual a relação entre Arte e sociedade fosse dialética (Pedrosa, 1980:22).

O mais relevante é notar que diferenças entre Mario Pedrosa e Mário de Andrade ocorrem no engajamento em movimentos artísticos (Concretismo e Modernis-mo). Mario Schenberg não está tão preocupado com a legitimação dos movimen-tos – até participou desse processo – mas a prioridade estava direcionada à questão da criação, como se vê, por exemplo, em sua dedicação à arte primitiva.

Essas propostas críticas mais detalha-das (Milliet, Mário de Andrade, Mário Pedrosa e outros) são apenas exemplos da intensa discussão e criação de teorias que cercavam o panorama artístico brasileiro, entre os anos de 1940 e 1980; porém, é conveniente lembrar que, dentro desse período, muitas outras reflexões artísticas podem ser destacadas, igualmente.

Catálogo como lugar da crítica

Antes de entender qual o papel do catálogo de exposições na divulgação de novos artistas e de novas propostas

Mario Schenberg amenizava o lado pedagógico da crítica para estabelecer uma relação comunicativa

8 Dono de uma vida atribulada pelas perseguições polí-ticas e pelas constantes viagens, Mário Pedrosa mostra a busca nacional e internacional pelo desnudamento das questões artísticas e sociais do país. De 1927 a 1929, Mário Pedrosa foi aluno de Filosofia na Universidade de Berlim, onde pela primeira vez travou conhecimento com as teorias gestálticas, sendo profundamente influenciado pelas teorias formais. Manteve contatos com expoentes do abstracionismo internacional, como: Alexandre Calder, Henri Moore, Max Bill e outros.

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ou salas alugadas. Em geral, lugares de passagem de público. O lugar privile-giado era o triângulo central da cidade, composto pelas ruas Direita, São Bento e XV de Novembro. Lá ficavam as lojas mais sofisticadas e as redações dos órgãos de imprensa mais expressivos como O Estado de S. Paulo, o Diário Popular, o Pirralho, Revista Feminina, Fanfulla e A Cigarra (Arantes, 1995:350 e seguintes).

Aos poucos, a localização central iria perdendo o glamour, ao passo que o número de galerias particulares e espaços reservados às exposições aumentaria gra-dativamente. A criação do Museu de Arte de São Paulo (MASP) e do Museu de Arte Moderna (MAM) somente aconteceria no fim da década de 1940, contribuindo para a solução do problema da divulgação nacional e internacional da arte moderna. Em meados da década de 1950, a iniciativa de estruturação do MASP e do MAM gera-ria uma nova necessidade para a dinâmica da arte nacional: as Bienais. Para seus organizadores, a Bienal deveria cumprir dois objetivos fundamentais: colocar a arte nacional, não em confronto, mas em intenso contato com a arte do resto do mundo e, simultaneamente, conquistar para São Paulo a posição de centro artís-tico mundial.

As montagens expositivas seguiram, por muito tempo, os padrões franceses. As obras eram dispostas aleatoriamente e de modo acumulativo – quanto maior o número de obras melhor, mesmo com o risco de sobreposição. A venda era o objetivo principal da organização das mos-tras; por essa razão, havia a necessidade de expor um número elevado de obras. A exposição em vitrines de lojas ou em redações de revistas e jornais fornecia um grau de sofisticação ao ambiente e, simultaneamente, cumpria a função de ex-por as obras aos potenciais compradores (Arantes, 1995:350 e seguintes).

Geralmente, eram os próprios artistas que organizavam suas mostras. O conceito

de curadoria ainda não estava totalmente desenvolvido e, com o decorrer dos anos, as experiências curatoriais americanas e alemães foram sendo incorporadas ao exemplo de disposição de obras francês, tornando o espaço mais racionalizado e menos caótico.

Jornais e revistas atraíam o público às exposições, através de seus cronistas muitas vezes ligados aos artistas. Os co-mentários, em sua maioria mais literários do que estéticos, descreviam as obras e os acontecimentos sociais da inauguração. A mudança desse modelo de divulgação ocorreu definitivamente com as propostas modernistas; artistas e críticos encontra-ram na imprensa o espaço para expor e debater suas idéias, inclusive com relação às tendências artísticas.

Nesse contexto, o catálogo de exposi-ção deixava de ser a brochura com a lista de obras e preços e adicionava uma breve apresentação do trabalho e do artista. A partir do momento em que os artistas sentiram a necessidade de expor suas re-flexões, o catálogo adquiriu uma certa im-portância, pois permitia aos organizadores da mostra explicar suas propostas, lançar interpretações sobre as obras expostas e apresentar o artista ao público.

As inserções nesses catálogos eram pouco valorizadas, uma vez que não atingiam o mesmo número de pessoas, comparando com os jornais de maior circulação. Contudo, serviam de fonte de informações para a imprensa especializa-da, jornais e revistas, dos quais por vezes os próprios participantes das exposições faziam parte.

A confecção de manifestos valorizou as reflexões estéticas presentes nesses catálogos, pois indicavam os caminhos propostos pelos movimentos e grupos ar-tísticos que se formaram a partir de 1930. Para o artista, o catálogo de exposição era um instrumento de divulgação fundamen-tal, porque, além do registro, significava a legitimação teórica de sua Arte.

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O catálogo passou a ser um dos passa-portes para a entrada no circuito artístico, tanto que artistas jovens necessitavam de um bom texto em seus catálogos de ex-posição para que sua empreitada tivesse êxito. Alice Brill, entre outros artistas, mencionou que Schenberg não se negava a escrever nos catálogos de iniciantes. O pa-gamento era muitas vezes doação de uma obra, indicando que não havia rendimento na elaboração desses textos. No mesmo momento, críticos renomados possuíam com o instrumental a imprensa de grande circulação e, por esse motivo, obtinham maior projeção na divulgação da Arte.

Mario Schenberg, talvez, nunca se tenha considerado um crítico de arte, no sentido

sistemático do termo, por-que não tinha órgão de im-prensa regular à mão como outros críticos, entre eles: José Geraldo Vieira (Folha de S. Paulo), Geraldo Ferraz (O Estado de S. Paulo), Quirino da Silva (Diário de São Pau-lo), Mário Pedrosa (Jornal do Brasil, Correio da Manhã e outros). (A Gazeta de São Paulo, 10.06.72, p.9).

Geralmente por estarem envolvidos com a literatura ou algo semelhante como

a poesia ou as ditas ciências humanas, os críticos de arte eram cooptados para o trabalho jornalístico (sendo o contrário também verdadeiro), tendo suas refle-xões artísticas expostas periodicamente em lugares demarcados nas colunas especializadas em arte. Schenberg é uma exceção, pois não estava comprometido profissionalmente com nenhum veículo de imprensa. Sua remuneração periódica vinha dos seus trabalhos prestados à Uni-versidade. Não era um literato, no sentido comum, pois sua atuação mais marcante estava no campo das ciências exatas.

O reconhecimento como crítico veio por parte dos artistas que reivindicavam a

presença de Mario Schenberg como mem-bro do júri das Bienais de São Paulo – os mesmos artistas que nos primeiros passos da carreira foram acolhidos pelo crítico e contaram com uma reflexão teórica do intelectual em seus catálogos. Essa atitude dos artistas demonstra o livre trânsito que o crítico possuía no meio artístico.

Entre os textos encontrados na Bi-blioteca do Centro Mario Schenberg de Documentação da Pesquisa em Artes – ECA USP, pode-se encontrar críticas em catálogos de artistas hoje consagrados tais como Ivald Granato, Éster Grinspum, Dja-nira Volpi e muitos outros. Mas também é possível encontrar críticas em catálogos de jovens promessas que não se concretiza-ram, tais como Betty King, Nadir Mitoso, Mariselda Bumjny e outros.

Desse material, é possível verificar que o incentivo à arte era o principal mote do crítico. Nessa prática, os artistas que mais se beneficiaram foram os primitivistas, pois nas concepções do crítico todos mereciam atenção e reconhecimento, prin-cipalmente os pertencentes aos estratos sociais mais humildes.

Deve-se lembrar que artistas novos e, principalmente, os primitivistas não possuíam forte apelo na mídia. Por essa razão, a inserção de críticas de arte, tra-tando de seu trabalho, era praticamente nula. Também se justifica, nesse ponto, a importância do catálogo de exposição na carreira desses iniciantes e primitivistas.

Os lugares da divulgação da arte, para Schenberg, eram meios especiali-zados, como museus, ateliers, galerias, catálogos, álbuns de artistas e o próprio ambiente universitário. Esses lugares eram familiares ao crítico, uma vez que suas experiências demonstraram que a Arte se conhecia nesses espaços e deveria ser propagada a partir deles. A áurea universi-tária também auxiliava nessa perspectiva, pois os artistas sentiam-se envolvidos pela personalidade de Schenberg e também por sua excelência intelectual.

O circuito de exposições nacionais, em especial o paulistano, era bastante limitado ainda no início da década de 1930

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9 A documentação referente a esta pesquisa está dispersa e restrita às suas inúmeras fontes originais, sendo difícil viabilizar o trabalho de consulta, avaliação ou divulgação. O Centro Mario Schenberg de Documentação da Pesquisa em Artes – ECA USP é o propagador do trabalho e do perfil desse crítico brasileiro, através de publicações e de eventos como: seminários Schenberg – Arte e Ciência, exposições Brincando com Arte, Coleção Schenberg - Arte e Ciência, participações em reuniões culturais e científicas (SBPC, con-gressos de Arte e Ciência), eventos artísticos e científicos.

O ato de refletir sobre a Arte era caro a esse crítico, que realizava essa tarefa de ma-neira acadêmica, mas sem excluir um modo pessoal de encarar as diversas tendências artísticas das quais tomava conhecimento nos museus, ateliers e galerias. A inserção de suas críticas de arte nesses catálogos e álbuns de artistas era o resultado dessa percepção e seu veículo de propagação.

O reconhecimento como crítico de arte não poderia acontecer através de publica-ções em jornais ou revistas especializadas, pois Mario Schenberg não dispunha de acesso livre a esses meios de comunicação, primeiro porque era um físico e depois por-que era um incontrolável marxista, mesmo para os colegas de doutrina. Os preconceitos existentes entre os literatos eram constan-temente divulgados através da imprensa, impossibilitando a atuação de Schenberg.

As trajetórias de Sérgio Milliet, Mário Pedrosa e tantos outros demonstraram a firme posição política desses críticos – sem com isso prejudicar de maneira decisiva seu relacionamento com a imprensa. Porém, ao contrário desses intelectuais, Schenberg reunia especificidades que não colaboraram na veiculação periódica de suas idéias em revistas ou jornais.

Na carreira como crítico de arte foram escassos os artigos divulgados por inter-médio da imprensa. Como já mencionado, a maior parte de sua produção foi registra-da nos catálogos das exposições em que colaborou, mas o formato original também é predominante, não se tendo a certeza da impressão dessas críticas em outros catálogos ou veículos de divulgação.

No episódio das Bienais, é possível perceber que sua força como crítico de arte não dependia de seu trânsito entre os órgãos de imprensa, mas sim do circuito das artes, um circuito do qual Schenberg acompanhou o desenvolvimento, pois, quando realizou a exposição de Volpi, esteve nas galerias e salas particulares, or-ganizando a mostra e o catálogo, atuando como produtor, curador e crítico.

Em 1967, na Bienal, os artistas exigi-ram a presença de Schenberg no júri. São os pintores e escultores que reconhecem Schenberg como crítico de arte, pois esses mesmos artistas diziam que ele podia descrever aspectos de suas obras para eles não perceptíveis, ou seja, o crítico de arte compactuava com o artista em sua experiência pictórica ou escultórica, independentemente dos artigos em jornais ou em revistas especializadas.

A crítica como incen-tivo e mediação: “Não ter pressupostos”

Temos de ter uma visão prospectiva de Ma-rio Schenberg. Sua crítica de arte era uma ‘não-crítica’, pois descartava a possibilidade de uma axiologia, ou seja, ele tentava fazer uma crítica, mas a sua paixão pela arte vinha primeiro; tudo era belo, e nada poderia ser feio, ele não tinha caracterizações categóri-cas, critérios simplesmente de julgamento para montar uma escala de valores, e nós do grupo concreto de São Paulo, muito ligados à Arte Concreta, às artes visuais como Wal-demar Cordeiro, Maurício Nogueira Lima e outros, curiosamente mesmo depois da poesia concreta, tentávamos nos vincular a uma arte de alta definição ligada à geome-tria. Enfim, a questão era colocar problemas de natureza visual e tentar resolvê-los eli-minando tanto quanto possível a idéia do arbitrário da chamada intuição (Pignatari in Ajzenberg, 1996:91).

A carreira como crítico de arte de Schenberg9 foi iniciada no ano de 1942, quando escreveu pela primeira vez sobre Arte, enfatizando o paganismo na poética

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visual de Bruno Giorgi na Revista Acadê-mica. Ao longo da década de 1940 e 1950, passou a escrever sobre Alfredo Volpi, José Pancetti, Bruno Giorgi e Figueira Jr., sem exercer de forma sistemática e elaborada a crítica de arte. Estabeleceu também um relacionamento com a crítica paulistana, tornando-se amigo de Louri-val Gomes Machado, de Sérgio Milliet, Maria Eugênia Franco, Ciro Mendes, Paulo Mendes de Almeida, Osório César, Jorge Amado e Oswald de Andrade.

Sua crítica seria diferenciada de seus contemporâneos? Como exemplo, é possí-vel citar a opinião da artista plástica Alice Brill, que traçou uma comparação rápida e descompromissada entre Schenberg e

Geraldo Ferraz:

Geraldo Ferraz sempre foi um crítico muito temido, era mui-to rigoroso e muito exigente. Também usava uma linguagem mais floreada, menos direta do que a de Mário. Schenberg escreveu (...) com muita eloqü-ência e generosidade (Brill in Ajzenberg, 1996:40).

Por não ser um crítico de arte tradicional, parece que Schenberg possuía muito mais liberdade em sua escrita do que os literatos

tradicionais. Sofreu hostilidades muitas vezes por possuir seu estilo próprio e despojado dos cânones acadêmicos. Observe o que diz Antônio Gonçalves Filho, na época do lançamento do livro Pensando a Arte, em 1988: “(...) como crítico de arte é uma figura controvertida, que distribui elogios como incômoda facilidade, quase sempre errando em seu prognóstico (...)” (Gonçalves Filho, 19. mar.1988, D4).10

Porém, comentários dessa espécie não abalam a concepção de que Schenberg realizou mais do que análises estéticas. Fixou uma forma de divulgar a arte e novos artistas. O crítico de arte, ao invés

de julgar as obras plásticas, estabelecia relações pessoais com as obras e seus criadores e, através desse mecanismo pes-soal, conseguia mediar sensações entre obra-artista-público. Logo, seu procedi-mento perante o ato crítico é diferente ao de Sérgio Milliet, que creditava o sucesso da boa crítica a ação de ponderar sobre as obras de arte.

Há outras opiniões que convergem para a postura crítica adotada por Mario Schenberg, como a de Amélia Toledo:

Acho que é importante quando o artista consegue ter com o crítico um contato que frutifica, porque, na maior parte das vezes, o artista se sente um pouco perseguido, castigado, como se fosse um criminoso em estar arriscando a sua criatividade, arriscando invadir um campo onde existem pressupostos. Com o Mario, não sinto que isso tenha ocorrido. ‘A grande riqueza’ dele foi justamente não ter pressupostos na sua relação com a produção artística (Toledo in Ajzenberg, 1996:35).

A artista plástica Eva Fernandes vai um pouco além em suas conclusões sobre o modo de fazer crítica de Schenberg:

Havia - e provavelmente ainda há - quem o julgasse ‘parcial’ como crítico. Sem dúvida, era parcial, mas sua parcialida-de era muito larga, abrangia muito, não era dogmática e fixada numa corrente só. Professor que era - e penso que se compreendia como instigador, como pro-pulsor de talentos - procurava encorajar, abrir perspectivas. Numa época em que era comum discutir Arte em termos de escolas e técnicas, analisando superfícies, planos estruturados dessa ou daquela maneira, Mario via a personalidade do artista como ponto nodal. O seu prestí-gio de intelectual de larga visão, o seu pensamento universal, ao interessar-se por determinado artista, contribuía para a autoconfiança, estimulando-o a pros-

Em 1967, na Bienal, os artistas exigiram a presença de Schenberg no júri

10 “(...) um falocrata, na expressão de alguns amigos mais íntimos - não foi, certamente, muito criterioso ao promo-ver alguns medíocres artistas plásticos que hoje lotam as galerias com monstruosidades pictóricas (...)”.

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11 “De acordo com Eva Fernandes, a atuação do conhe-cido cientista no campo estético ou, mais precisamente, no meio artístico, foi muitas vezes contestada. Contes-tada, de um lado, por apoiar as correntes não-figurati-vas, contrariando a linha ‘realista’ recomendada pela orientação oficial comunista; de outro lado, por procurar um sentido, um sentimento profundo na obra, conteúdo, o que, dessa maneira, não era aceito pelo ‘formalistas’. Por esta sua posição, por assim dizer ‘sem amarrações’ independente do ‘mercado de arte’, nos longos anos em que pude acompanhar sua atuação no meio artístico, sempre lhe admirei o empenho”.

seguir em seu caminho (Fernandes in Ajzenberg, 1996:84).11

O incentivo à arte é a questão central da proposta crítica scheberguiana, pois não é possível negar a importância de artistas como Alfredo Volpi, Teresa D’Amico, Mira Schendel, Cláudio Tozzi e muitos outros que tiveram seus talentos reconhecidos, primeiro, por Mario Schenberg. Será que esses artistas podem ser considerados como “erro de prognóstico”? As trajetó-rias artísticas e históricas desses artistas respondem que não. A atitude de apoio a todos os artistas que o procuraram não significa, de forma alguma, ausência de criticidade. Vários artistas testemunham que Mario Schenberg sempre foi uma fonte inesgotável de trocas de experiências e elogios, pois Schenberg acreditava que qualquer um que conseguisse viver de arte num país como o Brasil seria um herói - digno de reconhecimento. Alguns físicos, amigos seus, dizem que Mario Schenberg era muito mais complacente com os artis-tas do que era com os cientistas (Muzi in Goldfarb; Guinsburg, 1984:23-28).

Ser comunista era outro fator que com-plicava a posição de Mario Schenberg como crítico de arte. Schenberg, militante do Partido Comunista, era líder de uma célula da qual participavam várias personalidades ligadas ao mundo intelectual e artístico, como: Maurício Nogueira Lima, Jorge Mau-tner, Dulce Maia, entre outros. Porém, as orientações do Partido com relação à arte politicamente engajada não convergiam com as opiniões do crítico de arte, que apoiava as correntes não-figurativas, con-trariando, desse modo, a linha do realismo social recomendada pelo PC. A orientação oficial stalinista não influenciava, de forma alguma, a concepção estética do crítico e líder comunista (Oliveira in Ajzenberg, 1996:135-136). Como já foi visto, Schenberg discordava em muitos pontos das orienta-ções do Partido e este era mais um deles.

Ao retomar as idéias de Décio Pignatari, é possível perceber o quanto o Grupo Con-

creto lutou para alijar a intuição do processo criativo em arte, tendo este elemento como “arbitrário”. Para Schenberg, este valor “ar-bitrário” chamado intuição é justamente o ponto central da criação artística. Por essa discordância, em alguns momentos, as posições de Schenberg bateram de frente com as defendidas pelo Grupo Concreto de São Paulo. Como já foi visto, Sérgio Milliet também discordava de outros pontos do Concretismo paulista, que possuía Walde-mar Cordeiro como seu principal teórico e defensor. Os embates de Cordeiro não se deram somente com Milliet, mas também com Schenberg e outros críticos de arte.

Após os anos das primeiras experiên-cias, os textos críticos multiplicaram-se e o contato com o mundo artístico tam-bém. Na década de 1950, a atividade de Schenberg como crítico conheceu uma pausa, cedendo a prioridade para tarefas científicas. Foi o momento, também, em que atuou como diretor do Departamento de Física na Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo. Nota-se que a crítica de arte como função principal real-mente tomou fôlego após seu afastamento da Universidade, em 1969.

Como propagador de idéias não se pode deixar de levar em consideração os contatos que Schenberg travou com várias personalidades de sua época. O universo das relações pessoais apresentado pelo crítico de arte foi imenso e ricamente povoado por experiências de vida. Todos os que conviveram com ele são marcados pelas longas e continuadas conversas, onde

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MarioSchenberg–CríticadeArteeComunicação

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12 A arte passa a funcionar para esses artistas de van-guarda como a formulação de McLuhan: “o meio é a mensagem”, pois o meio é que permite e molda a possibi-lidade de transformação, o conteúdo (mensagem) não tem o mesmo poder transformador que tem o meio, pois muitas vezes mudam os meios, porém não mudam as mensagens. O que está sendo questionado aqui é a relação do homem com essas mensagens, de que forma e como ele entra em contato com elas, e é o meio que vai mediar essa relação, será o determinador do modo de conhecer o mundo.

as trocas culturais eram intensas. Vários ar-tistas reconhecem, em seus depoimentos, as saudades das reuniões no apartamento da rua São Vicente de Paula. Muitos ex-alunos - hoje cientista ou profissionais de diversas áreas - admitem a importância das discussões compartilhadas com Schenberg para suas vidas. Ao refletir sobre a figura de Schenberg como comunicador, pode-se argumentar que seus contatos orais tiveram ressonância no universo cultural do país.

Lígia Clark forneceu um depoimento que ilustra bem a presença/influência de Schenberg sobre os novos artistas:

A influência que ele teve na minha per-sonalidade foi enorme. Eu, sem cultura nenhuma, sugava todas as conversas que

com ele tive, incorporando vivências de seu saber e, brin-cando, dizia: ‘meus ouvidos foram fecundados por dois seres extraordinários, Mario Schenberg e Mario Pedrosa (Goldfarb, 1994:74).

Schenberg integrou muitos artistas novatos aos meios culturais, pois sua rede de relações sociais era vasta. Agiu, também, como um mecenas, porque muitos desses artistas mencionam que vendiam suas produ-

ções ao professor. A coleção de Mario Schenberg era acrescida, também, pelas doações - pois em troca das críticas os artistas doavam uma ou mais obras.

Como já visto, Schenberg possuía uma formação científica, porém não é possível descartar seus esforços nos estudos artísti-cos; no exercício de suas reflexões em Arte há análises com embasamento científico. Essa característica é um dos elementos que transformam a crítica schenberguiana sin-gular durante o período de sua formulação. Porém, há outros fatores na composição das críticas de Schenberg que igualmente podem ser identificados como pontos de distinção, na trajetória da crítica de arte brasileira. Como exemplo, pode-se citar o

uso da intuição como conceito artístico e científico no processo de criação ou, ainda, a filosofia oriental como embasamento das questões teóricas e estéticas. Todos esses elementos podem ser identificados já no início de seu exercício crítico.

O próprio período de atuação da crítica schenberguiana, pelo menos no momento em que ela se torna mais freqüente, os anos 1950 a 1970, foi de transformação na arte, pois coincide com a emergência das van-guardas brasileiras. Época em que velhos cânones da Arte, como o suporte, as técni-cas clássicas e a forma eram características artísticas questionadas e reinventadas por artistas extremamente intelectualizados que procuraram um novo significado e uma nova postura diante do fazer artístico. Era o período do questionamento da arte por ela mesma. A pergunta que norteava as produções era: Arte para quê?

Os artistas expunham suas propostas e muitos criavam teorias sobre suas obras e poéticas visuais, mas o papel do crítico de arte ainda era fundamental, pois o ambiente artístico, mais do que nunca, necessitava de um intermediário entre artista e público. A significação da obra não era totalmente clara aos espectadores. Muitas obras traziam propostas, mas era preciso a sua decodificação e legitimação. A arte tornou-se, nesse instante, o meio e a mensagem – algo bastante hermético.12 Para o grande público, as rupturas foram enormes, pois acompanhar as inovações passou a ser assunto para pessoas espe-cializadas ou iniciadas em arte. O papel do crítico era, essencialmente, fornecer dados para essa iniciação.

Por não ser um crítico de arte tradicional, parece que Schenberg possuía muito mais liber-dade em sua escrita

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Referências bibliográficas

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Perspectiva, 1984.GOLDFARB, José Luiz. Diálogos com Mario Schenberg. São Paulo: Nova Stella, 1988.GOLDFARB, José Luiz. Voar também é com os homens: O pensamento de Mario Schenberg. São

Paulo: EDUSP, 1994.GONÇALVES, Lisbeth Rebollo. Sérgio Milliet, crítico de arte. São Paulo: Perspectiva, Edusp, 1992,

(Estudos; 132).PEDROSA, Mário. Arte Culta e Arte Popular. Arte em Revista: questão popular. v 2, nº 3, São

Paulo: Kairós, 1980.SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos frementes

anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.ZANINI, Walter. A Arte no Brasil nas décadas de 1930-40: o Grupo Santa Helena, São Paulo:

Nobel/EDUSP, 1990.

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Comunicação: Meios e Mensagens

Mônica PradoMestre em Comunicação Social pela Universidade de Brasília

Docente do Curso de Comunicação Social da UniCEUB [email protected]

Resumo

As práticas jornalísticas estão em processo de mudança por conta das novas tecnologias. No entanto, este trabalho contesta a idéia de que os blogs já configuram um espaço de prática de um jornalismo diferente e independente da imprensa tradicional, no Brasil. O objetivo deste artigo é analisar a prática jornalística do Blog do Noblat. Demonstra-se, que a produção do conhecido blog jornalístico brasileiro é pautada, em grande parte, pelos meios de comunicação de massa já existentes, principalmente os jornais impressos. A análise dos dados aponta que, no total, o Blog publicou mais reproduções de veículos de informação do que posts produzidos pela equipe, durante o período analisado.

Palavras-chave: Blogs, Definidores Primários, Jornalismo online, Internet, Blog do Noblat.

Abstract

Journalistic practice is in a process of change due to new technologies. Nevertheless, this paper goes against the idea that blogs are already configuring a space for the practice of journalism that indeed differs from the traditional press in Brazil. The goal of this paper is to analyse the journalistic practice of Noblat’s Blog (Blog do Noblat). The intention is to demon-strate that the production of the most important Brazilian journalistic blog goes mostly along the lines of the main mass media already in place, mainly the newspapers. The analysis demonstrates that there was more reproduction of stories from traditional media than posts produced by the owner of the Blog or by its team of journalists.

Key words: Blogs, Primary definers, Online journalism, Internet, Noblat’s Blog (Blog do Noblat).

Resumen

Las prácticas periodísticas están en proceso de cambio por cuenta de las nuevas tecnologías. Sin embargo, este trabajo con-testa la idea de que los blogs ya configuran un espacio de práctica de un periodismo diferente e independiente de la prensa tradicional en Brasil. El objeto de este artículo es analizar la práctica periodística del Blog del Noblat. Se demuestra que la producción del conocido blog periodístico brasileño esta pautada, en gran medida, por los medios de comunicación de masa ya existentes, principalmente los periódicos impresos. El análisis de los datos señala que, en el total, el Blog publicó más reproducciones de vehículos de información que posts producidos por el equipo durante el período analizado.

Palabras clave: blogs, definidores primarios, periodismo online, Internet, Blog del Noblat.

Produção e reprodução de informações no Blog do Noblat1

Production and reproduction at Blog do Noblat

Luiz Humberto VianaGraduando em Comunicação Social pela UniCEUB

Bolsista do Programa de Iniciação Científica do UniCEUBluiz01bertu@ gmail.com

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1 Este trabalho foi desenvolvido no âmbito da disciplina Jornalismo Contemporâneo do curso de Comunicação Social com habilitação em Jornalismo do Centro Univer-sitário de Brasília – UniCEUB, em abril de 2008.2 Post é o nome dado aos textos publicados no blog.

Introdução

internet é o meio que veio para revolucionar o modo como os in-divíduos se comunicam no mun-

do. No Jornalismo, as alterações chegaram e ainda estão em curso. Jornais, revistas, televisões e rádios passam por um pro-cesso de migração, saem das plataformas tradicionais e criam um modelo híbrido visando às telas de computadores inter-conectados pelo planeta. Mesmo com as mudanças acontecendo no momento em que este texto é escrito, um novo meio de produzir e difundir informações na rede mundial de computadores ganha corpo e se consolida: os weblogs.

Os blogs são páginas da internet utilizadas para se publicar conteúdos na rede. A palavra é a abreviação do termo weblog. Log, na lín-gua inglesa, significa diário e web é a menção ao formato World Wide Web (WWW). Os weblogs seriam, então, um tipo de diário pessoal mantido na internet. O sucesso desta nova ferramenta está ligado à facilidade em se criar um. Na rede mundial de computado-res existem diversos sites es-pecializados em fornecer ao

usuário blogs prêt-à-porter, ou seja, prontos para uso. Em questão de minutos, o indiví-duo já tem acesso à blogosfera.

Levantar o número exato de blogs em funcionamento na rede é um trabalho con-denado à imprecisão. No entanto, segundo pesquisa realizada pelo site Tecnorati (2008), há mais de 111,6 milhões de blogs no mun-do. De acordo com o relatório O estado da blogosfera, produzido em 2006 por David Siffry e publicado no site já citado, o número de blogs dobra de tamanho a cada seis meses e meio: uma média de 75 mil novos blogs por dia (Ferrari, 2006). O monitoramento destes blogs apontou que os assuntos mais recorrentes são política e governo.

AÉ interessante notar os resultados da

pesquisa Ibope/NetRatings sobre os leito-res de blogs no Brasil. Os dados mostram que 45% do internautas têm o costume de acessar blogs. A maioria deles está na faixa etária entre 35 a 49 anos. No entanto, o per-fil dos blogueiros demonstra que a maior parte deles tem menos de 18 anos. O estudo sinaliza para o fato de que o maior número de blogs brasileiros está concentrado na região Sudeste do Brasil. São 65% loca-lizado nessa área geográfica. Reportagem publicada no jornal O Estado de S. Paulo, intitulada Quase a metade dos internautas lê blogs, aponta a utilização de blogs pelas mídias tradicionais: emissoras como a Rede Globo já possui 20 blogs ligados aos seus programas (Martins, 2008: L-10).

O Blog do Noblat publicou o primeiro post2 no dia 20 de março de 2004 e era hospedado no site do jornal O Dia, no qual o jornalista Ricardo Noblat assinava uma coluna dominical. Noblat utilizava o blog para publicar notícias que ficavam “ve-lhas” durante o percurso entre o começo da semana e o dia de publicação da coluna. Em maio do mesmo ano, a página do jornal saiu do ar e o jornalista passou a publicar suas mensagens no portal IG, que fornecia blogs gratuitos para qualquer internauta. Ao perceber que o número de acessos à sua página pessoal era grande, Noblat propôs ao portal que seu serviço fosse remunera-do. O pedido foi atendido.

No ano de 2005, o blog aumentou ainda mais a popularidade embasado nos posts que versavam sobre a crise política, conhecida como “escândalo do mensalão”. Os acessos chegaram à cifra de um milhão em julho do mesmo ano. O sucesso foi tamanho que o espaço ficou conhecido como o “Blog da crise”. Apro-

Em questão de minutos, o indivíduo já tem acesso à blogosfera

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madores de opinião – como os jornalistas da imprensa tradicional – perdem espaço, parcialmente, para cidadãos comuns que utilizam as novas tecnologias como estratégia de difusão de acontecimentos, formando um novo tipo de formadores de opinião (Lima, 2007: 21-22).

Essa transformação coloca em cheque o papel do jornalista no século XXI. Colo-car um blog no ar é muito simples. Sites especializados como o Blogger, UOL e Ter-ra fornecem a possibilidade de se criar um weblog em questões de minutos. Assim, a facilidade na elaboração de um novo canal gera, conseqüentemente, uma profusão de novos atores. Atores estes que não são necessariamente jornalistas com registros profissionais e/ou curso superior. Desta maneira, o jornalista perde o monopólio da informação. Deixa de possuir exclusi-vidade na mediação entre o que dizem as fontes e o público.

Outra constatação importante é que a internet, levando-se em conta suas limi-tações3, compõe um cenário de imensas possibilidades, ponto que a permite ofe-recer grande diversidade e pluralidade de informações. Sobre este tópico, Bernardo Kucinski (2005: 80) argumenta que a internet barateia o custo de produção e fragmenta o espaço midiático com grande intensidade, devolvendo, assim, a autono-mia ao produtor de informação. Seguindo este princípio, pode-se argumentar que a internet é a mídia com potencial para a realização plena e eficaz da autonomia na prática jornalística.

Os apontamentos até aqui discutidos levam à questão de que as novas mídias possuem potencial para realizar uma ope-ração de contra-agendamento da imprensa

veitando-se do sucesso da página, o jornal O Estado de S. Paulo convidou o jornalista para trabalhar no seu portal da internet. A transação aconteceu em outubro de 2005. Em primeiro de janeiro de 2007, o Blog do Noblat migrou para o portal O Globo online. E lá permanece desde então. Atualmente, é o blog jornalístico mais acessado do país.

Qual e como é o comportamento edi-torial do Blog do Noblat? O Blog do No-blat é um produtor ou um reprodutor de conteúdos na blogosfera? Para responder estas perguntas, acompanhou-se o Blog do Noblat das 0h do dia 03/03/2008 às 23h59min do dia 05/03/2008. Os dados foram categorizados com objetivo de se descobrir o tipo de produção (própria ou não) e as fontes das reproduções.

Weblogs jornalísticos

Os blogs surgem como uma nova forma de se exercer o Jornalismo após o fim da década de 1990. É incontestável que as novas mídias têm a possibilidade de alterar a atual maneira de se produzir e difundir informações. Como demonstra a história da imprensa, os avanços tecnológicos geram mudanças na prática jornalística. A prensa de tipos móveis, inventada por Gutenberg no século XV, permitiu a produção de textos em série, barateando a produção de jornais e livros. Atualmente, percebe-se que os blogs têm poder para não só aumentar, de forma exponencial, a oferta de informa-ções na sociedade, mas também alterar a estrutura do Jornalismo.

Uma das revoluções mais aparentes da blogosfera é a multiplicação de canais e atores envolvidos. Os acontecimentos na área apontam para a transformação dos consumidores de informação em potenciais produtores de informação, promovendo um canal contrário à agenda imposta pelos veículos de comunicação tradicionais. Este fenômeno traz dificul-dades e inovações à mídia. Antigos for-

3 Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísti-ca (IBGE), no ano de 2007, indicam que somente 32,1 milhões de brasileiros têm acesso à internet de algum lugar: casa, trabalho e de centros de acesso públicos ou privados. O número corresponde a 21% da população maior de dez anos de idade.

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tradicional, escrita ou eletrônica. Entende-se contra-agendamento como a elevação, por meio das novas tecnologias, ao espaço público de debate, representado nas socie-dades modernas pelo espaço midiático, assuntos e temas que são ignorados pelas coberturas dos veículos de comunicação, aos quais se convencionou chamar de “grande imprensa”. A partir desta pre-missa, pode-se defender, portanto, que os blogs têm potencial para representar uma quebra no monopólio da informação exercido pela mídia tradicional. O autor norte-americano Hugh Hewitt (2007) aponta, entretanto, que a disputa entre blogs e mídia tradicional ainda não ocorre em pé de igualdade. A mídia convencional

larga na frente com vanta-gens econômicas, estrutura de repórteres e editores, e vantagens simbólicas, como a credibilidade construída ao longo dos anos.

Além da multiplicação de canais de informação, a internet oferece o recurso da interatividade. No caso dos blogs, o consumidor de informações pode interferir, comentar, criticar e, até mesmo, corrigir o texto ins-tantes depois de tê-lo lido.

Tal característica coloca duas dificuldades aos jornalistas. A primeira impõe ao pro-fissional a necessidade de estar sempre atento aos comportamentos e opiniões dos leitores. A segunda dificuldade está ligada a anterior: os blogs não somente contribuem para quebrar o monopólio da informação, mas também desfazem o fluxo unidirecional das notícias. A possibilidade de interação entre leitor e jornalista permite ao primeiro adicionar informações aos posts publicados. Nes-ses novos espaços, o cargo de editor, em certa medida, é compartilhado entre o jornalista-blogueiro e seu público leitor, uma vez que os últimos apontam erros e

O Blog do Noblat é o blog jornalístico mais acessado do país

falhas, além de questionarem as opções do jornalista na escolha das fontes, persona-gens, temas e fatos em destaque.

Limitações tradicionais do Jornalis-mo, principalmente do impresso, como o deadline e o espaço físico das matérias tornam-se obsoletos quando os blogs são a plataforma em questão. O deadline no blog é definido pelo próprio jornalista, já que é ele quem determina a hora em que o post será publicado. A notícia em tempo real não é função do blogueiro, espera-se dele, então, uma informação mais pormenorizada e mais trabalhada, não algo no modelo hard news que pode ser encontrado em portais de notícias on-line. O espaço também é definido pelo próprio profissional, mas de uma maneira diferente do da imprensa tradicional. Antes o repórter brigava para encaixar sua matéria em centímetros/minutos. Hoje, cabe ao repórter-blogueiro oferecer o maior número possível de informações, através de hyperlinks, fotos, infográficos e quantos mais recursos quiser e for capaz. O espaço na web é infinito. Desta forma, é possível argumentar que as rotinas produtivas dos blogs apontam para uma nova prática no momento de produzir e difundir informações.

Segundo dados da pesquisa Ibope/Ne-tRatings, em 2007, os três blogs mais aces-sados no Brasil tratam de política. As pá-ginas são administradas, cada uma, pelos jornalistas Fernando Rodrigues, Josias de Souza e Ricardo Noblat. O curioso nesta constatação é que os referidos blogs estão hospedados, respectivamente, nos portais UOL, Folha online e O Globo online. Os dois primeiros portais pertencem ao grupo Folha da Manhã, responsável também pela administração do jornal Folha de S. Paulo, e o último é o portal de notícias do jornal impresso O Globo, um dos braços das Organizações Globo.

Os três principais blogs políticos dos Estados Unidos – Huffington Post, Daily Kos e Instapundit – são responsáveis por

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1.700.000 acessos mensais e não estão ligados diretamente a nenhum grande grupo de mídia (Barros Filho; Coutinho e Safatle, 2007: 92). A análise compara-da permite argumentar que o perfil do Jornalismo praticado por blogs nos EUA é diferente do praticado no Brasil. Lá, di-ferentemente de cá, os principais blogs de política não possuem como pano de fundo a marca de um grande conglomerado de mídia. A força dessa nova plataforma nos EUA pode ser notada na constatação de que os blogs norte-americanos funcionam como fonte para a imprensa tradicional. A leitura de Hewitt (2007) aponta para tal conclusão. Pode-se argumentar a partir das exposições do autor que a mídia tradicio-nal norte-americana adota como compor-tamento rotineiro o acompanhamento da blogosfera e, conseqüentemente, a utili-zação de blogs como fontes de consulta e informações nas reportagens.

Não é só nos Estados Unidos que pode ser percebida essa prática. A autora Catarina Rodrigues (2006), que realizou interessante pesquisa intitulada Blogs e a fragmentação do espaço público, afirma que em Portugal alguns blogs já são usados como fontes de informação da imprensa convencional. No entanto, a autora frisa que nem sempre a mídia tradicional tem a preocupação de indicar ou citar o blog que foi utilizado como fonte. Esta relação entre as mídias novas e convencionais proporciona uma pluralidade de vozes dentro do debate público, pois os novos espaços de prática jornalística configuram-se como novas fontes de informação para a sociedade.

No Brasil, todavia, o efeito deste fluxo de informação parece ser outro. A impren-sa tradicional, ao que parece, não vai à blogosfera em busca de novas fontes, mas os blogs que, hospedados em portais liga-dos à mídia tradicional, usam a imprensa, principalmente a escrita, como principal fonte de informação. Clóvis Barros Filho, Marcelo Coutinho e Vladimir Safatle

(2007: 92) argumentam que no caso bra-sileiro os principais jornalistas-blogueiros são oriundos dos jornais diários e que tal fato demonstra uma forte tendência de agregação entre conteúdo, opinião e perspectiva de análise entre os blogs e a as edições impressas dos portais.

Com base no discutido acima, é pos-sível questionar as práticas dos weblogs jornalísticos brasileiros quanto à repeti-ção das práticas jornalísticas tradicionais. Este fato não coloca o profissional de imprensa em posição de vantagem na competição no âmbito das novas mídias. É sempre válido lembrar que na blogosfera não existem somente jornalistas produ-zindo notícias. O espaço é fragmentado e plural, Estudantes, advogados, assim como qualquer outro cidadão podem criar uma plataforma, seja esta um blog ou não, e passar de consumidor a produtor e difusor de informações, de acordo com seus próprios valores e concepções.

A circulação circular da informação

A observação dos produtos jornalís-ticos atuais leva à impressão de que em relação ao conteúdo todos são muito parecidos, praticamente idênticos, exceto pelas características físicas, como design gráfico, número de folhas etc. A homoge-neidade dos veículos de comunicação, impressos e televisivos, está ligada em parte ao próprio processo de formação da notícia – fontes, jornalistas, noticiabilida-de e valores-notícia – e à lógica do merca-do – concorrência, disputa pela audiência e pelas cotas publicitárias.

Esta organização do campo jornalístico (Bourdieu, 2007) molda o comportamento e o funcionamento da imprensa. A disputa pelo mercado de consumidores de infor-mação determina a produção jornalística. A competição pelo “furo” – a notícia exclusiva, a novidade “quente” – impõe

como referência aos profissionais não seu

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figuras do jet-set da política nacional. Este comportamento diminui a capacidade de promoção de debates qualificados na imprensa e torna a cobertura de qualquer assunto um jogo de cartas marcadas.

No Brasil, como já apontado acima, alguns blogs têm por prática a cópia e re-produção de conteúdos produzidos pelos jornais impressos, principalmente, os de cir-culação nacional. Tal prática contribui para a circulação circular da informação na blo-gosfera nacional. No entanto, seu impacto mais negativo pode estar no fato de que esta prática dos jornalismo-blogueiro restringe a prática de um jornalismo independente, ao menos, no que tange às pressões edito-riais e de publicidade, marcantes na mídia tradicional e que, por isso, sofreria menos interferência do campo econômico.

Fontes e definidores primários

No estudo das práticas jornalísticas, independente da plataforma (digital ou imprensa), um fator deve ser levado em conta: as fontes de informação. Um dos papéis do jornalista é estabelecer uma ponte entre o que as fontes têm a dizer, sob a lógica do interesse público, obviamente, e não da autopromoção, com o público (Rodrigues, 2006: 49). Desta maneira, as fontes exercem um papel fundamental na organização produtiva da imprensa.

Mauro Wolf (2005:235), no livro Teorias da Comunicação de Massa, coloca que a rede de fontes de um veículo de informação é o elemento essencial para o funciona-mento do mesmo e reflete, por um lado, a estrutura social e de poder existente e, de outro, é organizada a partir das exigências e dinâmicas do próprio processo de produção da notícia. De acordo com este pressuposto, pode-se argumentar que nos blog a necessi-dade de constante atualização pode levar o jornalista-blogueiro a reproduzir conteúdos de veículos de comunicação com intuito de manter o blog abastecido de informações.

próprio jornal, mas o veículo concorrente, de modo a verificar quais foram as notícias veiculadas por ele. Cria-se, então, uma relação circular, na qual a informação circula para satisfazer as necessidades dos participantes do campo. Segundo esta lógica, a importância de uma informação é avaliada não por seu interesse público, mas pela quantidade – tanto no caso da exclusividade quanto no caso da massifi-cação – de aparições que possui na mídia de modo geral (Neveu, 2006: 93). O efeito, segundo Pierre Bourdieu (1997, p. 33), é um fechamento mental dos profissionais, ou seja, os jornalistas criam uma barreira às outras visões que não a adotada pelos membros do campo jornalístico.

Esses mecanismos criam um efeito de “circulação cir-cular da informação” (Bour-dieu, 1997: 35), algo que pode ser definido como uma informação sobre a informa-ção, um diálogo entre jorna-listas para definir quais são os fatos mais importantes e que merecem ser noticiados, tornando os valores-notícias iguais entre os concorrentes. Assim, o assunto que é, quantitativamente, tratado pelo maior número de dife-

rentes meios de comunicação de massa é elevado ao status de tema indispensável, mais importante da agenda

Este “mimetismo midiático” (Ramonet, 2007: 20) tem como efeito prático mais visível a homogeneização dos produtos jornalísticos. Os veículos comentam e discutem sobre os mesmos temas, inclu-sive com as mesmas abordagens e visões, inviabilizando o pluralismo e a diver-sidade de vozes e atores. As fontes são mesmas e, conseqüentemente, as vozes públicas são também as mesmas. É raro na cobertura política, por exemplo, quando alguma organização, partido ou político consegue ser ouvido em detrimento das

Uma das revoluções da blogosfera é a multiplicação de canais e atores envolvidos

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4 O gatekeeper é o responsável pela seleção e triagem do que se tornará notícia entre os inúmeros acontecimentos “disponíveis” no mundo.5 Tradução dos autores. Original em espanhol: Los edito-res y directores informativos, com su selección día a día y su despliegue de informaciones, dirigen nuestra atención e influyen em nuestra percepción de cuáles son los temas más importantes de las cuestiones Del repertorio público es lo que se há dado a llamar la fijación de la agenda por parte de los medios informativos.

Stuart Hall (1999) a partir de estudos da cobertura sobre crimes aponta para a exis-tência do conceito de “definidor primário”. Definidores primários seriam aqueles que detêm posições institucionalizadas privi-legiadas e colocam-se como porta-vozes de pessoas – ministros e parlamentares - e de grupos de interesse (Hall, 1999:229). Tais questões estariam ligadas à necessidade de os veículos produzirem grande volume de notícias em curto espaço de tempo e ao fato das notícias serem orientadas pelas noções de objetividade, imparcialidade e equilíbrio (Id., 1999:229). Tal prática, en-tão, caracteriza-se pelo fato de que as fontes seriam mais importantes pelo que represen-tam, enquanto atores sociais, do que pelo que dizem ou têm a dizer. A autoridade de uma fonte, então, vale mais que a qualidade da informação que ela possui.

Estas práticas asseguram de certo modo que as informações encontradas nos veí-culos de comunicação sejam credíveis. É este o ponto principal do argumento que se pretende desenvolver aqui, a credibilidade construída pela imprensa poderia colocá-la como a principal fonte de informação dos blogs. De tal maneira, a reprodução do conte-údo, ou comentários em cima de reportagens produzidas pela mídia tradicional seria uma forma de atribuir às novas mídias um capital simbólico de confiabilidade que elas ainda não possuem de modo intrínseco. Desta for-ma, então, a imprensa tradicional, em alguns casos, poderia estar se tornando o definidor primário de alguns blogs e portais da web.

Os efeitos dos definidores primários são discutidos por diversos autores. O francês Érik Neveu (2006:98) argumenta que as próprias rotinas produtivas do jornalismo favorecem a procura por defi-nidores primários. Assim, estes ficariam com o poder de definir ou enquadrar a informação. Hall (1999:230) aponta que a relação entre imprensa e definidores pri-mários permite aos últimos estabelecer a definição ou “interpretação primária” dos assuntos debatidos no momento.

É valido lembrar que os blogs, em geral, são mantidos por apenas um au-tor. Assim, as limitações físicas desta plataforma são ainda mais evidentes. O jornalista-blogueiro não possui uma equipe para ir à procura de notícias, ele produz e edita o conteúdo. Na atuação como gatekeeper4 o uso de fontes institu-cionais, reproduções da grande imprensa e de outros veículos de comunicação é compreensível, em certa medida, pelas limitações e exigências de produção. No entanto, o blog individual não é prática homogênea na blogosfera, mesmo que não se conheça o número de blogs que trabalham em regime de produção coleti-va. O próprio objeto deste estudo, o Blog do Noblat, conta com uma equipe fixa de repórteres, estagiários e colunistas fixos. Fator que torna ainda mais intrigante a investigação sobre as relações deste com as mídias tradicionais.

O problema da circulação circular

Maxwell McCombs define o processo de agendamento da seguinte maneira:

Os editores e diretores informativos, com sua seleção dia a dia e seus desdobra-mentos de informações, dirigem nossa atenção e influem em nossa percepção de quais são os temas mais importan-tes sobre os assuntos. Esta capacidade para influir na relevância das questões do repertório público é o que se chama de fixação da agenda pública por parte dos meios informativos5 (McCombs, 2006:24).

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ProduçãoereproduçãodeinformaçõesnoBlog...

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6 Nesta categoria são abordadas as reproduções oriundas dos veículos de informação das Organizações Globos: TV Globo, jornal O Globo e portais de notícias O Globo online e G1.

42%

12%

46%

50%45%40%35%30%25%20%15%10%

5%0%

Publicações do Blog do Noblat

Publicações do Blog do Noblat

Posts Próprios Referência em Hyperlink

Reproduções

Assim, tomando por base que cabe principalmente à imprensa o papel de definir e influenciar nas questões trazidas ao debate público, é possível afirmar a necessidade de uma pluralidade de vozes e atores nos meios informativos, pois desta maneira a sociedade tem acesso a uma maior diversidade de temas e visões, com o objetivo de se tornar capaz de participar da vida pública.

A análise do Blog do Noblat mostra que, durante o período em que foi realiza-

do o acompanhamento, foram publicados 201 posts. Deste total, a categorização demonstrou que 92 (46%) posts são re-produções de materiais produzidos pela mídia tradicionaç. 25 (12%) posts são referências em hyperlink (nesta categoria são contabilizadas as publicações que tra-zem uma chamada, resumo ou comentário produzido sobre a reportagem, executada por outros veículos de informação, que está referenciada em hyperlink).

Desta maneira, pode-se considerar que o material produzido em hyperlink não é uma produção própria, pois é apenas um comentário sobre reportagens produzidas pela imprensa tradicional. Não constituin-do um trabalho de apuração do jornalista-blogueiro, mas apena uma apropriação do

trabalho de outro profissional. A jornalista Tereza Cruvinel (2006:233) chama este fenômeno de “opinião privada publica-da”. Assim, somando as duas categorias, o número de reproduções sobe ainda mais, chegando à cifra de 117 (58%) posts. A categorização demonstrou que foram 84 (42%) de produções próprias da equipe de repórteres, estagiários e articulistas do Blog. O Gráfico abaixo – Publicações do Blog do Noblat – mostra a divisão catego-rial dos 201 posts.

Quanto às fontes utilizadas para reprodução, os dados mostram que os veículos ligados às Organizações Globo6 foram os mais reproduzidos, com 29 (31%) reproduções no total. Em segundo ficou o grupo ligado ao jornal O Estado de S. Paulo, com 25 (27%) reproduções. A análise dos dados permite apontar que o Blog do Noblat publica, em média, 18 reproduções por dia. O Gráfico abaixo – Reprodução de material – mostra como ficou a catego-rização dos 92 posts.

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A organização dos dados brutos permite realizar alguns apontamentos interessantes. Somente no terceiro dia de acompanhamento, dia 05/03/2008, é que o número de posts próprios supera o número de reproduções, foram 19 posts próprios contra 16 reproduções de material. Os dados gerais demonstram que a publicação de posts no Blog do Noblat é, em média, de 40 publicações por dia. A análise dos dados demonstra, também, que no total o Blog publicou mais reproduções de veículos de informação (92) do que posts produzidos pela equipe (84), durante o período analisado.

Reprodutor de conte-údos: considerações finais

A partir dos dados obtidos com este estudo em particular sobre o Blog do No-blat, pode-se concluir, inicialmente, que a prática de reproduzir, na maioria dos posts, notícias e informações produzidas pela imprensa tradicional demonstra que este blog comporta-se mais como uma agência de clipping online. Nestas, notí-cias veiculadas na imprensa são coletadas e armazenadas para uso futuro. O Blog do Noblat, então, parece-se muito mais com uma agência reprodutora de conteúdos do que com uma nova plataforma capaz de

produzir informações independentes, que proporcionem um espaço de contra-agen-damento midiático.

Outra conclusão que surge a partir da análise dos dados é a percepção de que as reproduções são, na maioria dos casos, de veículo ligado às Organizações Globo. O Blog do Noblat é hospedado no site do jornal O Globo, o mesmo no qual às se-gundas-feiras o jornalista Ricardo Noblat assina uma coluna semanal. Estes fatores indicam uma clara convergência entre os conteúdos do blog e dos outros veículos de informação da mesma empresa. O blog, então, acaba realizando uma publicidade gratuita das reportagens, colunas e edito-riais do jornal impresso, em uma relação de mão única.

Embasado no número de reproduções, pode-se concluir que, para o Blog do Noblat, as produções da mídia conven-cional, em especial as das Organizações Globo, são os definidores primários de informação, ou seja, a principal fonte de notícias e materiais usados na atualiza-ção do blog. Utilizando a imprensa como definidora primária, o Blog do Noblat também a coloca como a detentora da interpretação primária do tema em pauta. Sendo a imprensa o definidor primário do Blog do Noblat, este espaço não consegue se estabelecer com centro de discussão plural e com diversidades de

31%

19%

Reprodução de material

Globo

FSP

ESP

JB

Outros

35%

30%

25%

20%

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5%

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31%

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27%

19%

4%

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ProduçãoereproduçãodeinformaçõesnoBlog...

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O jornalista-blogueiro não possui uma equipe para ir à procura de notícias

atores dentro da blogosfera. Esta prática, então, oferece à imprensa o “monopó-lio da informação legítima” (Bourdieu, 1997:103). Este comportamento coloca a mídia tradicional com poder de decidir os assuntos em pauta, a forma como eles serão tratados e quem são as vozes públi-cas que terão direito de fala. De tal forma, que a pluralidade se extingue neste novo veículo, que passa a ser somente uma reprodução do jornalismo praticado na imprensa convencional.

A utilização da imprensa tradicional como principal fonte de informação pa-rece atender a um comportamento que visa transferir a credibilidade construída da mídia convencional junto à sociedade

para os blogs. Tal compor-tamento pode ser justificado pela observação de que os blogs, sozinhos, ainda não constituem um veículo capaz de alçar novas vozes ao debate público. Para se colocarem, equanimente, na esfera pública, utilizam-se do material produzido pela imprensa tradicional, já que este é entendido como cre-dível e confiável, graças ao capital simbólico acumula-do em 200 anos de história

no Brasil. Assim, a mídia tradicional, prin-cipalmente os veículos impressos, ganha um papel de centralidade, enquanto as novas mídias ocupam um papel periférico, atuando como uma nova plataforma para a divulgação das mesmas informações.

A utilização da imprensa tradicional como definidor primário e o elevado índice de reproduções apresentados pelo Blog do Noblat, só corrobora a hipótese de que este espaço específico contribui para a prática da circulação circular da informação. Com a constatação de que as reproduções de materiais estão ligados à

empresa na qual o blog está hospedado, pode-se argumentar que as notícias publi-cadas não atendem a uma pauta diferente com novos enfoques e novos atores. É possível concluir, portanto, que o blog passa a ser um instrumento de promoção da notícia do veículo impresso.

A circulação circular da informação é configurada da seguinte forma no Blog do Noblat: as informações produzidas pela grande imprensa são as que ganham destaque no blog, assim como os temas de-batidos nos jornais tradicionais também. No posts de autoria da equipe do blog não se encontram novos assuntos, mas somente aqueles agendados pela imprensa tradicional.

O presente estudo sinaliza a perversa influência das práticas e rotinas consagra-das nas velhas mídias sobre o amadure-cimento das novas mídias. Uma simbiose não muito interessante, já que perpetuam a concentração da mídia e a pouca oferta de espaços plurais de diversidade de opi-nião que engrandeceriam a democracia e o debate público. A pior conseqüência da concentração é o cerceamento da plura-lidade de atores presentes na mídia. Tal questão tem impacto mais acentuado ao se pensar que, atualmente, o espaço de debate público é, em certa medida, um espaço midiático.

Este estudo é apenas uma parte do trabalho desenvolvido no Centro Uni-versitário de Brasília (UniCEUB) que tem os blogs como tema. Ele faz parte de uma pesquisa sobre a relação entre os estudantes de Comunicação Social do UniCEUB e as novas mídias, intitu-lada Blogosfera: consumo e produção de estudantes de Comunicação Social do UniCEUB. Assim, dentro da própria disciplina de Jornalismo Contemporâneo consolida-se um espaço para a pesquisa sobre as relações entre as novas práticas jornalísticas e as novas mídias.

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Comunicação: Meios e Mensagens

Elisa Marconi Mestre em Estética do Audiovisual pela ECA-USP

Docente da Faculdade Cásper Líbero, curso de Rádio e TV [email protected]

Resumo

O objeto de estudo deste artigo, desdobramento de uma dissertação de mestrado, é o som. Este trabalho procura fazer uma busca pela natureza do estímulo sonoro. Levantando e refletindo as características físicas, biológicas e culturais da recepção do som (seja de forma organizada, como linguagem verbal ou música, seja de forma desorganizada, como os ruídos), a partir de um corpo teórico. Outro objetivo era analisar e debater as características e peculiaridades do som e também entender as reações e motivações geradas pela audição. Por fim, buscou-se discutir e refletir sobre a atuação do som no que tange as esferas de percepção do ser humano: corporal, emocional, mental e espiritual.

Palavras-chave: som, psicoacústica, percepção do som, recepção do som, natureza do som, ethos do som.

Abstract

The subject of the present article is the sound. This work tries to make a study on the nature of sound stimulus, proposing and reflecting about the physical, biological and cultural characteristics of sound reception (whether in organized form, such as verbal language or music, or disorganized form such as noise), starting from a theoretical corps. Another goal was to analyze and discuss the characteristics and particularities of sound and also to understand the responses and motiva-tions provoked by hearing. Finally,, we tried to discuss and reflect about the action of sound in the fields of the human perception: corporal, emotional, mental and spiritual.

Key words: sound, psychoacoustics, sound perception, sound nature, sound ethos.

Resumen

El objeto de estudio de este artículo, despliegue de una disertación de maestría, es el sonido. Este trabajo procura hacer una búsqueda por la naturaleza del estímulo sonoro. Levantando y reflexionando las características físicas, biológicas y culturales de la recepción del sonido (ya sea de forma organizada, como lenguaje verbal o música, ya sea de forma desorganizada, como los ruidos), a partir de un corpus teórico. Otro objeto era analizar y debatir las características y peculiaridades del sonido y también entender las relaciones y motivaciones generadas por la audición. Por fin, se buscó discutir y reflexionar sobre la actuación del sonido respecto a las esferas de percepción del ser humano: corporal, emocional y espiritual.

Palabras clave: sonidos, psicoacústica, percepción del sonido, recepción del sonido, naturaleza del sonido, ethos del sonido.

Da literatura sobre som Of the literature on sound

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Daliteraturasobresom

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ste artigo nasce do corpo teórico que compôs a dissertação de mestrado Da Natureza do Som,

apresentada à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, em 2005. Parte-se das seguintes seis obras básicas: A Estética Radiofônica, de Rudol-ph Arnheim; O Som e o Sentido, de José Miguel Wisnik; O Ouvido Pensante e A Afinação do Mundo, de R. Murray Schafer e Estruturas da Mente e Mentes que Criam, de Howard Gardner. A elas vão se soman-do outras obras para entender, discutir e analisar as características e peculiaridades do estímulo sonoro.

Também se optou por dividir os aspec-tos ligados ao som em três frentes: os físi-cos, os psicoacústicos e os estéticos. Essa divisão foi adotada por Howard Gardner e parece ser bastante adequada para agrupar características semelhantes e possibilitar maior cruzamento e profundidade em cada divisão.

Aspectos físicos

Vulnerabilidadedoouvido

Se for possível resumir o início das obras que tratam de som e música numa única idéia, ela poderia ser a vulnerabilida-de do ouvido. O ato de ouvir é ininterrupto no ser humano. O ouvido, esse órgão nada preguiçoso, passa dia e noite trabalhando, escutando, mandando informações para o cérebro. Essa condição se deve a duas características. A primeira se refere ao fun-cionamento simples do aparelho auditivo. Por não ter pálpebras, ou qualquer meca-nismo semelhante, o ouvido fica exposto ao funcionamento contínuo. Ou seja, não há barreiras para a entrada de sons nos canais auditivos. A segunda característica diz respeito a pouca necessidade de condições especiais para a escuta acontecer. Rudolph Arnheim, em seu A Estética Radiofônica, destaca que basta uma fonte sonora, um ouvido apto e ar.

E Qualquer corpo, presente num meio que não seja o vácuo, que se mova provoca vibrações. Se essas vibrações estiverem entre 20 e 20 mil hertz, ou seja 20 e 20 mil ciclos por segundo, o corpo humano captará esse movimento e o traduzirá como o que se convencionou chamar de som. Por isso é que se diz que o som sempre aponta para o mo-vimento (Arnheim, 1980: 21). Na definição clássica, o som é uma onda bidimensional, “oscilante e recorrente, que retorna por pe-ríodos (repetindo certos padrões no tempo)” (Wisnik, 1989: 19) e que vai do ambiente em direção ao ouvido, de lá para o aparelho auditivo e, por fim, para o cérebro, onde o estímulo sonoro – o resultado daquele movi-mento que perturbou e atravessou a matéria – se transforma em sentido.

Escutafísicaecultural

E, se a audição é um processo constante, a transformação do que foi ouvido numa in-formação com sentido não o é. Isso significa que, embora não exista uma pálpebra física para os ouvidos, certamente existe um filtro determinando que parte do escutado vai ser decodificado e que parte vai continuar sem tradução. Autores afirmam que, caso tradu-zisse tudo o que foi ouvido em informação útil, o ser humano iria enlouquecer. É por isso que quando alguém está numa festa, conversando com outra pessoa, é capaz de prestar atenção na conversa e abstrair os outros barulhos do ambiente, como música, outras conversas, etc. Tem mais: a audição prefere se fixar não no som invariável, mas no som que varia, que se modifica e se recria a cada intervalo. Ou seja, depois de certo tempo na cozinha, o homem deixa de escutar o ruído constante e ininterrupto do motor da geladeira. Só percebe que o barulho estava ali quando o motor desliga e, mesmo assim, só percebe que o motor desligou porque sente um alívio repentino que não se explica imediatamente. Na via contrária estão as canções, os discursos e os sons variantes do ambiente. O ronco

do ônibus, as buzinas, os passarinhos e os

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ElisaMarconi

seja, significando atenção ao perigo), mas se ele estiver num casamento, as mesmas buzinas mostram que o cortejo está seguin-do a noiva e podem ser ouvidas de maneira mais descontraída (ou seja, significando prazer e alegria). Ou seja, o que se chamou de escuta cultural reflete um aprendizado (buzina = alerta) e um contexto que envolve a escuta daquele som (buzina também pode ser manifestação de alegria).

Há um outro aspecto curioso quando se observa a onda sonora mais de perto. Ela é composta de impulsos e repousos. De presenças e ausências sucessivas. Ou, mais a grosso modo, de barulhos e silên-cios: “pode-se dizer que a onda sonora é formada por um sinal que se apresenta e de uma ausência que se pontua desde dentro, ou desde sempre, a apresentação do sinal”, reitera José Miguel Wisnik (Wisnik, 1989: 18). Isso significa que há sempre silêncio no som, como se ele fosse um todo perfurado em intervalos regulares ou irregulares. O que leva a pensar no oposto. O som é recor-tado por silêncios, ou o silêncio é pontuado por barulhos? Wisnik, assim como Murray Schafer, garantem – baseados na obra do compositor John Cage – que som e silêncio são complementares. Não haveria um sem o outro. Como numa película de cinema. Sem os intervalos pretos entre os fotogramas, a ilusão do movimento não existiria. Tudo seria um grande borrão. A relação entre som e silêncio é a mesma.

Para entender melhor o silêncio, vale lembrar que Cage realizou uma experiên-cia interessante. Ao entrar numa câmera anecóica, ou seja, a prova de qualquer som externo, – e, portanto, o mais perto do silêncio absoluto que um homem pode chegar – Cage descobriu que nem mesmo lá os sons estavam totalmente afastados. Se não dava para ouvir nada do mundo lá fora, era possível ouvir o barulho grave da pulsação e o barulho agudo do sistema nervoso. O que prova que mesmo o maior silêncio está todo perspassado por sons.

A melhor síntese para esse fenômeno da

pés pisando na calçada. Sons inconstantes e que sugerem movimentação, cuidados a tomar, sinais a serem percebidos.

São sons demais à volta do homem, sons que se percebem e outros que se apa-gam. Sons da cidade, sons da casa, sons do quarto, sons de dentro do corpo. Pegando emprestado uma expressão mais ligada à visão, se o ouvido não pode se fechar para evitar a audição, pode sim focar no objeto a ser ouvido e deixar o resto em segundo plano. Não que o restante seja ignorado totalmente, mas ficará em segundo plano. Essa capacidade de selecionar o que será escutado dentre tudo o que foi ouvido pode ser chamada – novamente fazendo uso de termos relacionados aos aspectos visuais – de relação figura-fundo que, junto com outras minúcias dessa habili-dade, será analisada mais profundamente oportunamente. O que se pode adiantar é que já aqui se nota uma habilidade física para o ouvir, que diz respeito a aptidão do órgão para cumprir sua função. Mas há também uma etapa mental, consciente ou inconsciente, que seleciona o que, en-tre tudo que foi ouvido, será codificado, entendido e receberá significado.

Em outras palavras, há uma escuta física e também uma escuta chamada de cultural. Ou seja, os sons ouvidos sem distinção fazem parte do processo físico e corporal da audição e o recorte (uma edição para o todo ouvido) daquilo que vai gerar significado faz parte da escuta cultural. Essa última é muito mais complexa que a primeira, porque depende de uma série de situações e contextos. Além do foco, existe um aprendizado e existe um contexto. No meio da selva africana é mais importante estar atento a um rugido, enquanto no centro de uma grande cidade é vital pres-tar atenção no som dos automóveis. Além disso, sons que sempre significaram algo, num outro contexto podem significar o oposto. É o caso das buzinas dos carros. Normalmente, o cidadão metropolitano está atento a elas para não ser atropelado (ou

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ausência e presença simultâneas, que se repetirá com diversas outras caracterís-ticas do som (que também serão estudas logo mais adiante), novamente vem de O som e o sentido: “O mundo se apresenta suficientemente espaçado (quanto mais nos aproximamos de suas texturas míni-mas) para estar sempre vazado de vazios, e concreto de sobra para nunca deixar de provocar barulho” (Wisnik, 1989: 19).

Aspectos psicoacústicos

VozHumana

Voltando ao feto na barriga da mãe. Se nada deu errado, aos cinco meses de gestação ele já é capaz de ouvir e, aos

sete, já pode reconhecer a voz da mãe. Aqui começa uma grande aventura liga-da ao som e ao sentido que o ser humano lhe atribui. Anteriormente foi apontado que antes de ter audição o bebê já capta as vibrações e percebe as sensações de tensão e relaxamento que elas provocam. Agora, ao ouvir e reconhecer a voz da mãe – um som que estará presente desde antes do nascimento e acompanhará

o filho por um bom tempo – o feto toma o primeiro contato com as poderosas características do som da sua espécie. Entre os autores pesquisados, o primeiro a tratar dessa especialidade da voz huma-na foi Rudolf Arnheim. O escritor, além de associar a voz ao reconhecimento da espécie e lembrar que é pela voz que os conteúdos são transmitidos de geração a geração, levanta a discussão sobre o valor do tom, do como se diz sobre o que se diz. Arnheim propõe que a expressão é a característica mais relevante do falado. Na arte acústica, ou na vida cotidiana, o tom é mais importante que o discurso (Arnheim, 1980: 24). É como se o ouvido humano

O ato de ouvir é ininterrupto no ser humano

prestasse mais atenção à sonoridade que ao conteúdo do que é dito. Arnheim ainda completa afirmando que se no cotidiano isso já é importante, nas artes, a força da expressão é ainda mais forte.

Wisnik complementa a idéia sugerin-do que mesmo antes de aprender a falar, a criança já “percebeu que a linguagem significa, a voz da mãe com suas melodias e seus toques é pura música, ou é aquilo que depois continuaremos para sempre a ouvir na música” (Wisnik, 1989: 30). Ou seja, segundo ele, a voz da mãe é um envelope sonoro que ajuda a criança a construir algo de seu, até sua própria identidade. E essa relação de identificação com a voz materna, à medida que a criança vai aumentando seu universo, seu contato com o mundo, vai acontecendo também com as outras vozes, que trazem outros significados e identificações.

Os mecanismos de identificação e representação desencadeados pela voz hu-mana, segundo Arnheim, remetem à vida primitiva, ao modo primeiro da comuni-cação entre os homens. Ainda de acordo com o autor, essa qualidade tem, portanto, a capacidade de alcançar o espírito do homem, porque remete à sua essência, seu princípio, como ser vivo. Daí surgem duas conseqüências. A primeira trata da força com que a voz e, por associação, os outros sons, remetem à vida primitiva, a um passado mais coletivo que individual e no qual o som pontuava a vida e era a mais importante fonte de informação. A segunda conseqüência aponta para a importância que ganhou tudo aquilo que remete a esse passado tribal. Os símbo-los, os hábitos e os comportamentos que sobreviveram aos tempos são marcantes e valorosos até os tempos atuais. Pode servir de exemplo o hábito ancestral de se transmitir valores e tradições a partir da narração de histórias, de mitos. Se antes era feito ao redor de uma fogueira, hoje pode ser encontrado numa sala de cinema, na sala de TV.

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Rudolph Arnheim acredita que o po-der do som, seja por remeter ao passado, seja por acertar o espírito do ouvinte, é tal que também ele é responsável por o som atingir tão eficazmente a mente humana. “Todos os caminhos que conduzem para a mente passam pelo ouvido” (Arnheim, 1980: 29). Ou seja, aquele órgão trabalha-dor incansável é a porta de entrada para um tipo de estímulo que alcança a mente humana e isso, certamente, traz uma série de conseqüências. Quando se pensa no caso dos indivíduos surdos, pode-se ima-ginar que, já que eles não ouvem, então não apresentam essas reações, não sofrem as mesmas conseqüências. Contudo essa idéia não é a mais acertada. Antes de tudo é necessário entender o que é ser surdo. Deficiente auditivo é toda pessoa que tem alguma perda na audição, que não ouve totalmente os sons que um ser humano normal ouve, ou seja da 20 a 20 mil Hz. Acontece que há infinitos graus de sur-dez, com restos de audição variando para os sons agudos ou para os sons graves. Assim, mesmo os surdos profundos às vezes têm restos de graves, por exemplo. Então, em primeiro lugar, precisa estar claro que os surdos normalmente têm um pouquinho de escuta e esse mecanismo trabalha incansavelmente para captar os sons que alcança. E, dessa maneira, o surdo pode sim reagir aos estímulos que captura. Talvez de uma maneira diferente de um ouvinte pleno, mas certamente reage. E tem mais. É fundamental atentar para o fato de o estímulo sonoro ser uma vibração e, portanto, o som pode ser sen-tido e percebido de outras maneiras que não através da audição. Os surdos não têm perdas no sentido do tato e, portan-to, recebem e percebem as vibrações na pele, nos ossos, nos órgãos. Novamente reforça-se a idéia de que, então, os surdos reagem sim aos estímulos sonoros. Seja por resquícios de audição, seja pela per-cepção das vibrações via tato.

ConcentraçãoUma das mais notáveis características

humanas é a capacidade de se concentrar a partir da escuta de um som. No teatro, por exemplo, a platéia ouve o terceiro sinal sonoro. Depois disso o que se escuta é um grande silêncio cheio de expectativa para que o espetáculo comece. O sinal sonoro é a senha para a quietude, para a abertura dos canais de percepção, para a entrega e comunhão com um novo universo que se anuncia. Os CDs de meditação também são um exemplo. Uma voz firme, porém suave, e, em geral, embalada por uma música, vai guiando o ouvinte para uma viagem ao interior dele mesmo. Música e voz casadas ajudam o ouvinte a se concentrar e alcan-çar estados de relaxamento, ou de atenção. Arnheim já levantava essa idéia em seu A Estética Radiofônica e propunha o uso dessas características nas artes auditivas, aquelas que dependem exclusivamente do som para serem expressas.

Ligando os argumentos presentes nas obras estudadas, encontramos que uma das razões possíveis para o som facilitar a concentração é sua relação com o tempo. O som é uma onda, uma perturbação física que se projeta no tempo e, assim, torna essa dimensão mensurável. Mas é mais do que isso. O ritmo presente em qualquer emissão sonora registra pulsações, portanto, inter-valos, recortes do tempo. Regulares ou não, esses intervalos garantem uma medida do tempo, garantem uma marcação ainda que frágil do tempo. José Miguel Wisnik vai mais adiante, afirmando que:

“Segundo Alain Daniélou, em sua Se-mantique musicale ‘o ritmo alfa parece ser de fato a base que determina o valor do tempo relativo e conseqüentemente todas as relações do ser vivo com seu ambiente’. Segundo essa interpretação ele seria o fator constante e subjacente, padrão vibratório que ‘condiciona todas as percepções’, funcionando como um sinal de sincronização que comandaria o andamento da nossa sensação de tempo”. (Wisnik, 1990: 22)

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que é resgatada cada vez que o homem usa a sua própria voz. Daniel Charles, citado em O Som e o Sentido, de Wisnik, propõe que a voz veicula a quarta dimensão. Ou seja, em cada uma de suas manifestações – sempre entrecortadas pelo silêncio pontuador e organizador - traz de volta o surgimento e o desaparecimento do homem, o nascimento e a morte. Ou seja um tempo cíclico, que não tem passado, presente, nem futuro, mas perpassa todos esses estágios. Inicia e renasce a todo o momento. Então, na tradição humana o som é um estímulo organizador e que, ao que tudo indica, se repete a cada emissão sonora. Essa capacidade é relembrada quando ouvimos sons ordenados. Porque o universo é um mar de barulhos, signifi-cantes ou não, um caos de ruídos. E algo que dê ordem a tudo isso apazigua o caos interno do homem. E mais força ainda terá se for entoado coletivamente. Wisnik traz algumas passagens sobre isso:

“Um único som, cantado em uníssono por um grupo humano, tem o poder mágico de evocar uma fundação cósmica: insemina-se coletivamente, no meio dos ruídos do mundo, um princípio ordenador. Sobre uma freqüência invisível, trava-se um acordo, antes de qualquer acorde, que pro-jeta não só o fundamento de um cosmos sonoro, mas também do universo social” (Wisnik, 1990: 33)

“Cantar em conjunto achar os intervalos musicais que falem como linguagem, afinar as vozes significa entrar em acordo profundo e não visível sobre a intimida-de da matéria, produzindo ritualmente, contra todo o ruído do mundo, um som constante (um único som musical afinado diminui o grau de incerteza no universo, porque insemina nele um princípio de ordem)” (Wisnik, 1990: 27).

Tudo isso significa que o homem fez do som ordenado (como música ou como fala) um aliado na busca pela segurança, pela ordem. Os sons, assim, fazem do oceano inconstante que é o mundo, um lugar de não-caos. Tão forte é essa idéia

Ou seja, há um componente do som que fala diretamente à sensação e percep-ção do tempo. A única ressalva feita a essa qualidade está em O Ouvido Pensante, de Murray Schafer, onde o autor sugere que o tempo é medido pelo som que se projeta, a emissão permite assim que a pessoa, de alguma maneira, organize o tempo. Mas esse tempo é mais sentido que contado, ou seja, ele tem mais a ver com padrões internos, subjetivos, que com a medição universal, feita em segundos ou minutos. Tudo isso quer dizer que, por vezes, a pessoa acha que uma passagem de uma peça musical foi muito rápida, quando na verdade ela foi longa em duração, mas muitíssimo intensa. O contrário também é

válido. Se a fala do professor está monótona e aborrecida, por mais curta que seja, pa-recerá interminável.

Junto com a capacidade de ajudar na concentração e de marcar o tempo, o som tem mais uma qualidade relacionada à organização. Uma fala, um ruído, ou uma canção soando têm o poder de organizar o caos. Porque a música cantada ou tocada, ou a linguagem verbal pontuam o tempo, organizam os inter-

valos, dão sentido a cada momento e isso é extremamente reconfortante para o homem.

CaoseOrdem

Para começar do início: a mitologia mundial está cheia de histórias sobre o início da vida, do mundo dos tempos. E, em boa parte dela, o princípio fundador, o começo de tudo é um som, uma palavra, uma vocalização. Talvez o mais famoso deles seja o “Fiat Lux”, faça-se a luz, profe-rido pelo Deus cristão que dá início à orga-nização (metódica e paulatina) do mundo. Há ainda outros tantos exemplos e todos remetem a esse som primordial. Neles, a voz do ser criador tem uma força tamanha,

Se a audição é um processo constante, a transformação do que foi ouvido numa informação com sentido não o é

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que as religiões antigas e atuais – que têm como origem a religação do homem com o universo e que têm como missão dar sentido à vida – se utilizam dos coros e dos discursos para transmitir sua visão de mundo, de vida e seus valores. Porque na música ou na fala, os sons acontecem simultaneamente, mas também um depois do outro, ou seja, unidos e cada um no seu papel, no seu lugar. Permitindo uma série de metáforas conscientes ou inconscien-tes, principalmente relacionadas a uma sociedade ideal.

E essa possibilidade mágica do som vai adiante: as sociedades primitivas enten-diam que o som tinha poderes sobrenatu-rais e de encantamento. Assim, as palavras de maldição (que vem de mal dizer, dizer o mal), que podiam secar uma plantação, fazer alguém ficar doente, ou atrair mal tempo, eram combatidas com canções de exorcismo. Como narra Schafer:

“As palavras são invocações mágicas e podem refletir encantamentos. Assim, [uma aluna] as exorciza com música. (...) Em geral, os povos primitivos também possuem invocações mágicas, cujo sentido é desconhecido, ou não importa, mas que têm o poder-encantamento em seus sons, quando cantadas” (Schafer, 1991: 233).

E quem disse que essa crença no po-der-encantamento do som é coisa só do passado? Schafer lembra que os pratican-tes de ioga entoam mantras e, seja por que foram escritos por homens muito sábios, seja pela repetição sucessiva, os mantras são capazes de levar o homem a estados diferenciados de consciência. Também a meditação alcança esse fim, no qual todo o corpo torna-se um grande canal de per-cepção: “Aos poucos músculos e mente ficam relaxados, até atingir o ponto em que todo o corpo se torna um ouvido. Isso às vezes pode levar horas, mas, no final, os alunos me têm dito que estão ouvindo música como nunca o haviam feito antes” (Schafer, 1991: 292).

Afinaçãohomem-universo

Se se prossegue no caminho das prá-ticas ditas espirituais, pode-se encontrar ainda rituais de união entre o homem e o universo através de práticas simples, como a afinação dois instrumentos. É sabido que a relação do oriente com o som é um tanto diferente da relação ocidental com ele. En-quanto aqui, historicamente, som é sinal de poder – seja através dos trovões, do sino, ou do ronco dos motores dos automóveis e das fábricas –, no oriente o som é uma espécie de perturbação do silêncio, estado muito apreciado por lá, e, por isso, merece um trato muito delicado. Na Índia, por exem-plo, “a improvisação se dá a partir de um demorado sistema de afinações, não só do instrumento, mas da música com o univer-so” (Wisnik, 1990: 91). Idéia que é reforçada por Yara Caznok: “(...) afinar instrumentos e voz não era apenas uma questão técnica, significava harmonizar o cosmo interno e externo dos seres vivos e estabelecer uma comunicação entre forças individuais e universais.” (Caznok, 2004: 31).

Importa lembrar que uma das razões de ser das práticas religiosas é o afastamento do medo do caos, da insegurança causada pela impermanência das coisas e a dele-gação de sentido e ordem para a vida. Por isso no oriente há uma reverencia muito grande por todas as atividades que envol-vem som, por que ele pode ser encarado como ser de ligação entre o homem e o universo, como um movimento capaz de afinar o ser humano com o mundo que o cerca. O diferente no ocidente é que essa vocação de anjo que o som tem por ligar humanos e deuses, nem sempre é respeita-da conscientemente, ou seja, os ocidentais temem mais o silêncio e não se importam tanto em ficar expostos a barulhos. Mas, no mais das vezes, nos dois hemisférios, a vocação cumpre o mesmo papel.

“O som tem um poder mediador, herméti-co: é o elo comunicante do mundo material com o mundo espiritual e invisível. Seu

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valor de uso mágico reside exatamente nisto: os sons organizados nos informam sobre a estrutura oculta da matéria no que ela tem de animado. (Não há como negar que há nisso um modo de conhecimento e sondagem de camadas sutis da realida-de). Assim, os instrumentos musicais são vistos como objetos mágicos, fetichizados, tratados como talismãs, e a música é cul-tivada com o maior cuidado (não se pode tocar qualquer música a qualquer hora e de qualquer jeito)” (Wisnik, 1990: 28)

Em A Afinação do Mundo, Murray Schafer cita a obra Mitológicas II, do an-tropólogo Claude Lévi-Strauss e toda a sua argumentação que liga o som ao sagrado e o silêncio ao profano, o que mostra mais um dos pontos de união entre som e espiritu-alidade, som e sentido para a vida. A idéia

de Lévi-Strauss, corroborada por Schafer é a de que o mundo profano, se não era silencioso, era pelo menos quieto. Os ruídos, aqueles sons mais fortes, estavam diretamente ligados a estru-turas sagradas, como o canto da colheita (um festival reli-gioso que celebra, de alguma maneira, a possibilidade da vida continuar), o sino, os cânticos e os órgãos das igrejas, instrumentos desen-

volvidos para fazer a divindade escutar. Trilhando o percurso de Schafer, há um

dado curioso levantado pelo compositor canadense que liga a pobreza ao silêncio.

“As cidades pobres são mais silenciosas que as prósperas. Visitei cidadezinhas em Brugenland (Áustria) onde o único som ao meio dia é o adejar das cegonhas em seus ninhos nas chaminés, e cidades empoeiradas do Irã onde o único movi-mento é o eventual andar balançado de uma mulher carregando água enquanto crianças permanecem silenciosamente sentadas nas ruas. Camponeses e homens de cultura tribais em todo o mundo par-ticipam de uma vasta troca de silêncio” (Schafer, 2001: 83).

Medodesomforte

E essa curiosidade abre espaço para uma outra abordagem a respeito do som. O temor humano aos sons fortes é ances-tral. Primeiro foi o trovão e o rugido dos animais ferozes, depois isso se transferiu para eventos ligados à religião como o tocar dos sinos, ou dos órgãos, como foi citado acima. Mas, se no passado o medo do poder do som migrou da Natureza para a religião, que espaço ele teria hoje? Nos dias mais recentes, o som forte que faz o homem tremer é o dos motores e das máquinas. A explicação é lógica. No tempo do temor aos trovões era a Natureza quem tinha o poder. No tempo do temor ao sino e ao órgão, era a Igreja quem tinha o poder. E na era da tecnologia, o poder está nas mãos de quem possui as máquinas. E as máqui-nas, inexoravelmente, fazem barulho. “A associação entre Ruído e poder nunca foi realmente desfeita na imaginação humana. Ele provém de Deus, para o sacerdote, para o industrial e, mais recentemente, para o radialista e o aviador” (Schafer, 2001: 114). Outro bom exemplo é o ronco dos motores na Fórmula 1. Com tanta tecnologia não é possível que os carros precisem fazer tanto barulho para funcionar. A explicação para o ruído ensurdecedor está no gosto por ele. Os amantes do esporte gostam desse ruído característico, cada escuderia precisa “falar” mais alto que a outra, os patrocina-dores milionários precisam ser ouvidos. Ou seja, produzir barulho denota um poder real e um poder simbólico, delegado pelos outros homens. Schafer provoca dizendo que onde há uma fonte de ruído sem censu-ra, há um pólo de poder. Porque a questão não é apenas produzir barulho, mas ter di-reito de fazê-lo sem ser incomodado, com a anuência e simpatia dos demais.

O que talvez esteja por trás das idéias nascidas dos pontos que unem som e o que chamamos aqui de espiritualidade seja a forte presença da vida que o som insiste em trazer. Para explicar melhor:

A audição prefere se fixar não no som invariável, mas no som que varia

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na literatura que trata do som há sempre uma forte referência à sensação de vida que o som provoca. Como se o som fosse um raio de luz que corta a escuridão que é o silêncio, como coloca Wisnik. Assim, por associação, o som traria vida, enquanto o silêncio representaria a morte. Pesquisando um pouco mais, chega-se a Murray Schafer, em O Ouvido Pensante, e seu relato sobre o princípio fundador do universo estar num som (“Fiat Lux”), exatamente como seu fim, o apocalipse ser representado por um silêncio definitivo. O confronto entre vida e morte reforça uma característica singular do som, a dualidade (observada também na questão silêncio/som da onda sonora; regularidade/irregularidade dos ritmos; pressão/descompressão; tensão/distensão; princípio fundador/silêncio apocalíptico; caos/ordem; segurança/impermanência; luz/escuridão e vida/morte) pede um mer-gulho mais profundo.

Silêncio

Por que o silêncio representa a morte? É a primeira pergunta a ser respondida nesta etapa da viagem. Relembrando Wisnik, o estímulo sonoro não é uma simples movi-mentação do ar. O som é um movimento que perpassa a matéria, atingindo-a no que ela tem de animado. Ou seja o som toca a alma da matéria. Assim, onde há som, há movi-mento. E onde não há som, onde só existe o silêncio, tudo é parado, nada vibra. Nada tem vida. E se o som toca a matéria, toca, evidentemente, o corpo humano. Segundo Eckart Altenmüller, no artigo “Acordes na Cabeça”, publicado na revista Viver Mente e Cérebro, o som provoca “orgasmos na pele”, ou seja, mecanismos de auto recompensa do sistema límbico, o núcleo emocional do cérebro (Altenmüller, 2004: 24). O estímulo sonoro portanto, por vibrar, massageia a pele, os músculos e os ossos do homem e o faz sentir-se presente, vivo.

Mas há algo de estranho, porque, se o homem teme o silêncio, por ser um presságio da morte, por que o procura

em determinados momentos, como nos templos, ou no contato com a natureza? A resposta de novo pede uma distinção entre ocidentais e orientais. Enquanto os primeiros reforçam e legitimam o poder real e simbólico representados numa forma sonora, os últimos, ao contrário, reverenciam o estado silencioso. Não que o oriental não seja tocado pelos poderes do som. Eles o são e de forma até parecida com o dos ocidentais, mas culturalmente aprenderam a valorizar o silêncio. Porque meditar, estar com o corpo quieto, segundo sua tradição, ajuda a mente a ficar quieta e, assim, chegar a estágios mais avançados de percepção. Os habitantes do hemisfério ocidental da Terra, por outro lado, sentem-se incomodados e sem vida se não houver, pelo menos, um radinho ligado.

E, por isso, Schafer afirma que o ho-mem moderno – especialmente o do oci-dente – está paulatinamente ficando surdo. Os ruídos são cada vez mais altos – seja na fala, na música, seja no que ele chama de ruído branco. Termo emprestado da ótica, onde a soma de todas as matizes resulta na cor branca. Ruído branco é exatamente a soma de todos os ruídos de um ambiente. O som que preenche um lugar, como o som característico de um restaurante, ou de uma rua movimentada. Schafer acredita que no ocidente, por uma série de razões, o homem está exacerbando uma caracte-rística que é natural para a humanidade. “O homem gosta de fazer sons e rodear-se com eles. Silêncio é resultado da rejeição da personalidade humana. O homem teme a ausência do som como teme a ausência da vida” (Schafer, 1991: 71).

Uma das razões para o homem querer estar cercado por barulhos, como já foi dito, é que o som e, particularmente a música, podem tocar o ser humano, em termos físicos – através das vibrações – e em termos emocionais.

“O som é um objeto subjetivo, que está dentro e fora, não pode ser tocado dire-tamente, mas nos toca com uma enorme

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precisão. As suas propriedades ditas dinamogênicas tornam-se, assim, demo-níacas (o seu poder, invasivo e às vezes incontrolável, é envolvente, apaixonante e aterrorizante)” (Wisnik, 1990: 28)

O que o autor quer dizer é que há uma atuação do som sobre parcelas do cons-ciente e do inconsciente humano e que a música especialmente tem o poder de atravessar certas barreiras do consciente e atuar no inconsciente. Por isso, embora invisível e não palpável, o som exerce poder sobre o homem, sobre seu corpo, suas emoções, seus pensamentos e essa qualidade ajuda o homem a entender que ele está vivo, que a morte está distante.

Duas afirmações intrigantes sobre ser tocado pelo som: (1) “sons mais agudos evocam um afe-to mais positivo nos ouvinte” (Gardner, 1994: 83) e (2) “Função do grave em música: hipnotizar. É um narcótico antiintelectual”. (Schafer, 1991:199). Além de revelar, de novo, a presença da dua-lidade, a contraposição entre grave e agudo reitera também a ação corporal – quanto mais grave o som, mais próxima do tato fica a audição e, por-tanto, a ação massageadora

do som sobre a pele fica mais evidente. E reforça também a ação afetiva e mental que o som tem sobre o ser humano – a música em si não significa nada, não é triste nem alegre, mas pode provocar esses estados em quem a ouve. E ao remeter ao corpo, o homem reconhece a presença da vida.

Reconhecimento

Reconhecer é um verbo importante quando o assunto é som. Em O Ouvido Pensante, Schafer propõe que o ser hu-mano tem uma simpatia a priori pelos sons produzidos pelo corpo humano, o seu ou o de outro. A pergunta é: por que essa simpatia? Uma hipótese é que

os sons que partem do corpo humano logo são reconhecidos como vindos de outros homens. Ou seja, esses barulhos corporais - sejam resultantes de gestos, de canções, de solfejos, ou até da fala – remetem à identificação da espécie. Um homem reconhece o outro pelo som. E reconhecer o outro através de seus sinais traz prazer. Ser compreendido, compre-ender e experimentar essa alteridade é uma das atividades mais caras ao ser humano (afinal a comunicação e todos os seus sistemas e linguagens nascem dessa vontade de ter com o outro). Além disso, como já foi colocado, a voz traz o passado da humanidade e as músicas também são carregadas de significados, sem falar nos sons que revelam símbolos. Tudo isso prova o papel do som no reconhecimento e na identificação entre os homens.

O que traz à tona a idéia de individuali-zação em oposição à de coletivização. Duas façanhas do som. Anteriormente foi coloca-do que o estímulo sonoro tem a capacidade de fazer o homem se concentrar, voltar-se para dentro de si e ampliar os canais de percepção. Além disso, sons, organizados ou não, também interferem de alguma ma-neira no consciente e no inconsciente do ouvinte, gerando reações. Como a música que não é em si triste ou alegre, mas pode despertar essas disposições emocionais em quem a escuta e como as vibrações que verdadeiramente acariciam ou agridem o corpo do ouvinte, reforçando a sensação de intimidade. Por outro lado, o som ganha um valor enorme quando entoado junto, cantado por várias vozes, ou tocado em har-monia. Ou seja, o som coletivo une. É como se as vozes numa igreja, por estarem juntas e pedindo a mesma graça, ficassem mais poderosas, chegassem mais fortemente aos ouvidos da divindade e amolecessem Seu coração. Tem mais. Historicamente, os sons sempre foram usados para aglutinar as pessoas. O sino chama para a missa, o show de rock atrai milhares de jovens, o discurso político anima a platéia. A língua

Em outras palavras, há uma escuta física e também uma escuta chamada de cultural

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unifica um país. O som tem, por sua nature-za essa disposição de agregar e reunir tanto o indivíduo, quanto a sua comunidade. Essa disposição para centrar o homem em si mesmo, ou fazê-lo pertencente a um grupo determinado (individualidade/co-letividade) é mais uma dualidade entre as características da natureza do som.

Imagensmentais

Outro mecanismo quase automático, quando se escuta um som – além da iden-tificação e reconhecimento – é a formação de imagens mentais, às quais Murray Schafer gosta de chamar de imagens sono-ras. Essas imagens podem ser figurativas ou não, aparecem na mente do ouvinte e estão totalmente atreladas à escuta. O som tem, portanto, o poder natural de fazer a mente humana produzir imagens que vão completar o que foi ouvido.

“[...] por faltarem as imagens, o ouvinte se sente seduzido a completá-las [...] E assim nada lhe falta [ao som] – não no sentido natural, mas representando a essência de um acontecimento, de um processo ideológico e de uma criação completa” (Arnheim, 1980: 85).

Seria muito difícil tratar da produção de imagens mentais sem citar Yara Borges Caznok e, especialmente, seu livro Música - entre o audível e o visível. Nele, a autora verifica que a relação entre audição e visão, ou seja que, no ocidente, o ouvir está ligado ao ver há muito tempo, especialmente no caso da audição musical. E, aceitando que essa relação existe mesmo, ela estabelece três ligações: sons e cores, sons e espaço, sons e imagens. Uma das explicações possí-veis para um sentido fazer o outro trabalhar é a proximidade, no sistema nervoso, dos nervos auditivos e dos nervos visuais. A localização faria com que ambos se excitas-sem mutuamente. Quando um é estimulado poderia causar reflexos no outro.

Outra possibilidade é cultural. Já no século XVII, três jesuítas, Marsenne, Kircher e Castel se lançam nos estudos

sobre sons e imagens. Precisamente sobre sons e cores.

“[São] Responsáveis pelo desenvolvimen-to físico de sua época, fazendo a passagem do pensamento medieval para o moderno. Aproveitam as descobertas científicas em relação à luz e relacionam-nas aos sons, ora de forma objetiva, ora de forma sim-bólica” (Caznok, 2003: 31).

A partir daí, os padres e outros estu-diosos dessa relação entre som e luz vão propondo uma série de relações. Quase todas apontam para a sintonia entre os sons agudos e as cores claras e vibrantes e, à medida que a escala vai ficando mais grave, também as cores vão escurecendo.

O que se está afirmando é que a com-plementação do som com imagens tem um caráter biológico, relacionado ao sistema nervoso, mas também é fruto de uma cons-trução cultural, que é tida como natural no ocidente. É uma atribuição arbitrária sugerir que sons graves se relacionam a cores escuras, exatamente como entender que os mesmos sons graves despertam sen-timentos de tristeza, ou angústia. Há, como já foi colocado antes, disposições físicas e corporais para a recepção e a significação de determinados sons seguindo certos parâmetros. Mas não se pode afastar a noção de que o que hoje temos como óbvio tem também um lado de construção muito arcaica e já muito arraigada. Também esse dom natural de seduzir o ouvinte a criar imagens gera ainda alguma polêmica. Principalmente entre os músicos e sua eterna discussão sobre se a música é uma linguagem auto-suficiente.

SimbolismoeLinguagem

Há ainda dois pontos de fundamental importância quando se fala em som. Trata-se da questão do simbolismo do som. Mur-ray Schafer diz, em O Ouvido Pensante, quando escreve registros de uma viagem ao oriente médio, que “Se alguém quiser estudar sons, não pode ignorar seu simbo-

lismo. O enorme simbolismo do mar, por

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exemplo” (Schafer, 1991: 198). E o segundo ponto é a linguagem sonora, seja em forma de música, seja em forma de linguagem oral. Os dois serão tratados juntos porque se completam e interpenetram, de forma que separá-los traria uma perda em termos da beleza e poética da coisa e da possibili-dade de aprofundamento no tema.

Para melhor entendimento do simbo-lismo do som é preciso, primeiro, saber que se entende por símbolo o código repertoriado da cultura. Ou seja, objetos, imagens, sons, que fornecem repertórios de significados para o homem tomar o mundo e a si próprio como objeto de significação. Isto quer dizer que os símbolos fornecem a bagagem segundo a qual a pessoa traduz os

signos com os quais toma-se contato. E signo, por sua vez, é tudo aquilo que significa algo para alguém. Há varia-dos sons que são símbolos e variados símbolos que se utilizam do som. É o caso do mar, citado por Schafer. O mar é, de início, para uma aldeia de pescadores, a razão e o sustento da vida. É o mar quem dita o tempo, as ativi-dades. Começar pelo mar é, talvez, a melhor maneira de relembrar algumas carac-

terísticas apontadas por Wisnik, citadas mais acima. Seu som traz informações sobre a propriedade ou impropriedade de ir buscar os peixes a cada momento. Seu som grave contínuo todo entrecortado pela batida das ondas, num ritmo irregular, porém freqüente, tem grande influência na vida – mesmo na de quem não vive do mar. O grave remete diretamente à sensa-ção do todo, do permanente, do imutável, da segurança num universo de caos. E isso traz, certamente, repouso, apaziguamento da insegurança. As batidas irregulares das ondas quebrando na praia, ao contrário, ditam um ritmo. Uma referência ao pulsar da vida, à presença e ausência, à incons-

tância. Mas é o ritmo também quem traz a alegria, caso os cortes sejam mais rápidos, ou nostalgia, caso sejam lentas as repeti-ções. São infinitas as interpretações porque infinito é o simbolismo do mar.

O discurso musical também se encaixa na categoria dos símbolos. Afinal as notas, pausas, regras, leis e sistemas podem ser entendidos como os tais códigos reperto-riados. O que quer dizer que, embora a mú-sica não descreva nem conceitue nada por si só, a sua audição, sua contemplação gera impressão e desperta possibilidades no ouvinte. Maria de Lourdes Sckeff escreve em seu artigo “Música e Semiótica” (aqui entendendo Semiótica como um sistema de signos, linguagem e forma de compor-tamento) que os parâmetros simbólicos adquirem lógica intelectual e significado psicológico e, assim, determinam efeitos diretos sobre o ouvinte (Sckeff, 1998: 37). É exatamente o que Schafer já relata tanto em O Ouvido Pensante, como em a Afinação do Mundo. Nas duas obras, o compositor sugere que os sons fundamentais (aqueles que tipicamente fazem parte da paisagem sonora de cada localidade, naturais ou não) de cada lugar são os sons arquetípicos e simbólicos e interferem diretamente no modo dos habitantes pensar, agir e encarar o ambiente. Mesmo que não sejam escuta-dos conscientemente são ouvidos o tempo todo e, assim, podem influir até no estado de espírito das pessoas. Sem eles, segundo Schafer, a vida seria bem mais pobre. O exemplo do mar, logo acima é bem carac-terístico. Schafer enumera outros tantos, como sons vindos de florestas, desertos, megalópoles, de quem mora perto de por-tos, aeroportos, estações de trem, etc.

A questão aqui é que os signos, so-noros ou não, organizam-se em forma de linguagem. E como é o som o objeto desta pesquisa, aqui interessam as formas de lin-guagem que dele se utilizam. Cabe lembrar que esta não é uma dissertação na área de lingüística, ou de arte, mas não se podia deixar de tratar destas duas linguagens: a

Uma das mais notáveis características humanas é a capacidade de se concentrar a partir da escuta de um som

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linguagem verbal e a música. As duas pos-suem uma série de diferenças, mas partem da mesma semente: o som. Aliás, Wisnik afirma que, embora hoje vejamos na fala a forma principal de comunicação, ela se ori-ginou das brincadeiras vocais, exatamente como as canções (que, diga-se, traziam enorme prazer ao homem primitivo e traz, ainda hoje, um grande prazer aos bebês, por exemplo). Música e fala têm mais um ponto em comum: nascem da vontade do homem de se expressar. Howard Gardner também acredita que “a expressão e a comunicação lingüística e musical tiveram origens co-muns e, de fato, separaram-se” (Gardner, 1994: 90). Parece que a fala se prestou à comunicação de fato, ou seja, aos relatos sobre a vida e os pensamentos. E a música rumou para o campo das artes. O enigma proposto por Gardner (e que esta pesquisa corrobora e vai tentar entender) é: como se explica que a música embora não seja usada para a comunicação explícita ou para a sobrevivência da espécie tenha uma cen-tralidade continuada na existência humana. O autor cita Lévi-Strauss para mostrar que a questão é mesmo difícil: “Se pudermos explicar a música, poderemos encontrar a chave para todo pensamento humano” (Gardner, 1994: 96). E, se de um lado, a descoberta do mistério da música poderia explicar o pensamento, de outro daria conta da parcela mais emocional também:

“Quando os cientistas finalmente des-vendarem os fundamentos neurológicos da música – os motivos para seus efeitos, seu atrativo, sua longevidade – estarão ex-plicando de que forma fatores emocionais e motivacionais estão entretecidos com fatores puramente perceptuais” (Gardner, 1994: 83).

Voltando para os pontos que perpassam linguagem verbal e simbolismo, a seguinte passagem de José Miguel Wisnik descorti-na uma relação interessante: “a música não refere nem nomeia as coisas como a lin-guagem verbal faz, mas aponta uma força toda sua para o não-verbalizável” (Wisnik,

1990: 28). Ou seja, segundo o autor, a lin-guagem verbal cristalizaria determinados conceitos, enquanto que a música, com sua fluidez, conseguiria penetrar em es-paços da mente humana e vencer certas barreiras. Por isso pode ser tão amada ou tão rejeitada. O que não se deve esquecer é que tanto a música, quanto a linguagem verbal (aqui na forma de fala) são consti-tuídas, basicamente de som. No primeiro caso, diria Shafer, é som como som. E no segundo, é som como sentido. Ter na base o som significa dizer que se é constituído do material menos palpável entre os objetos que compõem o imaginário humano. Isto é, o som – seja na forma de música, ou de fala – serve a criações menos amarradas e de efeito mais amplo. E, por isso, segundo Wisnik, “entre os objetos físicos, o som é o que mais se presta à criação de metafísicas” (Wisnik, 1990: 29).

Como já foi dito algumas vezes, uma das possibilidades da música é que ela ajuda na organização da vida. Seja para embalar, ou entreter as crianças, seja para marcar o ritmo do trabalho, seja para ilus-trar ritos, ou atos religiosos. Evidências dessa forma de utilização da música são antigas e essa força, essa marcação do tempo, do cotidiano, resistiu bravamente aos tempos e ainda hoje – claro que de formas diferentes – toca os homens e mo-tiva neles sentimentos que não mudaram muito. O que seria uma prova de que as linguagens sonoras – música ou fala – par-ticipam de um seleto grupo de atividades e capacidades que não envelhecem, que permanecem em uso na vida humana desde o início da civilização. Uma das razões para isso acontecer é que aqui es-tamos lidando com linguagens (que são a manifestação organizada dos signos que, por sua vez, são objetos que significam algo a partir de um repertório cultural, expresso na forma de símbolos) e, ao que tudo indica, o homem certamente já nasce apto para conhecer, possuir e fazer uso de processos simbólicos.

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“Parece aparente que a participação no processo simbólico faz parte da condição humana. Os humanos estão tão ‘prepara-dos’ para engajar-se em processos simbó-licos (desde a linguagem até os sonhos) quanto os esquilos estão preparados para enterrar nozes” (Gardner, 1994: 239).

Importa lembrar que, para Gardner, símbolo é qualquer entidade – material ou abstrata – que pode denotar ou referir-se a qualquer outra entidade. Ainda segundo o autor, os símbolos também transmitem significados, figuram em sistemas, como a linguagem, e têm maior significado nos produtos simbólicos, como as teorias, por exemplo. Quando fala em aptidão natural do homem em participar desses processos, Gardner também se refere a uma constitui-

ção biológica que favorece isso. Ele coloca que, embora o sistema nervoso não enten-da nada de cultura, reservou algumas de suas áreas para conhecer muito sobre lingua-gem. E a pessoa responsável por passar as tradições adian-te e manter viva a cultura de uma comunidade não sabe nada sobre células cerebrais e também nem sabe que seu inconsciente, segundo o psicanalista Jacques Lacan,

também é estruturado como uma lingua-gem, mas é capaz de conhecer e avaliar os as danças, os dramas e os padrões modela-dos pelos membros dessa comunidade.

O que tudo isso quer dizer? Que são os símbolos – e para a área de estudo dessa pesquisa – os símbolos sonoros – que fazem a ponte entre o que a biologia reservou aos homens e o que a cultura pode propiciar. Ou, nas palavras de Gardner: os símbolos abrem caminho “das inteligências cruas até as culturas acabadas”. Daí porque o som, em forma de música ou de fala (sistema oral-auditivo) toca e pode até alinhar todas as esferas de percepção e expressão do homem: físico, emocional e mental.

Aspectos Estéticos

Quando se optou pela divisão didática das características e possibilidades do som sugerida por Howard Gardner (as-pectos físicos, psicoacústicos e estéticos), acreditava-se que assim se conseguiria en-tender e revelar essas tais peculiaridades do estímulo sonoro e da audição de uma maneira equilibrada e global. E, de fato, não bastava falar da biologia e da física acústica, ou das reações e motivações que o ser humano sofre ao ser tocado, em todos os sentidos, pelo som. Existe ainda uma arte acústica (mais fortemente reco-nhecida na música, mas também presente nas radionovelas, radioteatros e também em outras formas mais contemporâneas de expressão) e é a essa áudio-arte que dedicamos esta seção.

Vocaçãoparaodrama

Novamente, agora para dar início à pes-quisa sobre arte com som voltamos a obra fundadora dessa linha de estudo, A Esté-tica Radiofônica, de Rudolph Arnheim. Já nas primeiras páginas, Arnheim coloca que “A arte sonora sempre pode criar mais drama que as artes visuais” (Arnheim, 1980: 21). Tal afirmativa traz diversas questões já abordadas anteriormente. Em primeiro lugar a questão da importância do tom sobre o conteúdo. Ou como na arte o como se diz tem mais força do que o que se diz. Nas palavras do próprio Arnheim “O significado da palavra e do efeito sonoro pouco podem fazer frente às pro-priedades dos sons (intensidade, volume, ritmo, etc)”. As palavras, na arte sonora, ficam então duplamente poderosas, já que encarnam o tom e a expressão. Porque o tom revela a emoção contida na palavra ou na nota que se entoa ou se toca. E essa emoção chega aos ouvidos e, portanto, às mentes dos ouvintes, tocando-os, causan-do efeitos muito mais diretos. Porque, na verdade, o tom seduz. Seduz quem está ouvindo a continuar ouvindo, a parar o

Uma fala, um ruído, ou uma canção soando têm o poder de organizar o caos

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que está fazendo para prestar atenção, a cantar junto, a chorar ou rir e a completar mentalmente, na forma de imagens men-tais, aquilo que ouve. O que remete, no-vamente à questão da participação. A arte sonora prescinde de seu ouvinte para ser completa e, portanto, repleta de imagens mentais. Isso faz de cada um, uma espécie de co-autor do que está sendo dito e, desta forma, alguém importante, de valor, com um papel a ser cumprido. E essa emoção faz diferença. Permite, por exemplo, que o ouvinte se entregue mais facilmente e tenha suas barreiras mentais burladas pelas qualidades da música ou do discur-so. O que, segundo, José Miguel Wisnik, teria grande influência no consciente e no inconsciente do ser humano.

Mas antes de chegarmos tão fundo, vale lembrar que as características do som, intensidade, volume, ritmo, timbre, etc, também tocam o ser humano fisicamente. As vibrações emanadas caminham pelo ar e chegam aos ouvidos, donde trilham para o cérebro e ganham sentido, interpretação, mas também chegam à pele, aos músculos, aos órgãos e aos ossos, causando sensações físicas bem definidas. De volta ao exemplo do bebê no útero da mãe, dependendo da qualidade das vibrações que ele capta, a partir do líquido amniótico, ele fica tenso ou relaxado. O ritmo constante e infindá-vel do coração da mãe marca a segurança, a permanência, garante um estado relaxado, enquanto as vibrações e barulhos dos mo-vimentos digestivos, repentinos, graves, inconstantes, podem causar certo descon-forto, certo temor e, portanto, certa tensão. E se desde pequeno o ser humano reage a isso, à medida que cresce e vai atribuindo valor simbólico aos sons, essa relação vai se aprofundando. De forma que, às vezes, só por ouvir uma certa canção, a pessoa chora, ou ri, ou se irrita, ou se lembra de alguém, ou se arrepia e etc.

Mais do que isso, Arnheim sugere, por exemplo, que os seres humanos trans-feriram para as artes sonoras valores e

capacidades quase humanos. Ou seja, a determinadas notas ou acordes na música e nas artes sonoras, são atribuídos poderes de duas naturezas: (1) de tocar e provocar reações – como os acordes maiores trazem alegria e os menores, tristeza. “Os tons da música podem remeter a esse ethos [ethos musical seria uma espécie de poder que os sons teriam sobre os estados emocionais, corporais e psíquicos, tanto individuais, quanto coletivos]” (Caznok, 2004: 32). Assim, segundo Yara Caznok, o ré menor traria um sentimento de tranqüilidade e placidez e o ré maior traria um sentimento alegre, barulhento e assim por diante; e (2) de representar as emoções e disposições humanas. “As elevações e as quedas são o ar-tifício mais rápido para representar tensões e relaxamentos psíquicos” (Arnheim, 1980: 30). E, novamente de acordo com Yara Ca-znok, essas representações foram descritas e utilizadas como um receituário musical. Se o compositor queria um som insinuante, expansivo, usava um sol maior.

SomeEmoção

Wisnik garante que essa construção simbólica da música como a arte que me-lhor traduz o ser humano e a alma humana é tão forte que, a partir de uma conexão intuitiva entre o pulsar da música e o pulsar do coração – levantada por ele e também por Yara Casnok – construiu-se toda uma terminologia para a música e para os sons de forma geral que ligam a música ao corpo. Além do já citado pulso para se referir ao ritmo da música, também os andamentos (a própria palavra já remete ao movimento humano) ganham qualidades humanas. “O andamento médio é o andante. Sua forma mais lenta é o largo e as indicações mais rápidas associadas já à corrida afetiva do allegro e do vivace (os andamentos se incluem num gradiente de disposições físi-cas e psicológicas)” (Wisnik, 1990: 19).

Por isso não se pode negar que à mú-sica foram atribuídos aspectos afetivos.

E que talvez ela os tenha de fato. Howard

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Gardner, em As Estruturas da Mente, cita o compositor Arnold Shoenberg – não sem antes avisar que o compositor não era conhecido por seu sentimentalismo:

“Música é a sucessão de sons e combi-nações de sons organizados de modo a exercer uma impressão agradável ao ou-vido e sua impressão à inteligência é ser compreensível. [...] Estas impressões têm o poder de influenciar partes ocultas da nossa alma e das nossas esferas sentimen-tais e [...] esta influência nos faz viver num paraíso de desejos preenchidos ou em um inferno sonhado” (Gardner, 1994: 82).

Ainda segundo Gardner, a música não transmite em si mesma emoções ou afetos, ela capta as formas destes sentimentos e muito cedo o filósofo grego Sócrates

reconheceu entre modos musicais e traços da perso-nalidade humana. Também talvez seja para negar esse poder emocional que a mú-sica tem que ao longo dos séculos foram inúmeras as tentativas de associar a músi-ca à matemática. Ou seja, um esforço para mostrar a racio-nalidade da música e negar seus poderes emocionais.

Tudo isso porque a mú-sica tem a capacidade de

jogar o homem para dentro de si mesmo e tomar contato com o que há de verda-deiramente seu. Maria de Lourdes Sckeff propõe que a música instiga nosso tempo, espaço e movimento psíquico e aproxima o homem de si mesmo (Sckeff, 1998: 44). E, se se retoma a presença constante da dualidade, quando o assunto é som, tem-se do outro lado da moeda o som provo-cando uma viagem para fora de si mesmo. Ou seja, a música pode tanto convidar o homem a visitar seu interior, sua intimida-de, como pode também fazê-lo atravessar o espaço físico e o tempo. A idéia de Schafer em A Afinação do Mundo é que a música pode vencer barreiras físicas e

com seu poder de penetração e motivação do ouvinte pode tirá-lo da sala de concer-to, nos dias de hoje e jogá-lo num campo com pastores, camponeses e caçadores do século XVIII, através das descrições da natureza feitas pelos compositores Vivaldi, Haendel e Haydn, por exemplo. Essa possibilidade de deslocar o ouvinte no tempo e no espaço, evidentemente no plano mental, foi e é até hoje apreciado e utilizado pelos compositores.

Schafer chama esse local da mente humana, esse que não pode ser alcançado por nenhum telescópio, de Head space, ou em português, espaço da cabeça.

“As drogas e a música são os meios de provocar a entrada nesse espaço. No espaço da cabeça, na audição com fones de ouvido [mais íntima e personalizada], os sons não apenas circulam em volta do ouvinte mas, literalmente, parecem emanar de pontos situados dentro do próprio crânio, como se os arquétipos do inconsciente estivessem conversando” (Schafer, 2001: 172).

E, se a audição da música pode propor-cionar uma integração consigo mesmo, can-tá-la faz o homem retomar o seu lugar junto da humanidade por conta de todas aquelas características já citadas anteriormente, como a organização e a permanência sobre o caos que é a vida e o mundo.

ÂncoraSensorial

Por fim, para trazer um dado de contem-poraneidade, Schafer (isso foi escrito nos anos 70) sugere que a música contemporâ-nea (aspecto que vai desde a canção em si até a relação entre a indústria fonográfica e as emissoras de rádio), deixou de ser uma antena do espírito e passou a ser uma âncora sensorial estabilizadora. “De fato, a função da indústria de gravação de fornecer redundância e, conseqüentemente, estabi-lidade à vida, numa época em que o futuro parece incerto, não deve ser subestimada, e se os sucessos das estações de rádio que repetem sempre as mesmas canções servir

Ruído branco é exatamente a soma de todos os ruídos de um ambiente

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como alguma indicação, os seres humanos não ignoram esse valor” (Schafer, 2001: 166). O que significa que o homem gosta muito da repetição, da redundância. Elas

proporcionam certeza e ordem num uni-verso desordenado e, sabidamente, o maior anseio humano é por permanência, por segurança, pela ordenação do caos.

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Comunicação: Meios e Mensagens

Mauro Souza Ventura1 Doutor em Teoria Literária pela FFLCH–USP

Docente do Curso de Jornalismo e do Mestrado da [email protected]

Resumo

O artigo traz uma leitura de Wege nach Rom [Caminhos para Roma], de Otto Maria Carpeaux, publicado em Viena em 1934. Excluído pelo autor de sua própria bibliografia, a obra revela aspectos desconhecidos do pensamento de Carpeaux, alguns fundamentos humanísticos e estéticos da primeira fase de sua obra crítica, e um diagnóstico da situação da arte nos séculos XIX e início do século XX. Efetuamos uma aproximação entre Carpeaux e p Trabalho das Passagens, de Benjamin, no sentido de sugerir um Carpeaux “leitor” de Benjamin.

Palavras-chave: Modernidade, arte e mercado, Otto Maria Carpeaux, Walter Benjamin.

Abstract

The interprets “Wege nach Rom” (Roads to Rome), by Otto Maria Carpeaux. It was published in Vienna in 1934, but excluded by the author of his own bibliography. The work reveals unknown aspects of Carpeaux’s thought. He presents some of the humanistic and aesthetical fundaments that characterized the first phase of his critical work, a diagnosis of the art situation in the 19th and early 20th centuries, and formulates some of his aesthetic conception criteria. We compare Carpeaux’s book to Benjamin’s Passage-werk to identifying contact point that suggests Carpeaux as a Benjamin’s reader.

Key words: Modernity, art and market, Otto Maria Carpeaux, Walter Benjamin.

Resumen

El artículo efectúa una lectura interpretativa de Wege nach Rom (Caminhos para Roma), de Otto Maria Carpeaux. Publicado en Viena en 1934, y excluido por el autor de su propia bibliografía, esta obra revela aspectos aún desconocidos del pensa-miento crítico de Carpeaux. En ella, el autor presenta algunos de los fundamentos humanísticos y estéticos que caracterizan la primera fase de su obra crítica, elabora un diagnóstico de la situación del arte en los siglos XIX e inicio del siglo XX y formula algunos de los criterios a partir de los cuales su concepción estética se orienta. En este artículo, efectuamos una aproximación entre Carpeaux y Benjamin con la finalidad de identificar puntos de contacto entre los dos autores. En esta operación metodológica asume papel crucial el cotejo de Wege nach Rom con Pasajes, de Walter Benjamin, lo que nos lleva a hablar de un Carpeaux “lector” de Benjamin.

Palabras clave: modernidad, arte y mercado, Otto Maria Carpeaux, Walter Benjamín.

Carpeaux crítico da modernidade: uma interpretação de Wege nach Rom

Carpeaux as a critic of modernity: an interpretation of “Wege nach Rom”

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Carpeauxcríticodamodernidade...

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1 Este artigo integra pesquisa mais ampla, em andamen-to, sobre os ensaios europeus de Otto Maria Carpeaux. Em sua fase inicial, no primeiro semestre de 2006, esta pesquisa contou com o apoio fundamental do CIP – Cen-tro Interdisciplinar de Pesquisa, da Faculdade Cásper Líbero, a quem deixo meu agradecimento.2 “Er erklärte die Religion als eine Vorform der Phi-losophie, das Dogma als eine Art unentwickelte und unvollkommene.” A tradução deste e dos demais trechos citados de Carpeaux é do autor.

ntes de chegar ao Brasil, em 1939, e de dar início à extensa produção de crítica literária e

cultural que o transformou em um dos mais importantes ensaístas brasileiros, Otto Maria Carpeaux escreveu e publicou dois livros e uma série de artigos, que ele próprio se preocupou em excluir de sua bibliografia. Uma dessas obras é um pe-queno, porém denso, livro de 224 páginas publicado em Viena em 1934 e intitulado “Caminhos para Roma – Aventura, queda e triunfo dos espíritos”.

Obra de difícil classificação, já que transita pela filosofia, teologia, história das idéias e até por conhecimentos científicos, foi na verdade publicada numa coleção

de estudos chamada “Bo-letim de cultura e história contemporânea”, dirigi-da por Nikolaus Hovorka. Conforme indica o autor na introdução de Caminhos para Roma, o livro aborda diferentes correntes de pen-samento - da religião à polí-tica, da ciência à moral - para demonstrar que em todas essas vertentes de idéias, recolhidas preferencial-mente na obra de autores não católicos e até anti-ca-

tólicos, uma constante se repete: a de que todos os caminhos filosóficos, estéticos e humanísticos conduzem para um mesmo ideal: a unidade do Ocidente cristão sob a égide de Roma (Karpfen, 1934).

No decorrer dos sete capítulos que compõem o livro, o autor empenha-se em demonstrar que a religião de Roma é o ponto para onde convergem todos os movimentos do espírito. A interpretação que buscamos deste livro está ancorada na concepção do catolicismo enquanto religião positiva. Ao contrário do que sugere o título, a idéia de que todos os caminhos conduzem a Roma não pode ser confundida com o ideal de tolerância

A que, a partir do Iluminismo, conduz ao conceito de religião natural. Uma coisa é admitir que todos os caminhos religiosos levam a Deus; outra muito diversa é afir-mar que todos levam a Roma. Apesar de construir um sistema de idéias e analogias marcadamente intelectualista, o exercício filosófico de Carpeaux neste livro não o insere no contexto de um deismo ou mesmo de uma religião natural. Há um esforço evidente de Carpeaux no sentido de contrapor os conceitos de racionalismo, iluminismo e autonomia da moral à uma concepção de mundo centrada nas idéias de dogma, tradição e fé. Para sustentar tal operação teórica, Carpeaux invoca Hegel. “Ele entende a religião como uma pré-forma da filosofia e o dogma como uma arte rudimentar e imperfeita” (Kar-pfen,1934:83)2.

Outro aspecto relevante desta obra está na relação entre experiência religiosa e expressão literária que, em Carpeaux, transita de uma visão da religião como dogma para uma posição mais atenuada: o fenômeno religioso enquanto consci-ência, presença latente no espírito de alguém cuja religiosidade também sofreu transformações. Nesse sentido, uma das hipóteses levantadas neste artigo está na afirmação de que a própria fé católica de Carpeaux passou por um processo de secularização, cuja causa parece estar em sua trajetória pessoal.

Caminhos para Roma deve ser visto como uma pré-história do Carpeaux intér-prete literário que, em sua fase brasileira, transformou um procedimento doutriná-

Carpeaux, transita de uma visão da religião como dogma para o fenômeno religioso enquanto consciência

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MauroSouzaVentura

3 “Wahre Kunst ist Gottesdienst, ist Religion”. 4 “Man muß nur einige Nammen erinnern, um zu erken-nen, wie es katholischer Geist war, der die Kunst von den Niederungen der sterbenden Renaissance zu den Gipfeln des Barock emporführte. War es nich der greife Michelangelo, der die Kuppel von St. Peter beim Vatikan emporwölbte, und nachts in erschütternden Gedichten und die Gnade Christi rang?”

universo artístico é visto como um estado de religiosidade: a celebração, o culto, as oferendas. A obra de arte confere materia-lidade aos rituais”(Knoll, 1996:113). Nes-se sentido, escreve Carpeaux na abertura do quinto capítulo, “A luz de Satã” [Die Sonne Satans], objeto de análise deste ar-tigo: “a verdadeira arte é adoração a Deus, é religião” (Karpfen, op. cit., 1934:107)3.

Cabe destacar também que, tanto em Benjamin quanto em Carpeaux, as consi-derações sobre a arte e a literatura estão centradas na idéia de perda da tradição, perda da narração clássica e perda da aura (Gagnebin, 2004).

A estreita relação entre arte, religião e história é a chave para se compreender os argumentos teóricos contidos em Ca-minhos para Roma. No referido capítulo, Carpeaux descreve o momento em que a arte troca a inspiração divina por temas seculares. Para ele, a perda é irreparável.

Antes, porém, ele relembra aqueles momentos em que a arte encontrava na Igreja sua inspiração. Sempre em tom apo-logético, Carpeaux ressalta a fidelidade da arte, em todos os tempos, à Igreja de Roma. De Dante a Celano, de Palestrina a Bellini, passando pelo pintor Anselm Feuerbach, Carpeaux invoca inúmeros artistas que fundamentaram na Igreja a temática de suas criações.

“Devemos apenas lembrar de alguns nomes para saber que o espírito cató-lico conduziu a arte dos temas baixos da moribunda Renascença para o ápice do Barroco. Não são evidentes a cúpula abobodada da Catedral de São Pedro no Vaticano, obra de Michelangelo, ou o triunfo de Cristo no comovente episódio da Graça?” (Karpfen,1934:111).4

rio em tábua de valores estéticos. Tem-se, portanto, duas fases bastante distintas. Nesta obra de 1934, a religião é uma totalidade, uma cosmovisão em que o dogma religioso é o pólo em torno do qual giram todas as demais instâncias da vida e do pensamento. Já o Carpeaux crítico literário, que no Brasil interpreta Kafka, Dostoievski, Claude Mauriac e Graham Greene à luz de questões como o mal, a fé, o pecado e a graça, está consciente de que determinadas obras e autores solicitam tal interpretação.

Em Caminhos para Roma, Carpeaux traça um diagnóstico da situação da arte nos séculos XIX e XX e formula alguns dos critérios a partir dos quais sua concepção estética se orienta. Para iluminar o contex-to de produção desta obra, será feita uma aproximação entre Carpeaux e Benjamin com a finalidade de identificar pontos de contato e de afastamento entre os dois autores. Nesta operação metodológica as-sume papel crucial o cotejo de Caminhos para Roma, de Carpeaux, com duas obras de Walter Benjamin: Passagens e Origem do drama barroco alemão.

Uma dessas aproximações está na visão teologizante da Arte e da História. Cumpre assinalar senão o parentesco, pelo menos a proximidade com o “fun-damento divino de toda história (“die götlich Grundlage aller Geschichte”) presente em Friedrich Schlegel e que tanta influência exerceu sobre Benjamin. Nossa hipótese é a de que tanto o conceito de arte quanto o diagnóstico severo de Carpeaux, presente em Caminhos para Roma, a respeito do processo de secula-rização sofrido pela arte contemporânea, assentam-se sobre este fundamento teo-lógico a que nos referimos.

Também próxima desta fundamentação está a visão hegeliana segundo a qual a arte é vista enquanto celebração, culto. “Ao longo das Lições sobre estética a consideração da obra de arte pela via da religião é extremamente freqüente. O

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Carpeauxcríticodamodernidade...

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5 “Es lebt derselbe katholische Geist in den steil zu mystischen Himmeln aufstrebenden Gestalten des Greco wie in den volkstümlich innigen Madonnen und Schutzengeln des Murillo, in den rauschenden Kirchenfesten des Rubens wie in den bäuerlichen Anbetungen des Caravaggio. Es lebt katholischer Geist in der großen Tonmeistern des Barock, in Be-nevoli, der achtundvierzig Stimmen übereinander zu türmen wußte, in Scarlatti, der die süßen Melodien des Südens der Kirche dienstbar machte. Es lebt ka-tholischer Geist in der spanischen Dichtung, die von Lope bis Calderon sich mit besonderer Innigkeit der Verherrlichung des allerheiligsten Altarsakramentes weihte. Es lebt christicher und katholischer Geist in der großen klassischen Dichtung der Franzosen, deren Meister der Sprache von Pascal und Bossuet bis zu Racine und Fénelon alle gute Christen waren.”.6 “Ein großes Sterben beginnt. Es ist ein katholisches Kunstwerk, Mozarts Requiem, das diese Kunst und diese Gesellschaft zu Grabe geleitet. (...) Dann gehen die christlichen Themen der Kunst verloren. Die große Deformation der Seelen beginnt. Die Kirche verarmt; und andere Auftraggeber treten an ihre Stelle.”

7 “Der gottgeweihte Prunk des Barock verwandelte sich in den luxuriösen Zierat einer verfaulenden Gesellschaft”.

Além de glorificar o barroco e a con-tra-reforma, Carpeaux destaca a presença viva do espírito católico em diversas criações artísticas:

“Vive o mesmo espírito católico tanto no estilo e nas formas ambiciosas dos céus de El Greco como também nas imagens de piedade popular de Madonas e anjos de Murillo, assim como nos ornamentos para festas religiosas feitos por Rubens ou nos admiráveis e rústicos aldeões de Caravaggio. Vive o espírito católico nos grandes mestres sonoros do Barroco, em Benevoli e seus cânticos para 48 vozes, em Scarlatti, em que a suave melodia do Sul põe-se a serviço da religião. Vive o espírito católico na poesia espanhola de Lope a Calderón (...). Vive o espírito católico e cristão nos grandes poemas

clássicos dos franceses, em mestres da língua como Pascal e Bossuet, Racine e Fénelon, pois todos esses eram cristãos” (Karpfen,1934:111).5

Carpeaux recorre ao con-texto da história da arte para demonstrar o quanto foi ín-tima a relação entre criação artística e catolicismo e o quanto a primeira sempre beneficiou-se desta proximi-dade. Mas um novo capítulo da história da arte tem início com este processo de secu-

larização, que faz os temas cristãos serem deixados de lado. Escreve o crítico:

“Uma grande morte tem início. E é uma obra católica, o Réquiem de Mozart, que acompanha ao túmulo esta arte e esta sociedade. (...) Os temas cristãos da arte se perdem. Uma grande deformação da alma tem início. A Igreja empobrece e um outro público toma seu lugar” (Kar-pfen,1934:112)6.

Carpeaux identifica em obras como Ifi-gênia e Fausto, de Goethe, e nos cantos de Hölderlin e Novalis, assim como na Missa Sollemnis, de Beethoven, os últimos acor-des de uma época em que a arte se alimen-tava da religião ou, para usar as palavras

Caminhos para Roma deve ser visto como uma pré-história do Car-peaux intérprete literário

do crítico, tempo em que a arte verdadeira era culto e adoração ao divino.

O conjunto de mudanças no âmbito da arte descrito por Carpeaux coincide com aquilo que Ernst Cassirer denominaria, também nos anos 30, de uma nova cons-ciência religiosa. Um ethos substitui o antigo pathos religioso, que havia causado tantas guerras de religião nos séculos pre-cedentes. A liberdade individual passa a reger a própria concepção de religião. Ao homem recém saído de sua condição de menoridade não cabia mais submeter-se a forças superiores. “O homem não deve mais ser dominado pela religião como por uma força estranha; deve assumi-la e criá-la ele próprio na sua liberdade interior”, escreve Cassirer (1994:225).

Mas o movimento de Carpeaux segue direção oposta, ou seja, de crítica ao racionalismo da Aufklãrung e de defesa do barroco: “a pompa sagrada do barroco converte-se nos adornos luxuriosos de uma sociedade decadente”, escreve (Kar-pfen,1934:112)7.

Estamos diante de um rompimento com a tradição e, para usar um termo im-portante em Benjamin, diante do ocaso da

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idéia de aura. Ao descrever o momento em que a arte deixa de ser fruto do mecenato para guiar-se pelos condicionamentos do incipiente mercado de bens culturais e do nascente público consumidor, Carpeaux lamenta o rebaixamento do conteúdo ar-tístico e as adaptações de tempo, espaço e de estilo em função do novo público a que a arte agora se dirige. Como em Monsieur Jordain, comédia de Molière em que apa-recem dançarinos,cantores e poetas, mas cuja atuação está submetida ao gosto do próprio Monsieur Jordain.

Não mais as lentas missas solenes ou as sussurrantes cerimônias religiosas. Mon-sieur Jordan deseja aquilo que seus amigos comerciantes bem-sucedidos querem, ou seja, coisas mundanas e burguesas. No século 19, Monsieur Jordan é o cliente da arte” (Karpfen,1934:112)8.

Impregnado de uma visão aristocrática e, por vezes, até ingênua, Carpeaux lamenta o abandono dos temas religiosos e, ao mes-mo tempo, o vínculo com os imperativos do mercado. A epopéia termina, a música sacra morre e a ópera se transforma em dramalhão, pois já não se tem mais tempo para obras longas e reflexivas. “A epopéia acaba, pois é muito longa e lenta para um homem de negócios, que tem pouco tempo. Reduzem-se primeiro o romance, depois a novela e finalmente o conto”, escreve (Karpfen,1934:113)9.

Ao mesmo tempo em que deixa de ser expressão do mundo religioso, a criação artística perde a projeção que possuía até então. Como explica Knoll, “o valor estético passa a ser dimensionado pelo mundano. Os heróis, os semi-deuses, os santos, aqueles que portam um notável ou um terrível destino deixam de ser os grandes atores da arte. Entra em cena o homem comum. A arte como momento da ‘totalidade divina’ já cumpriu sua missão” (Knoll, 1996:115). É evidente que esse momento histórico não é considera-do por Carpeaux, que continua a exigir da arte que cumpra uma missão que a história já enterrou.

O diagnóstico de Carpeaux sobre a secularização da arte se completa com esta abordagem histórico-social, em que o fazer artístico é, cada vez mais, visto como dependente do mercado. O inconformis-mo de Carpeaux com os rumos tomados pela modernidade chega a tal ponto que ele não hesita em afirmar que “a arte se prostituiu”. Prostituiu-se, primeiro, ao abandonar a religião enquanto fonte de inspiração e, em segundo lugar, ao se submeter às regras do mercado. Assim como rejeita qualquer ampliação da idéia de religião, seja no sentido de um deísmo ou de uma religião natural, Carpeaux não aceita igualmente qualquer dilatação do horizonte da arte. À religião positiva cor-responde, pois, uma arte positiva.

“Esta é a época na qual passamos a apreciar um artista após sua morte e a obra é rebaixada à condição de objeto de especulação. Gostamos mais de construir prédios para a Bolsa e galerias do que igrejas”(Karpfen,1934:113)10.

A passagem acima encontra correspon-dência na conhecida análise de Benjamin sobre as condições de produção e consumo da obra de arte na época da reprodução técnica. Mas é quando escreve sobre a Paris do século 19 que a simetria entre Carpeaux e Benjamin torna-se mais explí-

8 “In einem Lustspiel von Moliere nimmt ein rei-chgewordener Parvenu, Monsieur Jourdain, Tanz-meister, Sänger und Dichter in reichlichen Sold. Aber sie müssen tanzen, singen und dichten, was dem Monsieur Jourdain gefällt. Nichts mehr von langweiligen Hochämtern und rauschenden Festen. Monsieur Jourdain will sehen und hören, was seinem Kaufmannsherzen Freude macht, weltliche und bür-gerliche Dinge. Im 19. Jahrhundert wurde Monsieur Jourdain der Auftraggeber der Kunst.”.9 “Das Epos hört auf; es ist zu lang und zu langweilig für einen Geschäftsmann, der wenig Zeit hat. Es verkürzt sich erst zum Roman, dann zur Novelle und endlich zur Kurzgeschichte.”.10 “Es ist die Zeit, da man die Künstler erst nach ihren Tode zu schätzen beginnt und die Werke der Verhunger-ten zu Spekulationsobjekten erniedrigt. Man baut lieber Börsenpaläste und Ausstellungshallen als Kirchen”.

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Carpeauxcríticodamodernidade...

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11 “Das Drama bedarf absoluter religiöser und sittlicher Satzunger, für oder gegen die seine Helden siegen oder fallen; die liberale bürgerliche Gesellschaft glaubt aber an keine absoluten Werte mehr, sie läßt die Werte steigen und fallen wie die Börsenkurse.”

12 “Wüst war sein Gedicht, das die schillernden und übel-riechenden Blumen des Bösen feiert und in einen Hymne an Luzifer gipfelt.”

peaux, principalmente quanto ao teor de crítica à modernidade. Segundo Oehler, no século XIX, “os poderes das trevas, se-gundo o entendimento conservador, são os radicais, os democratas, os republicanos vermelhos, os socialistas, os comunistas e anarquistas, os agitadores, raivosos e sub-versivos. Eles desviam o povo, bom em si mesmo, do caminho direito e o conduzem ao erro” (Oehler, 1999:40).

Ilustrativos dessa abordagem são os termos usados por Carpeaux para se referir a Baudelaire: “alma católica mo-ralisticamente deformada”, que veste a “máscara do anticristo” e que descobriu a “deformação de sua alma cristã” (Kar-pfen,1934:115). É interessante observar que o crítico Jean Royère considera Bau-delaire um místico católico (Auerbach, 2007:320, nota 7). Outros exemplos podem ser encontrados não só no título do capítu-lo que enfocamos neste artigo (“A luz de Satã”), mas também pelo uso freqüente de expressões de conotação religiosa e moral, tais como, “deformação bárbara” e “paga-nismo bárbaro”, ou ainda, a observação de que vivemos numa sociedade “decaída em brutal materialismo e ateísmo”.

Carpeaux classifica Baudelaire como um poeta anticristão e de vida tumultuada, e sua poesia reflete esse estado de coisas: “assim era sua poesia, como a cintilante e fétida Flores do Mal, um enorme hino à Lúcifer” (Karpfen,1934:115).12 Quando se contrapõe a visão de Carpeaux e Benjamin sobre Baudelaire, observa-se uma simili-tude entre as expressões “Hino à Lúcifer”, empregado por Carpeaux, e as “Litanias de Satã”, poema de As flores do mal.

cita. “Paris vive o auge da especulação. A atividade especulativa nas bolsas supera as formas do jogo de azar herdadas da sociedade feudal” (Benjamin, 2006:49). É interessante confrontar com outro trecho de Benjamin, também de Passagens, no exposé de 1935:

“A imprensa organiza o mercado de va-lores espirituais provocando no primeiro momento uma alta. Os inconformados rebelam-se contra a entrega da arte ao mercado. Agrupam-se sob a bandeira da ‘arte pela arte’ ”(Benjamin, p.48).

As observações de Carpeaux sobre os rumos tomados pela arte estão fun-damentadas na ausência de um estatuto ou de uma norma (no caso, de natureza

moral e religiosa) regendo a atividade artística.

“O drama necessita de uma norma religiosa e moral abso-lutas, a favor ou contra, para o triunfo ou a queda dos seus he-róis. Mas a sociedade burguesa liberal não tem mais nenhum valor absoluto, deixando os valores subirem ou descerem ao sabor das cotações da Bolsa” (Karpfen,1934:113).11

Por trás desta ausência de valores assinalada por Carpeaux, é possível identi-

ficar uma atitude de reação à nascente in-dústria de bens simbólicos, principalmente pelos efeitos desses novos valores de classe na condição humana, no esgarçamento das relações entre fé e moral, entre arte e fé. Em suma, Caminhos para Roma é uma obra pautada pela crítica à modernidade a partir de um ponto de vista religioso.

A questão de fundo remete-nos ao con-texto histórico e cultural do século XIX, em que os inimigos costumavam ser des-qualificados como bárbaros e demônios. Nesse sentido, a reconstrução histórica do período feita por Dolf Oehler em O velho mundo desce aos infernos pode ser útil para contextualizar esta obra de Car-

A relação entre arte, religião e história é a chave para se compreender Caminhos para Roma

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13 “(...) gegen einer Zeit und eine Gesellschaft, die sich christlich nannten und dabei dem wüstesten Materia-lismus und Atheismus verfallen waren.” 14 “In seiner Verzweiflung rief er die Engel und die Dämonen an; und die Dämonen kamen.”15 “Er, der die auf sich allein gestellte Kunst – l’art pour l’art – auf ihren höchsten Gipfel gefürt hatte, fühlte am Abend seines Lebens den Flügelschlag des Blödsinns über seinem Haupte. So stürzte diese anima naturaliter catholica. Und mit ihr stürzte die Kunst in den Abgrund des Aesthetizismus, in das Nichts. Sie hatte Abentung ge-fordert, Abentung an Stelle Gottes; sie war zur leuchtenden Sonne Satans geworden.”

Ao mesmo tempo, o crítico não deixa de reconhecer em Baudelaire a coragem para protestar “contra uma época e uma sociedade que se denomina cristã mas que se encontra decaída em um brutal mate-rialismo e ateísmo” (Karpfen,1934:115).13 Carpeaux observa que Baudelaire consi-derva-se como vítima desses novos tem-pos e em seu desespero invoca, ao mesmo tempo, anjos e demônios. “Baudelaire sente-se como uma vítima dessa época liberal. Em seu desespero, chama pelo anjo e pelo demônio; e o demônio vem” (Karpfen,1934:116).14 Como assinala Auer-bach, Baudelaire “degrada a si mesmo e a toda a vida terrestre, mas, em meio à sua degradação, faz o possível para preservar seu orgulho” (Auerbach, 2007:324).

Oehler argumenta que o uso de cate-gorias teológico-morais para interpretar o movimento histórico e, por que não, artís-tico, era um dos traços do pensamento do século XIX. “Para os conservadores como para os defensores do progresso e mesmo da revolução, a história e a atualidade apresentam-se como uma luta entre o bem e o mal, entre os poderes da luz e o das trevas”, escreve Oehler (1999:42). Ora, o mal é uma idéia fixa entre os teóricos, es-critores e publicistas do período. Não será exagero inferir que Caminhos para Roma é uma obra cujo contexto de produção remete a esse ambiente, ou melhor, a esse combate típico do século XIX, contra o mal e contra a luz de Satã. Em seu estudo, Auerbach argumenta que a interpretação não apenas de Baudelaire, mas também de outros artistas desesperados do século XIX, como “casos exemplares de luta pela fé”, era comum aos críticos católicos do período (Auerbach, 2007:324-325). Ilus-trativa desta concepção é o modo como Carpeaux se refere a Baudelaire:

“Ele, que colocou a arte no mais alto pata-mar – a arte pela arte – sente, no entardecer de sua vida, a estupidez rondando sobre sua cabeça. Então cai por terra esta anima naturaliter catholica. E cai também a arte

no abismo do esteticismo, no vazio. Mas a adoração possui exigências, a adoração ocupa o lugar de Deus, ela é a luminosa luz de satã” (Karpfen,1934:116).15

Uma citação de Thibaudet, recolhida por Benjamin no “arquivo temático I – Baudelaire”, e incluído em “Notas e Materiais” [Passagens], permite estabe-lecer correlação com a visão de Carpeaux sobre o poeta francês, que, em seu deses-pero, pede socorro tanto ao anjo quanto ao demônio.

“O catolicismo filosófico e literário de Baudelaire precisava de um lugar interme-diário onde se alojar entre Deus e o Diabo. O título Les limbes (Os limbos) marcava essa localização geográfica dos poemas de Baudelaire; permitia perceber melhor a ordem que Baudelaire quis estabelecer entre eles, que é a ordem de uma viagem e, precisamente, de uma quarta viagem depois das três viagens dantescas do In-ferno, do Purgatório e do Paraíso. O poeta de Florença continua no poeta de Paris” (Benjamin, 1984:279).

As confluências não cessam: Carpeaux cita o personagem de Molière, Monsieur Jordan, como o novo cliente da arte; Ben-jamin, por seu turno, refere-se mais de uma vez, à nova situação social em que a arte “põe-se a serviço do comerciante” (Benjamin, 1984:55).

Neste ponto uma questão se impõe: estamos nos anos 1930, época em que co-meçam a surgir importantes formulações críticas à Modernidade, cujos elementos de análise são: Baudelaire e as Flores do

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Carpeauxcríticodamodernidade...

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mal, o ideal urbanístico de Haussmann, a técnica, as relações entre arte, público e mercadoria, o novo processo de produ-ção da arte, o surrealismo e o papel das vanguardas. Todos esses assuntos estão presentes, em maior ou menor grau, neste livro de Carpeaux, Caminhos para Roma, e integram, como é sabido, os temas e as reflexões que perpassam o pensamento de Benjamin, principalmente em Passagens, sua obra-prima inacabada.

De acordo com Tiedemann, (Benjamin, 13-14) as primeiras notas para este livro começaram a surgir em 1927 e Benjamin trabalhou neste projeto durante treze anos, até sua morte em 1940. Considerando que

as primeiras anotações de Benjamin para o texto Paris, a capital do século XIX datam de 1935 (o chamado Exposé de 1935), enquanto que Caminhos para Roma data de 1934, não será um despropósito con-cluir que Carpeaux e Benjamin refletiram no mesmo período sobre essas questões, ainda que não exatamente com o mesmo enquadramento teórico. Com efeito, o mínimo que se pode dizer é que há entre Carpeaux e Benjamin bem mais do que uma proximidade temática: trata-se de uma identificação e uma concepção de mundo que apresenta inúmeros pontos de contato, e cujos indicadores preliminares este estudo buscou evidenciar.

Referências bibliográficas

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Comunicação: Meios e Mensagens

Irineu Guerrini Jr. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP

Professor da Faculdade Cásper Lí[email protected]

Resumo

Este trabalho, em versão resumida, procura avaliar a programação das emissoras de rádio educativo do Estado de São Paulo. Foram tomadas, como amostras, as programações de uma emissora ligada a uma universidade pública (USP – São Paulo, São Carlos e Ribeirão Preto); uma emissora mantida por uma fundação laica (107 FM, da Fundação Educacional e Cultural Pedrense, de Itápolis); uma emissora de orientação católica (Rádio Boa Nova, de Praia Grande) e uma emissora de orientação evangélica (Logos FM, de São José dos Campos).

Palavras-chave: Rádio, Educação, São Paulo.

Abstract

This paper, in an abridged version, tries to evaluate the programming of the educational radio stations of the state of São Paulo. The stations taken as samples are: a radio station of a state university (Radio USP - University of São Paulo); a station controlled by a secular foundation (107 FM – Fundação Educacional e Cultural Pedrense, Itápolis); a station of Catholic ori-entation (Rádio Boa Nova, Praia Grande) and a station of neo-Pentecostal orientation (Logos FM, São José dos Campos).

Key words: Radio, Education, São Paulo.

Resumen

Este trabajo, en versión resumida, busca evaluar la programación de las emisoras de radio educativa del Estado de São Paulo. Se tomaron como muestras las programaciones de una emisora ligada a una universidad pública (USP – São Paulo, São Carlos y Ribeirão Preto); una emisora mantenida por una fundación laica (107 FM, de la Fundación Educacional y Cultural Pedrense, de Itápolis); una emisora de orientación católica (Radio Boa Nova, de Praia Grande) y una emisora de orientación evangélica (Logos FM, de São José dos Campos).

Palabras clave: radio, educación, São Paulo.

Rádio educativo no Estado de São Paulo: o ideal e o real1

Educational radio in São Paulo state: the ideal and the real

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RádioeducativonoEstadodeSãoPaulo...

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1 Trabalho apresentado ao NP de Rádio e Mídia Sonora, do VIII Encontro dos Núcleos de Pesquisa da Intercom.

Introdução

xistem cerca de trezentas e cin-qüenta emissoras de rádio educa-tivo no Brasil, e destas, cinqüenta

e cinco localizam-se no Estado de São Paulo (Anatel, jan. de 2007). São mantidas por universidades públicas e privadas, prefeituras e fundações laicas e religiosas. Qual deveria ser o papel dessas emissoras, segundo alguns princípios de educação e de modernos conceitos de rádio e televisão públicos, tomados como ideais, neste tra-balho, para emissoras sem fins lucrativos? Elas cumprem as determinações legais que se aplicam à radiodifusão educativa no Brasil? Algumas emissoras serão tomadas como casos exemplares e sua programação

analisada. Na grande maioria das cinqüenta e cinco emisso-ras, a distância entre o ideal, como compreendido neste trabalho, e o real é enorme.

1- O que é rá-dio educativo?

A palavra “educar” origi-na-se do verbo latino duco, que significa “conduzir”: o professor, numa concepção tradicional, “conduz” o

aluno com vistas à sua integração na so-ciedade. Mas um conceito mais moderno de educação, como o de Paulo Freire, vai mais adiante: supera-se a relação vertical, estabelecendo-se uma relação dialógica. O educador já não é aquele que apenas edu-ca, mas o que, enquanto educa, também é educado. E a finalidade dessa relação já não é apenas integrar o educando na so-ciedade, mas transformá-la, através de um conhecimento reflexivo e crítico (Freire, 1996, passim) Quantas emissoras de rádio educativo cumprem esse papel?

Num estudo de janeiro de 2002, feito por Bernardo F.E. Lins, consultor legisla-tivo da Câmara dos Deputados, o autor,

Eincluindo tanto o rádio como a televisão, lembra que entre as funções usualmente atendidas pelas emissoras públicas e alternativas incluem-se:

1. divulgação independente de fatos e procedimentos de caráter público e go-vernamental;

2. divulgação de programação de elite, que encontraria pouco espaço na grade das emissoras comerciais, tal como progra-mas voltados a temas eruditos, à cultura clássica, à divulgação científica, a debates, análises e estudos de caso;

3. divulgação de programação educativa e de ensino à distância;

4. divulgação de programas locais, de cultura popular e de atividades comu-nitárias;

5. veiculação de programas experimentais (Lins, 2002, passim).

Mais recentemente, e referindo-se a outro veículo, tem-se disseminado no Brasil o conceito de “televisão pública”, como no livro Televisão pública: do consumidor ao ci-dadão, organizado por Omar Rincón e publi-cado em dezembro de 2002, – mas a origem desse conceito vem do rádio, quando a BBC britânica, ainda nos anos vinte, e contando somente com o rádio, instaurou o modelo “público”. Parece válido, então, resgatar, mais do que estender, o conceito para o rádio, e tentar definir o que é rádio público:

- Em primeiro lugar, o controle da emis-sora, ainda que indireto, não é do Estado nem de um grupo particular, mas da so-ciedade civil organizada, por meio de seus representantes num conselho;

- O ouvinte não é um consumidor, mas um cidadão, com todos os direitos e deveres que essa condição implica;

- A finalidade da emissora não é obter lu-cro, mas produzir programas de utilidade social, com uma visão reflexiva, crítica e transformadora. (Rincón, 2002, passim).

Existem cerca de trezentas e cinqüenta emissoras de rádio educativo no Brasil

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IrineuGuerriniJr.

2 Brasil, Portaria Interministerial nº. 651, de 15 de abril de 1999.

3 Idem, ibidem. 4 Brasil, Decreto-Lei nº 236, de 28 de fevereiro de 1967.

Art. 14. Somente poderão executar serviço de televisão educativa: a) a União; b) os Estados, Territórios e Municípios; c) as Universidades Brasileiras; d) as Funda-ções constituídas no Brasil, cujos Estatu-tos não contrariem o Código Brasileiro de Telecomunicações.

Parágrafo 1. As Universidades e Fundações deverão, comprovadamente, possuir recur-sos próprios para o empreendimento.

Parágrafo 2. A outorga de canais para televisão educativa não dependerá da publicação do edital previsto no artigo 34 do Código Brasileiro de Telecomunicações (Brasil, 1967)4

Mas há uma diferença fundamental en-tre a outorga de freqüências para emissoras comerciais e para finalidades educativas: a obrigação de licitação pública para as primeiras e a não-obrigação dessa licitação para as segundas. E freqüentemente, as outorgas vão para instituições, como uni-versidades e fundações, ligadas a políticos. Em 25 de agosto de 2002, a Folha de S. Paulo publicava uma matéria com o título: “FHC distribuiu rádios e TVs educativas para políticos”, na qual afirmava:

Ele [o presidente] acabou com a distribui-ção política das emissoras comerciais, tor-nando obrigatória a venda de concessões por licitação pública. Mas deixou uma porta aberta para a negociação política: as emissoras educativas continuaram sendo concedidas pelo Executivo. Em sete anos e meio de governo, além das 539 emissoras comerciais vendidas por licitação, FHC autorizou 357 concessões educativas sem licitação (Folha De S. Paulo, 2002, p. 6).

Em seguida, o jornal relata uma série de casos de concessões feitas a políticos. Em princípio, a não-obrigatoriedade de licitação poderia ser justificável quando se trata de emissoras educativas: já que não são comerciais, o que se deve analisar

2. Leis e políticas

Um documento legal vigente assim define, em seu artigo 1º, os programas educativo-culturais:

Art. 1º - Por programas educativo-cultu-rais entendem-se aqueles que, além de atuarem conjuntamente com os sistemas de ensino de qualquer nível ou modalida-de, visem à educação básica e superior, à educação permanente e formação para o trabalho, além de abranger as atividades de divulgação educacional, cultural, pedagógica e de orientação profissional, sempre de acordo com os objetivos nacio-nais. (Brasil, 1999)2

O artigo acima faz parte da Portaria In-terministerial nº 651, de 15 de abril de 1999, baixada pelos Ministérios da Educação e das Comunicações. Mas o artigo seguinte desse mesmo documento formaliza o que já vinha sendo praticado há dezenas de anos, e talvez tenha tranqüilizado de uma vez por todas as emissoras de rádio e televisão quanto às suas obrigações educativas e culturais:

Art. 2º - Os programas de caráter edu-cativo, informativo ou de divulgação desportiva poderão ser considerados educativo-culturais se nele estiverem pre-sentes elementos instrutivos ou enfoques educativo-culturais identificados em sua apresentação (Brasil, 1999)3

Na prática, o artigo acima da Portaria In-terministerial instaura um verdadeiro “vale-tudo”, pois sempre haverá uma maneira de classificar qualquer programa de rádio ou de televisão como “instrutivo” ou “educativo-cultural”. Assim, pode-se obter a outorga de uma freqüência de rádio ou tv educativos, e depois de obtê-la, colocar no ar uma pro-gramação de emissora comercial, que obtém lucro com a veiculação de comerciais. Isso realmente acontece em muitas emissoras educativas. Outro aspecto a ser considerado é a política de outorga de concessões para emissoras educativas. O Decreto-Lei nº 236, de 28 de fevereiro de 1967 (governo Castello Branco) previa em seu artigo 14 (cuja inter-pretação foi estendida para o rádio):

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são os méritos da instituição que pleiteia uma freqüência, bem como seu projeto para a emissora. Mas fica evidente o uso político que se pode fazer – e realmente se faz – quando a concessão não depende de licitação pública. Entretanto, como veremos adiante, o principal ator político nessa prática não é o Presidente da Repú-blica, mas o Congresso.

Outra questão importante é a possibi-lidade de veiculação de comerciais nas emissoras educativas. Refletindo a ten-dência às privatizações do governo federal da época, foi aprovada a Lei nº 9.637, de 15.05.98, referente ao Programa Nacional de Publicização. Vejamos o artigo primeiro e o artigo quinto dessa lei:

Art. 1º O Poder Executivo poderá qualificar como or-ganizações sociais pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, cujas ati-vidades sejam dirigidas ao ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnoló-gico, à proteção e preservação do meio ambiente, à cultura e a saúde, atendidos os requisitos previstos nesta Lei.

Art. 5º Para os efeitos desta Lei, entende-se por contrato de gestão o instrumento fir-mado entre o Poder Público e

a entidade qualificada como organização social, com vistas à formação de parceria entre as partes para fomento e execução de atividades relativas às áreas relacionadas no art. 1º. (Brasil, 1998)5

E também é muito importante para esta análise o artigo 19 da mesma lei:

Art. 19. As entidades que absorverem atividades de rádio e televisão educati-va poderão receber recursos e veicular publicidade institucional de entidades de direito público ou privado, a título de apoio cultural, admitindo-se o patro-cínio de programas, eventos e projetos, vedados a veiculação remunerada de anúncios e outras práticas que configu-rem comercialização de seus intervalos (Brasil, 1998)6.

Permite-se o patrocínio de programas proibindo-se, apenas a inserção de comerciais

No que se refere a rádio e televisão, visava-se primordialmente à Fundação Roquette Pinto (mencionada na própria lei), até então uma fundação de caráter estatal, mantida com verbas federais. A FRP, com sede no Rio de Janeiro, que controlava a TV Educativa e a Rádio MEC, foi extinta e deu lugar a uma “organiza-ção social” - a ACERP – Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto7. Embora, em princípio, a lei visasse à Fun-dação Roquette Pinto, por extensão as suas determinações têm sido tomadas como modelo por todas as emissoras de rádio e televisão educativas do país, mesmo an-tes da regulamentação dessa lei, o que só aconteceu em março de 2005 (ver abaixo). Finalmente, em 21 de março de 2005, foi assinado, pelo Presidente da República, o Decreto nº 5.396, que regulamenta a lei acima e é aqui reproduzido:

Art. 1o As organizações sociais que exer-cem atividades de rádio e televisão edu-cativa podem receber recursos e veicular publicidade institucional de entidades de direito público ou privado a título de:

I - apoio cultural à organização social, seus programas, eventos ou projetos; e

II - patrocínio de programas, eventos ou projetos.

Art. 2o A publicidade institucional poderá ser veiculada nos intervalos de programas, eventos ou projetos, bem assim nos inter-valos da programação, conforme o que for estabelecido em prévio ajuste entre o patrocinador e o patrocinado.

Art. 3o No caso de apoio cultural a deter-minados programas, eventos ou projetos, é facultada a indicação da entidade apoia-dora no seu início ou fim.

Art. 4o O patrocínio poderá estar vincu-lado a um determinado programa ou a uma programação como um todo, a um

5 Brasil, Lei nº 9.637, de 15.05.986 Idem, ibidem. 7 Recentemente, a TV Educativa e a Rádio MEC foram integradas à Empresa Brasileira de Comunicação.

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8 Brasil, Decreto nº 5.396, 21.03.2005.

determinado evento ou projeto ou a um conjunto de eventos ou projetos.

Parágrafo único. O patrocínio de progra-mas, eventos ou projetos permite, confor-me prévio ajuste entre o patrocinador e o patrocinado, a divulgação de produtos, serviços ou da imagem do patrocinador no seu início, fim ou intervalos, bem como nos intervalos da programação ou de outros eventos ou projetos, desde que inserida nos seus respectivos anúncios.

Art. 5o É vedada, nos termos do parágrafo único do art. 1º do Decreto n.º 4.799, de 4 de agosto de 2003, a publicidade insti-tucional de entidades de direito público que, direta ou indiretamente, caracterize promoção pessoal de autoridade, servidor público, empregado público ou ocupante de cargo em comissão.

Art. 6o É vedada às organizações sociais que exercem atividades de rádio e televi-são educativa a veiculação remunerada de anúncios ou outras práticas que configu-rem comercialização de seus intervalos.

Art. 7o A publicidade institucional veicu-lada por organizações sociais que exercem atividades de rádio e televisão educativa deverá observar o atendimento, exclusi-vamente, da finalidade social da atividade educativa e cultural da organização.

Art. 8o Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação (BRASIL, 2005)8

Assim, de acordo com a regulamenta-ção acima, permite-se que haja patrocínio de programas (com a veiculação de co-merciais do patrocinador), proibindo-se, apenas, de acordo com o artigo sexto, a inserção pura e simples de comerciais nos intervalos de programação que não sejam dos próprios patrocinadores dos programas – o que na prática pode levar a uma mera distinção formal. Ou seja, nada impede uma emissora de assinar um contrato com possíveis interessados em veicular anúncios, atribuir o patrocínio de um programa a um desses interessados – o que satisfaz a determinação legal – e vei-cular seus anúncios nos intervalos como qualquer emissora comercial faria.

Mas o mais importante é que, de acor-do com a legislação atual, para que uma emissora de rádio ou televisão, educativa ou comercial, possa funcionar, é necessá-rio obter uma aprovação do Congresso. O percurso de uma solicitação para a abertura de uma emissora pode ser assim descrito, seguindo-se as fases do processo legislativo ordinário:

Em primeiro lugar, a entidade inte-ressada encaminha um pedido ao Minis-tério das Comunicações, pleiteando uma freqüência. Esse pedido, acompanhado de alguns documentos, é analisado pelo Ministério e encaminhado pelo Ministro, através de uma portaria, ao Presidente da República. Este, normalmente, aprova o pedido, e encaminha-o para a aprovação pelo Congresso, de acordo com o artigo 49 da Constituição Federal:

Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional

..................................................................

XII - apreciar os atos de concessão e reno-vação de concessão de emissoras de rádio e televisão (Brasil, 1988)

O pedido é analisado pela Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática, CCTCI, uma das 20 comissões permanentes da Câmara dos Deputados, constituída por quarenta deputados ti-tulares e quarenta deputados suplentes. Uma vez aprovada em plenário – o que normalmente é – a solicitação vai então para o Senado – que normalmente também a aprova. Essa aprovação pelo Senado toma a forma de um “decreto legislativo”, isto é, um ato daquela casa que não pre-cisa ser encaminhado para o Presidente da República para sanção ou veto, e que já entra em vigor assim que for publicado no Diário Oficial da União.

Deve-se lembrar que os controladores das emissoras de rádio e televisão, co-

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ção cara que vêm gratuitamente de fora; e atualmente são raras as co-produções entre as emissoras ou simples intercâmbio de programas, procedimentos que poderiam combinar uma produção mais rica com uma diluição de custos. Será que apenas a autonomia da programação ou o seu caráter local justificam isso? A emissora brasileira X não retransmite um programa da emissora brasileira Y, mas justifica-se um programa produzido no exterior, ou uma seleção de discos com um flashback de sucessos americanos dos anos oitenta (exemplo real)?. Atualmente, no que se refere à programação, a maioria das emisso-ras de rádio pertence à categoria “musical”, exatamente pelos motivos expostos.

A programação das emissoras de rádio educativo também é, na sua maior parte, musical, com o uso de material fornecido pelas gravadoras – é a forma mais barata de manter uma emissora de rádio no ar.

4. Alguns casos exemplares

Para todas as emissoras, adotaram-se os seguintes graus de avaliação, sempre se-gundo os critérios de Freire, Lins e Rincón, relacionados nas páginas 1 e 2: a) satisfaz totalmente os critérios adotados (nenhuma atingiu esse grau); b) satisfaz parcialmente os critérios adotados e c) não satisfaz os critérios adotados.

4.1Umaemissorapertencenteaumauniversidadepública–RádioUSP

A Rádio USP foi criada em 1977, para ser um canal de comunicação entre a Universidade de São Paulo e a sociedade. Entretanto, nos seus primeiros anos, não passava de um “vitrolão” de certa qualida-de, isto é, sua programação era constituída de uma sucessão de gravações musicais fornecidas pelas gravadoras, com o sim-ples anúncio dos seus respectivos títulos,

intérpretes e autores feitos por alguns lo-

merciais e educativas, são, muito freqüen-temente, representantes de poderosos grupos locais (muitos deputados federais e senadores fazem parte desses grupos), além de vários setores da Igreja Católica (que detém grande número de canais de rádio e televisão comerciais e educati-vos) e que conta com boa bancada no Congresso, e as principais denominações evangélicas (idem), que também dispõem de um bom número de representantes no Legislativo federal.

3. Uma tentativa de avaliação das programações

As emissoras de rádio educativo possuem, na sua programação, uma maior autonomia que as de TV educativa. Nestas, como os custos são muito mais altos, costuma haver uma boa porcentagem de programas produzidos pela TV Cultura de São Paulo ou pela TVE do Rio de Janeiro. Já nas rádios educativas, a programação costuma ser mais autôno-ma. O custo é muitíssimo menor - muitos programas

são apenas seleções de discos. E há tam-bém aqueles que chegam gratuitamente do exterior, como da Deutsche Welle (emissora internacional da Alemanha), Radio Nederland (idem, da Holanda), Rádio França Internacional, BBC (Reino Unido) etc., como parte do empenho dos governos desses países em praticar uma “diplomacia pública”, isto é, comunicar-se diretamente com públicos de outros países, diferente da diplomacia tradicio-nal, de relações entre governos.

Assim, nas emissoras de rádio educa-tivo brasileiras, boa parte da programação é pouco elaborada porque se conta com poucos recursos; há programas de produ-

As emissoras de rádio educativo possuem, na sua programação, uma maior autonomia que as de TV

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9 Posteriormente, foram feitas algumas correções grama-ticais no site, mas as demais características da emissora continuam exatamente as mesmas. 10 A matéria continua na seção Arquivo (junho de 2008).

cutores sem maior ligação com as músicas apresentadas. Atualmente, a maior parte da programação da emissora ainda tem essa característica: das 168 horas semanais (24x7) que a emissora fica no ar, cerca de 70% são preenchidos com uma programa-ção musical sem nenhuma produção mais elaborada, apenas com a identificação das músicas. Grande parte dessa programação é preenchida com música popular brasileira, mas, atualmente (junho de 2008), a emis-sora vem colocando no ar um programa diário de dance music – forma de música pop bastante comercial - com apresentação em estilo DJ (disc jockey), com uma hora de duração e com reapresentações diárias, ou seja, um total de quatorze horas no ar por semana (Rádio USP, 2008). Isso, numa emissora da Universidade de São Paulo! Os 30% restantes são programas que con-tam com uma produção mais trabalhada e/ou com apresentadores/produtores que possuem uma ligação mais estreita com o conteúdo do programa. Por exemplo, professores do Departamento de Música da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP que são responsáveis por alguns programas musicais que refletem as suas especialidades. A emissora de São Paulo é cabeça de rede, com retransmissoras nos campi de São Carlos e de Ribeirão Preto. Áudio ao vivo e arquivo de programas disponíveis em www.radio.usp.br.

Avaliação: satisfaz parcialmente os critérios adotados.

4.2Umaemissorapertencenteaumafundaçãoprivada:107FMFundaçãoEducacionaleCulturalPedrense-Itápolis

Uma medida das preocupações dessa fundação “educacional e cultural” com a função da sua emissora de rádio educati-vo é o texto sobre a história da emissora divulgado no seu site. Alguns trechos, transcritos literalmente (Atenção, leitor: transcritos literalmente!):

A Rádio FM 107,7 de Itápolis, Surgiu de um sonho na década de 1980, de dois jovens que sempre gostarão de eletrônica, e em especial de Rádio-Freqüência... Com o Objetivo de Informar, Divertir, Anunciar as pessoas de Itápolis, então começou as tão sonhadas transmissões, mais sem com-promisso... todos queriam ouvir a então programação da “Rádio Radinho”, que era feita de qual jeito mais sempre diferente das outras emissoras regulamentadas [sic] (Rádio FM 107, 2006).9

O slogan da emissora também dá uma idéia da sua intenção: “O que você gosta de ouvir a gente gosta de tocar”. A sua progra-mação não revela nenhuma preocupação com a condição de emissora educativa: nela se encontra o repertório musical mais banal e comercial, e o estilo de apresentação é idêntico ao de muitas emissoras comerciais, bem como a inserção de comerciais. No site podem-se saber quais são as “Top 10” (as dez mais tocadas) no programa “Ferveção”.

O site também reproduz algumas ma-térias do “Jornal 107 News”. As relações com o comércio local parecem ir muito bem, como se pode ver nesta abertura de matéria do dia 12/12/06:

Aconteceu ontem a grandiosa inauguração da decoração de natal de Detalhes Presen-tes com uma grandiosa festa com distribui-ção de brindes para as crianças. O repórter Edson Jr conversou com Bernadete Bonini, uma das proprietárias da loja e tem mais informações (Rádio FM 107, 2006).10

No site ficamos sabendo, também, das “Promoções 107”. Em dezembro de 2006, a emissora, juntamente com o jornal “Toque News”, liderava uma “Promoção” – com a participação de muitas lojas do comércio local, com sorteios de prêmios todos os dias, e em janeiro de 2007, “um Fusca [usado?] lotado de prêmios”(Rádio FM 107, 2006).

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Assim como muitas outras emissoras ditas “educativas”, a 107 FM parece ser um empreendimento comercial que se valeu da possibilidade de, através da criação de uma fundação – as fundações são entidades que, por lei, não visam ao lucro – obter gratuitamente uma freqüência de emissora educativa e explorá-la comercialmente. E o ouvinte, como na maioria das emissoras educativas ou comerciais, não é visto como cidadão, mas simplesmente como consumi-dor. Áudio em www.radiofm107.com.br/

Avaliação: não satisfaz os critérios adotados.

4.3Umaemissoramantidaporentidadecatólica-RádioBoaNovaFundaçãoEducacionaleCulturaldePraiaGrande–DiocesedeSantos

A Rádio Boa Nova de Praia Grande é uma emissora que transmite uma programação religiosa. E aqui se coloca uma importante questão, que pode ser assim resumida:a) O Estado brasileiro, desde a proclama-

ção da República, é um estado laico. Ao menos legalmente, existe uma separação completa entre a Igreja (no caso, católica) e o Estado, algo herdado da Revolução Francesa.

b) Os critérios adotados neste trabalho para avaliação das emissoras educa-tivas, que começam com o conceito de educação de Paulo Freire, passam pelos trabalhos de Bernardo Lins e Omar Rincón e recapitulam a legis-lação vigente, não contemplam o proselitismo religioso como a preocu-pação, central ou periférica, de uma emissora educativa. O proselitismo religioso visa, de modo geral, a sal-vação individual – uma importante exceção é a Teologia da Libertação, nos últimos tempos em baixa, dada a orientação do Vaticano – enquanto que os princípios laicos de educação e de radiodifusão educativa passam pela transformação social.

c) As freqüências de radiodifusão são li-mitadas – o número de emissoras não pode ser ilimitado – e é o Estado quem delas dispõe e as concede segundo determinados princípios.

d) Sem dúvida, uma emissora educativa pode e deve tratar de temas religiosos, tão importantes em qualquer cultura. Mas sempre de forma pluralista, refletin-do a composição da sociedade brasileira e o caráter laico do Estado que a repre-senta, e que é a única entidade capaz de garantir a total liberdade religiosa.

e) Todas as emissoras educativas de orien-tação religiosa – católicas e evangéli-cas – fazem proselitismo religioso de forma maciça na sua programação. O que parece ocorrer é que, com o devido apoio político, e sempre que possível, é muito mais interessante obter uma fre-qüência de emissora educativa, sempre sem licitação. Em geral, as emissoras educativas religiosas retransmitem, em parte pelo menos, programação gera-da por emissoras religiosas de status comercial – fica assim evidente a não especificidade da sua programação. No site da emissora (Rádio Boa Nova,

2008), a sua Presidente, Maria Cristina Paula Rossi, conta como a freqüência foi conseguida. Ela informa que procurou pri-meiro obter o parecer favorável do promo-tor local – no interior, os promotores locais também são curadores das fundações exis-tentes em suas jurisdições. O promotor ela chama de “padrinho”, o que parece uma intimidade indevida - como alguém que por determinação legal é o fiscal das fun-dações pode ser chamado de “padrinho” de uma delas? Para os trâmites em Brasí-lia, contaram com o apoio fundamental do deputado federal Salvador Zimbaldi (PSB). A presidente afirma: “sabemos que não foram tempos fáceis, muitas viagens a Brasília, São Paulo e Campinas [a base eleitoral do deputado], telefonemas dia e noite.” Uma reunião final do deputado e representantes da Fundação com o

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11 O deputado posteriormente foi afastado da Fundação João Paulo II, e as fotos, retiradas do site. 12 “Conquistar o mundo inteiro a Cristo pela Imaculada”.

13 Informações constantes no site em janeiro de 2007. Esse programa já não está na programação da emissora, tendo sido substituído pelo programa “Momento da Palavra”.

Ministro das Comunicações fez com que este enviasse ao Presidente o pedido de concessão para que fosse aprovado.

O deputado Salvador Zimbaldi era (não é mais) um homem de confiança do grupo Canção Nova (rádio e televisão) mantido pela Fundação João Paulo II, com sede na cidade de Cachoeira Paulista. Diz o site Folha Online de 6 de agosto de 2006:

Homem de confiança da Canção Nova, Zimbaldi tem extensa folha de serviços prestados à causa católica: é ativo mi-litante contra a legalização do aborto, a união civil de pessoas do mesmo sexo, a clonagem, a eutanásia e a pesquisa com células-tronco.Defende ainda os interes-ses das entidades católicas, como a TV Canção Nova. (Folha On-line, 2006).

O deputado também tentou impedir, sem êxito, a exibição do filme “O Código Da Vinci” e há 25 anos é membro da Movimento Católico Carismático. Mas as suas atividades parecem não se restringir à defesa desses princípios. Segundo o site já citado da Folha Online, estaria envol-vido com o recente superfaturamento de ambulâncias fornecidas pelo Ministério da Saúde:

A prova mais eloqüente do envolvimento de Zimbaldi com a Planam [a empresa que superfaturou as ambulâncias] está no site da Canção Nova, que exibe fotos em que ele aparece com as chaves das ambulâncias entregues ao posto médico Padre Pinto [mantido pela Fundação João Paulo II] em 26 de março de 2004: o nome Planam está na lataria dos carros. (Folha Online, 2006)11.

A Rádio Boa Nova de Praia Grande retransmite a Rede Milícia Sat das 22h às 05h50min, diariamente, e vários outros horários distribuídos pela programação, juntamente com grande número emissoras. Gigantesca, a Rede Milícia Sat é mantida pela Associação Milícia da Imaculada, uma “associação de fiéis, pública e inter-nacional de direito pontifício (O Mílite, 2006: capa e 3), que possui 611 emissoras de rádio espalhadas pelo mundo, das

quais detém o número maior no Brasil: 354 emissoras, a grande maioria delas de status comercial (O Mílite, 2006:14)12 A emissora cabeça-de-rede é a Rádio Milícia da Imaculada de Santo André.

No site havia algumas discrepâncias entre a grade de programação semanal e as páginas que descrevem cada programa. Constava, por exemplo, que das 09h às 10h a emissora retransmite o programa “Momento da Fé”, com o popularíssimo Padre Marcelo Rossi. Uma ligação para a emissora comprovou que isso era verdade, e não o que constava na grade semanal (Jornal e Clube do Ouvinte). Na mesma li-gação, foi informado que o programa “Mo-mento da Fé” era gerado pela rádio Canção Nova, de Cachoeira Paulista, e distribuído para muitas emissoras comerciais13.

Transmite duas vezes por dia o pro-grama PG Notícias – Noticiário Oficial da Prefeitura de Praia Grande. Curiosamen-te, inclui na sua programação de fim de semana uma produção humorística: Los Hermanus. Áudio disponível em www.radioboanova.net

Avaliação: não satisfaz os critérios adotados.

4.4Umaemissoramantidaporentidadeevangélica-LogosFM-FundaçãoLogos–EdiçõesJor-nalísticaseRadiodifusão-SãoJosédosCampos

Segundo informação telefônica, a emissora educativa de São José é cabeça da Rede Amiga, da qual fazem parte a emissora Logos FM de Itatiba (também educativa), Rhema FM de Barão de An-tonina/Itaporanga (comercial) e Torre Forte AM de Buritana (comercial), todas

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RádioeducativonoEstadodeSãoPaulo...

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14 O ex-governador é o fundador dessa denominação. Sabe-se que a origem da sua projeção política foi um programa de rádio que mantinha na cidade de Campos.

no Estado de São Paulo. Fica prejudicada, assim, a especificidade das duas emissoras educativas. A programação é predominan-temente evangélica interdenominacional e sempre proselitista: constam da grade programas da Igreja Assembléia de Deus (a denominação evangélica com maior número de fiéis); da Igreja do Evangelho Quadrangular; o programa “Palavra da Paz”, apresentado pelo ex-governador do Rio de Janeiro Anthony Garotinho, da Igre-ja Presbiteriana Luz do Mundo,14 transmi-tido em rede por muitas outras emissoras; da Comunidade Cristã Fonte da Vida; da Igreja Batista; da Igreja Nova Aliança; da Igreja Mundial do Poder de Deus e da Igreja do Evangelho Deus Faz o Impossível. Um

verdadeiro loteamento da grade da emissora!

As observações feitas para o caso anterior, de emissora católica, aplicam-se na sua totalidade às emis-soras evangélicas. Áudio disponível em www.radio-amiga.com

Avaliação: não satisfaz os critérios adotados.

Finalmente, vale obser-var, também, que entre as emissoras evangélicas de status legal educativo, há

uma emissora em Ourinhos e emissoras em Jundiaí e Louveira, da Fundação Evangélica Trindade (Renascer), que retransmitem a emissora comercial de São Paulo pertencen-te ao mesmo grupo, cujos diretores (donos?) continuam detidos nos Estados Unidos (junho de 2008) por terem feito entrar ilegalmente no país uma soma elevada de dólares, tendo também sofrido um processo na justiça brasileira por lavagem e desvio de dinheiro e sonegação de impostos.

Consideraçõesfinais

Ao final deste trabalho, algumas conside-rações finais podem ser assim resumidas:

1. A primeira delas é a de que as determi-nações legais referentes à radiodifusão em geral, e especialmente quanto à ra-diodifusão educativa, formam um ema-ranhado confuso, que inclui alguns artigos da própria Constituição Federal de 1988, ainda não regulamentados, remontam ao Código de Telecomuni-cações de 1962, que não foi revogado, mas que em boa parte está superado na prática e por leis pontuais, passa por uma legislação específica que é vaga e esparsa, permite a concessão de canais sem licitação, atribui ao Congresso, onde estão muitos interesses ligados à radiodifusão, o poder de autorizar concessões através de decretos legisla-tivos, que têm valor de lei, e desemboca nas determinações mais recentes, que na prática possibilitam que as emis-soras chamadas educativas disputem a veiculação de comerciais como as emissoras comerciais.

2. A segunda é a de que não é por falta de trabalhos que estabeleçam princípios de radiodifusão educativa, ou públi-ca, que as emissoras dessa categoria deixam de cumprir o seu papel. Nesta pesquisa, além do conceito genérico de educação estabelecido por Paulo Freire, vali-me principalmente do texto de Bernardo Lins e do livro organizado por Omar Rincón. Com relação ao primeiro, deve-se observar que sendo o autor um consultor da pró-pria Câmara dos Deputados (por onde passam as solicitações de concessão de freqüências), deve-se concluir que nenhum dos seus parlamentares pode alegar ignorância do assunto quando se trata de radiodifusão educativa. As atribuições que o autor entende como características do que deve ser a pro-

O slogan: “O que você gosta de ouvir a gente gosta de tocar”

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gramação de uma emissora educativa, ou pública, se fossem seguidas à risca, já seriam suficientes para que o papel que se espera dessas emissoras fosse plenamente cumprido. Se essas atri-buições se concentram na mensagem (ou seja, na programação), o livro or-ganizado por Omar Rincón – Televisão pública: do consumidor ao cidadão – cujo teor pode ser estendido ao rádio, foi citado para o estabelecimento de princípios que se referem ao controle das emissoras públicas, que deve ser da sociedade civil organizada; dos direitos dos ouvintes e espectadores, que merecem ser tratados como cida-dãos, mais do que consumidores e, voltando-se agora para a programação, afirma que ela deve ser crítica, reflexiva e transformadora.

3. Na prática, o que se conclui levando-se em consideração o comportamento de muitas emissoras educativas, é que elas não diferem, ou diferem pouco, das emissoras comerciais. O que ocorre é que, com a maior dificuldade estabe-lecida para a concessão de freqüências de uso comercial, muitos grupos interessados em obter concessões de radiodifusão simplesmente migraram para o setor educativo, cujas conces-sões continuam sendo obtidas de modo exclusivamente político, sem licitação. É como se esses grupos dissessem: “bem, agora é muito mais difícil obter um canal comercial; portanto, usando das nossas relações políticas, vamos obter um canal educativo, mas uma vez obtido, podemos explorá-lo de maneira comercial”.

4. Na maioria dos casos, os bons exemplos, senão de uma programação na sua tota-lidade, mas de programas isolados, es-

tão na área das emissoras mantidas por entidades ligadas ao Estado. A maioria dos bons exemplos é constituída por produções de emissoras como a Rádio USP, a Rádio Cultura de São Paulo, a Educativa de Piracicaba, a Rádio Cultura de Amparo, e a Educativa de Campinas, todas vinculadas ao Esta-do ou às prefeituras de suas cidades. Em outras palavras, nem tudo o que é patrocinado pelo Estado se aproxima do ideal, mas quase sempre, nos casos em que isso acontece, ocorre na esfera que é apoiada pelo Estado.

5. No outro extremo, como verdadeiras aberrações, estão muitas emissoras mantidas por fundações privadas. O que foi afirmado acima, quanto ao com-portamento comercial das emissoras, encontra as melhores ilustrações nessa categoria, como o da 107 FM, de Itápo-lis. Essas emissoras, que são muitas, não se distinguem em nada das emissoras comerciais; não demonstram nenhuma preocupação educativa ou cultural.

6. O quadro geral é desolador, e muito difícil de ser mudado. As mudanças possíveis passam por uma melhoria na qualidade ética daqueles que compõem o Congresso – e os fatos mais recentes apontam exa-tamente na direção contrária. Passam, também, por iniciativas da sociedade civil organizada: se os ouvintes (e espec-tadores) são cidadãos, que têm um Estado a representá-los, e se é o Estado que dis-põe das freqüências e deveria fiscalizar a atividade dessas emissoras, nada mais justo que cidadãos organizados exijam uma mudança de atitude do Estado. Se esse trabalho servir, ainda que modes-tamente, como contribuição para uma única iniciativa desse tipo, o seu autor já estará plenamente satisfeito.

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RádioeducativonoEstadodeSãoPaulo...

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Comunicação: Meios e Mensagens

Resumo

A violência é tema recorrente em pesquisas, teses e livros. Muitos teóricos se dedicam a especificar o que é a violência, como ela interfere em nossa vida e como a mídia influencia na propagação e banalização da mesma. Porém, ainda são raras as pesquisas que tratam do tema em emissoras educativas. Esta pesquisa se propõe a analisar como o Jornal da Cultura, veiculado de segun-da-feira a sábado, pela TV Cultura, aborda o assunto da criminalidade e violência. Através do método de Análise de Conteúdo, foram analisadas 14 edições do telejornal e constatou-se que mesmo o telejornal de uma emissora educativa utiliza elementos sensacionalistas para atrair telespectadores.

Palavras-chave: TV Cultura, violência, jornalismo.

Abstract

Violence is a common subject in researches, theses and books. Many researchers specify what violence is, how it interferes in our life and how the media influences in spreading and trivializing it. But researches about this subject in educational channels are uncommon. This research proposes to analyze how “Jornal da Cultura”, broadcast from Monday to Saturday, on TV Cultura, deals with news about crimes and violence. Through the methodology of Contents Analysis, 14 news edi-tions were studied and it was verified that this news of an educational channel uses sensationalist elements just to attract more viewers.

Key words: TV Cultura, violence, journalism.

Resumen

La violencia es tema recurrente en investigaciones, tesis y libros. Muchos teóricos se dedican a especificar qué es la violencia, cómo ella interfiere en nuestra vida y cómo los medios influencian su propagación y trivialización. Sin embargo, aún son raras las investigaciones que tratan del tema en emisoras educativas. Esta investigación se propone a analizar cómo el Jornal da Cultura, vehiculado de lunes a sábado, por la TV Cultura, aborda el asunto de la criminalidad y violencia. A través del método de Análisis de Contenido, se analizaron catorce ediciones del telediario y se constató que hasta el telediario de una emisora educativa utiliza elementos sensacionalistas para atraer a los teleespectadores.

Palabras clave: TV Cultura, violencia, periodismo.

A divulgação da violência no telejornal da TV Cultura:

o tratamento dado ao tema por uma emissora educativa

The broadcast of violence in the TV Cultura Broad-cast News: the way this educational channel approaches the theme

Carlos Alberto de SouzaDoutor em Ciências Humanas pela UFSC

Professor de Jornalismo da Univali Líder do Grupo de Pesquisa Cultura Midiática e Linguagens - CNPq

[email protected]

Karine WenzelBolsista de pesquisa do Probic-Univali

Integrante do grupo de pesquisa Cultura Midiática e [email protected]

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Introdução

ste trabalho tem como objetivo principal analisar o tratamen-to dado pelo noticiário da

TV Cultura ao tema da violência e da criminalidade. O desenvolvimento da pesquisa envolveu duas etapas. A pri-meira consistiu em um aprofundamento da literatura sobre temas como violência e mídia, linguagem televisiva, notícia, ética jornalística, sensacionalismo. O segundo momento envolveu uma Análise de Conteúdo que segundo Bardin (2000), permite não somente quantificar os dados coletados, mas também interpretá-los, seguindo uma abordagem qualitativa. A pesquisa qualitativa, na verdade, foi

central na análise. Esta tem por finalidade, de acordo com Minayo e Sanches (1993), responder questões particulares das Ciências Humanas e Sociais, dentro de um nível de realidade que não pode ser somente quantificada.

O Jornal da Cultura (JC) é transmitido de segunda a sá-bado, tem início às 21 horas e duração de 40 minutos. O telejornal é apresentado por

Raul Lores e Michele Dufour. Na vinheta de abertura aparecem diversos quadros co-loridos com pessoas de diferentes classes e perfis dando a entender que o noticiário é voltado a todas as classes sociais, idades e gostos. A música instrumental de abertura simboliza o dinamismo, já que é rápida e pouco convencional. O JC ocupa horário nobre da programação da emissora e isso demonstra a importância que tem, princi-palmente por estar inserido em um canal educativo, no qual a responsabilidade de uma informação correta, imparcial e de in-teresse público é, ainda, mais presente.

Para verificar como o telejornal aborda a violência, foram analisadas, ao todo,

E14 edições do programa nos meses de outubro e novembro de 2007. Assim, foi possível verificar o tratamento dado ao tema e se essas matérias sobre violência tiveram desdobramentos. A proposta serviu também para analisar matérias em contextos diversos, para que não ocorresse uma mostra viciada e pré-meditada.

Reflexões teóricas

Não é novidade que a mídia expõe de maneira excessiva cenas de violência. São cenas em novelas, telejornais, filmes e programas de auditório. Ninguém escapa à exposição massiva. Por isso, torna-se fundamental compreender o que se carac-teriza hoje como violência e o porquê esta continua a ser fortemente abordada pelos meios de comunicação.

Poder-se-iam considerar, portanto, as manifestações da violência tanto como resultantes da heterogeneidade e da fragmentação, por vezes conflituosa, que caracterizam a cultura contemporânea, quanto fontes de renovação e de vida so-cial. A violência sempre esteve presente em qualquer coletividade, pois a luta e a disputa são o fundamento de qualquer relação social. (Pereira, 2000: 22).

A violência é algo intrínseco à con-dição humana, porém sofre, assim como a sociedade, mudanças constantes. Por isso, é tão difícil uma definição exata do termo. Porém, antes de tudo é necessário desmistificar a idéia de violência sempre relacionada a atos com conseqüências meramente físicas. Ana Rosa Ferreira Dias (2003: 103) defende que além de atos, há estados de violência:

Grande parte das atenções sobre violên-cia se concentra na criminalidade e seus efeitos (Bicudo, 1994), talvez porque os danos materiais e físicos sejam mais vi-síveis. Contudo, há outras modalidades de violência que acarretam prejuízos, igualmente graves (danos às crenças e costumes, morais e psicológicos) e que se referem a estados de violência.

Não é novidade que a mídia expõe de maneira excessiva cenas de violência

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manter no mercado. Como fazer isso? Dando prioridade ao que foge da rotina e atraia à massa, leia-se: violência e sexo. Dias (2003) explica que “atribui-se ao povo o desejo pela violência, e ao jornal, a função de satisfazê-lo”. Sobrinho, em 1923 (apud Dias, 2003), já defendia a idéia da ruptura de normalidade como um chamariz para o público,

[...] a violência não é apenas um desvio da imprensa, muito mais do que isso, é uma tendência do jornalismo. De qualquer aspecto que se considere o problema e qualquer que seja a natureza da impren-sa, as mais legítimas seduções a arrastam para a invectiva, que está de acordo com a psicologia popular e o jornal se faz para o povo e precisa, por isso, falar a linguagem apropriada ao elemento a que se dirige. (p. 98)

Seguindo este mesmo preceito, Wain-berg (2005:11) afirma que: a violência tem-se revelado “capaz de despertar o aparato cognitivo humano de sua apatia costumeira. É por isso um dos ingredientes que integra não só as atrações da indústria do entretenimento, mas também, e em especial, do jornalismo”.

Porém, o uso excessivo dessa estratégia para chocar e emocionar pode resultar na banalização da violência, já que o teles-pectador/leitor é submetido a cenas de violência cotidianamente. E isso faz com que o fato real perca sua importância e seu significado e se resuma à representação potencializada pelos meios de comuni-cação. A exposição de fatos chocantes tem a intenção de emocionar para além dos graus normais da tensão psicológica e caracteriza, segundo Dias (2003: 105), a contribuição mais evidente para a banali-zação do assunto, para tornar a violência ‘irreal’. “A violência retratada pelos jor-nais sensacionalistas vê-se potencializada em relação à violência vivida na realidade e essas distorções amenizam as violências efetivas, quando em confronto com as que nos são mostradas”.

De maneira simples, embora isso pareça impossível, pode-se definir a vio-lência como uma força implantada pelo ser ativo e que acarreta em algum tipo de privação para o ser passivo (quem sofre a ação). É importante salientar que nem sempre essa força resultante é negativa, pois muitas vezes é ela que faz com que as sociedades evoluam. Para Maffesoli (1987, apud Dias, 2003: 104), a violência permite o dinamismo da sociedade, resultado das diferenças e heterogeneidade da mesma. Nesse caso, a violência agiria como um “estruturante coletivo”. Pereira (2000) baseia-se nessa premissa ao defender que o conceito de violência está ligado a um ato fundador de novas idéias e discursos e que permitiu chegar à sociedade que se tem hoje, dita civilizada.

No Brasil, as manifestações de violên-cia começam a ser projetadas constante-mente e até mesmo a serem discutidas por um grande público a partir dos anos 60, com os filmes revolucionários de Gláuber Rocha. Para Pereira (2000: 20), esse mar-co resultou, dentre outros aspectos, na desmistificação do Brasil como um país pacato e pacífico.

Não é, entretanto, sem uma boa dose de espanto e mesmo de pânico que se vive esse processo de visibilidade social da violência no Brasil. É como se, ao reco-nhecer, no plano do imaginário social, a presença significativa da violência, se colocasse em xeque um dos mitos funda-dores da sociedade brasileira, qual seja, aquele do país ‘pacífico por natureza’, desconstruindo-se, deste modo, a base sobre a qual se ‘construiu a nação’.

Porém, nas últimas décadas houve uma supervalorização das representações de violência na mídia. Algo explicável pelo contexto em que se vive, marcado pela competitividade entre os meios de comunicação, queda de interesse pelos jornais, internet ganhando espaço e po-pularidade e os veículos de comunicação que, diante de tudo isso, procuram se

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Enfim, “ela – a violência – se torna mais um (entre tantos) produtos consumível, assimilável, ao ser submetida aos proce-dimentos da repetição midiática” (Pereira, 2000: 18). Rondelli (2000) garante que ao editar as matérias sobre violência, o meio cria novos sentidos para ela e faz com que o telespectador também os crie. Afirma ainda (p. 153) que no caso da televisão, a repercus-são desse fenômeno é ainda maior:

[...] as imagens televisivas operam sobretu-do como macro-testemunhas privilegiadas dos acontecimentos devido ao seu poder de visão, ubiqüidade, e de conferir o estatuto de veracidade ou de verossimilhança aos fatos, episódios ou fenômenos da violên-cia. Adicionam-lhe, ainda, a repercussão pública, retirando os fenômenos de sua

possível cinzenta obscuridade e expandindo-os de tal maneira a exigir o pronunciamento de outros atores.

Por meio de seus inúme-ros recursos (imagem, som, cores, palavras e símbolos) a televisão propicia maior ex-posição dos fatos, das infor-mações. Até porque, como destaca Bourdieu (1997), a televisão tem um fator que nenhuma outra mídia possui; ela tem o poder de abranger diversos públicos

em um único telejornal, por meio daquilo que chama de “informação-ônibus” - notí-cia suavizada, que não choca e que chega a todos, sem distinção de classe, idade, sexo ou cor. Isso, também, faz com que ocorra o fenômeno de “despolitização e banaliza-ção” dos temas. Afinal, não acontece uma crítica ou reflexão, tendo em vista que o divulgado se adapta exatamente ao que o público, em geral, pensa. O jornal televisi-vo apenas “confirma coisas já conhecidas, e, sobretudo, deixa intactas as estruturas mentais” (Bourdieu, 1997: 64).

Por conectar-se aos sentidos do te-lespectador (visão e audição), a tv acaba servindo de paradigma educativo, já que

Violência implica uma força do ser ativo e que acarreta privação para o ser passivo

seu contato com o sujeito-audiência se dá na forma emocional e sensorial. Partindo dessa premissa, infere-se que a televisão educativa funcionaria muito bem como um instrumento de educação e cultura. Fort (2005) defende que essa é a grande proposta das emissoras educativas que surgem nos anos 50 e 60, no período pós-guerra, no Japão e na Europa, como uma alternativa de educação formal. Porém, depois de al-guns anos, esses propósitos se expandem a uma educação que visa sanar curiosidades, como acontece atualmente nos canais Ani-mal Planet e Discovery Channel.

Em 1967, surge a primeira emissora educativa no Brasil, a TV Universitária de Pernambuco. Nos sete anos seguintes aparecem mais oito emissoras, dentre elas a TV Cultura de São Paulo. Esta, como afirma o diretor-presidente da Fundação Padre Anchieta, gestora da TV Cultura, e presidente da Associação Brasileira das Emissoras Públicas Educativas e Culturais, Jorge Cunha Lima (2003), é uma fundação de direito privado, criada e mantida finan-ceiramente pelo governo, mas dirigida por um Conselho representativo da sociedade. Com uma receita de 100 milhões de reais por ano, a TV Cultura consegue ter uma pro-gramação de qualidade, que rendeu mais de 113 prêmios internacionais e três dos quatro Emmy que o Brasil já ganhou. Quanto ao conteúdo, Lima (2003, p. 68) destaca quais as principais diferenças entre a proposta de uma emissora pública e comercial,

Claro que toda informação é pública, mas a informação da TV pública produz reflexão sobre os acontecimentos e, não, uma submissão à emoção proposta pelos acontecimentos. Não interessa o espetá-culo da notícia, interessa a compreensão do acontecimento.

Lima afirma, ainda, que as televisões públicas passam por uma séria crise estrutural, tendo em vista que não há leis que as regulamentem e, além disso, elas atualmente se configuram entre os interesses governamentais e a disputa

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mercadológica. Outro aspecto importan-te é que essas emissoras têm um perfil totalmente diferenciado das comerciais, não apenas no conteúdo, mas em nível de recepção: “49% do seu público estão nas classes A e B, contra apenas 32% das comerciais” (Novaes, 2003: 126). Além disso, “quando se propõe uma televisão educativa, a audiência é relevante quanto à sua qualidade, não à quantidade de es-pectadores atingidos, pois exigirá desses um posicionamento crítico ou, ao menos, uma reflexão” (Fort, 2005: 25).

A autora também aborda a importância que deve ser dada ao conteúdo infantil. Zagury (2003: 94) reforça a idéia,

O fato é: ela (a televisão) influi sim (na formação de crianças e adolescentes)! Por isso, a tarefa das emissoras públicas torna-se essencial, na medida em que acreditam na possibilidade de se conjugar qualidade, lazer, cultura e educação, mesmo quando a clientela a que se dirige é menos letrada.

A TV Cultura mesmo não estando en-volvida diretamente na competição entre os canais comerciais, tem um compromisso com o espectador no momento em que elabora sua programação, no momento em que divulga, no telejornal, os fatos atuais - nacionais ou internacionais. Sabe-se que não é possível fazer jornalismo sem o pú-blico. Para que fazer um jornal que ninguém vê? Dentro dessa lógica, os editores, chefes de reportagem sabem que é preciso atrair a atenção dos espectadores e para isso, acaba-se lançando mão de recursos lingüísticos e técnicos com esta finalidade. E isso passa a ter importância na hora de selecionar as no-tícias que vão ao ar. A violência é um tema que “vende”. Por isso, mesmo em canais educativos, isso parece ser um ingrediente importante. Tanto que no Jornal da Cultura, dos meses de outubro e novembro de 2007, 20% do conteúdo transmitido era sobre o tema. Priolli (2005: 211) explica:

Basta que o produto dê audiência para que tudo se legitime, como um suposto respeito à vontade popular. É assim que

os princípios constitucionais de uma te-levisão voltada prioritariamente à cultura e à educação viram letra morta, tragados pelo vértice de sensações baratas das ba-nheiras, das pegadinhas, dos rebolados, dos bate-bocas e dos demais subgêneros da ‘baixaria’.

Alguns números

Neste trabalho, foram analisadas 276 matérias, incluindo notas e reportagens. O dado mais interessante diz respeito às ma-térias que abordam diretamente a violên-cia - 20% das informações divulgadas pelo telejornal. O assunto aparece mais que a política (13%), cultura (11%), economia (9%) e educação (4%). A única editoria que supera a de violência é a Geral, com 24%, abrangendo diversos temas.

Esse dado se contradiz a filosofia origi-nal da emissora, que deveria estar voltada à promoção da educação e cultura do país. Lima (2002), afirma que “a TV comercial tem o ritmo de mercado, geralmente a ser-viço dos interesses econômicos, enquanto a TV cultural tem o ritmo da reflexão, a serviço dos interesses públicos” (p. 234).

Apesar do posicionamento do dire-tor-presidente da emissora, os dados de-monstram que a TV Cultura abre espaço significativo de sua programação jorna-lística à violência: das 54 matérias sobre o assunto, 35% já aparecem no primeiro bloco como forma de atrair o telespecta-dor, uma espécie de convite. No segundo bloco, aparecem 26%; no terceiro, 35% e no quarto, 4% das matérias. Nas man-chetes e passagens de bloco, o assunto é igualmente destacado, correspondendo a 11% do total, sendo ultrapassada pelas manchetes da área cultural (22%), geral (16%) e política (12%).

Sobre o conteúdo

Para verificar se o tipo de abordagem adotado nas matérias de violência se en-

caixa no modelo sensacionalista, típico

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Gráfico 1 - Total de matérias sobre violência no Jornal

Fonte: autores

Gráfico 2 - Total de manchetes: 108. Foram contabilizadas as manchetes principais e a de passagem de bloco

Fonte: autores

Gráfico 3 - Total de matérias: 276. Foram contabilizadas notas notícias, reportagens e entrevistas

Fonte: autores

Manchetes*

Violência

Política

Geral

Economia

Saúde

Educação

Esporte

Cultura

Comport

Matérias*

Violência

Política

Geral

Economia

Saúde

Polícia

Educação

Esporte

Cultura Comport

Meio Amb

Matérias sobre violência*

1º bloco

2º bloco

3º bloco

4º bloco

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das TV’s comerciais, foram analisadas oito matérias jornalísticas sobre o tema: Um ano da Lei Maria da Penha (23/10/07), Mortes entre gangues de punks (23/10/07), Enterrado corpo de menino de 12 anos (07/11/07), Relator da Onu investiga violência no Brasil (07/11/07), Tragédia na Finlândia (07/11/07) e Polícia da Finlândia divulga fotos da sala de aula (08/11/07), Mortes no RJ (21/11/07), Vio-lência corre solta (23/11/07).

Nessas análises foram considerados di-versos elementos, como imagens, discurso dos repórteres, postura dos apresentado-res e fontes entrevistadas.

1–LeiMariadaPenha,23/10/2007–3minutos

O viés sensacionalista e impactante já aparece na manchete, a principal do dia:

- “O jornal da Cultura de hoje vai falar de violência [...] As agressões e até mortes de mulheres continuam acontecendo no país”.

A trilha sonora constitui a parte fun-damental da reportagem e a Cultura sabe utilizar isso adequadamente. Como observa Bernardes (2004: 7) “a expressão corporal e o exagero nos gestos são importantes para efetuar a comunicação de idéias, bem como os efeitos especiais óticos e sonoros que estimulam as sensações no público, ajudando a criar o clima da história.” A música lenta e triste da reportagem sobe sempre que uma vítima se emociona e a reportagem procura assim destacar o so-frimento das mulheres entrevistadas pelo telejornal. A ênfase é no drama que elas vivem ou viveram, procurando, a partir das cenas pré-selecionadas, envolver a platéia. Tudo gira em torno disso, pois o trágico, o relato do sofrimento e da dor alheia acaba atraindo a audiência. A narração também auxilia na dramatização. A repórter Luiza Moraes utiliza palavras fortes e de impacto, que vão dando sentido a melodia triste e a própria edição jornalística:

- “Para essas mulheres, as histórias de amor se transformam em um... pesadelo!”.

A repórter, inclusive, faz uma pausa antes de falar “pesadelo” procurando intensificar o drama. Mas o que mais choca o telespectador são as imagens. Por essa razão, elas são tão valorizadas nas matérias de violência. E, no caso no Jornal da Cultura, não é diferente. Nesta pauta, bastaria entrevistar as vítimas, relatando as brigas conjugais. Mostra-se o choro ‘em público’ e os hematomas, sinais das surras que levaram dos maridos. Essas imagens ‘caberiam bem’ em uma emissora comer-cial, com viés popularesco, mas não em um canal educativo. Seriam dispensáveis do ponto de vista da informação. Mas são utilizadas, porque causam impacto.

É interessante observar é que essa é uma das únicas matérias sobre violência, no pe-ríodo de análise, que evidencia fontes não oficiais. As mulheres vítimas de violência doméstica ganham voz. Também se abre es-paço a delegada da Delegacia de Defesa da Mulher e à advogada do Comitê Americano da Defesa dos Direitos da Mulher.

2-Mortesentreganguesdepunks,23/10/07–2minutose33segundos

Na reportagem, os apresentadores não dispensam as frases de efeito. Raul Lores já na abertura da matéria, dispara:

- “[...] que brigam entre si e às vezes fe-rem e até matam quem vêem pela rua”.

- “Uma onda de violência aconteceu nos últimos meses em São Paulo. Com cri-mes meio inexplicados e a polícia promete fechar o cerco sobre essas gangues”.

Os apresentadores acabam não trans-mitindo credibilidade, pois trabalham com frases imprecisas, o que gera descon-fiança por parte do público. Em jornalis-mo, que prima por objetividade e precisão do relato, a palavra meio parece não cair bem àquele que assiste o telejornal.

Nessa matéria também aparecem frases do tipo

- “[...] moradores da periferia, subem-pregados ou desempregados, [...] essas

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tribos costumam ter um discurso desco-nexo contra o sistema”

- “[...] carecas têm uma inspiração nazista, ainda, que eles não entendam bem o nazismo [...] os ataques a homos-sexuais, nordestinos, judeus e negros demonstra que eles não sabem bem quem os oprime”.

Nesse caso, as palavras “bem” e “cos-tumam” denotam novamente a imprecisão jornalística.. Porém, o mais grave na re-portagem é a forma preconceituosa como foram tratados, de modo geral, os punks. Muitas vezes, as emissoras comerciais são criticadas por estereotipar as minorias e reforçar preconceitos. A TV Cultura, ape-sar de suas características televisivas, deu

a sua contribuição.O jornal generalizou o

comportamento violento de alguns punks a todos grupos que seguem a ‘filo-sofia’. Lançou esteriótipos e os classificou como pessoas sem personalidade, violen-tas e covardes. Na cabeça da matéria, Michele Dufour, faz a seguinte afirmação:

- “São tribos, assim, que são covardes, um grande número de pessoas que ata-cam uma pessoa sozinha”.

Na matéria, a repórter Madeleine Alves observa:

- “Tudo é copiado dos punks ingleses, com algumas décadas de atraso [...] cos-tumam ter um discurso desconexo contra o sistema”.

A cobertura foi ilustrada por ima-gens antigas de protestos punks e de seguidores sendo presos em São Paulo. Além de imagens de grupos ingleses, vestindo coturnos, camisas rasgadas e penteados moicanos. É evidente que existem grupos violentos e que pregam a violência, mas afirmar que isso é uma característica inerente a todos é uma forma covarde de menosprezar, desres-

peitar o outro. “Desvalorizamos o outro quando desprezamos – não importa o grau de desprezo – seus costumes, seu modo de vestir, a cor da sua pele, o desenho tatuado em sua pele” (Saneh, 2003/2004: 10).

Neste caso, ninguém é entrevistado, por isso, muitas vezes, o texto da repór-ter torna-se subjetivo. Em determinado momento, ela dispara:

- “A adoção de uniformes, segundo especialistas, visa lhes dar [...]”.

Então resta a pergunta, que tipo de especialista? Qual o nome do especialis-ta? O repórter pode até ter entrevistado alguns, mas o fato de não nomeá-los ou especificá-los, faz com que pareça apenas um recurso de quem não tem fontes e informação concreta sobre o fenômeno. O Jornal da Cultura até tenta suprir essa falta entrevistando o colunista da emissora, Renato Lombardi. Mas, ele não esclarece a situação. Apenas reforça o preconceito em relação a essa tribo urbana. Eis suas afirmações:

- “[...] com suas correntes, seu soco inglês, imitando os punks ingleses e ca-nivetes, atacam indo em bando. Para mim são verdadeiros desordeiros, marginais. Será que você sabe o que seu filho está fazendo, quando ele sai todo de preto, com correntes?. É bonito o visual. Mas o que será que ele está fazendo? Se drogando, assaltando, matando, espancando?”.

O apresentador vai além, quando pergunta:

- “Lombardi, qual é a explicação que a polícia até agora estuda para que esses grupos batam, literalmente, na primeira pessoa sozinha que aparece?”.

O grave nesta notícia é o tom dado ao texto pelo jornalista, que ironicamente sorriu quando pronunciou a palavra “literalmente”. Lores parece ter esque-cido o dever de apresentar o assunto de forma séria e imparcial, o que acabou comprometendo o papel jornalística da emissora.

O uso excessivo dessa estratégia pode resultar na banalização da violência

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3-Enterradocorpodemeninode12anos,07/11/07–15segundos

A nota de apenas 15 segundos fala so-bre o assassinato de um menino de 12 anos pela irmã e começa mostrando uma flor branca sendo jogada no caixão da criança. Depois aparece o caixão coberto de flores, rodeado por crianças e familiares, muitos deles chorando, desesperados.

Num processo de identificação induzido, o leitor/espectador se comove e se apro-xima – na dor e no medo – dos familiares da vítima. Está construída a cena dual: o mau contra o bom [...]. Estão em cena os ingredientes fundamentais do jornalismo sensacional, que apela a valores culturais, ao imaginário coletivo e às sensações de uma memória coletiva (Barbosa, 2004: 3).

A morte de crianças é sempre muito explorada pelos jornais, trata-se de um forte apelo midiático. Exemplos não faltam. Os casos de Isabella Nardoni e João Hélio cria-ram comoção nacional. Nesta nota, foram utilizados elementos para provocar o mesmo, apesar do tempo reduzido de transmissão.

4-RelatordaOnuinvestigaviolêncianoBrasil,07/11/07–13segundos

A princípio, esta matéria apenas no-ticia que um relator da Onu está no RJ para investigar as execuções sumárias no município. As imagens mostram o relator em uma reunião.

- “Ele agora investiga a atuação da po-lícia no Complexo do Alemão e na favela da Coréia, que deixou 32 mortos”.

Mas ao falar das favelas são mostradas cenas de dois meninos negros, sem camisa, correndo dos tiros da polícia vindo do alto, provavelmente de um helicóptero. Mais uma vez, é o Jornal estereotipando aqueles que vivem na favela, tal como tem feito insistentemente outros canais televisivos. Não são todos os moradores de favelas que são bandidos e, muito me-nos, nem todos os negros são criminosos. Nenhuma fonte é entrevistada.

5-TragédianaFinlândia,07/11/07–40segundos

Na passagem de bloco, o apresentador Raul Lores anuncia a matéria com palavras que chamam a atenção do telespectador:

- “Você vai ver em instantes: Tragédia na Finlândia. Estudante de 18 anos invade esco-la, mata oito pessoas e comete suicídio”.

A repórter, que não foi identificada, utiliza palavras como tragédia e massacre e se expressa da seguinte forma:

- “A tragédia foi antecipada no You-tube. O aluno colocou este vídeo no site anunciando o dia e o colégio onde acon-teceria o massacre”.

Nesse momento, aparece uma imagem estourada, em tom vermelho, mostrando a silhueta do menino, segurando a arma. Depois seguem cenas da escola com alu-nos correndo entre ambulâncias ou se consolando. Percebe-se aí uma tentativa de sensibilização, já que as imagens e textos propiciam uma identificação com o receptor. Afinal, a maioria tem ou já teve contato com uma escola, professores e colegas de classe. Ninguém é entrevistado. Em todos os casos analisados, percebe-se precaridade na cobertura jornalística.

No dia seguinte (08/11/07), o jornal continua dando espaço ao assunto. Esta pequena nota de 15 segundos é a única que apresenta o desdobramento de um fato, relatando novos aspectos da tragédia. O Jornal raramente apresenta desdobramentos dos fatos, apesar das pessoas quererem saber mais sobre tais acontecimentos. Gostariam de saber o que aconteceu com as vítimas, com o as-sassino e outros envolvidos. Na verdade, o jornal acaba simplificando fatos muitas vezes complexos em pequenas notas, sem contextualizá-las devidamente.

6-MortesnoRJ,21/11/07–1minuto

Novamente não são apresentadas as fontes, apenas é feita uma menção, sem especificar:

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AdivulgaçãodaviolêncianotelejornaldaTV...

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- “Segundo testemunhas, que não quiseram gravar entrevista, os assassinos já estavam esperando por eles desde as cinco da manhã, nesta esquina”.

Fica o questionamento se é válido di-vulgar a opinião de alguém que não quer se identificar. O bom jornalismo diz que para não comprometer a credibilidade de um noticiário, o melhor é divulgar fontes que se identifiquem e somente após checar se as informações são verdadeiras.

A repórter Nathércia Motta narra o acontecimento. Há exageros nas imagens que retratam a violência, que são diretas e de cunho sensacionalista. A repórter faz a passagem no local do crime e como pano de fundo mostra-se, ao que tudo indica, os cor-

pos dos policiais enrolados em sacos plásticos pretos.

7-Violênciacorresolta,23/11/07–1minuto

Na passagem de bloco, o apresentador dá ênfase ao assunto da violência no RJ:

- “Vamos discutir a vio-lência contra turistas. Vamos falar, também, da semana que a polícia perdeu a guer-ra para os bandidos. Aguar-de só um instante”.

No trecho, “a polícia perdeu a guerra para os bandidos”, a equi-pe do telejornal demonstra pessimismo e chama-se a atenção ao caos vivido pela cidade do Rio, que vem sendo comparada a um campo de guerra. Há abuso na exi-bição de imagens. A matéria começa com um tiroteio. Um caminhão pára no meio da rua e os ocupantes fogem abaixados. As cenas são acompanhadas por sons incessantes de tiros.

- “No meio do tiroteio, motoristas abandonaram os carros nas ruas próximas às favelas”.

As imagens servem para adicionar informações ao texto, mas nesse caso a imagem não acrescentou nada de novo.

Apenas explorou o desespero humano para tornar a matéria mais emocionante. Depois disso, a repórter se remete à morte do turista italiano e a TV apresenta ima-gens de arquivo, retratando o corpo do turista estirado no meio da rua, coberto. Havia necessidade de expô-la dessa ma-neira tão “grotesca”?

Na mesma matéria, o JC entrevista o sociólogo Renato Sérgio de Lima sobre a criminalidade. Raul Lores, outra vez, ultrapassa seus limites, ao fazer a seguinte comentário:

- “Depois do sucesso do Tropa de Elite, muito se falou que os governos iam apertar um pouco mais a repressão, que a polícia ia agir de forma mais dura. Agora parece que o crime organizado está organizando a sua revanche”.

A análise, destes casos, permitiu que se chegasse a algumas conclusões sobre o tratamento dado a violência pelo jornalis-mo da TV Cultura.

Considerações Finais

Para o telespectador pode parecer que o Jornal da Cultura aborda a violência de forma imparcial e não-apelativa. Mas, em uma análise mais apurada, conclui-se que até a emissora utiliza imagens, textos e trilha sonora com o intuito de chocar e envolver o telespectador na ‘trama’ narra-da pela equipe do telejornal. Assim, como já havia presumido Souza (2005), sobre o jornal da TV Cultura:

[...] acaba, em parte, fazendo o mesmo que o Jornal Nacional. Os dois reservam espaço à violência e utilizam o assunto para atrair o receptor. Embora não tenha as mesmas ambições que as emissoras comerciais, a TV Cultura precisa da au-diência para dar sentido à sua produção jornalística. (p. 18)

É possível afirmar que a TV Cultura re-corre – embora em menor proporção - aos mesmos artifícios utilizados pelas emis-soras comerciais para atrair a atenção de

Os editores, chefes de reportagem sabem que é preciso atrair a aten-ção dos espectadores

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seu público. Apelam ao sensacionalismo, dramatizam a narração e, muitas vezes, supervalorizam a imagem em detrimento do conteúdo. Muitas das notícias exibidas pelo noticiário são descontextualizadas ou apresentadas de forma fragmentada, o que impede o espectador de compreender o tema na sua integralidade.

Enfim, pode-se dizer que o Jornal da Cultura utiliza-se de muitos elementos e recursos lingüísticos e imagéticos para atrair o espectador, só que de forma mais sutil que os ditos canais televisivos sen-sacionalistas. Para Sodré e Paiva (2002), o que muda nesses dois tipos de progra-mação é a intensidade das estratégias para conquistar audiência,

Predominam hoje dois padrões de pro-gramação: o ‘de qualidade’, ou seja, es-teticamente clean, bem comportado em termos morais e visuais e sempre fingindo jogar do lado da ‘cultura’, e o do grotesco, em que se desenvolvem estratégicas mais agressivas pela hegemonia de audiência. (p. 130).

Por estar inserido em uma emisso-ra pública, o jornal deveria priorizar a cultura e a pluralidade da informação. E isso não foi observado na análise das notícias sobre o tema da violência. Das oito notícias estudadas, apenas uma dá voz a fontes não-oficiais, a Lei Maria da

Penha, divulgada em 23 de outubro de 2007. Nos outros casos, a fonte utilizada, geralmente, é oficial o que coloca em ques-tionamento a credibilidade do jornalismo praticado pela emissora, uma vez que as notícias acabam assumindo características opinativas e parciais. Nas informações analisadas a opinião é quase sempre de um comentarista da própria emissora.

Percebeu-se imprecisões e falta de preocupação ética no trato de algumas informações, especialmente nas notícias sobre favela e grupos Punks. Faltou serie-dade e ética por parte dos apresentadores na ‘condução’ desses dois casos. O Jornal da Cultura não foi isento ao retratar as minorias e o que é mais grave, acabou contribuindo para reforçar preconceitos sociais, por exemplo, quando rotula de bandidos os moradores da favela, ou de arruaceiros e covardes, os integrantes de grupos punks.

Acredita-se que esta pesquisa possa abrir a porta a novas investigações so-bre a esta emissora educativa. Muitas análises no Brasil têm concentrado a atenção em canais comerciais - TV Glo-bo, Record, SBT - e esquecido de “olhar” para a TV Cultura, para a programação desta emissora que tem como papel e compromisso a promoção da educação e das culturas nacionais.

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Comunicação e Mercado

Mitsuru Higuchi YanazeProfessor Livre Docente da ECA-USP

[email protected]

Resumo

A busca pela postura socialmente responsável por uma grande parte das organizações ficou mais na retórica, gerida por polí-ticas de comunicação corporativa ineficaz e ferindo preceitos éticos. O presente artigo analisa diferentes postulados teóricos e apresenta as dificuldades para o desenvolvimento de um Indicador de Responsabilidade Social Corporativa, isento de par-cialidade ideológica, que permita à sociedade e ao mercado assumirem o papel de auditores do processo e da transparência nos resultados sociais alcançados.

Palavras-chave: Responsabilidade Social Corporativa, Indicadores, Balanço Social, Ética, Relações Públicas, Comunicação Institucional e Corporativa.

Abstract

The search for a socially responsible position and of demonstrations of corporative citizenship for a great part of the orga-nizations was more in the rhetoric, managed for politics of inefficacious corporative communication and wounding ethical rules. The present article analyzes different theoretical postulates and presents the difficulties for the development of an Index of Corporative Social Responsibility, exempt of ideological partiality, that allows to the society and the market to assume the role of auditors of the process and the transparency in the reached social results.

Key words: corporative social responsibility, index, social balance, ethics, corporative citizenship, institutional corporative communication.

Resumen

La búsqueda por la postura socialmente responsable por una gran parte de las organizaciones quedó más en la retórica, gestionada por políticas de comunicación corporativa ineficaz e hiriendo preceptos éticos. El presente artículo analiza diferentes postulados teóricos y presenta las dificultades para el desarrollo de un Indicador de Responsabilidad Cor-porativa, exento de parcialidad ideológica, que permita que la sociedad y los mercados asuman el papel de auditores del proceso y de la transparencia en los resultados sociales alcanzados.

Palabras clave: Responsabilidad Social Corporativa, Indicadores, Balance Social, Ética, Relaciones Públicas, Comu-nicación Institucional y Corporativa.

Por um Novo Balanço Social: muito além dos cânones da Comunicação Corporativa

For a New Social Balance: way beyond the Corporative Communications canon

Eduardo AugustoDoutorando em Comunicação na ECA-USP

Professor convidado da ULA – Universidade Lusíada de Angola – Á[email protected]

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PorumNovoBalançoSocial:muitoalém...

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Começando pelo “olhar”

mportantes estudos de órgãos inter-nacionais e pesquisadores de gran-des universidades estão atestando

que os acordos entre as nações, na tenta-tiva de reverter os impactos das ações do homem contra ele mesmo no seu próprio habitat, não foram e não serão eficazes no sentido de tornar a qualidade de vida, no futuro, no mínimo suportável.

A concentração de renda não cede espaço para permitir níveis dignos de so-brevivência nos países do terceiro mundo. As lutas por condições de trabalho e salá-rios mais decentes que permitiram obter relativos ganhos ao longo do último século parecem ter sido em vão, ao depararmos

com diferenças gritantes entre as remunerações dos CEOs e funcionários médios das grandes empresas e das condições subumanas de trabalho de muitos operários em Zonas de Livre Comércio e de diversas regiões de paí-ses subdesenvolvidos.

Culturas seculares e, mesmo milenares, de de-terminadas regiões do pla-neta estão se esvaindo com a agressiva e impertinente

globalização. Diante de uma homogenei-zação dos hábitos e gostos das pessoas – revertidas em potenciais consumido-res para todo produto ou serviço com pretensões globais –, as especificidades e valores regionais são atropelados e relegados ao título de manifestações ancestrais e ultrapassadas.

A revolução sexual e feminista nos anos 1970 parece não ter sido suficiente para melhorar as condições de acesso ao trabalho e de postos estratégicos em cargos executivos da maioria das corporações. Se isso for associado à condição étnica, o resultado pode se agravar, revelando falhas no posicionamento de quem está à

Ifrente das decisões corporativas, quanto a posturas antiéticas e parciais.

Na ocasião do Rio-92 e, alguns anos depois, no Tratado de Quioto, previam-se a redução na emissão de dióxido de carbônico, porém, mais de 10 anos depois, registrava-se o contrário, um au-mento preocupante, demonstrando um movimento de total desconsideração por parte das nações. Fomos “presenteados” com um aquecimento global capaz de gerar os piores tornados com sua fome pela destruição, o derretimento da calota polar, as secas acompanhadas de incên-dios devastadores e as inundações que desabrigam milhares de pessoas na face da terra (Gore, 2006:3-40).

A experiência do estouro da bolha das empresas “pontocom” revelou um perfil pouco agradável e, mesmo, repulsivo em relação aos empresários e às suas ações especulativas que levaram 100 milhões de investidores a perderem US$ 5 trilhões que, somada com desmascaramento de posturas fraudulentas de grandes empre-sas, levaram as pessoas a desconfiarem do mundo perfeito da liberdade e justiça capitalista (Argenti, 2006:5-6).

Na atualidade, na denominada Socieda-de do Conhecimento, encontram-se hiatos de desigualdade em termos de educação nos diferentes níveis sociais, nunca antes atingidos em diversas sociedades contem-porâneas. Dessa forma, cria-se um exército de semi-analfabetos ou analfabetos funcio-nais sujeitos a um tipo de seleção natural imposto pelo mercado globalizado e pela brutal revolução tecnológica que exigem aportes de conhecimentos e de informação ainda maiores para saber lidar com a vida cotidiana e profissional.

Esse cenário, descrito sob um olhar ácido e negativo, mas cruelmente realista do ponto de vista da sociedade, é objeto de estudo e análise de um campo relati-vamente novo de produção científica para diversas disciplinas e áreas de pesquisa

– Desenvolvimento Sustentável.

Culturas seculares e, mesmo milenares, de determinadas regiões do planeta estão se esvaindo com a agressiva e impertinente globalização

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lidade Social Corporativa, que buscam responder mais adequadamente aos an-seios de uma sociedade mais consciente e, portanto, muito assustada com o futuro de seus filhos e netos.

Fazer o bem para ganhar bem

Se por um lado, as ações de Responsa-bilidade Social Corporativa (RSC) passa-ram a ser ordem do dia, num pretexto em que demonstrações com vistas à sociedade civil indicariam posicionamento institu-cional eficaz perante a opinião pública, por outro lado, a busca desenfreada dessa postura por parte de agentes econômicos desavisados, feriu preceitos éticos que re-gem os processos de intervenção social.

De súbito, fazer o bem tornou-se impe-rativo para a gestão da maioria das organi-zações, com ou sem fins lucrativos. O que está por trás desse surto de bondade cor-porativa, obviamente, é o retorno, tanto na forma de moedas financeiras – incremento na receita, lucratividade etc. –, como de moedas não-financeiras – conquista e encantamento dos stakeholders, melhoria na imagem institucional, posicionamento estratégico da marca etc.

Empresa Cidadã ou Socialmente Res-ponsável tornaram-se atributos desejados, buscados pelas instituições de todos os tipos e tamanhos, em qualquer região do mundo. Mas esse movimento – a conscien-tização “natural” das organizações quanto ao seu papel na sociedade – foi e está sendo mérito não apenas da competição acirrada como, também, da pressão da sociedade (tendo a mídia como a grande guardiã) e de uma relativa conscientização social do empresariado.

Descobertas de quase uma década atrás indicaram que “comportamentos de cidadania organizacional lubrificam os mecanismos sociais da organização; reduzem as fricções e conflitos; favorecem

a produtividade dos colegas de trabalho;

As organizações recebem o “crédito” de serem as principais causadoras desse contexto, visto que passaram a assumir o papel central na vida das pessoas quanto às expectativas sociais de ascensão profis-sional e realização pessoal, além de serem as principais influenciadoras nas políticas públicas, da maioria dos governos no mundo, em prol do capital, em detrimento de qualquer outra demanda.

Os grandes conglomerados transnacio-nais vêm definindo o futuro das socieda-des quanto ao acesso às tecnologias sob a promessa de melhoria da qualidade de vida, mas que restringe a uma participação elitista e, dentre outras coisas, de serem, estas mesmas empresas, claramente as responsáveis pelo perfil de exploração e degradação do ambiente natural.

Um movimento pelo social – que está levando as empresas a concentrar seu negócio em pequenas comunida-des, condições de trabalho decentes e remuneração justa para trabalhadores e fornecedores – começa a ser posto em operação, de forma que, “na perspectiva da responsabilidade moral, as demandas da sociedade forçarão o setor privado até mudar de modelos de negócios, ou mes-mo extingui-los. As pressões para isso poderão estar relacionadas à prestação de contas por passivos sociais e ambientais; ou à responsabilidade sobre toda a cadeia produtiva, isto é, a responsabilização da empresa pelo comportamento de seus clientes e fornecedores. Os negócios se-rão também pressionados pela tendência – ainda incipiente, mas que está ganhando força – ao chamado comércio justo (fair trade)” (Almeida, 2007:102).

Uma nova ordem das coisas e, com ela, uma postura diferenciada das organiza-ções, de todos os setores e esferas, lhes são exigidas, acompanhadas de uma crescente vigilância pelas pessoas, através de meca-nismos de avaliação de suas atividades.

Estes mecanismos são os cada vez mais propagados Indicadores de Responsabi-

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libertam os gestores de certas atividades de controle e gestão de conflitos, favore-cem a coordenação do trabalho entre os membros das equipes e entre os diversos grupos; permitem reter e atrair as pessoas mais competentes; facilitam a adaptação organizacional às mudanças ambientais” (Rego, 2000:113).

Não podemos corroborar com os ar-gumentos do autor português, visto que todos os benefícios acima descritos por ele são resultados de ações eficazes de Relações Públicas das organizações peran-te seus diversos stakeholders – preceitos básicos de quem atua, profissionalmente, na área de Comunicação Corporativa.

O conceito de “cidadania corporativa” nos parece uma adoção um tanto quanto forçada da parte das empresas e dos investigadores. “Cidadania é um estatuto entre uma pessoa natural e uma so-ciedade política, portanto privativo do indivíduo e de seus direitos e deveres civis. Uma empresa, uma associação ou qualquer tipo de pessoa jurídica, pode ter uma nacionalidade, mas jamais uma cidadania. As empresas falam em nome

de seus interesses, e o primeiro deles e não perder. Falam em nome de categorias e de setores da economia com interesses específicos e particulares. No entanto, pretendem ser o porta-voz de todos. Que-rem mostrar-se inatacáveis e falam como se suas ações, enquanto ‘cidadãs’, fossem resultado de uma ‘consciência’ do bem geral e não visassem retornos” (Freitas, in Künsch, 2003:141).

Em concordância com a autora, não iremos considerar o termo “cidadania corporativa” válido no presente artigo. Ra-tificamos que a postura empresarial deve ser pautada, antes de mais nada, pela sua missão e seus valores enquanto organiza-

Os grandes conglomera-dos transnacionais vêm definindo o futuro das sociedades quanto ao acesso às tecnologias

ção com fins lucrativos e, portanto, seus resultados deverão ser avaliados nesta perspectiva e não como um agente social que concorre com as ações do indivíduo enquanto cidadão.

Quanto ao conceito de RSC, este sig-nifica ações provenientes da iniciativa privada que têm como orientação a efetiva preocupação com as demandas sociais do ambiente em que a organização está inserida e solução pontual e adequada dos problemas, muitas vezes causados pela própria corporação.

A correta utilização do conceito de RSC exige comportamentos que vão além da conscientização e de intervenções pouco eficazes do empresariado do ponto de vista da sociedade, pois há o risco das organizações, como boa parte delas, serem vistas como meras astiadoras da bandeira pelo social.

No entanto, este movimento ainda está na esfera das exceções, pois “a ética nos negócios e a responsabilidade social cor-porativa ainda não adquiriram, de maneira consistente, a centralidade que tais ques-tões exigem. Há muitas barreiras para a adoção de um foco mais ético e responsável nas empresas. À medida que a competição se intensifica, os gestores em todos os ní-veis sentem-se cada vez mais pressionados pelo tempo” (Almeida, 2007:231).

Há muito o que fazer quanto à adesão efetiva das empresas, visto que ainda são recentes as práticas neste sentido e as investigações são pouco consistentes quanto a verdadeira dimensão do retorno que essas ações podem oferecer. O título de “Empresa Socialmente Responsável”, tão almejado, exige uma revisão criteriosa quanto às posturas éticas de quem tenta adotá-lo e inseri-lo na definição de sua missão corporativa.

As práticas adotadas pelas organiza-ções, neste sentido, ainda estão no campo da retórica, falando muito e agindo pouco, visto que as ações realizadas para lidar com as demandas sociais se resumem a

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políticas de comunicação corporativa. Especificamente, de Relações Públicas com os stakeholders, de lobby junto aos governos e da corrida por premiações de pompa e troféus de fachada para atender a metas qualitativas inadequadas de Co-municação Institucional.

Visto que fazer o bem para ganhar bem já não é mais pecado sob a ótica do capital, isto nos coloca frente à discussão dos conceitos de RSC, dado que muitas organizações insistem em se firmar sob esta bandeira quando investem em alguma causa, seja ela social, esportiva, cultural ou ambiental, associada aos preceitos de marketing. O lucro deixa de ser o parâ-metro único de eficácia e a postura ética e preocupação social são assumidas como fatores chaves de sucesso.

Reduzir a atividade empresarial e os elementos que lhe são fundamentalmente relacionados – tais como a iniciativa, a inovação e o progresso material – a termos estritamente financeiros, não faz justiça às amplas responsabilidades e ao alcance das empresas (Almeida, 2007:230).

A imagem corporativa recebeu o status de principal elemento a ser enfatizado como fator diferencial de competitividade quando “as empresas de sucesso descobri-ram que a reputação, ou imagem, era mais importante para se vender um produto do que as suas características específicas” (Ries; Trout, 1996).

Correndo na via dos que defendem naturalmente as posturas corporativas no âmbito da Responsabilidade Social, os americanos Porter e Kramer aprovam estas ações, de forma clara, alertando que “não há nenhuma contradição intrínseca em melhorar o contexto competitivo e ter um compromisso sincero com o avanço da sociedade. A rigor, quanto mais a empresa vincular filantropia a contexto competitivo, maior será sua contribuição à sociedade. (...) A filantropia focada no contexto, quando sistematicamente adotada de modo a maximizar o valor

criado, pode proporcionar à empresa um novo conjunto de ferramentas competiti-vas que bem justifica o investimento em recursos. Concomitantemente, pode ativar um modo infinitamente mais poderoso de converter o mundo num lugar melhor” (Porter; Kramer, 2002:43-54).

Uma empresa socialmente responsá-vel é “aquela que possui a capacidade de ouvir os interesses das diferentes partes (acionistas, funcionários, prestadores de serviço, fornecedores, consumidores, comunidade, governo e meio ambiente) e conseguir incorporá-los ao planejamento de suas atividades, buscando atender às demandas de todos, não apenas dos acionistas ou proprietários” (Instituto Ethos, 2008).

Percebendo os benefícios, as organiza-ções esquecem-se das obrigações que os preceitos da RSC exigem que sejam respei-tadas. “Responsabilidade social empresa-rial é uma forma de conduzir os negócios que torna a empresa parceira e co-respon-sável pelo desenvolvimento social. (...) A responsabilidade social é focada na cadeia de negócios da empresa e engloba preocu-pações com um público maior (acionistas, funcionários, prestadores de serviço, for-necedores, consumidores, comunidade, governo e meio ambiente), cuja demanda e necessidade a empresa deve buscar en-tender e incorporar aos negócios. Assim, a responsabilidade social trata diretamente dos negócios da empresa e de como ela os conduz” (Instituto Ethos, 2008).

Porém, ao invés das empresas demons-trarem uma preocupação devidamente ética, isenta de qualquer parcialidade, elas apontam para a direção da responsabilida-de social como oportunidade de se diferen-ciar dos concorrentes e, ainda, absorvem um novo conceito, o da sustentabilidade, sem o devido cuidado, entendendo-os, mais uma vez, como sinônimo.

Agora RSC ‘gera vantagem competiti-va’ quando vemos alguns pesquisadores e

profissionais defendendo as perspectivas

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futuras atenderem suas próprias necessi-dades (Bellen, 2007:23).

Além de exigir uma extensa avaliação das diversas definições que tratam do desenvolvimento sustentável, fugindo do nosso objetivo do presente artigo, não queremos tecer, aqui, opinião a favor ou contra esta definição, pois acreditamos que ainda está muito cedo em tomar par-tido num campo de extrema controvérsia e de forte apelo ideológico, dependendo de qual perspectiva escolher.

Ainda que tenha sido aceito, é um con-ceito em que não se chegou ao consenso. Ele “provém de um relativamente longo processo histórico de reavaliação crítica da relação existente entre a sociedade civil e seu meio natural. Por se tratar de um processo contínuo e complexo, observa-se hoje que existe uma variedade de aborda-gens que procura explicar o conceito de sustentabilidade” (Bellen, 2007:23).

A idéia de sustentabilidade envolve as perspectivas materiais, ambientais, sociais, ecológicos, legais, culturais e polí-ticos. Mas, acima de tudo, é uma perspec-tiva global, pois o um único “ator, como uma empresa ou comunidade, não pode ser considerado sustentável em si mesmo; uma parte não pode ser sustentável se outras não o são” (Bellen, 2007:32).

Daí, utilizar o termo “sustentabilida-de”, atualmente, nos parece uma atitude semelhante à do uso do termo “cidadania corporativa”, ou seja, de cunho promo-cional e, muitas vezes, irresponsável, visto que sem entender ou se inteirar dos seus significados, as organizações ou mesmo pesquisadores reduzem o campo da Comunicação Corporativa às políticas mercadológicas de market share.

A seguir, faremos uma pequena análi-se comparativa dos modelos de avaliação das ações corporativas de causas sociais e tentaremos estabelecer algumas premissas no que tange ao uso dos Indicadores de

Responsabilidade Social Corporativa. Vamos buscar, assim, fornecer um guia

positivas do investimento nesta área. En-tendem, por exemplo, que o “crescimento mundial das vendas de produtos orgânicos é uma evidência de que, mantidas as con-dições adequadas de preço, desempenho, respeito às culturas locais e conformidade social e ambiental, a responsabilidade corporativa efetivamente demonstrada é um indutor positivo de market share” (Almeida, 2007:241). Ou “enquanto a maioria das empresas ainda tem dificul-dade de lidar com os pobres, recusando-se a enxergá-los como um mercado para seus produtos (...) estão surgindo modelos de negócios lucrativos voltados aos pobres” (Almeida, 2007:247).

São prerrogativas vindas de pessoas importantes do cenário mundial, mas que se esbar-ram num pensamento ainda carregado da premissa de que, uma vez organização com fins lucrativos, apenas se enxerga aquilo que lhe dá retorno financeiro.

No entanto, RSC e Sus-tentabilidade não são sinô-nimos, mas correlativos. O primeiro serve de premissa para o segundo, mas não é, necessariamente, a mesma coisa. O segundo termo

é resultado, ainda incompleto, de uma complexa e divergente discussão sobre um conceito muito novo: o de Desenvolvimen-to Sustentável, cunhado pela primeira vez em 1980 pela World Conservation Union, melhorado no Relatório Brundtland na World Commission on Enviroment and Devolopment em 1987 e “legitimado” na ocasião da Eco 92, realizada na con-ferência da ONU sobre o meio ambiente e desenvolvimento, em 1992 no Rio de Janeiro, trazendo uma das definições mais conhecidas que afirma que o desen-volvimento sustentável é o que atende às necessidades das gerações presentes sem comprometer a possibilidade das gerações

Empresa Cidadã ou Socialmente Responsável tornaram-se atributos desejados, buscados pelas instituições

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para as organizações melhor se prepara-rem quanto às novas exigências e tenham clareza que devem ir além de atos isolados e ineficazes de comunicação corporativa, muitas vezes, entendidos como práticas de maquiagem e manipulação para esconder sua verdadeira imagem e sua fraqueza.

No intuito de definir parâmetros éti-cos, foram criados modelos de prestação de contas das atividades sociais corporati-vas. Com eles pretende-se que a sociedade e o mercado assumam o papel de auditores do processo e da transparência nos resul-tados alcançados.

Antes de mais nada, a análise a seguir trata-se de um trabalho de tese de douto-rado em andamento e que comparações e detalhamentos mais profundos dos modelos apresentados, além se serem a espinha dorsal do trabalho, escapariam ao tamanho e objetivo do texto.

Principais modelos de avaliação das ações sociais corporativas

O pioneiro francês Societés Coopéra-tives Ouvrières, primeiro trabalho de ba-lanço socioeconômico, ocorrido em 1968, inaugura uma série de tentativas de ava-liação com o objetivo de medir o que hoje entendemos por desempenho corporativo no campo social. Surge o esboço de um modelo de Balanço Social. Este trabalho vai culminar, na França de 1977, com a promulgação da primeira lei nacional que obriga as empresas a realizarem balanços periódicos para avaliar o desempenho social (Zarpelon, 2006:6).

Apesar do pioneirismo há algumas limitações neste modelo: 1º) A obrigação por lei da emissão do balanço social; 2º) determinação ao tamanho específico das empresas que devem ter no mínimo 300 empregados; 3º) o objeto da avaliação está na mão-de-obra e suas condições de trabalho e 4º) uma lei que foi resultado de discussão da população francesa e de

seu contexto específico de um país bem à frente de várias outras nações no tocante às questões sociais.

O segundo modelo, a tornar-se um dos mais importantes atualmente, vem da experiência norte-americana, quando em outubro 1997 a CEPAA - Council on Economics Priorities Accreditation Agency, organização não-governamental, atualmente chamada SAI – Social Accoun-tability International, elaborou o Social Accountability 8000 – SA8000, passando a ser a primeira certificação global com foco na responsabilidade social de empresas (Soratto, 2006:13-25).

A SA8000 oferece certificação inter-nacional para diferentes países, culturas e religiões e está estruturada em nove ele-mentos básicos: trabalho infantil, trabalho forçado, saúde e segurança, liberdade de associação e direito à negociação coletiva, discriminação, práticas disciplinares, ho-rários de trabalho, remuneração e sistema de gestão (Alledi; Quellas, 2002).

Mas também tem suas limitações, que são: a) tem como foco a garantia de direitos básicos dos trabalhadores e b) é mais adaptável às empresas que possuem processos produtivos industriais.

A proposta inglesa, lançada em 1999 pelo Institute of Social and Ethical Ac-countAbility (ISEA), de Londres, criou a norma AccountAbility 1000 – AA1000, que tem o desafio de querer ser o primeiro padrão internacional mais abrangente de gestão da responsabilidade social corpo-rativa. Ela engloba o processo de levanta-mento de informações, auditoria e relato social e ético, com enfoque no diálogo com as partes interessadas (stakeholders inter-nos e externos) (Instituto Ethos, 2008).

A utilização do processo AA1000 como método de trabalho ainda está lon-ge de ser um padrão internacionalmente aceito, pois lhe faltam uma devida di-vulgação, discussão e conhecimento que permitam efetivo entendimento de suas aplicações para as diferentes empresas

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de diversas origens culturais distribuídas pelo mundo.

O mais popular na atualidade é o ho-landês GRI – Global Reporting Initiative, uma organização independente de mesmo nome – lançado pelo Pneuma: Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente e pela CERES: Coalition for Enviromen-tally Responsable Economics (Global Reporting Initiative, 2008).

Aos poucos esse padrão de divulgação de informações foi se estabelecendo em todo o planeta, tornando-se o único mode-lo mundialmente aceito, usado atualmente por 850 empresas, entre elas Microsoft, Unilever e BP (British Petroleum) e tam-bém como pré-requisito para as empresas

que pleiteiam fazer parte da carteira do Índice Dow Jones de Sustentabilidade, que reúne empresas socialmen-te responsáveis cotadas na bolsa de Nova York (Kassai, 2007:114-116).

Mesmo que o GRI não seja obrigatório – pelo contrário, as empresas são incentivadas a elaborar relatórios segundo suas diretrizes –, esse modelo também apresenta algumas limitações: a) as empresas

não têm que preencher todos os indica-dores prescritos no documento (são 79 no total); b) há a indicação, mas não a obrigatoriedade, do uso de instituições independentes externas para dar um parecer da verificação das informações relatadas pela empresa que preenche o relatório; c) as empresas relatoras po-dem se autodeclarar dentro de um nível de aplicação e podem estampar o selo correspondente ao nível (A, B ou C) nos documentos, levando a uma falsa noção aos públicos que tenham acesso aos resultados do relatório, visto que este deve ter o aval final do GRI para posterior publicação oficial.

O Brasil destaca-se entre os países que mais investem no desenvolvimento de avançados modelos de avaliação de Responsabilidade Social Corporativa, compatíveis com a realidade projetada mundialmente quanto às demandas sócio-ambientais da atualidade.

O primeiro modelo que alcançou considerável aceitação no país foi o Ba-lanço Social do Ibase (Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas), “um demonstrativo publicado anualmente pela empresa reunindo um conjunto de informações sobre os projetos, benefícios e ações sociais dirigidas aos empregados, investidores, analistas de mercado, acio-nistas e à comunidade” (Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas, 2008).

O alerta sobre o uso deste instrumento está na sua estrutura, que não segue os padrões contábeis. Ou seja, não há a pos-sibilidade de demonstrar paralelamente no Balanço Social os direitos em relação às obrigações, como se faz no Balanço Patri-monial de qualquer organização.

Outros modelos vêm sendo desenvol-vidos com intuito de ampliar o foco do Balanço Social, visando extrair uma série de indicadores quantitativos e qualitativos que podem ser divididos em dois campos, a) os indicadores econômicos, dentre eles destacamos alguns: relação entre salários e receitas brutas da empresa; produtividade social da empresa etc. e b) os indicadores sociais, como: evolução do emprego na empresa; participação e evolução do pessoal por sexo e instrução; benefícios sociais concedidos (médico, odontológico, moradia, educação); política de proteção ao meio ambiente etc (Tinoco, 2008:41).

A construção, preenchimento dos for-mulários contábeis e, conseqüentemente, a análise do Balanço Social, além de destacar mais a empresa e seu ambiente interno, não contemplam as ações opera-cionais que geram resultados de impactos negativos como, por exemplo: catástrofes ambientais; doenças e prejuízos à saúde,

O Brasil se destaca entre os países que mais investem na avaliação de Responsabilidade Social Corporativa

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ocasionadas por poluição ambiental, desmatamento, emissão de gases tóxicos e os malefícios oriundos do consumo de seus produtos como: obesidade, câncer, dependência química, distorções psico-lógicas, vícios etc.

E mesmo tentando seguir a risca a dimensão econômica que a contabilidade utiliza, “os meios tradicionais para medir custo e capitais (...) têm falhado por ne-gligenciar, por um lado, a escassez provo-cada pela utilização de recursos naturais, que prejudica a produção sustentável da economia, e, por outro, a degradação da qualidade ambiental e as conseqüências que ela tem sobre a saúde e o bem-estar humanos” (Bartelmus, 2007:35).

Assim, o modelo de Balanço Social, proposto e ainda largamente utilizado no Brasil, dá margens para que a organização camufle possíveis desníveis e, portanto, sua dívida social em relação às suas ações operacionais. No campo da “contabilidade socioambiental, para o qual procedimen-tos e indicadores ainda estão em processo de desenvolvimento, o desafio está no fato de que, nessa dimensão, cada caso é um caso: não só porque cada empresa é diferente da outra, mas também porque há diferenças dentro de cada empresa. As informações socioambientais precisam estar coerentes com o entorno da empresa, com quem a influencia e é influenciado por ela” (Almeida, 2007:150).

Atualmente, o modelo mais aceito e disseminado no campo empresarial brasi-leiro é o Indicador Ethos – um sistema de avaliação do estágio em que se encontram as práticas de responsabilidade social nas empresas – do Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social. O questionário que abrange o modelo está dividido em sete temas, cada tema tem um conjunto de indicadores e cada indicador é formado por uma questão de profundidade, ques-tões binárias e questões quantitativas.

Semelhante ao GRI, o modelo do Insti-tuto Ethos compõe-se de 40 indicadores no

total (50% a menos) e segue praticamente a mesma metodologia, porém é compa-rativamente mais fácil de preenchê-lo e adequado à realidade brasileira.

No entanto, apesar de serem nacio-nalmente aceitos, os Indicadores Ethos enfrentam limitações como: a) a maioria das empresas do país não os utiliza por desconhecimento ou por desconfiança ou por não acreditar no modelo; b) os conceitos de Responsabilidade Social e Desenvolvimento Sustentável ainda estão mais no campo ideológico e da propagan-da de “empresa cidadã” que no campo da práxis efetiva e, mais importante, c) no modelo, especificamente nas questões quantitativas, fica impossível descontar os valores que dizem respeito às ações de amenização de práticas passadas quanto a: agressão ambiental; discriminação racial, sexual ou qualquer outra quebra dos direi-tos humanos; de vendas de produtos ou serviços que algum dia tenha ocasionado ameaças à saúde dos clientes ou do pú-blico. Em outras palavras, não contempla uma “ficha” com o retrato real da imagem da organização e de suas práticas passadas duvidosas e impactantes à sociedade.

Fatores críticos de um Indicador de Respon-sabilidade Social

Qualquer que seja o Indicador utiliza-do como modelo de avaliação das ações corporativas para medir até que ponto se pratica efetivamente os preceitos da res-ponsabilidade social, é necessário que se entenda qual a metodologia aplicada em sua construção.

Esse aspecto fica muito mais patente, quando encontramos indicadores que abrangem uma série muito ampla de variáveis ou dimensões, como o GRI ou mesmo o Ethos, que os põe em risco pela perda da informação essencial.

Tal natureza multidimensional é a maior dificuldade, pois “ela sempre

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tornará muito duvidoso e discutível qual-quer esforço de se encontrar um modo de mensuração que possa ser representado por um índice sintético, por mais que se reconheça seu valor simbólico e sua utilidade em termos de comunicação” (Veiga, 2006:105).

Para modelos com pretensões de abrangência muito ampla, outro problema está em definir se o indicador deve ser quantitativo ou qualitativo. O primeiro tipo é ideal para mensuração de dados téc-nicos. Já o segundo tipo enfrenta desafios quando se pretende estabelecer tendências atuais ou futuras. Neste aspecto é patente que “o objetivo da mensuração é auxiliar os tomadores de decisão na avaliação de

seu desempenho em relação aos objetivos estabelecidos, fornecendo bases para o pla-nejamento de futuras ações. Para isso, eles necessitam de ferramentas que conectem atividades passadas e pre-sentes com as metas futuras, e os indicadores são o seu elemento central” (Bellen, 2007:54).

Outro problema impor-tante diz respeito à inter-pretação do conjunto de medidas inseridas num

modelo de avaliação em que se torna necessário estabelecer: a) o que medir; b) como construir medidas claras para evitar ambigüidades para não anular sua signi-ficância e, ainda, c) o grau de relevância para os diferentes públicos que utilizarão o indicador.

Para tentar evitar esse e outros pro-blemas de limitações, uma proposta está sendo desenvolvida para se tornar a “Futura Norma Internacional de Responsabilidade Social”: a ISO 26000, em cuja construção, amplos agentes sociais, econômicos e cultu-rais, inclusive trabalhadores, consumidores e ONG’s (Organizações Não-Governamen-tais), vêm tendo participação (sem a inicia-

tiva de governos ou da ONU – Organização das Nações Unidas) para que seja aceita mundialmente. O modelo tem inédita co-ordenação sob a liderança compartilhada de um país desenvolvido, a Suécia, e outro em desenvolvimento, o Brasil.

Exatamente para se precaver dos di-versos problemas que outros indicadores tiveram, “a norma vem sendo desenvolvida por meio de um processo multistakeholder, com a participação dos vários grupos afeta-dos pela questão – consumidores, empresas, governos, organizações não-governamen-tais, trabalhadores, além de organismos de normalização e entidades de pesquisa. Por esta razão, deverá ter legitimidade, profundidade e abrangência que a tornem capaz de consolidar as diversas iniciativas já existentes no campo da responsabilidade social” (Instituto Ethos, 2008).

A maioria dos indicadores internacio-nais de responsabilidade social tem estas limitações metodológicas que se somam a outras barreiras como: disponibilidade de dados; perecibilidade dos dados disponí-veis; comparabilidade dos dados; recursos humanos e financeiros; fatores estruturais e nível de conhecimento dos envolvidos.

Considerações Finais

Assim, parece-nos que uma proposta de desenvolvimento de um indicador com pretensões de ser adotado universalmente seria, se não impossível, pelo menos utó-pica ou mesmo ideológica.

Em primeiro lugar, nenhum indicador é universal no sentido de contemplar toda e qualquer situação. Depois, não é passível de zero erro. No entanto os indicadores “expressam um compromisso e, apesar de sua imprecisão, fazem parte do processo de compreensão das relações entre o ho-mem e o meio ambiente dentro do campo do desenvolvimento. Por definição, os indicadores (...) são instrumentos imper-feitos e não universalmente aplicáveis” (Bellen, 2007:59).

O título “Empresa Socialmente Responsá-vel” exige o exame das posturas éticas de quem o pretende

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Todo indicador de responsabilidade social, que queira ser amplamente aceito, deve permitir que a sociedade e o mercado assumam o papel de auditores do processo e deve oferecer transparência nos resultados sociais alcançados pela organização que o utiliza como modelo. Trata-se de condição primeira para alcançar plena legitimidade e ampla aceitação dos diversos públicos.

Uma vez aceito e devidamente legiti-mado nas diversas camadas da sociedade, as práticas de premiação, utilizando este indicador, como ato de reconhecimento e recompensa pelo esforço em se inserir na luta pelo atendimento às carências sociais, podem ser um caminho que in-centive demais organizações, até então fora deste processo.

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Comunicação e Mercado

Marta Terezinha M. C. MartinsMestre em Ciências da Comunicação pela ECA-USP

Coordenadora de Pós-Graduação na Universidade Estadual de [email protected]

Resumo

Discutem-se a comunicação oral e a oralidade como fatores estratégicos de relacionamento com públicos em um mercado altamente competitivo. O artigo retrata a pertinência da oralidade no contexto do discurso organizacional; quais dimensões da comunicação incidem diretamente nas ações, competências e habilidades dos executivos, líderes e porta-vozes da organização. A proposta está na arquitetura e discussão das variáveis constituintes da retórica organizacional, em específico, da comunicação oral como fator de mudança, de mobilização dos públicos e de consolidação da reputação organizacional.

Palavras-chave: Relações Públicas, Comunicação Organizacional, Dimensões da Comunicação, Oralidade, Discurso.

Abstract

The oral communication and verbal factors such as strategic relationship with audiences in a highly competitive market are discussed in this article that portrays the relevance of orality in the organizational speech context; Communication dimen-sions which reflect directly in the actions, skills and abilities of executives, leaders and spokespeople of the organization. The proposal is in the architecture and in the discussion of various constituents of organizational rhetoric, in particular, the oral communication as a factor for changing, for mobilizing the public and consolidating the organizational reputation.

Key words: Public Relations, Organizational Communication, Dimensions of Communication, Orality, Speech.

Resumen

Se discute la comunicación oral y la oralidad como factores estratégicos de relación con los públicos en un mercado altamente competitivo. El artículo retrata la pertinencia de la oralidad en el contexto del discurso organizacional y analiza las dimensiones de la comunicación que inciden directamente en las acciones, competencias y habilidades de los ejecutivos, líderes y portavoces de la organización. La propuesta está en la arquitectura y discusión de las variables constituyentes de la retórica organizacio-nal, en específico, de la comunicación oral como factor de cambio, de movilización de los públicos y de consolidación de la reputación organizacional.

Palabras clave: relaciones públicas, comunicación organizacional, dimensiones de la comunicación, oralidad, discurso.

A Expressividade da Comunicação Oral e sua

Influência no Meio Corporativo The Expressivity of Oral Communication

and its Influence in Corporate Media

Waldyr Gutierrez FortesDoutor em Comunicação pela ECA-USP

Docente da Universidade Estadual de [email protected]

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AExpressividadedaComunicaçãoOral...

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Introdução

rganizações investem no apri-moramento da comunicação com seus grupos de interesse na

busca por diferenciais competitivos. Esse investimento ocorre devido a se considerar a comunicação um fator estratégico para alcançar credibilidade e reputação positiva. Os investimentos incluem, além da abertura de novos canais de comunicação, a prepara-ção dos colaboradores e principalmente dos executivos e porta-vozes, cujos pronuncia-mentos representarão a própria identidade organizacional, em muitos casos.

A preocupação não deve estar apenas na mensagem a ser transmitida, e sim na forma pela qual será transmitida. Na co-

municação oral, o emissor é o elemento designado para elaborar, processar a informa-ção e atingir o feedback pois, como nos lembra Bazerman (2006:26), “é claro que para nossas palavras realizarem seus atos, elas devem ser ditas pela pessoa certa, na si-tuação certa, com o conjunto certo de compreensões”.

Esta é uma pesquisa exploratória e de natureza bibliográfica que busca con-

solidar o pressuposto de que a oralidade prevalece como estratégia corporativa para a percepção favorável sobre a imagem das organizações perante seus públicos. O estudo realizado na Universidade Estadual de Londrina – UEL vem estabelecendo uma produção progressiva mediante a análise dos dados apurados, a qual gerou outros artigos científicos que foram disse-minados em periódicos e congressos da área de Relações Públicas e de Comuni-cação Organizacional, como por exemplo no Intercom 2007, no Núcleo de Pesquisa sobre esses temas.

Este artigo destaca o reconhecimento crescente da importância do discurso,

Oda retórica e da oralidade como fatores que podem distinguir a comunicação organizacional com públicos estratégicos e foi aceito para ser apresentado no 31° INTERCOM - Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, em Natal - RN, 2008. Os pesquisadores orientam alunos colaboradores na UEL e, nesse artigo, o grupo apresenta sugestões para que diri-gentes, gestores e executivos tirem melhor proveito da sua comunicação oral.

O estudo tem por objetivo analisar de que forma a comunicação oral influencia na construção da imagem organizacional e apontar as principais vantagens e me-lhorias que este tipo de comunicação po-derá inserir na edificação desta imagem. Os pesquisadores acreditam que a comu-nicação oral é um diferencial competitivo que, quando bem trabalhado e desenvol-vido, congrega dimensões comunicacio-nais que incidem diretamente nas ações, competências e habilidades dos sujeitos atuantes em organizações. Essas dimen-sões, competências e habilidades são aqui analisadas e seguidas de recomendações que podem contribuir com um melhor desempenho para a comunicação oral das organizações modernas, de modo a potencializar seus relacionamentos com os públicos.

1. A função da comunicação oral

A oralidade ganha relevância por significar uma forma de contato entre indivíduos e porque há muito se sabe que a comunicação verbal traz em seu interior significados não promulgados em palavras, mas sim em gestos, expressões e atitudes que são interpretados à luz dos referenciais de cada pessoa. O discurso e a retórica organizacional requerem configu-rações individuais e de integração grupal. Estas características igualmente envolvem a personalidade, a motivação, a liderança e a satisfação dos públicos.

Organizações investem no aprimoramento da comunicação com seus grupos de interesse

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MartaTerezinhaM.C.MartinseWaldyrG.Fortes

é uma construção social cabida apenas se considerado seu contexto histórico- social e suas condições de produção. O discurso reflete uma visão de mundo necessariamente vinculada ao seu autor e à sociedade em que vive. A retórica é definida como o domínio de processos, formas e instâncias capazes de articular argumentos discursivos com vistas à mo-bilização e ao convencimento.

Os autores deste artigo alertam que o domínio dessa expressividade determi-nará o alcance dos objetivos da comuni-cação. O estudo da linguagem é feito não mais como língua1, e sim como discurso, “ou seja, cabe à retórica mostrar o modo de construir as palavras visando a convencer o receptor acerca de dada verdade” (Ci-telli, 2001:8). A retórica não se ocupa da verdade, e sim em construções discursivas embasadas no convencimento por meio de argumentos factíveis.

A voz de cada indivíduo tem carac-terísticas próprias que se refletem na sua comunicação oral. Alguns têm a voz aguda, outros têm a voz grave e vários indivíduos têm a voz rouca, mas, cada um tem uma voz que é diferente das outras, tem voz própria. Entretanto, não significa que as pessoas não possam aprimorar essas características individuais da voz, tornando-a um elemento favorável e es-tratégico em sua comunicação oral. Isso porque, quando uma pessoa verbaliza suas idéias ou transmite informações oralmen-te, a sua voz pode chamar a atenção dos indivíduos que a estão ouvindo de forma positiva ou não. A pessoa com voz muito aguda pode aborrecer os ouvintes, fazendo com que estes percam a disposição para ouvi-la e para assimilar sua mensagem. A construção retórica do discurso se com-

Cabe à comunicação oral a função de integrar, unificar o discurso e a retórica à realidade organizacional e possibilitar maior compreensão de seus públicos sobre as mensagens da organização. Conhecer os elementos da comunicação oral é funda-mental. Esta necessidade é marcadamente percebida por executivos e colaboradores que prezam por uma imagem forte e con-fiável das organizações das quais partici-pam e as quais representam.

A coerência discursiva encarrega-se das mobilizações pró-ativas ou reativas dos públicos, além de respaldar imagem e identidade.

Retórica ampliada, organizacional, que definimos como instrumento e campo pró-prios da arte de argumentar nos espaços de interação do cotidiano organizacional, não é, em nenhum sentido sinônimo do que se costumou chamar de discurso vazio ou enganoso. Ao contrário, ela é o resgate de uma “gestão do discurso” por meio de argumentos escolhidos dentro de uma tríade do conhecimento: lógica, emoção e ética, levando tais elementos a ser parte integrante das análises e práticas da gestão [...] (Torres, 26 jun 2008).

Conforme salienta Torres, a retórica como “ferramenta de gestão”, tem fun-damental importância para as relações públicas, pois possibilita a cooperação das pessoas com os objetivos organizacionais. Ao gestor da comunicação cabe analisar três elementos que compõem a oralidade: a voz, a fala e as manifestações do corpo previstos nos atos comunicacionais.

Buscar uma comunicação excelente deve constituir uma meta a ser alcançada pelos que a dirigem no cotidiano das organiza-ções. A comunicação excelente é aquela que é administrada estrategicamente, que se baseia em conhecimentos e na pesquisa científica e valoriza a cultura corporativa, os princípios éticos e o envolvimento das pessoas, segundo a teoria geral de relações públicas. (Kunsch, 2008:117).

O discurso pode ser conceituado como a prática social de produção de texto e

1 A língua é um aspecto da linguagem, o qual se trata de uma sistema de natureza gramatical, pertencente a um grupo de indivíduos, formado por um conjunto de sinais (palavras) e por um conjunto de regras para combinação destes.

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prometerá, caso a imposição da voz seja percebida como inadequada e a proposta do convencimento e conquista da atenção não será efetivada.

A fala, outro componente da oralidade, é determinada pela sua freqüência, inten-sidade, ritmo e velocidade, ressonância e articulação. Esses elementos são decisivos para se obter credibilidade no processo de transmissão de informações. A forma como os elementos da fala são usados al-cançará a interpretação e a percepção for-muladas pelo ouvinte a respeito da mensa-gem e do comunicador. Um comunicador cuja fala tem intensidade reduzida sugere sensações como medo, insegurança ou ti-midez, características que serão encaradas

de forma negativa pelo pú-blico. O comunicador com intensidade adequada e boa articulação conduzirá a uma idéia de domínio, clareza de idéias e de pensamentos, o que ajudará na conquista de credibilidade perante os grupos de interesse.

Embora a voz e a fala sejam carregadas de signi-ficados que interferem nas interações com o público, as manifestações do corpo du-rante a comunicação, tam-

bém incidem diretamente na construção retórica do discurso e podem ser resumidas como expressão facial, gestos e postura do emissor da comunicação oral.

É possível ocorrerem situações cons-trangedoras para aquele comunicador incapaz de controlar sua comunicação não-verbal. Expressões e gestos podem contradizer a própria fala, justamente pela falta de domínio sobre a comunicação não-verbal.

Os autores deste artigo alertam para que a expressão facial e os gestos dos in-divíduos acompanhem e confirmem o que está sendo dito para neutralizar a ocorrên-cia de contradições com o discurso oral. A

A comunicação oral é um diferencial competitivo que incide diretamente nas ações

postura deve ser adequada à fala para sal-vaguardar uma comunicação transmitida com firmeza, equilíbrio e domínio sobre o procedimento comunicacional.

A retórica moderna ocupa-se das técnicas argumentativas e das figuras de linguagem para exercer sua função. A comunicação oral, praticada pelo uso da voz, da fala e das manifestações do corpo, compõe a expressividade das pessoas. Os autores desse artigo advertem que o domí-nio dessa expressividade determinará o alcance dos objetivos da comunicação.

[...] O simples fato de falar (e não neces-sariamente de dizer eu, de utilizar um dêitico2 ou de produzir um ato de fala), por exigir a escolha de certos recursos expressivos, o que exclui outros, e por instaurar certas relações entre locutor e in-terlocutor (depreensíveis, freqüentemen-te, do dialeto ou das marcas estilísticas definidoras de papéis sociais), já indica a presença de subjetividade na linguagem [...] (Possenti, 2001:72).

A comunicação ocorre somente porque os envolvidos no processo participam da mesma experiência lingüística. Nesta concepção o discurso ocorre como um acontecimento único, pois segundo Possenti, 2001, nenhum discurso ocorre duas vezes, visto que a relação entre os elementos envolvidos na sua arquitetura serão diferentes num outro contexto.

Gregolin e Baronas (2003:100), argu-mentam que “o sentido não está no texto, mas na relação que este mantém com quem o produz, com quem lê, com outros textos (intertextualidade) e com outros discursos possíveis (interdiscursivida-de)”. As relações de intertextualidade e interdiscursividade agregam ao texto as vozes que o perpassam e o carregam de ideologias, conceitos e suposições.

2 Segundo Martins (2007), a dêixis implica em um ato de apontamento verbal, ou seja, a referência entre o eu, sujeito do discurso, e as pessoas, objetos, fatos e espaços de tempo.

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A retórica organizacional fundamenta-se pela lógica, emoção e ética, elementos que balizam a intenção organizacional de inserir um comportamento de trabalho e produtividade participativo e cooperativo.

Os executivos que buscam credibilida-de por meio da comunicação estratégica com seus públicos precisam aperfeiçoar sua expressividade, sendo que workshops e media training são freqüentemente pro-movidos nas organizações que preparam seus colaboradores para se interar com os públicos organizacionais estratégicos.

2. A comunicação oral nas dimensões individuais

Internamente, os públicos requerem que a organização enuncie uma identi-dade coletiva, na qual a narrativa deverá mostrar uma relação de proximidade entre indivíduo e organização. Freitas e Guerra (2007) sugerem a mudança de nome de “funcionário” para “colaborador” e o uso do termo “família” quando se referir à equipe ou mesmo aos familiares dos colaboradores. Recomendam ainda que isso se torne uma constante na produção da linguagem organizacional. Quanto ao ambiente externo, Freitas e Guerra (2007) indicam para a comunicação organiza-cional com públicos estratégicos que se adote o discurso do “nós”, assumindo uma narrativa de proximidade, que resgate da identidade coletiva. Torres (26 Jun 2008) acrescenta que a retórica organizacional requer “que não haja privilégio só do discurso verbal, mas que a argumentação retórica esteja presente em símbolos, objetos, na cultura, nas falas, ações, na empresa como um todo [...]”.

A oralidade é presença marcante nas organizações, independente da formalida-de exigida pelo assunto em pauta. Freitas e Guerra (2007) afirmam que a “prática discursiva é um poderoso exercício de comunicação que transforma os que nela

se inserem (...) envolve três aspectos fundamentais (...) comunicação, desen-volvimento de líderes e transformação da estrutura organizacional [...]”.

Os profissionais de hoje reconhecem a importância de saber se comportar e falar bem em público, independente de serem da área de comunicação. Há, contudo, pessoas para quem a necessidade de falar em público é reconhecidamente uma limi-tação a ser superada. A habilidade de co-municação pode ser desenvolvida, pois, se houver barreira para esse aprendizado, é provável que o obstáculo esteja no íntimo da pessoa, talvez por não acreditar em seu próprio potencial. A timidez, ansiedade, vícios de linguagem, nervosismo, prolixi-dade e medo de falar em público são di-ficuldades que deverão ser superadas por quem pretende ser oralmente hábil para se comunicar. O bom comunicador atenta para técnicas de comunicação e postura, sabe escolher e utilizar o melhor recurso audiovisual e principalmente aprende a organizar o contexto a ser exposto de forma clara e objetiva, além de colaborar para uma boa apresentação.

A comunicação está na essência do ser humano e relaciona sabedoria para se comunicar, pois muito pouco acontece sem comunicação. Comunicar bem não é isoladamente saber transmitir ou receber bem as informações. Comunicação é troca e entendimento e não é possível entender e se fazer entender sem considerar, além das palavras, as emoções e a situação em que ocorre o compartilhamento de conhe-cimentos, idéias, instruções ou qualquer outra mensagem, seja ela oral, escrita ou corporal. Por este motivo deve-se analisar a comunicação em diferentes dimensões, como sugere Passadori (2003). O autor menciona que um líder se relaciona e se comunica com pessoas, então a capacida-de para liderar, influenciar, conseguir bons resultados em uma negociação ou no aten-dimento a um cliente faz do líder um ser

especial “rico em valores e aprendizados,

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contagia e cativa as pessoas e potencializa os argumentos de modo a aproximar mais da aceitação do público sobre o que esteja sendo dito. O entusiasmo associado ao de-sempenho oral do comunicador desperta a atenção de quem está ouvindo valendo-se do conhecimento sobre o público e sobre o que ele espera do discurso, procura es-timular a inteligência e a curiosidade do ouvinte, desafia a refletir sobre o assunto e a desenvolver suas convicções. A forma como o comunicador se porta interfere na sua credibilidade e confiança.

Na dimensão corporal, segundo relata Passadori (2003), gestos, postura, olhar, ex-pressões faciais, impõem a ampliação dos cuidados com o comportamento corporal diante do público. Para Polito (2005:91), cuidar da expressão corporal é fundamen-tal em qualquer circunstância: “quando você se apresenta em público, seja numa pequena reunião na empresa, seja numa importante conferência, a maneira de se expressar com o corpo será sempre funda-mental para que obtenha sucesso”.

A linguagem corporal soma-se à comunicação oral, porém, a postura ado-tada deve condizer com o discurso do momento. Atitudes como manter gestos moderados e olhar para o público per-mitem prender a atenção dos ouvintes. O equilíbrio e o bom senso devem reger as atitudes do comunicador para cumprir adequadamente a tarefa de comunicar sua mensagem. Pode ser necessário reeducar a postura a ser adotada no momento de uma apresentação em público para conci-liar linguagem corporal à proposta de se comunicar oralmente com propriedade. Como analisa Citelli (2001), compete à retórica a construção das palavras visan-do ao convencimento do receptor acerca de dada verdade, concomitantemente ao referenciado por Polito (2005), para quem a imposição corporal é condicionante da eficácia e eficiência da comunicação.

Na dimensão vocal o volume variado da voz, a tonalidade, a velocidade, o uso

que se conecta com outros seres humanos, dotados também eles de capacidade, dons e talento” (Passadori, 2003:62).

Sobre a comunicação na dimensão espiri-tual Passadori pondera não existir nela uma conotação religiosa. Essa dimensão pode ser compreendida como uma comunicação camuflada que se expressa por meio de ações, atitudes e comportamentos. Implica um nível que transcende as necessidades e ações físicas, bem como os pensamentos e os sentimentos. Pode-se dizer que o público é capaz de perceber, pelo discurso, o com-portamento e as opiniões que constituem os reais valores de um interlocutor. Essa comu-nicação não é imediatamente percebida, pois para comunicar, são necessárias intuição e

sensibilidade para transmitir ao público mais do que con-teúdo e expressar uma iden-tidade, as crenças, os valores, as atitudes, as habilidades, os pensamentos e os sentimentos do emissor da comunicação, como é impetrado na sua dimensão espiritual.

A dimensão emocional refere-se aos níveis intra-pessoal e interpessoal de comunicação, necessita ser flexível e facilitar tanto o processamento quanto a

percepção sobre a informação. A dimensão emocional impulsiona uma comunicação provida de auto-estima, coragem, autocon-trole, entusiasmo, empatia e flexibilidade conduzidos juntamente com a mensagem comunicacional, via o desempenho par-ticular de seu emissor. A pessoa que não acredita em si terá dificuldade para que outras pessoas confiem e aceitem o que está dizendo pela comunicação oral.

É no nível intrapessoal de comuni-cação que se cultiva o entusiasmo para despertar a atenção de quem está ouvindo e legitimar o discurso. Cultivar o entusias-mo é uma das regras para a boa comuni-cação interpessoal. Falar com entusiasmo

A função da comuni-cação oral é unificar o discurso e a retórica à realidade organizacional

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da pausa e a boa dicção são os princípios da fala analisados e treinados. Estes prin-cípios da fala equilibram-se totalmente no âmbito da dimensão vocal.

As habilidades pertinentes ao que se exprime pela voz, que se refere à emissão do dito, somam-se às dimensões da comu-nicação em forma e conteúdo. Sendo assim, às outras dimensões, acrescenta-se a di-mensão intelectual, como analisa Passodori (2003), a qual abrange o planejamento, a preparação para a apresentação, o uso corre-to das normas gramaticais e a memorização. É nesta fase que se prepara a apresentação em consonância com o perfil do público, o qual demanda conhecimento sobre si. Antecede ao planejamento a decisão sobre se a apresentação será persuasiva, motiva-cional ou informativa. Decisões posteriores decorrem da organização das idéias, da análise sobre o ambiente e da adequação dos recursos audiovisuais aos propósitos do comunicador e daquela comunicação. Melantonio (apud Passadori, 2003:15) ques-tiona sobre “quantas empresas também não se percebem incapazes de produzir mais em menos tempo, melhor e mais barato por falta de eficiência na comunicação oral, princi-palmente nos escalões superiores?”.

Comunicar oralmente com competên-cia pode exigir mudanças do emissor na sua forma de atuar, porém mais que um esforço pessoal, essas dimensões prevêem o esforço para atingir os objetivos da pró-pria comunicação, pois aquele não detém aptidão para mudar a si mesmo, não estará apto a mudar qualquer outra coisa dentro da esfera organizacional.

2.1ComunicaçãoeOralidade:InterfacesparaEficácia

A comunicação é uma habilidade que pode ser desenvolvida, embora muitas pessoas não tenham a consciência desta possibilidade e não acreditem no próprio potencial. A maioria dos profissionais de comunicação utiliza seus conhecimentos e sabedoria para atingir o objetivo de per-

suadir, de disseminar um assunto ou de vender uma imagem por meio da comuni-cação. A efetiva comunicação pressupõe um ato de consideração com o outro. Comunicação é somatório e requer habi-lidades, pois comunicar envolve forma e conteúdo. O discurso vazio, empolado ou prolixo encaminha para descrédito, desatenção e incoerência. Situações de comunicação oral como um contato com call center marcado pelo desânimo e des-caso transmitido pela voz do atendente, uma palestra enfadonha que pareça não ter fim ou a defesa de um projeto para os superiores dentro de uma organização, reservam grande parte da aceitação ou rejeição, como resposta do público à forma como a comunicação oral foi utilizada.

Quando uma pessoa toma a palavra, pro-cura exprimir uma imagem de si mesma perante outra pessoa. A fala exerce grande quantidade de influência sobre as atitudes e o comportamento dos outros. Ela e seu uso adequado compreendem um conjunto de regas explícitas e implícitas cujo desres-peito pode causar desconforto sofrimentos psíquicos e perturbações psicológicas. Apesar de sua recorrente importância e de seu peso nas relações interpessoais, pouco os executivos sabem a respeito do seu uso adequado e do lugar que ela ocupa no mun-do do trabalho (Freitas, 2008:142).

No mundo dos negócios, as organi-zações procuram profissionais cada vez mais completos, mais capazes e providos de competência para se comunicar com pessoas. As competências exigidas podem ainda não estarem desenvolvidas em um executivo, porém, vale destacar que a co-municação, como habilidade de expressão verbal e não-verbal, pode ser aprendida, tal como qualquer outra ciência. Para isso, é fundamental que haja comunicação intrapessoal, haja vista que, se o emissor não acreditar em si, não fará com que outras pessoas chancelem seu discurso, confiem e aceitem o que estão ouvindo. A comunicação intrapessoal e a auto-estima

são capitais neste processo, pois apenas

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acreditando que é possível mudar, uma pessoa estará apta a se tornar um bom co-municador e abrir a possibilidade efetiva de comunicação com o outro.

A comunicação pode esbarrar em pre-conceito sobre o que está sendo transmitido e a idéia da mensagem não ser totalmente entendida. Estimular o ouvinte e conduzi-lo a refletir sobre os argumentos e a ampliar seus conhecimentos é mais uma das responsabili-dades de alguém que se vale da comunicação oral para transmitir mensagem.

3. A obscuridade dos discursos nos negócios

Embora se tenha notado os esforços das organizações em valo-rizar a plurivocalidade e o discurso dialógico na busca pela aproximação dos sujei-tos, existe outra tendência observada nas organizações modernas, especialmente quando se trata da oralidade: o palavrório. Trata-se da arti-ficialidade em discursar, es-pecialmente dos executivos, como forma de justificar a falta de clareza e concisão de idéias. Omitir verdades que não soariam tão bem

aos receptores em conversas reais, tal como se houvesse a retomada da retórica exercida no passado, quando o discurso pomposo, empolado e vazio de conteúdo detinha presença marcante.

Muito do que se tem ouvido nos discur-sos do mundo dos negócios não passa de verborragia. A necessidade de seduzir com um jargão empolado faz do dialeto empre-sarial por demais incompreensível, mesmo que superficialmente a verborragia pareça ter conteúdo. Nesta perspectiva reafirma-se que tudo isso contraria a tendência contem-porânea de revalorização da comunicação oral como forma de humanizar as relações e conquistar interesses mercadológicos.

Segundo Fugere (2007:10),

Há uma grande distância entre essas con-versas reais e autênticas e a voz artificial dos executivos e gerentes de empresas em todos os níveis. Num mundo que implora por mais humanidade, é isso justamente o que falta às mensagens deles. Entre reuni-ões, memorandos e gerentes, perdemos de vista a arte de conversar. A embromação se tornou a linguagem dos negócios.

Palavras bonitas, jargões, discursos decorados e impessoalidade fazem da comunicação oral nas organizações uma poderosa arma de afastamento. Isso porque essa situação não coloca o público, seja esse público qual for, em primeiro lugar, tornan-do-o vulnerável quando se sente vítima da prolixidade. De acordo com Fugere (2007: 31), o “emprego de linguagem rebuscada gera efeito contrário nos ouvintes. Assim, quando ele pára de entender e já não preci-sa se concentrar no que você está dizendo, tem tempo de ver de quem é a culpa por não estar entendendo nada”.

Somam-se a essa vertente empolada algumas tecnologias que têm contribuí-do sobremaneira no distanciamento da tendência moderna. Embora facilitem e agilizem processos, as tecnologias têm proporcionado o que Fugere (2007) chama de “terceirização da voz”, o uso de e-mail, voice mails, roteiros sistemáticos e textos escritos que manipulam até mesmo a en-tonação, desconsideram o poder da voz como sendo a melhor forma de criar rela-cionamento. Muitos são os profissionais que deixam de usar o telefone pela co-modidade de responder instantaneamente uma mensagem de correio eletrônico.

Fugere aconselha que “se você tem uma relação tênue, se troca cinco e-mails sem nenhum telefonema, se está lidando com uma questão importante ou se está tentando persuadir alguém de alguma coisa, trate de investir alguns minutos num telefonema” (2007:92). O autor ar-gumenta que existem duas ‘armadilhas’

reais na comunicação das empresas hoje:

O discurso reflete uma visão de mundo vincu-lada ao seu autor e à sociedade em que vive

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a obscuridade e o anonimato. A obscuri-dade remete às evasivas, aos discursos empolados e à falta de objetividade. Por sua vez, o anonimato é caracterizado pela automatização da voz, roteiros monóto-nos, palestras que se dirigem a especta-dores genéricos e que deixam claro a não participação do palestrante na autoria do discurso, entre outros.

Essas situações de desvalorização da fala nas quais são utilizados a impessoa-lidade e jargões gratuitos, são muito mais que simples problemas de gramática ou modismos. Falar de modo objetivo exige, segundo Fugere (2007:15),

[...] honestidade, humanidade e confiança da parte de quem faz negócios. Qualquer um pode montar uma apresentação que descreva ‘as sinergias extensíveis derivadas do reposicionamento das metas dos ativos intelectuais’. Dá mais trabalho expressar a idéia (...) em linguagem comum.

Afirma-se que essas formas de comuni-cação pouco atraentes estão vazias da lin-guagem que desafie a imaginação, instiga a curiosidade ou entusiasma o receptor. Nesse sentido, dentro da organização ou partindo dela para o ambiente externo, o discurso passa a ser um problema imi-nente, se não for dotado de criatividade e humanidade. As organizações são enti-dades vivas, constituídas por pessoas, e precisam manter um equilíbrio na comu-nicação para sua sobrevivência, o qual é promovido pelo diálogo eficaz. Somente uma comunicação objetiva permanente será capaz de garantir a compreensão sobre quais são os objetivos da empresa e quais as melhores formas de integrá-la junto aos seus públicos.

É preciso praticar a oralidade, sim, mas como um elemento transformador que vise a aproximar pessoas e não ser mecanizada e monótona levando essas pessoas a não fazerem qualquer questão de ouvir. A principal ação das organiza-ções no mercado atual deverá ser dirigida às necessidades do público, procurando

observar o funcionamento de suas expec-tativas, suas motivações e a construção conjunta de uma boa reputação.

Partindo do pressuposto de que o porta-voz da organização se materializa-rá por meio da figura do líder, Passadori (2003:62) menciona algumas caracteriza-ções. Um líder se relaciona e se comunica com pessoas, então a capacidade para lide-rar, influenciar, conseguir bons resultados em uma negociação ou no atendimento a um cliente faz do líder um ser especial “rico em valores e aprendizados, que se conecta com outros seres humanos, do-tados também eles de capacidade, dons e talento”.

Sob tal ótica, o que se evidencia como retórica organizacional articulada pelo discurso é que o convencimento e a mobilização pró-ativa dos públicos com os quais a organização se relaciona está na base argumentativa, sem que isso implique coerção, eloqüência vazia ou práticas ludibriantes. A construção ou a materialização da linguagem verbal ou não-verbal permitem realizar atos de comunicação oral. O discurso organiza-cional constitui um dos principais desafios das organizações contemporâneas, uma vez que se faz implícito em toda ação estratégica. Seu objetivo concentra-se em que os públicos decodifiquem a proposta enunciada como fora planejado pelas es-tratégias organizacionais, salvaguardando o que, segundo Richetti (2007), legitima as relações participativas de via dupla organização-público.

A importância do estudo e da correta utilização da retórica para a consolidação dos relacionamentos é evidente, uma vez que a retórica aparece em todas as formas de comunicação exercidas pelas orga-nizações e por aqueles que a compõem. Ao deixar a retórica sem ação planejada, corre-se o risco de perder o sentido e a coerência de todo o trabalho comunica-cional desenvolvido nos relacionamentos

da organização.

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Conclusões

Para unificar e integrar o discurso e a retórica à realidade organizacional, os executivos têm dado cada vez mais atenção ao planejamento da comunicação oral e deparam-se com três elementos fundamentais neste processo: a voz, a fala e as manifestações do corpo. O cuidado com a entonação da voz, com o ritmo e fluência da fala, e também com expres-sões faciais e gesticulação são exemplos de fatores marcantes para o sucesso do planejamento. Pesquisadores da área de comunicação observam que a escolha de terminologias tem grande influência no processo de aproximação com os públicos estratégicos. Os autores deste artigo acres-

centam que o discurso deve se distanciar da artificialidade que pode comprometer a confiança dos públicos.

O bom uso da fala depende de aspectos como o ambiente e a situação em que ocorre, bem como as dimensões pessoais individu-ais. Atenta-se para a confiança e entusiasmo que o executivo possui para se comunicar. O descaso ou negligência para com o plane-jamento da comunicação oral compromete a efetividade dos relacionamentos e a imagem de uma organização. O presente estudo utili-zou postulados de autores que se preocupam com a comunicação organizacional e conse-guem enxergar a importância da oralidade no processo administrativo. A pesquisa buscou, além disso, estudos teóricos sobre a retórica que alicerçam a análise.

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Volume 8 - Nº 2 - 2º sem. 2008

Resenhas

Isaac GilMestre em Administração pela Universidade

Municipal de São Caetano do Sul-SP Doutorando em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP

[email protected]

Medo líquidoBAUMAN, Zygmunt. Medo Líquido. Tradução de

Carlos Alberto Medeiros. São Paulo: Jorge Zahar Ed., 2008. 237p. ISBN 978-85-378-0048-5.

ste livro apresenta o medo den-tro do mundo líquido-moderno e demonstra que as certezas da

modernidade e o controle social se des-moronaram. A insegurança do habitante do mundo líquido-moderno é real e dire-tamente ligada a ameaças como a perda do emprego, o risco de uma catástrofe natural, a violência urbana, o terrorismo, a perda do amor do parceiro, a exclusão social. O inventário que o autor realiza neste livro sobre os temores presentes na modernidade líquida baliza as origens das ansiedades contemporâneas.

Bauman explica a origem e a dinâmica dos medos, conceituando a vida em uma sociedade líquido–moderna, isto é, aquela em que amanhã não pode ser, não deve ser e não será como hoje, uma socieda-de de ensaios diários, de ressurreições

E recorrentes e reencarnações perpétuas. Bauman comenta que a Europa do século XVI foi descrita como o ambiente do Peur toujour, peur partout ou o medo sempre e em toda parte e frisa que tal adágio ainda hoje é válido. “Medo” é o nome de nossa incerteza, ignorância das ameaças e do que pode ou não pode ser feito para enfrentá-lo ou interrompê-lo.

Descreve o autor o medo da exclusão ou de uma catástrofe pessoal, de ser dei-xado para trás como nos reality shows, mencionados no primeiro capítulo, sobre o conceito de pavor da morte. O horror de ser excluído tem significado acentuado na sociedade líquido-moderna. Morrer é ser excluído.

O autor chama o medo e o mal, no segundo capítulo, de siameses: são dois

nomes de uma mesma experiência. Para

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Medo líquido

ele o medo é o que se sente e o mal é o que se vê e ouve.

A capacidade de autodestruição do mundo em que vivemos ou a capacidade de cometer o suicídio coletivo é o tema do terceiro, destruição mútua nos depósitos de ogivas nucleares e dos mísseis capazes de lançá-las em qualquer parte do planeta, mas também as catástrofes naturais como o tsunami asiático, o furacão Katrina e a impotência dos governos para lutar contra estes episódios. O horror do inadiminis-trável como é o título.

O terror global é o espectro da vul-nerabilidade que paira sobre o planeta. Estamos todos em perigo, somos todos perigosos uns para os outros. Bauman apresenta o conceito de globalização ne-gativa, globalização seletiva do comércio e do capital, da vigilância e da informação, da coerção, dos crimes, das armas e do terrorismo, que desdenham a soberania e fronteiras nacionais.

Bauman frisa a globalização negativa - o que prolifera em âmbito universal é o crime, o terrorismo e os negócios, enquan-to o mercado prospera em condições de insegurança porque aproveita os medos e sentimentos de desamparo dos seres humanos. Ou seja, o desmantelamento das defesas do Estado. A batalha contra o crime é apresentada como um excelente espetáculo midiático burocrático o que proporciona audiência e lucro.

No sexto capítulo, o autor comunga da crítica que Marx ao capital como res-ponsável pela destrutividade e iniqüidade moral, ressaltando que hoje são globais ou planetárias. A menos que a globalização negativa seja controlada, explica, a catás-trofe é inevitável.

O livro deve ser lido como um alerta. Escrito em 2005, utiliza de fatos recentes, inclusive do brasileiro Jean Charles de Menezes (na página 197) falsamente identi-ficado pela polícia londrina como potencial homem-bomba e morto imediatamente.

A leitura deste livro sem o conheci-mento dos conceitos apresentados em outros livros do autor como Amor Líquido, Tempos líquidos e Vida Líquida pode ser prejudicada, mas não tira seu valor, fasci-nação e excepcional clareza de idéias. A metáfora da liquidez caracteriza o estado da sociedade moderna onde, como os líquidos, o que prevalece é a incapacidade de manter a forma. Nossas instituições, quadros de referência, estilos de vida, crenças e con-vicções mudam antes que tenham tempo de se solidificar em costumes, hábitos e verdades. Empregos, relacionamentos e know-how tendem a permanecer em fluxo, voláteis e flexíveis; líquidos.

O livro é imprescindível para os es-tudantes de sociologia, comunicação e de administração - e para todos aqueles atentos às transformações do mundo em que vivemos.

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Volume 8 - Nº 2 - 2º sem. 2008

Resenhas

Izabelle PradoGraduação em Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero

Mestranda em Comunicação e Semiótica na [email protected]

A Semiótica e o processo de criação de uma obra

SALLES, Cecilia Almeida. Redes da Criação: Construção da obra de arte. Vinhedo: Horizonte, 2006.

ecilia Almeida Salles, professora da PUC-SP, lançou em 2006 o livro Redes da Criação: Constru-

ção da obra de arte. A obra pode parecer apenas mais um capítulo na complexa tarefa de compreensão dos processos que envolvem a criação da obra de arte, mas é fundamental para os estudiosos desta área por esclarecer alguns conceitos básicos nas análises dos percursos criativos.

Como define a autora nas primeiras páginas, “o processo de criação, com o auxílio da semiótica peirceana, pode ser descrito como um movimento falível com tendências, sustentado pela lógica da incerteza, englobando a intervenção do acaso e abrindo espaço para a introdução de idéias novas. Um processo no qual não se consegue determinar um ponto inicial, nem final” (p.15).

C O acompanhamento deste percurso, realizado a partir de documentos deixa-dos pelos artistas – diários, anotações, esboços, rascunhos, maquetes, projetos, roteiros, copiões etc. – só faz sentido nas relações estabelecidas entre eles. Nas palavras de Salles (2006:27), o crítico, ao estabelecer nexos a partir do material estudado, procurar refazer e compreender a rede do pensamento do artista.

Por ser um trajeto em permanente mo-bilidade, o processo de criação traz a idéia de dinamicidade em sua constituição. “O inacabamento que olha para todos os obje-tos de nosso interesse – seja um romance, uma peça publicitária, uma escultura, um artigo científico ou jornalístico – como uma possível versão daquilo que pode vir a ser ainda modificado”, explica na página

20. Com isto, o artista está sempre num

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A Semiótica e o processo de criação de uma obra

processo sem previsão e sem predição; a incerteza é uma das matérias-prima do processo criativo.

Por seu caráter essencialmente móvel, a criação se alimenta e troca informações com seu ambiente. As interações abrangem as relações entre espaço e tempo social e individual, entre artista e cultura.

O Sujeito e o Processo de Criação

Nesta análise, é importante compre-ender a turbulência cultural vivenciado pelo sujeito para analisar a obra, uma vez que todas as formas de interação parecem cumprir um papel importante como espaço de articulação e troca de idéias com contemporâneos. “Todo o processo de apreensão do mundo é feito, normal-mente, em função de uma obra ou de um projeto que vai além da construção de uma obra específica. Conhecer os procedimen-tos criativos envolve, sob esse ponto de vista, a compreensão do modo como os processos culturais se cruzam e interagem nos processos criativos: como esses índi-ces culturais passam a pertencer às obras em construção”, diz, na página 50.

O artista observa o mundo e recolhe aquilo que, por algum motivo, o interessa e as indagações dele e o próprio movimen-to criativo das obras são impulsionados nas diversas interações culturais dessa compreensão universal. Assim, quando se pensa em determinação no estudo do processo de criação, encontra-se disper-

são. Cada ponto de referência possui suas ramificações, divisões e subdivisões.

Erros e Acasos C onstrutores

A criação, observada sob o ponto de vista processual, é um pensamento que se constrói ao longo do tempo, e está propenso a entradas de elementos que causam ramificações do pensamento, desestabilizando a aparente estabilidade no percurso em direção às tendências. Segundo a autora, “erros e acaso intera-gem com o processo que está em curso, propondo problemas que provocam a necessidade de solução. Para que isso aconteça, hipóteses são formuladas, tes-tadas e, possivelmente, geram associações de outra natureza” (p.132).

Acidentes de toda espécie provocam uma espécie de pausa no fluxo da conti-nuidade, um olhar retroativo e avaliações, que geram uma rede de possibilidades de desenvolvimento da obra, que levam, por sua vez, ao estabelecimento de critérios e conseqüentes seleções.

Dessa forma, Salles mostra que tanto o processo de construção de obras quanto a sua compreensão implicam maturação e um tempo contínuo e permanente com rumos vagos. Não podemos definir o co-meço e nem o seu ponto final, mas com certeza podemos fazer uma pausa para entender algumas dessas formulações teórica que fundamentam a crítica dos percursos criativos.

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Volume 8 - Nº 2 - 2º sem. 2008

1 A seção “Na Estante” traz recomendações de livros para o estudo temático da comunicação.

Na Estante1

Heitor FerrazMestre em Literatura Brasileira pela USP

Docente da Faculdade Cásper Lí[email protected]

Para pensar a cultura

LoreNzotti, elizabeth. Suple-mento Literário, que falta ele faz!: 1956-1974 do artístico ao jornalís-tico: vida e morte de um caderno cultural. São Paulo: imprensa oficial do estado de São Paulo, 2007.

Nas páginas do Suplemento Literário, encartados aos domingos em O Estado de S. Paulo, podia se encontrar o mais seleto time de críticos literários do país. Além disso, na última página havia um espaço dedicado à criação literária. Grandes nomes da literatura brasileira publicaram ali seus poemas e con-tos ainda inéditos. No miolo do Suplemento, a vida cultural do país pulsava em críticas sempre criteriosas, que não abriam mão de um rigor intelectual, mas numa linguagem acessível ao leitor do jornal. Elizabeth Lo-renzotti, em Suplemento Literário, que falta ele faz! remonta a história deste que foi um

dos mais importantes espaços de reflexão da cultura no Brasil principalmente entre 1956, quando circulou o primeiro número, e 1974, quando sofreu sua primeira mu-dança, até tornar-se Suplemento Cultural, depois Suplemento Cultura e sumir abrindo espaço para o Caderno 2, a partir de 1986. Em sua criação, estava a dupla da influente revista Clima, Antonio Candido e Décio de Almeida Prado, editor efetivo de 1956 a 1966. A partir de 1966, passou a ser editado pelo jornalista Nilo Scalzo. Recuperar esta história, os propósitos do Suplemento, sua concepção e o seu desejo de intervenção na vida cultural, faz pensar nos caminhos da crítica de cultura no país até os nossos dias, quando esses espaços começam a

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Para pensar a cultura

desaparecer para se tornar, cada vez mais, uma vitrine dos lançamentos culturais, com pouca mobilidade crítica. Além de traçar a história do Suplemento Literário do Estadão, Lorenzotti inclui entrevistas com Antonio Candido, Italo Bianchi, responsável pelo projeto gráfico inicial, e Nilo Scalzo. Como lembra Candido, no prefácio da obra, o livro “é uma contribuição que vai além do mero valor monográfico, pois constitui uma análi-se pertinente das relações entre jornalismo e cultura, à luz de um caso que soube estudar com rigor e competência”.

ramos, Nuno. ensaio Geral. São Paulo: Globo, 2007.

É cada vez mais forte a especialização crítica dentro do mundo da cultura, princi-palmente aquele tratado no jornalismo. Há o crítico de artes plásticas, o de música, o de cinema, o de literatura, o de teatro, criando pequenos feudos defendidos por altas mu-ralhas. Chega a ser um paradoxo diante do próprio mundo da criação artística, especial-mente no século 20, quando a barreira entre as artes se tornou cada vez mais frágil e muros foram derrubados em busca de uma maior expressão artística. Um livro na contramão dessa limitação crítica é Ensaio geral, de Nuno Ramos, um dos mais notáveis artistas plásticos brasileiros em atuação. Nesta obra, que leva como subtítulo “projetos, roteiros, ensaios, memória”, ele promove, em suas 416 páginas, uma forma híbrida de abordar a arte, incluindo ensaios sobre futebol, arte, canção, literatura, além de alguns estudos e reflexões sobre seu próprio trabalho de criação. O autor justifica esse hibridismo na apresentação do livro. E vale à pena copiá-lo aqui, pois a ques-tão da especialização perpassa suas reflexões: “Para quem produz cultura no Brasil, há sem-pre, de um lado, as tentações da ausência de especialização, um sentimento de que tudo ainda está por ser feito, responsável pelo entusiasmo presente em algumas de nossas figuras intelectuais e em alguns de nossos momentos culturais decisivos. De outro, há um cansaço complementar e renitente, devi-

do à inconclusão e impermanência de tudo e de todos, um sentimento de que a pedra que arrastamos não descansará jamais no alto da montanha”, Certamente, o jornalista cultural terá muito a aprender sobre a crítica diante de uma obra dessas, que trata de Euclides da Cunha, Nelson Rodrigues e o futebol, e de samba no ensaio “Ao redor de Paulinho da Viola”, cuja sensibilidade do artista-crítico soube ouvir a beleza do samba para além das categorias mercadológicas que regem a crítica atual de arte.

osorio, Luiz Camillo. razões da crítica. Coleção arte +. rio de Ja-neiro: Jorge zahar editor, 2005.

Publicado em 2005, na simpática Cole-ção arte +, da Jorge Zahar Editor, Razões da crítica, de Luiz Camillo Osorio, teve pouca visibilidade na crítica jornalística, mais afei-ta, hoje, aos livros mirabolantes, com imagens coloridas e enorme parafernália gráfica, que quase chegam a impedir a leitura das obras. Este livrinho, sim, um livrinho de 70 páginas em formato de bolso, traz uma análise das mais consistentes sobre a crítica de arte hoje. Osorio, professor de Estética e História da Arte da UniRio e da PUC-RJ, autor de Flavio de Carvalho (Cosac Naify, 2004), reflete sobre o presente e o futuro da crítica — não só de ar-tes plásticas — nos periódicos e na academia. Para ele, a crítica é um espaço da reflexão: “o papel da crítica não é criar polêmica, mas procurar espaço para o confronto de idéias e a disseminação de sentidos para as obras de arte”. Para sua reflexão sobre a crise da críti-ca atual, trabalha com conceitos da história da arte e da filosofia, especialmente Crítica da faculdade do juízo, de Kant. Em poucas páginas, Osorio coloca a crítica em discussão buscando não soluções miraculosas para o impasse atual, mas propondo uma maneira de a crítica se colocar de forma mais atuante no contexto histórico em que vivemos, parti-cipando do processo de produção artística, em toda sua complexidade, no lugar de ser apenas um exercício de esnobismo e de julgamentos frágeis.

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Volume 8 - Nº 2 - 2º sem. 2008

1 A seção “Clássico” se dedica a resgatar obras que in-fluenciaram os estudos de Comunicação e tenham sido publicadas pela primeira vez há pelo menos vinte anos.

Clássico1

Francisco José NunesMestre em Ciências Socias – PUC-SP e

Docente da Faculdade Cásper Lí[email protected]

Liberdade, imprensa e liberdade de imprensa

MARX, Karl. A liberdade de imprensa. Tradução de Cláudia Schilling e José Fonseca.

Porto Alegre: L&PM, 1980, 1ª edição, 226 p.

Liberdade de Imprensa”, de Karl Marx, é uma coletânea de artigos publicados entre 1842 e

1861 na Alemanha e na Inglaterra. Os dois primeiros foram publicados na “Gazeta Re-nana”, jornal de tendência liberal, patroci-nado por grupos burgueses progressistas da Renânia. Marx foi o redator-chefe.

O primeiro artigo: “Debates sobre a li-berdade de imprensa e comunicação” trata da “luta contra o autoritarismo prussiano”, Marx destila ironia e arrogância para tratar o tema, recorrendo à sua formação em Direito e Filosofia. O artigo é repleto de aforismos, trocadilhos e erudição, próprio de um jovem articulista inconformado com a dominação política e social.

Logo no início, sentencia: “se os jor-nais prussianos são pouco interessantes para o povo prussiano, isto sucede porque

“A o povo prussiano é pouco interessante para os jornais”. Mais adiante: “não é lucrativo expressar belas idéias com sere-nidade”. Entretanto, Marx está interessado em investigar o sentido da expressão: “liberdade de imprensa”. Segundo ele, críticos da liberdade de imprensa alegam que ela expõe a imaturidade da espécie humana e suas imperfeições. Ora, argu-menta, a imperfeição é encontrada nas diversas esferas da sociedade e nem por isso defende-se sua extinção. “Por que a liberdade de imprensa deveria ser perfeita entre todas essas imperfeições? Por que um sistema de Estado imperfeito exigiria uma imprensa perfeita?”, indaga.

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Liberdade, imprensa e liberdade de imprensa

Marx explica que “ninguém luta contra a liberdade; no máximo, luta-se contra a liberdade dos outros. Por isso todos os tipos de liberdade existiram sempre, às vezes como uma prerrogativa particular, outros como um direito geral”.

Ao longo do artigo há inúmeros aforismos, tais como: “a imprensa boa é impotente e a imprensa ruim é onipoten-te”; “A lei da imprensa pune o abuso da liberdade. A lei da censura pune a liberda-de como se fosse um abuso”; “ a censura nunca poderá ser legalizada, bem como a escravidão, mesmo que tenha existido durante muito tempo como lei”.

Neste ponto, é importante atentar para a diferença desse em Marx, comparando com outros pensadores europeus. Há uma enorme diferença do conceito de liberdade assumido por Marx e do praticado pelos liberais. Sem esta distinção, o conceito de Marx estaria na vulgata liberal. Não querendo cair na armadilha do “presentismo”, a “liberdade de imprensa” concebida atualmente nada tem a ver com a que Marx idealizou. Para ele, liberdade de imprensa existe no âmbito do rigor conceitual e da responsabilidade de cada autor em relação ao universo cate-gorial/conceitual que suas matérias expõem. A censura não deve existir, nem no âmbito pessoal, nem do veículo, nem do Estado.

No tempo de Marx, as polarizações ideológicas na imprensa eram mais acen-tuadas e nítidas, o tratamento das maté-rias eram intenso – qualquer descuido, o “adversário” contabilizava a seu favor. O confronto era inevitável e a discussão ne-cessariamente recaia numa “dialética”.

Não é o que acontece hoje, quando há uma “pasteurização” da comunicação dos fa-tos ou uma tendência ideológica “oculta” em um conjunto de jornais, considerando aqui a imprensa escrita, que leva à “mesmice”. Nesse sentido, a liberdade de imprensa passa a ser entendida dentro da polissêmica forma que o conceito de liberdade é apreendido e, na maioria das vezes, torna-se impreciso, volátil, pronto para exercer qualquer papel.

Assim, veleidades, incertezas, enganos con-ceituais ou factuais são justificados porque “liberdade de imprensa” é subsunta à liber-dade em sua substância.

As diferenças ficam claras em “O Papel da Imprensa como crítica de funcionários governamentais”, discurso proferido por Marx no tribunal, quando foi inocentado. Foram réus com ele o co-editor Friedrich Engels e o administrador Hermann Korff, da “Nova Gazeta Renana”. A acusação: pu-blicar um artigo criticando um Procurador Geral que havia tomado medidas contra organizações civis. Apesar da absolvição, a revista, editada em Londres, impressa em Hamburgo, não passou de seis números.

O outro bloco de artigos trata da Guerra Civil Norte-Americana. Marx enfatiza a necessidade de buscar a maior quantidade possível de informações para embasar suas análises e dedica atenção especial para a relação entre guerra e escravidão dos negros. A última parte, enfoca o “Caso Trent”, conflito do navio-correio inglês Trent com o navio de guerra norte-ameri-cano San Jacinto. Marx aborda o incidente, ocorrido em 8 de novembro de 1861, a partir da política, econômia da cobertura da imprensa inglesa sobre o fato.

Marx mostra os interesses que estão por trás de cada jornal e, portanto, a forma diferenciada na cobertura do mesmo fato. Mostra também, como, sob certas circuns-tâncias, a imprensa se distancia da vonta-de do povo e das circunstâncias materiais e objetivas que cercam o episódio.

“A Liberdade de Imprensa” ocupa lugar de destaque entre os clássicos que tratam deste tema. A guisa de conclusão, Marx afirma que “na falta de liberdade de imprensa, todas as outras liberdades são ilusórias. Cada faceta da liberdade condiciona todas as outras, como sucede também com cada órgão do corpo. Quando uma liberdade específica é questionada, questiona-se toda a liberdade. Quando uma faceta da liberdade é negada, a pró-pria liberdade é repudiada”.

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Normas

Volume 9 - Nº 1 - 1º sem. 2009

Normas para o envio de originais

A Revista COMMUNICARE, do Centro Interdisciplinar de Pesquisa da Faculdade Cásper Líbero, tem por objetivos promover a reflexão acadêmica, difundir a pesquisa e ampliar o intercâmbio científico com vistas, prioritariamente, aos temas rela-cionados às seguintes linhas de pesquisa desenvolvidas no Centro: Comunicação: Tecnologia e Política, Comunicação: Meios e Mensagens e Comunicação e Mercado.

A publicação destina-se à divulgação de trabalhos inéditos de pesquisadores e docentes da Faculdade Cásper Líbero e de outras instituições, na qualidade de autores e co-autores. As colaborações poderão ser apresentadas em forma de artigos, resenhas, relatos de pesquisa em andamento, levantamentos bibliográficos ou informações gerais, e estarão condi-cionadas à aprovação prévia da Comissão Editorial e do Conselho Consultivo.

Os trabalhos publicados serão consi-derados colaborações não remuneradas, uma vez que a Revista tem caráter de divulgação científica e não comercial. Tanto o conteúdo quanto o compromis-so com o ineditismo dos textos são de total responsabilidade de seus autores, que deverão anexar autorização para publicá-los, manifestando concordância com as normas aqui estabelecidas. Os direitos autorais de desenhos, ilustra-ções, fotografias, tabelas e gráficos que acompanhem os textos serão de exclusiva responsabilidade do colaborador.

Artigos

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final do artigo. As obras utilizadas no trabalho, em ordem alfabética, devem obedecer à seguinte sequência: autor (sobrenome em caixa alta, nome), título em bold itálico, edição, cidade, editora e data da publicação.

9. Caberá a cada autor cinco exempla-res da edição.

Resenhas

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