145

Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

  • Upload
    lamnhi

  • View
    259

  • Download
    7

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º
Page 2: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

SUM�RIO

APRESENTA��ODiversidades de objetos, unidades de objetivos

Diversity as of object, unit as purpose

Lu�s Mauro S� Martino…………………………………………………………………………………………………………..…9

ENTREVISTA

No caminho da teledemocracia – Entrevista com Gustavo Martinez PandianiAt the Road to the teledemocracy – An interview with Gustavo Martinez PandianiMaur�cio Luis Marra e Lu�s Mauro S� Martino............................................................................13

ARTIGOS

COMUNICA��O: MEIOS E MENSAGENSPseudo-evento e terror midi�ticoPseudo-event and media terror

Deodoro Jos� Moreira.................................................................................................................19

Hist�rias da vida produzidas por jornalistas-escritores: uma experi�ncia

Stories produce by journalist-writersDimas A. K�nsch e Monica Martinez...........................................................................................31

� cool. Eu tenho, eu sou: um estudo do caso do Skol Beats – Sociedade do Consumo e Identidade CulturalIt’s cool. I own therefore I am: a case study of Skol Beats festival - Consumer Society and

Cultural Identity

Ethel Shiraishi Pereira…………………………………………………………………………………………………………….43

Da dura��o do reinado do hit no imp�rio da m�dia (mais quest�es sobre mem�ria da can��o)Of the duration of the hit in the media empireHelo�sa Ara�jo Duarte Valente……………………………………………………………………………………………….55

O dizer sobre a m�dia na fic��o de Saramago

Telling about media in Saramago’s fiction

Luc�lia Maria Sousa Rom�o……………………………………………………………………………………………………..63

A diversidade musical do radio paulistano nas d�cadas de 30 a 50

The musical diversity at radio station in S�o Paulo, from 30 until 50 centuriesMarta Regina Maia…………………………………………………………………………………………………………………75

COMUNICA��O: TECNOLOGIA E POL�TICAAudiocast livre: um produto da comunidade dos descontentesFree Audiocast: a product of the displeased community

Magaly Prado………………………………………………………………………………………………………………………….87

Page 3: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

Radiodramas, adolescentes e comunidades: experi�ncias no Brasil e no Timor-Leste

Radiodramas, adolescents and community: experiences in Brazil and East-TimorMaria In�s Amarante………………………………………………………………………………………………………………99

COMUNICA��O E MERCADOEst�tica e Sedu��o do Marketing: uma an�lise do filme “A Fant�stica F�brica de Chocolate”

Aesthetics and Marketing Seduction – an analysis of the movie “Charlie and the Chocolate

Factory”Vander Casaqui e Antonio Roberto Chiachiri……………………………………………………………………….111

A import�ncia da comunica��o para a consolida��o da Imagem do Produto Tur�stico S�o PauloThe importance of communication for the consolidation of the image of the Touristic Product

S�o Paulo

Reinaldo Miranda de S� Teles e Regina Ferraz Perussi ...............………………………………………….123

Do homem-placa ao pixman: o processo iconof�gico na rela��o da imagem, m�dia e corpo From the man holding the sing to the pixman

Rodrigo Sanches...........................................................................………………………………………….135

RESENHAS_______________

Trade Marketing

ALVAREZ, Francisco Javier S. Mendizabal. Trade Marketing: A conquista do consumidor no ponto de vendaAntoine Pascal Marioli...........................................................................………………………….....….145

Comunidade: da reflex�o � a��oPAIVA, Raquel (org.). O retorno da comunidade: os novos caminhos do social

Eliany Salvatierra Machado...........................................................................………………………….149

P�ginas arqueol�gicas das remotas t�cnicas do ver e do ouvir

ZIELINSKY, Siegfried. Arqueologia da m�dia: em busca de um tempo remoto das t�cnicas do ver e do ouvirRodrigo Fontanari.........................................................................………………………………………….151

NA ESTANTE_______________Sobre livros e leituras

Sabina Anzuategui........................................................................………………………………………….155

CL�SSICO______________N�o � in�dito, mas ainda � novoOGILVY, David. Ogilvy In�dito

Vilma Schatzer...........................................................................………………………………………...….157

Normas para o envio de originais _________159

Page 4: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

Artigos

Page 5: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º
Page 6: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

Comunicação: Meios e Mensagens

Deodoro José MoreiraMestre e doutorando em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP

[email protected]

Resumo

Este artigo procura discutir a mudança no conceito de notícia ancorado na relação entre fato e pseudo-evento, utilizando como suporte a mídia impressa, especificamente o caderno Cotidiano do jornal Folha de S.Paulo (edições de 13 a 30 de maio de 2006), tendo como objeto de análise a primeira onda de ataques organizada pela facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC), ocorrida entre 12 e 19 de maio de 2006, na capital paulista e em algumas cidades do interior do Estado. Além disso, reflete sobre a instauração do terror mediático, provocada pela visibilidade de ações espetaculares planejadas por grupos criminosos.

Palavras-chave: Estratégias discursivas. Mídia impressa. Teorias do jornalismo.

Abstract

This article looks for to argue the change in the concept of notice anchored in the relation between fact and pseudo-event, being used as it has supported the media printed, specifically the notebook Cotidiano of the periodical Folha de S.Paulo (editions of 13 the 30 of May of 2006), having as analysis object the first wave of attacks organized by the criminal faction Primeiro Comando da Capital (PCC), occured between 12 and 19 of May of 2006 in the São Paulo and some cities of the interior of the State. Moreover, it reflects on the instauration of the media terror, provoked for the visibility of spectacular actions planned by criminal groups.

Key words: discoursive strategies; press; journalism theories.

Resumen

Este artículo busca para discutir el cambio en el concepto de noticia anclado en la relación entre el hecho y el pseudo-acontecimiento, siendo utilizado como ha apoyado los medios impresos, específicamente el cuaderno Cotidiano del periódico Folha de S.Paulo (ediciones de 13 los 30 de mayo de 2006), teniendo como el objeto del análisis la primera onda de ataques organizó por la facción criminal Primeiro Comando da Capital (PCC), ocurrido entre 12 y 19 de mayo de 2006 en el São Paulo y algunas ciudades del interior del estado. Por otra parte, refleja en el instauration del terror de los medios, provocado para la visibilidad de las acciones espectaculares previstas por los grupos criminales.

Palabras clave: estrategias discursivas; media impresa; teorias del periodismo.

Pseudo-evento e terror mediáticoPseudo-event and media terror

Page 7: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

Pseudo-evento e terror mediático

22C o m m u n i c a r e

1 MARCONDES FILHO, Ciro. Comunicação e jorna-lismo. A saga dos cães perdidos. São Paulo: Hacker Editores, 2000, p. 372 WOLF, Mauro. Teorias da comunicação. Tradução Maria Jorge Vilar de Figueiredo. 3ª ed. Lisboa, 1994.

1. Introdução

o longo das últimas quatro dé-cadas, a crise nos paradigmas do jornalismo (objetividade, impar-

cialidade, entre outros) é discutida por estudiosos da comunicação jornalística. Apesar de não haver consenso, se há crise ou não, se há novos paradigmas ou não, é evidente que houve mudanças no processo de produção de notícias, pois novos meios, novos contextos e novas linguagens se in-corporaram ao fazer jornalístico.

Nesse contexto, imparcialidade e obje-tividade, principalmente, são colocados em xeque, pois adaptaram-se ao capitalismo, à lógica do mercado, onde objetos são trans-

formados em produtos. A notícia é produto, e como tal deve ser veiculada. É certo que tal constatação não é nova, vem desde a modernidade, mas com a pós-modernidade foram acrescentadas novas ca-racterísticas, como fluidez, efemeridade, ausência de fronteiras etc., que transfor-maram ainda mais a relação entre mercado e notícia.

A propósito, sobre essa relação, Marcondes Filho1

observa que com as novas tecnologias, cuja introdução mudou radicalmente as redações a partir do início da década de 80, a produ-ção diária de um jornal tende a triturar os fatos, tornando-os, apesar de sua aparência atraente, inodoros, incolores e insossos.

Sob os aspectos apresentados acima, este trabalho pretende discutir a mudança no conceito de notícia, que se altera com a nova realidade, em que a velocidade é componente importante no processo, anco-rada na relação entre fato e pseudo-evento, utilizando como suporte a mídia impressa, mais especificamente o caderno Cotidiano do jornal Folha de S.Paulo (edições de 13 a 30 de maio de 2006), tendo como objeto

Ade análise a primeira onda de ataques or-ganizada pelo grupo criminoso Primeiro Comando da Capital (PCC) -ocorrida entre 12 e 19 de maio de 2006, na capital pau-lista e em algumas cidades do interior do Estado-, que contabilizou 373 ataques, além de apresentar questões que levam à reflexão sobre como dosar a cobertura de aconteci-mentos dessa natureza, cujos agentes têm a clara intenção de demonstrar força para conseguir privilégios.

Estratégias comunicativas utilizadas pelo veículo em análise, que trataremos mais adiante, podem, no caso dos ataques do PCC, levar mais pânico e medo à popu-lação, ao invés de, simplesmente, informar. Sabemos que é uma discussão complexa, pois a decisão do quê e como publicar en-volve fatores econômicos e editoriais.

Para iniciarmos essa análise, é impor-tante que passemos pelos conceitos de fato, pseudo-evento e notícia para o desenvolvi-mento das noções apresentadas acima.

2. Noticiabilidade e existência pública

Fato e notícia são conceitos jornalísticos que se relacionam. Não se pode separá-los. Senão vejamos: o que seria um fato? A grosso modo, pode ser caracterizado como a maté-ria-prima da notícia. Aquilo que primeiro impacta, torna-se visível. É claro que para haver fatos é necessário que haja um agente, que necessita ser ativo, caso contrário o acon-tecimento ou evento (gerador do fato) mor-reria, desapareceria. Mas para que esse fato “vire” notícia é preciso que alcance status mediático, ou seja, necessita ter atributos cha-mados “valores-notícia”. Quem introduz essa característica é Wolf2, que utiliza o conceito

Page 8: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

23Volume 7 - Nº 2 - 2º sem. 2007

Deodoro José Moreira

ículo, não possuir aptidão para adquirir existência pública, jamais chegará a ser notícia. Para que fique mais clara essa dependência ou relação entre fato e notí-cia, é importante que apresentemos o que Lage define como notícia: “[...] relato de uma série de fatos a partir do fato mais importante ou interessante; e de cada fato, a partir do aspecto mais importante ou interessante”.7

Sodré e Paiva, em artigo apresentado à Compós, em 2005, destacam que, na rotina jornalística, novidade, imprevisibilidade, o provável impacto sobre o público-leitor e as perspectivas de evolução do acontecimento são alguns dos aspectos considerados como valores-notícia.

3. Pseudo-evento e exagero

Há inúmeras pressões e construções deliberadas dos chamados pseudo-even-tos que exercem importante influência na existência pública apregoada por Wolf8. Cumpre-nos aqui fazer uma pausa para tra-tarmos de pseudo-evento, pois tal conceito tem relação direta com o que pretendemos discutir neste trabalho. Não fazemos isso aleatoriamente, pois, sem dúvida, relacio-na-se com fato e notícia.

de noticiabilidade para descrever a aptidão de um fato para tornar-se notícia. Para ele, noticiabilidade faz parte de um conjunto de requisitos, os quais são exigidos dos aconte-cimentos (fatos) para terem existência pública de notícia. “Não adquirindo o estatuto de notícia, o acontecimento é excluído do elen-co de informações mediáticas e permanece como matéria-prima.”3. Wolf diz que

Definida a noticiabilidade como o conjun-to de elementos através dos quais o órgão informativo controla e gere a quantidade e o tipo de acontecimento, de entre os quais há que selecionar as notícias, podemos de-finir os valores-notícia (newsvalues) como uma componente da noticiabilidade. Esses valores constituem a resposta à pergunta seguinte: quais os acontecimentos que são considerados suficientemente interessan-tes, significativos e relevantes para serem transformados em notícias?4.

Motta entende que “[...] os valores-notícia operacionalizam as práticas profis-sionais nas redações, sugerindo o que deve ser escolhido, omitido, realçado.”5. Ou seja, pode parecer uma conclusão óbvia, mas não basta apenas o acontecimento ter im-portância em si, para que ele se transforme em notícia e adquira existência pública, é preciso que se molde aos critérios de relevância estabelecidos pelo veículo. Tais critérios ou valores, como apresenta Wolf, são divididos em categorias: a) caracte-rísticas substantivas das notícias; ao seu conteúdo; b) disponibilidade do material e aos critérios relativos ao produto infor-mativo; c) público; d) concorrência. Wolf assim explica esta categorização:

A primeira categoria de considerações diz respeito ao acontecimento a transfor-mar em notícia; a segunda, diz respeito ao conjunto dos processos de produção e realização; a terceira, diz respeito à imagem que os jornalistas têm acerca dos destinatários e a última diz respeito às relações entre os mass media existentes no mercado informativo.6.

Dessa forma, se o fato, de acordo com os critérios ou valores de cada ve-

3 MOTTA, Luiz Gonzaga. Teoria da noticia: as relações entre o real e o simbólico. In: PORTO, Sérgio Dayrel (Org.). O jornal: da forma ao sentido. 2ª ed. Brasília: UNB, 2002, p. 3084 WOLF, Mauro. Teorias da comunicação. Tradução Maria Jorge Vilar de Figueiredo. 3ª ed. Lisboa, 1994, p. 175, grifo do autor5 MOTTA, Luiz Gonzaga. Teoria da noticia: as relações entre o real e o simbólico. In: PORTO, Sérgio Dayrel (Org.). O jornal: da forma ao sentido. 2ª ed. Brasília: UNB, 2002, p. 3086 WOLF, Mauro. Teorias da comunicação. Tradução Maria Jorge Vilar de Figueiredo. 3ª ed. Lisboa, 1994, p. 179-180, grifo do autor

7 LAGE, Nilson. Estrutura da notícia. 4ª ed. São Paulo: Ática, 1998, p. 16

8 WOLF, Mauro. Teorias da comunicação. Tradução Maria Jorge Vilar de Figueiredo. 3ª ed. Lisboa, 1994

Page 9: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

Pseudo-evento e terror mediático

24C o m m u n i c a r e

9 BOORSTIN, Daniel. The image: a guide to pseudo-events in America. New York: 1st Vintage Books, 1992

10 SOUSA, Jorge Pedro. Teorias da notícia e do jornalismo. Chapecó: Argos, 2002, p. 23

11 WAINBERG, Jacques A. Mídia e terror. São Paulo: Paulus, 2005, p. 17

12 Idem

Entre as várias características enume-radas por Boorstin9, que foi quem primeiro tratou desse conceito, interessa-nos uma delas, a de que pseudo-evento seria o fato não-espontâneo, criado com o objetivo de garantir a sua própria difusão. Eles (pseu-do-eventos) tendem a ser mais atrativos do que os espontâneos. É importante salientar que dentro desta categoria também se en-contram aqueles fatos forjados, falsos, que têm como objetivo prejudicar, caluniar de-terminada pessoa. A intenção, neste caso, é manipular a opinião pública. Sousa10 diz que os acontecimentos imprevistos e notórios se impõem aos media.

Defendemos que os ataques executados por membros e simpatizantes do PCC, na

verdade, são caracterizados como pseudo-evento, pois foram planejados, não acon-teceram espontaneamente. Concordamos com a afirma-ção de Wainberg:Manifestações de rua, quebra-quebra, bloqueio de estradas, greves, invasões de prédios e atos de terror têm a mesma lógi-ca da “comunicação violenta”: são pseudo-eventos articulados pela parte interessada como espetáculo midiático que se conforma a essa vizinhança onde convivem perigosamente

o noticiário e o show business.11.

A parte interessada, como classifica Wainberg12, no caso em análise é o PCC. É importante ressaltar que nosso posicio-namento não implica em sermos reducio-nistas, queremos, com isso, focar nesse aspecto, pois interessa-nos demonstrar que houve exagero na cobertura desse aconte-cimento, o que pode ser facilmente cons-tatado. Vejamos: os ataques começaram na noite de 12 de maio e estenderam-se até 19 de maio. A Folha de S.Paulo prosseguiu com a cobertura até 30 de maio. Nada anor-mal, não fosse o tratamento dispensado. A notícia do início dos ataques foi publicada na edição de 13 de maio, de maneira dis-

Ao comprar um jornal ou uma revista, o leitor estabelece um vínculo, um contrato de leitura

creta, com uma chamada de duas colunas e três linhas de título na capa, “Após transferências, PCC faz rebeliões e ataques e mata pelo menos quatro”. (APÓS..., 2006, p.1). Já na edição do dia 14, os ataques foram manchete, “Ataques do PCC deixam 30 mortos”. (ATAQUES..., 2006, p.1). E com direito a caderno especial. Com um detalhe, a manchete do caderno diverge do número de mortos apresentado na primeira página do jornal, “Maior ataque do PCC faz 32 mortos em SP”. (MAIOR..., 2006, p. C1). Um erro grave de informação. Detalhe, a vinheta de identificação do assunto nas páginas mudou, dia 13 era apresentada como “Crime organizado”, já na edição seguinte (dia 14) trazia “Guerra urbana”, o que caracteriza um posicionamento mais dramático do veículo.

Na edição do dia 15, segunda-feira, há uma alteração profunda na cobertura do acontecimento, que já não era novo, posto que os ataques haviam iniciado na sexta-feira da semana anterior, a começar pela capa. A primeira página de um jornal diário é um mosaico, onde estão estampados os principais fatos do dia anterior, na visão de cada veículo, no entanto, a primeira página da Folha é praticamente monotemática, onde apenas parte do rodapé traz outras chamadas. A manchete procura traduzir a gravidade da situação: “PCC faz mais de 150 atentados e provoca 80 motins; 74 morrem”. (PCC..., 2006, p.1). Mesmo assim, apesar de explicitar no texto da chamada que a quantidade de atentados engloba os números totais, portanto, desde sexta-feira, há um exagero sem tamanho neste título. O pior acontece na capa do caderno Cotidiano, onde há fotos de um ônibus

Page 10: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

25Volume 7 - Nº 2 - 2º sem. 2007

Deodoro José Moreira

13 CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das mídias. Tradução Ângela S. M. Correa. São Paulo: Contexto, 2006, p. 191

incendiado e presos mortos em uma dele-gacia. A manchete do caderno, em letras garrafais, anuncia: “PCC ataca ônibus e fóruns, promove megarrebelião e amplia medo no Estado”. (PCC..., 2006, p. C1). Logo abaixo, em três linhas, e também em um corpo desproporcional, são repetidos os números de mortos, de ataques e de re-beliões. Na última página do caderno, C16, como título, o enunciador traz “O MEDO”, todo em caixa alta. Destacamos isso, pois as palavras medo e pânico, a partir da edição de 15 de maio, são constantes em títulos e textos de matérias, como, por exemplo, “Fraqueza do Estado gerou pânico”. (FRA-QUEZA..., 2006, p. C10).

Outro ato do enunciador do veículo deve ser destacado: sua incapacidade em decidir se as ações do agente (PCC) são ata-ques ou atentados, pois em textos e títulos percebe-se essa confusão. Não se trata de um problema meramente semântico, mas de posicionamento ideológico. Ao classificar ações como ataques, conseqüentemente, retira-se o caráter de ato de terror, o que não ocorre com a caracterização de atentados. Por exemplo: o título “Família diz que morto não realizou ataques”. (FAMÍLIA..., 2006, p. C3, grifo nosso). Já na página se-guinte, uma das matérias traz: “Durante a onda de atentados e rebeliões nos presídios [...]”. (COMITIVA..., p. C4, grifo nosso).

A linguagem não-verbal (imagens) acompanha a dramaticidade contida na (linguagem) verbal. As fotos destacam em sua maioria os estragos que os ataques pro-vocaram, como marcas de tiros em vidros, ônibus incendiados, cadeias destruídas, ou policiais que exibem suas armas. A cor ver-melha, que remete à dor, sangue, também é utilizada em demasia.

Por tratar-se de um pseudo-evento, um acontecimento provocado, como caracteri-za Charaudeau (2006), o tratamento deveria ter sido menos espetacular, pois beirou ao sensacionalismo em alguns momentos, como a publicação da foto da primeira pá-gina do caderno na edição do dia 14, onde

uma poça de sangue cobre o quepe de um policial. Charaudeau diz que “[...] o acon-tecimento provocado, [...], suscita a questão de saber onde estão os limites do campo de ação das mídias. Fazer da informação um objeto de espetáculo é arriscar-se a ultra-passar as instruções do contrato”.13

O contrato a que se refere Charaudeau (2006) é o acordo tácito estabelecido entre veículo e leitor, já que quando alguém compra determinado jornal elege como deseja receber a informação, se reflexiva ou opinativa, se necessita da informação como sucedânea da ficção ou se pretende objetividade. Ao comprar um jornal ou uma revista, o leitor estabelece um vín-culo, um contrato de leitura. Com o gesto da compra, ele (leitor) elege um modo de acompanhar os acontecimentos, o que propicia a crença de que está conhecen-do a realidade. No entanto, o real é uma construção, ou seja, uma interpretação de determinado acontecimento. A modali-dade a partir da qual se enuncia um fato, desde a construção do texto à edição da foto, implica num recorte da realidade, que é elaborada segundo a perspectiva do sujeito que a enuncia.

Em função disso, acreditamos que a Folha ultrapassou as fronteiras do con-trato que estabelece com seu leitor ao dar visibilidade a uma facção criminosa que planejou ataques para protestar contra a transferência de presos e, em função disso, obter regalias nas prisões.

Um outro ponto a ser destacado, neste caso, é o pseudo-evento em série, ou a novelização da notícia. Tal qual um folhetim televisivo apresenta os ca-pítulos diariamente, até que o público perca o interesse, se canse. É importante notar que as características de show e de espetáculo estão sempre presentes. De acordo com Debord,

Page 11: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

Pseudo-evento e terror mediático

26C o m m u n i c a r e

os fatos tais como eles são, mas, sim, sujeitos à interpretação do jornalista.

A prática jornalística de noticiar é um exercício instrumental de busca da máxi-ma objetividade, de uma referencialidade limpa de juízos de valor, como exigência profissional, o que pode ser observado nos manuais de redação e textos de introdução ao jornalismo. O que faz do jornalismo um mediador especializado da realida-de social, na qual é agente construtor e re-significador, é sua credibilidade para “contar a realidade histórica tal como ela é”. O jornalismo fala à população median-te um “contrato” de veracidade, produz continuamente o efeito de real. Relata aquilo que apura como fato acontecido. Não faz ficção. O que muitas vezes confere uma ilusória crença de que o que se vê nas notícias são os fatos, e não sua construção em forma de linguagem, sujeita a todas as suas imprecisões.18.

Ao estabelecer contratos comunicati-vos com o leitor, o veículo o faz dentro da lógica de mercado. Cabe ao jornal lançar mão de estratégias discursivas que sejam capazes de “fisgar” o leitor. O contrato de veracidade a que se referem Motta, Costa e Lima19 implica na aceitação, por parte do enunciatário, que aquilo que é publicado é verdade e não ficção.

14 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Tradução Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997, p. 17115 Idem16 TRAQUINA, Nelson. O estudo do jornalismo no século XX. 2ª ed. São Leopoldo: Unisinos, 2003, p. 7917 MOTTA, Luiz Gonzaga, COSTA, G.B.; LIMA, J.A. Notícia e construção de sentidos: análise da narrati-va jornalística. In: MORENO, Carlos A. de Carvalho. Revista brasileira de ciências da comunicação. São Paulo, v. 27, n. 2, jul./dez. 2004. p. 31-5118 MOTTA, Luiz Gonzaga, COSTA, G.B.; LIMA, J.A. Notícia e construção de sentidos: análise da narrativa jornalística. In: MORENO, Carlos A. de Carvalho. Revista brasileira de ciências da comunicação. São Paulo, v. 27, n. 2, jul./dez. 2004. p. 35

19 MOTTA, Luiz Gonzaga, COSTA, G.B.; LIMA, J.A. Notícia e construção de sentidos: análise da narrativa jornalística. In: MORENO, Carlos A. de Carvalho. Revis-ta brasileira de ciências da comunicação. São Paulo, v. 27, n. 2, jul./dez. 2004. p. 31-51

O espetáculo nada mais seria que o exagero da mídia, cuja natureza, indiscutivelmente boa, visto que para comunicar, pode às vezes chegar a excessos. Freqüentemente, os donos da sociedade declaram-se mal servidos por seus empregados midiáticos; mais ainda, censuram a plebe de espec-tadores pela tendência de entregar-se sem reservas, e quase bestialmente, aos prazeres da mídia.14.

Os excessos a que Debord15 se refere podemos relacioná-los à novelização, à co-bertura exagerada do pseudo-evento, que al-cança a visibilidade mediática É importante acentuar novamente que a justificativa para os ataques foi a transferência de presos para presídios de segurança máxima, ou seja, pla-nejou-se um evento que certamente atrairia a

atenção dos media, pois a sua execução terminaria, como terminou, em ações espeta-culares que levaram medo e pavor à população.

4. De olho no mercado

No início deste artigo, apresentamos conceitos de fato e notícia e os relacio-namos a pseudo-evento. A seguir, durante a análise, foram apontados detalhes no

tratamento que a Folha dispensou aos ata-ques que justificam nosso posicionamento. Para que a análise não se perca, é necessário que seja colocada a questão do mercado.

De acordo com Traquina “[...]a dimen-são econômica enfatiza a percepção da notí-cia como um produto que deve ser inserido na relação entre o produtor e o cliente e satisfazer as exigências do cliente”.16

Quando se coloca a questão do mercado, objetividade e imparcialidade são questio-nadas, pois já não é mais uma questão de informar, mas de oferecer um produto que seja vendável, palatável pelo consumidor. Motta, Costa e Lima17 caminham nesse sen-tido ao afirmar que não se trata de apresentar

A Folha ultrapassou as fronteiras do contrato que estabelece com seu leitor ao dar visibilidade a uma facção criminosa

Page 12: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

27Volume 7 - Nº 2 - 2º sem. 2007

Deodoro José Moreira

20 KUCINSKI, Bernardo. A síndrome da antena pa-rabólica. Ética no jornalismo brasileiro. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 199821 BAUDRILLARD, Jean. O espírito do terrorismo. Tradução Fernanda Bernardo. Porto: Campo das Letras, 2002, p. 37-3822 WAINBERG, Jacques A. Mídia e terror. São Paulo: Paulus, 2005, p. 83

23 WAINBERG, Jacques A. Mídia e terror. São Paulo: Paulus, 2005

Mesmo que os contratos sejam esta-belecidos dentro da lógica do mercado, há opiniões dissonantes. Kucinski20, por exemplo, afirma que tal situação interfere nas relações de trabalho, pois ela (a grande imprensa) desempenha uma função públi-ca, mas é uma empresa privada.

A cobertura da Folha, nosso objeto de análise, foi estabelecida, é claro, dentro da lógica de mercado, mas avançou o sinal, pois, hoje, os contratos comunicativos já não mantêm a fidelidade do leitor.

5. Visibilidade e terror mediático

Tal cobertura que proporcionou vi-sibilidade mediática à facção criminosa PCC e as suas reivindicações, como já analisamos e demonstramos acima, ge-rou, em conseqüência o terror mediáti-co, que é provocado pela mídia ao falar de terror, que instaurou-se com mais vigor após os ataques aéreos de 11 de setembro de 2001 contra os Estados Uni-dos (tal prática já existia anteriormente ao evento citado). Os media, passaram a ser utilizados como mediação. Para introduzir esta discussão, reproduzimos aqui a análise de Baudrillard:

Qualquer massacre lhes seria perdoa-do, se tivesse um sentido, se pudesse interpretar-se como violência histórica – tal é o axioma moral da boa violência. Qualquer violência lhes seria perdoada, se ela não fosse substituída pelos media (o terrorismo nada seria sem os media). Mas tudo isso é ilusório. Não há bom uso dos media, os media fazem parte do acontecimento, fazem parte do terror, e jogam num ou noutro sentido.21

À observação de Baudrillard de que o terrorismo nada seria sem os media, podemos acrescentar que o PCC nada seria sem os media, pois alcançou visi-bilidade com seus ataques espetaculares, ou seja, para disseminar sua mensagem utilizou fartamente violência e morte como atrações, o que, sem dúvida, atrai a

atenção dos media. Aliás, ao analisarmos todos os cadernos editados pela Folha no período, constatamos que tudo converge para o terror. De acordo com Wainberg, a imprensa não se furta nunca a divulgar tais fatos. “Há que se ressaltar que por vias legais esses grupos não consegui-riam tal exposição.”22

A propósito, Wainberg cita em seu livro Mídia e Terror23 estudo realizado por Grant Duwe, o qual aponta que a divulgação de notícias sobre episódios violentos provoca aumento do medo na população.

6. Considerações finais

A análise da cobertura da Folha de S.Paulo referente aos ataques da facção criminosa Primeiro Comando da Capi-tal em relação ao que é proposto neste artigo permite apontar pelo menos três pontos para reflexão: Como dosar o tra-tamento a ataques de grupos criminosos ou terroristas? Até onde respeitar os contratos comunicativos estabelecidos com leitores (enunciatários)? Como adequar-se à lógica de mercado sem provocar distorções no processo de produção da notícia?

Ao caracterizarmos os ataques como pseudo-evento, buscamos contribuir para um melhor entendimento da comunicação jornalística. É claro que a discussão presente neste artigo não esgota o assunto Além disso, é impor-tante que a mídia impressa encontre seu espaço na sociedade contemporânea, onde medo e violência fazem parte

Page 13: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

Pseudo-evento e terror mediático

28C o m m u n i c a r e

mação. O medo tornou-se combustível para o entretenimento, para o show, para o espetáculo.

do dia-a-dia do cidadão, pois, caso contrário, perderá ainda mais terreno. Como afirma Trivinho: “[...] para além da democracia moderna, vive-se dora-vante [...] num regime tecnológico de terror, reino renovado da injustiça e da desigualdade”.24 Percebe-se que o atual estágio do jornalismo é de submissão ao mercado. A notícia deixou de ser infor-

24 TRIVINHO, Eugenio. Velocidade e violência: dromo-cracia como regime transpolítico da cibercultura. In: PORTO, Sérgio Dayrell (Org.). A incompreensão das diferenças: 11 de setembro em Nova York. Brasília: IESB, 2002. p. 270

Referências bibliográficas

APÓS transferências, PCC faz rebeliões e ataques e mata pelo menos quatro. Folha de S.Paulo. São Paulo, p.1, 13 mai. 2006.

ARBEX JR., José. Showrnalismo: a notícia como espetáculo. 2ª ed. São Paulo: Casa Amarela, 2001.ATAQUES do PCC deixam 30 mortos. Folha de S.Paulo. São Paulo, p.1, 14 mai. 2006.BARROS, Diana Luz Pessoa. Teoria semiótica do texto. São Paulo: Ática, 2001. BAUDRILLARD, Jean. O espírito do terrorismo. Tradução Fernanda Bernardo. Porto: Campo das

Letras, 2002.BOORSTIN, Daniel. The image: a guide to pseudo-events in America. New York: 1st Vintage Books, 1992.BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão: seguido de a influência do jornalismo e os jogos olímpicos.

Tradução Maria Lucia Machado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das mídias. Tradução Ângela S. M. Correa. São Paulo: Contexto, 2006.COMITIVA foi de avião negociar com o PCC. Folha de S.Paulo. São Paulo, 17 mai. 2006. Cotidiano, p.C4.DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Tradução Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro:

Contraponto, 1997. FAMÍLIA diz que morto não realizou ataques. Folha de S.Paulo. São Paulo, 17 mai. 2006.

Cotidiano, p.C3.FRAQUEZA do Estado gerou pânico. Folha de S.Paulo. São Paulo, 17 mai. 2006. Cotidiano, p.C10.HARDT, M.; NEGRI, A.. Império. Tradução Berilo Vargas. 3ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2001.HARVEY, David. A condição pós-moderna. Tradução Adail Ubirajara Sobral; Maria Stela

Gonçalves. São Paulo: Loyola, 1992.KUCINSKI, Bernardo. A síndrome da antena parabólica. Ética no jornalismo brasileiro. São Paulo:

Fundação Perseu Abramo, 1998.LAGE, Nilson. Estrutura da notícia. 4ª ed. São Paulo: Ática, 1998.MAIOR ataque do PCC faz 32 mortos em SP. Folha de S.Paulo. São Paulo, 14 mai. 2006. Cotidiano, p.C1.MARCONDES FILHO, Ciro. Comunicação e jornalismo. A saga dos cães perdidos. São Paulo:

Hacker Editores, 2000.MOTTA, Luiz Gonzaga. Teoria da noticia: as relações entre o real e o simbólico. In: PORTO, Sérgio

Dayrel (Org.). O jornal: da forma ao sentido. 2ª ed. Brasília: UNB, 2002. p. 305-319._____. Pesquisa em jornalismo no Brasil: o confronto entre os paradigmas midiacêntrico e sociocêntrico.

Revista de Economia Política de las Tecnologias de la Información y Comunicación. V. 7, n. 1, Ene. abr. 2004. Disponível em www.eptic.com.br (acesso em 20/12/2006, 12:25).

______; COSTA, G.B.; LIMA, J.A. Notícia e construção de sentidos: análise da narrativa jornalística. In: MORENO, Carlos A. de Carvalho. Revista brasileira de ciências da comunicação. São Paulo,

v. 27, n. 2, jul./dez. 2004. p. 31-51.

Page 14: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

29Volume 7 - Nº 2 - 2º sem. 2007

Deodoro José Moreira

PCC ataca ônibus e fóruns, promove megarrebelião e amplia medo no Estado. Folha de S.Paulo. São Paulo, 15 mai. 2006. Cotidiano, p.C1.

PCC faz mais de 150 atentados e provoca 80 motins; 74 morrem. Folha de S.Paulo. São Paulo, 15 mai. 2006, p.1.

SODRÉ, M; PAIVA, R. O que é mesmo uma notícia? Compós, 2005. Disponível em www.ufrgs.br/gtjornalismocompos/estudos2006.htm (acesso em 05/01/2007, 16:15).

SOUSA, Jorge Pedro. Teorias da notícia e do jornalismo. Chapecó: Argos, 2002.TRAQUINA, Nelson. O estudo do jornalismo no século XX. 2ª ed. São Leopoldo: Unisinos, 2003.TRIVINHO, Eugenio. Velocidade e violência: dromocracia como regime transpolítico da

cibercultura. In: PORTO, Sérgio Dayrell (Org.). A incompreensão das diferenças: 11 de setembro em Nova York. Brasília: IESB, 2002. p. 257-272.

WAINBERG, Jacques A. Mídia e terror. São Paulo: Paulus, 2005.WOLF, Mauro. Teorias da comunicação. Tradução Maria Jorge Vilar de Figueiredo. 3ª ed. Lisboa, 1994.

Page 15: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

Pseudo-evento e terror mediático

30C o m m u n i c a r e

Page 16: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

Comunicação: Meios e Mensagens

Dimas A. Künsch Doutor em Ciências da Comunicação pela ECA-USP

Docente da Faculdade Cásper Lí[email protected]

Monica MartinezDoutora em Ciências da Comunicação pela ECA-USP

Docente da [email protected]

Resumo

O artigo apresenta inicialmente um conjunto de idéias, motivações e elementos que informam a teoria e a prática do jornalis-mo narrativo – com breves incursões pelos territórios do mito e da narrativa –, para, na seqüência, expor uma experiência de produção de histórias de vida direcionadas ao público juvenil. Merece destaque o cuidado com o estilo narrativo por parte de jornalistas-escritores familiarizados com as teorias da escola do jornalismo literário, sobretudo no âmbito das histórias de vida. A narrativa jornalística de tipo transformativo contribui para a compreensão humana e a mudança social.

Palavras-chave: jornalismo narrativo, livro-reportagem, histórias de vida, biografias.

Abstract

The following article presents initially a set of ideas, motivations and element that form the theory and practice of the nar-rative journalism - with brief incursions in the territories of myth and narrative - to then follow up with the exposition of an experience of real life stories production, directed to the young readers’ market. It is worth pointing the care with the narrative style from the journalist-writers used to the theories of the literary journalism school, especially in the real life stories. The journalistic narrative of a transforming kind contributes to the human comprehension and the social change.

Key words: narrative journalism, non-fiction, real life stories, biographies.

Resumen

El artículo presenta inicialmente un conjunto de ideas, motivaciones y elementos que informan la teoría y la práctica del periodismo narrativo – con breves incursiones por los territorios del mito y de la narrativa –, para, en la secuencia, exponer una experiencia de producción de historias de vida dirigidas al público juvenil. Merece relieve el cuidado con el estilo narrativo por parte de los periodistas-escritores familiarizados con las teorías de la escuela del periodismo literario, sobre todo en el ámbito de las historias de vida. La narrativa periodística de tipo transformativo contribuye para la comprensión humana y el cambio social.

Palabras clave: periodismo narrativo, libro reportaje, historias de vida, biografías.

Histórias de vida produzidas por jornalistas-escritores: uma experiência1

Stories produced by journalist-writers

Page 17: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

Histórias de vida produzidas por jornalistas-escritores

32C o m m u n i c a r e

verdadeiros mapas de possibilidades de relacionamento pessoal e de inserção num contexto social, planetário e cósmico.

Com efeito, na contraposição dessas duas posturas teóricas, uma fundada na in-vestigação paciente e rigorosa dos mitos – e numa compreensão plural do conhecimen-to – e a outra, na pressuposição de serem eles meras histórias inventadas – para além da arrogância desse modelo de pensamento contra tudo o que imagina poder classificar como “primitivo” –, é que se deixa entender o alcance do que diz o autor de O herói de mil faces, “um dos livros mais influentes do século XX”, na visão de Vogler,5 quando afirma ser possível observar as “diferenças entre as inúmeras religiões e mitologias da

o prefácio que escreveu para uma das mais importantes de suas obras, O herói de mil faces,

de 1949, Joseph Campbell (1904-1987), mundialmente reconhecido como um dos principais estudiosos contemporâneos do pensamento mítico, defende uma idéia que haveria de se tornar um verdadeiro lema na vida desse pesquisador estadunidense: é pre-ciso “aprender a gramática dos símbolos”.2 O autor tem consciência de que, quando o debate versa sobre as narrativas míticas da humanidade, a questão que se levanta é nada menos que a “das verdades básicas que têm servido de parâmetros para o homem ao lon-go dos milênios de sua vida no planeta”3.

O lugar de fala de Campbell, como se obser-va, é o da valorização das narrativas míticas. Bem ao contrário da atitude nega-tiva que, tão fortemente, inspirou as versões mais aguerridas do Iluminismo, no século XVIII, do Hege-lianismo e do Positivismo, no século seguinte, em sua aversão comum ao mito4, com amplas repercussões até os dias de hoje.

A crença inabalável na razão, como senhora absoluta de todo conhe-cimento humano, e no destino glorioso da ciência empírica, não é responsável única pelo desprezo que os autores, concentrados ao redor dessas posturas filosóficas, nutrem pelo mito. Tem a ver também com o modo, altamente reducionista, como o concebem. Eles se pautam pelos mitos esvaziados de conteúdo religioso e de mistério da fase grega posterior ao advento dos historiadores – quando essas narrativas passam a ser vistas como historietas fantasiosas. Diferentemente de Campbell, que trabalha com o conceito de mito original, isto é, como histórias que, com roupagens culturais diferentes, tentavam (e tentam) apreender os mistérios das origens do mundo e do ser humano,

N

1 Texto apresentado ao NP Produção Editorial do VI Encontro dos Núcleos de Pesquisa da Intercom, em setembro de 2007, retrabalhado pelos autores. Versão original foi posteriormente adotada como texto de leitura para a disciplina “Pauta e produção em Jornalismo Literário”, do Curso de Pós-Graduação em Jornalismo Literário da ABJL/Texto Vivo.2 “Symbole leben mehr als Menschen” (Os símbolos vivem mais que os homens). A frase do estudioso de mídia alemão Harry Pross foi tema do II En-contro Internacional de Comunicação, Cultura e Mídia, organizado pelo Centro Interdisciplinar de Semiótica da Cultura e da Mídia (Cisc), em outubro de 2004. Os resultados podem ser consultados em livro organizado por Norval Baitello Junior, Luciano Guimarães, José Eugenio de Oliveira Menezes e Denise Paiero, intitulado Os símbolos vivem mais que os homens: ensaios de comunicação, cultura e mídia (Annablume, 2006). 3 CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. São Paulo: Cultrix, 1995, p.124 CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. 13ª edição. São Paulo: Ática, 2003, p.1645 Christopher Vogler, em A jornada do escritor: estru-turas míticas para escritores, descreve um conjunto de conceitos e os passos da chamada “Jornada do Herói”, extraídos tanto da psicologia profunda de Carl G. Jung quanto dos estudos míticos de Campbel. “Saí em busca dos princípios básicos da narrativa, mas, no caminho, encontrei algo mais: um conjunto de princípios de vida”, escreve Vogler. “Cheguei à con-clusão de que a Jornada do Herói é nada menos do que um compêndio para a vida, um abrangente manual de instrução na arte de sermos humanos”, p. 16 e 47.

Page 18: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

33Volume 7 - Nº 2 - 2º sem. 2007

Dimas A. Künsch e Monica Martinez

cultural – a narrativa –, o humano ser não se expressa, não se afirma perante a desorganização e as inviabilidades da vida. Mais do que talento de alguns, poder narrar é uma necessidade vital8.

Voltemos ao tema do mito. Na crítica que tece à hegemonia da racionalização do conhecimento, nos ambientes muito férteis, do chamado pensamento moderno, Morin chama as mentes abertas para o diálogo que o próprio sentido original de razão evoca. “A verdadeira Aufklãrung está muito ligada à idéia de tolerância”, ele diz. Segundo esse autor, “a verdadeira racionalidade é profun-damente tolerante em relação às formas de pensamento que não se lhe assemelham”. Morin continua, no mesmo trecho, identi-ficando onde é que se abriu o abismo entre as formas racionais de conhecimento e outras, como a do mito: O problema está na “falsa racionalidade”, uma vez que foi essa compreensão da racionalidade que sempre “tratou de primitivas, de mágicas, de pré-lógicas as populações onde havia uma complexidade de pensamento não só técnica, no conhecimento da natureza, mas também nos mitos”9.

O legado campbelliano dialoga bem com a proposta contemporânea de Jorna-lismo Transformativo, do docente Edvaldo Pereira Lima:

Unindo o impulso interno e a inquietude profissional, um tempo atrás tomei o Jor-nalismo Literário como ponto de partida e propus, digamos assim, uma modalida-de de prática desse jornalismo, que é o Jornalismo Literário Avançado. E dentro

humanidade” e ressaltar as semelhanças entre elas, para se descobrir que “as dife-renças são muito menos amplas do que se supõe popularmente”:

A esperança que acalento é a de que um esclarecimento realizado em termos de comparação possa contribuir para a cau-sa, talvez não tão perdida, das forças que atuam no mundo de hoje em favor da unifi-cação, não em nome de algum império po-lítico ou eclesiástico, mas com o objetivo de promover a mútua compreensão entre os seres humanos. Como nos dizem os Vedas: “A verdade é uma só, mas os sábios falam dela sob muitos nomes”6.

Narrativa e (re)cons-trução do cosmos

“Onde quer que o homem ponha os pés, ele sempre pisa mil caminhos.” A antiga sabedoria indiana presta uma boa ajuda às noções, aqui ligeiramente esboçadas, de uma visão das diferentes narrativas como instrumentos na dura arte de nos compre-endermos como humanos. “Onipresente em nossas vidas” e “uma habilidade inerente ao ser humano”, nas palavras da pesqui-sadora brasileira Maria Cristina Mungioli, a narrativa pode ser vista como “fator de humanização de nossa espécie”. Do tempo das pinturas nas cavernas até hoje, “o ser humano tem encontrado no gênero narra-tivo não só uma forma de demonstrar e in-terpretar suas relações com o mundo e com as pessoas que o cercam, como também de ser compreendido e interpretado”7 .

A narrativa representa “uma das res-postas humanas diante do caos”, reforça a docente Cremilda Medina, da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, aplicando essas noções ao campo do jornalismo, ou, como a autora prefere, à “arte de tecer o presente”:

Dotada da capacidade de produzir sen-tidos, ao narrar o mundo, a inteligência humana organiza o caos em um cosmos. O que se diz da realidade constitui outra realidade, a simbólica. Sem essa produção

6 CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. São Paulo: Cultrix, 1995, p.127 MUNGIOLI, Maria Cristina Palma. “Apontamentos para o estudo da narrativa”. Comunicação & Educa-ção 23, jan/abr 2002, pp. 498 MEDINA, Cremilda. A arte de tecer o presente: narra-tiva e cotidiano. São Paulo: Summus, 2003, p.47-489 MORIN, Edgar. O problema epistemológico da com-plexidade. Mem Martins: Publicações Europa-América, 1984, p.125

Page 19: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

Histórias de vida produzidas por jornalistas-escritores

34C o m m u n i c a r e

do Jornalismo Literário Avançado há um embrião da idéia do que estou chamando de Jornalismo Transformativo. Trata-se de uma produção jornalística baseada na escola da narrativa, da profundidade, da busca de uma leitura compreensiva e contextual da realidade. Um trabalho consciente, proativamente voltado para um processo de transformação social10.

A Jornada do Herói, aliás, é parte inte-grante e essencial ao conceito de Jornalismo Transformativo, visto que Lima foi o primei-ro pesquisador brasileiro a introduzir, no final da década de 90, do século passado, os estudos do mitólogo estadunidense ao ensino e à prática do jornalismo brasileiro. A implementação conta, portanto, com as inovações propostas pelo analista de roteiros

da Disney, Vogler: “O fato é que Vogler faz adaptações im-portantes. Em primeiro lugar, ele humaniza o herói, caracte-rizando-o como o protagonista da narrativa, ou seja, o perso-nagem principal em torno do qual gira a história”11.

Essa questão está em con-vergência, portanto, com a visão campbelliana de que o herói não é uma celebridade, no sentido de protagonista de um espetáculo efêmero, como difunde a mídia atualmente.

“Mesmo nos romances populares, o protago-nista é um herói ou heroína que descobriu ou realizou alguma coisa além do nível normal de realizações ou de experiência”, lembra Campbell. “O herói é alguém que deu a pró-pria vida por algo maior que ele mesmo”12.

No contexto das narrativas contemporâ-neas inspiradas na estrutura mítica, o prota-gonista da história é, portanto, alguém que, ligado às forças motrizes e transformadoras da vida, se torna um reformador social. Ele deixa de pensar prioritariamente em si mes-mo para se doar a um objetivo mais elevado ou a outrem13. Essa personagem principal da história pode consagrar sua vida, de forma simbólica, a seu núcleo familiar, comunitário

No contexto das narrativas contemporâneas, inspira-das na estrutura mítica, o protagonista se torna um reformador social

ou social, como no caso de um cientista que tenha de compartilhar menos tempo com a família do que gostaria para se dedicar à pesquisa. Contudo, o dar a vida pelo povo ou por uma idéia não raro pode assumir uma forma literal, como, por exemplo, no caso de intelectuais e jornalistas brasileiros que pere-ceram durante a ditadura militar, sobretudo nos anos 70 do século passado, por defender a tolerância e a liberdade de expressão.

Heróis contemporâneos: um projeto

É nesse berço conceitual que, no segundo semestre de 2005, nasce a idéia de revitalizar uma série tradicional da Editora Salesiana, intitulada Heróis e Campeões, que traz histórias de personalidades de destaque no país e no mundo e é destinada ao público infanto-juvenil. A nova proposta vem com um diferencial em relação à anterior, produ-zida por religiosos: será responsabilidade de um grupo de jornalistas-escritores especiali-zados não somente em técnicas de pesquisa e apuração de informação, mas também de produção de narrativas.14

Sob o ponto de vista da estrutura textu-al,15 o projeto prevê que o livro seja dividido em cinco blocos: 1) no texto principal, a his-tória é contada em até cinco breves capítulos,

10 LIMA, Edvaldo Pereira. Páginas Ampliadas: o livro-reportagem como extensão do jornalismo e da literatu-ra. Barueri, SP: Manole, 2004 apud Kunsch, p. 26411 MARTINEZ, Monica. Jornada do Herói: estrutura narrativa mítica para a construção de histórias de vida em jornalismo. São Paulo: Annablume/Fapesp, 200712 CAMPBEL, Joseph. O poder do mito. São Paulo: Palas Athena, 1990, p.13113 CAMPBEL, Joseph. O poder do mito. São Paulo: Palas Athena, 1990, p.13414 O grupo inicial é composto por seis jornalistas com experiência teórica e prática de narrativa: Renata Car-raro, Alex Criado, Márcia Gimenez, Jaqueline Lemos, Monica Martinez e Bernadete Toneto.15 Graficamente, a idéia é produzir um livro simples, de baixo custo e fácil de manusear, no formato 11,5 cm por 17 cm, com 32 páginas.

Page 20: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

35Volume 7 - Nº 2 - 2º sem. 2007

Dimas A. Künsch e Monica Martinez

Tendo em conta o início do período letivo, o lançamento é realizado em janeiro e, em 11 de fevereiro de 2006, ocorre em São Paulo uma reunião de confraternização entre os autores. Esse e alguns momentos seguintes são dedica-dos a uma ampla e fértil reflexão sobre o processo produtivo, buscando-se alinhar a bagagem teórica do grupo à práxis. Nos livros produzidos para a série em 2006 nota-se o esforço no processo de coleta de informações, com a intenção de aproximar o personagem dos jovens leitores brasileiros. Conforme consta do projeto inicial:

Para caracterizar muito bem a produção nacional, para todos os personagens não brasileiros, buscar gancho local. Por exem-plo, no caso do papa João Paulo II, poderia ser a primeira viagem dele ao Brasil. Ou outro. Ou mais que um. O mesmo vale para os personagens salesianos19.

de rápida leitura e de fácil compreensão; 2) duas páginas de contextualização, no miolo do livro, permitem localizar o protagonista no tempo e no espaço; 3) no making of, um recurso praticado com freqüência em narrativas mais extensas da escola de Jorna-lismo Literário, o autor compartilha com o leitor a forma como produziu a história, seu envolvimento e as emoções que o trabalho despertou. Pedagogicamente, trata-se de um instrumento útil para ensinar a forma como a pesquisa foi conduzida; 4) uma página de cronologia permite sumarizar, de forma visualmente clara, os momentos mais mar-cantes da trajetória do protagonista; e, por fim, 5) uma minibiografia permite ao leitor conhecer o autor.

Dez personagens são selecionados para a primeira fase do projeto, num diálogo entre editora e autores. Quatro são brasileiros: Dom Hélder Câmara, Chico Mendes, Betinho e Irmã Dulce. Como estrangeiros figuram João Paulo II, Madre Teresa de Calcutá e Mahatma Gandhi, além de outros três, tam-bém estrangeiros, de interesse específico dos salesianos: Margarida (a mãe de Dom Bosco), Domingos Sávio e Laura Vicuña.16

O trabalho dos textos17 é dividido em três fases, bem distintas:

1. Compartilhamento de informações e planejamento literário: num primeiro momento, uma reunião permite aos autores compartilhar os saberes sobre os protago-nistas, bem como a linha de desenvolvi-mento da narrativa visualizada por eles, em particular.

2. Primeira versão: o método de traba-lho contempla que os textos, uma vez finali-zados, sejam lidos por todos os autores, que têm a missão desde encontrar de falhas de apuração a propor resoluções mais eficazes do ponto de vista de construção textual.

3. Finalização: feitas as alterações sugeridas – segundo os critérios de cada autor, que preserva a autoria –, o texto é repassado à editora, para aprovação por parte do Coordenador Editorial, atendendo aos prazos contratuais.18

16 Com a segunda fase do projeto, em 2007, discu-tiu-se melhor o perfil da série, e a Editora decidiu fazer dos três títulos salesianos parte de uma outra série, denominada Vidas Luminosas. A propósito, Margarida é até o momento o best seller, tendo sido vendida em poucos meses toda a primeira tiragem, de 3.000 exemplares. 17 Na hora da escolha, os dois últimos títulos da lista acima seriam confiados a Bernardete Toneto, que já havia trabalhado para a Editora Salesiana e estava familiarizada com a temática religiosa. Alex Criado e Jaqueline Lemos, ativos em movimentos sindicais, optam respectivamente por Dom Hélder/Chico Men-des e Betinho/Madre Teresa. Irmã Dulce fica por conta de Márcia Gimenez, de uma grande publicação de circulação nacional da Editora Abril. Renata Carraro, com experiência em publicações de editoras religiosas, escolhe João Paulo II e Margarida, enquanto Monica Martinez, com vivência em cobertura para a grande imprensa das transformações sócio-religiosas a partir dos anos 1980, dedica-se a compreender a vida do líder espiritual indiano Mahatma Gandhi. 18 Há um escalonamento na entrega das histórias para a Coordenação Editorial. As três primeiras são entregues em 16 de novembro, outras três em 30 de novembro e as quatro finais em 15 de dezembro. Na prática, as últimas histórias são editadas em 24 de dezembro de 2005, véspera de Natal. 19 KÜNSCH, Dimas. Projeto Série Heróis e Campeões. São Paulo: Salesiana, 2005

Page 21: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

Histórias de vida produzidas por jornalistas-escritores

36C o m m u n i c a r e

20 CARRARO, Renata. Mamãe Margarida. São Paulo: Salesiana, 2006, p.30-3121 O Jornalismo Literário é uma modalidade de prática da reportagem de profundidade e do ensaio jornalísti-co utilizando recursos de observação e redação origi-nários da ou inspirados na literatura. De acordo com o jornalista norte-americano Norman Sims, professor da Universidade de Massachusetts Amherst, seus traços básicos são: imersão do repórter na realidade, voz autoral, estilo, precisão de dados e informações, uso de símbolos, como inclusive metáforas, digressão e humanização. Essa modalidade, também conhecida como Jornalismo Narrativo, tem como principal teórico no Brasil o professor doutor Edvaldo Pereira Lima, autor de Páginas ampliadas: o livro-reportagem como extensão do jornalismo e da literatura e um dos fundadores da Associação Brasileira de Jornalismo Literário. In: http://www.textovivo.com.br. Acesso em 1/5/2007.22 KÜNSCH, Dimas. Projeto Série Heróis e Campeões. São Paulo: Salesiana, 200523 Idem

A recomendação é adotada em quase todos os trabalhos. No caso do papa João Paulo II, por exemplo, a autora relata a história emocionante de uma garotinha que, acre-ditava a família, havia nascido devido à devoção ao pontífice católico:

Em 1989, Monika e Marcelo se casam numa cerimônia simples na Igreja de Nossa Se-nhora Achiropita, em São Paulo. Sonham muito com um filho, mas acabam desco-brindo que precisam se submeter a um tratamento para conseguir engravidar.

Depois de duas tentativas frustradas de inseminação artificial, o casal, abalado e já cansado, decide adotar uma criança. Afinal, já se passaram dez anos. Mas, antes, vão à Itália para comemorar o aniversário de casamento. Em Roma retiram convites para

a próxima audiência do Papa, no dia 2 de julho de 1999.

O casal chega cedo para con-seguir bons lugares. Acaba ficando na terceira fila, bem próxima da passagem central. Às 10 horas João Paulo II entra na Praça São Pedro. Ao passar do lado de Monika, seus olha-res se cruzam. Ela tem certeza disso! Emocionada, pede que a criança tão desejada seja colo-cada em seu caminho.

De volta ao Brasil, Monika percebe que a menstruação está atrasada. Por insistência do marido, faz um exame de sangue. Está grávida.

Faltando pelo menos quinze dias para o nascimento do bebê, Monika vai a uma consulta de rotina. O médico percebe que a pressão está muito alta e decide fazer o parto imediatamente.

Às 9 horas e 54 minutos da noite de 2 de março nasce Carolina. Exatamente nove meses depois que os olhos de Monika e Karol Woytyla se cruzaram20.

Outra recomendação diz respeito à qualidade narrativa. Trata-se propriamente da solicitação por um texto em estilo jorna-lístico-literário.21 Ainda do projeto, o docu-

Eleger os fatos que da-riam sentido à história do personagem na ótica de um adolescente foi, sem dúvida, um dos grandes desafios a superar

mento que registra a fase inicial, consta a seguinte recomendação: “Contar a história com emoção, ressaltando os episódios e elementos mais importantes da vida e luta do personagem (não é biografia)”22.

Eleger os fatos que dariam sentido à história do personagem na ótica de um adolescente foi, sem dúvida, um dos gran-des desafios a superar nas primeiras dez histórias. Não menor, o obstáculo seguinte seria o de atender à recomendação de que se tratava de “narrativa, e não descrição de fatos, cenas, personagens, ação, movimen-to: linguagem cinematográfica”23. Redigir cenas a partir do material apurado, por vezes escasso, representou igualmente um desafio. Eis um exemplo, em Gandhi:

Ao voltar à Índia, Gandhi não lembra em nada o jovem advogado bem vestido que partira rumo à África do Sul em busca de fortuna. Aos 46 anos, o homem pequeno e magro – tem 1,53m e 52 quilos – que desembarca sob a Porta das Índias tem cabeça raspada, bigode grisalho, usa ócu-los redondos de aro de aço e khadi, um quadrado de algodão cru que ele próprio fia e enrola em volta do corpo.

Não traz posses, apenas uma ambição: libertar seu povo. É um líder espiritual,

Page 22: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

37Volume 7 - Nº 2 - 2º sem. 2007

Dimas A. Künsch e Monica Martinez

os graduandos, pela capacidade da autora de trabalhar o tema com sensibilidade:

Todos os dias Iqbal levanta de madrugada e vai para a fábrica, onde labuta por mais de 12 horas. Quando chega em casa, à noite, mal tem forças para se manter em pé. Ele se deita na cama e murmura:

– Mamãe, estou com fome. Não comi nada o dia inteiro...

Mas quando Inayat chega com a cumbuca de chá e um pedaço de pão, seu pequeno já partiu para o mundo dos sonhos. Um mundo onde crianças não trabalham, são alimentadas na hora certa e vão à escola todos os dias.

Morando de aluguel com a mãe e dois irmãos numa casa baixa, cuja mobília consiste em três camas de corda e um baú branco de ferro onde se guardam as roupas e os poucos objetos de valor, a vida de Iqbal se resume à fábrica, a 200 metros de distância.

Vez ou outra, é acordado bruscamente de madrugada:

– Temos um lote de tapetes que precisa ficar pronto imediatamente. Venha!

– Mas ele precisa dormir... – tenta argu-mentar a mãe com o patrão.

Ele dá de ombros e empurra o menino, ain-da sonolento, para a fábrica. E ai de Iqbal se adormecer: será despertado com golpes do cortante garfo de pentear tapetes!25

O primeiro capítulo do segundo texto discutido com a turma de graduandos de jor-nalismo encanta pela ousadia da autora em apresentar uma Amazônia viva e pulsante:

Silêncio!

Com toda a autoridade que a tradição me confere, eu peço: silêncio!

como definirá seu amigo Rabindranath Tagore, poeta que ganhou o Prêmio Nobel da Literatura em 1913: “Mahatma, uma grande alma em roupa de mendigo”.

Gandhi jamais gostou do título. Mas é assim que ficou conhecido mundo afora, como Mahatma, Grande Alma.24.

Avanço na qualidade

Será somente na segunda fase da série, no entanto, que a qualidade narrativa atin-girá um patamar mais sólido e visível. No meio tempo, outra produção em conjunto, Casa de taipa: o bairro paulistano da Mooca em livro-reportagem, coordenada por Dimas A. Künsch, azeita ainda mais o funcionamento do grupo.

Iniciada no segundo semestre de 2006, a segunda fase reunirá a equipe em torno da produção de seis novos títulos. São quatro personagens internacionais: o pacifista e pastor batista estadunidense Martin Luther King Jr; a filósofa alemã Edith Stein, morta no campo de concentração de Auschwitz; o garoto paquistanês Iqbal Masih, mártir da luta contra o trabalho infantil; e o francês Raoul Follereau, que se destacou na luta pela desmitificação da hanseníase, doença na época dele conhecida como lepra. Os personagens nacionais são dois: o brasileiro Sérgio Vieira de Mello, da Organização das Nações Unidas (ONU), morto no Iraque, e Dorothy Stang, religiosa cristã dos Estados Unidos, assassinada na Amazônia.

Desta vez, o time está mais afinado, e a qualidade da produção é superior. No primeiro semestre de 2007, é formado experimentalmente um grupo de leitura-piloto, composto por alunos da habilitação de jornalismo do curso de Comunicação Social da UniFIAMFAAM Centro Univer-sitário. Na oportunidade, são apresentados dois trabalhos, que recebem comentários positivos, além de contribuições para o aperfeiçoamento das obras. A história do menino Iqbal Masih, por exemplo, comove

24 MARTINEZ, Mônica. Mahatma Gandhi. São Paulo: Salesiana, 2006, p.18

25 CARRARO, Renata. Iqbal Masih. São Paulo: Salesiana, 2007, p. 11

Page 23: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

Histórias de vida produzidas por jornalistas-escritores

38C o m m u n i c a r e

Ararajubas, é hora de parar a festa. Chega de fazer barulho com seus pios estridentes e suas asas verde-amarelo. E vocês, sabiás, assen-tem-se nos galhos do mogno. Pavãozinhos, japins e bem-te-vis, sosseguem a cantoria.

Ciganas, inhunas e jacamins, venham para baixo de minha copa. Mas, antes, alertem o macaco guariba e o macaco prego, o quati e o quandu, a preguiça e a onça pintada, a anta e a cutiara. E não esqueçam de chamar o gavião-real, que também atende pelo nome de harpia.

Eu, a castanheira, peço a palavra26.

Para contar a história da religiosa viti-mada pela luta fundiária no Pará, a autora recorre inicialmente ao ponto de vista da árvore nativa.

Na história de vida de Martin Luther King Jr., a narrativa se inicia não pela história do pastor batista, que anos mais tarde receberia o prêmio Nobel da Paz, mas pelo “não” veemente, mas humano, de Rosa Parks:

Depois de mais um dia de traba-lho duro, a costureira negra nor-te-americana Rosa Louise Parks deixa o serviço e atravessa a rua para ir à farmácia. Com 42 anos, pequenina e simpática,

ela usa chapéu e, por baixo do casaco, um vestido simples. É 1º de dezembro de 1955 e faz frio. Feitas as compras, Rosa pega a condução na volta para casa.

Ao subir no ônibus tricolor – amarelo em-baixo, verde no centro e topo branco –, fica aliviada ao notar o lugar vazio no fundo do veículo. Ela se encaminha para o lugar vago – localizado bem atrás da seção “So-mente para Brancos” – e senta-se. Cheia de pacotes, tudo o que Rosa quer nesse final de quinta-feira cinzento é escapar do inverno frio que cai sobre Montgomery e chegar logo em casa. Conforme o ônibus percorre as ruas da capital do Alabama (Estados Unidos), com 120 mil habitantes brancos e 48 mil negros, o veículo vai se enchendo de passageiros.

26 TONETO, Bernardete. Dorothy Stang. São Paulo: Salesiana, 2007, p.2

27 MARTINEZ, Mônica. Martin Luther King Jr. São Paulo: Salesiana, 2007, 2-3

As histórias que o jornalis-ta conta podem ajudar o receptor midiático a refletir sobre sua existência

Não demora muito para que todos os assentos estejam ocupados. Quando dois homens brancos entram e pagam suas pas-sagens, o motorista se vira sobre o ombro e, como é de costume, olha para o fundo do ônibus e ordena que todos os quatro negros cedam o banco para os passageiros que haviam entrado.

Depois de alguma hesitação, três negros se levantam. Rosa Parks, a quarta da fila, não se mexe. O motorista grita:

– Olha, mulher, eu disse que quero seu lugar. Você vai se levantar?

Gentil, mas firmemente, ela responde:

– Não.

Estupefato, o motorista pára o ônibus. Está armada a confusão: a mulher, que havia nascido em uma fazenda e se tornado cos-tureira porque tivera que parar de estudar e ajudar a família, está decidida.

– Não, eu não vou me levantar.

Sua paciência com a injustiça racial havia chegado ao limite. E, acima de tudo, seus pés doíam27.

Não foi apenas a qualidade textual da série que cresceu. Outros itens, como a contextualização, também ficam mais definidos. Exemplo é o do livro da filósofa Edith Stein, santa católica desde 1998:

Um continente muito orgulhoso de si mesmo e altamente convencido de possuir uma missão civilizadora no mundo. Essa é a Europa do final do século XIX e início do século XX em que Edith Stein nasce e vive sua infância e juventude. Um continente acostumado a apostar todas as suas fichas na própria força, na sede de domínio e na fé cega no progresso ilimitado da indús-tria, da ciência e da tecnologia.

Page 24: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

39Volume 7 - Nº 2 - 2º sem. 2007

Dimas A. Künsch e Monica Martinez

28 KÜNSCH, Dimas. Edith Stein. São Paulo: Salesiana, 2007, p. 1629 LEMOS, Jaqueline. Sérgio Vieira de Mello. São Paulo: Salesiana, 2007,p.2-330 Em outubro de 2007, são seis os participantes do Tear: Renata Carraro, Denise Casatti, Alex Criado, Dimas A. Künsch, Jaqueline Lemos e Monica Martinez.

Aí vem a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), com seu trágico balanço de 10 milhões de mortos e o dobro de feridos. Representa um primeiro e grande sinal de contradição nessa lógica incapaz de perce-ber que progresso, tecnologia e ciência não necessariamente fazem as pessoas serem mais humanas.

Não é difícil perceber, também, que a Segun-da Guerra Mundial (1940-1945) estava sendo gestada ali, na mesa onde os vencedores divi-diam os despojos da primeira grande guerra. Depois, ficou fácil atribuir hipocritamente toda a culpa da tragédia ao terror nazista. Poucos se perguntaram, até hoje, que mundo era esse, tão orgulhoso de si quanto frágil em seus fundamentos humanos.

Edith Stein vive intensamente todo esse pe-ríodo. Dedica-se à procura de fundamentos sólidos para a ciência, para a filosofia, para a vida. Está à procura de si mesma. Era uma pessoa em busca da verdade. Era uma mulher consciente de seu papel no mundo. Grande amiga do conhecimento e da sabedoria (é esse o significado original da palavra filosofia), acabou virando uma das tantas vítimas dessa onda imensa de insanidade28.

Outro exemplo é a abertura do livro que conta a história de Sérgio Viera de Mello:

Um estrondo ensurdecedor.

Segundos depois, o caos. Uma nuvem de fumaça e pó invade o Hotel Canal, em Bagdá, no Iraque. Pessoas correm deses-peradas, atônitas, ensangüentadas.

– Meu Deus, o que aconteceu? – gritam, sem nada entender.

Choros, mais gritos. Ninguém sabe direito onde está. Na escuridão, envoltos pela fumaça e poeira, os sobreviventes peram-bulam pelos corredores, vêem colegas de trabalho feridos, outros já mortos.

Naquele caos, procuram por Sérgio.

– Sérgio, Sérgio!

Aquele que chamam está soterrado sob os escombros do hotel, onde funciona o

quartel-general da ONU (Organização das Nações Unidas), na capital iraquiana. Um caminhão-bomba acabara de explodir. Atin-ge em cheio o prédio, e parte dos andares vai ao chão em segundos. Eram 16h30, dia 19 de agosto de 2003. A explosão abre uma pro-funda cratera e provoca estragos em casas e prédios distantes até 2 quilômetros.

Sérgio está vivo, consciente.

– Uma viga de ferro despencou sobre minhas pernas. Não posso me mover! – avisa por ce-lular o amigo e assessor Ghassan Salamé.

– Preciso de água! –, pede.

Ghassan escala parte do amontoado de concreto e tijolos. Tenta se aproximar, mas não consegue. Vê, ao fundo, Sérgio imobi-lizado. Procura acalmar o amigo. Grita:

– Sérgio, não se preocupe. Vamos voltar para buscá-lo. Vamos tirar você daí! – garante.

Começam horas de angústia29.

Encerrada mais essa etapa do processo produtivo, parte do grupo de jornalistas envolvidos decide consolidar a experiên-cia, criando o Tear: Jornalismo Narrativo. Formado por jornalistas e professores de jornalismo, a equipe encontra nesse modelo de trabalho uma oportunidade ímpar para colocar em prática a teoria estudada.30

Heróis e transformação

Qual a importância de trabalhos com essa visão transformadora para o jornalis-mo contemporâneo? Uma boa resposta foi encontrada por Lima em Psicologia e Lite-ratura, em que Dante Moreira Leite analisa

Page 25: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

Histórias de vida produzidas por jornalistas-escritores

40C o m m u n i c a r e

importância das narrativas para que os seres humanos possam tecer nexos e sentidos:

Como dizia Campbell, as narrativas – aí incluídas as narrativas jornalísticas – são formas poderosas de ampliação de consciência. Não se trata de algo mirabo-lante, mas prático, pois que “todos os mitos lidam justamente com a transformação da consciência, de um tipo ou de outro. Você vinha pensando de um certo modo, agora tem de pensar de modo diferente”33.

Nesse sentido, não importa a platafor-ma – uma parede protegida numa caverna ou jornais, revistas, filmes, programas de rádio e TV, portais, blogs, e-books lidos no computador ou celular. As histórias que o jornalista conta, dia após dia, por meio dos testes, provações, intuições e revelações iluminadoras dos protagonistas da narra-tiva, podem ajudar o receptor midiático a refletir sobre sua existência. Podem ajudá-lo a transformar essa existência com a agilida-de e criatividade necessárias, de forma a viver de maneira mais humana e plena em um cenário planetário que sofre alterações de proporções e velocidade jamais vistas na história da humanidade.

31 LEITE, Dante Moreira. Psicologia e Literatura. São Paulo: Editora Nacional, 1977 , p. 4332 Idem, p.11733 CAMPBEL, Joseph. O poder do mito. São Paulo: Palas Athena, 1990, p.134

os possíveis efeitos das obras literárias nos leitores. No livro, o ex-diretor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, já falecido, expõe seu conceito de pensamento produtivo ou processo criador:

Pode-se falar em processo criador ou pensamento produtivo sempre que ocorra o aparecimento de nova solução para um problema anterior, ou sempre que se consiga realizar uma expressão aceitável por outros indivíduos. No primeiro caso, devem ser consideradas não apenas as soluções cientí-ficas ou técnicas, mas também as atividades menos amplas ou ambiciosas da vida coti-diana. Desse ponto de vista, considera-se pensamento produtivo não apenas a criação de uma nova teoria para explicar fenômenos biológicos, ou físicos, mas também a solução técnica para um problema de vedação de

parede ou de cola de materiais. No segundo caso, isto é, ao considerar a possibilidade de expressão, não estamos diante de um problema concreto, tal como o enfrentado pela ciência ou pela técnica, mas diante de emoções ou interpretações da vida humana que podem ex-primir-se de várias maneiras31.O autor defende que “as obras de arte exercem influência poderosa nos leitores”32. Para Lima, também o jornalismo, enquanto narrativa, possui o potencial, não totalmente ex-plorado, de mobilizar de forma

positiva a vida dos leitores, telespectadores, ouvintes e internautas. Nesse ponto, ambos dialogam com Medina, quando ela ressalta a

As narrativas – aí incluídas as narrativas jornalísticas – são formas poderosas de ampliação de consciência

Page 26: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

41Volume 7 - Nº 2 - 2º sem. 2007

Dimas A. Künsch e Monica Martinez

Referências bibliográficas

CAMPBEL, Joseph. O poder do mito. São Paulo: Palas Athena, 1990.__________. O herói de mil faces. São Paulo: Cultrix, 1995.CARRARO, Renata. Mamãe Margarida. São Paulo: Salesiana, 2006.__________. Iqbal Masih. São Paulo: Salesiana, 2007.CASATTI, Denise. Raoul Follereau. São Paulo: Salesiana, 2007.CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. 13ª edição. São Paulo: Ática, 2003. CRIADO, Alex. Chico Mendes. São Paulo: Salesiana, 2006.__________. Dom Helder. São Paulo: Salesiana, 2006.GIMENEZ, Márcia. Irmã Dulce. São Paulo: Salesiana, 2006.KÜNSCH, Dimas A. Maus pensamentos: os mistérios do mundo e a reportagem jornalística. São

Paulo: Annablume/Fapesp, 2000.__________. O Eixo da Incompreensão: a guerra contra o Iraque nas revistas semanais brasileiras de

informação. Tese de Doutorado. São Paulo: ECA-USP, 2004.__________. Projeto Série Heróis e Campeões. São Paulo: Salesiana, 2005. KUNSCH, Dimas A. (coord.). Casa de Taipa: o bairro paulistano da Mooca em livro-reportagem.

São Paulo: Salesiana, 2006.__________. Edith Stein. São Paulo: Salesiana, 2007.__________. Jornalismo Transformativo: um diálogo com Edvaldo Pereira Lima. Textovivo

Narrativas da Vida Real. Disponível em: http://www.textovivo.com.br/dim104.htm. Acesso em: 10 out 2007.

LEITE, Dante Moreira. Psicologia e Literatura. São Paulo: Editora Nacional, 1977.LEMOS, Jaqueline. Betinho. São Paulo: Salesiana, 2006.__________. Madre Teresa. São Paulo: Salesiana, 2006.__________. Sérgio Vieira de Mello. São Paulo: Salesiana, 2007.LIMA, Edvaldo Pereira. Páginas Ampliadas: o livro-reportagem como extensão do jornalismo e da

literatura. Barueri, SP: Manole, 2004. LUDUVIG, Monica Martinez. Jornada do Herói: estrutura narrativa mítica para a construção de

histórias de vida em jornalismo. Tese de doutorado. São Paulo: ECA-USP, 2002. MARTINEZ, Monica. Jornada do Herói: estrutura narrativa mítica para a construção de histórias de

vida em jornalismo. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2007 (no prelo).__________. Mahatma Gandhi. São Paulo: Salesiana, 2006.__________. Martin Luther King Jr. São Paulo: Salesiana, 2007.MEDINA, Cremilda. A arte de tecer o presente: narrativa e cotidiano. São Paulo: Summus, 2003. MORIN, Edgar. O problema epistemológico da complexidade. Mem Martins: Publicações Europa-

América, 1984.MUNGIOLI, Maria Cristina Palma. “Apontamentos para o estudo da narrativa”. Comunicação &

Educação 23, jan/abr 2002, pp. 49-56.TONETO, Bernadete. Domingos Sávio. São Paulo: Salesiana, 2006.__________. Laura Vicuña. São Paulo: Salesiana, 2006.__________. Dorothy Stang. São Paulo: Salesiana, 2007.VOGLER, Christopher. A jornada do escritor: estruturas míticas para escritores. 2ª. edição, Rio de

Janeiro: Nova Fronteira, 2006.

Page 27: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

Histórias de vida produzidas por jornalistas-escritores

42C o m m u n i c a r e

Page 28: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

Comunicação: Meios e Mensagens

Ethel Shiraishi Pereira Mestre em Comunicação e Mercado pela

Faculdade Cásper Líbero Docente e pesquisadora da Faculdade Cásper Líbero

[email protected]

Resumo

Com o objetivo de discutir o evento sob o enfoque estratégico da comunicação integrada, foi feito um estudo de caso do Skol Beats. Foram utilizados os conceitos da sociedade do espetáculo, e seus desdobramentos contemporâneos. A compreensão do funcionamento da sociedade de consumo globalizada e o novo modelo de gestão e de comunicação utilizado nas organizações, permitem o desenvolvimento de uma análise crítica das estratégias de relações públicas e do marketing adotadas em três edi-ções do evento. Os resultados mostram que os eventos assumem papel estratégico no processo de fortalecimento das marcas na formação da identidade cultural de grupos.

Palavras-chave: Relações Públicas; Eventos; Sociedade de Consumo; Marcas.

Abstract

With the goal of discussing the event under the strategic view of the integrated communication, a case study of the Skol Beats was developed. It was used the concept of the society of the spectacle. The comprehension on how the globalized consumer society works and the new administration and communication models used in the organizations allowed the development of a critical analysis of the PR and marketing strategies used in three editions of the festival. The results show that the events take a strategic place in the brand strengthening process and, they start to interfere in the formation of the cultural identity of groups.

Key words: public relations; events; consumer society; brands.

Resumen

Con el objetivo de discutir el evento bajo en enfoque estratégico de la comunicación integrada, se ha desarrollado un estudio de caso Skol Beats. Se han empleados los conceptos de la sociedad del espectáculo, y sus despliegues en la so-ciedad contemporánea. La comprensión del funcionamiento de la sociedad de consumo globalizada y el nuevo modelo de gestión y de comunicación utilizado en las organizaciones, ha permitido el desarrollo de un análisis crítico de las estrategias de relaciones públicas y del marketing adoptados en tres ediciones del evento. Los resultados muestran que los eventos asumen un papel estratégico en el proceso de fortalecimiento de las marcas y, en la formación de la identidad cultural de grupos.

Palabras clave: Relaciones Públicas, Eventos, Sociedad de Consumo, Marcas.

É cool. Eu tenho, eu sou: estudo de caso do Skol Beats -

Sociedade de Consumo e Identidade Cultural1

It’s cool. I own therefore I am: a case study of the Skol Beats festival - Consumer Society and Cultural Identity

Page 29: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

É cool. Eu tenho, eu sou

44C o m m u n i c a r e

Introdução

ada vez mais presentes entre as estratégias de comunicação nas organizações, os eventos assu-

mem, entre outras, a função de promover o relacionamento das organizações e seus públicos. Ao analisá-los, sob o enfoque estratégico da comunicação integrada, observamos que uma das conseqüências deste relacionamento é o fortalecimento das marcas que os promovem. Embora a principal motivação dos investimentos em eventos promocionais seja a geração de negócios, buscamos, por meio do estudo de caso do evento Skol Beats, compreen-der a influência que o evento exerce na

formação da identidade cultural, em segmentos de público jovem adulto.

Para tanto, buscamos um referencial teórico que permitisse o desenvol-vimento de uma visão crítica sobre o papel que os eventos representam na sociedade. O contato com autores como Guy Debord, Naomi Klein, Stuart Hall, Douglas Kellner, Gilles Lipovetsky e David Har-

vey, permitiu uma investigação sobre os conceitos relacionados com a sociedade do espetáculo e seus desdobramentos, tais como a sociedade de consumo, formação da identidade cultural e a cultura da mídia. Da mesma forma, autores como James Gru-nig e Margarida Kunsch permitiram-nos identificar que a comunicação e as relações públicas estão em constante processo de modernização e adequação às exigências do mercado, o que requer uma reflexão sobre os eventos e suas conseqüências para as organizações promotoras e públicos-alvo.

A opção por um estudo de caso sobre o Skol Beats, fundamenta-se pelo espírito inovador presente no evento, ação de marketing cujas estratégias de comunicação

C

1 Trabalho apresentado ao NP Relações Públicas e Comunicação Organizacional do VI Encontro dos Núcleos de Pesquisa da Intercom.2 O espetáculo, ou seja, a valorização das imagens (como representação visual e mental) vinculadas às mercadorias, por meio das quais as relações de consumo são mediadas, está presente na vida coti-diana e diz respeito ao que os meios de comunicação produzem: por meio do cinema, da propaganda, da notícia, dos eventos e de programas televisivos, tais como noticiários, telenovelas e programas de auditório, entre outros, cria-se uma experiência que antecede a vivência real. “Toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espe-táculos. Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação” DEBORD, Guy. A Sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997, p. 13.

visam atender às necessidades mercadoló-gicas da AmBev, multinacional produtora de cervejas brasileira. A pesquisa realiza-da, de caráter qualitativo, teve um enfoque exploratório e descritivo, por meio da qual fundamentamos o referencial teóri-co e identificamos os diversos aspectos operacionais e estratégicos das ações de relações públicas e de marketing aplicadas nas edições de 2003, de 2004 e de 2005 do evento Skol Beats, analisando-os de acor-do com o contexto social e mercadológico em que o evento está inserido.

Eventos e a Lógica da Sociedade do Espetáculo

O processo de comunicação e de relacionamento das organizações com seus públicos estratégicos estão cada vez mais sofisticados e submetidos à lógica da sociedade do espetáculo2. Para man-ter a participação das empresas e suas marcas em evidência, utiliza-se, cada vez mais, imagens para estimular a venda de produtos e serviços. Neste contexto, os eventos também se adaptaram às novas exigências, pois suas características permitem que as empresas, ao produzir conteúdos de eventos culturais, adqui-

Page 30: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

45Volume 7 - Nº 2 - 2º sem. 2007

Ethel Shiraishi Pereira

3 Disciplina que estuda como se processa o fenômeno comu-nicacional dentro das organizações no âmbito da sociedade global. Ela analisa o sistema, o funcionamento e o processo de comunicação entre a organização e seus diversos públicos. KUNSCH, Margarida Maria Krohling – Planejamento de relações públicas na comunicação integrada – 4 ed. rev., atual. E ampl. – São Paulo: Summus, 2003, p. 149.

empresa com seus públicos de interesse. A comunicação organizacional3 passa a ser valorizada por garantir a abertura de canais de diálogo, estabelecidos para promover a troca de informações entre as empresas e seus stakeholders. Por meio da construção de um discurso pautado na ética e na transparência nas relações, a comunicação contribui para a criação e o fortalecimento de uma imagem favorável das organizações.

A preocupação das empresas em cons-truir, manter e fortalecer suas marcas e a constante busca pela diferenciação de pro-dutos e serviços, faz com que os patrocínios de eventos ganhem relevância frente às de-mais ações de marketing e de comunicação organizacional, pois colaboram e aceleram a formação de uma imagem positiva sobre o produto na mente do consumidor.

O novo perfil do consumidor, mais consciente de seus direitos e mais exigente em relação à qualidade dos produtos e serviços, preço e postura ética das organi-zações - o que provocou o acirramento da concorrência entre as empresas - e a busca constante por novos mercados, fizeram com que a comunicação adquirisse papel estratégico nas organizações.

Neste contexto, juntamente com as Rela-ções Públicas, os eventos são valorizados e passam a ser utilizados como ferramenta de relacionamento com os diversos públicos estratégicos nas organizações. A inevitável profissionalização do processo de planeja-mento e organização dos eventos fez com que esses passassem a ocupar o seu espaço na mídia, por meio da propaganda, cober-tura jornalística e produção de programas especiais para TV e Rádio.

ram rendimento monopólico e agreguem valor aos negócios. Logo, os eventos destinados à promoção de marcas são concebidos e promovidos como grandes espetáculos – como conseqüência, espe-tacularizam-se os negócios, que passam a ser de interesse público e amplia-se o poder de influência dos mesmos no processo de formação de identidades culturais, conforme veremos a seguir.

A evolução do sistema capitalista e conseqüentemente da ideologia de mercado está diretamente relacionada com a difusão do pensamento neoliberal, sustentada pelos processos comunicacionais – o Século XX é marcado, entre outros aspectos, pela influência da mídia na elaboração de uma sociedade de mercado globalizada. O forta-lecimento do sistema capitalista contribuiu para que as organizações passassem a exercer um importante papel na formula-ção de políticas públicas e a exercer uma forte influência na sociedade, até então, controlada pelo governo. Em contrapartida, o aumento do poder das organizações em interferir na vida das pessoas, trouxe como conseqüência um maior controle por parte da opinião pública.

Este funcionamento do mercado e suas exigências, colaboraram para o surgimen-to de um novo modelo de gestão organiza-cional, preocupado em garantir um bom relacionamento entre as empresas e seus públicos estratégicos. A comunicação, que até então era percebida predominan-temente no âmbito social (amplamente analisada e criticada por seus efeitos na sociedade), passou, inicialmente, a ser utilizada como uma atividade instrumen-tal dentro das organizações. A necessida-de de legitimar as ações organizacionais perante a sociedade, principalmente por meio da mídia, fez com que a atividade fosse valorizada por projetar a empresa. Assim sendo, compreendemos que a comunicação passou a ser reconhecida, também, por sua função de melhorar e tornar confiável o relacionamento da

Page 31: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

É cool. Eu tenho, eu sou

46C o m m u n i c a r e

Podemos, então, afirmar que a ativi-dade de planejamento e organização de eventos deve ser norteada pelos preceitos das Relações Públicas, transformando-se em ferramenta estratégica capaz de otimizar objetivos e gerar benefícios às organizações que os promovem. Deve ser focado para o negócio e integrante de um processo de comunicação excelente, ou seja: estar baseado no planejamento estratégico da organização; atender às necessidades do seu público de interesse; colaborar para um melhor posiciona-mento da organização no mercado em detrimento de seus concorrentes. Deixar de avaliar o contexto mercadológico, o clima da organização e as necessidades

dos colaboradores pode fa-zer com que a empresa não atinja seus objetivos.

Sociedade do Espetáculo

A sociedade do espe-táculo promove o esvazia-mento da capacidade de sermos sujeitos de nossas próprias experiências. A vivência ocorre, muitas vezes, somente no plano imaginário, fazendo com

que seja desenvolvida uma postura pas-siva diante da realidade. Não exercemos controle sobre os espetáculos, fazemos parte do processo sem perceber que são mecanismos de representação da realidade e de fragmentação da identidade. Cada vez mais, definimos nossa identidade por meio do consumo, por meio daquilo que temos e não pelo que somos4.

A presença das empresas no universo cultural, inicialmente como patrocina-dora de eventos e, posteriormente por meio de uma interferência direta, como produtora cultural, estabelece a relação entre o culto às marcas e a formação da identidade cultural de uma nação. As

O sistema capitalista contribuiu para que as organizações exerçam um importante papel na formulação de políticas públicas

marcas, presentes nos eventos e espaços urbanos, tornam-se tangíveis aos públicos que vivenciam uma experiência sensorial, ou seja, a marca passa a ser reconhecida e valorizada pelos públicos de interesse da organização que se favorece economi-camente na medida em que fortalece sua imagem e passa a ter o controle sobre a produção de conteúdos.5

Ao desenvolver seus próprios conteú-dos, as organizações elaboram seus discur-sos da maneira que melhor convém para a construção de uma história relevante e, por meio do espetáculo, transmitem uma ideologia vinculada aos interesses econô-micos. A cultura tem o papel de fornecer produtos sociais capazes de preencher os “vazios”, dar sentido à vida. Os projetos sociais e culturais bancados pelas em-presas com o rótulo de responsabilidade social têm o objetivo de legitimar as ações empresariais, tornando seus discursos coerentes com a prática.

Os produtos culturais possuem ca-ráter especial capaz de separá-los das mercadorias comuns e, ao elucidar o processo de busca dos rendimentos monopólicos por parte das empresas. David Harvey6 esclarece os motivos pelos quais a cultura passa a ser fator relevante para a manutenção do siste-ma capitalista neoliberal: ao colaborar para a valorização do capital simbólico coletivo de uma localidade, a ser am-plamente explorada pelas empresas, a cultura passa a ser produzida dentro da lógica da mercantilização.

4 LASCH, C. O Mínimo Eu. São Paulo: Ed. Brasi-liense, 19865 KLEIN, Naomi. Sem Logo: A Tirania das Marcas num Planeta Vendido. Rio de Janeiro: Ed. Record, 2002, p. 58.6 HARVEY, David. A arte de lucrar: globalização, monopólio e exploração da cultura in Por uma outra comunicação – mídias, mundialização cultural e poder. Rio de Janeiro: Record, 2003.

Page 32: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

47Volume 7 - Nº 2 - 2º sem. 2007

Ethel Shiraishi Pereira

realizada na cidade de São Paulo, a marca também promove eventos musicais em cidades litorâneas e em outros Estados. De qualquer forma, acreditamos que o lança-mento do Skol Beats, no mesmo ano em que o funcionamento da AmBev foi autori-zado pelo CADE, não é mera coincidência. Uma nova etapa na história da marca estava sendo iniciada. A Skol tinha que assumir uma nova identidade, ser inovadora para gerar demanda e o evento colaborou para este processo. Na terceira edição, em 2002, o evento ganhou o status de mega-festival nacional e o maior da América Latina. Os ingressos esgotaram dois dias antes do início da festa. Foi um marco na história da cerveja “que desce redondo” e que começa a dar os primeiros “rodopios” como a prin-cipal marca de uma empresa brasileira com penetração de mercado global. Aos poucos, a marca Skol Beats torna-se mais importante que o próprio evento. Em novembro de 2002, a empresa lançou a cerveja Skol Beats e passou a comercializar uma diversificada linha de produtos: roupas, óculos, relógios, porta CD´s, entre outros.

Em 2003 o evento contou com a apre-sentação de 70 DJ’s brasileiros e internacio-nais, tocando diversos estilos e variações da música eletrônica. A quarta edição do Skol Beats atraiu a presença de 43,8 mil pessoas, e conquistou a simpatia dos jovens, além do respeito de produtores musicais, DJ’s e jor-nalistas especializados. A imprensa passou a ser uma forte aliada: com a informação de que a música eletrônica é o segmento

Caracterização do Evento Skol Beats

A primeira versão do Skol Beats foi promovida em 2000, primeiro ano de funcionamento da AmBev. A idéia partiu de um produtor musical, cujo principal objetivo era valorizar a cultura da mú-sica eletrônica7, que começava a ganhar espaço no cenário fonográfico brasileiro. A proposta de realização de um festival de música eletrônica, seguindo os moldes do Festival de Homelands, maior festival de música eletrônica do mundo que ocorre anualmente na cidade de Winchester, sul da Inglaterra, foi apresentada à F/Nazca, agên-cia de publicidade contratada pela AmBev para desenvolver as ações de marketing da marca Skol.

O apoio financeiro de uma empresa era fundamental para que o projeto fosse efetivamente colocado em prática. Com o objetivo de atingir o público alvo (jovens com mais de 18 anos pertencentes às classes média e alta) por meio da realização e pa-trocínio de eventos culturais e se consolidar no mercado como uma marca de espírito jovem, inovador e ousado, o projeto foi aprovado pela Skol.

Pode-se notar o papel estratégico da co-municação para a marca, tendo em vista que o evento Skol Beats (compreendido pela Skol como um sinônimo de entretenimento) é considerado pelo gerente de marketing da Skol, Carlos Lisboa, “um dos alicerces do crescimento da marca em todo Brasil”. A empresa alia sua marca a um fenômeno da indústria cultural (música eletrônica) para atingir o seu público. “O Skol Beats traduz muito do espírito da Skol: uma marca jo-vem e moderna ligada ao entretenimento e sempre antenada às tendências. A Skol sempre apostou e continua investindo em ações inovadoras, como é o caso da música eletrônica, segmento que mais cresce den-tro e fora do Brasil”, comenta Lisboa.

O evento Skol Beats não é a única ação estratégica da marca Skol: além da ação

7 A evolução tecnológica na indústria fonográfica desencadeou a criação da música eletrônica. Ao inter-ferir na obra de um compositor ou até criar novos sons, mesmo não sendo um músico, o DJ passou a ser uma figura ativa no processo de comunicação. O movimento da música eletrônica no Brasil teve início na década de 90, em pequenos clubes underground na cidade de São Paulo e do Rio de Janeiro, impulsionado por jovens da classe média alta e clubbers que traziam da Europa a novidade musical, além de DJ´s que se recusavam a tocar a disco music, lado comercial da música eletrônica popular nos anos 70 e o pop rock.

Page 33: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

É cool. Eu tenho, eu sou

48C o m m u n i c a r e

da indústria fonográfica que mais cresce no país, o programa AMP da MTV brasi-leira (primeiro programa especializado em música eletrônica), passa a fazer cobertura integral do evento, assim como colunistas de revistas e jornais de grande circulação.

No ano em que os Estados Unidos decla-ram guerra à Sadan Hussein, os organizado-res do evento promovem uma homenagem à paz no mundo e no Brasil. Pontualmente à 0 hora de domingo, 20 mil balões brancos subiram aos céus, durante a apresentação de Stereo Mcs, uma das principais atrações do Skol Beats. O grupo pediu à platéia um minuto de silêncio. O som também fez uma pausa na tenda Movement, na entrada do DJ Patife. O evento contou com algumas ino-

vações, tais como o Skol Web Store, a venda de ingressos setorizados, a cenografia do espaço físico, a parceria com a Prefeitura de São Paulo, Coordenadoria Especial da Juventude e Anhembi, a expo-sição “Lov.e por São Paulo” e a coleta seletiva solidária.

A comunicação do evento reforça o conceito de marca com espírito jovem, inovador e ousado. Possui o slogan “A festa mais redonda do planeta”. A campanha pu-

blicitária criada pela F/Nazca Saatchi & Saatchi contempla peças de comunicação dirigida e de massa, tais como anúncios produzidos para veiculação nas rádios, na TV, em jornais e revistas, além de outdoors, cartazetes, cartões postais, flyers, adesivos para blitz em universidades, casas noturnas, bares, festas e restaurantes, programete, ma-teriais para lojas de conveniência e pontos de vendas. Vale ressaltar que, apesar de o evento acontecer somente na cidade de São Paulo, a campanha publicitária na TV foi veiculada com abrangência nacional.

Para o esclarecimento de dúvidas, a Skol disponibilizou uma linha 0800 - o SAC Skol e estabeleceu canais de relacio-

Aos poucos, a marca Skol Beats torna-se mais importante que o próprio evento

namento pelo site www.skol.com.br, bem como pelo site exclusivo do evento, www.skolbeats.com.br, por meio do qual o público pode ter acesso a informações co-merciais e institucionais do evento. Além disso, desenvolveu ações de assessoria de imprensa, incluindo coletiva de imprensa e ações promocionais.

A edição de 2004 do Skol Beats apre-sentou uma série de inovações em relação ao ano anterior. Essa preocupação ficou evidente com a ampliação do conceito do evento: de um festival de música eletrô-nica, passou a ser trabalhado como um evento de música eletrônica, cultura, arte e multimídia. Entre as novidades de 2004, destacamos: Pepsi Stage, BMC – Brazilian Music Conference, Beats Social, Olhos de Skol, 450 anos de São Paulo, Arena Skol Anhembi. A exemplo das demais ações relacionadas com o evento, as ações co-municacionais também foram ampliadas. Além de todas as estratégias adotadas no ano anterior, por meio de um acordo com a TV Bandeirantes, o evento ganhou cober-tura televisiva e um programa especial foi ao ar em duas partes. Entrevistas com DJ’s, matérias de comportamento, apresentação do espaço físico do evento e celebridades eram apresentadas por Sabrina Parlatore e Renata Simões.

As ações promocionais desenvolvidas no local do evento contaram com distri-buição de brindes, presença de promotoras caracterizadas com as vestimentas dos homens da caverna, canhões de laser, vídeos promocionais, letreiros luminosos e sinalizações e cenários que remetiam aos tempos pré-históricos. Vale ressaltar que o Chilli Out (área reservada para descanso) foi o espaço que estava melhor ambientado com a temática do evento: parecia mesmo uma caverna.

Em 2005, o evento foi marcado pela organização impecável. O espaço físico foi ampliado (53% a mais que em 2004, es-tendendo-se pelo terreno da Aeronáutica), permitindo melhor circulação do público,

Page 34: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

49Volume 7 - Nº 2 - 2º sem. 2007

Ethel Shiraishi Pereira

eliminando as principais reclamações de 2004. Houve melhoria da qualidade do som nas tendas, não faltou cerveja gelada, banheiros descongestionados e, mesmo apresentando, de acordo com os especia-listas, uma programação “mais fraca” em relação aos anos anteriores, o evento con-tinua surpreendendo os participantes.

O conceito do evento sofre mudanças: deixa de ser tratado como algo inovador e ganha o mote de “a festa mais contagiante do planeta”. Por cinco anos, o Skol Beats foi considerado inovador por apoiar a introdução da música eletrônica no Brasil mas, agora, os organizadores buscam novo posicionamento. Entendem que o evento já está consolidado entre os admiradores da música eletrônica e precisa ampliar o pú-blico de interesse. Desta forma, justifica-se a troca do produtor musical do evento. Edo van Duyn, apresentou uma programação mais acessível ao público em geral, utili-zando-se de artistas renomados que não fazem parte da cena eletrônica, tais como Carlinhos Brown, Elza Soares, Rogério Flausino e Patrícia Marx entre outros.

Assim como nos anos anteriores, o Skol Beats amplia sua abrangência e ganha uma série de novas ações: Skol Beats Week, Fes-tas Oficiais, Pepsi X Eletric, camiseta oficial do evento, consumo responsável “Brigada do Carona”.

Pesquisas

Duas pesquisas realizadas em 2004 com o público jovem apontam resultados favoráveis para as estratégias adotadas pelo marketing da marca Skol. A primeira, desenvolvida pelo Instituto Research In-ternational tinha o objetivo de identificar quais marcas são consideradas “cool” por jovens adultos de 18 a 30 anos. Na catego-ria cerveja, a marca Skol foi indicada como referência de modernidade e inovação por 35% dos entrevistados, pertencentes à classe AB.8 A segunda pesquisa, cujos resultados são satisfatórios para a marca

Skol, é a Top Of Mind, realizada anual-mente pelo Datafolha. Pela primeira vez, a Skol superou a Brahma e a Antarctica e, por esta ascensão, foi também premiada com o Top Performance.

Os dirigentes da AmBev atribuem o resultado ao trabalho desenvolvido no decorrer dos últimos 5 anos, período em que os novos consumidores e pessoas que não tinham uma marca de bebida escolhida se identificaram com as ações da Skol. O conceito de vanguardismo e as campanhas publicitárias dirigidas ao público jovem, aliado com ações estratégicas de preços satisfatórios, canais de atendimento e dis-tribuição eficazes e boa remuneração dos funcionários são fatores que colaboraram para o resultado. Além disso, os eventos direcionados para o público jovem como o Skol Rock e o Skol Beats, são considerados estratégicos para incentivar a adesão do público jovem à marca Skol.

Análise do Evento

O evento Skol Beats é, para a AmBev, uma importante ferramenta de marketing, por meio da qual a empresa obtém resulta-dos favoráveis para a sustentação do negó-cio. É evidente que o evento não representa a única ação destinada à alavancagem das vendas do produto. Trata-se, de fato, de um componente do mix comunicacional e de marketing que a marca utiliza para se promover. A periodicidade anual e o com-promisso de que a Skol voltará a investir nesta iniciativa, demonstra a preocupação da empresa em sustentar o seu relacio-namento com o público alvo do evento, bem como manter a posição que ocupa no mercado. Para o desenvolvimento desta análise, categorizamos as informações entre aspectos logísticos da organização

8 BLECHER, Nelson. É legal, é moderno. É cool! Revista Exame. São Paulo, 26.05.2004 , edição número 818.

Page 35: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

É cool. Eu tenho, eu sou

50C o m m u n i c a r e

do evento; estratégias de relações públicas e estratégias de marketing.

Organizado pela empresa de promoção B/Ferraz, a estrutura logística do evento apresenta um processo evolutivo. O evento amplia, a cada ano, o número de participan-tes, motivo pelo qual seus organizadores devem estar atentos às questões operacio-nais, sob risco de comprometer a imagem do evento e, conseqüentemente, a imagem da marca Skol.

Fortemente criticada pelas falhas de organização em 2004, no ano seguinte, a empresa apresentou, por meio do traba-lho de assessoria de imprensa, uma real preocupação em destacar as melhorias implementadas no evento, tais como

ampliação do espaço físico e nova distribuição das ten-das, proporcionando uma melhor qualidade no sistema de sonorização. Houve, tam-bém, mudanças na prestação dos serviços de vendas de ingressos, segurança, am-bulatórios, banheiros, praça de alimentação, incluindo o abastecimento de bebidas, entre outros.

Apesar de representar um papel operacional no processo de organização

do evento, tais aspectos estão diretamente relacionados com a reação do público frente aos serviços oferecidos durante o evento. Desta forma, garante-se o controle sobre o comportamento do público, sua segurança e possíveis questões que possam se transformar em uma crise, capaz de com-prometer a imagem do evento e da marca que o promove.

A análise diagnóstica dos filmes pu-blicitários nos mostra que o objetivo dos comerciais não é garantir a presença dos jovens no evento. O festival Skol Beats é o motivo aparente para que, por meio de uma campanha publicitária, de abrangência nacional, a empresa possa consolidar sua

A comunicação do evento reforça o conceito de marca com espírito jovem, inovador e ousado

ideologia com o seu público. O que vale na campanha de divulgação não é a boa música eletrônica que estará sendo tocada durante o festival, mas sim a idéia de que, ao participar do evento, o jovem estará incorporando em seu dia a dia o espírito de modernidade e de ousadia, garantido pela marca da cerveja patrocinadora do evento.

Eventos como o Skol Beats são catego-rizados como eventos proprietários ou de marca. Podemos, ainda, classificá-lo como evento de calendário promocional pois, com a promessa de se realizar periodica-mente, são ansiosamente aguardados pelo público, fomentam o turismo, despertam os interesses da mídia e dos investidores. Desta forma, um dos grandes desafios aos seus promotores, é evitar que caiam na mesmice, sob pena de perder o interesse do público-alvo e, conseqüentemente, dos demais públicos estratégicos.

Para superar as expectativas, bem como manter e estimular o interesse de participação do público jovem no evento, observamos que, no caso do Skol Beats, ações de relações públicas são implemen-tadas a cada ano, seja para sustentar a sua característica de evento inovador, principal atributo do evento diretamente relacionado com a imagem da marca Skol, seja para estabelecer relacionamento com públicos estratégicos da empresa, tais como, a in-dústria fonográfica e seus artistas, órgãos governamentais e a imprensa.

Entre os exemplos de ações de relações públicas apresentadas neste estudo, des-tacamos o apoio que a marca Skol oferece para o fortalecimento da indústria fonográ-fica, da moda e dos equipamentos produzi-dos para o setor, por meio da promoção do BMC, o Brazilian Music Conference, evento que antecede o Skol Beats, cujo principal objetivo é estimular o desenvolvimento cultural da música eletrônica no Brasil.

Como identificamos anteriormente, o clima do Skol Beats, descontraído e tumul-tuado, não permite o diálogo – neste caso, o

que vale é a experimentação de sensações,

Page 36: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

51Volume 7 - Nº 2 - 2º sem. 2007

Ethel Shiraishi Pereira

motivo pelo qual o BMC transformou-se no espaço destinado à troca de informações, às discussões sobre a temática, ampliando a possibilidade da marca Skol transmitir a sua visão e posicionar-se a respeito de questões como consumo responsável de bebidas, cultura da música eletrônica, mercado de cervejas, entre outros.

Assim como as estratégias de relações públicas, o marketing do evento aprimo-ra-se paulatinamente. Pioneiro entre os eventos de promoção de marca, o formato do evento de mega-festival de música ele-trônica, é freqüentemente reproduzido por outras grandes marcas, tais como Nokia, Chevrolet, Tim e Coca-Cola. Mesmo assim, mantém um crescimento anual do número de participação, reflexo dos investimentos em divulgação em mídia segmentada e de massa, ampliação dos pontos de venda de ingressos, adequação do preço dos ingressos e ações promocionais, tais como festas e ven-da de produtos com a marca Skol Beats.

Preocupados com a aderência do evento com o atributo inovação, os promotores co-meçam a posicioná-lo como algo “contagian-te”. Conforme anteriormente apresentado, em 2005 o evento ganhou um novo produtor cultural, que diversificou a programação, incluindo artistas nacionais que transitam em outros estilos musicais. Seria uma forma de manter o evento como uma estratégia de marketing, ou seja, ao invés de abandonar o projeto por ele não ter mais um forte apelo inovador, partir para um reposicionamento do conceito do evento?

Considerações Finais

Ao aprofundar o conhecimento sobre o evento Skol Beats e, ao desenvolver as análises para este estudo de caso, tivemos a oportunidade de identificar vários meca-nismos estratégicos utilizados pela AmBev – Companhia de Bebidas das Américas para aprofundar o relacionamento da marca Skol com seus públicos de interesse. Estes meca-nismos, relatados no decorrer da análise, per-

mitiram à organização conquistar resultados mercadológicos e institucionais favoráveis ao negócio e que, certamente colaboraram para o crescimento da marca Skol no Brasil.

Observamos que os objetivos merca-dológicos são alcançados e comprovados com a ampliação de mercado. A marca Skol detém 38% das vendas nacionais, conforme pesquisa Top of Mind de 2005 estando à frente das marcas Brahma e Antarctica - também de propriedade da AmBev. Por outro lado, a imagem insti-tucional da Skol tem se beneficiado com as ações do evento que, considerado de espírito jovem e inovador, contribuiu para que a marca seja reconhecida por ter in-troduzido e estimulado o desenvolvimento da música eletrônica no Brasil. A marca considerada cool pelo público jovem adul-to foi premiada com o Top Performance pelo Instituto Datafolha em 2004, o que indica o seu fortalecimento.

A comunicação mostrou-se estratégica para consolidação do Skol Beats – atuando aparentemente de forma integrada, percebe-mos a contribuição de cada área da comu-nicação no processo: o jornalismo por meio de ações de assessoria de imprensa, a publi-cidade por meio das campanhas veiculadas em nível nacional e ações promocionais, as relações públicas por meio de ações de rela-cionamento com públicos estratégicos para a organização. O conteúdo das mensagens apresentadas nas campanhas publicitárias, assessoria de imprensa e ações de relações públicas mostra-se alinhado com o conceito de inovação e vanguarda, atributos pelos quais a marca deseja ser reconhecida por seu público alvo.

Os resultados favoráveis identificados nas pesquisas realizadas pelo Datafolha e pelo Instituto Research International, permitem supor que as ações estratégi-cas de marketing e de relações públicas utilizadas pela Skol, são exemplares para caracterizar a sociedade de consumo e o processo de espetacularização dos negó-cios por meio dos eventos.

Page 37: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

É cool. Eu tenho, eu sou

52C o m m u n i c a r e

Pioneiro neste segmento, o mega-fes-tival de música eletrônica Skol Beats é promovido em São Paulo há seis anos e, desde então, acompanhamos a evolução do fenômeno cultural da música eletrônica no Brasil. Com base nas análises do evento e do mercado, pode-se afirmar que esse estilo de música submete-se à lógica da sociedade do espetáculo, pois está, cada vez mais, presente nas trilhas sonoras de longas-me-tragens, de documentários, de programas de televisão, de filmes publicitários, entre outros veículos de massa. A música eletrô-nica pode ser ouvida, também, em outros festivais promovidos por empresas que buscam alinhar a sua imagem à idéia de inovação e modernidade, elementos intrín-

secos à música eletrônica. Quando estabelecemos

os pressupostos deste tra-balho, consideramos que os eventos contribuem para a construção do discurso empresarial, para o for-talecimento de marcas e, conseqüentemente, para promover a formação da identidade cultural de um grupo. Julgamos, também, que a cobertura dos eventos por parte da mídia, paga e espontânea, colabora para

que o público alvo identifique-se com a marca divulgada e amplia os efeitos for-madores da identidade cultural, ou seja, ao invés de influenciar somente os participan-tes do evento, o conteúdo veiculado pela mídia passa a exercer influência sobre uma parcela maior da sociedade. Tais pressu-postos podem ser confirmados a partir das ações implementadas no decorrer das três últimas edições do evento, espaço criado para estimular o consumo da cerveja e promover a adesão do público jovem à marca, conforme veremos.

O conceito de Naomi Klein de que os consumidores se relacionam com as empre-sas por meio das marcas, pode ser ilustrado

neste estudo de caso pela criação e comer-cialização da cerveja e da grife Skol Beats. Além da participação dos jovens no evento e do consumo da bebida, acreditamos que o exemplo extremo de adesão à marca é o uso de lentes de contato com o símbolo da cer-veja, representada pela seta que demonstra que a Skol “desce redondo”. Colocadas nos olhos, podemos supor que os jovens vêem o mundo através da marca Skol, de acordo com a sua visão de mundo.

O crescente aumento do número de par-ticipantes a cada edição do evento, aliado a uma estratégia de massificação por meio de veiculação de programas televisivos, inser-ção de encartes especiais sobre o evento em revistas de grande circulação, campanhas publicitárias veiculadas em nível nacional, faz com que as informações relacionadas ao evento e seu universo atraiam o interesse dos órgãos de imprensa e gerem um grande volume de matérias em jornais, revistas, rádios, sites e programas televisivos. Pode-mos afirmar que o evento é um gerador de conteúdos, fazendo com que a marca Skol esteja presente com freqüência na mídia. Amplia-se a possibilidade de exposição da marca Skol perante uma audiência cada vez maior, ou seja, a sua influência não fica restrita aos participantes do evento, mas a todos aqueles que acompanham a evolução dos veículos de comunicação de massa.

Ao patrocinar eventos culturais e pro-duzir o seu conteúdo, ou seja, interferir na escolha dos artistas que irão se apresentar no festival e determinar, por exemplo, a promoção do Skol Beats Week, a marca Skol passa a interferir diretamente no processo de mercantilização da cultura da música eletrônica no Brasil e, conseqüentemente, contribui para a formação da identidade de um determinado grupo social.

Os esforços da marca em estimular o cres-cimento do mercado fonográfico da música eletrônica são reconhecidos pelos jovens que consideram o evento uma importante inicia-tiva no sentido de oferecer aos brasileiros a oportunidade de “conhecer artistas que

Ao patrocinar eventos culturais, a Skol interfere diretamente no processo de mercantilização da cul-tura da música eletrônica

Page 38: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

53Volume 7 - Nº 2 - 2º sem. 2007

Ethel Shiraishi Pereira

jamais viriam ao Brasil se não fosse o Skol Be-ats”. O gosto pela música eletrônica no Brasil acompanha o ritmo do evento, que legitima o discurso da marca que o promove, ou seja, o evento faz com que de fato a Skol seja con-siderada inovadora e colabora para que o seu público alvo identifique-se plenamente com a marca divulgada, que se fortalece perante seus consumidores e passa a ser admirada, mesmo que a cerveja não seja consumida. O estilo da música eletrônica naturalizou-se em nossa sociedade por conta da massificação dos elementos que compõem a cultura da música eletrônica. Nesse sentido, o evento colabora para reforçar a tese de David Har-vey que atribui à cultura uma característica de elemento facilitador para “construção de argumentos” para captar rendimentos mono-pólicos por parte das organizações.

Apesar da característica de evento de massa, o Skol Beats pode, também, ser considerado um canal de comunicação dirigida com alguns públicos estratégicos da organização. As estratégias de relações públicas presentes no evento, demonstram uma preocupação com o fortalecimento da imagem institucional da AmBev e da marca Skol por meio de ações de caráter social. O discurso pautado na ética e na transparên-cia nas relações é consolidado por meio de campanhas de coleta seletiva de lixo e de consumo responsável da bebida alcoólica. O minuto de silêncio pela paz, promovido em 2003, apresenta aos consumidores da marca uma empresa preocupada com as questões sociais, políticas e econômicas, de âmbito mundial.

Apesar dos fatores negativos que envol-vem a cultura da música eletrônica (alcoo-lismo e consumo de drogas), a interferência por parte da Skol na formação dos gostos culturais de seu público alvo, tem trazido conseqüências positivas à sua imagem. No entanto, este resultado só é possível por conta das estratégias de relações públicas – certamente, a Skol soube articular ações em parceria com órgãos governamentais e da sociedade civil, além de implementar

campanhas que conseguiram minimizar o impacto negativo que o evento poderia causar em sua imagem. A coleta seletiva de lixo suaviza o impacto sobre o meio ambiente, a campanha de consumo res-ponsável, demonstra preocupação com a saúde e isenta a empresa sobre as conse-qüências relacionadas com o consumo da bebida alcoólica. O relacionamento com a Prefeitura do Município de São Paulo, por exemplo, culminou com a construção do “Arena Skol Anhembi”, espaço para megaeventos localizado no Sambódromo. Este ambiente demonstra uma forma de ocupação do espaço público para que a marca possa vender suas idéias e seu estilo de vida, além de revelar como a empresa se utiliza da governança urbana para explorar rendimentos monopólicos.

Verificamos que o objetivo de comu-nicação institucional da empresa torna-se relevante por reforçar e legitimar o discurso, bem como estabelecer relacionamento com públicos estratégicos da organização. Porém, vale uma ressalva: embora os organizadores tenham agregado ao evento diversas ações de relações públicas, posicionando-o de forma estratégica, não podemos, ainda, considerar as ações de relações públicas excelentes pois não são simétricas, ou seja, não estabele-cem o diálogo efetivo entre a organização e seus públicos. As ações de comunicação, apresentadas até o momento, enquadram-se no modelo assimétrico de duas mãos, ou seja, aquele que utiliza pesquisas e outros métodos de comunicação para desenvolver mensagens persuasivas e manipuladoras.

Conforme observado, o Skol Beats de-monstra uma constante evolução em seus processos, motivo pelo qual gostaríamos de acreditar que o evento poderia estabelecer mecanismos para consolidar uma comuni-cação de mão dupla, de acordo com modelo estabelecido por James Grunig, com seus participantes, mas não achamos que esta atitude esteja em consonância com a lógi-ca da sociedade de consumo. No entanto, para uma mudança sobre o processo de

Page 39: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

É cool. Eu tenho, eu sou

54C o m m u n i c a r e

concepção e planejamento dos eventos, precisamos, primeiramente, da formação de um novo perfil de profissional, capaz de desenvolver uma análise crítica da situação e que esteja consciente de que atua com um processo de comunicação e, como tal, influencia a opinião pública. Desta forma, torna-se, também, responsável pelas con-seqüências que um evento pode causar na sociedade em que vivemos.

O evento é uma manifestação cultural que, assim como as demais áreas da socie-dade, passa por transformações a partir das influências de outras culturas. A música eletrônica encontrou na cidade de São Paulo o ambiente apropriado para se consolidar: grande metrópole que, de acordo com Peter Burke, representa um espaço ideal e favorável para troca de elementos culturais. A diver-sidade de etnias e culturas presentes numa cidade como São Paulo, pode ser um dos

fatores do sucesso do Skol Beats, aliado ao perfil de seus jovens, que vivem em constante busca por novidades e possuem facilidade para transitar entre diversas “tribos”.

O Skol Beats é uma experiência sen-sorial, na qual as músicas e as imagens são utilizadas para mexer com a emoção das pessoas. O participante se integra ao cenário do evento, interage com as músicas e estabelece uma relação muito forte com a marca Skol. De acordo com seus promo-tores, é um evento de música eletrônica, cultura, arte e multimídia, pretexto para estimular o consumo da cerveja. De acor-do com os participantes, o Skol Beats é inovador, promovido por uma marca cool. Assim, de acordo com a lógica da sociedade de consumo, quem vai ao evento ou conso-me a cerveja, adquire os seus atributos e o faz, porque foi “contaminado” pela marca de cerveja que desce redondo.

Referências bibliográficas

BLECHER, Nelson. Consumo Jovem: Como abordar um público afluente, mas avesso às mensagens comerciais. Revista Exame. São Paulo, 08.12.2003

_____. É legal, é moderno. É cool! Revista Exame. São Paulo, 26.05.2004 , edição número 818.DEBORD, Guy. A Sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.GRUNIG, James – A função das relações públicas na administração e sua contribuição para a

efetividade organizacional e societal in Comunicação & Sociedade nº 39 – Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social; Universidade Metodista de São Paulo – São Bernardo do Campo: Umesp

_____ -Excellence in public relations and communication management. Hillsdale/New Jersey: Erlbaum, 1992.

HARVEY, David. A arte de lucrar: globalização, monopólio e exploração da cultura in Por uma outra comunicação – mídias, mundialização cultural e poder. Rio de Janeiro: Record, 2003

KELLNER, Douglas. A Cultura da Mídia. Bauru, SP: EDUSC, 2001.KLEIN, Naomi – Sem Logo: A Tirania das Marcas num Planeta Vendido. Rio de Janeiro: Ed. Record, 2002._____ - Marcas Globais e Poder Corporativos in Por uma Outra Comunicação, Denis de Moraes

(org.), Rio de Janeiro, Ed. Record, 2003. KUNSCH, Margarida Maria Krohling – Planejamento de relações públicas na comunicação

integrada – 4 ed. rev., atual. E ampl. – São Paulo: Summus, 2003_____. Obtendo Resultados com Relações Públicas. Editora Pioneira, 1997._____. Relações Públicas e modernidade – novos paradigmas na comunicação organizacional

– São Paulo: Summus, 1997LASCH, C. - O Mínimo Eu. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1986.

Page 40: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

Comunicação: Meios e Mensagens

Heloísa de Araújo Duarte Valente Docente associada da ECA-USP

Pós-doutora pelo Depto de Cinema, Rádio e Televisão - ECA-USP [email protected]

Resumo

O presente texto trata de questões relativas à memória musical no âmbito da cultura das mídias. Uma vez que os meios físico-tecnológicos (televisão, rádio, disco, Internet) determinam a longevidade de um determinado gênero musical ou obra, busca-se compreender como são processadas algumas estratégias (muitas extra-musicais) e alguns aspectos simbólicos que contribuem para tecer a malha sígnica que faz a canção oscilar entre memória-esquecimento. Posto que é a canção a modalidade musical mais presente no cotidiano, entende-se que esteja diretamente atrelada às formas de sensibilidade do mundo contemporâneo.Palavras-chave: canção, mídia, memória, percepção, paisagem sonora, televisão, disco.

Abstract

This text aims to discuss some questions concerning musical memory in the ambit of a mediatic culture. Since technologic support determines the longevity of a particular musical genre or piece of music, we intend to understand how some (extra musical) strategies are invented, and the symbolic aspects which could contribute to weave the sign mediations, that make pieces of music alternation between memory and oblivion processes. Because of its insistent presence in everyday sound-scape, understanding song memory and oblivion could be an useful means to understand how sensitive perceptions are produced in the contemporary world.

Key words: song, media, memory, perception, soundscape, television, record.

Resumen

Este texto pretende tratar de cuestiones relativas à a memoria musical y su vida, en el ámbito de una cultura de los medios. Si es verdad que el papel de los medios físico-tecnológicos (televisión, radio, disco, Internet) determina la longevidad de un determinado género musical o obra, este texto busca comprender como son procesadas algunas de las estrategias (incluso extra-musicales) y algunos aspectos simbólicos que contribuyen para tejer la red sígnica, responsable por las oscilaciones entre memoria y olvido. Porque la canción es la modalidad musical más presente en la vida cuotidiana, se supone que sea directamente vinculada à las formas de sensibilidad del mundo contemporáneo.

Palabras clave: canción, medios, memoria, percepción, paisaje sonoro, televisión, disco.

Da duração do reinado do hit no império da mídia (mais questões sobre memória da canção)

Of the duration of the hit in the media empire

Page 41: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

Da duração do reinado do hit no império da mídia

56C o m m u n i c a r e

1 VALENTE, Heloísa de A. D : As vozes da canção na mídia. São Paulo: Via Lettera/ Fapesp, 20032 ZUMTHOR, Paul (1997), Introdução à poesia oral São Paulo: Educ; Hucitec, 1997, entre outros3 SCHAFER, R. Murray O ouvido pensante. São Pau-lo: Edunesp, 1991; SCHAFER, R. Murray A afinação do mundo. São Paulo: Edunesp. 20014 Datada de 6 maio de 2006, foi uma das manchetes da Folha de S. Paulo. A entrevista, de duas páginas (Caderno Ilustrada, pp. E 4-5 ), dá destaque às opi-niões acerca do presidente da república: o cantautor votará em Lula, novamente. Evidentemente, não é a passagem que interessa a este texto.5 Observe-se que, via de regra, a censura recaía sobre as letras, a música passando despercebida pela polícia do pensamento

Introdução

ste texto faz parte de uma pesqui-sa que venho realizando, há longa data, sobre a canção das mídias1,

em suas várias formas de apresentação, com destaque para a produção veiculada no disco, no rádio e em programas de televisão. Considero que as formas de recepção e as qualidades das condições de escuta em local fixo (home theatre), ou em movimento, por intermédio de aparelhos portáteis, como o walkman, I-Pod são elementos importantes para a diagnosticar as mudanças de sensibilida-de e de comportamento face as diversas músicas, num dado intervalo de tempo.

Enfim, busco saber, em que medida, a cultura das mídias, em sua ca-racterística efemeridade, é capaz de criar signos longevos ou, ainda, tra-zer à tona obras que se acreditavam esquecidas. Os pressupostos teóricos partem, em grande medi-da, de Paul Zumthor2 e R. Murray Schafer3 que lançaram, respectiva-mente os conceitos de performance, movência;

paisagem sonora, esquizofonia. Este trabalho traçará considerações acerca do programa de televisão Rei Majestade, circunstanciado com uma entrevista dada pelo compositor Chico Buarque, ao jornal Folha de S. Paulo.

Situação 1: O rei da crítica

Em entrevista que causou muito alvoro-ço no meio jornalístico4, indagado se per-cebia interesse, por parte do público mais jovem, pela sua obra; se este demonstrava mudanças na recepção, Chico Buarque afirmou, claramente:

E“Mudou muita coisa. Para as pessoas mais velhas, da minha geração e de gerações mais próximas à minha, as músicas cos-tumam ter história, lastro, estão ligadas à vida de cada um ou relacionadas a momentos do país. É comum ouvir ‘isso me lembra as Diretas-Já, isso me lembra Geisel, isso me lembra o Festival da Re-cord’. Para a garotada não há nada disso. Para eles sou músico de um passado só, de um tempo só. Outro dia um jovem me disse: ‘Adoro aquela sua música’. ‘Qual?’, perguntei: ‘Com Açúcar, com Afeto’ (ri-sos). A música tem 40 anos!”

O veterano da denominada MPB no-tabilizou-se pela qualidade intrínseca de suas canções que, em grande parte, ele compõe integralmente (letra e música) ou em parcerias reconhecidas, ilustres (como Milton Nascimento, Ruy Guerra e Francis Hime). Sua carreira consolidou-se num período em que vigorava a dita-dura militar. Para serem aprovadas pela censura, as canções tinham de urdir-se com textos metafóricos – o que, em grande medida, favoreceu a composição de obras com maior elaboração formal5. Muitas vezes, a execução pública das canções atrelou-se, simbolicamente, a determinados eventos, sobretudo políticos. O forte impacto no meio so-cial, diante da (re)pressão dos anos de chumbo acabou por reforçar traços no imaginário coletivo, que se perenizaram na memória cultural.

Page 42: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

57Volume 7 - Nº 2 - 2º sem. 2007

Heloísa de Araújo Duarte Valente

6 Os grifos constam da página do Sistema Nacional de Televisão (SBT) na Internet. As outras citações acerca do programa, elaboradas pelo SBT foram encontradas no mesmo endereço

vezes, num mesmo dia: primeiramente, apresentando seu hit, com a presença de uma big band (ao fundo do palco, imóvel). Numa segunda entrada, um videoteipe com notas biográficas e singularidades da vida privada são apresentados, antecedendo a segunda prova: cantar uma canção re-cente, sucesso de outro intérprete. Antes disso, Sílvio Santos, portando seu arcaico microfone-sorvetão-casquinha do qual não consegue se desvencilhar; ainda que com os movimentos contidos, devido à fixação do aparato, preso à coluna cervical, tal como um aparelho ortopédico, anima a platéia (suas colegas de trabalho), propondo per-guntas prosaicas e até intimidadoras ao candidato. Um exemplo, ao acaso: entrevis-tando rapidamente Ademilde Fonseca, Síl-vio Santos perguntou-lhe se seria capaz de ler e memorizar o texto da nova (?) canção – sugerindo, quase diretamente, que negas-se ser uma velha esclerosada, caduca, mas uma batalhadora prafrentex... A veterana cantora confirmou, em tom aparentemente descontraído, como se já estivesse habitu-ada a injúrias dessa natureza.

Na primeira prova, que o que se ouve é a gravação que emplacou nas paradas de su-cesso, pois o cantor, pateticamente, dubla a si próprio, e a câmera, em primeiro plano, cap-ta a falta de sincronia entre os movimentos labiais, a respiração e o som dos alto-falantes. Na segunda parte da competição, o cantor é acompanhado pela big band e deixa a ouvir sua voz atual, aparentemente sem retoques. (E as mudanças ou constâncias em relação à voz do passado, às vezes, surpreendem...) Sim! É preciso lembrar que há chamadas com a voz acusmática em off, do misterioso e quase sinistro Lombardi. Essa presença invisível, que toma conta da sala, somada ao apresentador e seu microfone-sorvetão, imprime a marca indelével que caracteriza

Situação 2: os reinados de passagem

Sob o lema “Quem foi Rei nunca perde a Majestade”6 e o pretexto de uma “celebração do encontro das músicas do passado com as canções do presente”, o empresário Senior Abravanel, o Sílvio Santos, introduz, no ano de 2006, em sua emissora de televisão, um novo programa, comandado por ele mesmo, destinado a uma nova (?) fatia do mercado musical (e seus adjuntos): Rei Majestade. Levado ao ar semanalmente, em horário nobre, a nova investida do empre-sário-apresentador anuncia premiar, com a gravação de um disco compacto (CD), além de dinheiro, o vencedor da competição, que foi escolhido pelo público, através de votação pela Internet, ou por telefone (em ligações pagas). Interessei-me em conhecer o formato do programa e os critérios utilizados para definir os pré-candidatos ao “mais alto título da realeza” e as razões que embasam a escolha. Mais: que critérios estão sendo adotados para medir a juventude ou velhice de um sucesso e seu intérprete.

Antes de tudo cabe investigar: Quem são os veteranos candidatos? Que critérios precisam preencher para candidatar-se? Informa a página da Internet do programa: estão aptos a participar cantores que tive-ram seus dias de glória entre as décadas de 1950 até início da de 1980. Em cada pro-grama, “Silvio Santos traz cinco nomes; ao final, (..) o auditório escolhe qual o melhor da noite que será presenteado com uma Coroa de Prata” (grifos meus).

Os candidatos que surgem de todos os gêneros e épocas, não apresentam, aparen-temente, nenhuma similaridade, salvo a disposição para se submeter à competição: Ademilde Fonseca, Lady Zu, Demônios da Garoa, Luiz Caldas, Genival Lacerda, Márcio Greyck ou Francisco Petrônio encontram-se num mesmo patamar de comparação, a despeito de todas as suas diferenças artísticas e de público– que não são poucas. Aparecem em cena duas

Page 43: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

Da duração do reinado do hit no império da mídia

58C o m m u n i c a r e

7 Ressalte-se que se trata de um agrupamento musical de que já participaram vários músicos; ocorre uma certa rotatividade na sua formação, diferentemente dos cantores solistas.8 Conhecido popularmente como “A voz de veludo”, no rádio, entre as décadas de 1960 a 1980, Petrônio também foi o mestre de cerimônias e apresentador do programa “Festa Baile”, transmitido pela Rede Cultura de Televisão, na década de 1980. Cantando o seu eterno “Baile da Saudade”, teve sua imagem atrelada ao pú-blico idoso. Segundo divulgação da imprensa, o cantor Agnaldo Timóteo cantou, no velório, a canção “Quem sabe”, de Carlos Gomes e Bittencourt Sampaio. Não pude obter informações detalhadas a respeito da repercussão da morte de Petrônio no programa “Rei Majestade”. Entre-tanto, na página pela Internet não há nenhuma alteração, além do breve currículo e as fotografias..

os programas do empresário. Cria-se assim, uma espécie de continuum entre Rei Majes-tade e todos os outros programas de calouros engendrados por Abravanel. Estabelece-se, curiosamente, uma certa familiaridade e Lombardi é menos fantasma que os concor-rentes soterrados pelo esquecimento.

Sobre a realeza can-tante e as paradas de sucesso: de barõezi-nhos a imperadores

Para os estudos sociológicos ou co-municacionais, a análise de um programa como esse, pode ser objeto de estudo sério (audiência, sociabilidade, etc.), mas no

domínio dos estudos mu-sicais, a tarefa é menos fre-qüente, pois parece tratar-se de algo corriqueiro e desim-portante. Os raros estudos objetivam, geralmente, a apreensão da composição musical, em si, e suas formas paródicas e parafrásicas. No entanto, nenhuma dessas abordagens nos interessam aqui. Antes disso, busca-se encontrar novos indícios que permitam compreender os determinantes que fazem

com que certas peças musicais e seus intérpretes permaneçam vivos na mídia, ou não. Passemos, assim, a algumas com-parações necessárias.

No primeiro caso, temos um depoi-mento de Chico Buarque, um dos nomes mais sólidos no universo da música bra-sileira (popular). Respeitado pelos seus pares, reverenciado pela crítica, mantém sua produção artística desde seu sucesso de juventude, A banda. Permanece pre-sente na mídia, mesmo quando não está compondo; é procurado para entrevistas, escreve livros, tem suas canções gravadas por outros intérpretes... Sem correr atrás do circuito das cele(b)ridades, acaba sendo

Muitas vezes, a execução pública das canções atre-lou-se, simbolicamente, a determinados eventos, sobretudo políticos

absorvido por aquele mundo de banalida-des, que procura, com isso, realimentar essa máquina de baixa digestão. Sob o aspecto musical, Chico Buarque tornou-se um clássico, no domínio da denominada canção popular. Sua obra mais represen-tativa data de algumas décadas e, não obstante, o sucesso mantém-se, como se se tratasse de obra recente.

No segundo caso, temos uma constela-ção de astros de pouca luminosidade, ou de veteranos que não conseguiram orientar sua carreira de maneira a sustentá-la com o surgimento de novas modas e modismos. É o caso da já citada Ademilde Fonseca, Fran-cisco Petrônio ou até os Demônios da Garoa7. Francisco Petrônio8, falecido em janeiro de 2007, aos 83 anos, manteve sua agenda de apresentações até dezembro de 2006. Suas apresentações voltavam-se, geralmente, para um público que compartilhou sua juventude com a dele. São, portanto, pessoas que, a partir do repertório, revivem os verdes anos, através de memórias – musicais, neste caso. Petrônio soube criar um nicho no mercado e dele sobreviveu, com bastante vitalidade, para os seus mais de oitenta anos. Ademilde Fonseca mostrou-se prafrentex: Disse, na breve entrevista a Sílvio Santos, que estava aberta para as novidades. Como prova disso, cantou, na prova com voz ao vivo, É o amor, insistente hit do repertório sertanejo.

Page 44: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

59Volume 7 - Nº 2 - 2º sem. 2007

Heloísa de Araújo Duarte Valente

lações entre aceitação e recusa; memória e esquecimento apenas aos fatores aqui mencionados. Há implicações de natureza diversas e lançadas em vários vetores, que vão desde o processo de circulação nas majors (a canção, aqui, tratada como mer-cadoria), o pertencimento ou não a um con-junto de bens simbólicos, as implicações a imperativos do (in)consciente coletivo, imposição de ideologias, etc.

O que não se pode deixar de lembrar, em momento algum é que, em grande me-dida, as oscilações a que se refere Chico Buarque existem em virtude de uma falta de educação da escuta, da sensibilidade audi-tiva e musical. O peso dessa falta de apren-dizagem traz conseqüências profundas: é o público que não passou pela educação musical (em casa, na escola, na comuni-dade) que vai julgar e decidir quem será o Rei Majestade. Quais serão seus critérios? O que mais agrada, o que tem maior empatia com aquele auditório ao vivo, via satélite. Aceitam-se mais rapidamente a repetição, a rima fácil, o ritmo mais propício para a dança se possível com alguma mensagem maliciosa, mais ou menos descarada. Muito provavelmente cairá Inezita Barroso e as-cenderá Luiz Caldas ou Eduardo Araújo... As colegas de trabalho de Silvio Santos votam em massa em Marcos Roberto, ga-rantindo-lhe a coroa de prata da semana, enquanto a veterana Angela Maria tenta disfarçar o desagrado por não ter vencido. Para seu consolo, é mais votada na Internet como candidata à coroa de ouro com a qual, poderá gravar um disco...

Os coroas sem reino, mas com rei

No vaivém da música midiática, não se pode esquecer, no império da mídia há uma oscilação paralela ao hit parade, que faz circular, além das efemeridades descartáveis, os clássicos-clássicos –standards, em outro idioma – as canções que todo intérprete quer ter no seu repertório. Mas também alguns

No subgrupo de estrelas pálidas, temos os intérpretes de (praticamente) um só su-cesso: Márcio Greyck, Cláudia, Joelma, Luiz Caldas e alguns outros. Conseguiram levar às paradas de sucesso, às vezes traduções do repertório internacional, como canções-tema de filmes, sucessos na Broadway (Não chores por mim, Argentina, por Cláudia), tema de novela (Tieta, por Luiz Caldas). Nesses casos, ocorrem uma circunstâncias que reforçam a presença de tais obras na mídia. Excluída a reiteração insistente, o intérprete naufraga no esquecimento, junta-mente com o fim do sucesso do seu hit.

Porque esses reinados e impérios interessam ao estudo da música

Existem fatores subsidiários que contri-buem para o sucesso ou insucesso de uma canção. Basta lembrar que os investimentos da gravadora, por ocasião do lançamento de discos e a promoção de shows têm peso considerável para a reiteração do artista, que é, ele próprio, quase uma marca co-mercial. No entanto, não se pode negar que algumas variáveis dizem respeito à própria criação de modas e sua sustenta-ção. Por que gêneros como samba-canção e o bolero tiveram forte presença durante décadas e voltam com força depois de um certo ostracismo? Por que a lambada não se estendeu posteriormente ao governo Sarney? Verifica-se, de fato, uma oscilação dos gostos. Vale reproduzir o depoimento de Buarque, na entrevista já citada:

“Nos anos 80, em determinado momento que uma parte expressiva da mídia flertou com muito entusiasmo com uma certa idéia de internacionalização da cultura e de desbunde com o mercado, parecia que a música da gente já era. Nacional, só rock e olhe lá. Eu fui considerado completamente ultrapassado. Depois voltou. Daqui a pou-co pode ser que não interesse mais”.

E a que se devem essas variações tão fortes? Seria ingênuo atribuir estas osci-

Page 45: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

Da duração do reinado do hit no império da mídia

60C o m m u n i c a r e

esquecidos que fizeram algum sucesso no passado fazem suas aparições: ressurgem, estrategicamente, através de operações bem sucedidas de seus empresários, ora denominados produtores. Alguns experi-mentam candidatar-se à coroa de ouro, no Rei Majestade, ou outras aventuras de maior risco artístico e moral. Outros reaparecem quando sua marca de sucesso é regravada por um ídolo do momento. Assim é que Nilson é relembrado com Without you, porque a superpop Mariah Carey regrava o sucesso; Simply Red rememora The Stylistics mimeti-zando a performance do grupo em You make me feel brand new... Um outro exemplo de bastante repercussão, no país, foi a regravação de Sozinho, por Caetano Veloso. Composição

de Peninha, foi bombardeada pela mídia durante muito tempo, sobretudo por constar da trilha sonora de uma teleno-vela. São os anos da década de 1970 que estão de volta, como memória dos quarentões do começo do século XXI e como novidade em formato MP3, a se capturar na rede.

Parece relevante observar que alguns intérpretes, a prin-cípio tidos como modismo sem maiores conseqüências acabaram se tornando clássi-

cos. Refiro-me aos seniores que se recusam a envelhecer, a despeito da sua feição enrugada, poucos encanecidos cabelos e seus olhos empalidecidos. É o caso dos ainda rebolantes Rolling Stones, do vigoroso Roger Waters ou mesmo outros não tão idosos, mas já na idade madura, como o U2: em começos de 2006, os Stones foram capazes de tomar a praia de Copacabana, com a maior platéia já registrada; o politizado U2, sobretudo na figura do líder Bono Vox, encheu o estádio do Morumbi, em São Paulo, assim como Roger Waters, poucos meses mais tarde.

Ao contrário do público de Rei Majesta-de ou dos informados fãs de Chico Buarque, o público de artistas como aqueles tem uma

Excluída a reiteração insistente, o intérprete naufraga no esquecimen-to, juntamente com o fim do sucesso do seu hit

outra origem: é o velho rock-and-roll que não aceita envelhecer, assim como seus intérpretes e fãs. Isso parece verdadeiro, à medida que a audiência de um show de rock reúne várias gerações de uma mesma família, que comparece em massa: é o avô, o pai e o neto, o gosto sendo passado sempre de pai para filho. Os reis do rock terão seus súditos enquanto o rock continuar repre-sentando aquilo que sempre representou: o ruído da juventude. E, se é verdade que há várias vertentes no mundo do rock – do mais ingênuo, ao mais contestatório, pas-sando pelo mais criativo musicalmente - um dado comum a todos parece ser o desejo de manter-se na paisagem sonora como novida-de, como ato de rebeldia e anti-conformis-mo. Talvez esta seja uma, dentre as razões que fazem o coroa não se sentir e, mais que isso, não se admitir como tal, ainda que sua aparência física e seu organismo dêem todas as mostras de decadência.

Velhice, aos vinte?

O mundo pós-globalização parece ter trazido uma curiosa inversão de valores: se, de um lado, o homem passou a viver mais e conseguiu, com razoável sucesso, combater os efeitos do envelhecimento físico, de outra parte, o mundo no qual vive parece envelhecer rapidamente. Sig-nos de efemeridade, precisam de reforços memoriais para que permaneçam no mo-dus vivendi. A mídia jorra signos que se esparramam à beira da incomunicação.

O turbilhão de dados que por ela escoa, não chega a transformar-se em informação, em signos percebidos, processados pela mente que interpreta. O tempo de circulação dos fatos da mídia não coincide com o tempo da apreensão sensível (ou, pelo menos, este nível ainda não passou por um processo de adaptação, ao que parece...). O que circula na mídia é altamente volátil, dificilmente se sustenta por longo tempo. Essa volatilidade também ocorrerá no universo da música representado, sobretudo, pela canção – e

Page 46: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

61Volume 7 - Nº 2 - 2º sem. 2007

Heloísa de Araújo Duarte Valente

9 Ressalte-se que toda as linguagens da mídia operam em rede: o lançamento de um disco é noticiado na imprensa, transforma-se em entrevista na televisão. Lança-se uma biografia escrita ou cinematográfica e, assim, a informação se realimenta. No caso de Roberto Carlos, observe-se o episódio em torno do livro “Roberto Carlos em Detalhes” (Editora Pla-neta, 2006), escrito pelo Prof. Paulo César Araújo: inicialmente publicado com o aval do biografado, foi posteriormente rechaçado e banido, tendo a venda e distribuição suspensas pela justiça, sob a alegação de invasão de privacidade...

seus intérpretes. Roberto Carlos conseguiu manter-se como Roberto Carlos graças a um lastro cultural que pleiteia sua presença, mas também pelos mecanismos de rememoração na mídia9. Gardel, Hendrix, Elvis e Lennon fazem, talvez, mais sucesso agora do que na época em que estavam vivos...

De outra parte, fala-se, já, nos idos anos oitenta com saudosismo. E só se passaram vinte anos! Sinais perturbadores... A mídia musical esgotou-se e busca se reinventar a partir de um passado recente, não ainda revisitado? A rotina do século XXI e a sobreposição dos diversos tempos da vida cotidiana fazem crer que 20 anos é tempo em demasia? Mudaram-se as referências entre as representações de passado, pre-sente e futuro?

Não posso terminar com frase de efeito ou conclusões. No momento em que se vive é difícil obter um razoável distanciamento que propicie uma análise o mais isenta possível (se é que isso exis-te), uma vez que o próprio pesquisador é

sujeito dessa história, em curso. Apenas, a única provável resposta seja que as incertezas tendem a aumentar, à medida que o universo midiático se congestiona de signos. Quanto a iniciativas como o Rei Majestade, podemos constatar que urdem de modo extremamente forjado, tramas incompatíveis e descontínuas. Talvez o que reste dessa empreitada seja apenas a estratégia de marketing que o hábil Sílvio Santos soube aplicar com boa desenvoltura.

Referências bibliográficas

SCHAFER, R. Murray O ouvido pensante. São Paulo: Edunesp, 1991.______. A afinação do mundo. São Paulo: Edunesp. 2001.ZUMTHOR, Paul (1997), Introdução à poesia oral São Paulo: Educ; Hucitec, 1997.VALENTE, Heloísa de A. D: As vozes da canção na mídia. São Paulo: Via Lettera/ Fapesp, 2003.______ (2005): Escritura e nomadismo. São Paulo: Ateliê Editorial, 2005.

Page 47: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

Da duração do reinado do hit no império da mídia

62C o m m u n i c a r e

Page 48: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

Comunicação: Meios e Mensagens

Lucília Maria Sousa RomãoProfessora Doutora da Faculdade de Filosofia,

Ciências e Letras de Ribeirão Preto - [email protected]

Resumo

Nesse artigo, buscamos discutir e interpretar, à luz da Análise do Discurso de filiação francesa, a obra “As intermitências da morte” de José Saramago, que, dentre tantas possibilidades de leitura, narra a presença da mídia e da voz dela em uma trama densa e metafórica.

Palavras-chave: mídia, interpretação, Saramago, ideologia.

Abstract

In that article, we looked for to discuss and to interpret, to the light of the Analysis of the Speech of French filiation, the work “The intermittences of death” of José Saramago, that, among so many reading possibilities, he/she narrates the presence of the media and of his/her voice in a dense and metaphorical plot.

Key words: media, interpretation, Saramago, ideology.

Resumen

En este artículo, buscamos discutir e interpretar, a la luz del Análisis del Discurso de filiación francesa, la obra “As intermi-tências da morte” de José Saramago, que, entre tantas posibilidades de lectura, narra la presencia de los medios y de su voz en una trama densa y metafórica.

Palabras clave: medios, interpretación, Saramago, ideología.

O dizer sobre a mídia na ficção de Saramago1

Telling about media in Saramago´s fiction

Page 49: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

O dizer sobre a mídia na ficção de Saramago

64C o m m u n i c a r e

1 Esse trabalho faz parte do Projeto Individual de pes-quisa FAPESP, Processo 04/14995-5.2 SARAMAGO, J. As intermitências da morte, 2005, São Paulo: Companhia das Letras3 PÊCHEUX, M. O discurso estrutura ou acontecimento, 1997, Trad Eni P. Orlandi. Campinas: Pontes.4 SARAMAGO, J. As intermitências da morte, 2005, São Paulo: Companhia das Letras, p. 13/145 Idem, 103

esse trabalho, debruçaremo-nos sobre a obra “As inter-mitências da morte”2, de José

Saramago, interpretando, à luz da Análise do Discurso francesa, diversas passagens narrativas, referências e considerações sobre a presença, ou seja, sobre o papel e o discurso da mídia em relação ao inusitado fato deflagrador do enredo: a morte parou de matar. Sim, certo dia, a morte deixa de matar, intervala o seu trabalho de destinar corpos ao fim e deixa os viventes de certo país sem entender o que está em curso. Assim, durante uma semana, cotidiano, vida, doença, família, expectativa, Esta-do, segurança, saudade, futuro e outros

significantes candentes à atenção humana passam a ser ressignificados pela ausência da mulher-ca-veira. A voz dos meios de comunicação de massa dá-se desde o primeiro momento em que o acon-tecimento discursivo3 do não-morrer é descoberto, colocando em funciona-mento a forte presença da mídia na sociedade contemporânea.“Em poucos minutos, já

estavam na rua, dezenas de repórteres de investigação fazendo perguntas a todo o bicho-careta que lhes aparecesse pela frente, ao mesmo tempo que nas fervi-lhantes redacções as baterias de telefones se agitavam e vibravam em idênticos fre-nesis indagadores. Fizeram-se chamadas para os hospitais, para a cruz vermelha, para a morgue, para as agências funerá-rias, para as polícias, para todas elas, com compreensível exclusão da secreta, mas as respostas iam dar às mesmas lacônica palavras. Não há mortos.”4

“O telefone tocou, era o ministro do in-terior, Senhor primeiro-ministro, estou a receber chamadas de todos os jornais, disse, exigem que lhes sejam fornecidas cópias da carta que acaba de ser lida na televisão em nome da morte.”5

N As seqüências discursivas apresentam, na materialidade lingüística, indícios de uma tensa movimentação em busca de informações, verdadeira caça a fontes diversas que coloca em funcionamento o imaginário da onipotência (poder estar em contato com o mundo todo para saber sobre a morte) e onipresença (poder estar com a voz espalhada por toda parte para relatar o que se descobriu sobre a morte, o que aconteceu com ela, ou até mesmo o que se supõe ter ocorrido): “Fizeram-se chamadas para os hospitais, para a cruz vermelha, para a morgue, para as agências funerárias, para as polícias, para todas elas”. A pretensão da mídia de escutar todas as vozes, de checar todas as fontes, de consultar todos os envolvidos e de ter rastreado todos os vestígios do fato com-bina-se com a possibilidade de circulação instantânea dos relatos, transmitidos por um forte aparato tecnológico, ou seja, pelas “baterias de telefones” que “se agitavam e vibravam em idênticos frenesis indagado-res”. “Em poucos minutos” inscreve discur-sivamente um dado importante da ordem social, a saber, a noção de tempo acelerado, presentificado como fluxo contínuo, como gerúndio eterno, seja nas “ruas, hospitais, cruz vermelha, redacçãoes” etc.

As “dezenas de repórteres de investi-gação fazendo perguntas a todo o bicho-careta que lhes aparecesse pela frente” fazem a conexão das vozes que circulam no espaço público, lócus de observação e fiscalização da realidade, e daquelas que se encontram em um lugar mais reserva-do, a saber, a redação do jornal, lugar das várias vozes entremeadas em um só dizer.

Page 50: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

65Volume 7 - Nº 2 - 2º sem. 2007

Lucília Maria Sousa Romão

6 MARIANI, B. O PCB e a imprensa, 1998, Campinas: Editora da Unicamp e Editora Revan, p. 667 SARAMAGO, J. As intermitências da morte, 2005, São Paulo: Companhia das Letras, p. 98/998 Idem, 98/99

aproximação e espaço compartilhado, con-forme veremos no trecho abaixo:

“Às vinte e uma horas exactas surgiu, acompanhado pela sua inconfundível música de fundo, o fulgurante arranque do telejornal , uma variada e velocíssima seqü-ência de imagens com as quais se pretendia convencer o telespectador de que aquela televisão, ao seu serviço as vinte e quatro horas do dia, estava, como antigamente se dizia da divindade, em toda a parte e de toda a parte mandava notícias.”8

O poder mágico da mídia, onipotência e onipresença, corporifica-se na formu-lação “como antigamente se dizia da di-vindade” e combina-se com a voracidade por dizer, com a necessidade de produzir noticiários e fazê-los circular vinte e quatro horas por dia, ainda que seja “investigação fazendo perguntas a todo o bicho-careta que lhes aparecesse pela frente”. Melhor dizendo, até mesmo o dizer de um bicho-careta interessa à gula midiática, o que põe em funcionamento o interesse pelo exótico, estranho, exagerado, fora do co-mum que hoje povo grande parte dos temas diletos dos noticiários. Desenha-se, nos entre-meios da narrativa sobre a aposen-tadoria da momentânea morte, o discurso e a imagem que a mídia atribui e traça para si mesma, a saber, a porta-voz dos fatos da realidade ou, para melhor nitidez empregar nesse auto-retrato, alardeando-se como a própria realidade desprovida de sombra de dúvidas ou de borrões de interesse, quais sejam.

Retomamos o conceito de ideologia, proposto pela teoria do discurso, pontu-ando que essa voz, que ordena o silêncio e surge como oráculo da verdade, pretende “convencer o telespectador de que aquela televisão, ao seu serviço as vinte e quatro

Esses dois locais interligam-se, fazendo chamadas diversas (O telefone tocou, era o ministro do interior, Senhor primeiro-mi-nistro, estou a receber chamadas de todos os jornais), reclamando personalidades a depoimentar, creditando autoridade para suas mercadorias-informações, atribuindo consistência e confiabilidade aos seus di-zeres, enfim, apagando a não-neutralidade dos relatos jornalísticos e a posição que o discurso jornalístico encerra. Há, ainda, o efeito de a mídia ter um poder já constituí-do em si mesma, o que a creditaria a cobrar qualquer informação de qualquer órgão ou pessoa a qualquer momento, exigir documentos e colher dados até mesma da morte: “exigem que lhes sejam fornecidas cópias da carta que acaba de ser lida na televisão em nome da morte”.

Os recortes acima marcam a inscri-ção sócio-histórica de alguns sentidos da comunicação global, a saber, velocidade, instantaneidade na divulgação de dados, cobertura “completa” dos fatos e desen-volvimento tecnológico dos equipamentos de transmissão (as baterias de telefones, telefones, televisão). Também fazem falar um modo de circulação dos discursos, nesse caso, promovendo o que Mariani6 chama de “circulação de consensos de sentido. Isso perpassa os jornais como um todo (...) e orga-niza uma direção na produção dos sentidos políticos.”. Sentidos sobre o político, que serão observados no recorte abaixo:

“(...) limitou-se a pedir os dois documentos para serem passados ao teleponto, esse meritório aparelho que permite criar a presunçosa ilusão de que o comunicante se está a dirigir directa e unicamente a cada uma das pessoas que o escutam..”7

No recorte acima, aparece uma outra marca da tecnologia (teleponto) capaz de instalar a ilusão da realidade pura e ao vivo dos acontecimentos e a literalidade do sen-tido único, envolvendo a voz da televisão, o dizer do apresentador e o espectador de maneira instantânea, desfronteirizada sem distinção, promovendo efeitos de verdade,

Page 51: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

O dizer sobre a mídia na ficção de Saramago

66C o m m u n i c a r e

em sintonia com a verdade do mundo, e do seu interlocutor como não-conhecedor e, por conseqüência, aprendiz e absorvente da primeira.

O verbo mandar (mandar notícias) tem como implícito o sentido de que a mídia está perto do fato e o seu interlocutor, longe, tão longe, que precisa receber no-tícias e informações. Os sentidos disper-sos, que poderiam vir-a-ser, precisam ser condensados, ordenados, disciplinados e legitimados, daí a mídia mandar notícias e também mandar na escolha das mesmas. A polissemia do “mandar” funciona de modo a tocar a questão do poder, isto é, há uma voz que manda, ordena, exige e “escolhe” o que deve e pode circular.

“Os jornais, nem seria necessário dizê-lo, tiveram uma procura enorme, maior ainda do que quando pareceu que se tinha deixado de morrer (...) estas pági-nas convulsas, agitadas, manchadas de títulos exclamativos e apocalípticos que se podem dobrar, guardar no bolso e levar para reler em casa com todo o vagar e de que nos contentaremos com respigar aqui estes poucos mas expressivos exemplos, Depois Do Paraíso O Inferno, A Morte Dirige O Baile, Imortais Por Pouco Tempo, Outra Vez Condenados À Morte, Xeque-Mate, Aviso Prévio A Partir De Agora, Sem Apelo e Com Agravo, Um Papel De Cor Violeta, Sessenta E Dois Mil Mortos Em Menos De Um Segundo, A Morte Ataca À Meia-Noite, Ninguém Foge Ao Seu Desti-no, Sair Do Sonho Para Cair No Pesadelo, Regresso À Normalidade, Que Fizemos Nós Para Merecer Isto, et cetera, et cetera. Todos os jornais, sem exceção, publica-vam na primeira página o manuscrito da morte, mas um deles, para tornar mais fácil a leitura, reproduziu o texto em letra de forma corpo catorze dentro de uma cai-xa, corrigiu-lhe a pontuação e a sintaxe, acertou-lhe as conjugações verbais, pôs as maiúsculas onde faltavam, sem esquecer a assinatura final, que passou de morte a Morte, uma diferença inapreciável ao ou-vido, mais que irá provocar nesse mesmo dia um indignado protesto da autora da missiva, também por escrito e no mesmo papel de cor violeta. Segundo a opinião autorizada de um gramático consultado

horas do dia”, reserva-lhe a melhor parte dos acontecimentos, o ângulo mais preciso, a autoridade mais gabaritada para opinar, o especialista mais confiável no assunto, o depoimento mais emocionante etc, fazendo de conta que tudo se encontra enquadrado na tela ou na página impressa como registro evidente da realidade. Vale relembrar que não estamos diante de uma escolha livre ou ingênua do sujeito em relação aos sentidos que “escolhe” e enuncia, mas do modo como a ideologia funciona, promovendo a compreensível exclusão de certos sen-tidos, naturalizando outros, indicando as trilhas por onde o sujeito tem apoio e solo da memória discursiva para pisar o sentido dominante, buscando conter informações

indesejáveis, equívocos, im-precisões, furos, enfim, bus-cando esquecer e fazer apagar as sombras das palavras.

Nesse horizonte, à mídia seria possível patrulhar a realidade vinte e quatro horas por dia com agilidade invejável, documentando os movimentos dela, remetendo notícias frescas ao outro, constituindo-se como um lugar de vigilância inter-minável, capaz de dizer de/sobre toda parte, todos

os temas, enfim, tudo, o que faz falar uma potência sem limites. Vale aqui destacar que a formulação “em toda a parte e de toda a parte mandava notícias.” funcio-na discursivamente de modo a sabotar a distância física entre a voz da mídia e a voz do seu interlocutor, fundindo os dois na ilusão de uma simbiose e, ao mesmo tempo, instala uma outra ordem, a de uma distância, isto é, a assimetria de poder entre as duas vozes em jogo, visto que a segunda é apenas receptora da primeira. Como já dissemos, a ideologia é o meca-nismo que faz funcionar movimentam-se aqui as representações imaginárias: da mídia como geradora de relatos fidedignos

O poder mágico da mídia, onipotência e onipresença, combina-se com a voracidade por dizer, com a necessidade de produzir noticiários

Page 52: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

67Volume 7 - Nº 2 - 2º sem. 2007

Lucília Maria Sousa Romão

9 SARAMAGO, J. As intermitências da morte, 2005, São Paulo: Companhia das Letras, p. 110/111

10 ORLANDI, E. As formas do silêncio no movimento dos sentidos, 1997, Campinas: Editora da UNICAMP

11 PÊCHEUX, M. O discurso estrutura ou acontecimento, 1997, Trad Eni P. Orlandi. Campinas: Pontes.

A Morte Dirige O Baile, Imortais Por Pouco Tempo, Outra Vez Condenados À Morte, Xeque-Mate, Aviso Prévio A Partir De Agora, Sem Apelo e Com Agravo, Um Papel De Cor Violeta, Sessenta E Dois Mil Mortos Em Menos De Um Segundo, A Mor-te Ataca À Meia-Noite, Ninguém Foge Ao Seu Destino, Sair Do Sonho Para Cair No Pesadelo, Regresso À Normalidade, Que Fizemos Nós Para Merecer Isto, et cetera, et cetera.” instalam a polissemia e o jogo dos sentidos sempre outros – modos de dizer imprevisíveis para um relato jorna-lístico “ao pé da letra” e do fato – e com-binam-se com a história narrada visto que, depois que a mulher-caveira abandonou os mortais, agora transferidos à condição de imortais, inúmeros problemas sacudi-ram as instituições e a vida social. Todas essas manchetes criativas e provocantes convergem para duas sinalizações teóricas muito caras à Análise do Discurso: o dizer é uma possibilidade dentre várias, pois há, na essência da linguagem, vários modos de formular e, escolhendo um, o sujeito silencia os demais10, assim, o sujeito “es-quece” que outros sentidos são possíveis, “escolhendo” apenas um, o que supõe ser mais evidente, adequado e exato. Ao esquecer os outros sentidos e dizer de um único modo, o sujeito é levado à ilusão de que tudo disse, de que o seu relato encerra plenamente o registro do fato e de que há uma coincidência entre o que diz e o que pensa, ilusões de literalidade e vidência, que Pêcheux11 cunhou de esquecimentos 1 e 2, efeitos da ideologia.

A interpelação ideológica leva o su-jeito do discurso jornalístico a inscrever sentidos de completude, inteireza, preen-chimento e clareza em relação aos fatos da

pelo jornal, a morte, simplesmente, não dominava nem sequer os primeiros rudi-mentos da arte de escrever.”9

A “procura enorme” pelos jornais mar-ca como o movimento das representações imaginárias de mídia e sujeito-leitor, já definidas anteriormente, é pontuado pela voracidade tanto de dar relatos quanto de recebê-los, e como isso é de tal modo convincente, que garante uma suposta aproximação, identidade e cumplicidade entre ambas, “maior ainda do que quando pareceu que se tinha deixado de morrer”. Melhor dizendo, o relato midiático é mais comentado que o próprio fato em si. As páginas impressas (‘páginas convulsas, agi-tadas, manchadas de títulos exclamativos e apocalípticos’), instalam a discursividade do presente-contínuo documentado, em que a tagarelice midiática é ela própria o fato. A possibilidade de ter o fato nas mãos, de “guardar no bolso e levar para reler em casa com todo o vagar” parece completar a moldura desse de modo de funcionamento, de modo a expor excessivas formulações de impacto com o apelo de, com o efeito de urgência, seduzir o seu interlocutor.

Nesse recorte, a exposição de diferen-tes manchetes materializa os vários modos de formular um relato sobre “as intermi-tências da morte” e de recortar a memória (interdiscurso), possibilitando maneiras diversas de inscrever sentidos para e de ler o mesmo fato, de enovelar-se na teia na lin-guagem e de dar formas, também plurais, aos gestos de leitura. Esses exemplos de manchetes criativas fazem falar sentidos possíveis para um sujeito na posição de poeta-ourives da prosa, mas certamente não seriam aceitos nem publicados dessa forma por um sujeito-editor, visto que, pelo muito de polissemia que encerram, seriam tidos como pouco ou nada afeitos às noções de exatidão, objetividade, refe-rencialidade etc, que, em geral, supõem instalar a voz midiática e a voz daqueles que se enredam nas tramas dela. As for-mulações “Depois Do Paraíso O Inferno,

Page 53: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

O dizer sobre a mídia na ficção de Saramago

68C o m m u n i c a r e

12 ORLANDI, E. Análise de Discurso princípios e procedi-mentos, 2003, 5ª ed. Campinas: Pontes Editores.

instalar sentidos de ordem e normatização no próprio corpo da língua, marcado por apenas uma fôrma aceita para circular socialmente, dominado em suas irregula-ridades, tido como controle para, assim, inscrever apenas um modo “correto” e uma forma “aceita” de dizer. A grafia, a pontua-ção, a estrutura da carta, o vocabulário e as frases são patrulhados como instâncias em que o uso da linguagem e o sentido precisam ser contidos e, mais, carecem de obediência a um roteiro de regras previamente aceito (que são os manuais de redação e estilo senão uma outra face disciplinadora desse mecanismo?). Poderíamos perguntar: aceito por quem? Em relação a que outro modo de escrever? Em relação a qual outro modo de escrever e de usar socialmente a língua? Com que autoridade certo jornal altera o nome da morte para torná-lo escrito com letra maiúscula? O modo como funciona a revisão da língua faz falar a metáfora da forma como a mídia autoretrata-se, a saber, como o poder de ditar, mandar, constituir, formular e fazer circular relatos.

“Segundo a opinião autorizada de um gramático consultado pelo jornal, a morte, simplesmente, não dominava nem sequer os primeiros rudimentos da arte de escrever.” é a certificação do saber consultado pelo jor-nal, disposto aqui como dizer de autoridade, legitimado como referência de um especia-lista que se gabarita como conhecedor da língua melhor que a própria morte, o que, no limite, provoca riso: como um gramático se arvora a saber mais do que aquela que lhe dá cabo à vida e, assim, enterra o uso que ele mesmo faz da própria língua e vida? Assim, circula em consonância com o imaginário exposto até aqui, uma voz com conheci-mento bastante valorizado, que amplifica verdade única, modo exato de relatar e explicar o mundo, forma correta de escrever e potência que supera o próprio fim.

realidade, visando a dizer tudo sobre eles, o que reforça, como já vimos, a imagem que a mídia tem de si e do seu interlocutor. Nesse funcionamento, observamos a ritu-alização das palavras tidas como as mais claras “para tornar mais fácil a leitura”, a legitimação do efeito parafrástico12 ao invés da polissemia, visto que “Todos os jornais, sem exceção, publicavam na pri-meira página o manuscrito da morte”.

Já que a publicação da missiva é feita por todos os jornais, precisamos interpretar o pronome “todos”. Discursivamente essa marca põe em funcionamento os efeitos de mesmice, repetição de relatos que circulam sem muita alteração em vários jornais. Temos aqui uma inscrição social do modo

como a comunicação global instala sentidos sobre o mun-do, em geral, buscando ima-gens e depoimentos em fonte como as agências nacionais e internacionais, que des-carregam os mesmos dados para “todos”, o que gera certa pausterização dos mesmos sentidos, visto que apenas uma zona do interdiscurso é recortada. Em geral, esse mesmo copiado e repetido promove o reforço de apenas um modo de relatar, natura-

liza uma única região de sentidos que passa a ser aceita como “consenso”. Ao fazer essa leitura, estamos interpretando o modo de a mídia instalar uma suposta ordem, ou seja, estruturando, pela via da linguagem, uma única maneira de organizar e dizer os fatos do mundo. Ordem que se desloca do fazer midiático para o seu objeto (a realidade) e depois para a linguagem que deverá ser em-pregada para documentá-lo. “Reproduziu o texto em letra de forma corpo catorze dentro de uma caixa, corrigiu-lhe a pontuação e a sintaxe, acertou-lhe as conjugações verbais, pôs as maiúsculas onde faltavam, sem esquecer a assinatura final, que passou de morte a Morte” materializa esse modo de

Com que autoridade certo jornal altera o nome da morte para torná-lo escrito com letra maiúscula?

Page 54: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

69Volume 7 - Nº 2 - 2º sem. 2007

Lucília Maria Sousa Romão

13 SARAMAGO, J. As intermitências da morte, 2005, São Paulo: Companhia das Letras, p. 12114 Idem, p. 1715 ROMÃO, L. M. S. & PACÍFICO, S. M. R. Da notícia ao discurso jornalístico: a tentativa de silenciar a heteroge-neidade. Revista Verso e Reverso - Revista de Comunicação da Unisinus, Ano XX, n. 44, 2006.

“Como os jornais não se esqueceriam de es-crever, virava-se uma página da história.”13

A seqüência “Como os jornais não se esqueceriam de escrever”, lida pelo seu avesso “como os jornais insistem em lembrar”, faz falar a obstinação com que a mídia afirma o seu papel em permanecer alerta para registrar de maneira tida como ininterrupta os fatos da realidade. Assim, o sujeito marca que o discurso jornalístico promove o não-esquecimento do seu valor e da sua voz, narrando-se a si mesmo como necessário e imprescindível para a com-preensão, normatização e estabilização de certos sentidos. Além disso, também se engendra, no dizer jornalístico, um efeito de urgências: não esquecer, repetir sempre, insistir para que algo continue a falar, tagarelar o mais que pode, dizer sobre tudo o tempo todo e, por fim, afastar a possibilidade de que a falta apareça, que o não-dito seja aventado, de que o que ficou fora signifique tanto quanto o que foi escrito. Enfim, de que as sombras das palavras possam ser lembradas em sua espessura significante.

“Teria sido, sem dúvida, uma boa e honesta manchete para o jornal do dia seguinte, mas o diretor, após consultar com o seu redator-chefe, considerou desaconselhável, também do ponto de vista empresarial, lançar esse balde de água gelada sobre o entusiasmo popular, Ponha-lhe o mesmo de sempre, Ano Novo, Vida Nova, disse.”14

Nesse fragmento, encontramos pistas do processo de edição da notícia e também de constituição do discurso jornalístico, em que várias vozes são colocadas em uma linha de montagem, sendo o editor aquela voz que está autorizada a promover recortes e supressões, ou seja, aquela que autoriza ou não o dito final. Fala mais alto do que “uma boa e honesta manchete para o jornal do dia seguinte” o aval da voz do editor, em geral, filtro que leva em conta o “ponto de vista empresarial”, ou seja, os interesses dos conglomerados de empresas

do setor e as regiões de poder que preci-sam ser preservados. Essa voz mediadora também silencia as zonas de sentidos indesejáveis, autorizando palavras e ima-gens, desaconselhando certa publicação, favorecendo a exposição de outra, enfim, entretecendo todas as vozes coletadas no espaço público – que fica fora da redação, por exemplo, pessoas entrevistadas, dados coletados, fotos, depoimentos – unindo-as a um espaço mais reservado, de edição dos jornais, revistas, etc, ou seja, aquele circunscrito à redação. É ele que controla e, muitas vezes, tenta apagar a hetero-geneidade de vozes15 sob a pretensão de criar um relato homogêneo, imparcial e uno, em que os sentidos estejam acorda-dos por efeito imaginário de unidade com um início, meio e final imaginários, em que haja coerência e coesão e em que as palavras digam exatamente a essência das coisas, sem as sombras que nelas (palavras e coisas) sempre existem.

Também destacamos que o sujeito des-se discurso marca o modo como os dizeres são selecionados na redação das notícias “considerou desaconselhável, também do ponto de vista empresarial, lançar esse balde de água gelada sobre o entusiasmo popular, Ponha-lhe o mesmo de sempre, Ano Novo, Vida Nova, disse”, fazendo falar interesses que subjazem ao processo de constituição do discurso jornalístico e que são apagados e silenciados para o leitor. Nesse caso, promover a emergência dos efeitos de otimismo faz com que a publi-cação impressa enuncie “Ano Novo, Vida Nova”. Sinais de novidade instalam um espelhamento, isto é, ao relatar tais votos na passagem do ano, a própria feição da

Page 55: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

O dizer sobre a mídia na ficção de Saramago

70C o m m u n i c a r e

16 SARAMAGO, J. As intermitências da morte, 2005, São Paulo: Companhia das Letras, p. 4717 SARAMAGO, J. As intermitências da morte, 2005, São Paulo: Companhia das Letras, p. 48

mídia é falada, ou seja, a mídia reforça o seu ofício de fabricação do novo. A com-preensão dos processos de significação do discurso jornalístico nos move a in-terpretar, na materialidade lingüística, as pegadas da inscrição social dos sujeitos e seus movimentos os retornos da memória já-lá e os indícios da historicidade.

“Como um rastilho, a notícia correu veloz por todo o país, os meios de comuni-cação vituperaram os infames, as irmãs assassinas, o genro instrumento do crime, choram-se lágrimas sobre o ancião e o ino-centinho como se eles fossem o avô e o neto que toda a gente desejaria ter tido, pela milésima vez jornais bem pensantes que atuavam como barômetros da moralidade pública apontaram o dedo à imparável

degradação dos valores tradi-cionais da família, fonte, causa e origem de todos os males em sua opinião, e eis senão quando quarenta e oito horas depois co-meçaram a chegar informações sobre práticas idênticas que estavam a ocorrer em todas as regiões fronteiriças.”16

De novo, o sujeito põe em movimento a imagem de que o discurso jornalístico constitui-se nos efeitos de velocidade e presteza, co-locando-o na posição de um correr permanente de rela-

tos e sentidos, de um estar no movimento, de uma circulação febril e bombástica de informações, que correm de fora da reda-ção para dentro dela (estamos falando por exemplo, das “irmãs assassinas, o genro instrumento do crime, choram-se lágri-mas sobre o ancião e o inocentinho como se eles fossem o avô e o neto”) e, de novo, tornam a sair da redação, filtradas pela voz do editor em um moto-contínuo, alimen-tado pelo deslocamento “veloz por todo país”. Isso dialoga com o que já definimos a respeito das condições de produção da comunicação global, caracterizada pelos flashes, aceleração e difusão instantânea. No romance em questão, quando as famí-

lias que não têm condições de manter os moribundos em casa escolhem o caminho de atravessar a fronteira para deixá-los morrer do outro lado, ou seja, no país do lado de lá onde a morte continua a trabalhar em sua tecelagem macabra. Tal solução é satanizada pelos jornais, torna-se uma estratégia recriminada, fica registrada como um sentido a ser desaprovado, e os jornais vociferam contra os mortais que querem apenas continuar a ser mortais. A formulação seguinte - “Pela milésima vez jornais bem pensantes que atuavam como barômetros da moralidade pública apontaram o dedo à imparável degrada-ção dos valores tradicionais da família” - indicia a existência de um sentido do-minante, que se fixa como único aceito e possível, padronizando a repetição e o efeito parafrástico do mesmo, do igual e do único e, ao mesmo tempo, apagando outros modos de enunciar sobre a vida, a morte e as escolhas a respeito de estar em vida ou preferir a morte.

“Os meios de comunicação que antes ti-nham vituperado energicamente as filhas e o genro do velho enterrado com o neto, incluindo depois nessa reprovação a tia solteira, acusada de cumplicidade e convi-vência, estigmatizavam agora a crueldade e a falta de patriotismo de pessoas aparente-mente decentes que nesta circunstancia de gravíssima crise nacional tinham deixado cair a máscara hipócrita por trás da qual escondiam o seu verdadeiro caráter.”17

Aqui os efeitos de moralidade (“cruel-dade”) e nacionalismo (“falta de pa-triotismo”) são tomados como sentidos dominantes, que se apóiam sobre uma ordem a ser mantida e discursivizam um corpo imaginário de adequação a normas de boa conduta a serem seguidas por todos os cidadãos sem questionamento. Nesse

Essa voz mediadora também silencia as zonas de sentidos indesejáveis

Page 56: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

71Volume 7 - Nº 2 - 2º sem. 2007

Lucília Maria Sousa Romão

18 SARAMAGO, J. As intermitências da morte, 2005, São Paulo: Companhia das Letras, p. 126/127

sentido, ao falar da “crueldade e a falta de patriotismo de pessoas aparentemente decentes”, a mídia desenha para si mesma o lugar de julgadora de valor e mérito, inscrevendo o vigor das instituições fa-miliares e políticas, marcando a ordem de moral desejada, sustentando-se como auto-ridade capaz de condenar certas posturas e sentidos, filiando-se a uma formação discursiva que quer disciplinar conduta, satanizar certas escolhas (a liberdade, por exemplo) e dar sustentáculo para outras (a obediência). Seja em relação à família ou à pátria, os poderes precisam ser con-servados e tornados potentes, otimizados pela exposição de alguns depoimentos de pessoas comuns e/ou de autoridades políticas, fazendo falar valores da classe dominante, para a qual a mídia não se furta. Assim, a voz do sujeito-narrador da ficção problematiza o jogo dos sentidos, nos quais a crítica, a ironia e o riso têm espessura e reclamam significação.

O sentido de ordem faz evocar, não leis e códigos nacionais com o tributo de suas regulações, mas sim significantes como “cumplicidade”, “convivência”, “cruel-dade”, “pessoas aparentemente decentes” que distam dos estatutos jurídicos, o que nos leva a crer que esse é um modo de o discurso jornalístico funcionar, simpli-ficando temas complexos, banalizando apelações e argumentos rasos, instando temas complexos a regiões de dizer já-dadas como óbvias, isto é, recortando as zonas da memória que são socialmente partilhadas e que estariam “acima” das diferenças e desigualdades sociais. Ao fazer isso, cria-se a ilusão de que família e pátria são valores universais, funcionando como significantes aplicáveis a todos de maneira uniforme e, sendo assim, tais va-lores podem ser tomados como ajustáveis às necessidades de todos, independente das condições sócio-histórico-ideológicas, por exemplo. De novo, vale ressaltar a presença da tríade objetividade, exatidão e univocidade, que, pelo muito que é cara

ao discurso jornalístico, merece ser inter-pretada visto que dialoga com as noções de ideologia, a memória e o sujeito como a teoria do discurso postula.

“Mal informado sobre a natureza profunda da morte, cujo outro nome é fatalidade, os jornais têm-se excedido em furiosos ataques contra ela, acusando-a de impiedosa, cruel, tirana, malvada, sanguinária, vampira, im-peratriz do mal, drácula de saias, inimiga do gênero humano, desleal, assassina, traidora, serial killer outra vez, e houve até um sema-nário, dos humorísticos, que, espremendo o mais que pôde o espírito sarcástico dos seus criativos, conseguiu chamar-lhe filha-da-puta. Felizmente, o bom senso ainda pendura em algumas redações. Um dos jornais mais respeitáveis do reino, decanto imprensa nacional, publicou um sisudo edi-torial em que apelava a um diálogo aberto e sincero com a morte, sem reservas mentais, de coração nas mãos e espírito fraterno, no caso, como era óbvio, de se conseguir descobrir onde ela se alojava, o seu fojo, o seu covil o seu quartel-general. Um outro jornal sugeriu às autoridades policiais que investigassem nas papelarias e fábricas de papel, porquanto os consumidores huma-nos de sobrescritos de cor violeta, se os houvera, e pouquíssimos seriam, deveriam de ter mudado de gosto epistolar à vista dos conhecimentos recentes, sendo portanto facílimo caçar a macabra cliente quando ela se apresentasse a renovar a provisão. Outro jornal, rival acérrimo deste último, apressou-se a classificar a idéia de estupidez crassa, porquanto só a um idiota chapado poderia ocorrer a lembrança de que a mor-te, um esqueleto embrulhado num lençol como toda a gente sabe, saísse por seu pé, chocalhando os calcâneos nas paredes das calçadas, para ir lançar as cartas ao correio. Não querendo ficar atrás da imprensa, a te-levisão aconselhou o ministério do interior a pôr agentes de guarda aos receptáculos ou marcos postais, esquecida, pelos vistos, de que a primeira carta, aquela que lhe havia sido dirigida, tinha aparecido no gabinete do diretor-geral estando a porta fechada com duas voltas à chave e as janelas com as vidraças intactas.”18

Page 57: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

O dizer sobre a mídia na ficção de Saramago

72C o m m u n i c a r e

Nesse recorte, a tagarelice midiática é materializada nas formulações que se seguem: “os jornais têm-se excedido em furiosos ataques contra ela”, “publicou um sisudo editorial”, “Um outro jornal sugeriu às autoridades policiais”, “Outro jornal, rival acérrimo deste último, apressou-se a classificar a idéia de estupidez crassa”, “a televisão aconselhou”. Vemos aqui a neces-sidade de gerar relatos o tempo todo, que, como já vimos, é indiciária da imagem de um presente em fluxo contínuo e de um gerúndio sem interrupções, ou seja, é preciso noticiar sobre a morte, ora lutando para nomeá-la, ora evocando estratégias de abertura de diá-logo com ela, ora indicando mecanismos de patrulhamento da caveira famosa feito pela

própria polícia, ora refutando o conteúdo de outros jornais. Enfim, trata-se de um falar e relatar excessivos.

No primeiro momento, ataca-se a morte por meio de ofensas, xingamentos e acusa-ções, o que evidencia um dis-curso cujo efeito é satanizar o desconhecido, instalando efeitos apelativos de explo-sões coléricas que, no míni-mo, distam do princípio da informatividade imparcial, que a princípio norteia a pre-

tensa objetividade do jornalismo: “Mal infor-mado sobre a natureza profunda da morte, cujo outro nome é fatalidade, os jornais têm-se excedido em furiosos ataques contra ela, acusando-a de impiedosa, cruel, tirana, malvada, sanguinária, vampira, imperatriz do mal, drácula de saias, inimiga do gênero humano, desleal, assassina, traidora, serial killer outra vez, e houve até um semanário, dos humorísticos, que, espremendo o mais que pôde o espírito sarcástico dos seus cria-tivos, conseguiu chamar-lhe filha-da-puta.” Os adjetivos, que fazem falar a descrição do rosto terrível e da presença aterrorizante da morte, “de impiedosa, cruel, tirana, mal-vada, sanguinária, vampira, imperatriz do

mal, inimiga do gênero humano, desleal, assassina, traidora, filha-da-puta”. A eles somam-se os substantivos “drácula de saias, serial killer” que funcionam de modo a intensificar as características tenebrosas da morte e movimentam-se num retrato de horror carregado nas tintas.

A substituição de um significante por outro coloca em jogo o efeito metafórico, ou seja, retoma, nos significantes emprestados de outros contextos, uma comparação implí-cita de atribuições e um sentido já-lá dado em outro lugar, que aqui volta a significar, só que de outro modo. No caso, as metáforas “drácula de saias e serial killer” recuperam a memória caudatária de personagens já divulgados no cinema e na literatura como assassinos, empreendedores de atuações sangrentas e crimes hediondos. Isso reforça a descrição espetacular e chocante da morte, fazendo falar o sensacionalismo e a apelação para enunciar sobre os fatos da realidade, diga-se de passagem, prática bastante corri-queira no comportamento da mídia hoje.

Em seguida, há a seguinte formulação: “Felizmente, o bom senso ainda pendura em algumas redações. Um dos jornais mais respeitáveis do reino, decanto imprensa nacional, publicou um sisudo editorial em que apelava a um diálogo aberto e sincero com a morte, sem reservas mentais, de co-ração nas mãos e espírito fraterno, no caso, como era óbvio, de se conseguir descobrir onde ela se alojava, o seu fojo, o seu covil o seu quartel-general.” . Ocupando aqui o papel de mediador do divórcio entre os mortais e a morte, uma resolução pacífica é expressa no editorial, texto que, por ex-celência, manifesta a opinião do próprio jornal. Evocando o “diálogo aberto e sin-cero com a morte, sem reservas mentais, de coração nas mãos e espírito fraterno”, o jornal assume-se como porta-voz de todos e como oráculo de poder capaz de até mesmo negociar com a caveira-mercadora da vida, pechinchando as explicações dela.

A materialidade lingüística põe em movimento o acordo de que apenas assim

A voz do jornal coloca-se acima de todas as leis, sejam científicas ou jurídicas, marcando uma posição superior a qualquer hierarquia

Page 58: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

73Volume 7 - Nº 2 - 2º sem. 2007

Lucília Maria Sousa Romão

seria possível descobrir donde ela saía: temos aqui, novamente, a imagem de po-der e de prestígio que a mídia atribui a si mesma, a saber, aquela capaz de promover a resolução de conflitos difíceis, construindo diálogo fraterno, “aberto e sincero” em res-posta a dilemas complexos da humanidade (morrer é um deles) e, quem sabe, encon-trando a solução salvífica para impasses ou situações absurdadas pelo desconhecido. Assim, a voz do jornal coloca-se acima de todas as leis, sejam científicas ou jurídicas, marcando uma posição superior a qualquer hierarquia. Nesse sentido, podemos ler a formulação “Felizmente, o bom senso ainda pendura em algumas redações” como iro-nia, pois como é possível haver bom senso na proposta de dialogar com a morte? Em qual idioma seria possível fazê-lo? Quem seria o interlocutor capaz de convencer da “drácula de saias” a agir com fraternidade e dialógico comportamento, características plenamente humanas e não de morte? Como seria o encontro entre a voz do jornal e a voz da morte? Tais questões sem resposta, que impulsionam a proposta do jornal para a ribanceira da gozação, marcam o tamanho do absurdo desse editorial e movimentam um efeito risível: no afã de criar novidades, o discurso jornalístico noticia o despropósi-to, negocia qualquer ilusão, fabrica fantasia e vende relato como se fosse mercadoria confiável e digna de credibilidade.

Ao longo desse trabalho, adentramos a obra “As intermitências da Morte”, de José Saramago19, para observar como é significa-do o processo de constituição dos sentidos sobre a mídia nessa narrativa. Com a fili-grana sempre imprevisível da polissemia e da metáfora, o autor borda significantes de uma saga comovente, na qual jornais e televisão têm espaço reservado e presença marcante, alimentando sentidos observados na contemporaneidade, especialmente na comunicação global, e inscrevendo social-mente regiões de sentido dominante e, no contraponto, efeitos risíveis e de ironia. Guiou-nos, desde o início, o intuito de pensar os atos de linguagem como avesso da transparência e da univocidade, sem a ime-diateza dos sentidos prévios e distantes do nivelamento simplista entre relatos e fatos, como se a palavra, no discurso jornalístico, pudesse apreender a realidade apenas de um modo. Antes disso, preferimos estar na zona maldita, em que o dizer é concebido em sua opacificação, pelas bordas de seu avesso e pela/na torção dos significantes, seus limi-tes, seus vires-a-ser outros sentidos e suas sombras, “porque as palavras, se não o sabe, movem-se muito, mudam de um dia para o outro, são instáveis como sombras”.

Referências bibliográficas

MARIANI, B. O PCB e a imprensa. (1998). Campinas: Editora da Unicamp e Editora Revan.ORLANDI, E. Análise de Discurso princípios e procedimentos. (2003) 5ª ed. Campinas: Pontes Editores.ORLANDI, E. As formas do silêncio no movimento dos sentidos. (1997). Campinas: Editora da

UNICAMP. PÊCHEUX, M. O discurso estrutura ou acontecimento. (1997). Trad Eni P. Orlandi. Campinas: Pontes. ROMÃO, L. M. S. & PACÍFICO, S. M. R. Da notícia ao discurso jornalístico: a tentativa de silenciar a

heterogeneidade. Revista Verso e Reverso - Revista de Comunicação da Unisinus, Ano XX, n. 44, 2006. SARAMAGO, J. As intermitências da morte. (2005). São Paulo: Companhia das Letras.

19 SARAMAGO, J. As intermitências da morte, 2005, São Paulo: Companhia das Letras.

Page 59: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

O dizer sobre a mídia na ficção de Saramago

74C o m m u n i c a r e

Page 60: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

Comunicação: Meios e Mensagens

Marta Regina Maia Doutora em Ciências da Comunicação pela ECA-USP

Docente da Metrocamp (Faculdades Integradas Metropolitanas de Campinas)

[email protected]

Resumo

O propósito deste trabalho é traçar um breve cenário da programação musical das emissoras de rádio no município de São Paulo, nas décadas de 30 a 50, observando o aspecto eclético e regional da radiodifusão paulistana. Pretende-se ainda contextualizar o papel deste veículo no imaginário de uma época, considerando-se os mecanismos de apropriação por parte do sujeito, além de situar o rádio como importante componente das práticas culturais daquele período.

Palavras-chave: Música; ecletismo; rádio; São Paulo; processos mediáticos e culturais.

Abstract

This research has the purpose of showing brief scenery of musical programs at radio stations in São Paulo city, from 30 until 50 centuries, observing the eclectic and regional radio diffusion of this city. It’s also intended to understand its role, which will be analyzed by the imaginary of that time, considering the mechanisms and subject’s appropriation, besides putting the radio as an important mean of communication at cultural practices of that time.

Key words: Music; eclecticism; radio station; São Paulo; Media and Cultural processes.

Resumen

El propósito de este trabajo está en mostrar un rápido escenario de la programación musical de las emisoras de radio de la ciudad de San Paulo, en las décadas de 30 hasta 50, observando el aspecto ecléctico y regional de la radiodifusión paulistana. También se busca contextualizar el papel de este medio de comunicación en el imaginario de una época, considerando los mecanismos de apropiación del sujeto y colgar el radio como componente importante de las prácticas culturales de la época.

Palabras clave: Música; Radio; São Paulo; Ecletisismo; Procesos Mediáticos y Culturales.

A diversidade musical do rádio paulistano nas décadas de 30 a 50

The musical diversity at radio station in São Paulo, from 30 until 50 centuries

Page 61: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

A diversidade musical do rádio paulistano...

76C o m m u n i c a r e

era fã dos vários programas de música brasileira, onde explodiam os sambas e principalmente as marchinhas, com a aproximação do carnaval.2

Esta relação diária entre os diversos pro-gramas veiculados e os radiouvintes garan-tem a necessária relação de negociação, já que em nenhum momento se desconsidera que a audiência é um aspecto essencial na definição da programação. Importante res-saltar ainda que parte do recorte histórico deste trabalho coincide com o chamado Estado Novo (1937-1945), que representou um marco na história recente do país. En-tretanto, como o modelo de radiodifusão adotado pelo Brasil acabou deixando para os interesses privados a sua implantação e implementação, deve-se relativizar a pre-sença do governo de Getúlio Vargas neste cenário, especialmente o paulistano.3

A diversidade da programação é um componente fundamental da prática radio-fônica do período. Segundo Renato Ortiz, o rádio paulistano, nas décadas de 30 a 50, tinha “características marcadamente locais, e se pautava segundo um padrão regional”4. A melhor tradução desta afirmação poderá ser conferida na apresentação, a seguir, da análise da programação do gênero musical, um dos responsáveis pela composição do imaginário dos radiouvintes paulistanos da época. Para desenhar este cenário, bem

Introdução

rádio, componente simbólico bastante expressivo nas décadas de 30 a 50 do século XX, foi parte

integrante e representativa da indústria cultural que começava a se desenhar na-quela época. Principal elo entre a indústria fonográfica e a sociedade, mantinha uma programação musical que visava atingir diversos setores da sociedade, recebendo um retorno significativo, especialmente por intermédio dos programas de auditó-rio, da criação dos fãs-clubes e do envio de cartas, que possibilitavam a participação do público ouvinte neste processo de circulação cultural.

As emissoras de rádio, em sua “época de ouro”, abriam espaços para pro-gramas que atendiam as mais diversas preferências. Essa diversidade foi uma marca das emissoras pau-listanas, já que as ondas da Rádio Nacional, emissora emblemática da época, não conseguiam chegar até a capital.1 O historiador e cientista político Boris Fausto, ao recuperar a história da imigração em

São Paulo, a partir de sua própria história de vida, conta que o rádio representava uma diversão que atingia toda família. Ele ainda comenta que, “felizmente”, havia dois aparelhos em sua casa, pois os gostos variavam. Vale a pena ler este pequeno trecho que fala sobre os hábitos culturais de sua família na década de 40:

Meu primo Alberto desenvolveu o gosto pela música clássica e influenciou nesse sentido minha tia. Na hora do almoço, um programa obrigatório, e aliás de ótima qualidade, era A música dos mestres, da Rádio Gazeta [ex rádio Educadora], que se abria com a “Ária da quarta corda” de Bach. Eu, talvez por simples oposição, não tinha atração pela chamada música fina;

O

1 A dificuldade de audição da Rádio Nacional na cidade de São Paulo é um elemento essencial para se refletir sobre a especificidade da programação paulis-tana. Enquanto no interior do Estado paulista, a emis-sora carioca mantinha uma preferência incontestável, na capital, as emissoras paulistanas é que detinham a audiência. Para tentar sanar este problema, a Rádio Nacional acabou criando uma emissora, a PRG9, em 1952, em São Paulo.2 FAUSTO, Boris, Negócios e Ócios: histórias da imigra-ção. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 145.3 Renato Ortiz, no livro A moderna tradição brasilei-ra, avalia que o governo não tinha condições financei-ras para construir um modelo de radiodifusão estatal e, além disso, tinha interesse em manter uma política de alianças com as forças sociais existentes.

4 Ibid., p. 54.

Page 62: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

77Volume 7 - Nº 2 - 2º sem. 2007

Marta Regina Maia

e arranjadores. O estilo sertanejo também ganha seu espaço, especialmente com a incessante atividade de divulgação de Cornélio Pires. Em São Paulo, João Ru-binato, mais conhecido como Adoniran Barbosa, surge de maneira irreverente trazendo a fala do sotaque italiano mis-turado ao dia-a-dia das camadas menos privilegiadas da paulicéia.

O ecletismo no campo musical é revela-do pelas pesquisas que se destinam ao estu-do da música brasileira neste período:

O rádio no Brasil abriu espaço para que gêneros e estilos regionais urbanos originários nas camadas mais pobres se difundissem, para um quadro regional mais amplo, como ocorreu com o samba, canções sertanejas e choros. Esse fato notável permitiu (...) a diversificação e o alargamento das possibilidades de escolha dos artistas e dos ouvintes, provavelmente ampliando e desenvolvendo seu universo de escuta ao invés de regredi-lo.7

Quando se trata do gênero “música” é importante que a sua densidade estética não seja analisada de maneira isolada, já que é parte de um contexto. Como há uma tendência de ver o passado com o olhar atual, é importante pensar o rádio como meio amplificador de uma diversidade musical, contribuindo assim para a popu-larização e empatia ainda não verificada na história da música no Brasil, que até então não dispunha de inúmeros mecanismos massivos: “O acesso instantâneo à música, com todo o seu poder de alterar os estados psicológicos e as disposições emocionais

como conhecer um pouco mais o processo de apropriação por parte dos radiouvintes da programação musical das emissoras, foram consideradas, como fontes privilegia-das, diversas revistas sobre rádio, folhetos de concursos, pesquisas no campo musical e radiofônico e, ainda, alguns depoimentos utilizados na tese de doutorado de Marta Regina Maia, intitulada “Quadros radiofô-nicos: Memórias da comunidade radiou-vinte paulistana (1930-1950)”.5

Programação musical

Um dos elementos mais importantes da memória radiofônica é a música. Mesmo após várias décadas, ouvintes conseguem cantarolar corretamente as canções ouvi-das na juventude. E um grande respeito pelos cantores daquela época permanece, independente dos gostos atuais no campo musical. Como diz o historiador Alcir Lenharo, os cantores do rádio ocupam um lugar privilegiado no coração das pessoas, e, contudo, eles quase não aparecem nas pesquisas históricas.

Existe uma versão de que os cantores do rádio ou pessoal ligado à música e ao meio artístico brasileiro era um pessoal ingênuo, que não tinha um alcance cultural maior. Eu discordo. Tem alcance cultural sim, porque na verdade é uma cultura que está presente no dia a dia de milhões de pessoas que vivem, sonham, criam expec-tativas vivendo e convivendo com o rádio. É um grande companheiro de milhões de pessoas e é ouvido em todos os lugares. É um fator importante de convivência e também politicamente, ao contrário do que se pensa”.6

Os gêneros musicais acompanham os desdobramentos políticos, econômicos, culturais, ao mesmo tempo em que estabe-lecem rupturas tanto na forma quanto no conteúdo. Assim, surgem músicas de sáti-ra política; sambas sobre a malandragem; sambas-canção, com alto teor dramático, música instrumental e ainda a chamada música clássica, com inúmeros maestros

5 Nesta tese, a autora realiza um trabalho inédito de recepção, ao coletar diversos depoimentos de antigos radiouvintes, oriundos de instituições diferenciadas, que residiam no município de São Paulo nas décadas de 30 a 50.6 Alcir Lenharo, palestra gravada em vídeo, à disposição na Hemeroteca da Faculdade de Comunicação da Univer-sidade Metodista de Piracicaba (21 de junho de 1996).

7 MORAES, José Geraldo Vinci de, Rádio e música popular nos anos 30. São Paulo: Estação Liberdade, 2000, p. 76. In: Revista de História do Departamento de História da Universidade de São Paulo, nº 140.

Page 63: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

A diversidade musical do rádio paulistano...

78C o m m u n i c a r e

dos ouvintes, tornou-se logo o aspecto mais contagiante e irresistível da audição radiofônica e a principal fonte de seu po-der de transformação cultural”.8

A chamada fase de ouro da MPB, definida por Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello como indo de 1929 a 1945, também coincide com a época áurea do rádio, consagrando compositores e intérpretes que até hoje são reverenciados. Para os pesquisadores citados “foi a necessidade de preenchimento dos quadros das diversas rádios e gravadoras surgidas na ocasião que propiciou o apro-veitamento desses talentos”.9

A música, com seu poder lúdico, arrebatava corações e mentes. Era como se a procura por algo idílico estivesse

no centro das atenções das pessoas, que acolhiam as mais variadas tendências, sempre optando por aquelas que satisfizessem as suas necessidades mais imediatas. Fenômeno nacional, a músi-ca vai se constituindo como uma referência cotidiana, e no caso paulistano, mais as-sociada aos valores locais.

São Paulo sempre teve uma forte influência euro-péia, mas já na década de 20, período em que manifes-

tações culturais irão marcar a cidade, como a Semana de 22, começa a romper com essa linhagem cultural. A cidade cresce, incor-porando em seu meio, pessoas de vários lugares do mundo (especialmente da Itália e do Japão), de outras regiões do Estado e do País10. Esse mosaico multiétnico reflete-se também no campo musical, que passa por uma amplificação com o surgimento da vitrola, em substituição ao gramofone, no final da década de 20. O espaço urbano paulista desenha-se então a partir de novas referências, com uma cidade em constante ebulição. É novamente Nicolau Sevcenko quem auxilia na visualização dessa década, particularmente em uma análise do poder

É importante pensar o rádio como meio amplificador de uma diversidade musical

exercido pela música, ao contar a alegria que tomou conta da cidade (evidentemente dos setores mais privilegiados, entretanto menos conservadores) com o sucesso obti-do pela pianista Guiomar Novaes11:

Por certo, esse curioso fenômeno psi-cossocial ultrapassava os significados particulares da simples música. Para além do teclado, Guiomar Novaes tocara em alguma corda sensível que, embalada pela música, a transformara num símbolo vivo, forte o suficiente para mobilizar conteúdos emocionais em ardente expectativa de consumação. Que conteúdos eram esses, é difícil sondar. Parte desse poder de de-flagrar explosões de emoção, com certeza, vinha do prestígio de ser uma brasileira, “paulista” (...) Outra parte, é provável, adviria do seu dialeto romântico, de forte apelo emocional. Outra parte ainda, tal-vez, derivaria desse peculiar arranjo de linguagens, “clássica”, “moderna”, “bra-sileira”, com essa última predominando em carga emotiva e coroando as demais, como se fosse o seu desdobramento lógico ou a sua projeção mais legítima. Havia ali algo assim como a autenticação em escala etérea de um destino manifesto.12.

A década de 20 mostra ainda o surgi-mento das primeiras emissoras de rádio, tendo como precursora a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, em 1923, o que represen-tou mais um elemento importante para a divulgação do gênero musical. Contudo, é somente na década de 30 que se pode afir-mar a existência de uma programação di-versificada, quando há uma proliferação das

8 SEVCENKO, Nicolau, História da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 588.9 SEVERIANO, Jairo e MELLO, Zuza Homem de. A canção no tempo:85 anos de músicas brasileiras (vol. 1: 1901-1957). São Paulo: Ed. 34, 1997, p. 85”.10 Para acompanhar este cenário de mudanças indica-se a leitura do livro Orfeu extático na metrópole: São Paulo – sociedade e cultura nos frementes anos 20, do historiador Nicolau Sevcenko.11 Nicolau Sevcenko conta que Guiomar Novaes era o maior sucesso artístico brasileiro no exterior, tendo batido o recorde de público, em 1921, no Carnegie Hall, nos Estados Unidos.

12 SEVCENKO, Nicolau, op. cit., p. 251-252.

Page 64: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

79Volume 7 - Nº 2 - 2º sem. 2007

Marta Regina Maia

13 MORAES, José Geraldo Vinci de, op. cit., p. 91.14 Depoimento de Arnaldo Câmara Leitão ao Centro Cul-tural São Paulo. In: DUARTE, Geni Rosa, Múltiplas vozes no ar: O rádio em São Paulo nos anos 30 e 40, p. 240. 15 MAIA, Marta Regina, op. cit., p.125.

16 BOLETIM MENSAL DA PRA 6, Rádio Educadora Paulista, São Paulo: março de 1937, ano 1, nº 5 (acervo particular).

de todos os países, entendeu? E popular brasileira, bem, relativamente. Então quer dizer, culturalmente, e conhecimentos gerais, eu atribuo muita coisa ao rádio, que eu aprendi. (...) Eu acho bem mais eclético que hoje.15

A programação musical no período em foco era ampla, pode-se dizer que apresen-tava uma grade de programas que atendia aos mais variados padrões estéticos. Um exemplo pertinente vem da Rádio Educa-dora Paulista, em 1937:

9,30 – Gravações diversas11,30 – Marchas de Souza11,45 – Seleções de Operetas de Lehar12,00 – Melodias russas12,15 – Canções 12,30 – Fox de films12,45 – Canções 13,00 – Musica de Chopin13,15 – Trechos lyricos [...]19,30 – Canto Regional19,45 – Valsas de Strauss20,00 – Melodias italianas20,15 – Canções 20,30 – Trechos de Rose Marie de Friml20,45 – Solos de piano21,00 – Trechos lyricos21,15 – Musicas de Schubert21,30 – Solos de orgam21,45 – Canções brasileiras22,00 – Canções argentinas22,20 – Musicas para dansar.16

E a programação segue, nos outros dias, com músicas havaianas, húngaras, alemãs, ciganas, francesas, mexicanas, americanas, entre muitas outras. Esse ecletismo não

emissoras e a música ganha uma dimensão jamais vista. Em São Paulo, durante esta década, “percebe-se que as relações entre a produção musical popular e o rádio (...) foram também, de diversas formas, bastante positivas, criativas, inventivas e duradou-ras, marcando definitivamente a história (...) da música popular brasileira”.13

A popularização da programação radio-fônica, sobretudo a partir das décadas de 30 e 40, não pode ser vista então como sinal de degradação como insistiam alguns críticos e intelectuais da época. Para o radialista Arnaldo Câmara Leitão, o caráter eclético da programação radiofônica não era bem recebido, com clara desqualificação dos programas de entretenimento, pois ele, no final da década de 40, considerava que o rádio era “fundamentalmente popular, freqüentemente popularesco, buscando atingir o gosto e os favores fáceis do grande público. Nada elevado, nada cultural, vá lá uns vernizes solitários, simples entreteni-mento para o recesso do lar”.14

À parte o aspecto discriminatório, o fato é que no final da década de 40 e na década posterior, apesar de uma popularização acentuada da programação, ainda havia programas que atendiam as necessidades de outras camadas da população. Havia um ecletismo salutar, como conta o coleciona-dor de discos e pesquisador autônomo da música brasileira Paulo Iabutti:

Olha, eu acho que uma boa parte da minha cultura geral se deve ao rádio. Naquele tempo, eu tenho a impressão que a música era de melhor qualidade que a irradiada hoje. Porque (...) na rádio Educadora, por exemplo, tinha música clássica, tinha mú-sica lírica, de ópera, tinha música ligeira, tinha valsas vienenses, (...) Então a gente ouvia de tudo e gostava de tudo porque não é massificado como hoje. Hoje a molecada é massificada por essa “musiquinha” que vem do EUA, que já é de segunda classe. Infelizmente eles são massificados por aquilo e não conhece mais nada, só aqui-lo (...) eu conheço um pouco de música clássica, um pouco de música ligeira, lírica, músicas internacionais populares

Page 65: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

A diversidade musical do rádio paulistano...

80C o m m u n i c a r e

17 MORAES, José Geraldo Vinci de, Metrópole em sinfo-nia: história, cultura e música popular na São Paulo dos anos 30. São Paulo: Estação Liberdade, 2000, p. 74-75.18 PONTES, Heloisa, Destinos mistos: Os críticos do grupo Clima em São Paulo (1940-1968). São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 135-136.19 TINHORÃO, José Ramos. Música popular - Do gra-mofone ao rádio e TV. São Paulo: Ática, 1981. Coleção Ensaios, 69.

20 Informações obtidas no encarte do disco Sylvio Caldas – Ja-nuário de Oliveira /Arnaldo Pescuma da Série Fase de Ouro

da MPB, gravações originais, novembro de 1989, Evocação.

era restrito ao campo musical, embora seja possível afirmar que nessa área havia de fato uma maior diversidade. A programação de outras emissoras, ainda na década de 30, como a da Rádio Record ou até mesmo a da Cruzeiro do Sul, contempla também a diversidade musical com programas de “Jazz, Canto e duo de violinos, choros, sambas, fados, orchestra de salão, músicas finas”17, entre outros estilos.

Todavia, especialmente a partir do final da década de 30, o espaço aberto à música popular, por diversas emissoras, encontra oposição de setores ligados à música erudita. O que não deixa de ser um paradoxo, pois as emissoras também veiculavam esse tipo de música. O grande

problema para esses setores é que só a música erudita era considerada artística, não a que a “massa consumia”, como mostra o depoimento de Perseu Abramo: “Mas a música brasileira que se ouve no rádio, assim como a ame-ricana, é uma solene porcaria (...) a grande produção é de baixa qualidade”.18

Para o pesquisador da história da música, José Ra-mos Tinhorão, enquanto no Rio de Janeiro, a partir da

década de 30, as emissoras caminhavam para uma programação e participação popular, em São Paulo, algumas emisso-ras, como a Rádio Kosmos (depois Rádio América), inaugurada em 1934, e a Rádio Cultura, inaugurada em 1934, passando logo após a funcionar no chamado “Pa-lácio do Rádio”, mantinham uma pro-gramação e audiência bem elitizadas19. A suntuosidade destas duas emissoras expressava, portanto, uma relação direta com a própria programação.

Outro exemplo emblemático: a Rádio Gazeta, ex-Rádio Educadora, que, em 1943 começou a funcionar e ficou conhecida como a “Emissora de Elite”, por sua pro-

Não pode ficar ausente a menção ao carnaval como um fenômeno que arrebatou o país

gramação voltada para este público, com ênfase para a chamada música clássica.

Neste desenvolvimento histórico não pode ficar ausente a menção ao carnaval como um fenômeno que arrebatou o país. São Paulo participa desse fenômeno cultu-ral, tendo o carnaval como acontecimento marcante no calendário da cidade. As marchinhas já começavam a ser tocadas nas emissoras vários meses antes do evento.

O sucesso de uma marchinha de Car-naval chamada “Paulistinha querida”, de Ari Barroso, apresentada em 1936, como composição ao 1º Concurso de Músicas Carnavalescas, organizado pela Comissão de Divertimentos Públicos da Prefeitura de São Paulo, e que obteve o 2º lugar20 revela o aspecto peculiar da radiodifusão regional. Enquanto outras marchinhas prestavam homenagens aos vários tipos femininos, como “Linda Morena”, “O teu cabelo não nega”, “Loirinha”, entre outras, a música de São Paulo tem um tom mais político:

Paulistinha queridaQual é tua corQue tanto disfarçasCom teu pó de arroz.

Não és loura, nem morenaNão tem nada de mulataPaulistinha queridaA tua cor é 32.

Eu desta vez ofereçoEsta canção singularÀ Paulistinha queridaQue um dia o Brasil inteiroHá de adorar.

Page 66: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

81Volume 7 - Nº 2 - 2º sem. 2007

Marta Regina Maia

Tem um sorriso tão lindoQue tanta graça mandarMesmo no céu não existeUma estrela que brilheComo o seu olhar.21

Neste mesmo carnaval, a música “Mu-latinha da Caserna”, de Martinez Grau e Ariovaldo Pires - que inclusive ganhou o primeiro lugar no concurso supracitado, gerando confusão e descontentamento de boa parte do público - também tem na Revolução de 32 o seu principal tema, mostrando assim que este acontecimento representava um aspecto importante na formação da própria identidade da cida-de. Por certo, essa paulistanidade não foi criada pelo rádio, mas não há como negar a sua contribuição.

O rádio era o principal canal de veicula-ção desse tipo de música, além de também ter sido um grande estimulador da festa popular. A Rádio Kosmos, por exemplo, destacou-se neste aspecto, ao promover, em 1940, o “Carnaval do Povo”, com a insta-lação de alto-falantes em vários pontos da cidade, estimulando os desfiles do corso e as batalhas de confete.22

O rádio, como elemento essencial na constituição das práticas culturais da cida-de, garantia os espaços de divulgação das marchinhas, muitas das quais ainda hoje são executadas e permanecem na memória dos radiouvintes.

Como parte integrante do cotidiano, o rádio era a principal fonte de audição das músicas, já que muitas pessoas não tinham condições de adquirir todos os discos lançados pela indústria fonográfica23. A radiouvinte Terezinha lembra que escutava com muita atenção as marchinhas, che-gando a anotar as letras, já que realizava brincadeiras com suas amigas com o intuito de verificar quem conseguiria decorar uma maior quantidade de músicas:

A gente prestava muita atenção porque para decorar todas essas músicas no car-naval a gente apostava umas coisas assim, se você perder vai fazer isso pra mim,

sabe ? Aposta não em dinheiro. (...) Tinha vezes que a gente aprendia 40, 50 letras. (...) E a gente escrevia tudo no caderno, a outra que perdia tinha que pagar alguma coisa. (...) Então, a gente fazia uma aposta que a outra tinha que cumprir. Às vezes a gente ia pra um lugar e tinha que pagar condução ou então tinha que pagar o refrigerante onde a gente fosse dançar (...) Pelo rádio, não tinha outro lugar. Era rádio mesmo. (...) Anotava e anotava, ano-tava porque depois se ela mandasse você cantar, tinha que cantar porque senão... Mostrava todos aqueles nomes, e canta essa aqui. Então tinha que cantar. (...) Era o dia inteirinho, inteirinho que tocava. (...) E a gente aprendia.24

Essa noção de aprendizagem permeia boa parte dos depoimentos dos entrevis-tados, contrariando uma tendência que aponta para o entretenimento como algo banal e meramente pontual. O que se percebe é que os radiouvintes tinham (e boa parte ainda tem) uma relação bastante profícua com as músicas veiculadas, inde-pendente do estilo.

O rádio mantinha uma presença muito forte na vida das pessoas, trazendo os lança-mentos dos mais variados estilos musicais, contribuindo assim para a formação de um público que podia saciar a sua vontade de audição de uma maneira mais plural, como relembra Paulo Iabutti:

As músicas que tocavam na época marca-ram, e até hoje a gente ainda lembra das vá-rias músicas que se tocavam na época. Mú-sicas brasileiras e músicas internacionais. Quando eu fiz o ginásio, a gente naquele tempo na escola, anotava os apontamentos que a professora ia dando, as lições e depois, à tardinha eu almoçava e a gente tinha que passar a limpo no livro de ponto. Passava

21 Faixa “Paulistinha Querida”, de Ari Barroso, Victor 34.036-B, Matriz 80.097.22 Centro Cultural SÃO PAULO, O rádio paulista no centenário de Roquette Pinto (1884-1984), p. 39.

23 Somente a partir da década de 70, como conseqüência do desenvolvimento tecnológico, o preço dos LPs sofre redução e consegue atingir setores da sociedade com menor poder aquisitivo.

24 MAIA, Marta Regina, op. cit., p. 132.

Page 67: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

A diversidade musical do rádio paulistano...

82C o m m u n i c a r e

a limpo as lições. Aí que a gente fixava as lições melhor (...) E ouvindo rádio, sempre atento também ao rádio. E quando tocava alguma música que me interessava, eu tinha o jornal ao lado, que meu pai comprava e eu anotava na beiradinha de jornais assim, o nome da música, o nome do intérprete e foi assim que eu guardei. Hoje sou um colecionador de músicas da Velha Guarda porque era assim que a gente anotava e memorizava tudo aquilo que a gente foi coletando por essa vida.25

A programação da Rádio Difusora e a da Tupi, em 1944, também evidenciam esta gama musical. Dos 20 programas da Difusora, 11 eram relacionados à música: Ritmo alegre, Canções do México, Canta Brasil, Melodias Inesquecíveis, Escola de Samba, Miscelânea Sonora, Arraial da Curva Torta (programa

sertanejo), Programa da Sau-dade, Calouros de Otávio Gabus Mendes, Programa Orquestral, Ritmo Clube. A quantidade de programas e o tempo dedicado ao gênero demonstram a importância da música na composição da grade da programação. Na Rádio Tupi havia um número menor de programas musi-cais, já que era uma emissora mais voltada à informação mas mesmo assim havia uma

diversificação como é possível aferir pelos nomes dos programas: Bazar de Ritmos, Vozes Favoritas, Carnaval na Onda, Em Tempo de Valsa, Programa Segunda Frente Sonora (auditório), Orquestra de Salão Tupi, Sílvio Mazzuca e sua Orquestra, Alma Del Bandonéon, Ritmo de Havana, Sucessos do Momento, Orquestra Sinfônica, Valsas Ines-quecíveis com a orquestra sinfônica Tupi.26

Outro aspecto peculiar daquele período foi a realização de inúmeros concursos envolvendo o veículo radiofônico em São Paulo. Na década de 40, por exemplo, des-tacam-se as seguintes categorias em votação feita pela imprensa: Orquestras de salão, Jazz, Típicas, Caipiras, Orquestras de Mú-

25 Ibid., p. 133.26 Os dados sobre a programação da Rádio Difusora e a da Rádio Tupi foram extraídos do livro de MENDES, Edith Gabus, Octávio Gabus Mendes: do rádio à televisão, p. 94-95.27 Ibidem., p. 61.28 Publicação original de 1959 denominada “programa grátis”, editada pela Associação dos Funcionários das Emissoras Unidas (Acervo particular da pesquisadora).29 José Ramos Tinhorão revela sua arte na poesia do lugar comum, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 13 set 1980. In: BENTO, Maria Aparecida, Um cantar paulistano: Adoniran Barbosa. 1990. Dissertação (Mestrado em Comunicação), Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, São Paulo, p. 56.

Como parte integrante do cotidiano, o rádio era a principal fonte de audição das músicas

sica Fina, Grupos Vocais, Canções, Canções Mexicanas, Folclore, Sambas27.

O Prêmio “Roquete Pinto”, com diversas categorias do Rádio e Televisão, lançado em 1950, pela AFEU (Associação dos Funcioná-rios das Emissoras Unidas), também contava com uma gama extensa de categorias de pre-miações que representam mais um exemplo desse ecletismo musical. Em publicação original dos organizadores do evento, datada de 1959, é possível visualizar esta afirmação em relação à premiação para o Rádio. Vale a pena citar somente as categorias referentes à área musical: “maestro regente, maestro orquestrador; cantor, cantora, cantor música popular internacional, cantora música po-pular internacional, cantor música clássica, cantora música clássica, conjunto vocal, pequeno conjunto vocal, conjunto sertane-jo”.28 Se todas estas modalidades recebiam prêmios é porque havia demanda musical.

São Paulo também contou com a presença de “seus filhos”. Nas letras e na voz de Adoniran Barbosa a represen-tação de uma cidade mais pobre pôde ser conhecida e percebida, pois ele conseguiu dramatizar o cotidiano, “ele é o grande poeta do trivial, através de sua incrível capacidade de tirar emoção da banalidade e do lugar-comum”29.

As letras das músicas compostas por Ado-niran trazem a crônica da cidade que passa por modificações profundas. A partir de 1955, Adoniran, que já tinha tido sucesso com sua

Page 68: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

83Volume 7 - Nº 2 - 2º sem. 2007

Marta Regina Maia

atuação humorística no rádio e também no cinema, consagrou-se com a música “Sau-dosa Maloca”, gravada pelo grupo Demônios da Garoa, constituindo-se um fenômeno de vendagem30. São Paulo conta então com mais um representante capaz de relacionar conteúdo e forma: “Através de um lirismo poético, filtra esta sociedade, numa ruptura do código da burguesia, que é um código harmônico, com o código do popular (...) é o som do cotidiano que espacializa a cidade. Adoniran é, sonoramente, São Paulo”.31

Outro aspecto bastante relevante da radiodifusão paulistana é o “acolhimento” por parte das emissoras dos migrantes do interior que, assim como os imigrantes, buscam melhores dias na cidade grande. A música sertaneja teve seu espaço garan-tido, já que muitos interioranos tinham como referência este tipo de composição musical. Ao contar a trajetória da música sertaneja no Brasil, Paulo de Oliveira Freire traça um panorama das décadas de 30 e 40, da radiodifusão:

Os homens do campo que migravam para as grandes cidades sentiam falta do clima de sua terra, o modo de falar, as músicas e os costumes. Para atender a esse público foram criados os programas sertanejos (...) Pequenas fábricas que tinham expediente depois das seis horas da tarde, deixavam sempre o rádio ligado nos programas sertanejos. Os que acordavam cedo toma-vam café ao som da viola. Os programas se multiplicavam, com apresentações de diferentes duplas, uns com mais sucesso, outros com carreira relâmpago. Era uma verdadeira febre. O caipira se transforma-va em um sucesso nacional.32

Não se pode omitir, em especial, que a “americanização” do Brasil teve início nas décadas de 30 e 40 e que a música também sofreu grande influência nesse processo, entretanto, é possível afirmar que a música brasileira sempre teve seu espaço garantido nas emissões radiofônicas. Diferente do cinema, que por intermédio de Hollywood, contribuiu para a rápida disseminação dos valores norte-americanos33, a música

brasileira ainda era mais ouvida que a ame-ricana. As pesquisas realizadas pelo Ibope, em julho de 1944, mostram, por exemplo, que Bing Crosby era ouvido por 0,5% dos entrevistados, enquanto Carlos Galhardo tinha 26,7% da preferência. Ao discutir o nível de influência da cultura americana no Brasil, o pesquisador Antonio Pedro Tota, a partir deste e outros exemplos, afirma que “a música não foi o melhor veículo do americanismo”.34

Considerações finais

A música, ao emitir as mais variadas tonalidades, transporta as pessoas para um outro universo, envia mensagens que, carregadas de sensações, conduzem as pessoas a certos estados emocionais, difí-ceis de serem explicados racionalmente. É inegável a forte presença da música em nosso cotidiano. Um gênero que, por en-volver uma percepção sensorial aguçada, é sempre motivo de lembrança de antigos radiouvintes, que mantém ainda uma certa fidelidade a alguns artistas da época.

O circuito dos ídolos também extrapolava o ambiente das emissoras. Shows nos bairros, em circos, nas boates e cafés, teatros e nas telas de cinema. Um aspecto peculiar a São Paulo era uma certa intimidade entre ídolos e público, já que muitos artistas residiam na capital e circulavam normalmente pelas ruas, padarias, feiras, entre outros lugares, não

30 PEREIRA, J., “Discos”, Diário da Noite, São Paulo, 22 de julho de 1955, p. 4. In: Maria Aparecida BENTO, op. cit., p. 28.31 BENTO, Maria Aparecida, Um cantar paulistano:Adoniran Barbosa. Dissertação (Mestrado em Comuni-cação), Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, São Paulo, p. 222.

32 FREIRE, Paulo de Oliveira, Eu nasci naquela serra. São Paulo: Paulicéia, 1996, p. 65. 33 ORTIZ, Renato, op. cit., p. 71.

34 TOTA, Antonio Pedro. A locomotiva no ar. Rádio e Modernidade em São Paulo (1924-1934). São Paulo: PW Gráficos e Editores Associados, Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, 1990, p. 157.

Page 69: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

A diversidade musical do rádio paulistano...

84C o m m u n i c a r e

tendo existido um sistema tão articulado para sua promoção, como foi o caso, por exemplo, dos astros das emissoras cariocas, em especial os da Rádio Nacional.

Ao discutir a presença da televisão na sociedade, Jesús Martín-Barbero levanta um aspecto distintivo das emissoras de rádio em relação ao advento da própria televisão: “O rádio nacionalizou o idioma, mas preservou alguns ritmos, sotaques, tons. A televisão unifica para todo o país uma fala na qual, exceto para efeito de fol-clorização, a tendência é para a erradicação das entonações regionais”.35

A diversidade musical do rádio em São Paulo, no período em questão, demonstra

que, embora o rádio tenha participado do circuito comercial e contribuído para o es-tímulo do consumo de produtos, também participou de um processo de construção simbólica que permeou a própria consti-tuição da cultura de uma época. O caráter polifônico da radiodifusão mostra que no interior dos meios também há conflitos e que o mapa cultural do período, ao menos o musical, pode ser desenhado com tons bem variados.

35 MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: Comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997, p. 268..

Referências bibliográficas

FAUSTO, Boris. Negócios e ócios: Histórias da imigração. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.FREIRE, Paulo de Oliveira, Eu nasci naquela serra: A história de Angelino de Oliveira, Raul

Torres e Serrinha. São Paulo: Paulicéia, 1996.MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: Comunicação, cultura e hegemonia. Rio de

Janeiro: Editora UFRJ, 1997.MENDES, Edith Gabus. Octávio Gabus Mendes: do rádio à televisão. São Paulo: Lua Nova, 1988.MORAES, José Geraldo Vinci de. Metrópole em sinfonia: história, cultura e música popular na

São Paulo dos anos 30. São Paulo: Estação Liberdade, 2000.ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira - Cultura brasileira e Indústria Cultural. São Paulo:

Brasiliense, 1988.PONTES, Heloisa. Destinos mistos: Os críticos do grupo Clima em São Paulo (1940-1968). São

Paulo: Companhia das Letras, 1998.SEVCENKO, Nicolau (org.). A capital irradiante: Técnica, ritmos e ritos do Rio. In: História da vida

privada no Brasil – República: da Belle Époque à Era do Rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

_____. Orfeu extático na metrópole – SP, sociedade e cultura nos frementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

SEVERIANO, Jairo e MELLO, Zuza Homem de. A canção no tempo: 85 anos de músicas brasileiras (vol. 1: 1901-1957). São Paulo: Ed. 34, 1997.

TINHORÃO, José Ramos. Música popular - Do gramofone ao rádio e TV. São Paulo: Ática, 1981. Coleção Ensaios, 69.

TOTA, Antonio Pedro. A locomotiva no ar. Rádio e Modernidade em São Paulo (1924-1934). São Paulo: PW Gráficos e Editores Associados, Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, 1990.

_____. O imperialismo sedutor: A americanização do Brasil na época da Segunda Guerra, São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

Page 70: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

85Volume 7 - Nº 2 - 2º sem. 2007

Marta Regina Maia

Audiovisual

Alcir LENHARO, palestra gravada em vídeo, a disposição na Hemeroteca da Faculdade de Comunicação da Universidade Metodista de Piracicaba (21 de junho de 1996).

Série de programas “A história do rádio no Brasil”, produzida pela Rádio USP, em 1984.

Teses e Dissertações

DUARTE, Geni Rosa. Múltiplas vozes no ar: O rádio em SP nos anos 30 e 40. 2000. Tese (Doutorado em História) Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.

MAIA, Marta Regina. Quadros radiofônicos: memórias da comunidade radiouvinte paulistana (1930-1950). 2003. Tese (Doutorado em Comunicação) Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, São Paulo.

BENTO, Maria Ap. Cantar paulistano: Adoniran Barbosa. 1990. Dissertação (Mestrado em Comunicação), Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, São Paulo.

Periódicos

“PROGRAMA GRATIS”, Publicação original de 1959 denominada editada pela Associação dos Funcionários das Emissoras Unidas.

BOLETIM MENSAL DA PRA 6, Rádio Educadora Paulista, São Paulo: março de 1937, ano 1, nº 5.MORAES, José Geraldo Vinci de. Rádio e música popular nos anos 30, p. 91, in Revista de História

nº 140, Departamento de História/ FFLCH da Universidade de São Paulo.RADAR, Editora Radar, São Paulo: agosto de 1951, semanal._______, Editora Radar, São Paulo: outubro de 1951, semanal._______, Editora Radar, São Paulo: novembro de 1951, semanal.RADIOLÂNDIA, Rio Gráfica Editora, Rio de Janeiro: dezembro de 1955, semanal.RADIOLAR. São Paulo: abril de 1952, mensal._______. São Paulo: abril de 1954, mensal.

Disco

Sylvio Caldas – Januário de Oliveira /Arnaldo Pescuma da Série Fase de Ouro da MPB, gravações originais, novembro de 1989, Evocação. Victor 34.036-B, Matriz 80.097.

Outros

CENTRO CULTURAL de São Paulo. O rádio paulista no centenário de Roquette Pinto. 1884-1984. São Paulo: 1984.

ROCHA, Vera Arruda. Cronologia do rádio paulistano: anos 20 e 30, vol. 1. São Paulo: CCSP/Divisão de Pesquisas, 1993.

Page 71: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

A diversidade musical do rádio paulistano...

86C o m m u n i c a r e

Page 72: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

Comunicação: Tecnologia e Política

Magaly Prado Mestranda do programa Tecnologias da Inteligência

e Design Digital, da PUC-SP.Docente da Faculdade Cásper Líbero.

[email protected]

Resumo

O objetivo deste trabalho é descrever algumas formas da apresentação do rádio no formato audiocast, ou podcast. Trata-se de uma modalidade de rádio pessoal, adaptável ao gosto do ouvinte, no qual a audiência pode de fato interagir, tornando-se co-produtora e estimulada a ocupar o lugar dos protagonistas. O fenômeno emerge com o crescimento da Internet e causa impacto na radiofonia tradicional e no jeito de se relacionar com a audiência. Traça-se um paralelo entre o descontentamento dos ouvintes que conseguem, pela primeira vez na história, produzir a própria rádio de forma livre, e possibilidade de receber ajuda coletiva, formando, uma rede de afinidades.

Palavras-chave: rádio, audiocast, customizável.

Abstract

The goal of the paper is to describe some models of radio presentation in the audiocast - or podcast - format. It is a kind of personal radio, adaptable to the tastes of the listener, in which the audience can indeed interact, becoming co-producer and stimulated to the take the place of the protagonists. This phenomenon comes forward with the growing of Internet and causes an impact in the tradicional radios and in the way to relate with the audience. It is made a link between the displease of the listeners that are able, for the first time in History, to produce their own radio station in a free manner, with the possibility of collective help, forming a network of affinities.

Key words:radio, audiocast, customize.

Resumen

El objetivo de este trabajo es describir algunas formas de la presentación de la radio en el formato audiocast o podcast. Se trata de una modalidad de radio personal, adaptable al gusto del oyente, en que la audiencia puede de hecho inte-ractuar, convirtiéndose en coproductora y estimulada a ocupar el lugar de los protagonistas. El fenómeno emerge con el crecimiento de la Internet y causa impacto en la radiofonía tradicional y en la manera de relacionarse con la audiencia. Se traza un paralelo entre el descontentamiento de los oyentes que consiguen, por primera vez en la historia, producir la propia radio de forma libre, y posibilidad de recibir ayuda colectiva, formando una red de afinidades.

Palabras clave: radio, audiocast, customizable.

Audiocast livre: um produto da comunidade dos descontentes

Free Audiocast: a product of the displeased community

Page 73: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

Audiocast livre: um produto da comunidade...

88C o m m u n i c a r e

soal, programável pelo ouvinte, as novas ferramentas permitem interatividade de maneira irrestrita. Sendo assim, a proposta do Audiocast é estimular o próprio usuário a lançar rádios nas quais o ouvinte possa interferir no conteúdo, seja ele musical ou jornalístico. Não é mais suficiente deixá-lo participar apenas da produção e da pro-gramação, mas também instigar esse ou-vinte a usar as ferramentas de montagem e edição, tornando-se co-autor no melhor estilo colaborativo. É necessário enfatizar ainda que o produto idealizado deve pro-porcionar total liberdade de intervenção por parte do ouvinte.

Rádio personalizada

Inspirada na própria essência da Inter-net, que tem no compartilhamento uma de suas mais interessantes atitudes, o objetivo é estudar a viabilidade da idéia de custo-mizar programas de rádios, pelos próprios usuários, como forma de liberar a produção para interferência total. Sendo assim, não basta deixar o ouvinte participar com críti-cas e elogios, mas com a real produção da programação, o que significa colocá-lo na equipe de produção de pautas, deixá-lo en-trevistar convidados em suas localidades, dar-lhe funções de escolha de músicas.

De forma livre e coletiva1, o ouvinte pode, por exemplo, complementar notícias, acres-centando informações colhidas de outras fontes, de sua cidade, seu bairro, repercutin-do os fatos com especialistas com quem ele tenha contatos e mesmo dando sua opinião. Nas programações musicais, o ouvinte pode incluir versões da mesma música, regrava-ções em outros estilos, lados B, covers inte-ressantes, letras, cifras e comentários sobre os artistas, os álbuns, as músicas. Pode ser o

o pensarmos o rádio hoje, na aurora do século 21, é preciso considerá-lo em seus diferentes

formatos emergentes das novas tecnologias. Mais do que um sinal que sai do espectro, vai para a Internet, e pode ser ouvido em qualquer aparelho, seja um tocador de MP3 ou mesmo um celular, o rádio de hoje pode ser produzido na rede de computadores por qualquer pessoa, radialista ou não. Não existe a necessidade de estar na web para produzir ou ouvir um audiocast - mais conhecido como podcast. A preferência por usar o termo audiocast justifica-se na medida em que não há necessidade de atrelar esse tipo de vínculo ao aparelho da

marca Apple ou qualquer outro. Basta a utilização de programas que gravam, editam e tocam. Trata-se de um programa ou pro-gramete “pendurado” na Internet para audições e reprises das audições em qualquer horário, já que são colocadas à disposição do ouvinte.

O audiocast é um pro-grama de rádio produzido por qualquer pessoa. Está disponível na Internet,

em servidores específicos que armazenam esses áudios para que internautas, de qual-quer lugar da terra, possam baixá-los em seus computadores e depois ouvi-los na máquina on-line ou mesmo off-line, mas, principalmente, poder colocá-los em seus players para audição sem estar conectados a um computador. Isso faz com que o for-mato, além de permitir inúmeras reprodu-ções, tenha mobilidade para que a audição ocorra em qualquer lugar, não apenas em um computador. O ouvinte escolhe o que quer ouvir e leva para a praia, para dentro de um trem, para a escola - o que significa também maior acessibilidade.

Contudo, o mais interessante de todo esse processo é que a partir do rádio pes-

A

1 PRADO, Magaly. Produção de Rádio – Um Manual Prático. Editora Campus / Elsevier, 2006, Rio de Janeiro. PostWorldIndustries. <http://www.postworldindustries.com/>, p. 158

Page 74: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

89Volume 7 - Nº 2 - 2º sem. 2007

Magaly Prado

“A dificuldade que acompanha o discurso do rádio informativo desde a sua origem é encontrar uma maneira deexpressar de forma sonora um conteúdo que tomou forma originalmente na tecnologia da imprensa. O jornalismo impresso operava com a palavra, porém com a palavra está-tica, ‘congelada’ em forma de escrita. Ao se aventurar pela primeira vez no terreno da palavra elástica, ‘em estado líquido’, o gênero se defrontou com uma série de situações inteiramente novas”.5

A identificação da proliferação de rádios nas redes telemáticas demonstra o fenômeno que cresce com a própria Internet que, por sua vez, oferece diariamente mais facilidades de utilização, provocando assim um impacto considerável na radiofonia convencional. Contudo, o que atrai atenção é o paralelo com o descontentamento dos ouvintes que conse-guiram, pela primeira vez na história, produ-zir a sua própria rádio, e principalmente, de forma livre. Aqui, ao citarmos os ouvintes, não estamos nos referindo a radialistas, que também por insatisfação com o que ouviam no dial, colocaram no ar rádios livres6, mo-vimento que atingiu seu auge nos anos 70. Esse trabalho foi deflagrado por radialistas descontentes e não simples ouvintes, mas que infelizmente não conseguiu perdurar no dial puramente comercial.

No audiocast a idéia vai além, pois mos-tra a possibilidade desse ouvinte receber

crítico musical de plantão (e quem não gosta de ser crítico, ao menos uma vez na vida?). Entrevistar músicos também será possível, e aí cabe ao ouvinte planejar perguntas inte-ligentes, que fujam do lugar-comum. Mais interessante ainda, se a pauta das perguntas for gerada de forma coletiva, com todos colaborando (pode ser no Chat) para que as questões levantadas sejam pertinentes e atuais e não aquela ladainha de sempre. Tudo de forma ágil e em tempo real.

A noção de tempo linear presente nos su-portes convencionais, como no rádio e na TV, já não corresponde à noção de tempo na rede. O tempo na rede não obedece a uma seqüência, ou seja, uma linearidade de raciocínio. O usuário não precisa, obrigatoriamente, seguir um roteiro pré-estabelecido pelo suporte. Assim, o acesso às informações é feito de forma aleatória (randômico), ficando a cargo de o usuário construir um “novo” roteiro, e conseqüen-temente criar narrativas inovadoras que irão contribuir para a produção de conteúdos no ciberespaço, “abolindo o espaço-tempo e ampliando nossas formas de ação”2.

O intuito deste artigo é esboçar conside-rações sobre a possibilidade de uma rádio no formato audiocast personalizável, aberta e livre para interferências, porque não é viável concluir definitivamente, quando li-damos com novas tecnologias. É preciso dar continuidade à reflexão de como conceber esse espaço sonoro emergente.

O mapa atual das rádios autônomas na Internet proporciona instigante constatação da desmontagem dos canais oficiais de distri-buição de música e informação, o que signi-fica cada vez mais em canais personalizados por ouvintes descontentes. Obviamente, o intuito é considerar apenas as produções de qualidade que geram conhecimento. Prado3 enfatiza programações que, além de seguir princípios éticos, como apuração precisa, checagem, rechecagem, oferece pertinência informativa que acrescenta conteúdo ao consumidor. Para exemplificarmos uma das vertentes, o radiojornalismo, Meditsch4 lembra seus primórdios:

2 LEMOS, A. L. M. A Liberdade das Ondas. O Movimento Wi-Fi, Salvador - Bahia, v. 2, n. 15, 2002. <http://www.fa-com.ufba.br/ciberpesquisa/andrelemos/wi-fi.htm>, p. 353 PRADO, Magaly. Produção de Rádio – Um Manual Prático. Editora Campus / Elsevier, 2006, Rio de Janeiro. PostWorldIndustries. <http://www.postworl-dindustries.com/>4 MEDITSCH, Eduardo. A Rádio na Era da Informação: Teoria e Técnica do Novo Radiojornalismo. Coimbra: Editora Minerva, 1999.5 Idem, p. 1146 Rádios Livres tiveram seu auge na década de 70, quando radialistas passaram a criar emissoras sem imposições de diretores, donos de emissoras e de profissionais de gra-vadoras. Felix Guattari, na França, ou Marcelo Mazagão, Caio Magri e Arlindo Machado, no Brasil, são alguns dos autores que refletiram sobre as rádios livres.

Page 75: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

Audiocast livre: um produto da comunidade...

90C o m m u n i c a r e

ajuda coletiva, já que o rádio personalizado pode vir a aceitar a colaboração dos demais ouvintes, formando, inclusive, uma rede de afinidades de ouvintes com o mesmo ideal, que deixa de ser um mero receptor.

Rádios na Internet existem com diferen-tes tipos de conteúdo: dos artísticos, pas-sando pelos educacionais aos comerciais. De rádios interessantes a outras que copiam o pior do modelo tradicional. A mudança também está nas novas formas de audição, fazendo com que o rádio, que já nasceu com o conceito da portabilidade desde o surgimento do radinho de pilha, ganhe mais mobilidade ainda. Afinal, um programa pode ser ouvido no computador, mas tam-bém fora dele, em qualquer lugar através dos

tocadores de MP3.Portanto, o século 21,

com a facilidade das novas tecnologias, está provocando um ambiente propício para as mudanças no rádio acontece-rem, principalmente aquela que coloca o ouvinte como radialista. O rádio pessoal possibilitado pela Internet está incitando esse novo ou-vinte-radialista a descortinar o mundo, na medida em que seu material radiofônico é passível de ser ouvido em

qualquer lugar do planeta conectável, e consequentemente, receber comentários em tempo real. Por que não abrir para in-terações consistentes? Considerando que esse tipo de rádio combina melhor, se for feito em sistema aberto, pode assim, ser suscetível a intervenção de qualquer ordem e de quem quer que seja.

Entender o que se passa no momento atual da radiofonia universal é simples. Já procurar perceber se existe inteligência em acessar e atuar nesse potencial transversal que é a rede com rádios disponibilizadas no mundo inteiro despende busca minuciosa. Assim, tentar despertar no ouvinte a consci-ência de que ele pode mudar o que sempre foi

A proposta do audiocast é estimular o próprio usuário a lançar rádios nas quais o ouvinte pos-sa interferir no conteúdo

acostumado a ouvir é um passo importante. É indispensável mostrar que surgiu uma nova configuração de áudio no ar, ocupando o lugar do decadente espaço das conhecidas ondas hertzianas, e que, parafraseando o cineasta Glauber Rocha, é de fácil acesso a qualquer um que possua um computador com microfone e uma idéia na cabeça.

Está ocorrendo uma desmontagem da paisagem sonora que precisa ser acompa-nhada de perto por estudiosos do assunto. Trata-se de uma provocação generalizada que altera nossos padrões de reconhe-cimento do mundo audiofônico. Como esses novos radialistas estão conseguindo intervir em um espaço tão saturado? Aos poucos, essa nova forma de se fazer rádio é praticada e assim é possível reordenar a percepção desse atual ambiente sonoro.

Gaston Bachelard7 afirma que a radiofo-nia emerge do território cósmico, residência das radiogaláxias, alvo dos gigantescos radiotelescópios encastelados em estações experimentais, aguardando captar as falas do universo8. Enquanto Bachelard tratava das ondas de rádio na logosfera e da neces-sidade de uma nova cultura do ouvir, neste século falamos das rádios que atingiram o ciberespaço, e de uma outra nova cultura do ouvir. Em “Devaneio e Rádio”, capítulo de “O Direito de Sonhar”, o autor francês também pensa o rádio como um meio ori-ginal, que não se repete jamais.

Depois de quase 100 anos de existência do veículo, pela primeira vez na história, a partir deste século, o ouvinte de rádio vislum-bra a possibilidade de ser radialista de sua própria rádio, produzir os próprios conteú-dos ou propor espaços para a discussão. É do ouvinte, e não do radialista profissional, que estamos falando. E não se trata de simples-mente escolher músicas e compor listinhas

7 BACHELARD, G. O direito de sonhar. 1985. São Paulo, Difel8 ZAREMBA, L. e BENTES, I. (orgs.). Rádio Nova, cons-telações da radiofonia contemporânea, Rio de Janeiro: UFRJ, Publique, 1999, p.22

Page 76: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

91Volume 7 - Nº 2 - 2º sem. 2007

Magaly Prado

inconsciente, fazendo com que a medula envie rapidamente uma ordem a nossos dedos para que inocentemente procurem outra coisa.”10

Outro ponto a destacar é a possibilidade de abrir brechas no poder centralizador das produtoras radiofônicas como aquelas que invadiram, nos últimos tempos, o dial com suas pregações - caso dos políticos e dos religiosos -, mudando o rumo da real função da radiofonia. Sobre esses últimos, dados colhidos em 2005, comprovam que em 1995, o dial FM não tinha nenhuma emisso-ra religiosa. Dez anos depois, são nove (uma católica e oito evangélicas). O dial AM, que tinha dez emissoras religiosas em 1985, em 2005, são 15 (nove evangélicas, quatro ca-tólicas, uma espírita e uma espiritualista).11 Para Luiz Artur Ferraretto12 o crescimento das rádios religiosas é conseqüência de um empobrecimento crescente da população, associado a um ensino precário. “Sem condições socioeconômicas, as pessoas apelam para o místico-religioso. Alienadas de qualquer senso crítico, deixam-se levar pelas promessas de sucesso em troca de fé [e de contribuições monetárias]”.

É sempre bom reforçar a função do rádio: a de oferecer entretenimento com liberdade de expressão, imparcialidade po-lítica e de qualquer crença, no momento de fornecer as notícias e programar a grade mu-sical, pois sabemos que nem todas as rádios levam o lema em consideração, e cada vez mais o desvirtuam. Magda Cunha13 aponta

de diferentes gêneros musicais para determi-nadas ocasiões (como eram feitas as trilhas gravadas em fitas mini K-7 de antigamente). Destina-se a produzir rádio no sentido amplo da palavra, ou seja, com vinhetas, locução, participação de outros ouvintes, entrevistas, serviços e, claro, música - seja de fundo seja como parte da programação.

A possibilidade de se produzir rádio pessoal parece ir ao encontro dos anseios de consumidores de rádio cansados de receber os programas radiofônicos prontos. Os mais atentos percebem que os radialistas de plan-tão aceitam os ditames das gravadoras, ao impor ouvidos adentro, o que elas querem vender com suas execuções repetitivas ao extremo. Exaustos também de ficar ouvindo supostos sucessos definidos pelos progra-madores vendidos por meros trocados, o nefasto “jabá” (abreviação de “jabaculê”, jargão utilizado para designar o pagamento para a execução de uma música, feito pela gravadora ou por algum interessado) ou uma participação de alguém de forma forçada, apenas para lhe dar visibilidade. Todo esse comportamento deturpado, a falta de ética e a prática de corrupções no meio, estão, na medida do possível, sendo eliminadas com a nova linguagem e modelo de se fazer rádio no século 21, fora do dial. Não basta poder fazer uma rádio pessoal. O importante é escapar do jeito retrógrado da produção radiofônica que imperou na maior parte das emissoras nos últimos 30 anos, com a massificação de músicas ditas populares, e que não passavam de produção musical de qualidade duvidosa. Embora discorrendo especificamente sobre rádios livres, Machado, Magri e Masagão9, descrevem a insatisfação generalizada diante do que os autores ouvem no dial:

“O rádio abre a possibilidade de socializar as nossas subjetividades individuais ou grupais. Se os trabalhadores aprendem a reinvindicar menor tempo de trabalho, é preciso que o maior tempo de ócio seja preenchido com música. E quando falo de música não me refiro à estrondosa baboseira que tocam as FM e que deixam profundamente irritado nosso

9 MACHADO, A, MAGRI, C, MASAGÃO, M. Rádios Livres – A reforma agrária no ar. São Paulo: Editora Brasiliense, 198710 MACHADO, A, MAGRI, C, MASAGÃO, M. Rádios Livres – A reforma agrária no ar. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987, p. 120-12111 Pesquisa realizada em 2005 pela autora para o jornal Agora S. Paulo.12 Luiz Artur Ferraretto concedeu entrevista a autora. É professor da Universidade Luterana do Brasil (Canoas) e autor de “Rádio - o Veículo, a História e a Técnica” (Sagra-Luzzato Editores). 13 MOREIRA, V, Sonia e BIANCO, R, del, Nélia (orgs) Desafios do rádio no século XXI – São Paulo: Intercom; Rio de JaneiroUERJ, 2001.

Page 77: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

Audiocast livre: um produto da comunidade...

92C o m m u n i c a r e

14 CUNHA, M. R. . Efeitos junto ao público garantem a permanência do rádio. In: DEL BIANCO, Nélia-MOREIRA, Sônia V.. (Org.). Desafios do rádio no século XXI. Rio de Janeiro: UERJ, 2001, v. , p. 10115 MANOVICH, Lev. Novas mídias como tecnologia e idéia: dez definições. In: In: Leão, Lucia (org.). O chip e o caleidoscópio: reflexões sobre as novas mídias. São Paulo: Ed. SENAC, 200516 MANOVICH, Lev. Novas mídias como tecnologia e idéia: dez definições. In: In: Leão, Lucia (org.). O chip e o caleidoscópio: reflexões sobre as novas mídias. São Paulo: Ed. SENAC, 2005, p. 3717 <http://www.lastfm.pt>

18 <http://www.pandora.com> 19 <http://www.musicovery.com>

ainda a união do radialista e do político e do radialista-religioso-político:

“Nos anos 90, os efeitos do rádio também resultaram em eleições e muitos radialistas ocuparam vagas nas assembléias estaduais e no Congresso... A década passada mar-cou ainda a ocupação dos espaços no rádio pelos pastores evangélicos e que tiveram e ainda têm forte presença política.14

No entanto, radialistas conscientes da decadência do rádio tradicional ainda não partiram para a prática de suas verdadeiras rádios pela pura falta de comunicação dessa real maneira avançada de procedimento. Aguardam que os ouvintes, habituados a girar o dial convencional, se dêem conta de que podem fazer sua própria programação, esco-

lher produções de profissio-nais conceituados como bons novos radialistas ou mesmo garimpar novidades entre os projetos de rádio que surgem a cada minuto na rede.

Por que é pertinente levan-tar esta questão? Obviamente, nem todos que não gostam do que ouvem nas rádios atuais, querem ou têm tempo para criar seus programas de rádio. Muitas vezes os ouvintes sen-tem medo da velocidade e das demandas de atualização que

o novo rádio acarreta. É necessário atualizar um audiocast para que ele fique ativo na rede e garanta assim a sua audiência. No entanto, a existência desse tipo de rádio implica seu estudo e investigação, independentemente do número de usuários.

Lev Manovich15 costuma apontar que a nova tecnologia permitirá “melhor democra-cia” e a possibilidade de “representar o que antes não podia ser representado”, contribuirá para “a erosão dos valores morais”, e destruirá a “relação natural entre os humanos e o mun-do”, eliminando a distância entre observador e observado. Ele acrescenta que a interligação e o controle em tempo real parecem constituir fenômenos qualitativamente novos.

Está ocorrendo uma des-montagem da paisagem sonora que precisa ser acompanhada de perto por estudiosos do assunto

”A capacidade de interagir ou controlar dados remotamente localizados em tempo real e de controlar várias tecnologias em tempo real constituem a própria fundação de nossa sociedade de informação”16

Resta saber se os novos radialistas sabe-rão explorar a contento os dispositivos que favorecem seu trabalho. Por enquanto, as máquinas estão mostrando “inteligência” ao escolher determinada play-list a partir das tags (palavras-chave) de ouvintes que acessam serviços como Last FM17, Pando-ra18 ou Musicovery19. Produções radiofôni-cas ainda não exercem esse novo conceito de programar a partir de preferências.

A rede é usada para articular as pessoas. E ouvir um audiocast é muito fácil: basta ter instalado no computador um agregador de audiocast, como o iTunes ou o Winamp, ambos gratuitos. O agregador faz o trabalho de verificar as atualizações dos audiocasts assi-nados e transfere automaticamente o arquivo MP3 atualizado para o computador de quem assina. Uma vez armazenado no computador, é possível enviar os arquivos para qualquer player de MP3, ou ouvir na máquina mesmo. Assim, a audiência pode ouvir ou, se quiser, participar de experiências coletivas.

É claro que essa possibilidade surge com o advento da Internet e a disseminação de suas inúmeras facilidades de comunicação. Tudo começou com as web-rádios, rádios disponibilizadas na Internet para que usuá-rios de qualquer parte do planeta pudessem

Page 78: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

93Volume 7 - Nº 2 - 2º sem. 2007

Magaly Prado

ouvir algo diferente do dial local. No entanto, nem sempre os produtores inovaram. Muitos repetiram o modelo rançoso de se produzir rádio, ou seja, de forma antiquada, e correram atrás de sucesso para tentar uma populari-zação, imitando exatamente o que fazem as rádios de grande audiência. Algumas conse-guem público “quadrado” - aquele que ouve no dial as rádios de primeiro lugar no ranking de audiência e quando estão no computador, se acomodam em repetir a dose. Muitas outras rádios na Internet não se alastraram , pois grande parte de quem procura rádio na Internet quer exatamente fugir da mesmice que assola o dial convencional.

De qualquer forma, para qualquer iniciativa nesse campo, é preciso levar em consideração a existência da Internet de banda larga.

Não há como esquecer que as rádios de portais trouxeram outras iniciativas com as variadas listas de músicas, separadas por gêneros musicais, ou por artistas. Mas, convenhamos isso não é propriamente uma rádio. Para tanto, portais como o UOL (Universo Online) apostaram em pessoas famosas, não exatamente radialistas, para a produção de programas semanais nos moldes radiofônicos. A cantora Fortuna Joyce, especializada em garimpar a world music, foi uma dessas pessoas. O articulista de humor do jornal Folha de S.Paulo, José Simão, foi outro que entrou no time. Após essa experiência, Simão passou a integrar a equipe de colunistas da Band News FM, recente rede de rádio all news, sediada em São Paulo. Vale destacar aqui, a produção da turma do humorista Caco Galhardo e sua programação despretensiosa: “Fogo no Rá-dio”. Outras rádios de portais possuem esse formato, desde a primeira delas, a extinta Usina do Som, aos atuais, como o Terra.

O próximo passo seria a inclusão na Inter-net do áudio das emissoras no dial. Em uma espécie de corrida para não ficar atrás da con-corrência, inúmeras rádios disponibilizaram inicialmente apenas um botão que possibili-tava a audição da mesma programação que

entra no ar ao vivo. Posteriormente, foram aos poucos incluindo conteúdo específico para o internauta, complementando a programação direcionada a seu público.

As FMs saíram na frente, dando mais informações dos artistas que freqüentam suas grades de programação, como notícias relacionadas, letras das músicas que estão tocando na rádio, discografia completa, álbuns de fotos e promoções específicas para “ouvinternautas”. É a base do conceito de convergência das mídias, em que cada mídia acrescenta suas especificidades em outra mídia agregando informações. Ou seja, a mídia não se transforma em outra, mas ganha nessa soma.

“É a convergência das mídias, na coexis-tência com a cultura de massas e a cultura das mídias, estas últimas ainda em plena atividade, que tem sido responsável pelo nível de exacerbação que a produção e circulação da informação atingiu nos nossos dias e que é uma das marcas da cultura digital.”20

Na trilha das FMs, as AMs foram se aproximando devagar disponibilizando suas páginas na Internet primeiramente o áudio ao vivo, e mais tarde com informações complementares, dando destaque a serviços de utilidade pública, como endereços úteis, anúncios de impostos a pagar, classificados de empregos etc. O que mostrou ser de gran-de utilidade para ajuda de cidadãos carentes de informação do dia-a-dia, principalmente das grandes cidades.

Com as rádios também na Internet, o ouvinte conectado descobriu que não pre-cisava depender única e exclusivamente das emissoras locais e podia procurar fontes estrangeiras. Deu-se uma espécie de repe-tição dos primeiros dias do rádio, quando os ouvintes interessados nas programações internacionais ficavam a captar as freqüên-cias estrangeiras pelas ondas curtas. Ainda

20 SANTAELLA, Lucia. Culturas e artes do pós-humano, Editora Paulus, 2003, São Paulo, p. 17

Page 79: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

Audiocast livre: um produto da comunidade...

94C o m m u n i c a r e

hoje, essa prática é utilizada, porém, em menor proporção, por conta da populari-zação das AMs e, na seqüência, das FMs. Mas, o que antes era ouvido, mesmo com enorme dificuldade hoje, ao contrário, cada vez mais, fica fácil sintonizar rádios de qualquer lugar do mundo que esteja conectado à rede WWW.

Quando se compara o advento de no-vas tecnologias com as possibilidades de transmissão de rádio hoje, via Internet, nota-se que a liberdade de expressão, por enquanto, ainda está garantida, pelo me-nos em quase todo o planeta (salvo países onde há censura).

As webradios surgem a cada minuto na Internet. Em 2004, Lawrence Lessig apon-

tava esse crescimento:

“O rádio na Internet pode, por conseqüência, ser mais com-petitivo que o rádio comum; poderia prover uma esfera mais abrangente de seleções. E, uma vez que a audiência em potencial do rádio na Internet é o mundo inteiro, estações pe-quenas poderiam desenvolver e comercializar seu conteúdo para um número relativamente grande de usuários ao redor do mundo. De acordo com algu-mas estimativas, mais de 80 milhões de usuários ao redor

do mundo já aderiram a essa nova forma de rádio.”21

E essas rádios emergem não somente como prova de insatisfação de seus ouvin-tes, bem como da vontade de gerar novas possibilidades sonoras e também de alterar a linguagem convencional radiofônica. É só percebemos o tom descomprometido que alguns audiocasters locutam seus progra-mas, e, ainda, da incrível possibilidade de um promissor novo negócio. Por enquan-to, ainda não rende lucros atraentes, mas começa a ganhar visibilidade suficiente para começar a arrecadar anunciantes nos próximos anos. Nesse sentido, Beth Saad22 acredita em um novo ciclo para os negócios

21 LESSIG, Lawrence, Cultura Livre, <http://free-culture.cc>, <http://creativecommons.org/licenses/by-nc/1.0/>, p. 20122 SAAD, Beth. Estratégias para a mídia digital. Edi-tora Senac, 2003, São Paulo23 SAAD, Beth. Estratégias para a mídia digital. Editora Senac, 2003, São Paulo, p. 286 24 A tecnologia RSS permite que o usuário receba aviso de atualizações.25 Rheingold, Howard. MUDs e identidades alteradas. In: Leão, Lucia (org.). O chip e o caleidoscópio: reflexões sobre as novas mídias. São Paulo: Ed. SENAC, 2005. p. 44326 Muds são mundos imaginários na Internet onde os usuários vivem virtualmente em comunidades.

Com rádios na internet o ouvinte conectado descobriu que não pre-cisava depender exclusi-vamente das emissoras

digitais. Saad acompanha sistematicamente tendências, movimentações e rumos dos negócios do mundo digital, especialmente daqueles vinculados ao jornalismo. Os temas “reinvenção dos jornais”, “novas formas de negociação de conteúdos”, entre outros, têm sido recorrentes nos seus textos. Saad usa o termo desconstrução:

”Sugerimos que a melhor forma de acomo-dar dois universos distintos _ aquele feito de papel, tinta , imagens e vozes pelo éter que envolve o planeta, com o universo de tempo e espaço diferenciados _ é a idéia de desconstrução (e não destruição) do modelo organizacional associada a uma postura de permanente reconfiguração, conforme as ne-cessidades do mercado. É o que chamamos de estratégias da desconstrução’”.23

Diversos jornais, inclusive da chamada grande imprensa, como o The New York Times, para citar apenas um exemplo, dis-ponibilizam suas reportagens no formato audiocast para leitores-ouvintes.

Os audiocasts estão formando uma rede de amigos irritados em ouvir rádio tradicio-nal. Graças aos serviços de RSS24, todos com as mesmas afinidades ficam “lincados” e atualizados. O ativista Howard Rheingold25 mostra o lado selvagem do ciberespaço, em que dezenas de milhares de outras pessoas infelizes com a vida real constroem mundos de fantasia na net. O surgimento das muds26 e das identidades alteradas nas comunidades virtuais servirão para entender esse descon-tentamento por parte dos internautas.

Page 80: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

95Volume 7 - Nº 2 - 2º sem. 2007

Magaly Prado

27 Cláudio Zilbenberg, em Nova York.28 http://www.creativecommons.org.br/

29 ASSIS, E. G. Táticas lúdico-midiáticas no ativismo político contemporâneo, Dissertação de mestrado, São Leopoldo, janeiro de 2006. <http://pontomidia.com.br/eri-co/rodape/ericoassis-dissertacao.pdf> p. 27

Interatividade + interferência

A história é marcada por processos de condensação de tempo e espaço em função de processos de aceleração da interação. Mais do que poder produzir uma rádio pessoal com a Internet, o novo radialista dispõe de ferra-mentas que dão acesso aos “ouvinternautas” de aumentarem a interatividade tanto com o produtor do programa, quanto com os demais ouvintes sintonizados. Mensagens por e-mail são mais fáceis e, principalmente rápidas, do que cartas pelo correio normal. Telefonemas, antigamente, eram difíceis por causa das linhas congestionadas, hoje, esquemas como o Skype ou MSN, são possíveis não só para falar, bem como para gravar as mensagens de voz, com muita facilidade. Mais do que mandar uma idéia radiofônica e esperar a resposta, que até pode ser imediata, outra ferramenta funciona de forma imperativa: os Chats em tempo real oferecem ao “ouvin-ternauta” a chance de interferir de maneira consistente no produto radiofônico. E a idéia é exatamente essa. Não somente acatar suges-tões ou reclamações da programação, mas, principalmente, permitir a interferência.

Na produção conjunta, a responsabi-lidade do novo produto radiofônico “dar certo” não é só do radialista, como também do “ouvinternauta”, já que a nova forma de se fazer rádio permite a interferência em produção e edição.

Hoje, atitudes de colaboração não faltam. O jornalismo colaborativo, por exemplo, está em todas as mídias como destaca notícia do site Blue Bus, de 19 de dezembro de 2006.

Quando a revista Time divulgou a sua esco-lha para Personalidade do Ano, não gerou muita polêmica. A Internet entrou em sua 2ª fase - a chamada web 2.0 - proporcionando uma verdadeira interatividade e participação dos internautas. E com isso, afinal, a cultura do conteúdo gerado pelos usuários se esten-deu praticamente a todas as mídias.27

E as possibilidades não se restringem ao radiojornalismo ou ao rádio musical. O

“ouvinternauta” também pode interferir em peças radiofônicas de radioarte, pode compor partes musicais ou complementar a composição com a adesão de mais instru-mentos, sempre recriando e recolocando na rede para que todos possam ouvir, comentar e recriar novamente sem omitir os créditos. Na base de licenciamento nos moldes do Creative Commons28 o ouvinte assina sua criação com o compositor original.

Cuidado excessivo com a produção de audiocast e a necessidade de constante atualização das edições são os motivos pelos quais muitos radialistas ainda resistem em começar a gravar seus audiocasts. Como são profissionais, acham que um audiocast deles precisa ser bem feito, bem produzido. E claro, algo diferente do que existe no rádio tradicional. E em se tratando desse projeto de rádio, com interferências dos ouvintes, é necessário estar aberto a mudanças na produção e edição, deixar de lado a autoria e receber as idéias da comunidade. Não se trata simplesmente de jamming - uma sub-versão aos processos de mercado. Segundo Érico Gonçalves de Assis,29 o termo jamming é uma gíria da língua inglesa associada com a prática de interferir em transmissões de rádio com ruídos ou sobreposição de transmissões. Vem do verbo to jam, que é utilizado com diversos significados, como entupir, perturbar e confundir. Uma tradu-ção aproximada de culture jamming seria, portanto, “causar confusão na cultura”.

A partir da prank art _movimento artísti-co-político que pregava peças, visando chocar as pessoas em relação à vida social e às insti-tuições_ a cultura jamming se fortaleceu.

A prank art assumiu caracteres políticos em certos pontos, mas em sua grande parte – obras de Boyd Rice, Monte Cazazza,

Page 81: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

Audiocast livre: um produto da comunidade...

96C o m m u n i c a r e

Delford Brown, Frank Discussion e outros – era tomada pelo imaginário artístico-de-safiador, visando mais o ultraje pelo choque do que um questionamento calculado da “autoridade das aparências”. Mas é ela que serve de fonte para o crescimento da culture jamming nos anos 90. Perde-se um pouco do caráter artístico da prank art, em favor da subversão de elementos do ambiente capita-lista – a publicidade, as instituições político-econômicas, as mentalidades conservadora – com um tom ao mesmo tempo de crítica, deboche e discussão democrática do que se tem como dado no cotidiano.30

Em uma rádio imaginada com esse tom, que convoque artistas e ativistas que produ-zem áudios relativos a ações de protestos, a intenção é relacionar o caráter de oposição

dessas manifestações e a con-testação dos valores. Impor-tante ressaltar que uma rádio que se pretende livre precisa trabalhar com software livre. Não é possível falar de liber-dade utilizando software pro-prietário. Para o programador Richard Stallman31 que aju-dou a desenvolver o sistema operacional GNU/Linux, não existe liberdade no mundo da tecnologia para quem usa aplicativos com restrições e com o código fechado, como

o Windows e o Microsoft Office. A idéia é mapear entre os novos pro-

dutores de rádio que subvertem o modo tradicional de se fazer programação radio-fônica _da musical à informativa. Verificar como lidam com as ferramentas de rádio livre, como tiram proveito da liberdade de expressão e do desprendimento de se pro-duzir áudio de forma pessoal, porém, com abertura para interferências coletivas. E convidá-los a participar dessa comunidade, que de descontentes passará a contentes em fazer algo pertinente.

Tentar descobrir como esse novo com-portamento radiofônico e maneiras diferen-tes de expor linguagens afetam a audição é a

Essas rádios emergem da insatisfação dos ouvintes e da vontade de gerar novas possibilidades sonoras

30 ASSIS, E. G. Táticas lúdico-midiáticas no ativismo político contemporâneo, Dissertação de mestrado, São Leopoldo, janeiro de 2006. <http://pontomidia.com.br/erico/rodape/ericoassis-dissertacao.pdf> p. 2731 O programador Richard Stallman é ativista político. Defende o software livre.

32 A net-artista Giselle Beiguelman é professora da pós-graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP.

parte mais lúdica. Se existe uma preocupa-ção por uma sociedade democrática nessas manifestações, uma renovação na radiodi-fusão, um desejo de transformar o jeito de se fazer rádio, uma chama ainda insípida para uma futura mobilização, ou se a maioria apenas se rebela contra o que está cansada de ouvir, é outra razão de continuar nessa imersão, já que se trata de um produto muito recente, e em constante modificação.

A partir de todos os elementos considera-dos até agora, poderíamos obter interessante mapeamento dos novos territórios sonoros e do comportamento do ouvinte de hoje, aque-le que também produz o que quer ouvir, nesse mundo do áudio fragmentado, como a pró-pria rede que é um mecanismo de fragmen-tação por excelência. Porém, enquanto uma rádio como essa não se inicia, temos apenas questões. Parafraseando a artista digital Gisel-le Beiguelman32, estaríamos presenciando o rádio depois do rádio? Com a facilidade de se fazer rádio na Internet, principalmente com a colaboração alheia, seria certo dizer que a web já está recheada de produtos, e infelizmente, de maus produtos também? Claro. Não há como não esbarrar na banalidade, nem na Internet e nem no dial. E no final? Sobraria apenas aqueles que se sustentam? Que pos-suem conteúdo atraente?

Por outro lado, existiria uma forma de desorganização das relações de poder, como não mais depender de dirigentes de emisso-ras, desde o MP3 que desmantela o poder de distribuição de CDs, até o confronto com a audiência das rádios no dial tradicional? Seria uma maneira de encampar o mesmo tipo de esquema, aquele em que a própria rede opera contra a estruturação? Seria o início de um espaço sonoro liso?

Page 82: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

97Volume 7 - Nº 2 - 2º sem. 2007

Magaly Prado

Referências bibliográficas

ASSIS, E. G. Táticas lúdico-midiáticas no ativismo político contemporâneo, Dissertação de mestrado, São Leopoldo, janeiro de 2006. < http://pontomidia.com.br/erico/rodape/ericoassis-dissertacao.pdf>

BACHELARD, G. O direito de sonhar. 1985. São Paulo, Difel.BARLOW, John Perry. Declaração da independência do ciberespaço <http://www.dhnet.org.br/ciber/textos/barlow.htm>BlueBus – <http://bluebus.com.br>DEL BIANCO, Nélia e MOREIRA, Sônia Virgínia (orgs). Rádio no Brasil – Tendências e

Perspectivas. Editora Rio de Janeiro/Brasília. UERJ/Editora UnB. DERY, Mark, Culture Jamming: Hacking, Slashing and Sniping in the Empire of Signs, em 1993.Intermezzo- <http://imezzo.wordpress.com/> Último acesso em 7/10/2007.LEÃO, Lucia (org). O Chip e o Caleidoscópio – Reflexões sobre as novas mídias, Editora Senac São

Paulo, 2005, São Paulo.LEMOS, A. L. M. A Liberdade das Ondas. O Movimento Wi-Fi, Salvador - Bahia, v. 2, n. 15, 2002.

<http://www.facom.ufba.br/ciberpesquisa/andrelemos/wi-fi.htm>LESSIG, Lawrence, Cultura Livre, <http://free-culture.cc>, <http://creativecommons.org/licenses/

by-nc/1.0/>.MACHADO, A, MAGRI, C, MASAGÃO, M. Rádios Livres – A reforma agrária no ar. São Paulo:

Editora Brasiliense, 1987MANOVICH, Lev. Novas mídias como tecnologia e idéia: dez definições. In: In: Leão, Lucia (org.).

O chip e o caleidoscópio: reflexões sobre as novas mídias. São Paulo: Ed. SENAC, 2005.MOREIRA, V, Sonia e BIANCO, R, del, Nélia (orgs) Desafios do rádio no século XXI – São Paulo:

Intercom; Rio de JaneiroUERJ, 2001PRADO, Magaly. Produção de Rádio – Um Manual Prático. Editora Campus / Elsevier, 2006, Rio

de Janeiro.PostWorldIndustries. <http://www.postworldindustries.com/>Rheingold, Howard. MUDs e identidades alteradas. In: Leão, Lucia (org.). O chip e o caleidoscópio:

reflexões sobre as novas mídias. São Paulo: Ed. SENAC, 2005.SAAD, Beth. Estratégias para a mídia digital. Editora Senac, 2003, São Paulo SANTAELLA, Lucia. Culturas e artes do pós-humano, Editora Paulus, 2003, São Paulo. STALMAN, Richard. Philosophy of the GNU Project <http://www.gnu.org/philosophy/philosophy.html>ZAREMBA, L. e BENTES, I. (orgs.). Rádio Nova, constelações da radiofonia contemporânea, Rio

de Janeiro: UFRJ, Publique, 1999.

Page 83: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

Audiocast livre: um produto da comunidade...

98C o m m u n i c a r e

Page 84: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

Comunicação: Tecnologia e Política

Maria Inês Amarante Mestre em Comunicação Social pela UMESP;

Doutoranda do Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da PUC-SP

[email protected]

Resumo

A proposta deste trabalho é mostrar os modos de participação de adolescentes na produção de mensagens radiofônicas e no Timor-Leste e no Brasil, enfatizando o uso da dramaturgia dentro de universos culturais distintos. Nota-se que o gênero dramático, notabilizado na era de ouro do rádio, oferece ao jovem meios para expressar-se como ser social identificado com a vivência comu-nitária e, enquanto estratégia educativa, desperta os ouvintes para a reflexão e o aprendizado de conteúdos pluridisciplinares.

Palavras-chave: radiodramaturgia; adolescentes; educação e cultura; Timor-Leste; Brasil.

Abstract

The proposal of this work is to show the ways of participation of adolescents in the production of radiophonical messages in East-Timor and Brazil, emphasizing the use of the dramaturgy of distinct cultural universes. Note that the dramatic genre, which was highlighted in the golden era of the radio, offers to the youngs the ways to express themselves as a social being identified with the communitarian experience and, as educational strategy, awakens the listeners for the reflection and the learning of the multidisciplinary contents.

Key words: radiodramaturgy; adolescents; education and culture; East Timor; Brazil.

Resumen

La propuesta de este trabajo es mostrar los modos de participacíon de adolescentes en la produccíon de mensajes radio-fónicos en Timor-Este y en Brasil, dando énfasis al uso de la dramaturgia dentro de universos culturales distintos. Se ve que el drama, que se destacó en la edad de oro de la radio, ofrece al joven los medios de manifestarse como ser social identificado con la vivencia en comunidad y como estrategia educativa despierta los radioescuchas para el aprendizaje multidisciplinar.

Palabras clave: radiodramaturgia, adolescentes, educacíon y cultura; Timor Este, Brasil.

Radiodramas, adolescentes e comunidades: experiências no Brasil

e no Timor-Leste*

Radiodramas, adolescents and community: experiences in Brazil and East-Timor

Page 85: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

Radiodramas, adolescentes e comunidades

100C o m m u n i c a r e

* O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - Brasil1 Comunidade dos Países de Língua Portuguesa.2 BORDENAVE, Juan E. Diaz. O que é comunicação? São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 17.3 ZUMTHOR, Paul. Escritura e Nomadismo. Entrevis-tas e ensaios. Trad. Jerusa Pires Ferreira, Sonia Quei-roz, Cotia, São Paulo: Ateliê Editorial, 2005, p. 70.4 substituir por: ZUMTHOR, Paul. Permanencia de la Voz. Correio UNESCO, n. 21, 1982.5 ZUMTHOR, Paul. Escritura e Nomadismo. Entrevis-tas e ensaios. Trad. Jerusa Pires Ferreira, Sonia Quei-roz, Cotia, São Paulo: Ateliê Editorial, 2005, p. 94.6 MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem (understandind media). São Paulo: Cultrix, 1964, p. 344.7 Referimo-nos aqui à cidadania definida por Benevides (apud Liszt Vieira, Cidadania e Globalização, p. 40) através dos princípios da democracia, que implica a ligação necessá-ria entre democracia, sociedade pluralista, educação política e democratização dos meios de comunicação de massa.

que ele chama de “situações de oralidade” no mundo, da qual faz parte uma oralidade mediatizada, aquela que nos oferece o rá-dio, o disco e outros meios de comunicação (esta última forma de oralidade dialoga com a oralidade mixta e a secundária).

Graças à voz, que, segundo Zumthor4, possui qualidade simbólicas e materiais, a palavra converte-se em exibição e dom (...), a língua serve apenas à manifestação dessa voz. Ao considerar a relação língua e voz, ele nos entrega uma reflexão inusitada, a de que “o significado das palavras já não importaria: graças ao domínio de si mesmo que ela mos-tra, a voz sozinha é suficiente para seduzir... como nos ensinaram os antigos com o mito das sereias”. E, no rádio, ela será amplificada pelo microfone “cuja particularidade é a de conduzir a voz para além de seus limites”5 favorecendo a criação do que McLuhan chamou de “uma mesma câmara de eco”, uma “aldeia global”. No entanto, “ao mesmo tempo que reduz o mundo a dimensões de aldeia, o rádio não efetua a homogeneização dos quarteirões da aldeia”6. Ele serviria para personalizá-la, vivificar a cultura local.

Dadas as atuais incertezas sobre os modos de inserção cidadã7 dos receptores na mídia, apesar das conquistas tecnológi-

Introdução

s experiências educativas, tendo o rádio como veículo de expressão, podem indicar a proximidade

entre crianças e jovens de várias partes do mundo, principalmente aqueles que vivem nos países que compõem a CPLP1 e têm em comum o uso da língua portuguesa.

Apesar das diferenças havidas no modo como crescem ou se socializam, toda a prática de comunicação que os educandos acumulam, no contato e na interação com a família, o grupo social, o ambiente escolar e a mídia, contribuem para a formação cultu-ral ou adoção de determinada cultura numa fase importante da aprendizagem e que vai

constituir um patrimô-nio cultural próprio, ou, como lembra Bordenave,2 “modos de pensamento e de ação, crenças e valores, hábitos e tabus”.

Quando pensamos no rádio, remetemo-nos ime-diatamente à voz, trans-missora da palavra e da oralidade, pois o código oral possui elementos de expressividade que não são alcançados pelo escrito.

Para Zumthor3, “o rádio só deixa subsis-tir aquilo que é auditivo”. Porém, o mesmo autor observa que “como há tempos se extinguiu em nossas sociedades ocidentais a paixão pela palavra viva (...) daí advém nossa dificuldade em reconhecer a validade estética do que, por sua intenção ou efetiva-mente, escapa da esfera do escrito”.

Assim, pensamos na importância da transmissão de mensagens radiofônicas em tempos de uma nova cultura oral, sobretu-do, em comunidades com predominância das tradições orais. O autor lembra que, entre a oralidade e a escrita, opõem-se dois tipos de civilização, mas, na maioria das sociedades, convivem homens da voz e da escrita. Daí o esboço de uma tipologia do

A

Page 86: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

101Volume 7 - Nº 2 - 2º sem. 2007

Maria Inês Amarante

8 DIZARD JUNIOR, Wilson. A Nova Mídia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 32-52.9 MORAES, Quartim de. Multiculturalismo e Identi-dade: o papel dos meios de comunicação e da escola. Revista Comunicação & Educação, São Paulo:ECA-USP, no 21, Ano VII, maio/agosto de 2001, p. 41.10 JACQUINO, Geneviève, L’éducommunicateur, p. 1.

11 Ao evocar Brecht em seu artigo Rádio: interatividade entre rosas e espinhos, Gisela Ortriwano retoma este conceito para sugerir uma interação emissor/receptor.

12 GOHN, Maria da Glória. Os sem-terra, ONGs e cida-dania. São Paulo: Cortez, 1997, p. 55.

13 Entrevista concedida à autora em 20/06/03, em For-taleza/CE.

modelos e parcerias com o poder público em inúmeras ações educativas.

Uma dessas experiências ocorreu em 1998, na cidade de Fortaleza, no Ceará, envolvendo seis escolas da rede pública municipal. A Arcos-Cepoca, ONG dirigida por comunicadores comunitários, com apoio da cooperação belga, a Prefeitura Municipal e o UNICEF, uniram-se em tor-no de um projeto de rádios comunitárias escolares, emitindo, através de um sistema de alto-falantes e caixinhas de som, ins-talados na entrada das salas de aula e nos pátios ou quadras de esporte. Após uma formação em comunicação participativa oferecida aos alunos comunicadores, que incluía a escrita de textos ficcionais (so-ciodramas), aqueles passaram a produzir programas de forma criativa, em estúdios bastante simples, montados em cada es-cola. O princípio era conseguir fazer com que despertasse o interesse em trabalhar a comunicação educativa e se voltasse à prática comunitária, como enfatiza José Wilson de Sousa Silva13, membro da diretoria da ONG naquele período. A comunicação deveria ser feita de aluno para aluno, usando linguagem própria e a idéia era motivá-los também a ocupar espaços de comunicação no bairro, nas rádios comunitárias existentes.

O drama foi o gênero que mais atraiu os adolescentes. Tal preferência deve-se, em parte, ao predomínio da oralidade sobre a escrita, bem como ao uso local do teatro po-

cas do mundo globalizado apontadas por Dizard8, toda convergência de ideais edu-cativos, políticos e sociais merece atenção e análise apuradas. Se, por um lado, a criança e o jovem crescem num ambiente altamente individualizado e competitivo, por outro, há que se criar para eles alternativas de participação nos grupos mais próximos, buscar modos de inseri-los na comunidade à qual pertencem.

Muitos educadores têm cumprido parte deste papel, na escola ou fora dela e a mudan-ça do foco do ensino para o do aprendizado implicou numa maior autonomia de apren-der, dentro da “perspectiva de promover o homem à plenitude de sua condição de indivíduo apto a pensar criticamente e sentir afetivamente, com o necessário equilíbrio entre a razão, a emoção e o sentimento”9.

Para além de uma lógica de mercado, que tem imperado na concessão e no uso dos meios de comunicação no Brasil, em contraponto ao serviço público e comu-nitário oferecido no Timor-Leste, ou dos erros e acertos dos modelos educativos adotados nos dois países, por mais utópica que ainda possa parecer a participação de crianças e jovens nos meios de comuni-cação de massa, há muitas iniciativas em curso, uma vez que não é mais possível ne-gligenciar a influência que a mídia exerce no ambiente escolar e na cultura local”10. Uma delas é a de transformar o rádio em um veículo de “dupla mão de direção”11, verdadeiramente educativo, democrático e interativo, ao mesmo tempo em que se promove uma educação voltada aos meios de comunicação a partir da escola.

O drama na rádio comunitária da escola

No Brasil, a presença ampliada de ONGs, nos anos 1980, como conseqüên-cia da mobilização da sociedade civil em tempos de abertura política, como lembra Gohn12, deu um novo impulso às interven-ções sociais de cunho não-formal, criando

Page 87: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

Radiodramas, adolescentes e comunidades

102C o m m u n i c a r e

seu apogeu nos anos 1950. As radionovelas têm sua origem no romance-folhetim francês do século XIX, histórias seriadas divulgadas em jornais, como forma de popularização da literatura. O gênero foi amplamente explora-do na América pelos monopólios comerciais de rádio, como a RCA e a NBC, buscando adaptar-se ao gosto de seus ouvintes mais fi-éis: as mulheres donas-de-casa, público-alvo consumidor de produtos de higiene e limpe-za. As “soap operas”, como eram chamadas as primeiras novelas de rádio, tinham como patrocinadores grandes empresas, hoje de-nominadas multinacionais, como a Colgate, Lever, etc. As histórias eram longas e todos acompanhavam seu desenrolar por muito tempo, participando da vida e dos dramas de seus personagens, enquanto florescia o consumo e o desenvolvimento industrial20. O Brasil importou de Cuba a radionovela mais ao gosto do público latino, explorando o lado melodramático ou trágico da vida. As novelas cubanas emocionavam legiões de mulheres, que choravam ao lado do rádio.

A televisão foi a grande herdeira dessa ex-periência radiofônica e não poupou recursos e atrativos para produzir histórias sedutoras, transformando o gênero em um dos mais importantes produtos da indústria cultural brasileira, como enfatiza Baccega21.

14 VIGIL, José Ignacio López. O Sociodrama. São Paulo: ALER-Brasil/Paulinas, 1988, p. 11.15 CANDIDO, A. et al. A personagem de ficção. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 1972, p. 45.16 HELBO, André; JOHANSEN, J. Dines; PAVIS, Patrice; UBERSFELD, Anne (orgs). Le théâtre et les medias: spécificité et interférences. Théâtre: modes d’approche. Meridiens Klincksiek, Paris: Editions Labor, 1987, p. 41.17 Tradução livre da autora do texto original francês.18 BORELLI, Sílvia Helena Simões, MIRA, Maria Celeste. Sons, imagens, sensações: radionovelas e telenovelas no Brasil. São Paulo, Revista Intercom, V., XIX, n. 1, p. 33-57, jan./jun., 1996, p.40. 19 Sperber, George Bernard (org.). Introdução à peça radiofônica, p. 117.20 BORELLI, Silvia Helena Simões; ORTIZ, Renato; RA-MOS, José Mário Ortiz, Telenovela. História e Produção.21 BACCEGA, Maria A. Aproximações à telenovela: os encontros de ressignificação, p. 353.

pular para se debater e refletir sobre os acon-tecimentos cotidianos. Segundo Vigil14

A melhor maneira de entender a vida é voltar a vivê-la. Quando repetimos os fatos que nos aconteceram, representamos as situações (...), estamos nos vendo como em um espelho e podemos compreender mais facilmente nossa realidade. E até podemos inventar uma solução melhor para os problemas que temos.

A ação dramática representada pelo personagem de ficção, que vivencia situ-ações-limite e enfrenta os conflitos15 revela aspectos essenciais da vida humana e faz com que ele ganhe mais coerência que as pessoas reais. Ao abordar o teatro, levan-do-se em conta a especificidade do rádio, Helbo16 traz-nos a idéia de que:

O transmissor multiplica os lugares onde o teatro se insi-nua. No rádio, encontramos uma nascente intimista, quase religiosa da palavra e ela remete a um estado paradisíaco de uma literatura unicamente oral. Sem estar totalmente estático em um único local, como no teatro ou ao assistir a televisão, o ouvinte encontra-se em uma situação de escuta próxima de um sonhar acordado ou fantasiar. Através do veículo, ele mantém um tipo de monólogo interior: seu corpo fica como num estado

desmaterializado e ele então recebe o eco amplificado de seus sonhos e pulsões17.

A incompletude do rádio em relação a to-dos os recursos visuais que oferece a televisão, como nota Borelli18 “valorizaria a estimulação da imaginação e a criatividade do ouvinte, e essa possibilidade de liberar a imaginação é uma virtude da radionovela, constantemente reafirmada por seus autores e intérpretes”. A idéia é compartilhada por Sperber19, segundo o qual “a palavra e o ruído só podem fazer surgir uma imagem do acontecimento real através da ilusão que produzem em nós”.

O gosto popular pelo drama em série marcou profundamente a história do veículo no Brasil, a partir dos anos 1940, para atingir

Para construir suas histó-rias, os alunos realizaram pesquisas sobre os mais diversos temas sociais no decorrer da produção

Page 88: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

103Volume 7 - Nº 2 - 2º sem. 2007

Maria Inês Amarante

22 Devemos lembrar que o sociodrama, cuja particu-laridade é “contar uma história breve do que está ocorrendo no bairro ou na comunidade, não exige o desenlace da história, cujo final fica em aberto, nisso residindo a sua principal diferença de outros formatos dramáticos” (José Ignácio Vigil, O Sociodrama, p. 199-00/ tradução nossa). (1988, p. 97)23 GREIMAS, Julien A. Sémantique structurale: recherche de méthode, p. 172-189.

24 PALLOTTINI, Renata. Dramaturgia: a construção do personagem. São Paulo: Ática, 1989, 147-9.

25 BOAL, Augusto. Teatro do oprimido e outras poética políti-cas, 5a ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1988, p.97.

modo individualizado, finalizando com um conselho único de valor educativo.

A análise dos diálogos foi baseada nas propostas de Greimas23 que, através de um esquema, indicando as funções dos persona-gens - enquanto sujeito, objeto, destinatário, árbitro (ou motor do drama), adjuvantes e oponentes -, facilita a compreensão da dinâ-mica das relações de interdependência que estabelecem entre si ao longo da história, enquanto “actantes” de um micro-universo. Tal concepção permite-nos compreender qual é o sentido geral da atividade que lhes é atribuída, em que ela consiste, se é transformadora e qual é o enquadramento estrutural dessas transformações.

Levando-se em consideração essa relação de forças e os conflitos decorrentes delas, foram verificadas as manifestações de ordem afetiva, psicológica, sociológica e educativa, como sugere Pallottini24, aplicadas aos textos dos adolescentes, onde aparecem os tópicos principais da composição do drama. Ten-tou-se evidenciar, ao longo do processo, a intencionalidade desses alunos, pois, como lembra Boal25, a escolha do tema, da história e dos personagens já revela uma tomada de posição por parte do autor.

É interessante notar que toda a ação das personagens “mães” deste drama é centrada em um conflito principal: a falta de entendi-mento entre genitoras e seus filhos, que se agrava na adolescência, fase em que a autori-dade é contestada, ao mesmo tempo em que novos laços são criados e solidificados. Como

Nas rádios comunitárias escolares, o exercício do imaginário, a partir da cons-trução de radiodramas, além de revelar-se uma atividade prazeirosa para os adoles-centes, também trouxe a esses pequenos comunicadores o sentimento de pertença a um determinado meio cultural, valorizando-os como pessoas e enquanto mediadores e produtores de mensagens passíveis de des-pertar a sensibilidade de um largo público ouvinte, sobretudo da própria comunidade. Para construir suas histórias, os alunos re-alizaram pesquisas sobre os mais diversos temas sociais no decorrer da produção, a fim de torná-las verossímeis e educativas. O trabalho cotidiano com essa diversidade de assuntos, bem como o contato com pessoas e organizações do meio comunitário, fontes de informação para as matérias que aborda-ram, resultaram em uma intervenção mais aprimorada junto à comunidade escolar e na rádio, ampliando o debate sociocultural.

Um dos exemplos é o sociodrama22 “A Família na escola”, produzido pelos alunos da Escola de 1º Grau Dolores Alcântara, onde foi instalada a Rádio-escola A VOZ DO DOLORES. O texto apresenta uma conversa entre várias mães - que vão à escola em busca de conselhos para resol-ver os problemas e esclarecer dúvidas, em relação à educação de seus filhos, com as professoras e a diretora. A primeira delas tem dificuldade em esperar para ser atendi-da; a segunda teme pela gravidez da filha; a terceira não consegue aproximar-se do filho; a quarta preocupa-se com documentos; a quinta aflige-se com a rebeldia do filho e a sexta nota que seu filho não faz as tarefas. As professoras e a diretora vão intervindo nessas questões, procurando delimitar seus papéis enquanto educadoras e remetendo às mães suas responsabilidades no lar e quanto à educação dos próprios filhos.

Pode-se considerar o texto um drama re-alista, construído nos moldes de um consul-tório sentimental, em que cada mãe de aluno (paciente/cliente) apresenta seus problemas ao corpo docente que tenta resolvê-los de

Page 89: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

Radiodramas, adolescentes e comunidades

104C o m m u n i c a r e

26 MACIVER, R.M.; PAGE, Charles H. C. Comunidade e so-ciedade como níveis de organização da vida social, P. 129.27 OROZCO-GOMEZ, Guillermo. Professores e meios de co-municação: desafios, estereótipos. Revista Comunicação & Educação. Curso de Gestão de Processos Comunicacionais CCA/ECA/USP, São Paulo: Editora Moderna, Ano III, no 10, Set-Dez 1997, p. 57.

conflitos subsidiários, aparecem o de uma mãe com o marido; o do marido com a filha grávida; o de outra mãe com a lida domésti-ca, que lhe rouba o tempo, impedindo-a de participar de reuniões na escola; bem como o da desconfiança de uma professora que se estabelece ao longo de um dos diálogos.

Ao analisar a adequação dos meios empregados pelos autores, para expor os problemas, percebe-se que o tema tem, nas reuniões de pais e mestres, sua principal fonte de inspiração. Após sua apresenta-ção na escola, a pergunta feita às famílias presentes, para iniciar-se o debate sobre a importância da participação dos pais no rendimento escolar dos filhos, bem como discutir a questão da violência na escola foi:

Por que a família na escola?Por meio do jogo teatral

projetivo, com personagens que muito se assemelham às próprias mães, os jovens autores encontraram um modo didático de comuni-car-se com todo o grupo e, muito particularmente, com as mães espectadoras. No entanto, a figura paterna foi (e é) sempre a grande ausen-te na escola, quase nunca participando da educação escolar dos filhos. Parece

contraditória esta atitude em relação aos pa-drões culturais vigentes, calcados na figura masculina que detém autoridade.

O linguajar simples das mães, em con-traste com a linguagem mais aprimorada das professoras e da diretora, sugere um jogo de articulações verticalizadas que, embora denotem uma solidariedade real, cria um certo distanciamento hierárquico-cultural entre a família e o corpo docente. Os professores “sabem mais” e têm auto-ridade para dar conselhos; já as mães “sa-bem menos” e se mostram despreparadas para educar seus filhos.

Os alunos auto-caracterizaram-se de forma mais ausente, sempre conduzidos

Ainda não existe uma in-dústria cultural própria em Timor-Leste. Em 2005, havia apenas seis jornais locais em circulação

pelos desejos e autoridade das mães, dire-toras ou professoras, destituídos de espaço para manifestar suas opiniões sobre os questionamentos ou as decisões que vão sendo tomadas a respeito deles próprios. Esse modo original de apresentar uma cer-ta “incomunicabilidade” com os adultos, sugere a necessidade de um diálogo maior sobre assuntos que extrapolam o domínio escolar para adentrar-se na vida privada e afetiva, fonte de inúmeros conflitos de ge-rações que se expande na comunidade.

É importante que se estabeleça esse con-tato, uma vez que, para a criança, segundo MacIver e Page26, a família aparece como “uma comunidade preliminar que a prepara para a comunidade maior”. Para estes auto-res, por meio de gradações imperceptíveis, à medida que se desenvolve, a criança trans-forma-se também para a comunidade, inver-tendo-se em uma associação de interesses, muitas vezes intensos, mas limitados.

No entanto, a participação dos pais nas atividades da escola, da forma como foi tratada, mostra a intenção de aproximá-los de modo mais significativo das vivências e dinâmicas comunitárias, bem como dos res-ponsáveis pela educação formal de seus filhos, estabelecendo um novo diálogo entre todos os que cumprem a função de educadores - tanto na esfera pública, como na privada -, o que só vem beneficiar o próprio adolescente.

Na concepção de Orozco Gómez27 “a escola e a família enquanto instituições especificamente encarregadas da educação das crianças e jovens são talvez as mais desafiadas pela presença dos modernos meios e tecnologias de informação”. Visto desse modo, muitos dramas vividos por eles podem não ter sido trabalhados em

Page 90: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

105Volume 7 - Nº 2 - 2º sem. 2007

Maria Inês Amarante

28 Em pesquisa realizada em Timor-Leste em 2002, Del Castillo (Loro Sa’e, allá donde nace el sol) observa que a história oficial deve-se, em grande parte, à visão e aos registros dos estrangeiros que por aí passaram, principalmente europeus, característica que, até certo ponto, apresenta semelhanças com a de outros povos que viveram sob a dominação portuguesa.29 AMARANTE, Maria Inês. Rádio comunitária na escola: protagonismo adolescente e dramaturgia na comunicação educativa. Dissertação de Mestrado em Comunicação Social, S. Bernardo Campo, UMESP-Uni-versidade Metodista de São Paulo, 2004, P. 172.30 A saber, o tétum, o bahassa indonésio e, em menor escala, o português, que foi introduzido mais recente-mente em parte da programação e que, para ampliar-se, depende da proficiência dos comunicadores. 31 Comunidades Eclesiais de Base.32 AMARANTE, Maria Inês. Op. cit, p. 45.

33 Segundo dados apresentados no Relatório do UNICEF, em 2002, em todo o país, somente 30% das casas tinham um aparelho de rádio e 10% possuíam televisão.34 CARDOSO, Luís. O crocodilo fez-se ilha, In: Camões, Pontes Lusófonas, n. 1, Abril/Junho, 1998, p. 104.

profundidade, mas o fato de merecerem debate na escola e, certamente, uma parti-lha de idéias, gerou novas reflexões críticas sobre a convivência familiar e as formas de se unir para obter conquistas sociais.

A dramaturgia no rádio de Timor-Leste

Na República Democrática de Timor Leste - RDTL, nação mais jovem do mundo e o mais novo país a integrar a CPLP - Comu-nidade dos Países de Língua Portuguesa, o rádio sempre teve grande importância, pois serviu ao movimento de resistência no perí-odo em que o invasor indonésio controlou a mídia oficial e perseguiu as rádios clan-destinas (de 1975 a 1999). Assim, em novos tempos de cidadania, o veículo tem sido fundamental como fonte de reconstrução histórica, que tem por base o que é contado pelo povo e transmitido através de seus mi-tos, na falta de documentação local28.

Com uma população de quase um mi-lhão de habitantes, dos quais dois terços são crianças e jovens com menos de 25 anos, o alto índice de analfabetismo, que chega a atingir 50% dos moradores da ilha, é preocupante. Daí ser o rádio um importante meio informativo e educativo.

Entre 2001-2003, estúdios e equipamen-tos de rádios comunitárias foram instalados para cobrir todo o território nacional29. Em-bora a ausência de manutenção técnica e de cursos de formação para comunicadores di-ficulte os serviços de transmissão e produção em três idiomas locais30 dessas 16 emissoras comunitárias FM, o espectro radiofônico é composto igualmente de rádios que emitem em inglês (BBC), emissoras AM e FM das comunidades católica e evangélica; uma rádio livre, a RDP portuguesa e uma emissora oficial, a Rádio Timor Leste, da RTTL.

Recentemente, uma rádio comunitária de alto-falantes foi inaugurada na Ilha de Ataúro, por iniciativa do Pe. Francisco Moser, que atuou em CEBs31 de Fortaleza32 e que hoje promove uma ponte entre as

iniciativas da juventude daqui e de lá. Em Ermera, na Rádio Comunidade Café, há alunos de uma escola primária usando o radioteatro para abordar temas de saúde, hi-giene, campanhas de aleitamento materno e contra a violência familiar. Deste modo, a participação da juventude na programação dessas rádios está sendo iniciada.

Ainda não existe uma indústria cultural própria em Timor-Leste. Em 2005, havia ape-nas seis jornais locais em circulação. Não há cinemas ou editoras e a rede de televisão não cobre todo o território. Se este fosse o caso, a população não teria como adquirir aparelhos e utilizá-los devido à condição social precária e às restrições no fornecimento de eletrici-dade33. Por esse motivo, há que se avaliar a grande influência estrangeira que podem re-ceber através de produtos pirateados e baratos da Ásia, dos Estados Unidos e até do Brasil, introduzindo no país um sistema de valores que não condiz com a realidade local.

Merece ser observada a divulgação cul-tural na mídia, bem como o preparo de seus agentes para uma produção direcionada ao grande público que ouve as ondas do rádio. Este é o caso da “Lenda do Crocodilo”. Es-crito por Luiz Cardoso34, autor timorense,

Page 91: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

Radiodramas, adolescentes e comunidades

106C o m m u n i c a r e

“O crocodilo fez-se ilha” é uma lenda sobre a formação geológica da ilha, cuja forma lembra a do legendário réptil.

O texto possui a estrutura literária de um conto tradicional: narra um tempo indetermi-nado e imaginário num passado longínquo e num espaço geográfico local. É um mito fundador a que se atribui veracidade, uma vez que aborda uma “universalidade”: a origem abrangente da ilha e de seu povo. Ele suscita uma “funcionalidade”, um exemplo de como se deve ter mais estima e respeito pela natureza, um modo de ser altruísta que representa os valores sociais locais. A versão é feminina, pois em outros textos, o persona-gem é um garoto e aqui é uma menina que vai gerar o povo da nova terra.

Considerando que o tex-to é uma versão escrita da lenda, pode-se entender que a tradição oral em Timor, tal qual no contexto lusófono africano, constitui uma ca-racterística dominante e não algo exclusivo – sendo que esta escrita representa a con-tinuação da oralidade.

“O Crocodilo fez-se ilha” traz a saga de um velho cro-codilo que estava perdido e encalhado na floresta, após um dilúvio, rejeitado por

outros animais porque era predador. Até que encontra uma menina bondosa cha-mada Titi, que procurava por sua família desaparecida. Os dois se aproximam, cada um com uma intenção diferente e a menina se apieda do animal e promete ajudá-lo a chegar até o mar, arrastando-o num esforço sobre-humano. Ao chegar na praia, o crocodilo agradecido e faminto decide poupar a vida de sua benfeitora e, exausto, vai-se transformando na ilha de Timor, com seus relevos e encantos, bem no meio do mar. Antes de petrificar-se, porém, ele pede à menina uma promessa: que cuidará dele (da ilha), se casará com um príncipe e povoará o território.

35 Vale lembrar que ainda não é plena a participação da criança na sociedade timorense e registram-se inúmeros casos de maus tratos na escola e violência no seio familiar, algo já quase incorporado ao cotidiano do país – sendo a violência maior a visível miséria da população.36 Em 2005, a Capes enviou o primeiro grupo de professo-res no âmbito do “Programa de formação de docentes em língua portuguesa”, do qual fez parte a autora.

Assim, em novos tempos de cidadania, o rádio tem sido funda-mental como fonte de reconstrução histórica

A adaptação dessa versão mitológica para o rádio, através de história infantil dramatizada na voz de crianças e ado-lescentes, fornece-nos elementos para compreender, para além de uma transpo-sição de códigos ou de seus componentes míticos, inúmeros fenômenos, entre eles: os recursos usados na linguagem ficcio-nal que podem despertar nas crianças seus vínculos culturais e identitários; a participação e valorização de talentos no trabalho de construção em equipe; bem como o uso da expressão em língua por-tuguesa, cuja introdução nos currículos escolares é recente.

O Grupo MAC-Crianças Unidas, for-mado por crianças e adolescentes cantores desde 2001, deu vida à lenda. Desde que surgiu, num momento importante na histó-ria do país, após longo período de domina-ção e guerrilhas, teve como bandeira cantar pelos direitos humanos, principalmente o direito das crianças35.

Há três anos, as meninas e meninos do grupo produzem e apresentam um progra-ma na Rádio Timor-Leste, para divulgar o direito das crianças e, além do canto com suas vozes melodiosas, dedicam-se ao tea-tro e às artes plásticas, aperfeiçoadas por monitores voluntários.

Durante o período passado na missão educativa do MEC/Capes junto ao MEC/Ti-mor36, a autora iniciou um trabalho de forma-ção com as crianças do MAC, primeiramente baseado no “sociodrama”, depois centrado na adaptação radiofônica da Lenda do Cro-codilo. A intenção era orientá-los para que escrevessem o roteiro, mas pela escassez do

Page 92: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

107Volume 7 - Nº 2 - 2º sem. 2007

Maria Inês Amarante

tempo dos encontros, isso não foi possível. Decidiu-se, assim, encenar a história, no rá-dio, roteirizada pela professora e os próprios participantes foram escolhendo as vozes que mais se adaptavam aos personagens, com base em testes de imitação dos animais ou no estilo da interpretação de cada criança, aproveitando para criar algumas situações vivenciadas pela protagonista da história, a menina Titi, e realizar a adaptação dos fala-res em língua portuguesa que lhes pareciam mais próximos nos diálogos.

O objetivo didático foi priorizado, atra-vés de pesquisas bibliográficas e consultas a professores de ciências sobre a vida dos répteis, cadeia alimentar, etc.

A adaptação para o rádio, feita a partir da observação da trama, compreendeu a inser-ção de elementos contemporâneos nos diá-logos, atualizando a lenda e aproximando-a do cotidiano dos protagonistas e receptores. Levou-se em conta, na concepção de Ada-mi37, que “respeitar o texto literário numa outra linguagem é romper, é transgredir, é encontrar formas de dizer o que determinado autor escreveu, com maior poder dramático, encontrando, no imaginário coletivo, lugar para determinado texto ser compreendido pelo seu público”.

Desse modo, optou-se por contar uma his-tória dentro de outra história – com a duração de três capítulos, de forma que pudesse atrair, sobretudo, o interesse de crianças ouvintes.

A estratégia usada no roteiro da adapta-ção foi apresentar o início do drama como se fosse uma aula, em que a professora “conta” a história para seus alunos. E no decorrer da narração, os personagens e seus conflitos vão se inserindo como parte integrante dessa aula.

As perguntas ou dúvidas dos alunos-personagens do drama misturam as línguas oficiais, tétum e português, com predomí-nio do português, língua instrucional falada no contexto timorense, cuja divulgação era a proposta da adaptação.

A professora, ou aluno mais estudioso, responde em português. Deste modo vão

37 ADAMI, Antonio. Mídia, Cultura, Comunicação, p. 162.38 Tradução do tétum: “Aprenda português com as crianças do Mac-Crianças Unidas”.39 XIMENES, Fernanda de Fátima Sarmento. Convergências e Divergências entre “Léqui-Tai e Lauai Tai”e o “Crocodilo fez-se ilha”. Monografia de Licenciatura em Educação. Uni-versidade Nacional de Timor-Lorosa’e, 2005, P. 62.

40 Ministro da Defesa até 2006, em palestra proferida em março/2005, em Dili, Timor-Leste

discutindo e esclarecendo as dúvidas sobre a língua e a ciência natural que desconhe-cem: a vida dos répteis ou o significado de palavras como mandíbulas, adjetivo, habi-tat, predador, lábia, que acabam por fazer parte de um mesmo contexto da narrativa, em que tudo é explicado.

A tipologia dos personagens aproxi-ma-se de personalidades bem reais: os invasores predadores, o povo ingênuo, os educadores, o amigo que vira inimigo por não concordar com as atitudes do outro, o aluno perguntador, o aluno sabido, a me-nina pura e bondosa da qual descendem todos os timorenses, etc.

O primeiro capítulo foi veiculado na Rádio Timor-Leste em novembro de 2005, durante o programa dominical do MAC, em um quadro especialmente criado para contar histórias, o “Era uma vez” – Kolia português ho labarik Mac-Crianças Unidas38.

Os recursos usados, a partir do radioteatro, que presentifica a vida, podem despertar o interesse dos alunos pela geografia, a história, as ciências da natureza, a fauna e a flora e a língua portuguesa, estabelecendo uma relação de interdisciplinaridade – ou pluridisciplina-ridade, como sugere Fernanda Ximenes39. O português, embora pouco falado pela popu-lação “é a alma do tétum”, no entender de Roque Rodrigues40, pois o enriquece.

Todas as manifestações socioculturais típicas de Timor têm uma palavra no idio-ma para explicá-las: a festa, o casamento, o batizado, o luto, o desluto, o aniversário, a missa, etc. A língua aproxima o povo ti-morense da cultura lusitana, bem como dos povos que usam o idioma e foram coloniza-dos pelos portugueses, principalmente os

Page 93: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

Radiodramas, adolescentes e comunidades

108C o m m u n i c a r e

do sul. A versão adaptada valoriza o papel feminino na construção da sociedade pós-revolucionária, cujos valores e identidade estão sendo, pouco a pouco, forjados.

Considerações

Observa-se que a construção de dramas e a introdução desse conteúdo nas escolas e nas rádios locais podem servir de incentivo para se produzir uma rádio cada dia mais crítica, educativa e cidadã em países em desenvolvimento, a partir de seus próprios elementos culturais. Diante de questões como a globalização dos meios de comuni-cação que, para Arnheim41 “parecem querer agrupar pessoas das mais diferentes classes

e níveis de formação em uma comunidade humana mais uniforme, restaria ao indiví-duo a opção de se recolher sobre sua cultura, para que sobreviva, ou buscar abertu-ra cultural para favorecer o conhecimento do outro. A mídia permite a articulação entre essas possibilidades, levando-se em conta que existiria um recriar típico do fenômeno da comunicação. Esta idéia de recriação é lembrada por Jerusa Pires

Ferreira42 quando aborda o fenômeno de “receber coisas novas, codificar e decodificar mensagens e traduzir esta mensagem para um outro sistema de signos”. O radioteatro tem oferecido ao adolescente a possibilidade de marcar suas histórias de vida com elementos culturais trazidos de sua própria experiência comunitária, seu universo de convivências. A linguagem teatral, nesse contexto, é mediado-ra da construção de uma verdadeira cidada-nia. Para Boal43, ela “é a mais rica linguagem porque inclui todas as outras e, através do teatro, pode-se analisar o passado no presente para que se possa inventar o futuro”.

Ao discorrer sobre as práticas cotidianas que aparecem nos estudos de contos popu-

41 ARNHEIM, Rudolf. Estética radiofónica. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 1980, p. 154.42 FERREIRA, Jerusa Pires. Cultura é memória. Revista USP, São Paulo: CODAC, n. 24, Dez-Fev 1994-95, p. 116. 43 BOAL, Augusto. O teatro pode ser um ensaio da revolu-ção. Entrevista. Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, São Paulo/SP, Ano XIX, n. 206, Dez 2000-Jan 01, p.3. 44 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano, 7. ed., Petrópolis: Vozes, 2002, p. 85.45 Idem, ibdem, p. 42.46 CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. Trad. Ana Regina Lessa, Heloísa Pezza Cintrão. 2. ed. , São Paulo: EDUSP, 1998, p. 256.

47 ROSÁRIO, Joaquim, apud XIMENES, Fernanda de Fáti-ma Sarmento, Convergências e Divergências entre “Léqui-Tai e Lauai Tai”e o “Crocodilo fez-se ilha”, p. 61.

Os recursos usados, a partir do radioteatro, podem despertar o in-teresse dos alunos pela geografia, históriae ciências da natureza

lares realizados por Propp, Certeau44 afirma que tais práticas “invertem freqüentemente as relações de força e, como as histórias de milagres, garantem ao oprimido a vitória num espaço maravilhoso, utópico. Este espaço protege as armas do fraco contra a realidade da ordem estabelecida”. Para o mesmo autor,45 é importante analisar as práticas culturais existentes no micro-cos-mos, retratos da cultura popular que “se formula essencialmente em ‘artes de fazer’ isto ou aquilo, isto é, em consumos combi-natórios e utilitários”, inclusive dos meios de comunicação, presentes nas práticas sociais. É desse dinamismo de relações que se origina “a reinterpretação desses meios” nas sociedades modernas (ou pós-moder-nas), da qual nos fala Canclini46.

Para Rosário47, “as narrativas de expres-são oral são um veículo fundamental dos valores, quer educacionais, culturais, reli-giosos e cósmicos. Elas também constituem veículo de transmissão de conhecimentos e meios pedagógicos mais poderosos de níveis explícito e implícito”.

Mesmo que muitas rádios não estimu-lem o trabalho dos jovens por desinteresse ou falta de experiência educativa de pro-dutores, ou que professores não consigam articular comunicação/educação, a semen-te está sendo plantada e pode render bons frutos numa próxima estação.

Page 94: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

109Volume 7 - Nº 2 - 2º sem. 2007

Maria Inês Amarante

Referências bibliográficas

ADAMI, Antonio. Literatura adaptada em Rádio e Televisão: da Palavra a Imagem e Som. BALOGH, Anna Maria et al. (orgs). Mídia, Cultura, Comunicação, São Paulo: Arte e Ciência, 2002, p. 157-166.

AMARANTE, Maria Inês. Rádio comunitária na escola: protagonismo adolescente e dramaturgia na comunicação educativa. Dissertação de Mestrado em Comunicação Social, S. Bernardo Campo, UMESP-Universidade Metodista de São Paulo, 2004, 225 p.

_____. Rádio comunitária em Timor-Leste: os meios de comunicação em novos tempos de cidadania. Revista Contracampo, Rio de Janeiro: UFF, 2006, p. 165-181.

ARNHEIM, Rudolf. Estética radiofónica. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 1980.BACCEGA, Maria Aparecida. Aproximações à telenovela: os encontros de ressignificação.

PERUZZO, Cicília M.K.; PINHO, José Benedito (orgs). Comunicação e Multiculturalismo. São Paulo: INTERCOM, Manaus: Universidade do Amazonas, 2001, p. 353-378.

BOAL, Augusto. O teatro pode ser um ensaio da revolução. Entrevista. Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, São Paulo/SP, Ano XIX, n. 206, Dez 2000-Jan 01, p.3.

_____. Teatro do oprimido e outras poéticas políticas. 5ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1988. (Teatro Hoje, 27).

BORDENAVE, Juan E. Diaz. O que é comunicação? São Paulo: Brasiliense, 1982. (Primeiros passos).BORELLI, Sílvia Helena Simões, MIRA, Maria Celeste. Sons, imagens, sensações: radionovelas e

telenovelas no Brasil. São Paulo, Revista Intercom, V., XIX, n. 1, p. 33-57, jan./jun., 1996.CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. Trad.

Ana Regina Lessa, Heloísa Pezza Cintrão. 2. ed. , São Paulo: EDUSP, 1998.CANDIDO, A. et al. A personagem de ficção. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 1972 (Debates Literatura).CARDOSO, Luís. O crocodilo fez-se ilha in Camões, Pontes Lusófonas, n. 1, Abril/Junho, 1998, p.

104-106.CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano, 7. ed., Petrópolis: Vozes, 2002. DEL CASTILLO, Andrés Sanchez. Loro Sa’e, allá donde nace el sol. La construccíon de Timor

Este, una revisión histórica. Dissertação de Mestrado em Estudos de Ásia y África no El Colégio de México, D.F, 2002, 181 p.

DIZARD JUNIOR, Wilson. A Nova Mídia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.DURAND Frédéric. Timor Loros sa’e : la destruction d’un territoire. Revista Lusotopie, França: Ed.

Karthala, 2001. GOHN, Maria da Glória. Os sem-terra, ONGs e cidadania. São Paulo: Cortez, 1997.HELBO, André; JOHANSEN, J. Dines; PAVIS, Patrice; UBERSFELD, Anne (orgs). Le théâtre et les

medias: spécificité et interférences. Théâtre: modes d’approche. Meridiens Klincksiek, Paris: Editions Labor, 1987.

JACQUINOT, Geneviève. L’éducommunicateur. Paris. Pesquisa realizada em 21/10/03. Site: http://innovalo.scola.ac-paris.fr/Innovatio/innovatio4/educommunicateur.htm

KAPLUN, Mario. Caminos y Métodos para la Participación. In KAPLUN, Mario. Una pedagogia de la comunicación. Madrid: Ediciones de la Torre, 1998, p. 67-81.

MAC-CRIANÇAS UNIDAS. Movimento de Adolescentes e Crianças, Encarte do CD do mesmo nome, Timor-Leste, 2004.

MACIVER, R.M.; PAGE, Charles H. C. Comunidade e sociedade como níveis de organização da vida social. FERNANDES, Florestan (org.). Comunidade e Sociedade: leituras sobre problemas conceituais, metodológicos e de aplicação. São Paulo: Nacional, 1973, p. 117-131.

MATTOSO, José. A dignidade. Konis Santana e a Resistência Timorense. Lisboa: Temas e Debates, Actividades Editoriais Ltda/ Fundação Mário Soares, 2005.

Page 95: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

Radiodramas, adolescentes e comunidades

110C o m m u n i c a r e

MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem (understandind media). São Paulo: Cultrix, 1964.

OROZCO-GOMEZ, Guillermo. Professores e meios de comunicação: desafios, estereótipos. Revista Comunicação & Educação. Curso de Gestão de Processos Comunicacionais CCA/ECA/USP, São Paulo: Editora Moderna, Ano III, nº 10, Set-Dez 1997, p. 57-68.

ORTRIWANO, Gisela Swetlana. Rádio : interatividade entre rosas e espinhos. Revista Novos Olhares. São Paulo : ECA/USP, Ano 1, nº 2, 2º semestre de 1998, p. 13-30.

PALLOTTINI, Renata. Dramaturgia: a construção do personagem. São Paulo: Ática, 1989.PIRES FERREIRA, Jerusa. Cultura é memória. Revista USP, São Paulo: CODAC, n. 24, Dez-Fev

1994-95, p. 115-120.QUARTIM DE MORAES, A. P. Multiculturalismo e Identidade: o papel dos meios de comunicação

e da escola. Revista Comunicação & Educação, São Paulo:ECA-USP, nº 21, Ano VII, maio/agosto de 2001, p. 37-42.

TIMOR LOROSA’E. Camões. Revista de Letras e Culturas Lusófonas, n. 14, Lisboa: Instituto Camões/Ministério dos Negócios Estrangeiros, Julho/Setembro 2001.

VIEIRA, Liszt. Cidadania e Globalização. Rio de Janeiro;São Paulo/Record, 2000.VIGIL, José Ignacio López. O Sociodrama. São Paulo: ALER-Brasil/Paulinas, 1988. (Manuais de

Comunicação, 8).XIMENES, Fernanda de Fátima Sarmento. Convergências e Divergências entre “Léqui-Tai e

Lauai Tai”e o “Crocodilo fez-se ilha”. Monografia de Licenciatura em Educação. Universidade Nacional de Timor-Lorosa’e, 2005, 80 p.

ZUMTHOR, Paul. Escritura e Nomadismo. Entrevistas e ensaios. Trad. Jerusa Pires Ferreira, Sonia Queiroz, Cotia, São Paulo: Ateliê Editorial, 2005.

_____. Permanencia de la Voz. Correio UNESCO, n. 21, 1982, p. 4-8.

Page 96: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

Comunicação e Mercado

Vander Casaqui Doutor em Ciências da Comunicação pela ECA-USP

Docente em Marketing da [email protected]

Antonio Roberto ChiachiriMestre e Doutorando em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP

Docente da COGEAE / PUC e da Faculdade Cásper Líbero [email protected]

Resumo

O presente artigo tem como ponto de partida o filme A Fantástica Fábrica de Chocolate, na versão dirigida pelo cineasta Tim Burton (2005), para desenvolver uma reflexão sobre os processos simbólicos da estética da mercadoria. Este ensaio preliminar, que propõe a convergência de duas pesquisas desenvolvidas junto ao CIP: a proposta de Casaqui, “A publicidade através dos filmes”, que visa elaborar uma teoria da propaganda, tendo como base a narrativa cinematográfica; e a de Antonio Roberto Chiachiri, “Ícones do sabor - A comunicação por meio de imagens gastronômicas”, que estuda a produção sígnica dos alimentos mediadas pela comunicação.

Palavras-chave: Publicidade e propaganda; estética do marketing; comunicação; semiótica.

Abstract

The following article has as its starting point the movie “Charlie and the Chocolate Factory”, in the version created by Tim Burton (2005) to develop a reflexion on the symbolic processes of the product aesthetics. This preliminary essay that proposes the convergence of two researches conducted with the CIP: Casaqui’s “Publicity through the movies”, which plans to elaborate an advertising theory using as a basis the cinematographic narrative, and Chiachiri’s “Taste icons - the communication through gastronomic images”, which studies the signal production of the food mediated by communication.

Key words: advertising and marketing; marketing aesthetics; communication; semiotic.

Resumen

El presente artículo tiene como punto de partida la película “La fantástica fábrica de chocolate” en la versión dirigida por el cineasta Tim Burton (2005), para desarrollar una reflexión sobre los procesos simbólicos de la estética de la mercancía. Éste ensayo preliminar que propone la convergencia de dos investigaciones desarrolladas junto al CIP: la propuesta de Casaqui, “La publicidad a través de las películas”, que visa a elaborar una teoría de la propaganda teniendo como base la narrativa cinematográfica; y la de Chiachiri, “Iconos del sabor – La comunicación por medio de imágenes gastronó-micas”, que estudia la producción sígnica de los alimentos mediados por la comunicación.

Palabras clave: Publicidad y propaganda; estética del marketing; comunicación; semiótica.

Estética e Sedução do Marketing: Uma Análise do Filme “A Fantástica

Fábrica de Chocolate”1

Aesthetics and Marketing Seduction - an analysis of the movie “Charlie and the Chocolate Factory”

Page 97: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

Estética e Sedução do Marketing

112C o m m u n i c a r e

a) Marketing da sensação: são estratégias que buscam estimular a sensorialidade do público, a relação com os sentidos, a experiência estética, a fruição que tem como inspiração o envolvimento com a arte (ex.: as peças impressas da marca de vodka Absolut);

b) Marketing do sentimento: os estímulos a sentimentos como o humor, o romantis-mo, a emotividade, etc. (Bradesco, ao se utilizar da canção dos Beatles, “All you need is love”);

c) Marketing do pensamento: a racionalida-de como enfoque para a associação com o espírito de produtos e marcas (a campanha “Think different”, da marca Apple);

d) Marketing da ação: a proposta de envol-vimento físico, a vida vista como dinâmica, pulsante, em um cenário promovido pelas marcas, acessórios indispensáveis para que a experiência tenha esse espírito (como as campanhas de Nike e Gatorade);

e) Marketing da identificação: a associação da marca ao vínculo com agrupamentos sociais, com tribos (McDonald´s explora a relação com o outro, como base para a construção de seu campo de atuação simbólica).

É nesse campo de atuação simbólica do marketing que a comunicação age, na tradução dos produtos/serviços ao univer-so psíquico, sócio-cultural e sígnico das pessoas selecionadas como consumidores prioritários das ofertas mercadológicas. A

comunicação mercadológica é o instrumento interacional deci-sivo na relação entre empresas /

produtos / marcas e consumidores - estes conceituados como público-alvo na relação de troca de valores entre esses dois pontos de contato. Mais do que uma relação uni-direcional, a proposta de comunicação no âmbito do marketing tem como ponto de partida - e é retroalimentada continuamen-te - pela subjetividade do seu leitor-modelo, recuperado e reconstruído simbolicamente através de pesquisas de mercado.

A promoção de vendas é uma das fer-ramentas fundamentais da comunicação de marketing; entendida como o contato

mais próximo da mani-festação da marca com a experiência cotidiana dos consumidores, em sua conceituação mais abran-gente, tem como propósito promover experiências que envolvam seu público com elementos do universo da marca. É o momento da materialização da logo-marca, definida como o discurso (logos)2, ou seja, as expressões e narrativas que caracterizam e susten-

tam o universo simbólico das marcas.O marketing experimental, ou experien-

cial, em uma tradução mais adequada da obra de Schmitt3, propõe a sistematização de estratégias em torno do envolvimento do consumidor através de módulos experien-ciais, categorias de estímulos que expandem as características das marcas para a conexão com a vivência cotidiana do público visado pela comunicação. Esse cotidiano é resse-mantizado, reificado, valorado a partir da atuação da marca como auxiliar na promo-ção de momentos especiais, que “não têm preço” (aludindo ao conhecido slogan da marca MasterCard). Conforme Schmitt4, são cinco os módulos experienciais a serviço de estratégias mercadológicas:

A

1 Este trabalho foi apresentado no VII Encontro dos Núcleos de Pesquisa em Comunicação – NP Publicidade e Propaganda no Intercom – Socie-dade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Santos – 29 de agosto a 2 de setembro de 2007.2 ZOZZOLI, Jean-Charles Jacques. Da mise en scène da identidade e personalidade da marca: um estudo exploratório do fenômeno marca, para uma contri-buição a seu conhecimento. Campinas: IA/UNICAMP, 1994 (Dissertação - Mestrado em Multimeios).3 SCHMITT, B.H. Marketing experimental. São Paulo: Nobel, 2000.

4 Idem, p. 76-85.

Page 98: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

113Volume 7 - Nº 2 - 2º sem. 2007

Vander Casaqui e Antonio Roberto Chiachiri

As imagens fílmicas, tal como mitos, rituais, vivências e experiências, conden-sam sentidos e dramatizam situações do cotidiano, descortinando a vida social e seus contextos de significação. Os aspectos recorrentes e inconscientes do agir social estão igualmente presentes nas imagens fílmicas e fotográficas, cabendo ao pesquisador investigar as relações que se constroem e os significados que as constituem7.

É dessa forma que a antropologia contemporânea desenvolve sua reflexão sobre a condição humana na relação com a cultura midiática: considerando os produtos dessa cultura como objetos para compreensão das significações e visões de mundo que compõem o imenso mosaico de nossa sociedade global / local: glocal. Na mesma perspectiva que buscamos refletir sobre a publicidade, Everardo Rocha parte de uma análise da simbologia do filme A Rosa Púrpura do Cairo, dirigido por Woody Allen, principalmente na célebre cena em que a personagem Cecília, uma mulher comum, com problemas corri-queiros de relacionamento, trabalho, vê o cinema como uma fonte de prazer, de distanciamento dessa realidade, a ponto de “entrar” no filme e viver um início de romance com o ator principal. De forma talvez por demais resumida, indicamos o objeto de uma discussão sobre o consumo dos produtos da Indústria Cultural, como base para o entendimento do papel da etnografia aplicada a nossos tempos:

O filme é exemplar, ao conceber a rela-ção entre a sociedade de consumidores da Comunicação de Massa e a repre-sentação de sociedade que é, por eles, consumida, tornando muito menos árida a reflexão sobre tudo isso. De saída, pela

estética da mercadoria, conforme a teoria de Haug5 engloba a expansão do produto/ser-viço em níveis de significação, que vão dos significados das embalagens às propostas de identidade da marca veiculadas pela comu-nicação publicitária. Discutiremos os princi-pais conceitos que envolvem esses aspectos do consumo levantados acima, através do filme selecionado para este estudo.

Metodologia

A utilização do cinema como fonte de pesquisa não é algo recente. Se conside-rarmos o campo da Antropologia, veremos que o início desse tipo de estudo está no chamado cinema etnográfico, no qual a linguagem cinematográfica está presente no registro do objeto de estudo, como o filme de Robert Flaherty, Nanook of the North, de 1922. Trata-se de um marco inaugural na junção entre o registro audiovisual e a pesquisa antropológica, que registra a vida e a cultura dos esquimós (atualmente de-nominados Inuit), inovador na introdução do conceito de câmera participante: “isso se realiza por meio das exibições do material filmado, ao longo da produção do filme, aos Inuit e na abertura para seus comentários, que iam sendo incorporados ao processo de realização do filme”6.

A obra de Flaherty é inserida na dis-cussão epistemológica sobre o método et-nográfico, assim como o recurso do registro fotográfico. Em ambos os casos, temos um produto cultural que suscita a reflexão sobre a maneira como produzimos significações e representações que dizem respeito ao que está sendo registrado e a nós mesmos, como sujeitos observadores e participantes de uma mesma existência humana, apesar das diferenças culturais, que se mostravam sobremaneira na polarização entre o “pri-mitivo” e o “civilizado”, tendo norteou os estudos antropológicos durante décadas. Atualizando essa abordagem, entendemos o cinema como mediador das construções sócio-culturais de sua época:

5 HAUG, Wolfgang Fritz. Crítica da estética da merca-doria. São Paulo: Ed. Unesp, 1997 6 BARBOSA, Andréa e CUNHA, Edgar Teodoro da. Antro-pologia e imagem. Rio de Janeiro: JZE, 2006, p.24

7 Idem, p.58

Page 99: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

Estética e Sedução do Marketing

114C o m m u n i c a r e

inequívoca criatividade de um diretor, capaz de levar, para além dos limites previsíveis, uma fantasia na qual entrar e sair de histórias cinematográficas é moeda corrente. Com isso, faz pensar a respeito daquelas que são, às vezes, pouco mais que tênues fronteiras entre “real” e “ficção”8.

Everardo Rocha revela, na citação acima, uma das questões centrais que permeiam este projeto: a busca pela legi-bilidade para um leitor não-acadêmico. Ao mesmo tempo, perseguimos o rigor cien-tífico, e a elaboração teórica sem conces-sões quanto à profundidade e relevância. Espelhamo-nos no trabalho de Luiz Tatit, notório músico e semioticista da FFLCH-USP, especificamente em seu livro, Aná-

lise Semiótica Através das Letras, em que a análise de letras de canções famosas da cultura brasileira serve como base para a elaboração de um modelo teórico complexo e rigoroso, mas notadamente mais compreensível ao leitor “não-iniciado”, no exercí-cio da metalinguagem que caracteriza a semiótica de linha francesa, desenvolvi-da a partir de autores como Hjelmslev e Greimas:

Faltam, no nosso entender, obras “interme-diárias” que estabeleçam uma ponte entre análises específicas de textos e reflexão sobre os conceitos teóricos empregados (...). Essa lacuna manifesta-se sobretudo em sala de aula, tanto na graduação como na pós-graduação, geralmente numa etapa de trabalho em que o professor, supondo que os alunos já dominem as técnicas bási-cas de análise próprias da disciplina, parte para indagações de maior abrangência9.

É nesse campo “intermediário” de atuação, entre os estudos acadêmicos de maior profundidade teórica, e os “manuais” técnicos de propaganda, que situamos nossa abordagem, objetivando uma ponte entre dois extremos, muitas vezes tidos como in-

A pesquisa pretende traçar um caminho epistemológico que faz da linguagem cinemato-gráfica a instauradora da experiência humana

conciliáveis pelo senso comum. Nesse senti-do, nosso trabalho busca sistematização de um recurso que tem sido cada vez mais utili-zado em sala de aula, quando a estrutura da instituição permite: materiais audiovisuais como apoio didático. Como defende Citelli, um dos expoentes dos estudos que abarcam a relação entre educação e comunicação, a utilização de produtos midiáticos em classe possibilita desde a formação crítica sobre o consumo dessa mesma mídia, bem como a reflexão sobre temas mais complexos, permitindo-se até o “repensar dos próprios modelos didático-pedagógicos, muitos deles presos (...) a concepções e mecanismos que não respondem mais às demandas sociais do nosso tempo”10.

A pesquisa pretende traçar um cami-nho epistemológico que faz da linguagem cinematográfica a instauradora da experi-ência humana, através da qual emergem temas que dialogam com o repertório transdisciplinar que converge para a teoria da publicidade. Dessa forma, incorpo-ramos à pesquisa os conceitos-chave de um estudo que aproximou a filosofia e o cinema: o livro de Julio Cabrera, O cinema pensa: uma introdução à filosofia através dos filmes, publicado em 2006. Nessa obra, o autor desenvolve uma tese sobre o conceito-imagem: para Cabrera, o cinema é linguagem que visa produzir um “im-pacto emocional”, que, simultaneamente, transmite informações sobre o mundo, o homem, os sentidos relacionados às coi-sas. A partir do componente emocional (que não se restringe ao “drama”, por exemplo, mas aos sentimentos de qualquer natureza estimulados pelo envolvimento com a trama do filme), as informações

8 ROCHA, Everardo. A sociedade do sonho: comunicação, cultura e consumo. Rio de Janeiro: Mauad, 1995, p.85-86

9 TATIT, Luiz. Análise semiótica através das letras. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001, p.12

10 CITELLI, Adilson. Comunicação e educação: a lingua-gem em movimento. São Paulo: Ed. Senac, 2000, p.153-4

Page 100: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

115Volume 7 - Nº 2 - 2º sem. 2007

Vander Casaqui e Antonio Roberto Chiachiri

níveis sem entendê-los como um projeto único de comunicação: concordamos com Bettetini, quando diz que “cualquier lenguaje nace, se reproduce y actúa con una finalidad interactiva o, más amplia-mente, social: está siempre destinado a actos comunicativos; a la implicación de, al menos, dos sujetos”15.

É dessa forma, compreendendo a di-nâmica da linguagem cinematográfica na produção de experiências que representam, refletem e refratam o cotidiano das pessoas, que traçamos as linhas básicas desse projeto: estudar a ótica através da qual a publicidade entra nessa narrativa e é ressemantizada, re-cortada sócio-culturalmente. Esse processo é definido por Bettetini como um “fenômeno de retextualização”16, quando um texto cultural, produzido com um determinado fim comunicacional, é lançado em outra dinâmica, em um novo “intercâmbio comu-nicativo”; o cinema, voltado inicialmente para o entretenimento, para a produção de sentimentos e sensações, serve aqui à lógica científica, à elaboração de um campo teórico no qual fornece subsídios para contextua-lizar e problematizar o objeto principal da pesquisa. Esse processo dialógico (Bakhtin) no qual pretendemos estudar a publicidade através dos filmes se desenvolve em função desse caráter lingüístico que aproxima os dois campos: a publicidade também propor-ciona, assim como o cinema, representações, visões de mundo, recortes do cotidiano que lançam nossa experiência humana no

passadas são carregadas de valor “cog-nitivo, persuasivo e argumentativo”11. Poderíamos dizer: o cinema elabora teses sobre as coisas do mundo e as práticas sócio-culturais sobre as quais são atribu-ídos valores passionais. Essa abordagem é definida pelo autor como “logopática, lógica e pática ao mesmo tempo” (idem). Segundo Cabrera12, “Um filme todo pode ser considerado o conceito-imagem de uma ou várias noções. Podemos chamar o filme inteiro um macroconceito-imagem, que será composto de outros conceitos-imagem menores”.

A definição de Cabrera sobre o con-ceito-imagem abre uma perspectiva de aproximação entre os estudos de lingua-gem e a reflexão epistemológica: para a definição do macroconceito-imagem e outros conceitos-imagem que compõem o filme estudado, um instrumento rigo-roso pode ser baseado em procedimentos derivados da Análise do Discurso e da Semiótica. Uma vez que as estratégias de linguagem direcionam, até certo ponto, o sentido do filme, os efeitos possíveis em relação ao seu espectador. Como diz Kris-teva13, “a linguagem é simultaneamente o único modo de ser do pensamento, a sua realidade e a sua realização”. Já Gomes14, estabelece três categorias, três modos de composição da obra cinematográfica, que se relacionam diretamente aos efeitos provocados nas pessoas: o primeiro modo é a composição estética, ou os efeitos “sensoriais” programados pelas escolhas de luz, cor, ritmo de montagem, som; o segundo, a composição comunicacional, ou seja, as formas pelas quais os elementos da linguagem são organizados para com-por mensagens, narrativas que transferem idéias e informações; o terceiro, a compo-sição poética, baseada na maneira como a construção cinematográfica se organiza em torno da produção de emoções, de sentimentos, de estados de espírito no espectador (medo, riso, compaixão, raiva etc). Consideramos difícil separar esses

11 CABRERA, Julio. O cinema pensa: uma introdução à filosofia através dos filmes. Rio de Janeiro: Rocco, 2006, p.2212 Idem, p.2413 KRISTEVA, Julia. História da linguagem. Lisboa: Edições 70, 1988, p.1714 GOMES, Wilson. “La poética del cine y la cuestión del método en el análisis fílmico”. In: Significação no. 21. São Paulo: Annablume, junho de 2004, pp.10115 BETTETINI, Gianfranco. La conversacion audiovisual. Madrid: Cátedra, 1996, p. 108

16 Idem, p.43

Page 101: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

Estética e Sedução do Marketing

116C o m m u n i c a r e

17 BERGER, John. Modos de Ver. Barcelona: Ed. Gustavo Gili, 1974, p. 164

18 CABRERA, Julio. O cinema pensa: uma introdução à filo-sofia através dos filmes. Rio de Janeiro: Rocco, 2006, p.45

universo das marcas, dos produtos e institui-ções com fins comerciais. Berger afirma que a publicidade é caracterizada por constituir “uma espécie de sistema filosófico”17, uma vez que nos fornece uma interpretação do mundo a partir de sua ótica. O que muda, de acordo com nossa abordagem, é o enfoque adotado: Cabrera, ao formular a definição de conceito-imagem para fundamentar o estudo da filosofia através dos filmes, especifica que a maneira de apreender o objeto determina a sua função como fonte de elementos para a construção de seu campo teórico, uma vez que nos disponhamos a tratar o filme “como um objeto conceitual, como um conceito visual e em movimento”18.

São esses os pressupostos teóricos que fundamentam nossa investi-gação inicial, que terá como primeira aplicação a análise do filme A Fantástica Fábrica de Chocolate.

Análise do Filme

A FANTÁSTICA FÁBRICA DE CHOCOLATE (Charlie and the chocolate factory). Estados Unidos. 2005. Direção: Tim Burton. Elenco: Johnny Depp. 1 DVD (115 min), sonoro, colo-rido. Distribuição: Warner.

Sinopse: ‘A fantástica fábrica de chocolate’ traz a história do excêntrico proprietário de uma fábrica de chocolate, Willy Wonka, e um menino pobre e de bom coração, Charlie. Há muito tempo afastado de sua família, Wonka promove um concurso internacional para escolher um herdeiro para seu império de doces. Cinco crianças de sorte, entre elas Charlie, encontram os bilhetes dourados em barras de chocolate Wonka e ganham uma visita guiada à lendária fábrica que ninguém nunca visitou em 15 anos. Maravilhado com tudo que vê, ele fica fascinado pelo mundo fantástico de Wonka.

A primeira seqüência do filme, acom-panhada dos letreiros (tomada em plano-seqüência), faz uma viagem pela linha de

O cinema serve aqui à lógica científica, à ela-boração de um campo teórico no qual fornece subsídios para contextua-lizar o objeto da pesquisa

produção da fábrica: a câmera sai de uma visão externa do prédio para, ao mergu-lhar pela chaminé, seguir a produção do chocolate até chegar ao produto final, a barra de chocolate da marca Wonka. A ex-periência visual torna a linha de produção algo tecnológico e dinâmico, reconstruído em função de um envolvimento estético. Esse cartão de visitas sintetiza muito do que o filme desenvolve a seguir: o marketing, em seus processos, é recupe-rado como entretenimento. Nada que se distancie do que é o papel da publicidade ao mediar uma visão da empresa em seus procedimentos internos, vistos sob a ótica do imaginário da marca: quando a marca de cervejas Skol, ao anunciar o seu evento de música jovem, Skol Beats, retratou uma linha de envasamento de cerveja, associou o trabalho do operador de máquinas ao de um DJ. É por essa forma idealizada, alinhada ao imaginário do consumo, que as instituições são recuperadas pela lin-guagem da propaganda.

O final da seqüência mostra o empacota-mento dos chocolates em caixas, e o ende-reçamento destas a destinos representados por adesivos, como Londres, Nova York, Cairo e Tóquio, conotando uma dimensão global para o alcance do produto. Obser-vando a saída dos caminhões, próximo à fábrica, está o personagem principal do filme, o garoto Charlie Bucket. Garoto hu-milde, residente em uma casa precária nos extremos da pequena cidade em que vive, Charlie vive com os pais e os quatro avós – estes dormem juntos em uma mesma cama. O pai, provedor da família, trabalha numa fábrica de pasta de dentes, na linha de produção. Em breve será despedido, superado pela eficiência das máquinas. A

Page 102: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

117Volume 7 - Nº 2 - 2º sem. 2007

Vander Casaqui e Antonio Roberto Chiachiri

arquitetura da residência que eles habitam conota a pobreza da família, cujo signo mais representativo é sua estrutura torta, desequilibrada, destoando da harmonia da composição urbana da cidade de maneira geral. O campo associativo da pobreza, representada pela família do garoto, de-monstra as virtudes da bondade, da união, da compreensão, da nobreza de caráter; o garoto é sonhador, idealiza o universo em torno da fábrica de chocolates de Willy Wonka, alimentado pelas histórias do avô, que trabalhara nessa empresa anos atrás. Em uma delas, a representação da mitificação do chocolate, como simbologia mágica, muito além de seu papel alimentar: conforme diz o avô, certa vez um príncipe indiano encomendara um palácio inteiro de chocolate a Wonka – uma “construção” nos padrões do histórico e famoso Taj Mahal, que fora ambicionado pelo prín-cipe indiano para ser sua habitação, não para ser consumido. A construção desse objeto-valor representado pelos chocola-tes Wonka, que representam a magia, o sonho, a fuga da dura realidade da pobreza vivida pelo garoto Charlie Bucket, aponta para os mundos possíveis de atuação das marcas; promessas de transcendência das limitações da vida cotidiana, insinuações de ruptura do continuum da existência banal, da sobrevivência, da aspereza das obrigações e compromissos diários.

A busca pelo objeto-valor ganha con-tornos nítidos quando Willy Wonka, um dinâmico e excêntrico empresário, resolve romper anos de isolamento. Frustrado por ter sofrido com espionagem industrial de funcionários de sua empresa, ele fecha sua fábrica e não é mais visto desde então, ape-sar de retomar, misteriosamente, a produ-ção de seus chocolates, com uma promoção que mobilizaria o planeta: resolve inserir cinco convites dourados que permitem ao mesmo número de crianças, cada uma acompanhada por um adulto, a visitação à sua fábrica durante um dia inteiro, cice-roneadas por Wonka, com a promessa de

ganhar também o conteúdo de uma fileira de caminhões de chocolates na saída, e um prêmio especial para o vencedor de uma competição que não se revela claramente para os participantes, em sua mecânica ou em suas propriedades.

A proposta de Wonka, anunciada em simples cartazes colados nos postes da cidade onde a fábrica está instalada, ganha repercussão mundial (numa ação que se assemelha ao buzz marketing: a promoção invade a mídia, e é através dela que milhões de pessoas correm atrás do “sonho dourado” de encontrar um dos cinco convites. Inclusive o garoto Charlie, que já alimentava seus sonhos em torno da empresa de Wonka – um sinal explícito dessa devoção à marca é a maquete da fá-brica de chocolates construída pelo garoto, composta por tampinhas de pasta de dentes trazidas pelo pai. Outro elemento confirma-dor dessa adesão incondicional – fidelidade - ao imaginário da marca é o presente de aniversário escolhido por Charlie, todos os anos o mesmo: uma barra de chocolates Wonka, a única consumida pela criança durante o ano todo.

Enquanto alimenta a expectativa de conjunção com seu objeto-valor, o convite dourado, Charlie acompanha pela mídia, juntamente com os pais e avós, as notícias sobre as crianças que acham seu convite em várias partes do mundo. Augustus, o garoto obeso alemão, comedor compulsivo de chocolates; a menina inglesa Veruca Salt, filha de um empresário milionário, criança mimada e intolerante em relação aos seus desejos formulados diretamente ao pai, que se sente na obrigação de realizá-los todos; mais duas crianças norte-americanas, Violet Beauregard, menina competitiva e obcecada pela vitória (é campeã mundial de mascar chicletes, segundo ela mesma), incentivada pela mãe a ser “vencedora”, e não “perdedo-ra”; e Mike TV, um menino viciado em games violentos, pequeno gênio precoce que detesta chocolate, mas acaba entrando para a com-petição para mostrar sua “inteligência” (foi

Page 103: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

Estética e Sedução do Marketing

118C o m m u n i c a r e

capaz de efetuar um cálculo para descobrir a probabilidade de encontrar um convite, e comprou uma barra de chocolate somente para atingir tal feito). Todos os oponentes de Charlie demarcam o contraponto de suas virtudes: o garoto que representa a gula; a intransigência da criança mimada (emblemá-tico o significado de seu sobrenome, “Salt”, o “sal” que se opõe ao mundo doce da fábrica de chocolate); a competitividade sem pudo-res; a obsessão pela TV e por violência são valores contraditórios ao espírito bom, tran-qüilo e sonhador de Charlie, ao mesmo tempo marginalizado e ajustado, psicologicamente, ao sistema em que sua família sobrevive, a duras custas. Tem como adjuvante o avô Joe, que trabalhou com Wonka, e que alimenta

seus sonhos com histórias maravilhosas sobre os dons de seu ex-patrão, e sobre as maravilhas de sua empresa e das delícias ali produzidas.

São três as tentativas de Charlie para encontrar o con-vite dourado: seu presente de aniversário, uma barra extra patrocinada pelas parcas economias do avô Joe, e uma barra comprada com uma nota encontrada em uma das ruas cobertas de neve – esta última possibilita ao herói

encontrar o convite, acesso ao seu sonho de entrar no universo da fábrica Wonka, metáfora da adesão ao consumo como as-sociação ao espírito de marcas portadoras de promessas de benefícios intangíveis, que transcendem a materialidade dos produtos, ganhando dimensão mítica.

A mítica da marca Wonka ganha concre-tude estética na materialização da fábrica, realizada como sonho feito de doces: uma cachoeira de chocolate, circundada por uma paisagem toda comestível (segundo as palavras de Willy Wonka, tudo ali é comestível, “inclusive ele”, porém isso seria considerado “canibalismo”, o que é “abominado pela maioria das socieda-

A mítica da marca Wonka ganha concretu-de estética na materiali-zação da fábrica

des”). À parte das supostas insinuações sobre a caracterização da sexualidade do personagem, Wonka se apresenta como personalidade complexa, em sua relação de amor e ódio pelos doces e pelas crianças: traumatizado por uma infância represso-ra, promovida pelo rigoroso pai dentista, parte da supressão de seus desejos pelos doces, em especial pelos chocolates, para uma trajetória de sucessos empresariais e carências afetivas. Sinaliza constantemente seu ódio às crianças que se opõem a Charlie Bucket, durante a trajetória que os elimina um a um, através de seus próprios vícios: um exemplo é a gula de Augustus, que o faz cair no rio de chocolate e ser sugado por um cano que o leva a outro ambiente e o exclui da competição. Veruca Salt, ao querer obsessivamente um dos esquilos descascadores de nozes que trabalham para Wonka, é “descartada” na lixeira da fábrica; Violet Beauregard, ao mascar um chiclete preparado experimentalmente por Wonka, ainda em fase de testes, apesar dos alertas de perigo, transforma-se em uma “amora” gigante; e Mike TV, ao querer se tele-transportar por um equipamento criado para enviar chocolates através da TV, sendo acessível ao toque da mão para os telespec-tadores (uma metáfora da interatividade prometida pela TV digital?), entra na TV e é diminuído por ela. Todos ganham uma música com tom crítico às suas caracte-rísticas negativas, cantadas pelos Oompa-Loompas, os operários anões de Wonka, trazidos de uma ilha selvagem e distante, a Loompalândia. A trajetória de Wonka até o país selvagem, o contato com sociedades “primitivas” que cultuam o cacau, não deixam de ser conotações da descoberta da América e o contato dos espanhóis com os povos astecas que apreciavam o chocolate, depois transferido e transformado para a Europa e em seguida para o mundo. O cacau, inclusive, era utilizado como uma espécie de moeda local. A exploração de

mão-de-obra de países periféricos por in-dústrias de Primeiro Mundo é sugerido, de

Page 104: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

119Volume 7 - Nº 2 - 2º sem. 2007

Vander Casaqui e Antonio Roberto Chiachiri

19 BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. São Paulo: Perspectiva, 1989, p.183-18720 SANTAELLA e NÖTH. Imagem. São Paulo: Illuminu-ras, 1998, p.15

forma sutil, pela maneira como os Oompa Loompas são cooptados para se entregar ao trabalho na fábrica, lugar onde residiam, pelo pagamento em grãos de cacau.

Charlie, ao se tornar o último “so-brevivente” da visita à fábrica (a crian-ça “menos chata”, segundo Wonka), é reconhecido como herói, valorizado pelas suas virtudes, e assim conquista o prêmio: ele será o herdeiro da fábrica de chocolates. Porém, este se revela como um falso prêmio, da maneira como é concebido: sua vitória implica em deixar a família para viver com o empresário em sua fábrica, perdendo o contato com os parentes para se entregar ao universo do chocolate (e, de maneira sugestiva, ao mundo idealizado e complexo de seu proprietário). Temos então uma repre-sentação da lógica da gratificação e da repressão definida por Baudrillard19: a sociedade de consumo se apresenta como insinuação da realização dos desejos, como possibilidade de transcender o cotidiano (e até ser incluído socialmente, como a superação da pobreza de Charlie, para se tornar herdeiro de uma indústria poderosa); porém, à lógica da gratificação corresponde a repressão, a exigência de alinhar os desejos às condições impostas pela sociedade de consumo; e à frustra-ção, ao desejo que, alcançado, nunca se realiza plenamente.

Ao final do filme, o real objeto-valor sus-tentado pela narrativa se revela: os valores familiares são o caminho de convergência dos sonhos das duas partes, de Charlie e de Wonka. Charlie se recusa a abandonar sua família; frustrado na sua busca pelo herdeiro, em seus termos, após certo tempo, Wonka aceita fazer parte da família Bucket, é bem aceito e assimilado como parte desse siste-ma que representa o valor inatingível pelos sonhos de consumo: a significação das rela-ções humanas e seu sentido transcendente, de superação dos benefícios econômicos pela interpessoalidade que sustenta nossos modos de ser e viver o dia-a-dia.

A Produção Sígnica da Estética das Guloseimas

Nesta parte do trabalho as análises se darão predominantemente sob o aspecto da mediação imagética do signo para a construção dos significados. O que pre-tendemos aqui é mostrar como os signos vão se interagindo para tecer uma malha sígnica e poder, dentro do nosso objeto de estudo, despertar certos prazeres, fazendo, dessa forma, apelo ao espectador para que se deixe envolver pelo seu imaginário.

As imagens cinematográficas, entre outras, como as fotográficas, as televisivas etc., pertencem ao domínio das represen-tações. Há, porém, um outro, que é aquele das imagens mentais. Fantasias, visões, ima-ginações. O que iremos pontuar no recorte escolhido para analisar das cenas do filme A fantástica fábrica de chocolate, é o âmbito como representação. No entanto, ambos os domínios não podem existir separados. Ve-jamos o que dizem Santaella e Nöth20, “não há imagens como representações visuais que não tenham surgido de imagens na mente daqueles que as produziram, do mesmo modo que não há imagens mentais que não tenham alguma origem no mundo concreto dos objetos visuais”.

Pois bem, a construção imagética do filme parece nos indicar o caminho do domínio da representação rumo a um ima-ginário fantástico, porém, é evidente que toda construção representativa não se res-tringe apenas à imagem, mas é esta que aí se apresenta mais forte. Como fazer brotar, por meio de imagens, na mente de um in-térprete, um delicioso mundo de chocolate sem tocar no seu imaginário, no seu desejo, no salivar de sua boca? Esse fazer brotar é o domínio da representação. Charles Sanders

Page 105: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

Estética e Sedução do Marketing

120C o m m u n i c a r e

vermelhos. Esse conjunto cênico cria uma espacialidade apta a sugerir, visto estarmos no contexto do filme, um grande pedaço de algum doce coberto de glacê - referência à neve - e confeitos - referência aos pequenos caminhões vermelhos. A caracterização de inverno é muito oportuna, pois esse é um período em que a atração pelo chocolate é mais intensa. Percebemos, então, mais uma vez que a imagem se mostra instigadora para o despertar dos prazeres do chocola-te, “chamando” o espectador ao consumo dessa delícia.

Uma outra peça, não menos importan-te, que deve ser comentada, é a maquete da fábrica Wonka, montada pelo menino Charlie. Por ser toda branca e construída em pequenas partes, pode remeter, mesmo que instantaneamente, a um tipo de guloseima feita, por exemplo, de torrão de açúcar.

Tudo era de chocolate. Conta o avô de Charlie, quando relata a construção do castelo de chocolate encomendado a Wonka por um príncipe de Nova Deli, na Índia. “Os tijolos eram de chocolate”, mostram-se aqui blocos retangulares como ícones de tijolos, porém com tex-turas e cor marrom escura numa alusão, obviamente reforçada pelo verbal, a barras de chocolate. “O cimento era de chocola-te, [...] os móveis de chocolate [...], tudo era de chocolate”. E tudo mesmo, nos parece de chocolate. E quem pode dizer o contrário? O castelo derrete, mas o sabor permanece na mente daqueles que des-frutaram os instantes de prazer gustativo que emanaram da tela.

Wonka decide fechar a fábrica. Já não há mais um inverno rigoroso lá fora. Não há mais neve na paisagem. Não há mais açúcar de confeiteiro. Acabou-se o que era doce.

21 PEIRCE, Charles S.(1931-58). Collected Papers. Vls. 1-6 ed. HARTSHORNE, Charles & Paul WEISS; vols. 7-8 ed. BURKS, Arthur W. Cambridge, Mass.: Harvard Univ.Press, pp. 2.273

Peirce, o pai da semiótica geral moderna, define representar como: “estar para, quer dizer, algo está numa relação tal com o outro que, para certos propósitos, ele é tratado por uma mente como se fosse aquele outro”21. É isso que as imagens tentam fazer: representar, estar no lugar de. Imagens são signos, signos indiciais que apontam, seja para um mundo que podemos definir como “concreto”, seja para aquele que desperta em nós as fantasias do viver.

Em sua primeira seqüência, como já citado acima, na tal viagem pela linha de produção da fábrica, os sabores que ema-nam da imaginação já começam a se mani-festar na figura da chaminé, que possui um formato semelhante a um rolinho de wafer

gigante, no interior do qual corre um líqüido marrom com todas as propriedades cromáticas, de viscosidade e brilho que remetem ao chocolate. Essa seqüência continua com imagens que, de cena em cena, vão cons-truindo, imageticamente, uma narrativa que é aquela da produção e empacota-mento do chocolate em barra, tentando mostrar aí, características que ajudam a resgatar, numa outra via-

gem, agora imaginária, a leveza e os pra-zeres “delirantes” a que o chocolate pode levar. Lembremos da cena em que as barras, antes do empacotamento, são suspensas por balões que giram em movimento helicoidal; balões remetem à leveza, movimento heli-coidal, ao “delírio” que essa iguaria pode causar na maioria dos consumidores.

Nas tomadas externas iniciais, a re-presentação de um inverno rigoroso se dá pelo tom predominante do branco. Flocos e finas camadas de neve se espalham como açúcar de confeiteiro. Há uma tomada aérea em que todo o terreno da fábrica e arredores estão tomados por esse branco sobre o qual circulam pequenos caminhões

Da conexão entre a nar-rativa e as ferramentas da comunicação de marke-ting, extraímos o conceito-imagem da sedução

Page 106: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

121Volume 7 - Nº 2 - 2º sem. 2007

Vander Casaqui e Antonio Roberto Chiachiri

Depois de alguns anos Wonka apresenta uma novidade. Uma nova esperança se anuncia. A fábrica vai abrir suas portas novamente (para um pequeno e seleto grupo). Vemos a neve novamente. Ela volta a recobrir toda a cidade em camadas finas e brancas. Charlie encontra sua sorte por entre as camadas finas de neve. É o doce sabor da esperança.

Já dentro da fábrica, tudo é colorido. As cores quentes, vibrantes, constroem uma isotopia associada aos doces, durante todo o filme. O gramado verde é doce. Fios de ovos como galho de árvores. Árvores com troncos marrons de chocolate; frutas cara-melizadas em várias cores sugerindo seus diversos sabores. A cachoeira - uma cascata de chocolate – desaba em um enorme rio, evidentemente, também de chocolate. Tudo é comestível. Tudo parece comestível. Até mesmo Wonka. Sua pele docemente cuida-da em tons róseos suaves, seus cabelos com tons achocolatados, nas mãos, luvas com uma textura elástica e uma leve cor púrpura lembrando goma de mascar. Carrega, ainda, uma bengala recheada de caramelos. Todos, elementos do paradigma das guloseimas.

Muito outros signos, muitas metáforas imagéticas são encontrados no percurso pela fábrica. Ovelhas cor-de-rosa representam o universo do algodão doce. Um barco “vi-king”, róseo-vítreo, lembrando uma outra gu-loseima. Mesmo os Oompa Loompas podem ser percebidos como os responsáveis pelo sabor interno de um bombom de chocolate; apresentam-se, pela caracterização de cores e comportamento, semelhantes a cerejas, a nozes, a avelãs, a pingos de chocolate etc. Outras vezes, parecem confeitos coloridos. Podem ser tidos como os elementos que dão mais sabor (que trabalham para enriquecer o sabor) às deliciosas guloseimas.

Tudo aí é doce. Tudo leva, a todo mo-mento, por meio das imagens, a signos cujo poder de representação é imenso, a mergulhar em um mundo de sensações, nesse caso, em doces sensações, a ponto de

levar o espectador a reações sinestésicas tão fortes como o salivar (sensações de dar água na boca).

Na última cena, talvez para mudar um pouco o tom, ou melhor, o sabor da história, um jantar só com elementos da culinária salgada é oferecido a quem assiste ao filme. Ervilhas verdinhas, milho cozido reluzen-te, abóbora refogada e um suculento peru ressaltando sua tenra carne e o dourado e brilhante tom de uma ave assada e servida na hora... Um contraponto de sabor que re-presenta o equilíbrio final, entre os desejos dos dois protagonistas: o universo doce de Wonka, e a amarga realidade anterior de Charlie Bucket, combinados para construir um final feliz.

“A vida nunca foi tão doce”.

Considerações finais

Da conexão entre a narrativa cine-matográfica e sua produtividade sígnica - exemplificadas neste trabalho através do filme A Fantástica Fábrica de Cho-colate – e as ferramentas e estratégias da comunicação de marketing, extraímos o conceito-imagem da sedução. Esse con-ceito-imagem é compreendido a partir da maneira como o produto, sua estética, sua forma de ser emoldurado por situações de valor (como no caso dos chocolates e da estratégia promocional de Willy Wonka), insere-se no cotidiano das pessoas como reificação de momentos, de rituais, de interações humanas, como prazer e como objeto de desejo. Isso se desen-volve através da afirmação de atributos intangíveis, estimuladores da adesão de consumidores-cidadãos a promessas de realização de desejos, de sentimentos e envolvimentos sensoriais, que embalam os produtos com traços de corporalidade e personalidade humanas. No filme estu-dado, vida e chocolate se confundem, se interpenetram, servidos em um mesmo prato de sonhos e fantasias.

Page 107: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

Estética e Sedução do Marketing

122C o m m u n i c a r e

Referências bibliográficas

BAKHTIN, Mikhail (Volochinov). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1997.BARBERO, J.M. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Ed.

UFRJ, 2001.BARBOSA, Andréa e CUNHA, Edgar Teodoro da. Antropologia e imagem. Rio de Janeiro: JZE, 2006.BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. São Paulo: Perspectiva, 1989.BETTETINI, Gianfranco. La conversacion audiovisual. Madrid: Cátedra, 1996.CABRERA, Julio. O cinema pensa: uma introdução à filosofia através dos filmes. Rio de Janeiro:

Rocco, 2006.CITELLI, Adilson. Comunicação e educação: a linguagem em movimento. São Paulo: Ed. Senac, 2000.GOMES, Wilson. “La poética del cine y la cuestión del método en el análisis fílmico”. In:

Significação no. 21. São Paulo: Annablume, junho de 2004, pp.85-105.HAUG, Wolfgang Fritz. Crítica da estética da mercadoria. São Paulo: Ed. Unesp, 1997.KRISTEVA, Julia. História da linguagem. Lisboa: Edições 70, 1988.PEIRCE, Charles S.(1931-58). Collected Papers. Vls. 1-6 ed. HARTSHORNE, Charles & Paul WEISS;

vols. 7-8 ed. BURKS, Arthur W. Cambridge, Mass.: Harvard Univ.Press.ROCHA, Everardo. A sociedade do sonho: comunicação, cultura e consumo. Rio de Janeiro:

Mauad, 1995.SANTAELLA e NÖTH. Imagem. São Paulo: Illuminuras, 1998.SCHMITT, B.H. Marketing experimental. São Paulo: Nobel, 2000._____________ e SIMONSON, A. A estética do marketing: como criar e administrar sua marca,

imagem e identidade. São Paulo: Nobel, 2000.TATIT, Luiz. Análise semiótica através das letras. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.ZOZZOLI, Jean-Charles Jacques. Da mise en scène da identidade e personalidade da marca: um

estudo exploratório do fenômeno marca, para uma contribuição a seu conhecimento. Campinas: IA/UNICAMP, 1994 (Dissertação - Mestrado em Multimeios).

Page 108: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

Comunicação e Mercado

Reinaldo Miranda de Sá Teles Doutor em Ciências da Comunicação pela ECA-USP

Docente da ECA e do GesturCoordenador e Docente do curso de Turismo da

Faculdade Cásper Lí[email protected]

Regina Ferraz PerussiMestre em Turismo pela ECA-USPDocente do SENAC-SP e UNIFIEO

Vice–coordenadora e Docente do curso de Turismo da Faculdade Cásper Líbero

[email protected]

Resumo

Este artigo discute a importância da comunicação e dos roteiros para a consolidação da imagem turística de São Paulo, que está entre as maiores metrópoles do mundo, indicando uma tendência a ser palco de um complexo movimento turístico. Como grande centro de negócios, com infra-estrutura, como hotéis e espaços para eventos e entretenimento, poderia ocupar posição de destaque no cenário turístico nacional e internacional. No entanto, a falta de reflexão e de promoção para o turismo, aliada à falta de conectividade entre a oferta e as empresas responsáveis pelas estratégias de divulgação, dificultam a afirmação da cidade, enquanto destino turístico.

Palavras-chave: Turismo; Imagem; Agência de viagem receptiva; Roteiro Turístico; São Paulo; SPTuris; SPC&VB.

Abstract

This article discusses the importance of communication and of the itineraries for the consolidation of the touristic image of São Paulo, which is one of the biggest metropolis of the world , indicating a tendency to be stage to a complex touristic movement. As a great business center, with an infrastructure of hotels and available space for events and entertainment, it could be higher in the national and international tourism scenery. However, the lack of vision and touristic promotion, linked to the lack of connectivity between offer and the responsible for the publicity estrategy, make it difficult for the af-firmation of the city as a touristic destiny.

Key words: tourism, image, receptive tourism agency, touristic itinerary, São Paulo, SPTuris, SPC&VC.

Resumen

Este artículo discute la importancia de la comunicación y de las rutas turísticas para la consolidación de la imagen turística de São Paulo, que está entre las mayores metrópolis del mundo, lo que señala una tendencia a ser escenario de un complejo movimiento turístico. Como gran centro de negocios, con infraestructura como hoteles y espacios para eventos y ocio, podría ocupar posición de relieve en el escenario turístico nacional e internacional. Sin embargo, la falta de reflexión y de promoción para el turismo, aliada a la falta de conectividad entre la oferta y las empresas responsables por las estrategias de divulgación, dificultan la afirmación de la ciudad como destino turístico.

Palabras clave: Turismo; Imagen; Agencia de viaje receptiva; Rutas Turísticas; São Paulo; SPTuris; SPC&VB.

A importância da comunicação para a consolidação da Imagem do Produto Turístico São Paulo1

The importance of communication for the consolidation of the image of the Touristic Product São Paulo

Page 109: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

A importância da comunicação...

124C o m m u n i c a r e

fundamentalmente para o mercado”2. Ou seja, é imprescindível que se tenha um olhar que resuma a complexidade dos componentes constituintes do produto turístico, tanto por parte dos turistas, dos autóctones, quanto sobretudo da iniciativa pública e privada.

O estudo em questão trata da cidade de São Paulo, que pela sua dimensão, deve ter estas preocupações precisamente averiguadas. Com uma população de pouco mais de 11 milhões de habitantes3, a capital paulistana é a principal área metropolitana do Hemisfério Sul. Segundo dados da Fipe, Embratur e Ministério do Turismo (2007), São Paulo foi a cidade mais visitada do Brasil no ano de 2005, por motivos de negócios, eventos e convenções, com 49,4 milhões de visitantes e se posicionou em 3º lugar no ranking nacional em função do interesse específico pelo lazer, com 13,6% do total de turistas do País, ficando atrás apenas do Rio de Janeiro com 31,5 % e de Foz do Iguaçu com 17 milhões do total. Pode-se dizer que São Paulo é uma das megacidades do planeta onde acontecem mais de 90 mil eventos, por ano, dos mais diversos tipos, que geram mais de R$ 8,2 bilhões de receita. Dentre os 43 milhões de desembarques efetuados no Brasil, no ano de 2005, mais de 24 milhões ocorreram em São Paulo, conforme estudo da Embratur, Fipe e Ministério do Turismo (2007).

A capacidade turística da cidade de São Paulo mostra que a infra-estrutura hotelei-ra e para eventos deve ser considerada fun-

Turismo em São Paulo apresen-ta características muito pecu-liares, se comparadas a outras

destinações do Brasil. Essas singularida-des vêm sendo configuradas no decorrer do processo histórico da cidade, o que justifica a inerente vocação para concen-trar oportunidades de negócios dos mais variados segmentos profissionais e, con-seqüentemente, uma infra-estrutura que permite grande movimentação de eventos de toda natureza, proporcionando, assim, um fluxo de turistas bastante significativo. Há também um contingente de visitantes de lazer que, embora seja menor do que a entrada de turistas de negócios, não pode

ser deixado de lado. A infra-estrutura da

cidade e o processo his-tórico pelo qual passou lhe permite uma oferta multifocal. Ao definir sua atratividade com aqui-lo que é inusitado, São Paulo oferece atrativos que vão desde um riquís-simo patrimônio cultural – resultado do processo de formação da própria urbe –, até manchas de florestas incrustadas nas bordas

do relevo, que poderiam colaborar para compor a imagem turística da metrópole.

É fato que os visitantes se tornam insa-tisfeitos, se a imagem de um destino não corresponde às expectativas anteriormente geradas pela mídia ou pelos comentários já conhecidos. Por isso, os profissionais da área de Turismo, diretamente ligados à recepção dos visitantes, devem transformar os aspectos intangíveis em motivações concretas, a fim de tornar as decisões dos viajantes mais racionais e propiciar um conhecimento mais amplo de todos os tipos de atrativos que a cidade oferece. “A comunicação no Turismo é um fator que deve ser visto sob uma ótica que transcenda a visão empresarial tradicional, voltada

O

1 Trabalho apresentado ao NP 19 – Comunicação, Turismo e Hospitalidade do VII Encontro dos Nú-cleos de Pesquisa do XXX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, realizado no período de 29 de agosto a 2 de setembro de 2007 na cidade de Santos (SP). 2 BIGNAMI, Rosana. Comunicação como fator estratégico do produto turístico. Em: BIGNAMI, Rosana. A imagem do Brasil no Turismo: construção, desafios e vantagem competitiva. São Paulo: Aleph, 2002, pp. 1753 De acordo com os últimos registros do IBGE (Instituto Bra-sileiro de Geografia e Estatística) de 1º de julho de 2006.

Page 110: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

125Volume 7 - Nº 2 - 2º sem. 2007

Reinaldo M. de Sá Teles e Regina Ferraz Perussi

bens intangíveis, como no caso do produto turístico, podendo ter sido formulada por meio de indicações de amigos ou familia-res ou principalmente por intermédio da mídia em geral, como folheteria, anúncios publicitários ou artigos de livros, revistas e jornais. Em decorrência disso, pode ser mo-dificada pelos gestores da atividade turísti-ca por meio de estratégias de comunicação. Com relação a esta questão, Gastal5 destaca que ao tratar das imagens, deve-se incluir os imaginários, pois ambos estão presentes nos deslocamentos dos viajantes, já que os imaginários englobam os sentimentos construídos em relação a locais, objetos e pessoas antes do momento da viagem, fato que pode ser responsável pela escolha de uma destinação em detrimento de outra.

Os resultados de algumas pesquisas encomendadas pelo SPC&VB (2004) confir-maram essa condição específica do turismo receptivo em São Paulo, tendo indicado que em 2005 os serviços de recepção ao visi-tante na metrópole se apresentavam muito pouco estruturados e as opções de roteiros eram muito restritas, o que demonstra a realidade atual.

De acordo com o levantamento realiza-do no decorrer da pesquisa citada, detec-tou-se que do ponto de vista quantitativo e qualitativo, a oferta de hospedagem é suficiente para atender aos turistas que circulam na cidade, pois principalmente as bandeiras que dominam as redes hoteleiras que predominam no mercado paulista per-tencem à empresas que agregam qualidade a seu produto. Desta forma, percebe-se que a hotelaria se comporta de maneira autô-noma no mercado turístico, com pequena participação no processo de formatação do produto turístico, que envolve outros

damental para a gestão do turismo. Além disso, a oferta cultural, gastronômica e de lazer mostra-se altamente diversificada e rica. A infra-estrutura turística da capital paulistana é composta principalmente por 12,5 mil restaurantes, 15 mil bares, 72 shoppings centers, 550 hotéis, 41 áreas de patrimônio, 41 festas populares, 13 even-tos permanentes, 9 casas de espetáculos, 7 estádios de futebol e 4 parques temáticos. Em decorrência do fato de possuir 120 te-atros com mais de 600 peças por ano, São Paulo é considerado o maior pólo cultural do país (SPC&VB, 2005). De acordo com a São Paulo Turismo - SPTuris (2006) são 88 museus, 280 salas de cinema, 53 parques e áreas verdes e 39 centros culturais. No que se refere aos equipamentos e serviços turísticos a cidade dispõe de 40 agências de receptivo local cadastradas pela EM-BRATUR (Instituto Brasileiro de Turismo), 62.000 veículos disponíveis para locação e 7 postos de atendimento ao turista (SP-Turis, 2006).

A relevância da atividade turística para São Paulo é tamanha que o setor gera, anualmente, cerca de R$ 70 milhões só em Impostos Sobre Serviços (ISS) e apro-ximadamente 500 mil empregos diretos e indiretos (SPC&VB, 2005).

Embora se tenha observado significativa oferta para o desenvolvimento da atividade turística, resultado da própria condição do urbano que vive na cidade de São Paulo, o turista não percebe a conectividade dos serviços, dificultando sua apropriada utilização no momento do desembarque na cidade e no usufruto de seu período de tempo livre. Neste sentido, torna-se impor-tante para a gestão do turismo um melhor tratamento da imagem da cidade.

A palavra imagem, segundo Bigna-mi4 “pode ser associada a um conjunto de percepções a respeito de algo, a uma representação de um objeto ou seja, a uma projeção futura, a uma lembrança ou recordação passada”. Segundo a mesma autora, a imagem é a mola propulsora dos

4 BIGNAMI, Rosana. Comunicação como fator estratégico do produto turístico. Em: BIGNAMI, Rosana. A imagem do Brasil no Turismo: construção, desafios e vantagem competitiva. São Paulo: Aleph, 2002, pp. 12

5 GASTAL, Susana. Turismo, imagens e imaginários. São Paulo: Aleph, 2005, pp. 13

Page 111: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

A importância da comunicação...

126C o m m u n i c a r e

6 ACERENZA, Miguel Angel. Agencias de viajes: orga-nización y operación. México: Trillas, 1990, pp. 227 PERUSSI, Regina Ferraz. Marketing turístico es-tratégico: segmentação e posicionamento da CVC Turismo. São Paulo: ECA/USP, 2004. (Dissertação de Mestrado).8 TOMELIN, Carlos Alberto. Mercado de agências de viagens e turismo: como competir diante das novas tecnologias. São Paulo: Aleph, 2001, pp. 259 SNEA corresponde ao Sindicato Nacional das Empre-sas Aeroviárias e a IATA (sigla em inglês: “Internatio-nal Air Transport Association” ) designa a Associação Internacional do Transporte Aéreo 10 Significam os transportes do aeroporto ao hotel na chegada e na saída do turista da localidade, re-alizados normalmente por meio de van, ônibus ou micro-ônibus.11 Trata-se de um passeio que serve como uma forma de reconhecimento geral do local para os visitantes e a assessoria ao turista em termos de informações dos atrativos e demais passeios extras ou opcionais durante sua estada, que são cobrados à parte do pacote turístico contratado. Já o “sightseeing” é o city tour realizado em ônibus panorâmico, sem a realização de paradas.

a organização, contratação, divulgação até a realização dos roteiros turísticos. Às Agências de Viagens cabe o papel de vendedoras destes programas estruturados pelas Agências de Viagens e Turismo ou operadoras turísticas aos consumidores finais, ou melhor, aos turistas, de acordo com Perussi7.

Além das Agências de Viagens e das Operadoras Turísticas, pode-se encontrar outros tipos de empresas de agenciamento com características específicas, de acordo com Tomelin8:

• Agências de viagens e turismo conso-lidadoras: São as representantes das com-panhias aéreas, emitindo os bilhetes para as agências de viagens que não possuem credenciais (registro ou cadastro no SNEA ou IATA9) para tal fim;

• Agências de viagens receptivas: São as empresas que prestam serviços às opera-doras de turismo ou às agências de viagens no próprio destino por meio dos traslados10, do city tour ou sightseeing11 e dos passeios extras ou opcionais.

componentes, tais como os meios de trans-porte, as atrações turísticas, os locais para eventos e entretenimento, dentre outros, subestimando a capacidade de integração que poderia prover para o turismo na cidade. Sendo o espaço fértil para a di-vulgação da oferta turística da cidade, em virtude de se constituir no local de estada e no momento propício à comunicação do viajante/hóspede, a rede hoteleira poderia estabelecer uma parceria com as agências de receptivo local, que são as principais responsáveis pela promoção dos atrativos, equipamentos e serviços, oferecidos de forma isolada ou organizados em forma de pacotes ou roteiros turísticos.

A Agência de Turismo é considerada o principal componente do mercado turístico no SIS-TUR - Sistema de Turismo proposto por Beni (2004), já que interliga o lado da oferta, representada pelos fornecedores de produtos turísticos com a parte da demanda, que corresponde aos consumidores destes serviços, constituindo-se, desta maneira, nas organiza-ções do trade turístico com a missão primordial de prestar assessoria ao viajante. Para

os fins deste artigo, será considerada a de-finição de Agência de Turismo construída por Acerenza6:

uma empresa de serviços dedicada à realização de ´arranjos´ para viagens e à venda de serviços isolados ou organizados, atuando como intermediária e/ou organi-zadora e/ou assessora, e estabelecendo elos de ligação entre os prestadores de serviços turísticos e o usuário final para fins turísticos, comerciais ou de qualquer outra índole.

Normalmente no mercado turístico as Agências de Viagens e Turismo são conhe-cidas como Operadoras Turísticas, estando incumbidas da operação das viagens desde

A hotelaria se comporta de maneira autônoma no mercado turístico, com pequena partici-pação no processo de formatação do produto

Page 112: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

127Volume 7 - Nº 2 - 2º sem. 2007

Reinaldo M. de Sá Teles e Regina Ferraz Perussi

Para o alcance dos objetivos deste artigo será dada ênfase à última tipologia de agência de viagens em decorrência do papel de recepcionar e acompanhar o vi-sitante no destino, que conseqüentemente irá colaborar para a formação da imagem turística da cidade.

Beni12 acredita que as funções essen-ciais das Agências de Turismo se concen-tram nos seguintes papéis: - assessora-mento ao cliente quanto a esclarecimentos necessários a respeito de qualquer assunto relacionado à viagens; - organização da viagem, garantindo que tudo o que foi solicitado pelo cliente será fornecido e - promoção, que engloba a propaganda de todos os componentes do pacote turístico. Rejowski13 amplia esta lista de competên-cias das Agências de Turismo, acrescentan-do as responsabilidades abaixo:

• Intermediação de Produtos e Serviços Turísticos: como elo entre os fornecedores e os consumidores dos serviços turísticos, a agência pode oferecer aos viajantes um pacote turístico pronto ou um serviço isola-do. Para a prestação deste serviço a agência recebe comissão dos fornecedores ou cobra um valor fixo para cada tipo de serviço;

• Desenvolvimento e execução de pro-gramas de viagem: Neste caso específico apenas as operadoras de turismo possuem o desempenho autorizado por meio da criação e estruturação dos “package tours”14 ou “forfaits”15 com a venda de seus produtos diretamente às agências de viagens (sendo assim denominadas de maioristas), quanto aos turistas como consumidores finais (desta maneira são chamadas de tour operators);

• Assessoramento ao viajante: Conside-rando a acirrada concorrência do mercado e o crescente grau de exigência dos clientes, que demandam serviços altamente diferen-ciados com preços vantajosos e o agente de viagens como o principal funcionário da Agência de Turismo, seu papel se configura cada vez mais como o consultor e conse-lheiro do turista.

12BENI, Mário Carlos. Análise estrutural do turismo. 10ª edição atualizada. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2004, pp. 19113 REJOWSKI, Mirian. “Agência de Viagem” em ANSA-RAH, Marília Gomes dos Reis (org.). 3ª edição. Turismo: como aprender, como ensinar, volume dois. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2004, pp. 40-4314 Pacotes turísticos tradicionais ou padronizados vendi-dos ao público em geral.15 Roteiros especializados, idealizados em particular para um indivíduo ou grupo de viajantes, de acordo com suas necessidades e anseios particulares.

Deve-se enfatizar que o agente de via-gens atua como o propagador dos atributos dos núcleos receptores, além da promoção encontrada nos materiais de divulgação, visto que pode prover maior número de dicas preciosas e exercer motivação direta sobre o turista no momento da decisão de compra de sua viagem.

No entanto, além das Agências de Tu-rismo Receptivas, outros locais também possuem a função de assistência ao visitante, como as Centrais de Informações Turísticas (CITs), que se constituem em postos de atendimento aos turistas na cidade de São Paulo, sob a responsabilidade da São Paulo Turismo (SP Turis), que é órgão oficial de Turismo da cidade e estão instaladas em pontos considerados por esta organização como estratégicos para os viajantes. Têm como objetivo fundamental disponibilizar dados e serviços atualizados de Lazer e Turismo para brasileiros e estrangeiros de passagem pela capital paulistana e orientá-los no deslocamento da cidade na tentativa de propiciar um melhor aproveitamento da oferta turística por aqueles que procuram o município por motivações turísticas. As informações são apresentadas basicamente por meio de folheteria e mapas que nem sempre são organizados em forma de ro-teiros. Os mapas são elaborados por meio de das técnicas pictóricas, fato que garante maior qualidade visual ao retratar os atra-tivos turísticos distribuídos pela cidade. Observou-se que os roteiros são muito escassos e a promoção da cidade como

Page 113: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

A importância da comunicação...

128C o m m u n i c a r e

16 Em grandes eventos, CITs móveis são instaladas para evitar o deslocamento do visitante, principalmente a do Palácio das Convenções e Pavilhão de Exposições do Anhembi. Atualmente a CIT de Praça da República en-contra-se fechada em função das obras do metrô e a mais próxima é a CIT Olido, situada na Av. São João, 473.17 De acordo com consulta ao site <www.cidadedesaopaulo.com/comtur/arquivos/ata141.pdf> acessado em 11/05/07.

18 CARVALHO, Caio Luiz de. Desafios para consolidar um destino turístico: estudo preliminar do caso da cidade de São Paulo. Em: Turismo em Análise. Vol.1, nº especial. São Paulo: ECA/USP/ Aleph, janeiro 2006, pp. 29

destinação turística ocorre mais em função dos atrativos, o que justifica o grande inves-timento na produção de mapas pictóricos. Este material, em especial, apresenta-se no formato de folder, o selecionado para este artigo, complementa-se com um itinerário intitulado “Roteiro Turístico do Centro”, onde o turista pode encontrar informações que pretendem estimular a visitação. Além disso, conforme se verifica na Figura 1, o material destaca-se pela capa sugestiva que retrata alguns atrativos da cidade, chamando atenção para os seguintes fatores motiva-cionais: gastronomia, patrimônio cultural e parques públicos. Esta característica não permeia o material disponível para o turista que chega à cidade, pois este é o que se destaca pela qualidade.

Figura 1 - Roteiro Turístico do Centro de São Paulo

Fonte: www.cidadedesaopaulo.com

A relevância das CITs na cidade, sobre-tudo quando se constata que os atrativos turísticos e a infra-estrutura técnica são muito expressivos e os roteiros são muito restritos, é que o contato com o profissional que atua nas mesmas evidenciando as atrações, con-segue estimular o visitante a se envolver com a oferta da cidade e, por esta razão, devem estar devidamente capacitados no que tange à habilidade de se comunicar, sobretudo em outros idiomas, principalmente pelo signi-ficativo número de turistas estrangeiros em São Paulo. Considerando que a iniciativa de implantação das CITs é de grande importân-cia para o conforto do turista na cidade e que contribuem sobremaneira para a divulgação da metrópole e promoção do deslocamento do fluxo de turistas, torna-se importante que toda orientação reservada para as CITs possa ser replicada em locais onde os turistas naturalmente transitam ou ficam instalados. Tal condição poderia reforçar a escassez dos pontos de instalações das CITs.

Atualmente há apenas sete CITs em fun-cionamento na cidade: Iguatemi, Avenida Paulista, Galeria Olido, Terminal Rodoviário Tietê, Parque Ibirapuera e duas no Aeroporto de Cumbica (Guarulhos).16 Segundo reunião do COMTUR (Conselho Municipal de Turis-mo) realizada em 29 de abril de 200517, foi feito um plano de reestruturação das Centrais de Informação Turística e optou-se pela ma-nutenção de algumas centrais e o fechamento de outras unidades.

Embora Carvalho18 tenha destacado algu-mas ações para um processo de capacitação

Page 114: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

129Volume 7 - Nº 2 - 2º sem. 2007

Reinaldo M. de Sá Teles e Regina Ferraz Perussi

dos funcionários das CITs, sobretudo no que tange ao domínio de idiomas estrangeiros, além da melhoria das estruturas físicas para um modelo mais moderno e padronizado, percebe-se, todavia, que a quantidade delas é ainda extremamente limitada, consideran-do-se a dimensão territorial da cidade de São Paulo e seus pontos de atração turís-tica e demais localidades onde o visitante normalmente se estabelece. Além disso, o aspecto arquitetônico das CITs não propor-ciona maior proximidade com o visitante, os materiais não se encontram em quantidade suficiente para todos os visitantes e a maio-ria permanece fechada no período noturno e nos finais de semana, justamente no pe-ríodo em que grande parte dos viajantes, sobretudo aqueles com motivação principal de negócios ou eventos, dispõem de tempo livre para o usufruto dos equipamentos e serviços turísticos.

Partindo-se do pressuposto de que a maioria dos turistas acessa a cidade via aérea, normalmente o primeiro contato deveria ocorrer no aeroporto por meio das CITs19. No entanto, se não houver um hábito ou um co-nhecimento prévio de se buscar estas centrais de informação, provavelmente a comunicação do visitante se dará por meio dos taxistas, para aqueles que não optaram pela locação de veí-culos. Logo, estes profissionais se constituem em elementos-chave para a apresentação da oferta turística do município, podendo propi-ciar desde o traslado até o hotel, um melhor aproveitamento da estada e até impulsionar o seu prolongamento, transformando o trajeto em um roteiro turístico.20

Tanto nas agências de turismo quanto nas CITs podem ser encontrados os Roteiros Turísticos, que podem ser considerados ins-trumentos que possibilitam ao visitante um conhecimento mais amplo, organizado ou temático dos pontos de interesse turístico do destino, com o acompanhamento de guias de turismo, que são os profissionais capacitados para transmitir informações minuciosas sobre as atrações e serviços turísticos da localidade.

De acordo com o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa21 entre outros sig-nificados, roteiro significa “itinerário ou descrição minuciosa de viagem”. Na mesma publicação, o vocábulo “itinerário” engloba um sentido mais amplo e próximo da ativi-dade turística, já que é “relativo às estradas, aos caminhos; indicativo de distância de um lugar a outro; descrição de viagem (...peregrinação); caminho a seguir, ou seguido, para ir de um lugar a outro”.

Assim, pode-se definir Roteiro Turís-tico como o itinerário planejado de uma atividade turística, que engloba a descrição pormenorizada dos atrativos e atividades dos destinos visitados, bem como o período de duração e a especificação dos horários e serviços inclusos.

Considerando a dimensão da cidade e a grande demanda de turistas de negócios e eventos, torna-se importante a formatação de roteiros que possam atender a este público. Entretanto, para que isso ocorra, a capital paulistana necessita de um mercado de ope-rações turísticas que coloque as agências e/ ou operadoras em posição de destaque para atender aos turistas.

Conforme destaca Navarro22, a pesquisa de gabinete para investigar as agências que traba-lham com turismo receptivo na cidade de São Paulo revelou que as agências e/ou operadoras

19 Vale destacar que no aeroporto de Congonhas, embora não haja uma CIT, existe um balcão de infor-mações turísticas. 20 Um CD de boas vindas aos visitantes e uma car-tilha com outros idiomas foi entregue aos taxistas no ano de 2005 pela SPTuris. Além disso, cursos de capacitação para esta categoria profissional têm sido ministrados pela São Paulo Convention & Visitors Bureau, em parceria com a Faculdade Cásper Líbero, Turismo Cásper e apoio da São Paulo Turismo (SPTuris), ABBTUR e Centro de Eventos Cásper Líbero intitulado “São Paulo é tudo de bom e nossos táxis também” desde março de 2007. 21 Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, pp. 2.477

22 NAVARRO, Roberta Campos. Roteiros histórico-culturais na cidade de São Paulo – dificuldades no processo de ope-racionalização. São Paulo: Faculdade Cásper Líbero, 2006

Page 115: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

A importância da comunicação...

130C o m m u n i c a r e

23 NAVARRO, Roberta Campos. Roteiros histórico-culturais na cidade de São Paulo – dificuldades no processo de operacionalização. São Paulo: Faculdade Cásper Líbero, 2006, pp:3324 TELES, Reinaldo Miranda de Sá. Turismo urbano na cidade de São Paulo: o deslocamento do CBD e seus reflexos na hotelaria. São Paulo: ECA/USP, 2006. (Tese de Doutorado)25 Idem, pp:12926 NAVARRO, Roberta Campos. Roteiros histórico-culturais na cidade de São Paulo – dificuldades no processo de operacionalização. São Paulo: Faculda-de Cásper Líbero, 200627 Aeroporto Express, Andanças Tur, Check Point, Cir-cuito São Paulo, Coopline Tur, Costa Aguiar, Easygoing, Fasttrans, Go In, Goltour, Graffit, Number One Tours, GRP Brasil, RMB, Santa Rita Turismo, Urben Turismo, Relax, Tayar Turismo e Terra Nobre. 28 NAVARRO, Roberta Campos. Roteiros histórico-culturais na cidade de São Paulo – dificuldades no processo de operacionalização. São Paulo: Faculdade Cásper Líbero, 2006. 29 CARVALHO, Caio Luiz de. Desafios para consolidar um destino turístico: estudo preliminar do caso da cidade de São Paulo. In: Turismo em Análise. Vol.1, nº especial. São Paulo: ECA/USP/ Aleph, janeiro 2006, pp. 31

que atuam na região central apresentam-se em menor quantidade comparadas ao grande nú-mero de empresas de agenciamento sediadas em São Paulo. Segundo a SPTuris (2007) en-contram-se 40 agências de viagens receptivas cadastradas pela EMBRATUR na cidade de São Paulo. No entanto, a pesquisa realizada por Navarro23 identificou que apenas 19 delas atuavam de maneira ativa com algum roteiro turístico na cidade. Esta constatação pode ser ratificada por Teles24 quando afirma que a oferta da cidade não é valorizada pelo empreendedor do setor:

Segundo dados obtidos com os gerentes das redes de hotéis da cidade, os serviços de receptivo são prestados por pequenas operadoras e por profissionais autônomos. Percebe-se o pouco interesse do mercado

de capitais a este segmento. Os roteiros restringem-se ao city-tour pela cidade e à pequenas viagens de um dia para Campos do Jor-dão, Rio de Janeiro, São Francisco Xavier, Guarujá e de dois dias para Iporanga, Foz do Iguaçu e Parati ... Esse fato fica evidente diante dos insistentes apelos para roteiros que tiram o turista da cidade, levando-o para destinos do litoral e do interior25.

Para Navarro26 os roteiros divulgados pelas agências e/ou operadoras27 apresen-

tam, de modo geral, os mesmos itinerários, o que significa que os pontos visitados já se apresentam como atrativos consolidados. Embora não se tenha observado um material adequado que contemple roteiros que contri-buam para uma melhor divulgação da cidade, entrevistas realizadas por um dos autores deste artigo no posto de atendimento da CIT do Shopping Light e da Av. Paulista, assim como as propostas divulgadas nos sites das agências receptivas dos órgãos oficiais como o SPTuris e o SPC&VB, permitem identificar os roteiros convencionais que, segundo Na-varro28 se mostram desconectados em relação a infra-estrutura técnica já estabelecida e digna de uma metrópole.

Roteiros turísticos de Agências Recepti-vas na Cidade de São Paulo (Tabela 1)

Em janeiro de 2006 foi retomado um an-tigo projeto da extinta Secretaria de Esportes e Turismo do Estado de São Paulo do perí-odo de 1986: o Turismetrô, que consiste em um roteiro de visitação às atrações turísticas da cidade ligadas pelo sistema metroviário, que também pode ser realizado pelo próprio morador local, criando ou melhorando desta forma a identidade do cidadão com sua terra natal29. É um programa acessível, tanto do ponto de vista de acesso quanto econômico, já que não se cobra o serviço do guia de turismo regional, mas apenas o número de bilhetes de metrô necessários para a realização do roteiro.

Roteiros Turísticos em parceria com a SPTuris e o Metrô (Tabela 2)

Os Roteiros ou Itinerários Turísticos podem ser organizados por órgãos públicos (como as Secretarias de Turismo e, no caso específico da cidade, a SPTuris – São Paulo

A capital paulistana ne-cessita de um mercado de operações turísticas que coloque as agências em posição de destaque

Page 116: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

131Volume 7 - Nº 2 - 2º sem. 2007

Reinaldo M. de Sá Teles e Regina Ferraz Perussi

30 TAVARES, Adriana de Menezes. City tour. São Paulo: Aleph, 2002, pp.26-2731 Idem, pp 37-41

Turismo) ou pela iniciativa privada, caso das empresas do mercado turístico, como as operadoras de turismo e revendidos por es-tas ou pelas agências de viagens, conforme anteriormente delineado, por especialistas ligados às editoras de guias turísticos, revis-tas especializadas em turismo e programas de televisão, ou ainda, criados de forma espontânea pelo próprio turista.

A classificação dos Roteiros Turísticos pode ocorrer em função da tipologia das des-tinações, como: clássicos, sendo aqueles que possuem a imagem já consolidada no merca-do de viagens e são visitados pelos turistas de massa; inovadores, que são os destinos tradicionais com alguma atração agregada ou os alternativos, direcionados para um tipo de público mais exigente pertencente ao turismo de minorias ou com motivações restritas.

Conforme o local de elaboração, os mesmos podem ser: emissivos, quan-do são elaborados por operadoras de turismo ou por publicações do pólo emissor, com enfoque no atendimento

das expectativas dos clientes quanto aos destinos a serem visitados ou receptivos, que são aqueles elaborados pelas opera-doras do núcleo receptor, que buscam a adaptação dos anseios dos turistas, de acordo com Tavares30.

Os roteiros podem ser estruturados em “pacotes turísticos”, em que os diversos elementos como meios de transporte, hos-pedagem, gastronomia e equipamentos de lazer e serviços de traslados, não podem ser comercializados separadamente. Somente no caso dos forfaits ou itinerários planejados de acordo com as conveniências de cada cliente ou grupo de viajantes, os itens podem ser inclusos ou eliminados dos roteiros.

Normalmente, como afirma Tavares31, todo Roteiro Turístico engloba a realização de um city tour, que por sua vez apresenta

Tabela 1 – Roteiros turísticos de Agências Receptivas na Cidade de São Paulo

1º Roteiro – City Tour de 4, 6 ou 8 horas

Passeios maravilhosos e culturais pela cidade de São Paulo: Centro Histórico, Bairro Oriental (Liberdade), Higienópolis, MASP, Avenida Paulista, Jockey Clube, Instituto Butantã, Parque do Ibirapuera, Museu do Ipiranga, etc.

2º Roteiro – Tour by Night

Gastronomia de alta qualidade com shows de Mulatas, músicos e bailarinas em casas noturnas especializadas, incluindo desfile de fantasias de Carnaval.

3º Roteiro – Turismo Cultural de 4 ou 8 horas

Visita a vários museus, como: Pinacoteca, MASP, MAC, MAM, Memorial da América Latina, Museu do Ipiranga, Museu de Arte Sacra, entre outros.

4º Roteiro – Turismo nas Praias

Passeios em Santos e Guarujá com vista panorâmica da Serra do Mar e da costa marítima e parada para descanso ou banho de mar.

5º Roteiro – Turismo em Shoppings

Saídas para compras em grandes shoppings de São Paulo como: Ibirapuera, Iguatemi, Eldorado, ou ruas de comércios especializados.

Page 117: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

A importância da comunicação...

132C o m m u n i c a r e

a seguinte subdivisão: básico, em que há um visita aos principais pontos turísticos da cidade, em veículo motorizado, de acordo com o tamanho do grupo, sendo genérico, direcionado para todos os tipos de turistas, podendo incluir breves paradas; panorâmi-co, tipo básico que não prevê parada para visita interna; by night, que é realizado à noite, incluindo os principais monumentos iluminados da cidade e os pontos de atração noturna, para todos os tipos de turistas; motivacional, direcionado para um público com interesse específico (personalizado).

Levando-se em conta essas tipologias, a cidade de São Paulo, por meio da SPTuris, criou em parceria com as operadoras de

turismo, alguns roteiros temáticos para firmar-se como o principal destino turístico brasileiro, que foram lançados no Salão do Turismo - Roteiros do Brasil, em junho de 2005 com os seguintes temas: SP Glamour, SP Bem-Estar, SP Romance, SP Família, SP Arte, SP Verde, SP de todas as Faces, SP e suas Religiões e São Paulo dos Pau-listanos.32 Já o SPC&VB também apresenta nove tipos de roteiros: São Paulo das Artes

32 Segundo o site <www.prefeitura.sp.gov.br> de 03 de agosto de 2005 – Novos Roteiros para conhecer São Paulo, acessado em 14 de maio de 2007. Também está atualmente disponível no site: www.spturis.com.

Tabela 2 – Roteiros Turísticos em parceria com a SPTuris e o Metrô

1º Roteiro – Sé

Conheça onde se deu a fundação de São Paulo. O centro histórico é o marco zero para se co-nhecer a formação da cidade. Visite Largo de São Bento, Praça do Patriarca, Pateo do Colégio e Catedral da Sé.

2º Roteiro – Memoriais

O Memorial da América Latina difunde a cultura e história dos povos latino-americanos através de manifestações artísticas e cientificas e o Memorial do Imigrante relata as etapas do processo imigratório para o Estado de São Paulo. Nessas visitas, aproveite para caminhar pela praça da República e Centro Novo. Visite: Memorial da América Latina (domingos ás 9h00) e Memorial do Imigrante (sábados e domingos às 14h00)

3º Roteiro – Paulista

Descubra um outro lado da avenida que já nasceu grande e que é símbolo de São Paulo. Visite a Casa das Rosas e impressione-se com a sua beleza arquitetônica. Conheça o Parque Trianon, uma improvável área verde no meio do coração econômico da América Latina, e o MASP, com desconto na visitação. Visite: Casa das Rosas, Parque Trianon, MASP (opcional)

4º Roteiro – Theatro Municipal/São Francisco

Surpreenda-se com a riqueza artística e arquitetônica da São Paulo antiga. O Theatro Municipal, palco de movimentos artísticos expressivos. O importante Largo de São Francisco, de onde saí-ram personagens decisivos na história do país. Visite: Ladeira da Memória, Theatro Municipal, Viaduto do Chá, Largo e Igreja de São Francisco.

5º Roteiro – Luz

Conheça o lado cultural de São Paulo na região que passa por um importante processo de revita-lização. Visite a Estação da Luz, marco do desenvolvimento econômico da capital e aprecie o rico acervo do Museu de Arte Sacra. Visite: Estação da Luz, Parque da Luz, Museu de Arte Sacra.

Page 118: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

133Volume 7 - Nº 2 - 2º sem. 2007

Reinaldo M. de Sá Teles e Regina Ferraz Perussi

(Incomparável!), São Paulo Arquitetura (Os contrastes de uma metrópole), São Paulo Faces (A mistura que deu certo), São Paulo Verde (Um gigante que valoriza a ecologia), São Paulo dos Negócios (Uma vocação na-tural), São Paulo dos Esportes (Uma cidade que transpira), São Paulo Diversão (Noite e dia sem parar), São Paulo Gastronômica (O visitante se sente em casa) e São Paulo das Compras (Da agulha à Ferrari).33

Evidencia-se que os roteiros apresen-tados pelos principais órgãos de turismo da cidade identificam semelhanças entre si, inclusive com roteiros com a mesma denominação, segundo os diversos tipos de motivações dos turistas, ressaltando com isto a amplitude de possibilidades de atrativos e passeios de São Paulo.

No que diz respeito às ações estratégi-cas de comunicação desenvolvidas pela SPTuris, Carvalho34 aponta que foi estabe-lecido um plano de divulgação, por meio de material impresso com campanha “fique mais um dia”, direcionada aos turistas de negócios, visando o estímulo para o conhe-cimento da diversificada gama de atrativos e de infra-estrutura de equipamentos e serviços disponíveis na metrópole. Foi publicado o Guia “São Paulo - Fique mais um dia”, elaborado em maio de 2006, por profissionais do Guia Quatro Rodas Brasil e da Revista Viagem & Turismo, em parceria com a Prefeitura de São Paulo, a SPTuris e o SPC&VB, que ajuda a orientar os turistas no deslocamento da cidade (como chegar e como circular), quebrando alguns pa-radigmas quanto a mitos da metrópole e, sobretudo, estimulando-os a estender sua permanência ao mostrar as diversas possi-bilidades de itinerários e facilidades. Com essa ferramenta, o visitante pode escolher e realizar por conta própria sua programa-ção, como os intitulados “Dias Perfeitos”35, seguindo um roteiro temático de um dia ou pode optar pelas atrações localizadas em determinados espaços geográficos, com sugestões de hospedagem, alimentação, compras e passeios segundo uma seleção

de “Bairros Imperdíveis”36. Esse material apresenta excelente qualidade, mas não está posicionado no mercado a ponto de atingir o grande público de turistas que chegam à metrópole, e também, à popula-ção local tão carente de práticas de lazer. Além disso, isso poderia colaborar para a melhoria da identidade do paulistano com a cidade, fortalecendo sua auto-estima, o que se refletiria na boa imagem de São Paulo para os visitantes.

Considerações Finais

Foi possível detectar com esta inves-tigação que faltam apropriadas estratégias de comunicação por parte das agências de receptivo local de São Paulo e os principais organismos de turismo da capital paulis-tana: SPC&VB e SPTuris, principalmente no caso deste último por meio das CITs, por se tratarem dos locais que propiciam o maior contato do turista com a oferta da cidade, bem como a integração efetiva destas empresas entre si. Embora se tenha revelado uma semelhança dos roteiros elaborados entre o SPC&VB e o SPTuris, estas programações ainda não se mostram consolidadas e há uma distância maior destas com as agências receptivas, o que se torna um empecilho para a promoção

33 De acordo com o site <cidadedesaopaulo.com> acessado em 21 de maio de 2007.34 CARVALHO, Caio Luiz de. Desafios para consolidar um destino turístico: estudo preliminar do caso da cidade de São Paulo. In: Turismo em Análise. Vol.1, nº especial. São Paulo: ECA/USP/ Aleph, janeiro 2006, pp. 3335 Os “Dias Perfeitos” englobam os seguintes temas motivacionais: Cultural, Pelo Centro, Ao Ar Livre, Pelas Belas-Artes, Descolado, Econômico, Sofisticado, Com Crianças, Um sábado típico e Um domingo típico.36 Os “Bairros Imperdíveis” são considerados nos agrupamentos por proximidade: “Avenida Paulista, Jardins e Consolação”, “Centro, Liberdade, Luz e Bela Vista”, “Ibirapuera, Moema e Vila Nova Conceição”, “Vila Madalena, Pinheiros e Butantã”, “Vila Olímpia, Itaim Bibi, Brooklin e Morumbi” e outros bairros isolados, como Ipiranga, Água Funda, Barra Funda, Higienópolis, Cantareira e Interlagos.

Page 119: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

A importância da comunicação...

134C o m m u n i c a r e

de uma imagem adequada da metrópole. Aliado a isso, salienta-se a precariedade das estruturas físicas e organizacionais das agências receptivas, a limitada variedade de itinerários planejados, a quantidade restrita de materiais de boa qualidade disponíveis, não só nestes espaços de

comercialização de roteiros, mas também nos meios de hospedagem e nos próprios atrativos turísticos. Logo, a integração proposta entre os setores seria capaz de posicionar uma marca para a cidade, destacando-se que os roteiros poderiam contribuir sobremaneira para tal fato.

Referências bibliográficas

ACERENZA, Miguel Angel. Agencias de viajes: organización y operación. México: Trillas, 1990.BENI, Mário Carlos. Análise estrutural do turismo. 10ª edição atualizada. São Paulo: Editora

SENAC São Paulo, 2004. BIGNAMI, Rosana. Comunicação como fator estratégico do produto turístico. Em: BIGNAMI,

Rosana. A imagem do Brasil no Turismo: construção, desafios e vantagem competitiva. São Paulo: Aleph, 2002.

CARVALHO, Caio Luiz de. Desafios para consolidar um destino turístico: estudo preliminar do caso da cidade de São Paulo. Em: Turismo em Análise. Vol.1, nº especial. São Paulo: ECA/USP/ Aleph, janeiro 2006, pp. 24-35.

Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.GASTAL, Susana. Turismo, imagens e imaginários. São Paulo: Aleph, 2005.GUIA São Paulo Fique mais um dia. São Paulo. Abril, maio de 2006.INDICADORES DO TURISMO PAULISTANO. Diretoria de Turismo e Entretenimento, Gerência de

Planejamento e Estruturação do Turismo e Coordenadoria de Informação e Pesquisa. SPTuris, 2006.NAVARRO, Roberta Campos. Roteiros histórico-culturais na cidade de São Paulo – dificuldades no

processo de operacionalização. São Paulo: Faculdade Cásper Líbero, 2006. PERUSSI, Regina Ferraz. Marketing turístico estratégico: segmentação e posicionamento da CVC

Turismo. São Paulo: ECA/USP, 2004. (Dissertação de Mestrado).REJOWSKI, Mirian. “Agência de Viagem” em ANSARAH, Marília Gomes dos Reis (org.). 3ª edição.

Turismo: como aprender, como ensinar, volume dois. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2004. RUSCHMANN, Dóris e SOLHA, Karina. (orgs.). Turismo: uma visão empresarial. Barueri: Manole, 2004.TAVARES, Adriana de Menezes. City tour. São Paulo: Aleph, 2002.TELES, Reinaldo Miranda de Sá. Turismo urbano na cidade de São Paulo: o deslocamento do CBD

e seus reflexos na hotelaria. São Paulo: ECA/USP, 2006. (Tese de Doutorado).TOMELIN, Carlos Alberto. Mercado de agências de viagens e turismo: como competir diante das

novas tecnologias. São Paulo: Aleph, 2001.

Page 120: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

Comunicação e Mercado

Rodrigo Sanches Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP

[email protected]

Resumo

Em seus diversos formatos (com o uso de placas publicitárias ou aparatos tecnológicos), os homens-placa são um exemplo da anulação do corpo em favorecimento das imagens. A partir das reflexões da Semiótica da Cultura, procuro desenvolver uma análise do homem-placa enquanto objeto multifacetado, texto da cultura que ora revela, ora esconde. A placa necessita do corpo para existir, e acaba por devorá-lo. O surgimento do homem-placa-digital revela como a dimensão da corporalidade encontra-se subjacente aos dispositivos de alta tecnologia utilizados pela publicidade.

Palavras-chave: homem-placa; pixman; publicidade; corpo.

Abstract

In their many shapes (with advertising plates or using technological devices), the plate-men can be regarded as an example of the cancellation of the body in favor of images. Using the reflection provided by the Semiotics of Culture, I will try to analyze the plate-man as an open and multifaceted object, a culture text that reveals and hides itself, by turns. In order to exist, the plate requires a body, but then destroy it. The presence of the new digital plate-man reveals how the corporality dimension underlies the high technological devices used in advertising.

Key words: plate-man; pixman; advertising; body.

Resumen

En sus diversos formatos (con placas publicitarias o utilizando aparatos tecnológicos), los hombres-placas son un ejemplo de la anulación del cuerpo en favorecimiento de las imágenes. A partir de las reflexiones de la Semiótica de la Cultura, busco desarrollar un análisis del hombre-placa como objeto multifacetado, un texto de la cultura que ora revela, ora esconde. La placa necesita del cuerpo para existir, y acaba por devorarlo. El surgimiento del hombre-placa-digital revela como la dimensión de la corporeidad se encuentra subyacente a los dispositivos de alta tecnología utilizados por la publicidad.

Palabras clave: hombre-placa; pixman; publicidad; cuerpo.

Do homem-placa ao pixman: o processo iconofágico na relação

da imagem, mídia e corpo

From the man holding the sign to the pixman

Page 121: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

Do homem-placa ao pixman

136C o m m u n i c a r e

mendigos – dos quais doze mil estavam re-gistrados em Paris, em meados da década de 1930, como habitantes sem residência fixa.

Alguns dos primeiros homens-placa em Paris eram mulheres. “Em 1884, um escritor fez uma reportagem para o London Times: ontem encontrei uma procissão de garotas vestindo cartazes publicitários. E no ano seguinte apareceu no Pall Mall Gazette: Nós temos, e não faz muito tempo, visto mulhe-res empregadas como ‘sanduíches”2.

Trata-se de uma mídia barata, mam-bembe, com a mobilidade de um corpo em cujo rosto se estampa o cansaço e a falta de perspectivas. Ao observar as poucas mulheres que também emprestam seus corpos para a fixação dos anúncios, o contraste é ainda mais evidente. São cor-pos completamente distantes dos valores femininos impostos pela publicidade e do modelo de mulher que Edgar Morin de-nomina “boneca do amor”3. O modelo da mulher moderna opera, na publicidade, o sincretismo entre três imperativos: seduzir, amar e viver confortavelmente, algo díspar para as mulheres que trabalham cerca de dez horas diárias em locais como a Praça da República, em São Paulo.

O corpo: território da cultura

A proposta deste trabalho é analisar o ho-mem-sanduíche como objeto multifacetado, aberto, um texto da cultura que ora revela, ora esconde. Para tanto, utilizarei os para-digmas da Semiótica da Cultura, uma vez que “a análise em profundidade de textos culturais, a descoberta de mensagens ocultas e a interpretação dos textos são atividades

publicidade contemporânea utili-za-se de inúmeros recursos audio-visuais e estratégias comunicativas

para persuadir consumidores e levá-los a adquirir os mais diversos produtos e serviços. Com as inovações tecnológicas, a publicidade revela-se um dos mais notáveis meios de comunicação de massas da nossa época. Na contramão do glamour e da sofisticação dos recursos publicitários encontra-se o chama-do “homem-sanduíche”, “homem-placa” ou “plaqueiro”. Trata-se de homens - raras vezes mulheres - que andam pelos centros comerciais de diversas cidades carregando, penduradas aos ombros, duas placas de com-pensado, uma voltada para a frente e outra às

suas costas. Nessas placas são estampados anúncios de diversos produtos e ser-viços, como a compra e ven-da de ouro, tíquetes-refeição ou bilhetes de metrô. Em ge-ral, são desempregados ou aposentados que procuram complementar sua renda utilizando o corpo como veículo de comunicação.

Ao observar os ho-mens-sanduíche da década de 1930, em Paris, Walter Benjamim escreveu: “você

os tem visto passando por nossas ruas, ma-gros e maltrapilhos, com suas longas capas cinza e sob seus gorros de abas vistosas. Falemos com toda a franqueza: nem de longe sou um partidário desse trabalho. Caracteristicamente, nem a dignidade da publicidade nem a do homem são elevadas através dessa penosa profissão”1.

Os homens-sanduíche parisienses eram quadros publicitários humanos que anuncia-vam e tornavam públicos produtos e eventos da cultura consumista burguesa. E apesar dos uniformes que lhes emprestavam para que tivessem uma aparência mais respeitosa, ainda eram bastante associados à pobreza. Trabalhadores casuais de meio período e não-sindicalizados, eram recrutados em meio aos

A

1 BUCK-MORSS, Susan. O flâneur, o homem-sanduíche e a prostituta. In: Espaço & Debates: Revista de Estudos Re-gionais e Urbanos. São Paulo: Ano X, no 29, 1990, p. 14.2 BUCK-MORSS, Susan. Op. cit., p. 18.

3 MORIN, Edgar. Cultura de Massas no Século XX: O Espírito do Tempo. 3a ed., São Paulo: Editora Forense Universitária, 1975, p. 126.

Page 122: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

137Volume 7 - Nº 2 - 2º sem. 2007

Rodrigo Sanches

4 BYSTRINA, Ivan. Tópicos de uma Semiótica da Cultura. São Paulo: Pré-Print Cisc, 1995. Tradução: Norval Baitello Júnior e Sônia B. Cartino, p. 18.5 BAITELLO JR, Norval. O animal que parou os relógios: Ensaios sobre comunicação, cultura e mídia. São Paulo: Annablume, 1997, p. 39.6 BAITELLO JR, Norval. Op. cit., p. 39.7 CAMPELO, Cleide Riva. Cal(e)idoscorpos: Um estudo semiótico do corpo e seus códigos. São Paulo: Annablume, 1997, p. 20.8 BUENO, Maria Lúcia e CASTRO, Ana Lúcia. Corpo Ter-ritório da Cultura. São Paulo: Annablume, 2005, p. 09.9 A articulação entre mídia primária, secundária e terciária é trabalhada pelo jornalista e cientista político alemão Harry Pross em sua obra Medien-forschung (Investigação sobre a Mídia), publicada em 1972; a obra é abordada pelo pesquisador Norval Baitello Júnior em seu livro “A Era da Iconofogia”.10 PROSS, Harry, apud BAITELLO JR, Norval. A Era da Iconofagia: Ensaios de Comunicação e Cultura, São Paulo: Hacker Editores, 2005, p. 8011 BAITELLO JR, Norval. Op. cit., p. 81.

12 BELTING, Hans. Pour une Anthropologie des images. Paris: L`Homme, 2004, p. 49.

13 BAITELLO JR, Norval. Op. cit., p. 59.

viço de quem, ou seja, é o cartaz, enquanto adereço corporal, que caracteriza o veículo, ou é o corpo seu aspecto principal. Nem um, nem outro. Ambos formam uma coisa única: uma mídia, um veículo comunicativo com características peculiares. Na condição mídia, os homens-placa processam uma dis-simulação do corpo para exercer sua função comunicativa. É como uma máscara:

“A máscara é uma metonímia da metamor-fose de nosso corpo em uma imagem. (...) Ela é aplicada sobre o corpo, o dissimu-lando, ao mesmo tempo, atrás da imagem que ela dá a ver. Ela substitui ao corpo uma imagem na qual o invisível (o corpo-supor-te) e o visível (o corpo-aparente) formam uma unidade medial”12.

Nosso tempo tenta nos vestir, nos impor modelos prét- à- porter, de escolha limitada, modelos absurdos de corpos13, de máscaras. O corpo tornou-se um acessório, uma prótese:

“A noção incerta do corpo, cuja crise atual é evidente, levou-nos a extrapolar a expectativa de vida e a investir em corpos artificiais, em oposição aos corpos vivos, como se eles pudessem proporcionar uma

que constituem o que há de mais importante no trabalho da Semiótica da Cultura”4.

O conceito de texto da cultura parte da premissa dos conceitos de primeira e segunda realidade5. As amarras da realidade físico-biológica são denominadas primeira realidade (atividades que permitem a sobre-vivência do corpo). O texto como unidade mínima da cultura encontra-se justamente no universo simbólico da segunda realidade, “conjunto de informações geradas e acumu-ladas pelo homem ao longo dos milênios, por meio de sua capacidade imaginativa”6.

O corpo, “moldado pela ação conjunta de todos os outros corpos que a cultura lhe confere”7, tem se configurado cada vez mais como um dos principais espaços simbólicos na construção de identidades e estilos de vida. Através dele, pessoas de universos sociais e culturais diversificados operam tanto para afirmar sinais de distinção social, quanto para expressar diferentes visões de mundo. “Em um mundo marcado pela desterritorialização, o corpo desponta como um espaço-limite de vivência (ou até mesmo de sobrevivência) do exercício da territorialidade”8.

Os homens-placa são uma mistura de mídia primária9, estabelecendo vínculos com o próprio corpo, e mídia secundária, uma vez que carregam dois cartazes afixados sobre um suporte de madeira preso ao ombro. Toda comunicação humana “começa na mídia primária, na qual os participantes individuais se encontrem cara a cara e imediatamente presentes com seu corpo; toda comunicação humana retornará a este ponto”10.

A mídia homem-sanduíche não pode existir sem o corpo (que dá suporte ao car-taz), porém sem a mídia secundária (cartaz) não pode configurar-se como um veículo de comunicação. “Na mídia secundária ape-nas o emissor se utiliza de prolongamentos para aumentar seu tempo de emissão, seu espaço de alcance, (...) valendo-se de apa-ratos, objetos ou suportes materiais que transportam sua mensagem”11.

No caso específico do homem-sanduí-che, é necessário observar quem está a ser-

Page 123: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

Do homem-placa ao pixman

138C o m m u n i c a r e

vida superior. (...) Por isso, as mídias con-temporâneas estão investidas de um poder paradoxal sobre nossos corpos, os quais se sentem derrotados ante sua presença”14.

Quando os indivíduos são obrigados a utilizar estratégias de encenação, o corpo e suas relações próximas são pouco a pouco destruídos:

“Transformado em uma imagem, o corpo perde sua “essência” natural e histórica, abrindo espaço para uma das formas mais sutis de violência simbólica: a perda do momento presente e da capacidade do presente. Aqui tem início uma “estética da ausência”: o rastrear da pista do corpo des-truído só pode ocorrer corporalmente.”15.

A estética da ausência é um fator que caracteriza o homem-placa como imagem.

O corpo está ali, mas não é notado. Torna-se uma “au-sência visível”16, quando a imagem substitui a ausência do corpo por um tipo dife-rente de presença.

Imagem, mídia e corpo

A mídia homem-san-duíche permite uma análise da tríade imagem-mídia-cor-po. Convém, portanto, espe-

cificar quais conceitos pretendo trabalhar para, então, investigar o homem-sanduíche em seus múltiplos aspectos. Mídia é para ser entendida não no seu sentido usual,

“mas no sentido de agente pelo qual as imagens são transmitidas, enquanto corpo significa tanto o corpo que performatiza quanto o que percebe, do qual as imagens dependem na mesma medida em que de-pendem de suas respectivas mídias”17.

Imagens são superfícies que pretendem representar algo18 e “algo que não se encontra independentemente nas superfícies ou nas cabeças. Elas não existem por si mesmas, mas, sim, acontecem; (...) Elas acontecem via trans-missão e recepção”19. Desta maneira, atrás

Vivemos um fenômeno que começou a revelar seus imensos efeitos: a silenciosa transformação do corpo em uma imagem do corpo

14 BELTING, Hans. Imagem, mídia e corpo: Uma nova abordagem à iconologia. In: Revista Ghrebh 8. Disponível em http://revista.cisc.org.br/ghrebh8. Acessado em 28 de setembro de 2006, s/p.15 KAMPER, Dietmar. O Corpo Vivo, O Corpo Morto. Disponível em http://www.cisc.org.br/portal/biblio-teca/iv2_corpovivo.pdf. Acessado em 08 de fevereiro de 2006, s/p.16 BELTING, Hans. Op. cit., s/p.17 BELTING, Hans. Op. cit., s/p.18 FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002, p. 05.

19 BELTING, Hans. Op. cit., s/p.20 BELTING, Hans. Pour une Anthropologie des images. Paris: L`Homme, 2004, p. 19. Livre tradução de Martinho Alves da Costa Júnior.21 KAMPER, Dietmar. Imagem. Disponível em http://www.cisc.org.br/portal/biblioteca. Acessado em 10 de outubro de 2006, p. 07.

da visibilidade de uma imagem emergem numerosas configurações que a acompanham e que nossa visão não consegue identificar: as camadas históricas, o imaginário, a cultura. Portanto, atrás das imagens encontra-se um espaço comunicativo de improvável determi-nação. Segundo Hans Belting,

“Para responder à questão: “O que é uma imagem?”, seremos notadamente levados a examinar os artefatos, as obras de arte, o imaginário científico e os modos de transmissão utilizados por cada tipo de imagem. Mas o objeto de nossa questão só será compreendido interrogando-se sobre a maneira da qual ele se põe ou se transforma em imagem.”20.

E os homens vivem no mundo das ima-gens, “na verdade das imagens do mundo. E vivem mais mal do que bem nessa ima-nência (permanência) imaginária. Morrem por isso”21.

Da tridimensionalidade para a bidimensionalida-de: o “corpo-anúncio”

Ao observar o trabalho dos homens-sanduíche, proponho aqui um novo tipo de corpo imposto pela sociedade das imagens: o “corpo-anúncio”. Uma vez que o homem-

Page 124: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

139Volume 7 - Nº 2 - 2º sem. 2007

Rodrigo Sanches

22 BELTING, Hans. Op. cit., s/p.23 BAITELLO JR, Norval. As núpcias entre o nada e a máquina – Algumas notas sobre a era da imagem. In: Revista Científica de Información y Comunicación. Sevilha: Universidad de Sevilla, 2005, s/p.24 KAMPER, Dietmar. Estrutura temporal das imagens. In: Malena Segura Contrera et al. (orgs.). O espírito do nosso tempo: Ensaios de semiótica da cultura e da mídia. São Paulo; Annablume: CISC, 2004, p.83.

imagens de corpos ocorreu em uma seqüên-cia de passos da abstração:

“Abstração significa aqui “subtrair o olhar a” (Absehen von). (...) Os corpos que nos circundam foram inicialmente distanciados e estilizados em retratos, estátuas e corpos ideais (Bildkörpern); depois fotografados em superfícies e transformados em imagens corporais (Körperbildern); e finalmente projetados sobre suportes de imagens de diversos materiais, da tela de linho à TV, sendo aqui irresistível a tendência à ima-terialidade. Do circundante (Umgebung), passando pelo em frente (Gegenüber), até o objeto (Gegestand) e até o fantasma (Ges-penst), do circunjeto (Circumjekt) passando pelo objeto ao projeto a ao projétil, parece não haver parada. Contudo, o fantasma-projétil comporta-se no fim como um zumbi (Wiedergänger)”24.

Quando o homem-sanduíche coloca o cartaz em seus ombros, seu corpo, de carne e osso, torna-se ausente, transfor-ma-se em porta-imagem. Sua tendência à imaterialidade é simplesmente irresistí-vel. Ocorre, desta forma, o fenômeno das realidades bidimensionais descrito por Vilém Flusser: o corpo tridimensional é reduzido a uma bidimensionalidade. Surge uma peça publicitária, bidimensional, sem profundidade, ocultando um corpo e, conseqüentemente, sua história.

O “corpo-anúncio” também surge em outras ocasiões e momentos, mas o que o difere dos homens-sanduíche é a sua moti-vação. Enquanto o homem-sanduíche car-rega a sua placa em virtude da necessidade de sobrevivência, um homem que utiliza uma camiseta estampando a marca de seu fabricante, por exemplo, é também um

sanduíche é uma mídia eminentemente visual, sua visibilidade repousa em sua capacidade particular de mediação, a qual controla a sua percepção e cria a atenção do observador. Não há imagem visível que nos alcance de forma não mediada. As mídias visuais, portanto, competem com as imagens que elas transmitem. Elas tendem a se dissimularem, e quanto menos prestamos atenção a uma mídia visual, tanto mais nos concentramos na imagem, como se as imagens surgissem por conta própria. Partindo do pressuposto de que o corpo do homem-sanduíche e sua placa atuam como uma mídia, esse corpo tende a um processo de dissimulação para o nascimento de uma imagem, dando origem ao “corpo-anúncio”.

No homem-sanduíche, imagem e mídia estão diretamente ligadas ao corpo. Porém, o corpo é mais do que um receptor passivo da mídia visual que o moldou. Sua atividade (o caminhar, por exemplo, em uma determi-nada região, como a Praça da República, em São Paulo), é necessária para a existência da mídia visual. Um cartaz afixado em um determinado local não possui a mesma abrangência ou o mesmo impacto do ho-mem-sanduíche: é uma mídia que não existe sem o corpo. São corpos que performatizam imagens, ou seja, transformam-se em anún-cios itinerantes. “Com a ajuda de máscaras, tatuagens, roupas e performance, os corpos também produzem imagens de si próprios, (...) neste caso eles agem como mídia no sentido mais pleno e original”22.

Vivemos um fenômeno que começou a revelar seus imensos efeitos: a silenciosa transformação do corpo em uma imagem do corpo. E, quando transformado em imagem, revela sua natureza paradoxal, por ser a presença de uma ausência e a ausência de uma presença. A imagem pode ser traduzida como a “ausência do corpo” ou “renúncia ao corpo”, “o oposto das aparições fantasmagóricas de corpos sem sombra, trata-se aqui de sombras sem corpos”23. A transformação de corpos em

Page 125: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

Do homem-placa ao pixman

140C o m m u n i c a r e

25 GUIMARÃES, Maria Eduarda Araújo. Globaliza-ção: Corpo como campo de batalha. In: Maria Lúcia Bueno et al. (orgs.). Corpo Território da Cultura. São Paulo: Annablume, 2005, p. 86.26 BAITELLO JR, Norval. Op. cit., p. 53-54.27 CONTRERA, Malena Segura. Mídia e Pânico: Satura-ção da informação, violência e crise cultural na mídia. São Paulo: Annablume, 2002, p. 59.

28 BAITELLO JR, Norval. Op. cit., p. 97.29 BAITELLO JR, Norval. Op. cit., p. 97.30 KAMPER, Dietmar, apud CONTRERA, Malena Segura. Op. cit., p. 59.

“corpo-anúncio”, porém a exibe pelo status que a marca proporciona. Uma camiseta pode ostentar tanto a marca de uma grife famosa quanto uma mensagem qualquer. E a indústria não deixou de perceber esse potencial de marketing:

“Os homens de marketing e os da propa-ganda descobriram que a camiseta tem a vantagem de veicular intensamente um conceito publicitário, sendo ao mesmo tempo um brinde, uma mercadoria de-sejada. Se os “homens-sanduíche” (...) cobravam para exibir a mensagem, os jovens de camiseta, ao contrário, eram capazes de pagar para vestir um anúncio de refrigerante”25.

Corpos devo-rados pelas imagens

Assim como a placa do homem-sanduíche está fun-dida em seu “funcionário”, transformando-o em massa amorfa em favor de um sis-tema financeiro, a camisa de marca define seu proprietário, também em favor de um sis-tema financeiro maior e mais complexo. Nesse contexto, uma vez que o cartaz devora

o homem e o faz trabalhar em seu favor, ou seja, a favor do processo comunicativo, também a marca devora seu usuário, através do processo da Iconofagia: “Consumimos imagens em todas as suas formas: marcas, modas, grifes, tendências, atributos, adjeti-vos, figuras, ídolos, símbolos,”26.

O importante é o que está visível, ou seja, a imagem do corpo, e não o corpo. A estética da cultura de massas reside justamente na virtualização do corpo. O homem-sanduíche, como imagem, anún-cio, é indubitavelmente um fenômeno de nosso tempo, marcado pela exacerbação e inflação das imagens. Em uma sociedade marcada pela visibilidade reinante, surge

Quando o homem-san-duíche coloca o cartaz em seus ombros, seu corpo transforma-se em porta-imagem

uma “nova ética na qual o corpo garante sua concretude especialmente enquanto mercadoria, povoando e alimentando um imaginário praticamente publicitário”27.

Ao invés das imagens nos servirem, atualmente são as imagens que se servem de nós. São elas que nos olham. São elas que determinam o que consumimos, como nos comportamos e nos vestimos. Somos alimento para as imagens. Surge a primeira possibilidade de iconofagia: as imagens que devoram corpos. “Alimentar-se de imagens significa alimentar imagens, con-ferindo-lhes substância, emprestando-lhes os corpos. (...) Ao contrário de uma apro-priação, trata-se aqui de uma expropriação de si mesmo”28.

O homem-sanduíche, ao colocar sua placa, faz surgir um anúncio e é por ele devorado. Assim também ocorre com o jovem e sua camisa de marca esportiva, ou o homem de negócios e seu terno de grife: “As rotinas que devoram, os modismos, os ideais apregoados pelos deuses menores da publicidade e do marketing, as novas necessidades de se fazer visível, (...) e mui-tas outras imagens não fazem outra coisa senão nos devorar. Diariamente”29.

A relação do imaginário gerado pela publicidade permite lançar um olhar in-quietante sobre a abolição do corpo: “Não se quer fazer um corpo, se quer fazer uma imagem do corpo, o que é uma forma de destruir o próprio corpo”30.

A destruição do corpo e sua transfor-mação em imagem não acontece sem uma

Page 126: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

141Volume 7 - Nº 2 - 2º sem. 2007

Rodrigo Sanches

certa predisposição da pessoa envolvida, uma vez que o poder do imaginário nasce do imaginário do poder, do qual se deseja participar. O indivíduo não possui virtude essencial. Minha própria virtude como indivíduo “depende inteira e somente da minha subjetividade ou do desejo que o outro tem por mim, ou o medo que tem de mim: tenho que ser desejável, atraen-te, um objeto sexual, ou ser importante e poderoso”31. O indivíduo que não realiza tais investimentos – resultante tanto da subjetividade do outro como da sua pró-pria – não é nada mais do que uma coisa morta entre outras coisas mortas, “para sempre um solitário em potencial”32. Para participar do processo de visibilidade ampliada, os indivíduos aceitam perder as corporalidades multidimensionais de suas vidas. E assim:

“sucumbem os corpos, na perda da dimen-são de profundidade. E porque sucumbem os corpos, transformam-se as pessoas em imagens das imagens, superfícies das superfícies. (...) A nova sociedade não vive mais de pessoas, feitas de corpos e vínculos, ela se sustenta sobre os pilares de uma infinita “serial imagery”33.

As imagens de nosso tempo convidam os vivos a abandonar seus corpos, ignorá-los, esquecê-los. “No limite, criar imagens é matar os corpos, e o corpo vivo é, atual-mente, invisível”34. Tanto a marca de uma grife ou a placa pendurada aos ombros do homem-sanduíche utiliza o corpo como um suporte midiático e, ao transformá-lo em imagem, acabam por devorá-lo, con-sumindo-o e escravizando-o.

As imagens geram um corpo que ape-nas se vê quando é visto, se observa quan-do é observado, jamais se sente porque não pode ser sentido. “De tantas imagens, tanta visão, não estaríamos perdendo aos poucos a sensação do próprio corpo, o espaço do eu?”35. Perdemos os sentidos e a capacidade de sentir, porém “Os sentidos raramente enganam quando são exercidos, a razão engana-se freqüentemente”36. Para

31 HILLMAN, James. Cidade & Alma. São Paulo: Nobel, 1993. Tradução: Gustavo Barcellos e Lúcia Rosenberg, p. 24.32 HILLMAN, James. Op. cit., p. 24.33 BAITELLO JR, Norval. Op. cit., p. 50-51.34 KAMPER, Dietmar e BAITELLO JR, Norval. Imagem e Violência: Sobre o futuro da visibilidade. Disponí-vel em http://www.cisc.org.br/portal/biblioteca/iv1_fu-turovis.pdf. Acessado em 16 de agosto de 2006, s/p.35 BAITELLO JR, Norval. Op. cit., p. 43.36 SERRES, Michel. Os cinco sentidos: Filosofia dos corpos misturados. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001, p. 258.37 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Assim Falou Zara-tustra: Um livro para todos e para ninguém. 11a ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. Tradução: Mário da Silva, p. 60.

38 MUSSOLIN, Jorge Luiz. O Homem sanduíche do século XXI. Disponível em http://www.eagora.com.br/ler.php?idnew=43161.

Acessado em 10 de setembro de 2006, s/p.

Friedrich Nietzsche, “há mais razão no teu corpo do que na tua melhor sabedoria”37. Porém o corpo não mais se enxerga, se sente ou se percebe: tornou-se invisível para si e para os outros.

Homem-Placa-Digital: um exemplar dos Tecnobergs

Não se pode precisar ao certo onde e quando os primeiros homens-placa co-meçaram a utilizar o corpo como suporte para uma mídia. Não obstante, pode-se determinar quando surgiu um novo veículo de comunicação baseado em homens entre duas placas. Em 2005, a empresa Pixman Canadá criou o “pixman”, denominado, neste artigo, de “homem-placa-digital”. Também apelidado de “Homem-sanduíche do século XXI”38, o novo dispositivo publi-citário não possui as vestimentas maltrapi-lhas e as tradicionais placas desprovidas de qualquer rigor publicitário.

O pixman é uma revitalização do ho-mem-sanduíche: é o primeiro dispositivo de mídia digital, interativo, vestível e nômade do mundo. É composto por uma mochila tecnológica que suporta uma haste em alumínio, posicionando um monitor de

Page 127: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

Do homem-placa ao pixman

142C o m m u n i c a r e

plasma de 19 polegadas e 30 centímetros acima da cabeça do personagem. O equipa-mento é totalmente wireless (dispositivos que se conectam sem a utilização de fios) podendo exibir comerciais publicitários e muitas outras formas de exposição da marca ou produto.

A fusão entre corpo e cartaz reconfigura o corpo em uma imagem. No homem-pla-ca-digital, no entanto, a mistura entre seres vivos e objetos técnicos resultou em um corpo biocibernético. Ao utilizar dispositi-vos de alta tecnologia conectados ao corpo, a publicidade amplia “realidades paralelas ou virtuais (...). O “comum” é ampliado por computação, telecomunicações e mídia, au-mentando a exterioridade técnica do homem

e reduzindo a dimensão do simbólico e da linguagem”39.

O homem-placa-digi-tal, ao caminhar por uma feira comercial, não expõe seu corpo para fornecer informações verbalmente sobre, por exemplo, a fun-cionalidade de um produto à venda. Ele exibe uma tecnologia, um dispositivo virtual, e quem o procura não o faz em busca de uma pessoa, mas de um aparato tecnológico: a tela presa ao

seu corpo. Semelhante ao espaço virtual e cibernético, que “abre um mundo sem corpo, sem interioridade e puramente superficial”40, o pixman transforma-se em um ser fictício, e seu corpo-suporte torna-se ele próprio informação pura.

Ao apresentar uma das suas possibili-dades de uso (jogos interativos, aplicações multimídia e Internet) o pixman comuni-ca-se por intermédio de uma linguagem calcada no vocabulário informático. Surge “o si informático”: “O vocabulário infor-mático penetra as maneiras de explicar o homem e seu corpo; apagam-se as fron-teiras entre a carne do homem e o poder da máquina, entre os processos mentais e

39 SODRÉ, Muniz. Logos e phatos, a razão e a paixão no espaço conceitual da comunicação e das novas tecnologias. IN: CAPPARELLI, Sérgio et al (org). Livro da XIII Compôs: A comunicação revisitada. Porto Alegre, Sulina, 2005, p. 23.40 LE BRETON, David. Adeus ao Corpo: Antropologia e Sociedade. Campinas: Papirus, 2003. Tradução: Marina Appenzeller, p. 142.41 LE BRETON, David. Op. cit., 154.42 O conceito de Tecnobergs parte da premissa das novas tecnologias entrelaçadas em eixos e subeixos: - “Teleinfocomputrônica satelital; Engenharia de novas concepções; Cognição; Nanotecnologia; Optoelectrônica; Biotecnologia; Robótica; Genética; Serviços inteligentes”. René Armand Dreifuss. “Tecnobergs globais, mundiali-zação e planetarização”. In: Denis de Moraes (org). Por uma outra comunicação: Mídia, mundialização cultural e poder, p. 106-107).

43 DREIFUSS, René Armand. Op. cit., p. 108-109.44 LE BRETON, David. Op. cit., p. 210.

No homem-placa digital, a mistura entre seres vivos e objetos técnicos resultou em um corpo biocibernético

técnicos. A informatização da linguagem acompanha a da sociedade”41.

Além da desmaterialização e da infor-matização do corpo pela fusão entre corpo e tecnologia, o homem-placa-digital é uma mídia que se utiliza dos meios primários (corpo), da mídia secundária e da mídia terciária (composta, segundo Harry Pross, por aparatos de emissão e captação da mensagem oriundos da eletricidade). O pixman é uma síntese de nosso tempo: um exemplo de Tecnobergs42,

“que tornam o consumidor – individual, corporativo ou institucional – um reformu-lador de práticas do cotidiano, deslocando o cidadão no exercício de sua cidadania, perdida na transfronteirização das de-cisões e no distanciamento, físico e de dimensão mediática, dos centros de poder (...) Tecnobergs que configuram uma reali-dade estruturada e condicionada por novas referências civilizatórias, constituindo-se em pilares da emergente societalidade humana tecnologizada”43.

As interações sociais, que deveriam acontecer face a face, corpo a corpo, são efetuadas por intermédio de imagens. “Os homens vivem em um mundo de telas e de computadores que abastecem o conjunto de seus feitos e gestos”44.

Page 128: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

143Volume 7 - Nº 2 - 2º sem. 2007

Rodrigo Sanches

Considerações finais

Em seus diversos formatos (com duas placas de compensado ou utilizando apa-ratos tecnológicos), os homens-placa são um exemplo claro da domesticação e da anulação do corpo em favorecimento das imagens. Seu corpo é encoberto pelas placas: torna-se uma ausência visível. É um retrato da silenciosa transformação do corpo em imagem do corpo. Uma vez que “a metafísica do corpo se entremostra nas imagens”45, tem-se uma nova ordem social não mais composta por pessoas e vínculos, mas por corpos de imagens e imagens de corpos.

Não bastasse a desmaterialização do corpo transformado em peça publi-citária, o surgimento do homem-placa-digital torna a dimensão da corporali-

dade subjacente aos dispositivos de alta tecnologia utilizados pela publicidade para ampliar “realidades paralelas ou virtuais”46. Quem o procura não o faz em busca de uma pessoa, mas de um apa-rato tecnológico. Entender o corpo que se esconde entre as placas do homem-sanduíche ou os dispositivos tecnoló-gicos do homem-placa-digital é, talvez, suscitar a possibilidade de “adentrar os meandros da violência gerada pelas imagens deste nosso tempo”47.

45 ANDRADE, Carlos Drummond de. A metafísica do corpo. In: Corpo: Novos poemas. Rio de Janeiro: Record, 1985, p. 17. 46 SODRÉ, Muniz. Op. cit., p. 23.47 BAITELLO JR, Norval. Op. cit., p. 59.

Referências bibliográficas

ANDRADE, Carlos Drummond. A metafísica do corpo. IN: Corpo: Novos poemas. Rio de Janeiro: Record, 1985.

BAITELLO JR., Norval. A Era da Iconofagia: Ensaios de Comunicação e Cultura. São Paulo: Hacker Editores, 2005.

BAITELLO JR., Norval. As núpcias entre o nada e a máquina – Algumas notas sobre a era da imagem. In: Revista Científica de Información y Comunicación. Sevilha: Universidad de Sevilla, 2005.

BAITELLO JR, Norval. O animal que parou os relógios: Ensaios sobre comunicação, cultura e mídia. São Paulo: Annablume, 1997.

BELTING, Hans. Imagem, mídia e corpo: Uma nova abordagem à iconologia. In: Revista Ghrebh 8. Disponível em http://revista.cisc.org.br/ghrebh8. Acessado em 28 de setembro de 2006.

BELTING, Hans. Pour Une Anthropologie des Images. Paris: L`Homme, 2004. BYSTRINA, Ivan. Tópicos de Semiótica da Cultura. São Paulo: Pré-Print Cisc, 1995. Tradução:

Norval Baitello Júnior e Sônia B. Cartino. BUCK-MORSS, Susan. O flâneur, o homem-sanduíche e a prostituta. In: Espaço & Debates: Revista

de Estudos Regionais e Urbanos. São Paulo: Ano X, nº 29, 1990.BUENO, Maria Lúcia e CASTRO, Ana Lúcia (org). Corpo Território da Cultura. São Paulo:

Annablume, 2005.CAMPELO, Cleide Riva. Cal(e)idoscorpos: Um estudo semiótico do corpo e seus códigos. São

Paulo: Annablume, 1997.CONTRERA, Malena Segura. Mídia e Pânico: Saturação da informação, violência e crise cultural

na mídia. São Paulo: Annablume, 2002.DREIFUSS, René Armand. Tecnobergs globais, mundialização e planetarização. In: MORAES,

Dênis de (org). Por uma outra comunicação: Mídia, mundialização cultural e poder. Rio de Janeiro: Record, 2003.

Page 129: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

Do homem-placa ao pixman

144C o m m u n i c a r e

FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.

GUIMARÃES, Maria Eduarda Araújo. Globalização: Corpo como campo de batalha. IN: BUENO, Maria Lúcia e CASTRO, Ana Lúcia (org). Corpo Território da Cultura. São Paulo: Annablume, 2005.

HILLMAN, James. Cidade & Alma. São Paulo: Nobel, 1993. Tradução: Gustavo Barcellos e Lúcia Rosenberg.

KAMPER, Dietmar. Estrutura temporal das imagens. In: CONTRERA, Malena Segura et al (org). O espírito do nosso tempo: Ensaios de semiótica da cultura e da mídia. São Paulo; Annablume: CISC, 2004.

KAMPER, Dietmar. (2002). Imagem. Disponível em http://www.cisc.org.br/portal/biblioteca. Acessado em 10 de outubro de 2006.

KAMPER, Dietmar. O Corpo Vivo, o Corpo Morto. Disponível em http://www.cisc.org.br/portal/biblioteca/iv2_corpovivo.pdf. Acessado em 08 de fevereiro de 2006.

KAMPER, Dietmar, BAITELLO JR., Norval. Imagem e Violência: Sobre o futuro da visibilidade. Disponível em http://www.cisc.org.br/portal/biblioteca/iv1_futurovis.pdf. Acessado em 16 de agosto de 2006.

LE BRETON, David. Adeus ao corpo: Antropologia e Sociedade. Campinas: Papirus, 2003. Tradução: Marina Appenzeller.

MORIN, Edgar. Cultura de Massas no Século XX: O Espírito do Tempo. 3ª ed., São Paulo: Editora Forense Universitária, 1975.

MUSSOLIN, Jorge Luiz. O Homem sanduíche do século XXI. Disponível em http://www.eagora.com.br/ler.php?idnew=43161. Acessado em 10 de setembro de 2006.

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Assim Falou Zaratustra: Um livro para todos e para ninguém. 11a ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. Tradução: Mário da Silva.

pixman Brasil, consultado em http://www.pixman.com.br/. Acessado em 30 de setembro de 2006.SERRES, Michel. Os cinco sentidos: Filosofia dos corpos misturados. Rio de Janeiro: Bertrand

Brasil, 2001.SODRÉ, Muniz. Logos e phatos, a razão e a paixão no espaço conceitual da comunicação e das

novas tecnologias. IN: CAPPARELLI, Sérgio et al (org). Livro da XIII Compôs: A comunicação revisitada. Porto Alegre, Sulina, 2005.

Page 130: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

Resenhas

Page 131: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º
Page 132: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

Volume 7 - Nº 2 - 2º sem. 2007

Resenhas

Antoine Pascal MarioliMestre em Ciências da Comunicação - ECA/USP

Docente e Pesquisador da Faculdade Cásper Lí[email protected]

Trade MarketingALVAREZ, Francisco Javier S. Mendizabal.

Trade Marketing: A conquista do consumidor no ponto de venda

esmistificar e entender o conceito de trade marketing, suas caracte-rísticas, peculiaridades e comu-

nicação no ponto de venda não é modismo, mas um tema cada vez mais discutido e pesquisado entre acadêmicos e profissionais. Alvarez apresenta de maneira clara e obje-tiva os diversos aspectos que interferem na concepção de estratégias de posicionamento mercadológico. Assim, trade marketing passa a ser entendido como novo modelo de gestão que interage com o universo de marketing e de vendas, objetivando respon-der ao ambiente de mercado e ao complexo processo de negociação em tempos de globalização. Além de conceitos teóricos e contextualização do tema, o livro expõe a perspectiva histórica nas negociações entre fabricantes, varejistas e consumidores. Destacam-se as estruturas dos canais de dis-

D tribuição e o processo decisório de compra: produto, preço, promoção, ponto de venda, inclusive ações de venda, instrumentos de gestão e métricas quantitativas, qualitativas e de custo do trade marketing.

O ambiente de negócios está passando por transformações que afetam os mercados consumidores e as ações das empresas em relação a esses mercados. Essas mudanças produzem efeitos sobre o que é vendido, comprado e em quais condições compe-titivas são realizados os negócios. Neste novo cenário, o poder de negociação está passando das mãos dos produtores para os varejistas que buscam ações mercadológi-cas e criam sua própria imagem diante do consumidor final. Nessa evolução, as ações das empresas fabricantes de produtos de consumo envolvem estratégias competitivas

de ocupação de segmentos e nichos de mer-

Page 133: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

148C o m m u n i c a r e

Trade Marketing

cado com a ampliação da linha de produtos, novos modelos e embalagens, extensão de marcas e introdução de novas marcas numa mesma categoria de produtos. Estratégias de diferenciação e inovação reduzem o tempo de vida dos produtos, lançamentos contínuos de novos produtos ou derivados com vantagens econômicas, abastecimento direto para os grandes clientes, incremen-tando vendas digitais e fomentando a área de Business to Business. Completam o processo a promoção de fortes campanhas de comuni-cação de massa para a fixação dos produtos e marcas na mente do consumidor.

Nos últimos anos, observa-se o crescimen-to de grandes redes varejistas que ampliam sua presença quer por crescimento natural, quer pela aquisição de redes menores, con-centrando volumes e reforçando sua imagem na mente do consumidor. A marca passou a ser um grande ativo do varejo, permitindo o desenvolvimento de linhas de produtos produzidos por terceiros e comercializada com a própria marca. O domínio de uma marca reconhecida pelo consumidor é um elemento de força no processo de diferencia-ção de mercado que permite ao fornecedor ser reconhecido e demandado. Através da marca, os clientes estarão seguros da qualidade da compra e da sua manutenção na recompra. Se as estratégias de marketing do produtor conseguirem criar na mente do consumidor a identificação da marca, quando o produto chegar ao ponto de venda já se estabeleceu o diferencial que dificilmente será copiado pela concorrência. À identificação da marca agrega-se a presença de produtos e serviços realizada por meio dos canais de distribui-ção. São atores principais: consumidores, intermediários (atacadistas, distribuidores e varejistas), produtores e fornecedores, assim como os facilitadores (empresas de trans-portes, armazenamento, logística, agências de propaganda e de promoções, bancos e instituições financeiras em geral).

A empresa produtora poderá agir no varejo, vendendo diretamente aos consu-midores finais como, por exemplo: Avon e

Natura (cosméticos). Na maioria das vezes a venda se dá por empresas independentes es-pecializadas em varejo, ou via revendedores como Yakult (alimentação), redes hoteleiras e empresas aéreas (turismo). Na disputa pelo espaço na mente do consumidor, os varejis-tas têm três claras vantagens sobre os fabri-cantes: contato direto com os consumidores, controle das variáveis de marketing no ponto de venda e base de dados sobre motivações e comportamento do consumidor. Quanto ao poder de negociação, a indústria depende mais do varejo que o inverso. O poder do va-rejista prende-se à cadeia de valor, definido pelo seu poder econômico que alcança até o impacto das imagens. É fruto do marketing o processo decisório do consumidor: pensa primeiro na loja e, posteriormente, nos pro-dutos que serão comprados.

Neste contexto, torna-se fundamental o desenvolvimento da cadeia de suprimentos (Supply Chain), ou seja, o princípio da lo-gística nas organizações passa a ser a subs-tituição dos estoques por informações que aprimoram o atendimento e a capacidade de responder às demandas dos consumidores (Efficient Consumer Response). O cliente, diante da ampla quantidade de opções, fica confuso na escolha dos produtos, uma vez que lançamentos diários e apelos comerciais constantes fizeram com que ele deixasse de ser restrito nas suas escolhas e, ao invés de ter um único produto preferido, procura vários. Como muitos não fazem lista de compras, resolvem no local, diante do pro-duto, transfere-se a decisão de compra para o ponto de venda, otimizando-se o retorno dos recursos investidos pelos varejistas em alocação dos espaços, ações promocionais, hospitalidade corporativa e gastos com o gerenciamento do processo. Se o consumi-dor não vê o produto, na prática é como se esse não estivesse sendo vendido. O trade marketing é acima de tudo uma filosofia da empresa, a qual entende que o foco no consumidor final deve ser ampliado para a ação no ponto de venda, local da arena competitiva e hora da verdade.

Page 134: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

Volume 7 - Nº 2 - 2º sem. 2007

Resenhas

Eliany Salvatierra MachadoDoutoranda em Ciência da Comunicação pela ECA-USP

Docente da Faculdade Cásper Líbero [email protected]

Comunidade: da reflexão à açãoPAIVA, Raquel (org.). O retorno da comunidade:

os novos caminhos do social. Rio de Janeiro: Manual X, 2007.

omo fazer uma resenha de um texto sem revelar o próprio texto? Como fazer uma leitura sem que

ela passe pelas nossas próprias referências, nossa própria história? São essas as inquie-tações que surgiram ao terminar a leitura de O retorno da comunidade: os novos caminhos do social (2007), organizado por Raquel Paiva.

Acreditamos que uma resenha não deva revelar a idéia central do texto, mas que seja suficientemente instigante para que o leitor se sinta motivado a ler o livro. Contudo, a coletânea aqui apresentada não contém textos simples, pelo menos em sua primeira parte que trata sobre a Epistemologia da Comunidade. Por isso, torna-se um desafio falar dos textos sem adentrar propriamente nas idéias. São escritos que partem de novos pressupostos. Aliás, quem espera

C encontrar no livro uma resposta sobre o que significa comunidade vai se surpreender já no prefácio.

Os textos podem ser consultados inde-pendentemente das partes, já que são nove autores, e cada um produziu sua reflexão, independentemente do outro. Mas o ideal é que o leitor analise e reflita a partir de toda a sua organização: parte 1 – Epistemologia da Comunidade; parte 2 – Comunidade Aplica-da; parte 3 – Mídia e Comunidade.

A organização é inteligente e, por que não dizer, astuta, pois coloca textos de Roberto Esposito, Davide Tarizzo e Gianni Vattimo juntamente com os de Cecília M. Krohling Peruzzo, Márcia Vidal Nunes e De-sirée Cipriano Rabelo. Sem contar os textos de Denise Cogo, Gabriel Kaplún e da própria Raquel Paiva. Não são necessariamente aná-

lises divergentes ou opositoras, mas também

Page 135: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

150C o m m u n i c a r e

Comunidade: da reflexão à ação

não são complementares. Por vezes, durante a leitura, tive a impressão que falavam de coisas totalmente diferentes, como se cada um habitasse comunidades à parte.

No prefácio, Muniz Sodré adianta que o leitor neocomunitarista não se reconhecerá no conceito de comunidade trabalhado por Esposito. “No texto especialmente prepara-do para esta coletânea, Esposito deixa bem claro que a comunidade não é um ente, nem um sujeito coletivo, mas uma relação, o limiar em que se encontram sujeitos individuais” (2007:8). Raquel Paiva, orga-nizadora da coletânea, por sua vez, deixa claro, na apresentação, que não é unívoco o significado da palavra comunidade e esse foi justamente o seu objetivo: “[...] de evidenciar a pluralidade dos pontos de vista teóricos e aplicativos sobre o campo semanticamente recoberto sobre esse termo” (2007:14).

O retorno da comunidade é quase um convite ao mundo de “Alice no País das Maravilhas”. Por um instante, sente-se a queda de um lugar sólido e seguro, para um espaço duvidoso e de incertezas, onde o princípio do terceiro excluído, da lógica aristotélica, é incluído. Onde não há mais o ‘certo ou errado’, ou ‘é ou o não é’, mas pode sê-lo e não ser ao mesmo tempo. “[...] A comunidade não é interdita, ofuscada, velada – mas constituída pelo nada. Isso quer dizer simplesmente que ela não é um ente. Nem um sujeito coletivo, nem mesmo um conjunto de sujeitos. Mas é a relação que não a faz mais ser isso – sujeitos individuais – porque interrompe a sua identidade com uma barra que a atravessa, alterando-a: o ‘com’, o ‘entre’, o limiar sobre os quais eles se encontram, em um contato que a rela-ciona com os outros, na medida em que os separa de si mesma” (Esposito 2007:19).

A comunidade pode não ser para ser ou para ironicamente deixar de ser e é aí que voltamos à nossa segunda questão, apresen-tada no início desta resenha: como ler um texto sem partir das nossas próprias referên-cias, sem partir da nossa história? Como ler um texto sem anular o seu leitor?

A obra convida o leitor a atirar-se no abismo sem pára-quedas. Para que a leitura não se torne um drama, pode-se ir para a segunda parte e lá encontrar textos com referências conhecidas, mas não menos instigantes e indagadoras de possibilida-des. Desirée Cipriano Rabelo, por exemplo, apresenta formas de trabalhar com comu-nidades e para comunidades no processo de ensino-aprendizagem, relatando a sua própria experiência na disciplina Comu-nicação Comunitária, que para ela “Comu-nicação Comunitária rima com Educação Libertadora” (2007:119).

Na terceira parte, encontramos a rela-ção direta e explicita entre comunidade e comunicação nos textos Para Reinterpretar a Comunicação Comunitária, de Raquel Paiva, Repensando a Ciência Participativa na Pesquisa em Comunicação, de Denise Cogo, e Entre Mitos e Desejos: Descons-truir e Reconstruir o Desenvolvimento, a Sociedade Civil e a Comunicação Comu-nitária, no qual Gabriel Kaplún termina seu texto e a coletânea escrevendo sobre a necessidade de desmitificar para mudar. “Creio que, para impulsionar as profundas transformações com direcionamentos mais democráticos e igualitários, precisamos desmitificar, desconstruir, às vezes descar-tar e outras repensar e reconstruir algumas de nossas idéias sobre o desenvolvimento, a ciência, a tecnologia, a sociedade civil, as ONGs, os projetos, o planejamento e as redes. E, em meio a tudo isto, repensar a comunicação” (2007:190).

Sem dúvida, quem tem como foco a comunidade não será mais o mesmo depois de ler O retorno da comunidade. Quem sabe, a coletânea esteja inaugurando uma nova fase que nos levará a repensar os nos-sos objetos, assim como a nós mesmos para que possamos dimensionar a comunidade com a comunicação, não apenas como o que é comum ou em comunhão, mas o que se constrói entre, durante e na possibilidade da diferença, mesmo que isso pareça dis-sonante, paradoxal.

Page 136: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

Volume 7 - Nº 2 - 2º sem. 2007

Resenhas

Rodrigo FontanariMestrando em Comunicação e Semiótica- PUC/SP

[email protected]

Páginas arqueológicas das remotas técnicas do ver e do ouvir

ZIELINSKY, Siegfried. Arqueologia da mídia: em busca de um tempo remoto das técnicas do ver e do ouvir.

Tradução: Carlos D. Szlak. São Paulo: Annablume, 2006.

livro Arqueologia da mídia foi escrito por Siegfried Zielinsky, Doutor em Ciências da Mídia

na Universidade Técnica de Berlim. Esse autor enveredou-se por diversas áreas do saber, dedicando-se à Sociologia, Filosofia, Ciências Políticas, Lingüísitica e Teatro em Marburg, na Alemanha. Mais tarde, já nos anos 90, tornou-se reitor da renomada Kunsthoschschule für Medien Köln (KHM), a Escola Superior de Artes da Mídia de Colônia. É autor de inúmeras obras, dentre elas Audiovisions – Cinema and Television as Entr’Actes in History.

Voltando o olhar ao ateliê de pensamento de Zielinsky, mais especificamente a uma de suas obras, a “Arqueologia da mídia”, encon-traremos uma aguda reflexão arqueológica. O autor propõe uma análise mais precisa daquilo que podemos denominar uma

O Teoria da Mídia, ou melhor, uma Teoria da Comunicação, que vai a contrapelo daquelas teorias estudadas à exaustão nas escolas de comunicação que voltam sua preocupação ao produto e à produção. Mas uma teoria que se atém àquilo que já está explícito no título dessa obra, a uma arqueologia. Realmente, esse instigante modelo de investigação perpassa todos os sete capítulos da obra, convidando-nos a uma viagem às camadas mais profundas dos meios técnicos de co-municação, hoje em dia tratados de maneira tão superficial pelo próprio descaso do tem-po presente, que cada vez mais desconsidera a profundidade das coisas e prefere olhar sempre para a superfície.

Para tal empreitada científica, o autor propõe um método de abordagem da mídia que denominou anarqueológica, que leva

em consideração o caráter específico da

Page 137: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

152C o m m u n i c a r e

Páginas arqueológicas das remotas técnicas...

mídia com relação à condição temporal. Para Zielinsky, trata-se primeiramente da abordagem histórica de diversas épocas que possibilitam revelar a clara emergência de pontos decisivos no processo de desen-volvimento tecnológico. O autor optou por uma abordagem não-linear histórica, de modo que sua pesquisa foi um abrir de “janelas históricas” que convidam o leitor a observar os vários experimentos que possivelmente direcionaram para o desen-volvimento. E que, além disso, provocaram possíveis mudanças de paradigmas.

Por meio dessas mudanças, a sociedade se abre para um significado ambivalente que, por um lado, propicia um aceleramento dos processos econômicos, políticos e ideoló-gicos almejados, e, por outro, relegam ou excluem outras possibilidades.

Em segundo lugar, há uma maior preo-cupação com idéias, conceitos e eventos que podem contribuir para o desenvolvimento das artes. Vale ressaltar, que a proposta me-todológica do autor, sincronizada pelo fator tempo, não leva a um lugar comum das pes-quisas que têm a condição temporal como paradigma, que é a enfadonha cronologia.

Durante toda decifração da obra, o leitor é convidado a “abrir janelas” que não estejam necessariamente encadeadas temporalmente. A cada página, o leitor é surpreendido com relatos históricos de experimentos que realmente contribuíram e continuam a reverberar ainda no que atual-mente os meios de comunicação apresentam como a mais recente descoberta, repleta de desenvolvimento tecnocientífico.

É esse abrir de janelas anacrônicas ou, como o autor prefere, anarqueólogicas, que faz do seu trabalho uma fascinante viagem sem sair do lugar para as mais remotas cama-das dos estudos das técnicas do ver e do ou-vir que desembocaram nos mais complexos aparelhos midiáticos contemporâneos.

Nesse tecer de fios difusos que compro-va a descrença num progresso linear que vai do mais arcaico (simples) ao mais moderno (complexo). O que o autor nos leva a pensar

é que vários homens em diversos tempos não quiseram senão compartilhar com o mundo a ânsia de comunicar, abrindo a possibilidade de pensar em novas lingua-gens e narrativas.

Nesse sentido, Siegfried acena no decorrer de seu percurso arqueológico na busca das técnicas mais remotas do ver e do ouvir impresso nas páginas de sua obra, para um sentido mais amplo e aberto de mídia. Para demonstrar mais claramente seu conceito aberto de mídia, o autor aproxima-se da relação endofísica de Roessler com a consciência: “nadamos nela como peixes no oceano; é essencial para nós, e por esse motivo é inacessível para nós. Tudo que podemos fazer é realizar certos cortes na consciência para adquirir acesso operacio-nal.” Transportando esse conceito para o campo da mídia, Zielinsky não quer senão apontar que nosso tempo, nossos corpos estão imersos num mundo midiatizado, que estamos envoltos por aparelhos, tal como define Vilém Flusser, e com eles temos de aprender a brincar, jogar com suas infinitas possibilidades. Como resultado dessas brin-cadeiras, jogos com os aparelhos, ou seja, cortes na consciência, têm-se a produção de dispositivos, programas, sistemas técnicos, redes e formas midiáticas de expressão e rea-lização, tais como vídeos, filmes, instalações de máquinas, games, websites ou livros.

Assim, muito além de um jogo/brincadei-ra com os aparelhos, essa idéia de imersão aponta para um processo de mediação que não é simplesmente, como insiste em apontar Norval Baitello, só informação, mas também vínculo. “Encontramos tudo isso entre o um e o outro, entre a tecnologia e os seus usuá-rios, entre diferentes lugares e tempos. Nesse domínio da mediação, a mídia processa, modela, padroniza, simboliza, transforma, estrutura, expande-se, combina e vincula.” Com isso, revela o autor que os mundos da mídia apontam para um fenômeno do rela-cional. Independe se o indivíduo constrói pontes ou barreiras em torno ou a partir dos objetos. A mediação ou a troca aí ocorre.

Page 138: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

153Volume 7 - Nº 2 - 2º sem. 2007

Rodrigo Fontanari

Se para Zielinsky os mundos da mídia operam sempre na direção de fenômenos relacionais, na mesma medida em que esse pesquisador aponta para a necessidade de uma Teoria da Mídia que se ocupe com o tempo profundo da mídia, que se volte às raízes profundas e arcaicas dos meios de comunicação, é necessário também voltar-se para as projeções, desdobramentos futuros, que os meios técnicos, os aparatos midiáti-cos que tornaram complexos os processos de mediação, provocando impactos no ambiente comunicacional.

Ao caminharmos sobre essa teia de fios difusos e não-lineares proposta por Zie-linsky, o que mais salta, das várias páginas que dão vida aos capítulos do livro é que, para todo o desenvolvimento complexo dos aparatos midiáticos, muitos passam primeiramente pelo corpo. O corpo serve de bancada para os mais diversos experi-

mentos que serviram de substrato para a amplificação das técnicas de mediação, compartilhando a idéia de comunicar com o outro, independentemente da distância a que esteja, por meio das técnicas do ver e do ouvir. Com a colonização do mundo da vida pelos aparatos tecnológicos, é o corpo que parece ter sido cada vez mais privado de compartilhar uma comunicação viva e pulsante que a mídia primária, isto é, o corpo, como afirma Harry Pross, pode pro-porcionar. Por isso, à medida que se volta para as camadas mais profundas numa perspectiva arqueológica da mídia, pensa numa ecologia dos meios de comunicação, resta-nos perguntar que ambiências comu-nicacionais estão sendo proporcionadas à medida que, cada vez mais, os sentidos de distância (visão e audição) são privilegia-dos em detrimento dos de proximidade (olfato, paladar e tato).

Page 139: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

154C o m m u n i c a r e

Páginas arqueológicas das remotas técnicas...

Page 140: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

Volume 7 - Nº 2 - 2º sem. 2007

Na Estante1

Sabina AnzuateguiMestre em Comunicação pela ECA-USP

Docente da Faculdade Cásper Lí[email protected]

Sobre livros e leituras

s estudos do livro e da leitura envolvem muitas linhas de pesquisa, que

podem ser reunidas no campo da Editoração. Esta área da comuni-cação abrange várias disciplinas relacionadas à produção material do livro, seus processos de divulgação e comercialização, a recepção dos leitores, e a abordagem das rela-ções sociais e históricas do livro em diferentes épocas e países. Se o livro simboliza o acesso ao conheci-mento, o estudo da Editoração traz à tona um painel comovente das dificuldades enfrentadas no caso brasileiro. Nesta edição, a seção “Na Estante” percorre o caminho das práticas da leitura.

O HALLEWELL, Laurence. O livro no Brasil - sua história. São Paulo, Edusp, 2005.

Este é o estudo mais abrangente da história do livro no país, e oferece uma reunião admirável de informações sobre a impressão, os editores e livreiros, sua relação com escritores e o sistema edu-cacional brasileiro desde o século XVI. Sua primeira edição, na década de 80, despertou ciúme entre pesquisadores brasileiros, pois a pesquisa é admirável e o autor é inglês. A segunda edição, atu-alizada e ilustrada, traz uma importante

1 A seção “Na Estante” traz recomendações de livros para o estudo temático da comunicação.

Page 141: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

156C o m m u n i c a r e

Sobre livros e leituras

iconografia da diagramação dos livros impressos no Brasil desde a liberação da imprensa em 1808.

ABREU, Márcia. Os caminhos dos livros. Campinas, Mercado de Letras, 2003.

Pesquisadora da Unicamp, Márcia Abreu recupera informações detalhadas sobre a importação de livros no Brasil no período anterior a 1808, em que a impres-são era probibida no país. Ela resgata os títulos mais presentes nos documentos de censura, alfândega e inventários, e analisa a passagem do culto das Belas-Letras para a leitura do romance.

BOSI, Ecléa. Cultura de massa e cultura popular: leituras de operá-rias. Petrópolis, Vozes, 1981.

O livro se origina na tese de dou-torado da autora, baseada em pes-quisa sobre os hábitos de leitura de um grupo de operárias na periferia de São Paulo. A análise sensível de Bosi desmente o senso comum de que “o brasileiro não lê”, deixando claro que muita gente gostaria de ler muito mais, e a dificuldade de acesso ao livro interrompe frequen-temente esse desejo.

Page 142: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

Volume 7 - Nº 2 - 2º sem. 2007

1 A seção “Clássico” se dedica a resgatar obras que in-fluenciaram os estudos de Comunicação e tenham sido publicadas pela primeira vez há pelo menos vinte anos.

Clássico1

Vilma SchatzerMestre em Comunicação e Mercado pela Faculdade Cásper LíberoProfessora e Coordenadora do Curso de Publicidade e Propaganda

[email protected]

Não é inédito, mas ainda é novo OGILVY, David. Ogilvy Inédito.

m Publicidade e Propaganda não é fácil falar de “obras clássicas”. A área está contratando pessoas cada

vez mais jovens, para quem um clássico de-veria ter no máximo dez anos. Depois disso não seria considerado um clássico; seria, para dizer da maneira mais suave, “uma obra fora do contexto atual da profissão”. Não é absolutamente o caso de Ogilvy Inédito, cujo nome se justifica por ser uma publicação dos memorandos, discursos e filosofia de trabalho de David Ogilvy em documentos que ainda não haviam sido publicados.

Ao procurar seu nome nos sites de busca, ele está lá, com quase 300.000 cita-ções. Para minha surpresa, bem poucas do Brasil. Ogilvy Inédito foi lançado em 1986, depois de Confissões de um publicitário e A publicidade segundo Ogilvy, ainda dispo-níveis em algumas livrarias. São 96 excertos

E compilados por Joel Raphaelson. À época do lançamento deste livro, o organizador era vice-presidente sênior da agência e colabo-rador da Harvard Business Review.

David Ogilvy nasceu em 1911 e faleceu em 1999, em seu pequeno castelo localizado na França, país que escolheu pra usufruir melhor a vida. Conhecido como o “pai da propaganda moderna”, fundou a agência de propaganda Ogilvy & Mather em 1948, hoje no Brasil conhecida só como Ogilvy.

Ogilvy Inédito inclui a discussão sobre vários aspectos da publicidade, analisando o processo criativo, a arte de vender, a ética empresarial, os princípios de gerenciamento

Page 143: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

158C o m m u n i c a r e

Não é inédito, mas ainda é novo

e de liderança que contribuíram para sua agência ser uma das mais respeitadas do ramo no mundo inteiro. O que causa surpresa ao leitor atento da obra de 1986 é que muitas das questões sobre a prática profissional da publicidade até hoje não foram resolvidas, e precisam ainda ser remexidas por quem se dispuser a fazê-lo. Para que nenhum leitor que conheça um pouco da atividade dos pu-blicitários duvide da pertinência desse livro até agora, reproduzo a visão que ele tinha sobre a função criativa e a pesquisa:

Iniciei minha carreira com George Gallup (...). Quando fundei a Ogilvy & Ma-ther (...) nas quintas e sextas-feiras eu era o diretor de pesquisas. Nas segundas, terças e quartas-feiras eu era o diretor de criação(...) Sempre enxerguei a função criativa com olhos de pesquisador – o que não me torna benquisto entre meus colegas redatores e diretores de arte. E olho para a pesquisa com os olhos de um redator.

Os pesquisadores me irritam (o grifo é dele). Eles usam palavras horríveis como atitudinal, paradigmas, desmassificação,

reconceitualizar, conexão simbiótica etc. Besteirada pretensiosa(...)

Os tipos criativos também me irritam. Eles morrem de medo das pesquisas – é o temor de que elas revelem que sua geniali-dade não é infalível (...)

Acho que nenhum profissional duvida da importância das pesquisas para falar ao seu público-alvo com inteligência, mas daí ao pessoal da criação de hoje saber usar essa ferramenta... David Ogilvy já era cético quanto a isso, pois dizia que as pesquisas eram muitas, mas não chegavam às cabeças certas. Muito atual, portanto, um clássico.

A primeira edição foi editada priva-damente, como uma homenagem ao 75º aniversário de David Ogilvy. Só a segunda edição foi apresentada ao público, e poucos a têm, pois está esgotada nas livrarias, o que é uma pena. Se você encontrar esse livro em sebos, não deixe de comprá-lo. Eu lerei de novo o meu exemplar daqui a uns dez anos, sempre com alguma esperança de que progrediremos no ensino da visão do que é a boa propaganda.

Page 144: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

Normas

Volume 7 - Nº 2 - 2º sem. 2007

Normas para o envio de originais

A Revista COMMUNICARE, do Centro Interdisciplinar de Pesquisa da Facul-dade Cásper Líbero, tem por objetivos promover a reflexão acadêmica, difundir a pesquisa e ampliar o intercâmbio cien-tífico com vistas, prioritariamente, aos temas relacionados às seguintes linhas de pesquisa desenvolvidas no Centro: Comunicação: Tecnologia e Política, Comunicação, Meios e Mensagens e Co-municação e Mercado.

A publicação destina-se à divulgação de trabalhos inéditos de pesquisadores e docentes da Faculdade Cásper Líbero e de outras instituições, na qualidade de autores e co-autores. As colaborações poderão ser apresentadas em forma de artigos, resenhas, relatos de pesquisa em andamento, levantamentos bibliográficos ou informações gerais, e estarão condicio-nadas à aprovação prévia da Comissão Editorial e do Conselho Consultivo.

Os trabalhos publicados serão conside-rados colaborações não remuneradas, uma vez que a Revista tem caráter de divulgação científica e não comercial. Tanto o conteú-do quanto o compromisso com o ineditismo dos textos são de total responsabilidade de seus autores, que deverão anexar au-torização para publicá-los, manifestando concordância com as normas aqui estabe-lecidas. Os direitos autorais de desenhos, ilustrações, fotografias, tabelas e gráficos que acompanhem os textos serão de exclu-siva responsabilidade do colaborador

Artigos

1. Os artigos devem ser encaminhados para o email [email protected] ou [email protected] com a iden-tificação do autor – local onde leciona, maior titulação e instituição pela qual obteve o título.

2. Recomenda-se que os textos sejam escritos em Word, fonte Times New Roman, corpo 12, espaço 1,5 cm, e tenham de 20 mil a 35 mil caracteres, incluindo espaços;

3. A estrutura do texto deve obedecer à seguinte ordem: Título, Resumo (em 600 ca-racteres no máximo), Palavras-Chave; Corpo do Texto e Referências Bibliográficas, sendo que o Título e o Resumo (Abstract) deverão, sempre que possível, ser acompanhados de versões para o Inglês e Espanhol.

4. Ilustrações e/ou fotografias serão utilizadas dentro das possibilidades de edi-toração. Caso sejam encaminhadas em dis-quete, recomenda-se a gravação no formato tif ou eps, com, no mínimo, 300 dpi;

5. Tabelas e gráficos devem ser nume-rados e encabeçados pelo seu título;

6. Desenhos, ilustrações e fotografias devem ser identificados por suas res-pectivas legendas e pelo nome de seus respectivos autores;

7. Citações e comentários no corpo do texto deverão ser remetidos ao rodapé, seguidos de números sobrescritos. As citações devem seguir o padrão: Autor (nome e sobrenome), Título da obra em Bold Itálico e número da página.

Page 145: Communicare ? Volume 7, Edição 2 ? 2º

C o m m u n i c a r e

Normas para o envio de originais

160

8. As referências bibliográficas (biblio-grafia) deverão estar dispostas no final do artigo. As obras utilizadas no trabalho, em ordem alfabética, devem obedecer à seguin-te seqüência: Autor (Sobrenome em caixa alta, Nome). Título em Bold Itálico. Edição. Cidade: Editora, Data da publicação.

9. Caberá a cada autor 5 exemplares da edição.

Resenhas

1. Recomenda-se que os textos sejam escritos em Word, fonte Times New Roman, corpo 12, espaço 1,5 cm, e tenham de 2800 a 5600 caracteres, incluindo espaços;

2. A resenha deve vir acompanhada das referências bibliográficas completas da

obra em pauta (Autor, Obra, Cidade, Edito-ra, Data, ISBN, número de páginas);

3. Solicita-se que a resenha seja acom-panhada de um exemplar da obra ou de imagem digitalizada da capa em formato tif, para publicação, de acordo com as possibilidades de editoração;

4. Caberá a cada autor 5 exemplares da edição.

Endereço

Centro Interdisciplinar de Pesquisa da Faculdade Cásper Líbero

Avenida Paulista, 900 - 5º andar - CEP: 01310-940 - São Paulo / SP

Correio Eletrônico: [email protected] ou [email protected]