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1 CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO stricto sensu – MESTRADO EM DIREITO PAULO SERGIO DUBENA COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL À LUZ DA BOA-FÉ OBJETIVA Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do Centro Universitário Curitiba, como requisito parcial para a obtenção do Título em Mestre em Direito. Orientador: Professor Dr. Miguel Kfouri Neto Coorientador: Professor Dr. Sandro Mansur Gibran Membros externos: Professores Drs. Luiz Osório Moraes Panza e Antonio Carlos Efing. CURITIBA 2015

COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL À LUZ … · A partir da junção entre a nova face do instituto do compromisso de compra e venda, dotado de eficácia real e de efeitos

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CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO stricto sensu – MESTRADO EM DIREITO

PAULO SERGIO DUBENA

COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL À LUZ DA BOA-FÉ OBJETIVA

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do Centro Universitário Curitiba, como requisito parcial para a obtenção do Título em Mestre em Direito. Orientador: Professor Dr. Miguel Kfouri Neto Coorientador: Professor Dr. Sandro Mansur Gibran Membros externos: Professores Drs. Luiz Osório Moraes Panza e Antonio Carlos Efing.

CURITIBA

2015

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TERMO DE APROVAÇÃO

Presidente:_____________________________________________________

Professor Dr. Miguel Kfouri Neto

__________________________________________________

Professor Dr. Sandro Mansur Gibran (membro interno)

__________________________________________________

Professor Dr. Antonio Carlos Efing (membro externo)

Curitiba, 15 de junho de 2.015.

Deposite-se na Secretaria do Mestrado

__________________________________________

Professor Dr. Miguel Kfouri Neto em___/___/___

__________________________________________

Recebido em___/___/___

Secretaria

3

Dedico o presente trabalho à Sirleia, Ana Clara e Maria Fernanda, principais motivadoras do meu retorno à vida acadêmica. A elas, também minhas desculpas pelo tempo de ausência, necessária à conclusão deste. Dedico-o ainda, aos professores e colegas de Mestrado do Unicuritiba, contribuintes num prazeroso processo de enxergar novos horizontes jurídicos. Assistindo-os, compreendi a importância de compartilhar o conhecimento.

4

LISTA DE SIGLAS

AC – Apelação Cível

ADEMI-PR - Associação dos Dirigentes de Empresas do Mercado Imobiliário

do Estado do Paraná

Ag. Rg. – Agravo Regimental

C. CÍVEL – Câmara Cível

CDC – Código de Defesa do Consumidor

DJ – Diário da Justiça

DJe – Diário da Justiça Eletrônico

REsp – Recurso Especial

STJ - Superior Tribunal de Justiça

TJ – Tribunal de Justiça

5

RESUMO

O acesso da população à propriedade imobiliária remonta ao início do século passado, com o crescimento das cidades, implantação da política de crédito habitacional, chegando a institutos e programas públicos potencializando aquela finalidade já nos anos 2.000. Com todas essas ferramentas, estabeleceu-se uma verdadeira “indústria da construção civil”, dominando os espaços urbanos, especialmente as grandes cidades. Os empreendimentos tornaram-se o anseio de milhares de pessoas que como adquirentes do seu primeiro imóvel ou então investidores, ansiavam pelo recebimento das chaves e da posse dos bens adquiridos. Da mesma forma, esse aguardo também era do empresariado que investiu de forma maciça no setor, esperando os lucros respectivos. Mais que sonhos e rendimentos, os empreendimentos imobiliários foram palco de embates judiciais, considerando especialmente as consequências do não cumprimento dos compromissos de compra e venda. Dessas disputas, mais que a aplicação de leis, foi necessária a atuação dos juízes, buscando interpretações mais sensíveis às normas que tratavam dos temas envolvendo o setor. Nesse anseio, o Poder Judiciário encontrou base para decidir à luz da boa-fé objetiva, instituto com raiz romana e consagração indiscutível, dele fazendo emprego para bem equilibrar os interesses dos adquirentes e construtores/incorporadores, dentro de uma relação que desafia as figuras do consumidor e do empresário, num sistema que permite espaço aos dois.

Palavras chaves: Compromisso de compra e venda de imóvel. Boa-fé objetiva. Hermenêutica judicial. Consumidor vs. Empresário. Entendimentos jurisprudenciais acerca do compromisso de compra e venda de imóvel.

6

ABSTRACT

The population's access to real estate dates back to early last century, with the growth of cities, implementation of housing credit policy, reaching institutes and public programs leveraging this well established in the year 2000. With all these tools, we set up a true "construction industry", dominating the urban areas, especially large cities. The projects have become the longing of thousands of people as purchasers of their first property or as investors, looked forward to the receipt of the keys and ownership of the purchased properties. Similarly, the wait was also of the business community that has invested massively in the industry, hoping their profits. More than dreams and income, real estate development were the scene of judicial clashes, especially considering the consequences of non compliance with the purchase and sales commitments. These disputes, more than the application of laws, the activities of judges was necessary, seeking more sensitive interpretations to standards that dealt with the issues involving the sector. In this longing, the judiciary found the basis to decide in the light of objective good faith, institute with Roman roots and unquestionable dedication, doing his job well to balance the interests of purchasers and builders/developers, in a relationship that challenges user figures and entrepreneur, a system that allows room for two.

Key words: Purchasing and sale of property. Objective good faith. Judicial hermeneutics. Consumer vs. Businessman. Jurisprudential understandings about the purchasing and sale of property.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................... 9

1. BASE EPISTEMOLÓGICA: PRINCÍPIOS E HERMENÊUTICA ............12

1.1. Princípio: definição e importância ao sistema .......................................... 12

1.2. Princípio: mecanismo de maleabilidade dos conceitos jurídicos ...............14

1.3. Princípios segundo Alexy: efetividade e técnica de interpretação .............18

1.4. A hermenêutica como atividade essencial à efetivação dos princípios .... 22

2. DO COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA .................................... 27

2.1. Posse e compromisso de compra e venda................................................ 27

2.2. Compromisso de compra e venda: a superação do paradigma da sua

natureza preliminar........................................................................................... 35

2.3. Casa própria: a proteção constitucional do lar .......................................................................................................................... 38

2.4. A importância da atividade empresarial imobiliária ................................... 44

3. BOA-FÉ OBJETIVA............................................................................. 52

3.1. Da transição do patrimonialismo a um modelo pautado na eticidade e na

boa-fé............................................................................................................... 52

3.2. O andar histórico da boa-fé objetiva ........................................................ 56

3.3. Um sistema civil aberto.............................................................................. 61

3.4. Boa-fé subjetiva vs. boa-fé objetiva ......................................................... 68

3.5. O problema das legislações de emergência ............................................. 70

8

3.6. Boa-fé e direito do consumidor: relativização e banalização ................... 73

3.7. A (i) responsabilidade na aplicação da boa-fé objetiva aos contratos. Relativização vs. segurança jurídica................................................................. 76

4. BOA-FÉ OBJETIVA E COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA: O

PAPEL DA JURISPRUDÊNCIA ............................................................ 83

4.1. As facetas do princípio e sua aplicação ao compromisso de compra e

venda ............................................................................................................... 83

4.2. Cláusula de tolerância e boa-fé objetiva ................................................... 89

4.3. As razões para a validação ou a nulificação da cláusula de tolerância .... 94

4.4. Cláusula resolutória x boa-fé objetiva: a jurisprudência estaria decretando o

fim desse instituto?........................................................................................... 99

5. CONCLUSÃO ..................................................................................... 110

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................... 113

9

INTRODUÇÃO

Mesmo com a incubação junto ao Poder Legislativo, o Código Civil de

2002 ainda teve sua vigência compassada com uma nova ordem jurídica,

inédita em relação ao modelo conservador do Código de 1916.

O casamento deixou de ser a única forma de constituição de família. A

força obrigatória dos contratos já não seria tão absoluta. Por fim, cada vez se

compreendia que o modelo balizado na propriedade imobiliária e nas formas

tradicionais de aquisição (transcrição no registro, acessão, usucapião e direito

hereditário) deveria ceder, especialmente em face dos novos contornos da

realidade urbana brasileira.

Para isso serviu a redação dos artigos 1417 e 1418 do Código Civil. A

revolução não foi plena, pois muito antes disso, precisamente em 1937, afere-

se a existência do Decreto-Lei 58/37, garantindo direitos mínimos ao

compromissário-comprador de imóvel. O referencial é meramente histórico,

pois em tempos hodiernos, o instituto da compra e venda de imóvel, demanda

estudo ligado às demais disposições do Código Civil, aos entendimentos

jurisprudenciais e, especialmente, aos princípios gerais de direito.

Na análise ora proposta, o vetor basilar abordado é o da boa-fé

objetiva. Princípio já consagrado em tempos romanos, que se perpetrou pela

tradição católica, inseriu-se numa das legislações mais liberais de todos os

tempos (Código de Napoleão) e que, finalmente, em 2002, ganhou o status de

lei expressa.

Certo que as relações de consumo não estavam órfãs antes de

disposições impondo a mesma boa-fé objetiva prevista no Código Civil. No

Código de Defesa respectivo, inúmeros artigos dispõem sobre a lisura e a

transparência, mas, todavia, sem a amplitude da boa-fé objetiva.

A partir da junção entre a nova face do instituto do compromisso de

compra e venda, dotado de eficácia real e de efeitos oponíveis a terceiros e um

sistema jurídico onde a boa-fé objetiva seria regra inescusável, o mercado

brasileiro teve de repensar os seus contratos e práticas.

10

Com a manutenção da política econômica estabelecida por Fernando

Henrique Cardoso, a segurança jurídica decorrente da extirpação da limitação

constitucional dos juros (revogação dos incisos do artigo 192) e por políticas

públicas de governo de concessão de crédito (Programa Minha Casa Minha

Vida), a construção civil e o mercado de crédito imobiliário decolaram.

Esse processo, ainda que freado no corrente ano pela instabilidade

financeira, se perpetuará em razão do crescimento das regiões metropolitanas,

procuradas atualmente pelas construtoras e incorporadoras, diante do alto

custo dos lotes nas capitais. Lembre-se também que imóveis contratados na

planta ainda nos anos áureos da “corrida imobiliária” estão em vias de entrega,

demandando atenção ao tema.

Estudar então a boa-fé objetiva, ligando-a ao compromisso de compra

e venda de imóvel, notadamente em matéria de empreendimentos urbanos, é o

que se propõe nesse trabalho.

Mais que cláusulas impondo direitos e obrigações, almeja o

compromissário-comprador a aquisição de um imóvel visando a constituição de

um lar, o que, inclusive, suscita a proteção constitucional, por vários incisos do

artigo 5º. De outro lado, não se esqueça da situação do construtor e do

incorporador, que exercendo atividade com a liberdade constitucional

assegurada pelo artigo 170, não podem ficar a mercê da banalização desse

contrato e das consequências da mitigação do que se estabeleceu.

O desafio então é harmonizar estes dois interesses, que, apesar de tão

antagônicos, têm base e crivo constitucional para se estabelecerem. Não se

quer levantar uma bandeira vermelha ao ponto da apropriação indevida do que

é alheio, mas também não se pode permitir que o lucro empresarial despreze

direitos mínimos do compromissário comprador.

Dessa breve imersão no tema, o trabalho será iniciado pela base

epistêmica necessária à compreensão dos princípios como norma jurídica,

sendo sua aplicação inescusável no contexto do novo formato das relações

civis. Para tanto, a doutrina de Robert Alexy será invocada.

11

O próximo capítulo iniciará o estudo do compromisso de venda e

compra que teve sua eficácia revigorada pelos efeitos públicos emprestados

pela lei. Dessa exposição constata-se a necessidade de aprimoramento do

sistema de Registro Público, abolindo-se o formalismo de uma escritura prévia

posterior, se houve a contratação do imóvel com tamanha firmeza por meio do

compromisso particular.

A seguir, no capítulo terceiro, buscar-se-á expor sobre a boa-fé

objetiva. Sua origem histórica, seus desdobramos, seus impactos e

notadamente como veio a refinar a compreensão das relações civis,

especialmente de obrigações contratuais. Nesse item, valiosas ferramentas

serão os estudos dos professores Menezes Cordeiro e Judith Martins-Costa,

que antes mesmo da vigência do Código Civil de 2.002, já enalteciam a boa-fé.

Posteriormente, demonstrar-se-á como se propagaram as lides

versando sobre o tema e, por conseguinte, os entendimentos jurisprudenciais a

respeito. No presente, especialmente será analisada a compatibilidade da

cláusula de tolerância, veículo muito usado nos contratos dessa ordem, com a

boa-fé objetiva. Outro ponto abordado será a validade da cláusula resolutória,

que, apesar de referendada pelo direito positivo, tem sua aplicação ressalvada

por muitos tribunais.

Tais práticas contratuais são rotineiras nessas avenças, e repercutem

no modo do cumprimento das obrigações, sua extinção e nos efeitos

decorrentes, notadamente aplicação de multa por mora e indenizações

decorrentes dela. A pacificação de um entendimento sobre esses temas,

fatalmente influenciará a atividade desse importante setor da economia, com

reflexos aos contratantes e o futuro dos empreendimentos.

12

1. BASE EPISTEMOLÓGICA: PRINCÍPIOS E HERMENÊUTICA

1.1. Princípio: definição e importância ao sistema

A expressão “princípio” induz base, início. Sua menção remete o ser

humano a compreender determinada situação sob o viés de direção, como se

ela não pudesse ser concebida ou continuada sem um sentido de organização.

Tenho assim o conceito de que princípio jurídico é um valor estabelecido pela lógica e pela racionalidade, que nos conduz, quando confrontados com a realidade, na direção daquilo que deve ser, como as placas de transito que indicam o caminho para chegarmos ao destino proposto. É, em outras palavras, uma diretriz genérica com a função intrínseca de nortear o entendimento, a escolho, a decisão, que devemos adotar em face de uma situação específica.1

Ousar a realização de trabalho acerca da incidência de um princípio,

sem deixar de expor sobre seu contexto filosófico e jurídico, privaria o leitor de

compreender como um vetor, a exemplo da boa-fé objetiva, poderia sobrepor-

se à própria norma positivada. É praxe do sistema romano-germânico o

fenômeno da concepção de institutos e situações tipificadas num sistema, com

o fito de propiciar uma certeza quase irretorquível da subsunção do fato à

norma.

Há princípios que pela sua inserção no texto legal inquestionavelmente

possuem esse sentido de base, de sentido. É o que ocorre especificamente

com a boa-fé objetiva, inserida de modo preliminar ao título do Código Civil que

trata dos contratos, certamente para indicar ao intérprete que esse vetor é

essencial para todas as avenças.

Existem outros não expressos, que podem ser extraídos da

compreensão de um sistema jurídico e até de outros princípios. É que ocorre

com o duplo grau de jurisdição, não previsto na dicção da Carta Magna, mas

1 RAMOS, Gisela Gondin. Princípios jurídicos. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 25.

13

aferível de todo o sistema recursal nela registrado. Expressos ou concebidos

da análise do sistema, trata-se de uma classe muito especial de norma jurídica.

Todavia, os princípios constituem, no gênero das normas jurídicas, uma espécie particular cujos traços característicos não é fácil individualizar com precisão: não é absolutamente claro, e outras palavras, quais propriedades deve ter uma normas para merecer o nome de “princípio”.2

De forma idêntica as placas de trânsito, usadas como paradigma por

Glenda Gondin, os princípios não se limitam a indicar um caminho. Sua força

de norma jurídica pode ter caráter proibitivo, estabelecendo vedações dentro

do universo normativo que eles integram.

A qualificação dos princípios, portanto, como norma jurídica é importante na medida em que, com a evolução do pensamento jurídico, eles deixaram de ser postulados meramente indicativos, quando muito subsidiários, ou simplesmente supletivos do ordenamento, para se tornarem verdadeiramente indispensáveis, vinculantes, o que significa dizer com capacidade de impor obrigações e direitos no mundo fático.3

Um dos principais argumentos em favor da incidência está na

mutabilidade do sistema jurídico, em face das alterações culturais ocorridas no

local da sua vigência. Não há codificação que resista à ação da mutação do

pensamento humano.

Outras bases também devem ser lembradas quando se fala de

princípio, sendo o Direito Natural importante meio de extração de vetores,

aproveitáveis especialmente em face das alterações sociais.

2 GUASTINI, Riccardo. Das fontes às normas. Tradução Edson Bini. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 186. 3 RAMOS, 2012. p. 34.

14

Não se deve ser esquecido que o Direito Natural, por envolver as representações axiológicas mais sensíveis de cada sociedade está, por excelência, dependente da ordem jurídica onde seja propugnado. Assim, lembramos, por oportuno, que a cultura só é apreensível pela História.4

O exemplo mais grato da incidência das disposições do Direito Natural

está na vedação ao enriquecimento sem causa, materializado como princípio

apenas no Código Civil de 2.002, quando ganhou abrigo no artigo 884. Antes

de o instituto figurar propriamente como regra posta, enriquecer-se de forma

ilícita nunca foi visto com bons olhos pelo sistema jurídico.

Tal ocorre também com o adimplemento substancial. Não há no Código

Civil regra específica disciplinando o “nomen juris” do instituto e sua incidência,

sendo ele produto do trabalho da jurisprudência em vários precedentes.

Portanto, o sentido de direção, alusivo a um princípio não deve apenas

considerar nascedouros expressos, como se ele apenas pudesse ser invocado

por clara disposição legal. O Direito Natural, a jurisprudência e outras fontes

são gratas na criação deles, não podendo esses dados passar incólumes ao

intérprete.

1.2. Princípio: mecanismo de maleabilidade dos conceitos jurídicos

O emprego dos princípios propicia o não engessamento dos conceitos

prontos, decorrentes da tipificação dos institutos. Com eles quebra-se a

estática de determinadas regras, até porque o positivismo jurídico não pode

consistir na simples subsunção do fato a norma.

O positivismo jurídico é, realmente, acusado de sustentar uma concepção estática da interpretação, que deveria consistir somente na reconstrução pontual da vontade subjetiva do legislador que pôs as normas, sem se preocupar em adaptar estas últimas às condições

4 RÊGO, Nelson Melo de Moraes. Da boa-fé objetiva nas cláusulas gerais de direito do consumidor e outros estudos consumeristas. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 33.

15

e exigências histórico-sociais variadas, como faz, ao contrário, a interpretação evolutiva sustentada pela corrente antipositivista.5

Interpretar a norma não é uma operação matemática ou geométrica,

semelhante aos bebês que explorando o mundo, tentam encaixar quadrados,

triângulos ou círculos em brinquedos educativos. É preciso sensibilidade ao

ponto de se compreender o real sentido da disposição e interpretá-la

especialmente sob um viés sistemático.

Assim uma adequada exegese jurídica terá que levar sempre em conta e buscar a efetividade mesma do sistema, em face da qual o jurista e, de um modo particular e peculiar, o juiz, poderá fazer efetivos os fins superiores do Direito, notadamente no que se refere aos direitos constitucionais específicos. Sob tal prisma, é que se pode colaborar, decisivamente, para que o ser e o dever–ser tendam à aproximação crescente, sendo esta provavelmente a missão maior da interpretação sistemática.6

Cristalina então a figura de um direito vivo, sendo construído

diariamente. O ordenamento é recheado de conceitos flexíveis, cuja inserção é

proposital justamente pela existência de normas que se flexibilizam

dependendo do caso concreto.

A ordem jurídica não existe de forma inteiramente independente do processo do compreender, mas somente no modo como, com base nesse processo, se mostra em cada caso na compreensão daqueles que são chamados à sua aplicação e desenvolvimento. Isto vale não só para o Direito, mas para esse efeito adoptar também novos traços característicos. Isto reveste-se para o Direito de particular importância, porque nele não se trata as mais das vezes somente da compreensão mas, ao mesmo tempo, da sua realização. Assim, no conhecimento judicial, como nós denominamos o acto de julgar, a compreensão da resolução dotada de força jurídica desemboca num acto de configuração do Direito.7

5 BOBBIO, Norberto. Lições de Filosofia do direito. Compilação Nello Morra. Tradução Márcio Pugliesi, Edson Bini, Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995. p. 214. 6 FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do direito. São Paulo: Malheiros Editores. 1999. p. 129. 7LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1983.p. 574.

16

É um refinamento necessário, produto da compreensão da norma pelo

intérprete no momento da sua aplicação, tendo-se à frente daquele o fato social

em análise. Sem essa operação, a interpretação seria mecânica, passível, em

tese, de realização por um meio eletrônico (direito X, para hipótese Y), sem a

consideração do fato social.

E, contudo, a ciência do direito jamais poderá ser separada da sociologia do direito. Embora a ciência do direito esteja interessada na Ideologia, e sempre uma abstração da realidade social. Mesmo que o jurista não esteja interessado no nexo que liga a doutrina à vida real, esse nexo existe. Reside no conceito de "direito vigente" que, como foi mostrado, constitui parte essencial de todas as proposições doutrinárias, pois esse conceito, em consonância com nossa análise provisional, se refere à efetividade das normas enquanto constituintes de um fato social. 8

Há, portanto a mobilidade dos conceitos jurídicos, dentro da amplitude

que permite o sistema. Essa autorização pode levar ao conflito entre valores,

cuja solução não pode ocorrer pela prevalência da lei (pelos conceitos antigos,

de valor superior ao princípio); a resposta mais correta consiste na prevalência

do bem jurídico de maior valor.

Os direitos, cujos limites não estão fixados de uma vez por todas, mas que em certa medida são <<abertos>>, <<móveis>>, e, mais precisamente, esses princípios podem, justamente por esse motivo, entrar facilmente em colisão entre si, porque a sua amplitude não estão de antemão fixada. Em caso de conflito, se se quiser que a paz jurídica se restabeleça, um ou outro direito (ou um dos bens jurídicos que estão em jogo conforme o <<peso>> que ela confere ao bem respectivo na respectiva situação.9

Mais que isso, quando se emprega um princípio na resolução de um

caso é plausível a coexistência de dois ou mais deles, dentro de um critério de

ponderação. Já quanto à lei, é preciso que uma tenha de sobrepor a outra, ao

ponto da necessidade de se revogar uma delas.

8 ROSS, Alf. Direito e Justiça, Bauru, SP: Edipro, 2000. p. 43. 9LARENZ, 1983, p. 574.

17

Em resumo, portanto, os princípios coexistem no plano abstrato, e quando de sua aplicação, em se verificando conflito, a solução é dada pela ponderação de seu conteúdo em face do caso concreto. As regras, por outro lado, não admitem relação conflitual seja no plano abstrato, seja no plano prático. Se colidirem, e não for possível estabelecer uma relação que o resolva, há que se declará-la invalidade, para fins de preservar o ordenamento enquanto sistema.10

Essa mobilidade dos princípios fez com que a doutrina copiasse alguns

conceitos do direito consuetudinário. Nele e em sistemas sensíveis ao fato

social, existem cláusulas duras, imutáveis e inatingíveis (hard law) e outras,

flexíveis, (soft law), amoldáveis aos casos concretos, podendo ocorrer o

enquadramento dos princípios na última classe.

A última definição é plenamente concernente ao princípio da boa-fé

objetiva. Ela, por exemplo, não tem o escopo de alterar um prazo prescricional

do Código Civil, mas pode se amoldar à interpretação de um caso concreto

envolvendo obrigações, notadamente, no presente trabalho, o compromisso de

compra e venda de imóvel.

O assentimento às leis não é suficiente para o alcance da Justiça e, considerando a possibilidade da existência de regras injustas, deduz que qualquer comunidade política será melhor se não tomar decisões contrárias às regras públicas, mas considerar também o cumprimento dos direitos individuais do cidadão, denotando a importância das regras e também dos princípios no processo de construção do estado de direito.11

Essa então é a primeira justificativa concernente a um princípio: oxigenar

o sistema em razão da mudança do fato social.

10 RAMOS, 2012. p. 40. 11 LITHOLDO, Viviane P. Scucuglia. Uma questão de princípios: A nova interpretação do direito: construção do saber jurídico. Luiz Henrique Martim Herrera, Lucas Seixas Baio. Organizadores. 1 ed. Birigui, SP: Boreal Editora, 2.012. p. 199.

18

1.3. Princípios segundo Alexy: efetividade e técnica de interpretação

O aumento na carga de princípios demonstra a deficiência de um

sistema incapaz de contemplar todos os avanços sociais, com processo

intensificado no final do século passado. A mutação de um sistema puramente

individualista para outro, onde as questões passaram a enxergar um bem-estar

comum, foi preponderante para isso.

Os espantosos progressos alcançados no final do século XX, a conscientização política experimentada pela sociedade que a cada vez se torna mais cônscia de seus direitos individuais, manifestamente têm representado novos desafios com o quais os juristas se deparam na atualidade, sendo certo que tais fenômenos contribuíram para a busca de novas perspectivas rumo ao aperfeiçoamento do sistema jurídico.12

Um autor em especial é de referência ímpar na temática dos princípios,

especialmente porque além de defini-los, traz referencial relevante para a

resolução de conflitos, explicitando verdadeiras fórmulas de definição dos

casos concretos.

Robert Alexy parte de uma verdade inquestionável nos dias de hoje, mas

que num passado não tão distante era motivo para negação do valor e da

efetividade dos princípios. Ambos sempre foram normas, mas sua

consagração, especialmente no sistema jurídico brasileiro, era vista com muita

ressalva.

Tanto regras quanto princípios são normas, porque ambos dizem o que devem ser. Ambos podem ser formulados por meio das expressões deônticas básicas do dever, da permissão e da proibição. Princípios são, tanto quanto as regras, razões para juízos concretos de dever-ser, ainda que de espécie muito diferente.13

12 COSTA, Maria Rosineide da Silva. A concepção interpretativa de Ronald Dworkin: abordagem pós-positivista sobre a tutela jurídica do embrião humano extracorpóreo. Curitiba: Juruá, 2013. p. 60. 13 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. 2ª Edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2011. p. 87.

19

Para Alexy, a existência de princípios demonstra a maturidade de um

sistema jurídico. A esse fenômeno, dá-se o nome de incorporação: “A tese da

incorporação afirma que todo sistema jurídico minimamente desenvolvido

contém necessariamente princípios. É fácil constatar a incorporação quando se

trata de um sistema jurídico completamente desenvolvido.14

Essa constatação foi muito bem lançada, pois o desenvolvimento de

um sistema jurídico está ligado à liberdade com que o Poder Judiciário pode

agir frente aos casos concretos. Em sistemas muito fechados, onde o trânsito

pelos princípios é limitado, simplesmente se atende à vontade do legislador por

conceitos e fatos tipificados, sem margem para a ação do juiz e,

especialmente, pelo refinamento da norma ao fato social.

A diferença hermenêutica está no modo mais engenhoso com que a

interpretação das questões à luz dos princípios pode ocorrer. Foge-se de

parâmetros fechados, podendo o intérprete, por essa leitura principiológica,

alcançar resultados mais equitativos em seu resultado.

Trazendo ao debate a questão do adimplemento substancial x contrato

de seguro, seria possível encontrar resposta pronta no Código Civil para um

segurado que se abstém de pagar uma das parcelas alusivas ao premio de um

seguro: a não cobertura.

Todavia a jurisprudência optou por um caminho pautado em princípios,

e se estabeleceu pela via do precedente uma solução mais adequada. A

resposta encontrada pelo Ministro Ruy Rosado de Aguiar15, ainda no ano de

1995, precisa ser relembrada.

14ALEXY Robert. Conceito e validade do direito. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009. p. 86 15 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Base de Jurisprudência. SEGURO. INADIMPLEMENTO DA SEGURADA. FALTA DE PAGAMENTO DA ULTIMA PRESTAÇÃO. ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL. RESOLUÇÃO. A COMPANHIA SEGURADORA NÃO PODE DAR POR EXTINTO O CONTRATO DE SEGURO, POR FALTA DE PAGAMENTO DA ULTIMA PRESTAÇÃO DO PREMIO, POR TRES RAZÕES: A) SEMPRE RECEBEU AS PRESTAÇÕES COM ATRASO, O QUE ESTAVA, ALIÁS, PREVISTO NO CONTRATO, SENDO INADMISSIVEL QUE APENAS REJEITE A PRESTAÇÃO QUANDO OCORRA O SINISTRO; B) A SEGURADORA CUMPRIU SUBSTANCIALMENTE COM A SUA OBRIGAÇÃO, NÃO SENDO A SUA FALTA SUFICIENTE PARA EXTINGUIR O CONTRATO; C) A RESOLUÇÃO DO CONTRATO DEVE SER REQUERIDA EM JUIZO, QUANDO SERA POSSIVEL AVALIAR A IMPORTANCIA DO INADIMPLEMENTO, SUFICIENTE PARA A

20

Essa decisão guarda nexo com a lição de Alexy sobre a ligação da

teoria dos princípios com o vetor da proporcionalidade. Ele pode ser observado

na posição jurisprudencial que acenou pela continuidade de um contrato, dado

o cumprimento quase total das suas obrigações.

Já se deu a entender que há uma conexão entre a teoria dos princípios e a máxima da proporcionalidade. Essa conexão não poderia ser mais estreita: a natureza dos princípios implica a máxima da proporcionalidade, e essa implica aquela. Afirmar que a natureza dos princípios implica a máxima da proporcionalidade significa que a proporcionalidade, com suas três máximas parciais, da adequação, da necessidade (mandamento do meio menos gravoso) e da proporcionalidade em sentido estrito (mandamento do sopesamento propriamente dito), decorre logicamente da natureza dos princípios, ou seja, que a proporcionalidade é deduzível dessa natureza.16

Do conceito acima é possível observar que a proporcionalidade possui

subdivisões, consistentes no próprio vetor num sentido estrito, na adequação

e, ainda, na necessidade. Na ideia de Alexy, todas essas divisões estão

interligadas, agindo com sinergia de acordo com o peso do bem e dos sujeitos

envolvidos, buscando-se a aplicação da disposição menos impactante ao

caso.

Para além desse juízo de proporção, Alexy refere um critério de

ponderação. Para ele, essa técnica de ponderação é essencial ao exame do

caso concreto sob o viés dos princípios. O intérprete precisa considerar todos

os vetores aplicáveis de modo conjunto, pois a abordagem individual e

parcelada levaria à confusão de se justificar uma decisão à luz de um

princípio, e, posteriormente encontrar base também em outro.

EXTINÇÃO DO NEGOCIO. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. (REsp 76.362/MT, Rel. Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR, QUARTA TURMA, julgado em 11/12/1995, DJ 01/04/1996, p. 9917). Disponível em https://ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa/?src=1.1.3&aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGenerica&num_registro=199500506351. Acesso em 16 fev. 2.015. 16ALEXY, 2011. p. 116. Teoria dos Direitos Fundamentais...

21

Um critério para averiguar se o juiz apoia-se em princípios é saber se ele procede a uma ponderação. Aplica-se o seguinte teorema: quando uma pessoa procede a uma ponderação, ela se apoia necessariamente em princípios. Isso porque uma ponderação é necessária justamente quando existem razões opostas que, tomadas individualmente, constituem boas razões para uma decisão e só não levam de imediato a uma decisão definitiva porque existe outra razão que exige outra decisão. Tais razões ou são princípios, ou se apoiam em princípios.17

A técnica sugerida por Alexy exige um procedimento sistemático,

considerando todos os vetores em trânsito, com uma resposta final e efetiva,

justificada na ponderação e na prevalência daquele vetor mais coerente ao

caso.

Entretanto, uma advertência precisa ser registrada. Nesse emaranhado

de princípios, a escolha do mais adequado não pode se justificar naquele de

maior coerção e força. É que Alexy chama de “tese de moral”.

A tese da moral aplica-se quando, entre os princípios a serem considerados em casos duvidosos para satisfazer a pretensão à correção, encontram-se sempre aqueles que integram uma moral qualquer. Esse é o caso. Nos casos duvidosos, trata-se de encontrar uma resposta para uma questão prática, que não pode ser forçosamente deduzida do material dotado de autoridade e predeterminado. No âmbito do direito, solucionar uma questão significa dizer o que é devido. Quem pretende dizer o que é devido sem apoiar sua resposta exclusivamente em decisões de uma autoridade deverá considerar todos os princípios apropriados se quiser satisfazer a pretensão à correção. Porém, entre os princípios apropriados à solução de uma questão prática, estão sempre aqueles que integram uma moral qualquer.18

Seria muito fácil a saída do intérprete pela tese da moral. Considera-se

aquele princípio dotado de maior carga de autoridade, optando-se pela saída

mais cômoda, o que não condiz com a proporcionalidade e a ponderação

citadas anteriormente.

17ALEXY, 2009. p. 87. Conceito e validade... 18Id. p. 91.

22

A tese da moral é um vetor aferível pelo exemplo que mais adiante

será travado, consistente na criação da Súmula 308 do STJ. A “autoridade”

provinha do princípio da publicidade do registro da hipoteca à margem da

matrícula do imóvel e a oponibilidade “erga omnes” desse direito real. Todavia,

prevaleceram os vetores defendidos por Alexy, com o auxílio da boa-fé

objetiva, situação que reforça o seu papel no ordenamento.

1.4. Hermenêutica como atividade essencial à efetivação dos princípios

Referir isoladamente à construção doutrinária acerca dos princípios e a

sua efetivação seria uma providência insatisfatória para boa a compreensão

dos vetores e sua importância na ordem jurídica. Uma breve passagem pela

hermenêutica, como ferramenta de aprimoramento e/ou criação do direito, faz-

se necessária.

A positivação das condutas por meio de lei é uma medida necessária,

assegurando especialmente segurança jurídica. O lado nefasto de tal cautela

está na apreensão de um único momento de “luz”, desprestigiando-se outros

elementos que poderiam ser aferíveis em determinada situação.

Trata-se então da necessidade de se compreender o direito e

especialmente a lei, como uma obra inacabada, sujeita a complementação.

Mais que isso, a conveniência de invariavelmente empreender um trabalho

ousado de alteração do projeto inicial, através das ferramentas consistentes

nas cláusulas abertas.

O delineamento do Direito como um fenômeno plural, reflexivo, prospectivo e relativo exige que a ordem jurídica seja concebida com uma obra dinâmica, permitindo a constante solução e incorporação de novos problemas. Sendo assim, utilizam-se modelos jurídicos abertos, que figuram como janelas para captar o trânsito da vida social, através das cláusulas gerais. Neste sentido, a técnica legislativa das clausulas gerais conforma o meio hábil para permitir o

23

ingresso no Direto de elementos como valores, arquétipos comportamentais, deveres de conduta e uso locais19

A interpretação do caso concreto também se justifica na natureza

relacional das pessoas e dos bens envolvidos. Esse grau de relação é

destacado pela doutrina estrangeira, bem esclarecendo o equívoco de imaginar

que o caso se adeque a norma perfeitamente. Há um passo subsequente da

norma, que ela não externa e é suprido pelo intérprete.

Que La determinación del derecho no es um mero acto passivo de subsuncion, sino um acto creativo, em que el creador del derecho interveniente como parte, significa que el derecho no es nada substancial; no está em las coisas, sino más bien que todo derecho tiene carácter relacional. El derecho es algo relacional, porque consiste em relaciones de unos hombres con otros e com las cosas. 20

Esse viés, por vezes passava esquecido pelo intérprete da norma

positivada, muito embora fosse marca e característica indissociável do sistema

consuetudinário. Gradativamente essa qualidade foi identificada, tendo o direito

brasileiro se inclinado à essa tendência de melhor vislumbrar a casuística.

No sistema jurídico brasileiro, o reconhecimento de que jurisprudência pode figurar como fonte direta e imediata do Direito é fortalecido à medida que se constata a sua progressiva aproximação ao paradigma anglo-saxônico do common Law nas últimas décadas, como se depreende dos seguintes fenômenos: a consagração do poder normativo da Justiça do Trabalho; o aprimoramento dos mecanismos de uniformização jurisprudencial; o prestígio das súmulas dos tribunais superiores, mormente daquelas oriundas do Supremo Tribunal Federal; a previsão legal da súmula impeditiva de recurso; e a positivação constitucional da súmula vinculante, sob a inspiração da doutrina conhecida como stare decisis.21

19 SOARES, Ricardo Maurício Freire. Hermenêutica e Interpretação jurídica. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 106. 20 KAUFMANN, Arthur. Hermenéutica y Derecho. Albolote: Editorial Comares. 2007. p. 94. 21 SOARES, 2010. p.123.

24

Todavia, essa novel prática, que a cada dia vem ganhando mais

seguidores não pode ser tão enfatizada, ao ponto de se desprestigiar a norma

escrita. O empréstimo dessa roupagem visa tão à harmonização.

Ela seria inútil, caso seus objetivos não fossem objeto de reflexão.

Qual o direito prevaleceria e teria a preferência do intérprete: a norma

positivada ou os precedentes? A resposta não pode ser dada no presente

trabalho, mas apenas pelo intérprete à frente do caso concreto.

Mais que cautela, essa hermenêutica exige esforço, que segundo

Rodolfo Vigor seria de caráter hercúleo. Aludindo Dworkin, o doutrinador

argentino refere o vigor na busca da moralidade inerente às leis, visando o

alcance de uma verdadeira justiça.

Para conhecer e definir os direitos e deveres dos cidadãos, note-se que as normas, diretrizes e princípios não são suficientes, mas se faz necessário que esse material seja harmonizado, revelado e justificado sem contradições por meio da teoria de adjudicação hercúlea. Esta teoria implica a construção de um esquema de princípios abstratos e concretos que identificam a moralidade pressuposta das leis e instituições, implicando a justificação coerente do ordenamento vertical e horizontal das decisões jurídicas.22

Outra referência merecedora de lembrança está na crítica savignyana à

norma codificada como expressão do despotismo. Segundo ele, a positivação

poderia desprestigiar os elementos culturais de um povo, essenciais à

compreensão dos eventuais conflitos.

Savigny vê o direito codificado como expressão do despotismo, porque proveniente e imposto pela razão, de forma estranha aos costumes. Por isso, opõe-se com veemência às teses jurídicas da filosofia das luzes, baseada na teoria do direito natural, imutável e universal, deduzido da razão. Para ele, cada povo tem o seu próprio direito, fundado em elementos culturais como a língua, os costumes e a religião.23

22VIGO, Rodolfo Luís. Interpretação jurídica: do modelo juspositivista-legalista do século XIX Às novas perspectivas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p. 67. 23 CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e Argumentação: uma contribuição ao estudo do direito. 3ª edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2.003. p. 76.

25

A crítica de Savigny feita séculos atrás se amolda perfeitamente à

realidade brasileira, useira e vezeira em copiar modelos e institutos

estrangeiros, sem a devida cautela na sua adequação à realidade nacional.

Lembre-se, por exemplo, da polêmica relativa ao contrato de leasing e

as decisões tratando da sua eventual descaracterização. A cópia de um

modelo estrangeiro foi desvirtuada em terras tupiniquins, gerando embate

jurídico de grande proporção, ao ponto de nem mesmo o STJ trazer resposta

segura 24.

Desse exemplo e de tantos outros, a constatação de que a legislação

sozinha não basta, sendo imprescindível a tarefa hermenêutica num sistema

como o brasileiro, permeado de situações cujas aferições dependem do meio e

do fato social.

Atribúyese a La codificación el caráter de una renovación total y profunda del sistema jurídico mismo, de una espécie de inmovilización de todos seus elementos, que no solamente obra sobre las matérias refundidas por el legislador, sino también sobre los procedimentos de elaboración cientifica del derecho em su conjunto. Esta ideatiente sus raíces em um prejuicio más hondo: el de que La legislacion, com sus formulas abstractas, basta para dar a La interpretácion todas la direciones necessárias a La solucion de los problemas jurídicos.25

Na abordagem do tema, também não se pode olvidar de outro

elemento interpretativo, consistente nos postulados hermenêuticos. São

orientações dadas ao interprete, de tal modo que no emprego das normas

(regras ou princípios), tendo parâmetros de estruturação.

Dentre os mais importantes está o postulado da unidade do ordenamento jurídico, a exigir do intérprete o relacionamento entre a parte e o todo mediante o emprego das categorias de ordem e de unidade. Subelemento desse postulado, é o postulado da coerência,

24 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Base de jurisprudência. Súmula 263 (CANCELADA) A cobrança antecipada do valor residual (VRG) descaracteriza o contrato de arrendamento mercantil, transformando-o em compra e venda a prestação. Súmula 293. A cobrança antecipada do valor residual garantido (VRG) não descaracteriza o contrato de arrendamento mercantil. 25 GENY, Francisco. Método de interpretación y fuentes em derecho privado positivo. Albolote: Editorial Comares. 2007. p. 55.

26

a impor ao intérprete, entre outros deveres, a obrigação de relacionar as normas com as normas que lhe são formal ou materialmente superiores. 26

Após vencer essa etapa de compreensão do ordenamento e adequar a

sua escolha conforme uma sobreposição necessária, pode o intérprete

adentrar na escolha de outros postulados, chamados normativos aplicativos:

Bem concretamente, isso significa (a) investigar a jurisprudência dos Tribunais Superiores, em busca de decisões que tenham mencionado a utilização de postulados normativos; (b) obter a íntegra dos acórdãos em que são mencionados os referidos postulados.27

Esse trabalho não se resume a simples reprodução do julgado a um

conceito pré-estabelecido. Humberto Ávila recomenda a análise da

fundamentação da decisão em si, a investigação das normas que foram objeto

de aplicação e finalmente, como outros poderiam ter sido decididos pela

estrutura escolhida.

Em conclusão, a principiologia deve se concretizar através da

hermenêutica, dela se aproveitando na adequação da melhor resposta ao caso

concreto. Essa manobra precisa ser responsável, atentando-se aos critérios

acima e tantos outros aplicáveis, com perfeita adequação da norma à

casuística.

26 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 7ª edição. São Paulo: Malheiros Editores. 1995, p. 124. 27 Id. p. 139.

27

2. COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA

2.1. Posse e compromisso de compra e venda

A urbanização vivida no Brasil durante todo o século passado e a

constitucionalização das questões envolvendo posse, propriedade e os seus

modos de aquisição denotam a relevância da temática dentro do direito

brasileiro. Ao constitucionalizar a inviolabilidade da casa, o direito de

propriedade, a sua função social e criar hipóteses de usucapião, demonstrou-

se a importância das questões ligada à posse e a propriedade em sentido

amplo.

A funcionalização da posse e do direito de propriedade insere-se no conjunto de novos paradigmas contemplados pelas constituições contemporâneas para a reorientação valorativa e finalística do exercício da posse e dos poderes proprietários, de forma a preservar os interesses comunitários, sem necessariamente negar o papel da iniciativa individual para o desenvolvimento social e econômico dos povos.28

Trata-se de mais uma faceta da publicização do direito civil. O exemplo

do que ocorreu com as relações de consumo, a propriedade também teve as

suas dimensões tocadas pelas alterações legislativas.

O conceito de propriedade vem sofrendo, ao longo dos séculos, alterações estruturais, de tal ordem que distanciada está sua fisionomia atual da concepção que dela faziam os romanos. Perdeu seu atributo de direito absoluto, “plena in repotestas”, verdadeiro direito natural, imanente à condição humana, para absorver o conceito de plenitude, agora entendida como a faculdade de exercer sobre a coisa tudo aquilo não vedado pela lei que a delimita. 29

O caminho para esse reconhecimento social, ao ponto de o Estado

conseguir sobrepor-se ao absoluto direito de propriedade foi árduo. Séculos

28 OLIVEIRA, Francisco Cardozo de. Hermenêutica e tutela da posse e da propriedade. Rio de Janeiro: Forense. 2006. p. 241. 29 VIANA, Rui Geraldo Camargo. O Parcelamento do solo urbano. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1985. p. 11

28

foram exigidos para a mudança de comportamento dos proprietários e a

flexibilização dos conceitos inerentes.

Ao pretender permanecer intocado, o modelo está sujeito à rupturas, e uma delas pode ser visualizada no reconhecimento de que a propriedade deve ser exercida funcionalmente em razão dos interesses da coletividade. Essa ruptura liga-se ao acaso do Estado liberal e ao surgir do Estado social. Os postulados do Estado Liberal não iriam resistir às reivindicações de novos atores, ingressantes no jogo social. A noção de igualdade formal logo refletiria o fantasma da desigualdade material, e a separação entre Estado e sociedade daria lugar a um novo modelo de Estado.30

O acesso a terra era algo obstado pelos interesses dos grandes

proprietários. Não havia pelo Estado vontade ou estrutura em desvincular as

pessoas dos poderosos senhores ou do clero, detentores de imensas áreas.

O parcelamento do direito à terra dificultava, de outra parte, que ela fosse objeto de compra e venda, isto é, que ele fosse considerada mercadoria. Como sua importância socioeconômica era fundamental e se configurava em elemento de libertação dos indivíduos em face dos privilégios da nobreza e do clero, foi necessária a liberação da terra dos múltiplos ônus que sobre ela incidiam, para que plenos poderes proprietários fossem atribuídos a um só indivíduo.31

Em troca, também pela ingerência estatal no tocante à segurança, os

proprietários emprestavam proteção aos seus subordinados, que de forma

vitalícia ficavam vinculados aos senhores. Nesse binômio trabalho x proteção,

caminha a situação da propriedade no Brasil desde seu período colonial.

Como o poder público inexistia ou não reunia condições de garantir a segurança dos habitantes, formam-se clientelas armadas que provêm a necessidade de segurança mediante a contraprestação de um serviço. Assim, o indivíduo recomenda-lhe a um senhor poderoso,

30 JUNIOR, Eroults Cortiano. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 137. 31 Id. p. 32.

29

devendo-lhe subordinação. O senhor concedia benefícios ao subordinado, de onde ele poderia tirar seu sustento, devendo pagar, com serviços, a proteção recebida.32

Num Código patrimonialista, com base na legislação napoleônica,

exercer propriedade pressupunha destaque social. A tipificação com que o

antigo Código 1916 dava às formas de aquisição de propriedade exprimia a

importância de possuir imóveis, mediante as formas tradicionais antes citadas.

A caracterização do sujeito de direito em que se assenta a estrutura do Código Civil Brasileiro está igualmente vinculada à noção de propriedade, mormente a imobiliária. A titulação que a ordem jurídica outorga ao sujeito sobre um objeto traduz-se em mera projeção das diversas facetas do ter absoluto (ius utendi, ius fruendi, ius abutendi). E os bens imóveis dão o sustentáculo necessário à caracterização daquele que, por se apresentarem senhores, são sujeitos de direito.33

Vale registrar que a exemplo do que ocorreu na Revolução Francesa e

posteriormente, com o Código de Napoleão, o modelo de propriedade

imobiliária brasileira partiu de uma reação à Coroa, grande detentora de áreas.

Gradativamente, as terras antes pertencentes ao Rei foram assimiladas pelos

grandes senhores, cumprindo uma verdadeira fase de privatização.

A propriedade privada imobiliária brasileira é, assim, fruto de um longo processo que marca a saída dos bens do patrimônio público régio, um esforço gradativo de delimitação da esfera privada, em oposição ao que era público – as terras do rei. A cristalização do direito de propriedade privada foi, certamente, o resultado de uma complexa “construção”, forjada em meio às tensões sociais e às condicionantes da infraestrutura econômica. “Construção” de uma disciplina jurídica proprietária, conquista gradual de um espaço salvo das ingerências mercantilistas da Coroa.34

32 JUNIOR, 2002. p. 23. 33 MEIRELLES, Jussara. O “Ser” e o “Ter” na codificação. In: FACHIN, Luiz Edson. Repensando fundamentos do direito civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. p. 96. 34 VARELA, Laura Beck. Das Sesmarias à Propriedade Moderna: Um Estudo de História do Direito Brasileiro. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 231.

30

Esse processo perdurou até o início do século XX, quando

especialmente após a Crise do Café, o Brasil passou a ganhar contornos mais

urbanos. Posteriormente, na década de 40, com a consolidação das primeiras

grandes indústrias, o país já possuía grandes traços de urbanização, com a

consequente fragmentação das propriedades.

O forte movimento de urbanização que se verifica a partir do fim da segunda guerra mundial é contemporâneo de um forte crescimento demográfico, resultado de uma natalidade elevada e de uma mortalidade em descenso, cujas causas essenciais são os progressos sanitários, a melhoria relativa nos padrões de vida e a própria urbanização.35

O cenário estava armado para a tomada das cidades. Os escravos

libertos anos antes, ainda não tinham o seu espaço e havia imigrantes, que

sem experiência ou vocação para o campo, optaram pelo meio urbano.

O declínio habitacional brasileiro tem origens no primeiro quartel do século XX, a partir do declínio da economia cafeeira, que aliado ao processo de gradativa industrialização do país, e à demanda demográfica derivada da abolição da escravidão e do excedente de trabalhadores assalariados imigrantes da Europa e não mais aproveitados nas lavouras, desencadeou o movimento de um êxodo rural em busca de centros urbanos36

Nesse processo de ingresso nos centros urbanos a aquisição de título

de propriedade era necessária, especialmente porque a atuação estatal na

época era nula. Todavia, como ainda vigoravam as regras do Código Civil de

1916, o acesso às áreas urbanas dava-se apenas pela transcrição no registro,

mediante escritura publica.

35 SANTOS, Milton. A urbanização brasileira. São Paulo: Editora Hucitec. 1993. p. 31 36 GALLI, Leandro. O contrato de compromisso irretratável de compra e venda imobiliária: a funcionalização da perspectiva do acesso à moradia urbana. Dissertação apresentada no Programa de Mestrado do Centro Universitário Curitiba. Disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/download/teste/arqs/cp151722.pdf. Acesso em 07 jan. 2015. p. 16.

31

Ou seja, se não houvesse dinheiro para a aquisição e imediata

transcrição no registro, inexistia direito ao documento translativo de domínio. A

posse, quando permitida, era a título precário, correndo o adquirente o risco de

não exercer os direitos concernentes à propriedade pela mera inexistência do

título.

O já referido Decreto Lei 58/37 foi o germe da proteção ao adquirente,

em se tratando de direito obrigacional. A integralização do preço assegurava a

ação de adjudicação compulsória, independentemente de situações pessoais

do vendedor, especialmente o seu falecimento.

O Estado desde então passou a vislumbrar de modo diferente o

problema, agindo de forma mais efetiva. De mera tutela à posse e ao direito de

escritura, sua atuação passou a ser direta, financiando também a aquisição da

propriedade imobiliária a partir da década de 60.

O sistema era composto pelo Banco Nacional da Habitação (BNH) – órgão que assumiu papel central na expansão do setor, sobretudo paras camadas com menor poder aquisitivo -, pelas companhias de habitação (Cohab), pelas cooperativas habitacionais (Coophab), pelas sociedades de crédito imobiliário (SCI) e pelas Caixas Econômicas Federal e Estadual (CEF e CEE, respectivamente).37

Esse processo só poderia desembocar no espírito legislativo que fez

com que fossem emprestados ao documento em estudo os efeitos públicos

decorrentes, algo que antes só ocorria com a assinatura de uma escritura.

Outrossim, como visto, a doutrina que considera o compromisso de compra e venda como contrato preliminar tende cada vez mais à falência. A identidade de causa, e, por conseguinte, de elementos categorias inderrogáveis observada na compra e venda e no compromisso conduz, invariavelmente, à conclusão de que, nos moldes atuais, o compromisso encerra negócio jurídico típico, de caráter-real obrigacional, no qual o consentimento para a alienação do imóvel dele objeto dá-se na própria formação do contrato.38

37 PASSARELLI, Luciano Lopes. O princípio da boa-fé registral: necessidade de sua adoção para as incorporações e loteamentos. In: 2º Premio Abecip de Monografia em Crédito Imobiliário e Poupança. São Paulo: Associação Brasileira das Entidades de Crédito Imobiliário e Poupança, 2009. p. 319. 38 TRISTÃO, Eduardo. Compromisso de compra e venda: contribuições para o estudo de sua natureza jurídica. In: Revista de Direito Imobiliário. v. 32, n. 67, jul. 2009. p. 68.

32

Pela dicção dos artigos 1417 e 1418 estenderam-se as prerrogativas

constantes no Decreto-Lei 58/37 a qualquer compromisso de compra de

imóvel, inclusive fora da modalidade loteamento.

Foi uma novidade tardia, especialmente se feito um cotejo com o direito

europeu. O Código Civil Português promulgado no ano de 1966, já

contemplava a força real ao instrumento particular de venda e compra: “1. À

promessa de transmissão ou constituição de direitos reais sobre bens imóveis,

ou móveis sujeitos a registro, podem as partes atribuir eficácia real, mediante

declaração expressa e inscrição no registo.”39

Com a proteção irrestrita, assegurada a todo compromissário-

comprador, é possível publicizar, mesmo antes do pagamento do preço, a

existência de vinculação jurídica ao imóvel.

Mais que esse espírito protetivo, a possibilidade do registro do

documento dá segurança aos negócios imobiliários, pois qualquer interessado

pode conhecer se um imóvel é objeto de operação anterior, mesmo antes da

escritura translativa de domínio.

Com o registro de todo o compromisso de compra e venda e particular,

seria abandonado o conhecido “contrato de gaveta”, produto da imaginação

brasileira e já chancelado pela jurisprudência. Num país que ainda necessita de

modernização, a segurança jurídica de um registro imobiliário seria requisito

mínimo.

Assim ressaltada certa variedade nas regras disciplinadoras do sistema de cada país, observa-se, contudo, que geralmente exige-seo ingresso de todos os títulos que ocasionem mutações jurídico-reais na titularidade ou conformação do imóvel, se bem que ainda é possível a existência de determinados gravames que por razões variadas acabam não acedendo aos assentamentos registrais.Tais gravames são conhecidos como “ônus ocultos”, ou overriding interest na literatura anglo-saxônica, o que constitui ainda uma grave deficiência dos sistemas.40

39 PORTUGAL. Código Civil Português. Artigo 413. Disponível em http://www.confap.pt/docs/codcivil.PDF. Acesso em 21 jan. 15. 40 PASSARELLI, 2009. p. 282.

33

Essa tendência, diga-se de passagem, recentemente foi materializada

por nova legislação dando maior força à segurança e a publicidade do Registro

Público.

Fruto da conversão da medida provisória nº 656/14, a Lei

13.097/201541 estabeleceu a possibilidade de registro da existência de atos

jurídicos precedentes à margem da matrícula de imóvel, tendo-se por eficaz o

negócio subsequente, caso o interessado não tenha agido com tal diligência:

Art. 54. Os negócios jurídicos que tenham por fim constituir, transferir ou modificar direitos reais sobre imóveis são eficazes em relação a atos jurídicos precedentes, nas hipóteses em que não tenham sido registradas ou averbadas na matrícula do imóvel as seguintes informações: (Vigência) I - registro de citação de ações reais ou pessoais reipersecutórias; II - averbação, por solicitação do interessado, de constrição judicial, do ajuizamento de ação de execução ou de fase de cumprimento de sentença, procedendo-se nos termos previstos do art. 615-A da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 - Código de Processo Civil; III - averbação de restrição administrativa ou convencional ao gozo de direitos registrados, de indisponibilidade ou de outros ônus quando previstos em lei; e IV - averbação, mediante decisão judicial, da existência de outro tipo de ação cujos resultados ou responsabilidade patrimonial possam reduzir seu proprietário à insolvência, nos termos do inciso II do art. 593 da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 - Código de Processo Civil.

Desse modo, o compromisso de compra e venda além da sua

característica nata dos artigos 1417 e 1418 do Código Civil, também ganha

espaço nessa novel legislação em hipótese de litígio acerca do bem ou diante

da existência de contrato versando sobre ele.

Mais uma demonstração da preocupação do legislador em dar

segurança aos negócios jurídicos, especialmente quando envolvem bens

imóveis. Como popularmente tem-se referido, essa alteração legislativa

propiciará a criação de um verdadeiro “Renavam Imobiliário”, possibilitando que

os adquirentes tenham grau diferenciado de estabilidade no negócio que

pretendem celebrar.

41 BRASIL. Lei 13.097/2015. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13097.htm. Acesso em 15 fev. 15

34

Como se percebe, o empréstimo de eficácia real ao compromisso de

compra e venda representou o início de um processo, que se intensificou ainda

mais com a recente Lei 13.097/15. A existência de um Registro Público que

contemple todo o histórico de um imóvel, que antes poderia ser

compromissado com uma pessoa oculta, contribui para a segurança jurídica.

Nos remotos tempos do início do século passado, onde a burocracia

cartorária ainda era maior, um remédio dessa ordem poderia ter velado pelos

interesses de muitos compromissários-compradores, certamente tolhidos de

sua posse em razão de disputas. Apenas com o Decreto-Lei 58/37 amenizou-

se esse quadro, ainda que o Registro Público não fosse acessível ao mero

compromissário.

A alteração legislativa consistente nos artigos 1417 e 1418, precisa ser

incrementada com ações públicas voltadas ao incentivo dos registros de posse,

conscientizando-se os compromissários dos direitos que lhe são próprios. A

principal barreira é a conquista de um serviço notarial acessível ou até gratuito,

quebrando-se um paradigma que impera desde o Brasil Colônia.

Tal medida evitaria que em pleno século XXI questões possessórias

como aquela envolvendo os herdeiros da família Reginatto, no bairro Capão da

Imbuia em Curitiba, ainda trouxessem insegurança jurídica. Essa controvérsia

envolve o interesse de centenas de pessoas numa série de medidas judicias,

divulgadas de modo reiterado pela imprensa local42.

Em uma dessas medidas, é possível aferir o contexto do interesse em

discussão e especialmente a gravidade que o problema da posse toma, caso

medidas de informação pública inexistam ou não sejam efetivas. Na decisão

proferida num agravo de instrumento ainda no longínquo ano de 1999 43 ,

percebe-se a revogação de uma liminar possessória, tendo por fundamento a

construção de uma meia-água, antes da ocupação da área pelo requerente:

42 PARANÁ ON LINE. Jornal Virtual “Estado do Paraná”. Reintegração de posse termina em confusão. Disponível em http://www.parana-online.com.br/editoria/cidades/news/487152/?noticia=REINTEGRACAO+DE+POSSE+TERMINA+EM+CONFUSAO. Acesso em 28 abr. 15. 43 PARANÁ. Tribunal de Justiça. Base de jurisprudência. Agravo de instrumento 148.104-9. Disponível em https://www.tjpr.jus.br/consulta-2grau. Acesso em 28 abr. 15.

35

Ora, se de fato a agravante já ocupava essa casa, construída sobre o lote de esquina com a Rua Araguaia, não se pode, desde logo, concluir que a edícula (meia-água) construída no mesmo lote configura desrespeito à reintegração de posse em favor do agravado. Conforme consta da planta da Vila Araguaia, encartada à f. 100 destes autos, o lote nº 7 da quadra 7 e não da quadra 8 (esquina das Ruas E e Araguaia) tem a área de 397,65 m², comportando assim a edificação de mais essa pequena meia-água, sem que tal fato importe na ampliação da posse da agravante, que já ocupava a parte dos fundos do terreno com a casa de alvenaria.

É um conflito possessório famoso na cidade de Curitiba que se arrasta

há anos e fatalmente levará mais alguns para solução, caso realmente seja

encontrada. Imperiosa então a implantação de medidas para a publicização

dos interesses dos possuidores, evitando que situações a exemplo da Vila

Araguaia (nome da aglomeração envolvida no caso Reginato) continuem a se

repetir.

2.2. Compromisso de compra e venda: a superação do paradigma da sua

natureza preliminar

Pela construção doutrinária e especialmente, pela base legislativa dada

pelo novo Código, há condições de superar o paradigma consistente no

compromisso de compra e venda como contrato “preliminar”, apenas

confirmatório de um segundo instrumento a ser estabelecido pelas partes.

O desenvolvimento do instituto desde seus primórdios até o momento presente revela que pelo menos uma das variações da modalidade contratual em debate suplantou a condição de ato preliminar, para assumir a condição de ato jurídico e capaz, em si mesmo, de proporcionar a transferência da propriedade imobiliária, na medida em que transmite de plano os seus mais elementares e essenciais atributos, e dota seu titular de meios de fazer prescindível a própria escritura pública de compra e venda.44

44 GALLI, 2009. p. 96.

36

Diante da sua força pública, passível de registro à margem da

matrícula do imóvel e ainda, pela necessidade de se emprestar mais

fidedignidade aos apontamentos públicos de imóvel, está superado o conceito

antigo, que exigia a celebração de outro instrumento de índole definitiva.

Era marca da doutrina tradicional colocar o compromisso de compra e

venda de imóvel como contrato preliminar. Nesse conceito as partes

estabeleciam cláusulas gerais de um futuro negócio, disciplinando, dentre

outras situações a possibilidade de arrependimento.

Os contratos preliminares, por sua vez, apresentam dois matizes: (a) quando as partes, apesar de fixarem o objeto do negócio definitivo, reservam a prerrogativa do arrependimento; e b) quando as partes fixam irretratavelmente, todos os pontos que se farão presentes no contrato definitivo projetado.45

Prevalecia a ideia de que o contrato preliminar era passível de

arrependimento, pois externava um objetivo que podia ou não ser cumprido

pelas partes. A evolução desse conceito deu-se por meio da definição

concernente ao compromisso chamado impróprio, de natureza definitiva, que é

aquele que alberga os negócios imobiliários atualmente.

Constata-se, portanto, a existência de duas espécies de contrato preliminar: o próprio, essencialmente retratável, que em por objeto a celebração de um contrato definitivo como forma das partes expressarem que não exerceram o direito de retratação; e o impróprio, sempre irrevogável e dotado de conteúdo exauriente, que impõe não a celebração de um novo contrato, mas a prestação de um ato devido materializado pelo dever de ratificação, no instrumento determinado pela lei, da manifestação de vontade já externada pelas partes no contrato preliminar, com o escopo de lhe conferir eficácia.46

45 ANTONIO JUNIOR, Valter Farid. Compromisso de compra e venda. São Paulo: Atlas, 2009. p. 13. 46 Id. p. 15.

37

A situação é muito evidente. Inexiste razão para se celebrar um

primeiro contrato, ou melhor, um “compromisso” para no futuro, haver a

necessidade de uma segunda contratação. Essa burocracia não é consentânea

com a segurança ínsita à aquisição de um imóvel nos tempos de hoje.

Quando se decide pela celebração de um contrato preliminar impróprio, busca-se, sobretudo postergar a produção dos efeitos do contrato principal pretendido para um momento futuro, em regra após o cumprimento, pelas partes, dos deveres contratuais que a eles incumbem. A concretização no negócio definitivo constitui ato devido em que apenas ratificam os direitos e obrigações assumidos no contrato preliminar, sendo-lhe defeso exigir a modificação do conteúdo contratual preestabelecido, sob o argumento de lhe ser economicamente desvantajoso.47

O adquirente do seu primeiro imóvel, invariavelmente na planta, já faz

planos, especialmente de ordem financeira, com o fito de dar cumprimento ao

contrato. Por seu turno, o incorporador ou o construtor celebram o

compromisso contando com a certeza dessa operação de venda.

Diante desses atributos especiais, tem-se que o conceito de compromisso de compra lastreado no tradicional conceito de contrato preliminar não atende às peculiaridades realísticas ínsitas a essa modalidade contratual. É difícil conceber que as partes, após terem acertado exaustivamente os requisitos do contrato de compra e venda por meio da fixação do objeto, preço, forma de pagamento, índices de reajuste e a transferência imediata da posse, pretendam após sua conclusão a celebração de novo negócio jurídico destinado à efetivação da compra e venda. O que elas buscam, desde o primeiro contrato, é a transferência da propriedade, que só não se opera imediatamente por conveniência das partes, em especial da necessidade de quitação integral do preço pactuado.48

Daí porque o conceito tradicional de “compromisso”, contrato de

confirmação posterior ou de cumprimento condicional está em desuso. Os

modelos atuais, inclusive, cuidam de contemplar em seu teor a expressão

47 ANTONIO JUNIOR, 2009. p. 15. 48 Id. p. 24.

38

“irretratável”, exatamente para dar força à avença que não tem características

tão preliminares.

O sistema notarial deve ser sensível a essa tendência, estabelecendo

juntamente com o Poder Público (Corregedorias de Justiça), veículo específico

para após a quitação do preço previsto no compromisso de compra e venda, a

transmissão da propriedade seja operada com mero registro do pagamento

integral. Hoje, ainda vigora a regra da celebração de uma escritura pública,

onerando as partes, especialmente a aderente, que poderia ter tinha em mãos

um documento hábil para a transmissão do domínio.

2.3. Casa própria: a proteção constitucional do lar

A expressão moradia, mais que o objetivo almejado com um

compromisso de compra e venda, apresenta-se como fator de preocupação

pelo Estado. A popularização do seu acesso, as taxas de juros praticadas e

especialmente, as suas crises, influenciam de modo significativo à economia.

É ilustrativo da importância da moradia e da correspondente articulação do mercado imobiliário e seus efeitos na estrutura social a recente crise econômico-financeira instalada no mundo em 2008, que teve origem na acumulação de capital na cidade, mediante a valorização de títulos no mercado derivados de hipotecas e de financiamentos imobiliários.49

Essa cautela, todavia, não toca apenas o sentido amplo da economia.

Cada pessoa que arrisca adquirir um imóvel pelos mecanismos de pagamento

de longo prazo deve ter proteção especial, notadamente dentro das

disposições consagradas pela repersonalização do Direito Civil.

49 OLIVEIRA, Francisco Cardozo. Direito à cidade: moradia, atividade empresarial e sustentabilidade. In: Revista Jurídica Unicuritiba. v. 23, n. 7. 2009. p. 136. Disponível em http://revista.unicuritiba.edu.br/index.php/RevJur/issue/view/25. Acesso em 22 jan. 15.

39

No portal dessa reflexão vem a pessoa. Pensar a pessoa no Direito Civil contemporâneo é remeter-se necessariamente à transmutação que esse termo substitutivo sofreu ao longo do tempo, inserido em estruturas filosóficas que se conceituaram e delimitam seu sentido.50

Isso porque o patrimônio não encerra mais o significado restrito de

propriedade ou posse de um bem. A boa doutrina defende que uma base

mínima patrimonial está ligada à própria personalidade do sujeito.

Se, de um lado, o patrimônio não seria uma unidade abstrata, de outro, essa mirada mantém a ideia de unidade com o fundamento de que o patrimônio seria uma decorrência da personalidade, vinculado ao indivíduo. Todo o indivíduo teria um patrimônio uno e indivisível, Tal unidade, porém, não constituiria universalidade abstrata, separada das pessoas e dos elementos (relações jurídicas) que a compõem.51

Tal tutela é perfeitamente compatível com o imóvel adquirido por meio

do compromisso particular de compra e venda. Essa relação travada entre

compromissário-comprador e promitente-vendedor deve respeitar essa

característica, notadamente quando o objeto contratado destina-se à moradia,

uma das facetas desse patrimônio básico de todo o ser humano.

Essa vivência valorativa, para o autor, conduz à paz, que permite oflorescimento da fraternidade e do amor. O projeto existencial do homem só é possível se os demais homens livres estiverem dispostos a cooperar solidariamente em sua realização. A pessoa, e não o patrimônio é o centro do sistema jurídico, de modo que se possibilite a mais ampla tutela da pessoa, em uma perspectiva solidarista que se afasta do individualismo que condena o homem à abstração. 52

Assim, o ato de firmar compromisso de compra e venda de imóvel,

quando a destinação é moradia, liga-se a esse conceito de patrimônio mínimo.

Devem-se atentar às possibilidades de manutenção do contrato, atuando o

50 FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 33. 51 Id. p. 40. 52 FACHIN, 2006. p. 48.

40

Estado, por meio do Poder Judiciário, em situações que envolvam indevida

expropriação ou então rescisão unilateral e abusiva desse instrumento.

Essa proteção constitucional da casa, como consequência do

compromisso de compra e venda não deve ser escopo apenas da tutela

judicial. Os demais poderes precisam participar desse espírito de dignificação

da casa, incentivando às políticas públicas necessárias para esse acesso.

No Brasil, ao longo das últimas décadas, não houve formulação de política habitacional consistente. A intervenção do Estado no espaço urbano não teve preocupação definida em torno do acesso à moradia, especialmente para as pessoas de baixa renda; os recursos para financiamento da construção civil se destinam, na maior parte, à produção de bens imóveis destinados a pessoas de renda média.53

É o que empresariado sozinho tem ação restrita. A proteção da

expressão casa como integrante desse patrimônio mínimo deve contar com o

auxílio do Estado por meio das suas políticas publicas.

O mercado imobiliário sem políticas publicas consistentes, não resolve o problema social da moradia. O atendimento das necessidades de habitação depende da ação do Estado no incremento da produção de moradias em quantidade suficiente que permita atender a demanda a preços compatíveis com a renda dos potenciais adquirentes.54

Isso porque a indústria da construção civil trabalha com cifras elevadas

e de retorno muito específico. Diversamente aos bens não duráveis, que

podem transitar após a sua produção, inclusive além-fronteiras, com os

imóveis, os fatores decorrentes da não procura, especialmente o estoque,

influenciam no desestímulo do seguimento da atividade.

53 OLIVEIRA, 2009, p. 142. Direito à cidade... 54 OLIVEIRA, 2006, p. 262. Hermenêutica e tutela...

41

Em relação à oferta, o alto custo para o fornecimento do produto resulta em dificuldades para que os agentes, isoladamente, detenham fundos para a realização dos empreendimentos, necessitando socorrer, em sentido similar aos consumidores, de financiamentos. (...) A durabilidade do bem imóvel provoca a existência de estoques no mercado, proporcionando, até certo ponto, uma desvinculação do transito desses bens em relação à construção de novas habitações.55

Mais que o freio da atividade de construção e incorporação, corretoras

de imóveis, despachantes, pedreiros, moveleiros e o mercado de crédito são

influenciados pelo desaquecimento da atividade imobiliária.

Partindo dessas constatações e adotando um enfoque macroeconômico, pode-se identificar uma significativa interação e interdependência deste mercado com outros mercados, como, por exemplo, com o mercado financeiro e o mercado de serviços de habitação, até mesmo pelas características da oferta e demanda no mercado habitacional.56

Assim, incontroverso o papel do Poder Público, por meio dos Poderes

Executivo e Legislativo no incentivo e no controle do setor habitacional. Esses

fatores tiveram importante consideração a partir do ano de 2.009.

Com a promulgação da Lei 11.977/2009 estabeleceu-se o “Programa

Minha Casa Minha Vida”, importante política habitacional e marco da nova

ação federal nessa área. Com ele o Estado passou a participar com crédito

direto para as famílias urbanas com renda mensal de até R$1.600,00, pelo

prazo de 120 meses, sem juros, limitadas à 5% da renda familiar mensal.

(Registre-se que a Lei 4380/64, regente inicial do Sistema Financeiro permitia a

cobrança de juros na ordem de até 10%).

Trata-se de uma correção histórica, longe de fulminar o problema

habitacional brasileiro, mas com resultado que vem a amenizá-lo. Essa mão do

Estado tutela um direito indispensável à condição humana digna, mas relegado

por décadas de forma condizente nas políticas de governo.

55 LEONARDO, Rodrigo Xavier. Redes contratuais no mercado habitacional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 38. 56 Id. p. 38.

42

Não bastasse o estreito vínculo entre o mercado habitacional e o crédito, é incontroverso que uma suposta composição natural entre demanda e oferta de habitação, por si só, não resolve o assustador problema do déficit habitacional no Brasil, que, em 1995, foi estimado em 5,6 milhões de moradias. Vale salientar que não se trata de déficit de uma mercadoria qualquer, facilmente substituível, mas de um bem necessário para a satisfação de uma necessidade fundamental, qual seja, a moradia.57

Diante desse tardio e restrito modo de ação estatal, não resta

alternativa à população em geral, senão lançar-se a esse sonho por meios

próprios, tendo no compromisso particular de compra e venda a segurança

necessária, quer para a consecução do seu objetivo, quer para o exercício dos

direitos inerentes, em caso de inexecução dele.

O acesso à moradia digna passa necessariamente pela questão dos meios de aquisição previstos no direito positivo. Em tempos em que os elevados preços das unidades imobiliárias se contrapõem aos baixos rendimentos de grande parte da população brasileira, o contrato de compra e venda assume enorme importância, por permitir aos menos abastados a compra facilitada do imóvel próprio.58

Não se financia um imóvel por mero deleite. Pelo vulto do objeto,

especialmente nos grandes centros, onde não se encontram imóveis de baixo

custo, as questões alusivas ao compromisso de compra e venda, precisam de

especial tratamento.

Veja-se, por exemplo, o valor do metro quadrado de apartamentos na

cidade de Curitiba, que conforme dados obtidos em pesquisa pela Ademi-

PR.59. Segundo o levantamento, o valor médio do quadro na capital do Paraná

é R$5.991,58, havendo imóveis como tipologia de 02 a 03 quartos, com preço

médio de R$5.526,00. Dessa exposição, percebe-se que apartamentos com

metragem muito pequena, com o padrão de 40 m², tem seu preço

57 LEONARDO, 2003. p. 41. 58 ANTONIO JUNIOR, 2009. p. 4. 59 ADEMI – PR. Preço dos imóveis novos segue em estabilização em Curitiba, com variação acumulada de 5,5% até julho. Disponível em http://www.ademipr.com.br/news_det.php?cod=823. Acesso em 09 fev. 2015.

43

ultrapassando R$200.000,00, cifra inatingível pelas vias normais, mas plausível

dentro da contratação via instrumento particular de compra e venda.

Não bastasse o custo do imóvel, a operação imobiliária é

extremamente onerosa, sendo os impostos e custas cartorárias, outro motivo

para o emprego do meio do binômio tradicional propriedade-escritura cada vez

mais ser protelada.

Como o alargamento das periferias e a proliferação dos loteamentos e incorporações imobiliárias, muitos se valem do compromisso de compra e venda para, no futuro, tornarem-se proprietários de um bem imóvel. A incapacidade orçamentária para pagamento do preço a vista, das despesas para lavratura da escritura definitiva de compra e venda e do seu registro obriga muitos adquirentes a optarem por essa modalidade contratual. Há também aqueles que, apesar de ter disponibilidade financeira para pagar o preço a vista, preferem o parcelamento pela via do compromisso de compra e venda e empregar seu capital em outros investimentos, dentre inúmeras hipóteses.60

A assinatura e a vinculação a um compromisso de compra e venda

pressupõe toda essa gama de interesses. Demonstrada a superação desse

contrato como acessório, (mero compromisso), seria o momento de se

simplificar o modelo colonial de pagamento de custas e taxas, garantindo-se

total efetividade ao que previu o legislador.

Não se busca com isso se defender um “jeitinho” brasileiro de burlar o

fisco e menos ainda os tramites do Registro Público, cuja segurança já foi

enaltecida anteriormente. O anseio, pelo contrário, é promover o registro do

compromisso de compra e venda de simples alerta constante na matrícula,

como forma de transmissão de propriedade, assegurando-se evidentemente a

proteção constitucional da expressão casa.

60 ANTONIO JUNIOR, 2009. p. 4.

44

2.4. A importância da atividade empresarial imobiliária

Para além dessa conotação do compromisso de compra e venda como

forma de alcance a um lar, objeto de proteção constitucional, há outro aspecto

que demanda abordagem: a garantia do exercício da atividade empresarial

imobiliária, dentro da liberdade própria ao regime capitalista.

Os princípios do sistema civil e consumerista e tambm a boa-fé objetiva

deve amparar o acesso do compromissário invariavelmente ao primeiro imóvel,

mas sua banalização, não pode ser extrema ao ponto de prejudicar a atuação

empresária, que também goza da proteção estatal.

É de rigor, portanto, conservar a serenidade e a temperança dos argumentos, de sorte a não incorrer no equívoco de demonizar os valores liberais caros à livre iniciativa, por trazer consigo a grave consequência de desmotivar, ao ponto do insuperável, a atividade empresarial. Nessa linha de compreensão, hostilizar o mercado e a livre iniciativa por razões de natureza ideológica, além de pouco útil à ciência e à sociedade, pode implicar consequências sociais danosas, de desencorajamento do empreendedorismo, tão necessário ao desenvolvimento econômico e aos benefícios que tal desenvolvimento proporciona.61

É um tema relegado das discussões acadêmicas. Ao se estudar a

doutrina alusiva ao tema, muito comuns às referências ao modo como

empresariado trata o aderente e o consumidor, sendo ele um verdadeiro vilão

social e sua organização, um instrumento de demonização.

É rotineira pela doutrina a defesa irrestrita da parte consumidora, sendo

ela o objeto de maior preocupação quando se abordam as práticas civis e

comerciais. Trata-se de algo natural, especialmente pela pouca idade do

Código de Defesa do Consumidor e pelo seu ineditismo no sistema legislativo

brasileiro.

Não se nega e menos ainda, se crítica de modo depreciativo aqueles

que enaltecem os avanços advindos por meio das legislações brasileiras nos

61 GALLI, 2009. p. 83.

45

últimos anos. Especialmente o Código de Defesa do Consumidor trouxe

avanços para o mercado de consumo brasileiro, mas, também em

contrapartida, implicou no aumento do custo empresarial e certamente do

produto final.

As obrigações impostas pelo Código de Defesa do Consumidor ao fornecedor são, indiretamente, suportadas pela coletividade dos consumidores, através de mecanismo de socialização de perdas desenvolvido na moderna economia capitalista. O empresário repassa o custo da melhoria de qualidade do fornecimento (ou da constituição de reserva de contingência ou do pagamento de prêmio de seguro), ao preço dos produtos ou serviços oferecidos ao mercado consumidor.62

Ainda que o fomento estatal possa colaborar com a atividade da

construção civil, não se pode obrigar o empresário a nele atuar. É própria do

regime capitalista a liberdade de exercício da atividade econômica, e se as

condições não contribuírem para tanto, há uma mitigação de atuação em

setores específicos.

De outro prisma, o empresariado tende a alocar seus investimentos e suas atividades guiados pelo norte de melhor rentabilidade. É natural e legítimo que seja assim. No mercado imobiliário a indústria da construção atua livremente, construindo empreendimentos comerciais ou residenciais; nos empreendimentos residenciais, escolhe livremente direcionar seus recursos e ações a público consumidor de classe alta, média, popular, guiados exclusivamente pela bússola econômica, ou seja, pelos melhores resultados econômicos.63

A chave então para o atingimento dos fins buscados com o

compromisso de compra e venda de imóvel em compasso com a atividade

empresarial é o equilíbrio.

O mercado, nele se compreendendo obviamente o contrato, é

passível de intervenção, dentro dos novos contornos do Código Civil.

62 COELHO, Fabio Ulhoa. O empresário e os direitos consumidor: o cálculo empresarial na interpretação do Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 35. 63 GALLI, 2009. p. 54.

46

Entretanto, essa atuação não pode ser extrema, ao ponto de desprestigiar a

autonomia de vontade e a segurança do empresariado que se vincula a outro

contratante.

O legislador constituinte idealizou um equilíbrio de forças, entre livre iniciativa e função social da atividade econômica, denotando sua disposição em regular o mercado para que o exercício empresarial seja proveitoso à sociedade, e não apenas ao mercado empresário, porém sem renunciar à essência democrática e ao sistema econômico capitalista.64

Isso porque o Estado sozinho não atendeu e jamais cuidará de todos

os anseios humanos. Desde a quebra da URSS, à guinada do modelo chinês

para uma economia capitalista e até a recente reaproximação de Cuba dos

EUA, percebe-se a impossibilidade de o Estado tudo prover. Resta então ao

empresariado ser fonte de desenvolvimento e progresso, obviamente, obtendo

lucro com isso.

Essa crescente preocupação dos Estados com a manutenção da sociedade empresarial revela a importância de que se reveste o instituto em muitos ordenamentos jurídicos contemporâneos. Mesmo tendo se afastado da concepção original de desenvolvimento de atividades e empreendimentos de interesse eminentemente público, a figura da sociedade empresarial continua sendo vista como fundamental pelo Direito, seja em razão de sua importância para a economia, seja em função de sua capacidade de financiar atividades e gerar progresso que o Estado, sozinho, não seria capaz de gerar.65

Portanto, a proteção constitucional da casa prevista no artigo 5º da

Constituição Federal, encontra elemento oposto no artigo 170, estabelecendo

tutela ao modelo capitalista, empresário e especialmente, de agasalho às

empresas brasileiras e de pequeno porte.

64 GALLI, 2009. p. 14. 65 BARATA, Pedro Paulo Barradas. A Desconsideração da Personalidade Jurídica nas Relações de Consumo. Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo. 2009. p. 31.

47

Ademais, o mesmo direito de propriedade privada também foi elencado como princípio geral da atividade econômica, em conjunto com termos bastante sugestivos: livre iniciativa, livre concorrência e tratamento favorecido a empresas de pequeno porte, constituída sob as leis brasileiras e que tenham sede sua sede e administração no País, conforme se vê do artigo 170 da Carta Maior. E mais: a livre iniciativa é um dos princípios fundamentais da República Federativa do Brasil.66

Não há então razão para as interpretações derivadas da boa-fé objetiva

serem palco para a demonização das empresas, notadamente do setor de

construção e incorporação imobiliária. A par de toda a tutela protetiva civilística

e consumerista, ainda existe espaço para a prevalência da autonomia da

vontade exercida por meio dos contratos.

Com o advento do modo de produção capitalista, o contrato passou a ser um instrumento privilegiado desta nova ordem econômica. Em tempos de ideário político alicerçado na igualdade de todos os homens, (um dos postulados máximos da Revolução Francesa) e de concepção econômica baseada na doutrina do laissez-faire, laissez-passer, o contrato serviu com exatidão aos interesses do desenvolvimento da doutrina liberal burguesa. E para tanto, o Direito dos Contratos passou a ser conformado por dois princípios básicos, que condensavam juridicamente todas as ideias sociais, políticas e econômicas de então: a liberdade de contratar e a igualdade dos contratantes. 67

Essa autonomia privada é essencial ao exercício das atividades

empresariais. Mais que isso, pressupõe faceta da liberdade individual da

pessoa, pois celebrar negócios em prol de um objetivo faz parte dessa parcela

de autonomia.

Todos os atos e negócios desenvolvidos pelos operadores do direito, no prisma de suas individualidades em relação a outrem, conhecido ou não o declaratório, decorre da autorização concedida pelo Estado para a consecução de tais movimentos do sujeito e a perseguição

66 PASSARELLI, 2009. p. 268. 67 SELEME, Sergio. Contrato e empresa: notas mínimas a partir da obra de Enzo Roppo. In: FACHIN, Luiz Edson. Repensando fundamentos do direito civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. p. 260.

48

dos efeitos jurídicos almejados. Assim, no plano da moldura legal estabelecida, operam os sujeitos mediante exercício de certa autonomia privada.68

Essa disciplina, em especial, é pertinente para se defender a

padronização praticada pelas empresas consistente na adoção de contrato de

adesão. Tal prática, por si só, não pode representar a nulidade de pleno direito

do artigo 51 do Código de Defesa do Consumidor, até porque o conceito

clássico de contrato, consistente em alongada discussão de cláusulas e seus

efeitos, seria incompatível com a dinâmica do mercado imobiliário.

Tem-se reconhecido, que as estandardizações negociais feitas por empresas voltadas ao grande público correspondem, inúmeras vezes, a uma racionalização e normalização necessária ou útil, inclusive para os aderentes singulares; do contrário adviriam restrições, despesas e encargos irrazoáveis ou abusivos para os particulares.69

Esse veículo então, mas que a crítica da doutrina consumerista,

precisa de reconhecimento. Aderir visando à aquisição de um bem,

especialmente um imóvel é uma característica própria dos contratos da

modernidade, sendo esse dinamismo fator de repercussão favorável na

atividade empresarial de construção e incorporação.

Inserido, pois, nas relações de consumo, estão os denominados contratos de adesão, com as cláusulas contratuais gerais, característicos de uma nova forma de contratar em uma sociedade de massas, com multiplicidades de negócios jurídicos e de exigências de racionalidade de tempo e de trabalho, em que se procura mais e melhores resultados, com menor emprego de tempo e de esforço físico e intelectual.70

Como antes se defendeu, é preciso um novo pensamento do ato de

contratar, mesmo nas avenças por adesão. A revisão de suas disposições deve

68 NALIN, Paulo Roberto Ribeiro (Coord). Contrato e Sociedade: princípios de direito contratual. Curitiba: Juruá, 2006. p. 29. 69 RÊGO, 2009. p. 52. 70 RÊGO, 2009. p. 51.

49

existir, até porque essa operação faz parte da atividade jurisdicional de modo

inafastável (artigo 5º, XXXV, CF). O que deve ser evitado é a banalização da

correção dos seus conteúdos, tão somente pelas diferenças econômicas entre

as partes.

Acentua-se, de um lado, a necessidade de tais contratos, como meio de assegurar a eficiência e rentabilidade da ação empresarial, e, de outro lado, a indispensabilidade de garantir-se a proteção à parte mais fraca. Prensado por tais exigências, decorrente da própria evolução da sociedade neocapitalista (neo-liberal), o contrato de adesão modificou-se no correr do tempo, passando de uma forma por assim dizer “selvagem” a uma configuração civilizada, decorrente da atuação do poder econômico privado71

Esse enxergar do contrato, especialmente do compromisso de compra

e venda de imóvel, também sob o viés empresarial e pautado na autonomia de

vontade, desemboca na necessidade de segurança as relações jurídicas e a

própria concretização do negócio imobiliário.

Mecanismos contratuais demasiadamente brandos repercutem em

atraso, mora, rescisões e até inexecução, judicializando o que na celebração

no negócio até representava a perspectiva de se atingir um “sonho” com a

aquisição do imóvel.

Do ponto de vista prático, os efeitos da crise econômica na execução dos contratos poderiam ser resumidos em uma palavra: a inexecução. A rigor, os grandes escritórios de advocacia que, em tempos de estabilidade, constituem verdadeiras “maternidades”, a julgar pelo numero de empresas e negócios ali gerados a cada dia, transformam-se de uma hora para outra, em face das crises econômicas, em ambientes semelhantes aos dramáticos centros de tratamento intensivo, os “CTI”, absorvidos por patologias crônicas e incuráveis, as mais das vezes relacionadas com a inexecução contratual. Daí a enorme insegurança para o sistema de crédito e para as relações contratuais. 72

71 LEOPOLDINO DA FONSECA, João Bosco. Cláusulas abusivas nos contratos. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 32. 72 TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 74.

50

Conclui-se que o sistema contratual concernente ao compromisso de

compra e venda, pressupõe também o interesse empresarial. A incidência do

princípio da boa-fé objetiva precisa ser razoável ao ponto de não inviabilizar os

mecanismos de proteção ao contratado.

A rigor, não seria exagero dizer que toda a disciplina do direito privado se estrutura para debelar dois riscos: o da insolvência e do inadimplemento. Não haveria sistema de trocas e relações comerciais se tais perigos não fossem minimizados pela ordem jurídica que, por isso mesmo, procura estabelecer mecanismos de proteção do crédito e dos contratantes. Contra o risco da insolvência tem-se o sistema de garantias, fidejussórias e reais. Já para fazer face ao eventual inadimplemento, estabelecem-se as cláusulas penais, moratória e compensatória, visando a dissuadir o contratante faltoso.73

Disso a necessidade de temperar toda a doutrina protecionista do

Código de Defesa do Consumidor tão defendida pela doutrina clássica. As

abusividades certamente serão praticadas pelo empresariado, sendo isso

objeto de tutela e proteção jurisdicional, mas, tal situação, todavia, não pode

nulificar os contratos ao ponto de não permitir o seu cumprimento.

Não é a mera condição de consumidor suficiente para a compreensão

do compromisso de compra e venda como inexequível e revisável por mero

anseio, especialmente à luz da boa-fé objetiva. Sua incidência pauta-se no

equilíbrio acima pregado, também amparando a ordem econômica.

A boa-fé é, sem dúvida alguma, um conceito ético, porém se liga igualmente à finalidade econômica do contrato. Embora identificada com o ideal de justiça contratual, no sentido de busca do equilíbrio das prestações, a boa-fé não se presta unicamente à defesa do contratante hipossuficiente, atuando como fundamento para orientar interpretação garantidora da ordem econômica.74

73 TEPEDINO, 2001. p. 74. 74 CARPENA, Heloísa. Abuso do direito nos contratos de consumo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 74.

51

Parte desse crivo judicial não pode deixar de vislumbrar a natureza do

objeto contratado, especialmente a modalidade do empreendimento. Como

bem assevera a doutrina, é preciso atentar para situações que levem ao

superendividamento, além da prática desmedida de especulação imobiliária,

notadamente no meio urbano.

Assim, uma política habitacional que tenha por eixo principal incentivar investimentos e produção no mercado imobiliário pode se revelar benéfica para o conjunto da sociedade até o ponto em que não conduza a especulação e ao superendividamento; essa advertência se torna mais relevante se considerados os limites de renda e a precarização do trabalho a que estão sujeitos no Brasil justamente as pessoas que mais necessitamde acesso ao direito à moradia.75

Um elemento relevante ao ponto de permitir esse reequilíbrio da

relação decorrente da compra de imóvel é o princípio da boa-fé objetiva. Sem a

carga ideológica do CDC, que acena à proteção do aderente de forma

invariavelmente desmedida, esse vetor pode ser objeto de fundamentação ou

de complementação de decisões resolvendo questões relativas à temática.

Mais que lealdade, probidade, transparência e seus consectários

decorrentes, a boa-fé objetiva também encerra outros sub-conceitos,

consagrados há longa data, passíveis de compatibilização com o compromisso

de compra e venda e as embates decorrentes do seu cumprimento. É que será

abordado adiante.

75 OLIVEIRA, 2009. p. 144. Direito à cidade...

52

3. BOA-FÉ OBJETIVA

3.1. Da transição do patrimonialismo a um modelo pautado na eticidade e

na boa-fé.

A consagração de um modelo civilístico pautado na boa-fé objetiva

pode ser aferida do cotejo entre a redação do antigo Código e o que

estabeleceu o Código de 2002. Há uma transição da plena liberdade contratual,

advinda do brocardo “pacta sunt servanda”, para uma liberdade exercida com

ressalvas, considerando valores como a socialidade, probidade e a referida

boa-fé.

A redação do antigo Código era herança da Era Napoleônica, com

abertura às partes para contratarem da forma que melhor lhes aprouvesse. Era

uma resposta ao “Ancien Regime”, que centralizava na figura do Estado a

economia, limitando a atuação dos particulares.

O Código Civil de 1916, seguindo o modelo proposto pelo Código Napoleônico, era impregnado de uma ideologia liberal, na qual o Estado não intervinha nas relações particulares. Desta forma, os negócios jurídicos firmados sob a sua égide eram fortemente influenciados pelo dogma da vontade, concebendo-se os contratos como se fizessem “lei entre as partes”, o que impedia a sua revisão na hipótese de desequilíbrio nas prestações. As duas grandes guerras mundiais trouxeram a necessidade de maior proteção à dignidade da pessoa humana, a busca pela ética e pelo solidarismo. Com isso, o Estado, paulatinamente, passou a intervir nas relações privadas em busca da igualdade e da solidariedade; o social passou a prevalecer sobre o individual.76

Havia uma ansiedade por recuperar o tempo perdido. Séculos de

centralização das atividades nas mãos do Estado precisavam ser superados.

Esse Estado agora seria mínimo, suplementar, restrito a apenas garantir a

atuação dos particulares, especialmente em áreas como a segurança pública.

76 LEITE, Ana Paula Parra. Equilíbrio Contratual. Tese de Doutorado. Professor Orientador Doutor Claudio Luiz Bueno de Godoy. Faculdade de Direito do Largo do São Francisco. USP. São Paulo: 2013. p. 11.

53

A liberdade pessoal, que compreende o poder de dispor da propriedade, de comerciar e produzir, de contratar e contestar, assume o primeiro papel, dogma de direito natural ou da soberania popular, reduzindo o aparelhamento estatal a um mecanismo de garantia do indivíduo.77

O escopo almejado era a segurança jurídica. A atividade mercantil e a

circulação de riquezas não poderiam se vincular aos desmandos do Estado. A

ascendente classe comerciante precisava de agasalho condizente com o

mundo econômico que pretendia construir.

O surgimento do Estado moderno, ao unificar o poder político fragmentado, vai possibilitar a supremacia de uma ordem jurídica pretensamente neutra, dar condições à sistematização do direito e permitir o aperfeiçoamento da ideia de direitos subjetivos. A ascensão da burguesia com sua ideologia própria converge, igualmente, para a formação de um direito baseado na lei e em conceitos abstratos: sua atividade mercantil competitiva vai ser incrementada por uma visão individualista da sociedade, a cujos membros são atribuídos direitos subjetivos, devidamente assegurados por uma ordem jurídica que garanta a certeza e a estabilidade imprescindíveis para a racionalidade econômica.78

Essa raiz francesa era incompatível com o modelo vivido após os

conflitos mundiais. Não havia mais justificativa para tanta liberdade individual,

ao ponto de o legislador abster-se de atuar nas relações jurídicas travadas em

sociedade.

O direito liberal imaginava que, para garantir a liberdade dos homens, deveria interferir o mínimo possível na esfera dos particulares. Sustentava-se, nessa época, a ideia da igualdade (formal) de todos perante a lei, proibindo-se o legislador de estabelecer tratamento diversificado às diferentes posições sociais.79

77FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 3 ed., São Paulo: Globo, 2001, p. 820. 78 JUNIOR, 2002. p. 21. 79 MARINONI. Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. 2 ed. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 45.

54

Porém, a liberdade absoluta não era para todos. Com exceção dos

Estados e dos grandes comerciantes que negociavam em pé de igualdade,

quase não havia garantia aos demais contratantes, até porque, oriundos de

uma camada social menos privilegiada, não detinham condições para

compreender as relações privadas a que se submetiam.

O Código Civil de 1916 surgiu com o mesmo ideal de outras grandes codificações, como a já referida codificação francesa e a alemã (que é do ano de 1900). Com o passar do tempo, observou-se que esse modelo não intervencionista, com a liberdade irrestrita de contratar, acabava por acarretar o extremo oposto: a ausência de liberdade. Isso porque, por aumentar ainda mais as desigualdades e, consequentemente, acarretar a prevalência do mais forte sobre o fraco, de forma a tolher a liberdade deste.80

Os tempos, entretanto, mudaram. Com a libertação dos escravos, a

chegada dos imigrantes e especialmente a urbanização/industrialização do

Brasil, novos interesses careciam de tutela, sendo a classe trabalhadora o

exemplo mais pertinente.

Como as normas têm finalidades econômicas sociais precisas e respondem a um esquema distributivo, o sistema clássico sofre uma fissura. No direito do trabalho aparece o desempregado como novo sujeito (com direito, por exemplo, ao seguro-desemprego e à oferta de trabalho); o direito processual começa a preocupar-se com o problema do acesso a justiça, mediante a superação de obstáculos econômicos, organizativos e processuais.81

O processo de intervenção foi gradativo e o exemplo brasileiro é o mais

pertinente para essa ilustração. Pela CLT, editada em 1943, o Estado interviu

nas relações trabalhistas. No âmbito civil, precisamente em se tratando de

imóveis urbanos, novamente necessária referência ao Decreto Lei 58/37.

80 LEITE, 2013. p. 14. 81 JUNIOR, 2002. p. 156.

55

Contudo, os Estados foram levados a intervir, limitando a autonomia formal, de modo a orientar, em termos materiais, o conteúdo dos contratos a celebrar e a contrabalançar o poderio de uma das partese a coligação dos contratantes fragilizados, no que resultou, e um primeiro momento, no aparecimento dessas intervenções no âmbito das relações trabalhistas, sendo seguida por intervenções no âmbito das relações trabalhistas, sendo seguida por intervenções nas relações locatícias e urbanísticas e, posteriormente, nas relações de consumo.82

Imperioso registrar que o emprego dos princípios no corpo das

legislações ocorria de modo muito discreto. Um dos exemplos mais pertinentes

era do Código Comercial, editado ainda em 1850, que já contemplava a boa-fé.

A inclusão destas cláusulas gerais em nosso ordenamento jurídico civil legislado criou, como consequência, uma regra de direito Judicial, reguladores da atividade do juiz, que passa a ter o dever de atuar com a cláusula geral assim como acima explicitado, de modo a torna-la operativa e realmente útil. Do contrário, corremos o risco de transformar tais cláusulas em letra morta, como aconteceu ao artigo 131, inciso I, do Código Comercial, que desde 1850 está no nosso Direito Comercial e até hoje não foi devidamente utilizado.83

Esse sistema foi trazido até a década de 80, quando especialmente em

razão da vigência da nova Constituição Federal, percebeu-se que critérios

como a pura autonomia deveriam evoluir, acompanhando-se as mudanças do

mundo vividas décadas atrás.

Com o surgimento do Estado Social, em detrimento do Estado Liberal, o conceito de boa-fé nas relações negociais sofreu modificações, passando de subjetiva para objetiva, trazendo em seu conceito toda carga de solidariedade, de cooperação, de justiça e de eticidade.84

Logo, ficou inescusável ao legislador ignorar essa principiologia de ética,

transparência e lisura, ao ponto dele positivar o vetor da boa-fé objetiva no

82 RÊGO, 2009. p. 48. 83 AGUIAR JR, Rui Rosado de. Cláusulas abusivas no Código do Consumidor. In: A proteção do consumidor no Brasil e no Mercosul. Cláudia Lima Marques Coord. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 1994. p. 20. 84 LEITE, 2013. p. 24.

56

Código Civil. Esse princípio, por sinal, guarda carga histórica elevada, o que

certamente influenciou na sua escolha pelo legislador.

Surgia um novo tempo, onde além da prevalência dos vetores, ficou

evidente a preocupação do novo Código com o respeito ao indivíduo, sendo ele

o principal protagonista de um verdadeiro “novo regime”. Propriedade, contrato,

família e suas características patrimonialistas, passaram a conviver com novas

ideias.

Nesse contexto, reside uma das nuanças da repersonalização do Direito Civil: o Código Civil serve ao indivíduo; não, contudo ao individualismo, para simbolicamente identificar estes novos sujeitos, engajados com o espírito coletivo quando do exercício de prerrogativas e direitos individuais, o que pouco ou nada tem em comum com o indivíduo, na sua dimensão egoística, contemplado pela revogada codificação civil.85

A boa-fé objetiva faz parte desse novo momento. Positivada no

sistema, mais que uma referência de interpretação, o princípio carrega

importante carga histórica.

3.2. O andar histórico da boa-fé objetiva

O vetor em estudo remonta ao período romano, tendo referência inicial

na expressão fides, sendo ela de três ordens: “Os elementos históricos

conhecidos dão conta da fides primitiva, prismas semânticos diversificados.

Refiram-se três: a fides-sacra, a fides-facto e a fides-ética”.86

Posteriormente, a expressão fides perdeu força, pois tratada de modo

isolado, pouco representava na interpretação das relações. Menezes Cordeiro

85 NALIN, p, 2006. p. 23. Contrato e Sociedade ... 86 MENEZES CORDEIRO, Antonio Manuel da Rocha e. A boa-fé no direito civil. Reimpressão. Coimbra: Livraria Almedina, 1997. p 54

57

revela a existência de situações contraditórias envolvendo o instituto, ao ponto

de sua banalização.

A fides perde força significativa. A sua utilização a isso conduz. A sua presença em situações diversas e, até, contraditórias, prova-o. Tal ocorrência – qualquer texto o atesta – revela-se, nomeadamente em que não é possível, em face do vocábulo “fides”, isolado, concluir qualquer significado: apenas em contexto ganha um sentido expressivo.87

O acréscimo do sufixo “bona” à ideia de “fides” deu força ao instituto.

Segundo Judith Martins-Costa, foi um traço revolucionário nas relações dos

romanos, como abandono ao formalismo de outrora.

A razão de a fides bona nascer e se desenvolver neste específico campo precisa ser melhor explicitada. Parece ser, com efeito, um paradoxo o fato de, nos negócios mais relevantes do ponto de vista da prática cotidiana, como a compra e venda, a locação e o contrato de sociedade, e também o mandato, ser o direito romano marcado por traço polarmente oposto ao seu essencial formalismo. A experiência romana antiga define-se essencialmente pelo formalismo porque é ainda “primitiva”, isto é, fundada no mundo mágico, ou semimágico da forma.88

Adiante ela explica que esse acréscimo não foi legislativo, mas

decorrente da experiência mercantil dos romanos pelo Mar Mediterrâneo. Mais

uma prova histórica da incidência do Direito Natural, atuando em prol da

flexibilização das normas.

Mais tarde, no Direito Canônico era expressiva a presença de

princípios, não podendo ser diferente com o da boa-fé. Ele foi inserido no

contexto da religião católica como preceito, a exemplo do respeito aos

contratos e a propriedade privada.

87 MENEZES CORDEIRO, 1997. p. 69. 88MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé objetiva no direito privado. 1ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 75

58

Conceitos como a propriedade ou o contrato obrigam não apenas por terem como subjacentes, certas sanções profanas, mas, sobretudo, por se situarem numa escala que traduz à concretização da Lei de Deus. Valem. A boa fé, que de conceito técnico-jurídico evoluíra, no Direito romano, para um lugar-comum retórico, não escaparia a esse movimento. Dentro do Direito canônico, ganhou uma dimensão axiológica, a entender dentro do espirito do pensamento cristão.89

A conotação desse princípio era muito evidente sob a esfera subjetiva,

onde possuir boa-fé ligava-se a uma convicção pessoal, num valor axiológico

de consciência de estar agindo corretamente.

... torna-se estado de ciência individual, requerendo não apenas a mera ignorância, como no direito romano, mas a consciência íntima e subjetiva da ausência de pecado, isto é, de se estar agindo corretamente, de não estar lesando regra jurídica ou direito de outrem...

A força normativa dos princípios também era observada na Idade

Média. Os sistemas jurídicos da época eram pautados em duas esferas: uma

com característica mais flexível e outra, supletiva, tratando de situações

especiais, mas atuando em sinergia.

O jurista da Idade Média não operava sobre um sistema, mas sobre um conjunto de ordens jurídicas entre si distintas. É possível configurar a relação entre o jus commune e os vários conjuntos, representados pelos direitos de origem consuetudinária, e os iura própria, como a representação das relações entre dois grandes grupos: o primeiro deles, o jus commune, com um grande e aberto molde comum, que atua, no mais das vezes, de forma secundária ou supletiva, e o segundo, formado por variados “micro-conjuntos”, também entre si distintos, ocorrendo entre todos, dialética inter-relação.90

No direito germânico, adepto à matiz positivista, a boa-fé ganhou

previsão normativa, certamente para que não pairasse dúvida da sua

89 MENEZES CORDEIRO, 1997. p. 159 90 MARTINS-COSTA, 2000. p. 73.

59

existência. Era influência de novas tendências culturais, impondo tempero a um

rígido sistema de normas.

A boa-fé emerge do Direito Civil alemão como produto das influências jusculturais dominantes na sua elaboração. No que respeita à boa-fé objectiva, separada rigidamente da subjectiva através de designação própria, para além do substracto cultural ingénuo-antiquario – que, pelos hábitos de linguagem criados, provou, assim, a sua não inoquidade – representado pelas menções persistentes aos bonaefideiiudicia, nota-se o influxo do jusracionalismo liberal, com a sua boa-fé nos contratos.91

Na França a situação não foi diferente. De raiz semelhante ao sistema

germânico, o francês também dependia de normas para a resolução dos casos

concretos, dentro de um espírito de respeito às relações privadas.

No século XVIII, a Europa vivia um clima propício à necessidade de segurança jurídica. Na França desse período, as estruturas sociais e econômicas estavam em evolução extremamente rápida, mas não ocorrera, ainda, a passagem do tipo “antigo” ao futuro tipo de sociedade burguesa. Esta só se instaurará definitivamente no século XIX, por volta de 1815, aproximadamente quando, encerradas as guerras napoleônicas, começam a ser enfrentados os problemas do estabelecimento e da preservação da paz – uma paz que será frágil e pouco duradoura.92

Cumpre esclarecer que mesmo nessa necessidade de um sistema

jurídico que assegurasse a liberdade contratual e a autonomia da vontade, o

princípio da boa-fé não foi esquecido, constando expressamente do Código de

Napoleão em seu artigo 1134. Tal vetor, entretanto, estava ali para ratificar que

os contratos celebrados nas esferas de autonomia privada e liberdade, tinham

na boa-fé um reforço no seu cumprimento.

Firma-se assim a autonomia da vontade como princípio central, verdadeiro eixo do direito contratual e de toda a matéria obrigacional, espraiando-se mesmo sobre a teoria dos atos jurídicos. E é tão forte

91 MENEZES CORDEIRO, 1997. p. 330. 92 MARTINS-COSTA, 2000. p. 179.

60

este princípio que a dicção final do artigo 1134 – “Elas (as convenções) devem ser executadas de boa-fé”- resta ou bem emudecida ou bem perspectivada como fórmula de reforço à obrigatoriedade da convenção livremente pactuada.93

Essa referência foi tímida, sem o condão de influenciar a raiz

patrimonialista que ditava o direito que seria materializado no Código Civil de

1916, que apenas tratou da boa-fé subjetiva em questões possessória e de

família, por exemplo.

Para a organização social do país, a racionalizado dos interesses dos fazendeiros e comerciantes se processou por intermédio dessa classe, que os matizou com os pigmentos dos seus preconceitos. Ajustada, então, material e espiritualmente à situação econômico-social do país, pelo apoio que recebia da burguesia rural e mercantil, transfundiu na ordem jurídica a seiva de sua ilustração, organizando uma legislação inspirada no Direito estrangeiro, que, embora estivesse, por vezes, acima da realidade nacional, correspondia em verdade, aos interesses a cuja guarda e desenvolvimento se devotava.94

De forma discreta, alguns progressos ainda eram sugestionados, até

em compasso com as ideias socialistas, provenientes das constituições alemã

e mexicana, e, ainda, com a criação da Organização Internacional do Trabalho.

Um dos mais gratos exemplos, decorrentes do aumento da malha ferroviária foi

o Decreto 2681/1295, estabelecendo a responsabilidade objetiva em caso de

acidentes dessa ordem. Foi, no entanto, uma manifestação discreta, sem o

poder de influenciar o novo Código.

Verifica-se, pois, que, no período de elaboração do Código Civil, algumas tentativas para introduzir a legislação social foram feitas através de projetos legislativos sobre a matéria de acidentes de trabalho, nos quais perpassa o sopro das novas ideias que

93 MARTINS-COSTA, 2000. p. 204. 94 GOMES, Orlando. Raízes históricas e sociológicas do código civil brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 25. 95 BRASIL. Decreto nº 2681/12. Regula a responsabilidade civil das estradas de ferro. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D2681_1912.htm. Acesso em 17 fev. 15

61

conquistavam terreno nos países mais adiantados da Europa. Mas esse movimento não exerceu qualquer influência no Código Civil que se elaborava simultaneamente. A mentalidade dominante conservava-se fiel ao individualismo jurídico, mais consentâneo, então com o grau de desenvolvimento das forças produtivas do país.96

Assim, chegou-se ao sistema civil desenhado e praticado no país até a

década passada. Salvo razões exceções jurisprudenciais a serem trabalhadas

na sequencia, tinha a boa-fé basicamente um emprego restrito ao direito

possessório, sob a modalidade subjetiva, sem a importância que deveria lhe

ser inerente.

3.3. Um sistema civil aberto.

O agir da boa-fé, segundo Menezes Cordeiro, dá-se inicialmente em

dois campos. Primeiro, na atuação em situações não definidas claramente pelo

legislador, mas que a olho nu encerrem contrariedade ao sistema jurídico.

Também nas hipóteses de transição de costumes e situações sociais novas,

onde na ausência de regras especiais, sirva o vetor como fator de resolução às

questões.

Compreende-se, por isso, que a boa-fé surja, com vigor em zonas não reguladas pelas codificações, por delonga do legislador, comonas condições gerais, ou por impossibilidade técnica ou linguística ou até, por inconveniência, como no abuso do direito. Entende-se, também, o interesse por ela assumido em períodos de alteração radical dos dados sociais e econômicos. O lugar da boa fé na criação e adaptação do Direito, pelas necessidades dogmáticas do sistema, fica assegurado.97

Para além dessas hipóteses, não se pode olvidar da consideração da

boa-fé em situações regidas pelo Código, servindo como vetor de interpretação

96 GOMES, 2006. p. 33. 97 MENEZES CORDEIRO, 1997. p. 46.

62

a institutos nele trazidos. Vale lembrar que nessa exposição, Menezes Cordeiro

trata da boa-fé num conceito que transita por todo o Direito Civil.

As figuras de ponta da civilística estão-lhe associadas: a culpa na formação dos contratos, o abuso do direito, a modificação das obrigações por alteração das circunstâncias e a complexidade do conteúdo obrigacional. Institutos antigos e criações do pensamento jurídico cristão têm-se como referência: a posse, a aquisição de frutos, as benfeitorias e o casamento putativo.98

Com esse mecanismo, o sistema jurídico ganha maleabilidade, pois

age-se dentro das balizas ditadas pelo Código (elementos objetivos, prazos e

sanções), atuando-se com o auxílio de princípios para adequação do caso à

norma.

Quando mais rígidas forem as previsões normativas, mais inflexível será todo o sistema, menor, portanto, será a sua mobilidade. Nesse sentido, não raro o sistema positivado estará em desarmonia com aquilo que pretende disciplinar, tudo isso levando a injustiças e crise social.99

Esse método, todavia, mais que a flexibilização e a garantia de

adequação de um sistema jurídico as situações concretas tem como

característica o reforço do papel do juiz na análise da casuística, sendo ele o

real captador do sentido da boa-fé no caso concreto.

Através da cláusula geral da boa-fé, houve um rompimento com a concepção de que todos os problemas surgidos pudessem encontrar fácil subsunção nas disposições legais contidas no ordenamento jurídico. Atribuem-se ao juiz maiores poderes interpretativos, facilitando que uma mesma previsão legal posse se adaptar às novas realidades sociais.100

98 MENEZES CORDEIRO, 1997. p. 17. 99 CARPENA, 2001. p. 95. 100 LEITE, 2013. p. 25.

63

O fenômeno da judicialização do que expressa o Código não é

exclusividade do princípio da boa-fé objetiva em relação aos contratos. Em

outros institutos do Código, a presença do juiz é indispensável como meio de

compreender o agir das partes, em situações envolvendo situações não

contratuais, como no ato ilícito da responsabilidade aquiliana.

Por tal razão, entende-se que a boa-fé surja, com vigor em zonas não reguladas pelas codificações, por delonga do legislador, como nas condições negociais gerais, ou por impossibilidade técnica ou linguística ou, até, por inconveniência como no abuso de direito.101

Isso porque o Código Civil não consegue trazer toda a informação

pretendida pelo intérprete. As inovações sociais e tecnológicas são tamanhas e

não haveria sistema legislativo apto a revisar ano a ano os avanços sociais,

tipificando a modernidade em novos institutos.

Em primeiro lugar, é relevante compreender a noção do sistema de auto-referência relativa, porque no direito obrigacional, o fluxo social, em especial o que nos interesses econômicos como mola propulsora, não se paralisa com a tipificação em lei, de certos modelos e fattispecies.102

Não há resposta matemática para todas as indagações necessárias à

pacificação dos conflitos, quer no Código Civil, quer mesmo nas legislações

especiais. Lembre-se das questões envolvendo o biodireito, que após o

estabelecimento de consenso pela classe jurídica, tem numa nova descoberta

a necessidade de repensar.

No direito contratual e obrigacional a dificuldade não é diversa. Por

mais que a segurança jurídica reclame a positivação específica de

comportamentos e institutos, sempre haverá margem para conceitos obtidos a

partir do fato social e do caso concreto.

101 RÊGO, 2009. p. 11. 102 MARTINS-COSTA, 2000. p. 29.

64

A par das dificuldades referidas quanto à determinação do conteúdo da boa-fé objetiva, o próprio conceito é dos mais controvertidos dentro do direito privado atual, comportando diversas definições, o que torna ainda mais problemático. Dentre os significados mais comuns relacionamos: correção, fidelidade, coerência, cuidado, cooperação, razoabilidade, justiça, decência, sentido ético comum, solidariedade e lealdade.103

Da exposição da Professora Judith Martins-Costa possível se extrair

que o sistema jurídico civil não é um conjunto de fatos tipificados de forma

estrita numa norma. Há uma flexibilização natural em certos casos,

especialmente em razão desse progresso econômico e social.

Ao Direito Civil, não é lícito estabelecer um novo prazo de prescrição

ou então, fixar um novo direito real de garantia. Todavia, isso não impede que

conceitos e institutos, a exemplo da boa-fé objetiva, transitem pelo sistema.

Se é certo que culpa e boa-fé objetiva podem – e, para muitos, devem – ser compreendidas de forma sistemática, exercendo esta última o papel de fonte criadora de deveres de conduta leal cuja violação implica, em sentido técnico, culpa (desnível de comportamento), para fins de verificação de responsabilidade subjetiva, não é menos verdadeiro que, em um tal sistema, a culpa acaba por desempenhar um papel meramente formal como categoria de enquadramento de atos que atingem valores impostos substancialmente por outra cláusula geral.104

Portanto, não há mais justificativa para a limitação desses conceitos e

institutos em determinados títulos do Código Civil. Não se fala mais num código

com condutas típicas, mas num sistema global de direito.

Nesse tocante, se pode afirmar que o direito civil abandonou o modelo rígido, sistematizado por fórmulas e conceitos fechados, a fim de promover a adoção de um modelo flexibilizado, fundamento em cláusulas gerais, levando-se em consideração questões axiológicas e principiológicas. Dessa maneira, se verifica modernamente que lógica atual que se verifica no Código Civil é daquela permeada por princípios, os quais nos remetem a uma compreensão global do

103 CARPENA, 2001. p. 86. 104 SCHREIBER, Anderson. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil. Da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. São Paulo: Editora Atlas. 5ª Edição. 2013. p. 48.

65

sistema jurídico, o qual passa, por sua vez, a se apresentar de maneira única.105

E esse sistema jurídico globalizado não decorre apenas do Código

Civil. A Carta Magna encontra espaço nos conceitos do Direito Civil

Constitucional, atuando em diversos institutos, tocando ao presente trabalho o

liame entre o objetivo almejado pelo compromisso de compra e venda (casa),

com proteção estabelecida no artigo 5º.

Essas mutações infletem no conceito de sistema jurídico, transformando-o. Esgota-se definitivamente a concepção fechado, posta pela ciência oitocentista após a codificação, desenhando-se um conceito de sistema relativamente aberto, porque na sua origem não estará, de modo exclusive e excludente, a fonte legislativa: ao contrário, o sistema (relativamente) aberto opera a partir da diversidade de fontes de produção jurídica, com acentuado peso à fonte judicial e com forte atenção à pratica da fixação social de tipos e modelos por via costumeira, negocial e jurisprudencial.106

Um dos exemplos mais convincentes dessa compreensão do Direito

Civil, balizada num sistema de normas e não em artigos isolados, foi a

instituição da Sumula 308 pelo STJ.107. Ela estabelece a ineficácia da hipoteca

firmada entre a construtora e o agente financeiro frente aos adquirentes do

imóvel e sua dicção é expressa ao estender a todos a sua eficácia,

independentemente do momento da constituição desse direito real, se antes ou

depois da compra.

Num dos primeiros paradigmas concernentes ao tema (citado pelo STJ

como pioneiro naquela Corte), o Ministro Ruy Rosado de Aguiar registra com

105 MIRANDA, VERÔNICA RODRIGUES DE. A boa-fé objetiva no direito de família. In: Revista dos Tribunais, v. 102, n. 927, janeiro 2013, p. 99/116. p. 103. 106 MARTINS-COSTA, 2000. p. 32. 107 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça.Base de jurisprudência. A hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel. Disponível em https://ww2.stj.jus.br/docs_internet/revista/eletronica/stj-revista-sumulas-2011_24_capSumula308.pdf. Acesso em 04 jan. 2.015

66

propriedade o papel de cada um dos envolvidos numa operação de compra e

venda de imóvel com gravame hipotecário constituído.

Como se percebe no voto, pela solução tradicional balizada no direito

real de hipoteca, a parte menos favorecida não encontraria resposta no

ordenamento jurídico, se beneficiando com a eficácia desse direito real o

inadimplente (construtora) e o negligente (instituição financeira).

Das três personagens que participaram do negócio; dois com intuito de lucro (portanto, correndo riscos) e um com propósito de adquirir a casa própria, os dois primeiros negligentes e inadimplentes, o primeiro por escolher mal o seu financiado e por deixar de adotar as medidas permitidas na lei para receber o seu crédito sem causar prejuízo a terceiros, o segundo por não pagar o financiamento recebido, - somente correu o risco e perdeu o terceiro, que adquiriu e pagou108.

Todavia, o fundamento foi diverso e também encontrou base no

princípio da boa-fé objetiva, que mesmo não fazendo parte da principiologia

expressa do Código Civil vigente à época (1916) foi lembrado pelo Relator no

voto:

Ainda que não houvesse regra específica traçando esse modelo, não poderia ser diferente a solução. O princípio da boa fé objetiva impõe ao financiador de edificação de unidades destinadas à venda aprecatar-se para receber o seu crédito da sua devedora ou sobre os pagamentos a ela efetuados pelos terceiros adquirentes.

108 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Base de Jurisprudência. Casa própria. Execução. Hipoteca em favor do financiador da construtora. Terceiro promissário comprador.Embargos de terceiro. - Procedem os embargos de terceiros opostos pelos promissários compradores de unidade residencial de edifício financiado, contra a penhora efetivada no processo de execução hipotecária promovida pela instituição de crédito imobiliário que financiou a construtora. - O direito de crédito de quem financiou a construção das unidades destinadas à venda pode ser exercido amplamente contra a devedora, mas contra os terceiros adquirentes fica limitado a receber deles o pagamento das suas prestações, pois os adquirentes da casa própria não assumem a responsabilidade de pagar duas dívidas, a própria, pelo valor real do imóvel, e a da construtora do prédio. Recurso conhecido e provido. (REsp 187940/SP, Rel. Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR, QUARTA TURMA, julgado em 18/02/1999, DJ 21/06/1999, p. 164). Disponível em http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?livre=((%27RESP%27+ou+%27REsp%27)+adj+187940).suce.+ou+((%27RESP%27.clas.+ou+%27REsp%27.clap.)+e+@num=%27187940%27). Acesso em 03 mar. 2014

67

Em resumo, prevaleceu o interesse dos compromissários compradores,

que invariavelmente usavam os recursos do FGTS para a quitação de um

imóvel com risco de sequer vir a recebê-lo. A decisão foi alvo de críticas,

notadamente do sistema bancário, que tentava invocar em seu favor o mesmo

princípio da boa-fé objetiva, suscitando que a Súmula representou

manifestação de ativismo judicial.

Assim, para aplicarmos a Sumula em consonância com a função social do contrato teremos de buscar justificativa para tal em nosso direito positivo e não num desejo abstrato de fazer justiça, dentro de parâmetros individuais, que não atingem a finalidade que é social, e não específica. É certo que todo o direito civil se funda no princípio da boa-fé e esta deve ser protegida. Mas não se pode pré-julgar, entendendo, em todos os casos, que o hipossuficiente econômico é sempre sujeito de boa-fé, crucificando as instituições financeiras pelo simples fato de o serem109

Essa irresignação, todavia, não pode prevalecer. Como bem referiu o

Ministro, a instituição bancária detinha poderes para averiguar o andamento da

obra e especialmente, o pagamento da dívida hipotecária.

Como consequência dessa interpretação sistemática do ordenamento

civil, mais que a proteção individual do adquirente de imóvel nessa condição,

foi editada a medida provisória 2.221/2001, posteriormente revogada com a Lei

10.931/2004 criando o chamado “patrimônio de afetação” 110 . Com esse

instituto, cria-se praticamente uma nova empresa para o empreendimento que

está sendo construído, sem comunicação das operações dele com outros da

construtora/incorporadora.

Por ele, o valor arrecadado com a venda das unidades vai para uma

conta do próprio empreendimento, evitando que o capital arrecadado nele,

sirva para aliviar as obrigações financeiras da empresa ou de seus sócios.

109 MARQUES, Beatriz Pereira de Samuel; MARQUES, Luiz Henrique de Oliveira; MARQUES, José de Samuel. Os rumos da hipoteca diante do advento da Súmula 308 do Superior Tribunal de Justiça. In: Revista de Direito Imobiliário. v. 30, n. 63, jul/dez. 2007. p. 33. 110 BRASIL. Lei 10.931/2004. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/lei/l10.931.htm. Acesso em 02 mar. 2014.

68

Assim, evidencia-se por meio de exemplo concreto, como o vetor da

boa-fé objetiva mais que paradigma de interpretação, atuou como força de lei

posta, se sobrepondo, inclusive ao direito real de hipoteca. O legislador ao

enaltecê-lo no novo Código não o fez por mera referência auxiliar, mas como

ferramenta indisponível ao cumprimento dos objetivos de um sistema civil

moderno.

3.4. Boa-fé subjetiva vs. boa-fé objetiva

O conceito de boa-fé é único e representa lealdade, confiabilidade e

transparência, independentemente da subdivisão a ser empregada. É uma

definição aferível conforme os padrões da época em que a situação é

enfrentada.

Genérica e introdutoriamente, a boa-fé pode se entendida como o agir correto, leal e confiável conforme os padrões culturais de uma dada época e local. Essa noção serve uma primeira especialização ao divisar-se a boa-fé em subjetiva e objetiva, conforme seja ele utilizada como elemento de um suporte fático ou como norma jurídica diretamente aplicável.111

Como se percebe, muito embora exista um conceito de boa-fé único,

consistente nessa característica de lealdade, confiança e transparência, há

uma subdivisão em objetiva e subjetiva.

A diferença reside no plano de aferição das duas modalidades. Quando

se fala em boa-fé objetiva, busca-se algum parâmetro legal ou até de Direito

Natural para se aferir a existência desse “agir correto”. Já na boa-fé subjetiva

analisa-se a intenção do agente, especialmente como se comporta frente à

determinada situação, notadamente de índole possessória.

111 DA SILVA, Jorge Cesa Ferreira. Princípios de direito das obrigações no novo Código Civil. In: Sarlet, Ingo Wolfgang. O Novo Código Civil e a Constituição. 2 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 136.

69

Cumpre diferenciar boa-fé OBJETIVA de boa-fé SUBJETIVA. Aquela constitui um princípio norteador de conduta das partes, um padrão objetivo de comportamento e, concomitantemente, um critério normativo da sua valoração; ao que esta se reporta a um elemento intencional individual, exprimindo um estado ou situação de espírito que envolve o convencimento de ser ter um comportamento em conformidade com o direito.112

Na última hipótese estuda-se o ânimo do sujeito. Quando ele, por

exemplo, detém boa-fé subjetiva no tocante ao exercício de sua posse estão

garantidas as prerrogativas que a lei garante (interditos, indenizações,

usucapião e etc.)

Na situação de boa-fé subjetiva, uma pessoa acredita ser titular de um direito, que na realidade não tem, porque só existe na aparência. A situação de aparência gera um estado de confiança subjetiva, relativa à estabilidade da situação jurídica, que permite ao titular alimentar expectativa, que crê legítima.113

Trata-se de situação diversa do que ocorre na interpretação

empregada no direito dos contratos. Essa boa-fé (objetiva) assume duas

facetas, não sendo mera compreensão do que imagina o agente quanto ao

fato, notadamente a posse: “Nos contratos, a boa-fé assume dois aspectos, um

positivo por obrigar a prestar à outra parte o que é équo e, negativamente,

adstrito à abstenção de dolo, de fraude e de coação.”114

Cumpre esclarecer ainda que essa divisão entre boa-fé subjetiva à

posse e boa-fé objetiva aos contratos e obrigações não é pacífica. Há

respeitável doutrina acenando a possibilidade de empregar a boa-fé objetiva na

análise das questões possessórias.

No âmbito da lei ordinária, que não deve ser visto dissociado das normas constitucionais, a regra hermenêutica do artigo 113 do Código Civil de 2002 permite aplicar-se à posse o princípio da boa-fé objetiva. Com isso, retira-se do ato da posse aquela subjetividade

112 RÊGO, 2009. p. 25. 113 NORONHA, 1994. p. 132. 114 RÊGO, 2009. p. 31.

70

inerente ao caráter individualista do Código Civil de 1916, cristalizado na boa-fé subjetiva. O princípio da boa-fé objetiva possibilita operar na tutela da posse elementos valorativos que enriquecem o ato possessório.115

Tal posição é muito pertinente, pois a compreensão da boa-fé

possessória típica (subjetiva) pode também envolver outro aspecto, de ordem

objetiva, valendo-se dos consectários ínsitos à boa-fé objetiva (lealdade,

transparência, lisura e etc.).

Esta boa-fé objetiva também é designada de boa-fé lealdade, expressão que enfatiza o dever de agir que impende sobre cada uma das partes. Outra designação, que também lhe é dada, é a da boa-fé confiança, que realça a finalidade do princípio da boa-fé: a tutela das legítimas expectativas da contraparte, para garantia da estabilidade e segurança das transações.116

Como se percebe, muito embora subsista a divisão clássica, ainda de

muita valia na análise das questões possessórias, não se pode descartar as

características próprias à boa-fé objetiva, especialmente quando o direito de

posse tem por base um contrato.

3.5. O problema das legislações de emergência

Como referido, outra justificativa coerente com a inserção da boa-fé

objetiva dentre os vetores inerentes às relações civis, está no seu emprego

flexível aos casos concretos. Isso, em certos casos, pode impedir a edição

desenfreada de leis especiais, num fenômeno que Gustavo Tepedino nominou

“legislações de emergência”.

Pela regra imposta pelo Código de 1916 apenas adquiria a propriedade

imóvel aquele que ostentasse título de propriedade transcrito no registro de

imóvel. Todavia, o problema dos loteamentos urbanos, especialmente do

115 OLIVEIRA, 2006. p. 257. 116 NORONHA, 1994. p. 136.

71

pagamento do preço e da não outorga do título fez surgir à adjudicação

compulsória através do já referido Decreto Lei 58/37.

Consequência da mudança de perfil do adquirente de imóvel. Antes

isso esse tipo de compra era prerrogativa de grandes senhores, que após

negociar, instrumentalizavam a aquisição pelo modo legal, a escritura publica.

Com o avanço das cidades e dos loteamentos, imperiosa foi a criação de uma

legislação de urgência, especial à natureza do novo morador do meio urbano.

A inflação legislativa, por sua vez, minou pela base a ideologia da unidade legislativa. Aos códigos civis foram agregadas inúmeras “leis especiais”, no início ditas “leis extravagantes”, porque (vagare), sobrevagavam o sistema referido no Código. O sentido da quebra da unidade legislativa está em que não é mais possível acomodar, num mesmo e harmônico leito, todos os interesses, porque não há apenas um único sujeito social a ser ouvido, não há mais um sujeito comum, como aquele desenhado na esteira da Revolução Francesa pelo princípio da igualdade, abstrata, frente à lei. Às leis especiais, cabe o papel de regular interesses e situações que se especializam, porque as partes se desagregam do todo.117

Elas foram produto da evolução social antes referida, decorrente da

mudança do paradigma libertário para outro, balizado nas revoluções mundiais

havidas especialmente após a 2ª Grande Guerra. O Brasil havia colocado em

prática o Código de 1916 antes desses fenômenos, se obrigando

posteriormente a emendá-lo por centenas de vezes.

Pode-se dizer, portanto, que logo após a promulgação do novo Código Civil, o legislador teve de fazer uso de leis excepcionais, assim chamadas por dissentirem dos princípios dominantes do corpo codificado. O Código Civil mantinha a fisionomia de ordenador único das relações privadas, e as leis extravagantes, se contravariavam os princípios do Código Civil, o faziam de maneira excepcional, de modo que não se desmentiam o sentido de completude e de exclusividade pretendido pelo Código.118

117 MARTINS-COSTA, 2000. p. 281. 118 TEPEDINO, 2001. p. 04.

72

Não havia outra saída, pois os reclames sociais eram incompatíveis

com a disciplina legal instituída na redação original do Código Civil, que ano a

ano envelhecia sem atender as demandas sociais.

Por tais motivos, mesmo na vigência de um novo Código, a busca pela resistematização do Direito Civil se mantém em voga, pois já é reconhecida a insuficiência do sistema codificado, tornando árduo o processo de modificação do seu texto básico. Portanto, a contínua busca por renovadas fontes do Direito e o aperfeiçoamento daquelas já existentes passa a latere de se conviver ou não com um Código Civil, o qual, penso, concorre no quadro de fontes imediatas do Direito Civil, sem alimentar a pretensão de ser a única fonte das relações interprivadas e, tampouco, de esgotar a experiência fática útil.119

O marco para tanto, certamente foi a década de 30, dado o “Estado de

Bem Estar Social” que impregnava o mundo como resposta à crise americana

de 1929. Não houve remédio senão socializar um pouco as relações privadas,

agindo o Estado em campos até então relegados.

Através de tais normais, conhecidas como leis especiais – justamente por sua técnica, objeto e finalidade de especialização, em relação ao corpo codificado, o legislador brasileiro levou a cabo longa intervenção assistencialista, expressão da política legislativa do Welfare State que se corporifica a partir dos anos 30, tem assento constitucional em 1934 e cuja expressão, na teoria das obrigações, se constitui no fenômeno do dirigismo contratual.120

Para a época foi um mal necessário, ou melhor, centena de males

necessários. Como não havia entre os juízes a sensibilidade de compreender

um princípio como norma, se não existisse lei em sentido estrito, impossível

seria dar amparo aos anseios do jurisdicionado.

Hoje, ainda que leis extravagantes ou “de emergência” sejam

necessárias, notadamente para questões técnicas, o emprego dos princípios,

119 NALIN, 2007. p. 362. 120 TEPEDINO, 2001. p. 06.

73

especialmente da boa-fé objetiva, permite o rejuvenescimento do sistema, sem

a inventividade demasiada do legislador.

Eis a grande vantagem dos conceitos jurídicos indeterminados, do qual lançou mão o legislador em incontáveis passagens do novo Código. Em vigor desde o século retrasado na Alemanha, o BGB sofreu muito menos do problema do “envelhecimento” da legislação, em virtude de empregar inúmeras normas abertas (conceitos jurídicos indeterminados), cujo conteúdo foi sendo alargado ou comprimido na sequencia da respectiva aplicação no passar dos anos. Permeáveis a modificações aplicativo-interpretativas advindas de alterações dos valores vigentes na sociedade, os conceitos indeterminados se amoldam perfeitamente às inovações ocorridas no transcurso dos anos.121

A boa-fé objetiva, como vetor de interpretação e base às relações civis

é cláusula permanente, podendo representar a resolução de questões que

antes demandavam um intenso e demorado trabalho legislativo de positivação

específica. Tendo-se ela como parâmetro, as futuras edições dos Códigos

tenderão a receber menos emendas, pois as controvérsias terão parâmetro

principiológico para resolução.

3.6. Boa-fé objetiva e direito do consumidor: relativização e banalização

As fronteiras entre o público e privado nunca estiveram tão violadas.

Em decorrência de um processo interventivo estatal originado ainda no início

do século passado, muitos institutos e relações que eram eminentemente

privadas, mudaram de lado e passaram a receber intervenção do Estado.

A interpretação do direito público e do direito privado caracteriza a sociedade contemporânea, significando uma alteração profunda nas relações entre cidadão e o Estado. O dirigismo contratual antes aludido, bem como as instâncias de controle social instituídas em

121 DUARTE, Ronnie Preuss. A cláusula geral da boa-fé no novo Código Civil. In: DELGADO, Mário Luiz; Alves, Jones Figueiredo. Questões Controvertidas no novo Código Civil. São Paulo: Editora Método, 2004. p. 411.

74

uma sociedade cada vez mais participativa, alteram o comportamento do Estado em relação ao cidadão, redefinindo os espaços do público e do privado, a tudo isso, devendo se acrescentar a natureza híbrida dos novos temas e institutos vindos a lume com a sociedade tecnológica.122

Nas relações civis, ainda que outras legislações precederam, o maior

choque decorreu pelo Código de Defesa do Consumidor, publicado em

setembro de 1990. Foi à materialização do anseio do constituinte,

estabelecendo a necessidade de uma política ditada pela Carta Magna.

Não que houvesse óbice ao uso da boa-fé objetiva antes disso. Pelo

contrário, ainda que o vetor não estivesse inserido expressamente no artigo

422 do Código Civil, seu papel de vetor estruturante era inegável, passível de

aplicação às relações jurídicas.

Porém, cabe indagar se, por exemplo, o princípio da boa-fé não estivesse sido contemplado pelo positivismo do Código Civil, estariam os operadores da relação contratual autorizados a desprezá-la. Obviamente que não, tendo em vista a função estruturante deste princípio, que, antes de ser positivo do ordenamento jurídico, desde a bona fides romana, sempre foi geral do Direito, ou ao menos, geral do Direito Civil.123

Novamente, o exemplo da Súmula 308 do STJ é pertinente. As primeiras

decisões indicando a nulidade hipoteca firmada entre construtora e banco

foram proferidas em 1998, quando a boa-fé objetiva ainda gestava como “lege

ferenda” no Código Civil.

Voltando ao tema proposto para o capítulo, a publicização das

disposições contratuais em razão do Código de Defesa do Consumidor foi

impactante. Por meio de regras expressas ou de princípios, o diploma

consumerista consagrou inúmeras situações intervencionistas, agindo

diretamente no antigo princípio de autonomia privada das relações.

122 NALIN, 2006. p. 19. 123 NALIN, Paulo. A boa-fé como elemento de existência do negócio jurídico. In: Questões Controvertidas. Parte Geral do Código Civil. São Paulo: Editora Método. 2007. P. 365.

75

A entrada em vigor do Código de Defesa do Consumidor, fundado nos princípios solidaristas da Constituição Federal, alterou de forma significativa a teoria contratual, até então individualista, liberal e atrelada à autonomia da vontade e à obrigatoriedade dos contratos.124

O processo foi tardio se comparado à outras nações europeias, que já

respiravam os ares consumeristas há longos anos. Essa preparação legislativa

foi importante à abertura das fronteiras do país ao mercado global, fato iniciado

em 1990, com o então Presidente Collor.

Direito tradicional não estava preparado para alcançar com justiça protetiva tais situações. Precisava de uma reforma, que adveio com uma maior organização dos consumidores e do crescimento do associativismo, somando forças aos interesses comuns, impulsionados que foram por um maior grau de consciência cívica, cultural e jurídica dos cidadãos. Daí surgiu o Direito do Consumidor.125

A expressão que melhor exprime esse fenômeno é a relativização.

Contratos e obrigações, exequíveis sob toda a prova à luz do Código Civil,

tinham cumprimento mitigado ou até excluído em razão da incidência do

Código de Defesa do Consumidor.

O próprio sistema contratual positivo deu conta de relativizar os clássicos princípios da ordem privada contratual, estabelecendo, por força inicial do Código de Defesa do Consumidor, um regime principiológico inovador sobre a matéria como um todo, sendo este um processo igualmente de origem constitucional. O Código de Defesa do Consumidor enfeixa os princípios da transparência, confiança e equidade na boa-fé objetiva, o que já parecia ser uma tendência do Direito Civil no âmbito da sua recodificação.126

Essa disciplina obviamente também se estendeu ao mercado

imobiliário, compreendendo-se nisso as relações decorrentes da compra e

venda de imóvel, especialmente na planta. Jamais houve tanta intervenção

124 LEITE, 2013. p. 132. 125 RÊGO, 2009. p. 04 126 NALIN, 2006. p. 19. Contrato e sociedade...

76

externa no tocante ao que se contrata, sofrendo essas relações a interferência

estatal pelo personagem de maior relevância na operação de aplicação dos

preceitos consumeristas e da boa-fé, o juiz.

3.7. A (i) responsabilidade na aplicação da boa-fé objetiva aos contratos. Relativização x segurança jurídica.

Impossível não se adentrar no tema, sem recordação do afirmado

quando do passeio histórico pelo princípio da boa-fé. Em Roma, a expressão

“fides” foi banalizada ao ponto do seu desprestígio; esse fenômeno se repetiria

na atualidade, caso o vetor não fosse abraçado pelo Poder Judiciário e

transformado em jurisprudência.

Sem o enfrentamento e a casuística, a boa-fé objetiva seria conceito

puramente formal. Como já se expôs no capitulo introdutório, a hermenêutica é

o meio de vivificar a aplicação dos princípios dando ao vetor em estudo

condições para sair da mera abstração.

O afinamento de linguagem, assim conseguido, não deve, no entanto, fazer esquecer o estar-se em presença de conceptualizações formais. Em si, elas não dão o critério da boa-fé, quando se trate de decidir. Há que estender a pesquisa às dimensões materiais do tema, indagando dos valores e pontos de vista chamados a preencher o apelo indeterminado à boa-fé.127

Diversamente de outros critérios do código, a incidência da boa-fé

objetiva pressupõe uma análise de dados e a apreensão de fatos. Afirmar que

há impedimento nupcial entre irmãos é possível pelo confronto da certidão de

nascimento. Ainda que se admita questionamento da situação pela

inafastabilidade do controle jurisdicional (artigo 5º, XXXVI), não cometeria

ilegalidade o juiz de paz ao não permitir esse enlace.

127 MENEZES CORDEIRO, 1997. p. 1196.

77

Neste particular, ganha relevância o papel do Judiciário como aplicador da lei ao caso concreto eis que o assim chamado ativismo judicial – assim entendido o movimento que entende necessária a atuação do Judiciário no sentido de promover a igualdade e o bem estar social –, ainda que originário nas boas intenções do julgador, não pode interferir na essência do negócio privado firmado entre as partes. Muito menos poderá, sob o pretexto da aplicação dos novos princípios do direito contratual, exacerbar a proteção à parte menos favorecida economicamente de maneira a protegê-la das consequências do inadimplemento a contrato legalmente firmado.128

Com a boa-fé objetiva o fenômeno é diverso. A forma de celebração do

contrato ou do negócio, seus efeitos, a situação da parte e outros elementos

demandam aprofundada compreensão, inexistindo, como a priori, afirmar

ofensa ao vetor, ao menos que questão idêntica já tenha obtido crivo judicial,

especialmente por meio de precedente.

A cláusula geral introduz no âmbito normativo no qual se insere um critério ulterior de relevância jurídica, à vista do qual o juiz seleciona certos fatos ou comportamentos para confrontá-los com um determinado parâmetro e buscar, neste confronto, certas consequências jurídicas que não estão predeterminadas.129

Esse filtro não é discricionário. Do próprio artigo 422 percebe-se o

princípio da probidade, aliado na compreensão da boa-fé quando se encara

relação de consumo, impossível escusa aos vetores insculpidos no artigo 51 do

Código respectivo. Há muito fundamento para se afastar a crítica de

discricionariedade judicial na aplicação da boa-fé objetiva.

Pela sua indeterminação, põe-se a questão fulcral de saber se a boa-fé implica discricionariedade. Uma resposta definitiva pretende-se com a existência de pontos materiais a utilizar na sua concretização, com a extensão dos mesmos e com possibilidade de controlar o respeito, na decisão, da hierarquia, que, entre eles, se descubra.130

128 AHRENS, Luis Roberto. Breves Considerações sobre o contrato no direito contemporâneo. In: Revista Jurídica Unicuritiba. v. 21, n. 5, 2008. p. 137. Disponível em http://revista.unicuritiba.edu.br/index.php/RevJur/issue/view/23. Acesso em 22 jan. 15. 129 RÊGO, 2009. p. 63. 130 MENEZES CORDEIRO, 1997. p. 1190.

78

Dessa exposição, claro que o trabalho do juiz jamais demandou tanta

responsabilidade. Como verdadeiro superpoder, a cláusula geral da boa-fé,

aliada às disposições do Código de Defesa do Consumidor, quando aplicáveis,

permitiu uma linha muito aberta para o exercício da jurisdição.

O peso da função do juiz, em vista do novo prisma que para ele se abre, após o Código Civil, é muito superior em relação à sua condição anterior diante do caso civil. Curioso como poucas cláusulas gerais puderam acarretar tamanha modificação na atividade judiciária civil, sendo fundamental, por outro lado, observar a imensa dose de responsabilidade social que hoje, mais do que nunca, traz consigo a magistratura.131

Passou-se a viver um sistema marcado pela intervenção no mundo das

relações privadas, com o revés do esquecimento de disposições processuais

muito importantes, comprometendo o contexto natural de imparcialidade

judicial.

Assim, a figura legislativa das cláusulas gerais que hoje norteia o Código Civil pode servir como instrumento de modificação social, ainda que sem ofensa a princípios fundamentais da processualística civil, tais como o da inércia o da imparcialidade e, sobretudo, sem que isto se revele em abusividade discricionariedade do julgador. 132

O exemplo mais intenso está no artigo 51 do CDC133. A força dada pela

disposição, ao reconhecer a nulidade de pleno direito, autoriza a revisão de

cláusulas contratuais mesmo sem a provocação das partes. Essa possibilidade

poderia ultrapassar não só os limites processuais, mas a divisa da inércia do

Poder Judiciário.

Quando há espaço para o ativismo judicial, este há de se exercido nos

limites da Constituição Federal e de outras normas pré-estabelecidas. A

possibilidade de reconhecimento da nulidade de pleno direito de cláusulas

131NALIN, Paulo. 2007. p. 383. A boa-fé como elemento ... 132 Id. p. 384. 133“São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços... Código de Defesa do Consumidor. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078.htm. Acesso em 15 fev. 2.015

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contratuais contraria o espírito ditado pelo artigo 170 da Constituição Federal e

deve ser exceção.

Porém, havendo manifestação do legislador, existindo lei válida votada pelo Congresso concretizando uma norma constitucional ou dispondo sobre matéria de sua competência, deve o juiz acatá-la e aplicá-la. Ou seja: dentre diferentes possibilidades razoáveis de interpretar a Constituição, as escolhas do legislador devem prevalecer, por ser ele quem detém o batismo do voto popular.134

A maior prova da mitigação dessa atuação está no modo com que o

STJ disciplinou o emprego da revisão de ofício em se tratando de relação

bancária. Por meio da sua Sumula 381135 excluiu-se a possibilidade de o juiz

declarar nulas cláusulas contratuais em contratos bancários mitigando a

proteção consumerista irrestrita.

Nota-se então, ainda que de modo limitado às relações puramente

bancárias, o alerta do STJ no tocante à existência e validade de regras

materiais e processuais que devem exercidas a pedido e no interesse da parte,

evitando-se juízos discricionários.

A discricionariedade será abusiva na falta de fundamentação ou na fundamentação que ocorre pelo sistema da subsunção clássica, sem prévia construção do conteúdo normativo para o caso concreto, quando se estiver diante de uma cláusula geral. Sem dúvida, o Código Civil não é dotado de somente de cláusulas gerais, mas de um misto destas e, também de regras de casuística, devendo estar atento o magistrado para o modelo normativo com o qual está lidando, para não incorrer a decisão em posterior invalidade.136

Não se trata de negar vigência a um diploma de tanta importância,

como o Código de Defesa de Consumidor, mas apenas evitar que

134 BARROSO, Luiz Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Disponível em http://www.plataformademocratica.org/Publicacoes/12685_Cached.pdf. Acesso em 25 jul. 2.014. p. 18. 135 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Base de Jurisprudência. Sumula n. 381: Nos contratos bancários, é vedado ao julgador conhecer, de ofício, da abusividade das cláusulas. Disponível em http://www.stj.jus.br/docs_internet/revista/eletronica/stj-revista-sumulas-2013_34_capSumula381.pdf. Acesso em 14 fev. 2.015. 136 NALIN, Paulo. 2007. p. 385. A boa-fé como elemento ...

80

entendimentos extremos reduzam à segurança jurídica, própria às relações

privadas, dentro do modelo capitalista.

Tal cautela é indispensável à confiança do empresariado que se arrisca

em investir ou ampliar operações no Brasil. A flexibilização advinda dos

princípios civis, especialmente da boa-fé é muito bem-vinda, mas a criação de

saídas alternativas, nulificando contratos de pleno direito e sem provocação da

parte, não precisa tirar de foco a situação do país nesse viés econômico.

O Banco Mundial, órgão fomentador daquilo que se convencionou chamar economia de mercado, elabora periodicamente relatórios sobre os Poderes Judiciários, destacando-se especialmente os de número 17 de 1997 e o de número 24 de 2.002, além do documento técnico 319 S ou O Setor Judicial na América Latina e no Caribe: Elementos de Reforma. Segundo os especialistas do Banco Mundial, para o bom desenvolvimento da economia de mercado, é indispensável que um país reúna os seguintes valores: acessibilidade, credibilidade, eficiência, transparência, independência, previsibilidade, proteção à propriedade privada e respeito aos contratos.137

A imprevisibilidade das deliberações do Poder Judiciário, como

integrante do Estado pode ser um fator negativo na atração dessa

empresa/investidor para o mercado nacional.

Na economia globalizada, os investidores têm o mundo todo para investir e norteiam suas decisões levando em conta também a estabilidade dos marcos institucionais nos países que escolhem. Se o grau de imprevisibilidade das decisões judiciais num certo país é mais acentuado que em outro, este último aparecerá como alternativa mais interessante para o investimento. A estabilidade do marco institucional é fator de atração de investimentos sadios. Se é considerável o risco de a norma regente do investimento não ser aplicada pelos Tribunais ou receber neles uma nova interpretação, o investidor não terá o retorno estimado e tenderá a redirecionar suas opções para outros países, em que tais distorções sejam menos freqüentes.138

137 GALLI, 2009. p. 56 138 COELHO, FABIO ULHOA. A justiça desequilibrando a economia. Disponível em http://www.ulhoacoelho.com.br/site/pt/artigos/direito-e-politica/59-a-justica-desequilibrando-a-economia.html. Acesso em 07 ago. 2.014.

81

Isso porque o chamado “Risco Brasil” é influenciado pelas ondulações

das decisões do Estado, quer de forma abstrata pelo Executivo e Legislativo,

quer agindo no caso concreto por meio do Poder Judiciário. Inserções dos

Poderes nas relações privadas precisam ser responsáveis, ao ponto de não

negar vigência a um sistema, que não deixou de ser privatístico e capitalista.

No Brasil, o risco jurídico-institucional é expressivo. Muitas vezes, o empresário é surpreendido por interpretações diferentes da lei, feitas pelos Tribunais, com fortíssimo impacto nos números que havia calculado, antes de definir os preços pelos quais já vendeu, aqui, seus produtos ou serviços. (...) Como o empresário pode lidar, de modo racional, com um risco deste quilate? Apenas por meio da prática de preços elevados nos produtos e serviços oferecidos no mercado brasileiro. Sem conseguir antever, com precisão, o exato alcance de suas obrigações legais, diante de reviravoltas como esta, o empresário precisa se precaver embutindo nos preços uma elevada taxa de risco. Neste caso, a rigor, estará apenas aplicando uma receita milenar e mais que testada dos investidores: o retorno tem que ser proporcional ao risco.139

Torna-se imperioso que o presente trabalho também aborde essa

preocupação. A evolução dos sistemas abertos e a possibilidade de

refinamento das obrigações e dos contratos pela boa-fé objetiva merece

destaque. Todavia, a banalização com que o vetor pode ser usado e a

necessidade de equilíbrio empresarial também precisa ser abordado.

E talvez essa seja a mais árdua e nobre missão delegada pelo legislador constituinte aos estudiosos e operadores da ordem jurídica: encontrar ponto de equilíbrio harmonioso no qual sejam realmente asseguradas a livre iniciativa, a propriedade privada e a liberdade do desenvolvimento do trabalho – por serem valores inafastáveis de uma sociedade que visa ao desenvolvimento sustentado -, porém com substituição de matriz patrimonialista encadeada precipuamente na propriedade, por uma matriz existencialista, ancorada na dignidade humana.140

Isso porque o vínculo contratual não pode ser presumidamente

abusivo, especialmente pela incidência do Código de Defesa do Consumidor.

As presunções existem e até podem ter absolutas, (dependendo do caso 139 COELHO, Fabio Ulhoa. E no Brasil quanto é? Disponível em http://www.ulhoacoelho.com.br/site/pt/artigos/direito-e-politica/96-e-no-brasil-quanto-e.html. Acesso em 12 ago. 2.014. 140 GALLI, 2009. p. 81.

82

concreto), mas isso, não deve ser obstáculo à vigência de outras disposições

do direito civil, dando segurança jurídica às relações.

Enfim: o Código de Defesa do Consumidor não veio para dar supremacia absoluta à tutela prevista na Constituição para a parte vulnerável na relação de consumo, como se pudesse afastar, ou relegar a plano inferior, tudo o mais que integra a ordem econômica planejada pela organização constitucional do mercado; e muito menos teve o propósito de revogar o direito clássico das obrigações e dos contratos. Apenas a repressão de abusos da parte mais forte, nesse domínio, constituiu sua meta fundamental.141

Essa advertência é necessária, especialmente pelos assuntos que

serão abordados no último capítulo, tratando de situações casuísticas

envolvendo o compromisso de compra e venda de imóvel. O Poder Judiciário

deve interpretar tais questões de modo responsável, emprestando o equilíbrio

necessário à manutenção do binômio interesse do consumidor/sustentabilidade

do empresário.

141 THEODORO JUNIOR. Humberto. Direitos do Consumidor: a busca de um ponto de equilíbrio entre as garantias do Código de Defesa do Consumidor e os princípios gerais do direito civil e do direito processual civil. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 38.

83

4. BOA-FÉ OBJETIVA E O COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA: O

PAPEL DA JURISPRUDÊNCIA

4.1. As facetas do princípio e sua aplicação ao compromisso de compra e

venda

A boa-fé objetiva se apresenta também por seus sub-conceitos de

muita relevância na compreensão do princípio e do comportamento das partes.

Esses tais elementos não são restritos ao momento da assinatura do

compromisso de compra e venda. Desde os contratos preliminares até a

consecução final do seu objeto (entrega do objeto contratado, sem ressalvas),

uma postura idônea deve reger a intenção das partes.

Veda-se a malícia, a intenção de prejudicar. Desde as negociações preliminares, passando pela execução propriamente dita e mesmo após o cumprimento das prestações pelos contratantes, remanescente um vínculo e deveres recíprocos. Há uma acentuada preocupação na proteção da situação de confiança que resulta de um contato negocial, que ordenamento jurídico procura salvaguardar.142

Isso porque a relação contratual pressupõe uma relação de direitos e

deveres mutuamente recíprocos e equivalentes entre si, tendo como objetivo

final o que as partes reservaram para si antes mesmo da assinatura da avença,

quando das tratativas preliminares.

O princípio da equivalência material busca realizar e preservar o equilíbrio real de direitos e deveres no contrato, antes, durante e após sua execução, para harmonização dos interesses. Esse princípio preserva a equação e o justo equilíbrio contratual, seja para manter a proporcionalidade inicial dos direitos e das obrigações, seja para corrigir os desequilíbrios supervenientes, pouco importando que as mudanças de circunstâncias pudessem ser previsíveis.143

142 DUARTE, 2004. p. 400. 143 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Deveres gerais de conduta nas obrigações civis. In: DELGADO, Mário Luiz; Alves, Jones Figueiredo. Questões Controvertidas no novo Código Civil. São Paulo: Editora Método, 2005. p. 85.

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Então pode se afirmar que o trato contratual, à luz da boa-fé objetiva

pressupõe estabilidade das condutas praticadas dentro da relação avençada. O

uso de situações surpresa também esbarra na boa-fé objetiva, por seus

corolários “venire contra factum proprium”, “supressio”, “surrectio” e “tu

quoque”.

Considerando que a boa-fé relaciona-se com o conteúdo material de dada obrigação, uma série de direitos (subjetivos ou potestativos) ou posições jurídicas que formalmente, seriam concedidos às partes, deixam de sê-lo em razão das circunstâncias do caso. A boa-fé, ao impor a observância de parâmetros ético-jurídicos, veda práticas, muitas delas conhecidas por máximas latinas, que contrariam esses parâmetros. São elas, dentre outras, a vedação de “venire contra factum proprium”, “supresso”, “surrectio” e “tu quoque”.144

O “venire contra factum proprium”, também conhecido como vedação

ao comportamento contraditório se liga ao princípio da confiança. Quando os

contratantes estabelecem condições e elas pretendem atingir, instaura-se uma

relação de fidúcia recíproca.

Talvez o exemplo mais claro dessa hipoteca seja a proibição de “venire contra factum proprium”, também conhecida como doutrina dos atos próprios e caracterizada como a vedação de atuar de modo a contrariar a anterior conduta da parte frente à outra, cristalizador, nesta, de confiança legítima sobre a manutenção da prática. Mudar de opinião ou de modo de atuar, no espaço da licitude, é atitude amplamente possível e lastreada nos direitos fundamentais de primeira geração. Contudo, quando essa atuação passa a servir de base para a atuação alheia, de sorte que esta mudar repentinamente o agir, desnaturando a confiança legítima gerada na outra parte, é objeto de vedação.145

Essa base de estabilidade não pode ser quebrada, especialmente

quando um contratante age de modo diverso à intenção que anteriormente

externou frente ao outro. O vínculo contratual não pode ser espaço para

144 DA SILVA, 2006. p. 137. 145 Id. p. 138.

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insegurança e situações que tirem das partes a tranquilidade necessária à

consecução dos seus objetos.

A vedação ao venire contra factum proprium surge por influxo do princípio da confiança. Assegura-se a manutenção da situação de confiança legitimamente criada nas relações jurídicas contratuais. A proibição tem origem no Direito canônico, inadmitindo-se a adoção de condutas contraditórias. É uma regra de coerência, por meio da qual se veda que se aja em determinado momento de uma certa maneira e, ulteriormente, adote-se um comportamento que frustra, vai contra aquela conduta tomada em primeiro lugar.146

Esse elemento tem largo emprego na interpretação das questões

tratando do compromisso de compra e venda de imóvel. Não há como se

tolerar surpresas ao ponto de um contratante confiar na consecução de uma

avença na forma proposta, tendo em contrapartida resultado diverso.

A jurisprudência traz bons exemplos do emprego da vedação ao

comportamento contraditório em hipóteses tratando do compromisso de

compra e venda de imóvel. O paradigma adiante registra situação onde após a

quitação das obrigações pelo compromissário-comprador tentou o promitente-

vendedor receber outras quantias, cuja exigibilidade foi controvertida mediante

ação declaratória e danos morais.

A demanda foi julgada procedente, situação confirmada pelo Tribunal

de Justiça do Paraná, tendo como argumento a vedação ao comportamento

contraditório. À vista do pagamento parcelado do imóvel, com base em aditivo

emitido pela própria promitente-vendedora, descabia o pagamento de valores

suplementares. 147

146 DUARTE, 2004. p. 425. 147 PARANÁ. Tribunal de Justiça. Base de jurisprudência. DIREITO ADMINISTRATIVO E CIVIL. APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXIGIBILIDADE DE DÉBITO CUMULADA COM REPARAÇÃO DE DANOS MORAIS. CONCESSÃO DE USO E COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL POR PESSOA DE BAIXA RENDA.PROGRAMA HABITACIONAL. PRETENDIDA DECLARAÇÃO DE INEXIGIBILIDADE EM RAZÃO DA QUITAÇÃO DA DÍVIDA. APLICAÇÃO DOS DESCONTOS PROGRESSIVOS CONCEDIDOS PELA LEI N.º 2.153/02 DO MUNICÍPIO DE FOZ DO IGUAÇU.PROCEDÊNCIA. TESE RECURSAL ACERCA DE INSUFICIÊNCIA DO VALOR PAGO AFASTADA.DESNECESSIDADE DE ATUALIZAÇÃO DO VALOR.BOA-FÉ OBJETIVA.

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Do voto do Relator, percebe-se como foi contraditório o fundamento da

companhia habitacional em cobrar por dívida já quitada, decorrente de

proposta por ela mesma formalizada em termo para esse fim:

Na espécie, tem-se caracterizado que o agir do apelante ofendeu o princípio geral da boa-fé, vez que emitiu informações ao apelado acerca do quantum debeatur, em seguida entregou-lhe documento de quitação e, após, passou a exigir-lhe o pagamento de suposto débito. Ora, em decorrência do adimplemento, o particular criou a expectativa de ter cumprido com as disposições que lhe foram apresentadas e de possuir o direito ao imóvel em que residia. A postura da Autarquia recorrente, ao retornar sobre os próprios passos e suscitar teses de não-incidência dos benefícios da legislação que ela mesmo entendeu ser aplicável, revela um comportamento paradoxal e que abala a segurança jurídica depositada na relação entabulada.

Outro consectário da boa-fé objetiva é o “tu quoque”, cuja ideia central

está na impossibilidade de um contratante que infringiu determinada disposição

contratual, vir a alegá-la em seu favor posteriormente:

Por tu quoque deve-se compreender a impossibilidade de a parte que inadimpliu uma obrigação negocial, posteriormente vir a alegar o inadimplemento da outra para pôr fim ao vínculo negocial ou obter indenização.148

Essa modalidade decorrente da boa-fé objetiva também enseja

frequente enfrentamento jurisprudencial, notadamente em questões alusivas ao

CÁLCULO DO QUANTUM DEBEATUR EMITIDO PELA PRÓPRIA AUTARQUIA RECORRENTE. PROIBIÇÃO DE COMPORTAMENTO CONTRADITÓRIO EXPLICITADO PELA DOUTRINA DO SUBPRINCÍPIO VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM. INEXISTÊNCIA DE FATO MODIFICATIVO QUE DESCONSTITUA O DIREITO COMPROVADO PELO AUTOR. INSURGÊNCIA SOBRE O MARCO TEMPORAL PARA O CÔMPUTO DA PORCENTAGEM DO DESCONTO. TESE NÃO ACEITA. EXEGESE DA LEI MUNICIPAL EM CONJUNTO COM A PROPOSTA DE PAGAMENTO.DÍVIDA CORRETAMENTE ADIMPLIDA.INEXIGIBILIDADE DE DÉBITO COMPROVADA.APELO DESPROVIDO.(TJPR - 4ª C.Cível - AC - 1209829-6 - Foz do Iguaçu - Rel.: Abraham Lincoln Calixto - Unânime - - J. 02.09.2014) Disponível em https://portal.tjpr.jus.br/jurisprudencia/j/11745377/Ac%C3%B3rd%C3%A3o-1209829-6#. Acesso em 15 fev. 15. 148 POPP, Carlyle. Responsabilidade civil pré-negocial: o rompimento das tratativas. Curitiba: Juruá. 2.001. p. 130.

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compromisso de compra e venda. No paradigma adiante149 , decorrente da

demanda revisional movida por compromissária-compradora, tentava a

promitente vendedora a cobrança de valores decorrentes do contrato.

Em seu fundamento, o Relator também empregou o “tu quoque”,

alegando que a compromissária-compradora não poderia responder por

inadimplemento, na medida em que foi da promitente a causa das ilegalidades

contratuais:

Quanto aos pedidos contrapostos, entendo não merecer reparo a decisão atacada, pois o julgamento dos pedidos formulados pelo autor evidenciou ilegalidades no contrato firmado entre as partes, e sua consequente abusividade. Desta forma, há de ser considerado o princípio tu quoque, uma vez que a parte que ora indica o inadimplemento da outra praticou atos ilegais e abusivos na mesma relação, demonstrando comportamento contraditório.

Fechando os elementos da boa-fé objetiva, breve referência há de ser

feita quanto à “supressio” e à “surrectio”, que decorrem do mesmo fundamento.

“Diz-se suppresio a situação do direito que, não tendo sido, em certas

circunstâncias, exercido durante um determinado lapso de tempo, não possa

mais sê-lo por, de outra forma, se contrariar a boa-fé”.150. Já a “surrectio”

representa “... o exercício continuado de situação jurídica ao arrepio do

convencionado ou do ordenamento implica nova fonte de direito subjetivo,

devendo permanecer tal situação para o futuro”.151

Na primeira, tem-se que a parte omissa não pode chamar em seu favor

uma prerrogativa contratual que não exercitou na forma antes disciplinada. Na

segunda, reforça-se que devem prevalecer situações não expressamente

contratadas, se forem inovadas pelas partes no cumprimento do contrato.

149 PARANÁ. Tribunal de Justiça. Base de Jurisprudência. (TJPR - 7ª C.Cível - AC - 990614-9 - Foro Central da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba - Rel.: Victor Martim Batschke - Unânime - - J. 16.04.2013) Disponível em https://portal.tjpr.jus.br/jurisprudencia/j/11452731/Ac%C3%B3rd%C3%A3o-990614-9#. Acesso em 15 fev. 2.015. 150 MENEZES CORDEIRO, 1997. p. 797 151POPP, 2.001. p. 132

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Por fim, quando aborda a boa-fé em seu maior clássico, Menezes

Cordeiro também refere outro princípio decorrente da boa-fé. Muito embora a

maior parte da doutrina consagre o “venire”, o “tu quoque”, o “surrectio” e a

“supressio” como decorrências clássicas da boa-fé objetiva, o autor português

também trata da “exceptio doli generalis”, juntamente com os quatro primeiros

elementos.

A exceptio doli generalis aplica-se por violação da boa-fé; aceitando este pressuposto, a apreciação jurídica é simplesmente esta: a exceptio funciona, de facto, sempre que, do recurso a interpretações tendenciosas da lei, da utilização de particularidade formais das declarações de vontade ou do aproveitamento de incompleições em regras jurídicas, se pretende obter vantagens não conferidas pela ordem jurídica e desde que tais práticas sejam consideradas contrárias à boa-fé. Esta última apreciação, dado o peso cultural conferido pela História à boa-fé, não oferece dúvidas, a exceptio doli generalis fica, formalmente, justificada.152

A definição do último instituto justifica o acerto de Menezes Cordeiro ao

abordá-lo com os demais elementos da boa-fé objetiva. A deturpação de

disposições contratuais, a compreensão dolosa de manifestações de vontade e

especialmente, o desvirtuamento de preceitos legais para a obtenção de

vantagens indevidas tem nexo com o entendimento do instituto em estudo.

E certamente o conceito e os consectários da boa-fé objetiva não se

limitarão aos elementos acima, especialmente quando o instituto tem tamanha

carga histórica, buscando elementos no direito romano, no canônico e no

germânico. Também se exige que o espírito de lisura e transparência seja

respeitado e especialmente, que o acréscimo de renda ou a aquisição

imobiliária sejam feitas com mãos limpas.

Está em jogo um vector axiológico intuitivo, expresso em brocardos como turpitudinem suam allegans non auditur ou equity must come with clean hands. A sua aplicação requer a maior cautela. Fere as sensibilidades primárias, ética e jurídica, que uma pessoa possa desrespeitar um comando e, depois, vir exigir a outrem o seu acatamento. Não é liquido, contudo e sempre a priori, que um sujeito

152 MENEZES CORDEIRO, 1997. p. 732.

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venha eximir-se aos seus deveres jurídicos alegando violações perpetradas por outra pessoa.153

Toda essa carga teórica será necessária quando das discussões

travadas no próximo capítulo, onde dois pontos muito controversos da

incorporação imobiliária atual serão debatidos, a validade da cláusula de

tolerância e a possibilidade de resolução de um compromisso dessa ordem, por

meio extrajudicial, em decorrência de previsão contratual específica.

4.2. Cláusula de tolerância e boa-fé objetiva

Os dados antes revelados provam o desenvolvimento da “indústria” da

construção civil residencial nos últimos anos. Do crescimento desenfreado dos

empreendimentos, obviamente que fatores inerentes como o clima, a mão de

obra e materiais pesaram negativamente nos prazos de entrega estabelecidos.

Desses imprevistos nunca foi tão relevante a previsão de extensão

desses prazos, que passaram a ser interpretados com uma margem de

segurança, preservando o construtor e o incorporador.

A essa disposição presente na quase totalidade dos contratos, deu-se

o nome de cláusula de tolerância. Trata-se de um prazo estipulado em razão

dos fatores externos que podem retardar a entrega do empreendimento

imobiliário.

Essa previsão não decorre da mera vontade das partes. Há base

jurídica no artigo 393 do Código Civil, estabelecendo a incidência de situações

de caso fortuito e força maior, elidindo a mora da contratada.

Pelo crescimento dos embates jurídicos envolvendo o atraso de obra, a

jurisprudência precisou enfrentar se a cláusula de tolerância encerrava algum

tipo de nulidade à luz do Código de Defesa do Consumidor, especialmente por

afronta ao seu artigo 51.

153 MENEZES CORDEIRO, 1997. p. 837.

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Mais que tal tese, reiteradas são as decisões fundamentando essa

nulidade e de forma adversa, a validade da disposição pelo mesmo princípio da

boa-fé objetiva, abordado no presente trabalho. Não bastassem tantas

controvérsias, também há oscilação da jurisprudência acerca da necessidade

de justificação do uso dessa disposição.

Pela leitura desses julgados se perceberá o quão importante é o papel

da boa-fé objetiva como marco de deliberação sobre essas questões e ainda,

como o juiz, na condição de protagonista dessa operação, deve atentar ao

equilíbrio entre os direitos do compromissário-comprador e o exercício da

atividade de construção/incorporação.

A posição que prepondera perante o TJ/PR acena pela validade da

disposição. Há precedentes favoráveis nesse sentido junto à 6ª154, 7ª155, 10ª156,

11ª157, 12ª158 Câmaras Cíveis, sendo a mesma posição adotada pelas Turmas

Recursais do Juizado Especial Cível159.

Em todos os precedentes, o argumento basilar é a natureza do

empreendimento imobiliário, sujeito a fatores externos, especialmente chuvas

em excesso e falta de mão de obra, não sendo possível ao incorporador

estabelecer com exatidão britânica um prazo de entrega. Há destaque para a

razoabilidade da previsão e sua inclusão costumeira nos contratos dessa

ordem.

154PARANÁ. Tribunal de Justiça. Base de Jurisprudência. Apelações Cíveis 1.285.497-2, 1.230.533-8, 1.229.830-5, 1.227.829-4, 1.199.364-5, 1.211.201-9. Relatores Clayton Maranhão, Prestes Mattar, Roberto Portugal Bacellar, Carlos Eduardo Andersen Espínola, Sérgio Arenhart e Ana Lúcia Lourenço, respectivamente. 155PARANÁ. Tribunal de Justiça. Base de Jurisprudência. Apelações Cíveis 1.233.976-5, 1.051.203-1, 1.096.370-9, 1.130.092-0. Relatores Luiz Sérgio Neiva de Lima Vieira, Victor Martin Batschke, Roberto Massaro e Denise Kruger Pereira, respectivamente. 156 PARANÁ. Tribunal de Justiça. Base de Jurisprudência. Apelação Cível 800.364-5. Relator Arquelau Araújo Ribas. 157PARANÁ. Tribunal de Justiça. Base de Jurisprudência. Apelações Cíveis 1.234.853-1 e 1.176.940-7, Relatores Renato Lopes de Paiva e Denise Kruger Pereira. 158PARANÁ. Tribunal de Justiça. Base de Jurisprudência. Apelações Cíveis 1.258.176-1, 1.122.583-1 e 1.109.829-4. Relatores Mario Helton Jorge, Angela Maria Machado Costa e Joecy Machado Camargo. 159PARANÁ. Tribunal de Justiça. Base de Jurisprudência. Recursos inominados 0027785-35.2012.8.16.0182 e 2011.0013267-1. Relatores Leo Henrique Furtado Araújo e Ana Paula Kaled Acioly Rodrigues.

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Em contrapartida, em julgados provenientes da 8ª Câmara Cível,

notadamente do Des. Jorge de Oliveira Vargas percebe-se posição diversa,

indicando a nulidade da prorrogação da entrega do imóvel. No fundamento

adotado, haveria afronta aos princípios insculpidos no artigo 422 do Código

Civil.160

Na construção desse fundamento, o Relator sustenta que essa

disposição seria abusiva, incompatível com um sistema que elege os direitos

do consumidor como preponderantes:

A cláusula de tolerância (41 do contrato) de fls. 35, que admite um atraso de 180 dias para a entrega da obra, sem qualquer justificativa, é abusiva. Apesar da proteção do consumidor se constituir num direito fundamental, e, no caso, de nível horizontal, ainda o consumidor brasileiro tem sido tratado pela parte mais forte, no caso, a construtora, como de segunda categoria. Uma cláusula unilateral dessa natureza, em contrato de adesão, que permite, sem justificativa, um inadimplemento contratual dessa ordem, é evidentemente abusiva e, como tal, não pode surtir efeito. Não atende aos princípios da probidade e da boa-fé (arts. 422 do CC/2002 e 51, IV do CDC).

160PARANÁ. Tribunal de Justiça. Base de Jurisprudência. EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE CLÁUSULA CONTRATUAL C/C REPARAÇÃO DE DANOS MATERIAIS E MORAIS. CONTRATO DE COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA. ATRASO NA ENTREGA DO IMÓVEL. APELAÇÃO 2. FORÇA MAIOR EM RAZÃO DE DIAS CHUVOSOS ACIMA DA MÉDIA. INCONGRUIDADE. FATO PREVISÍVEL EM CONSTRUÇÃO CIVIL. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DE QUE AS CHUVAS TENHAM IMPORTADO NA PARALIZAÇÃO DA OBRA A PONTO DE JUSTIFICAR O ATRASO. DATA DA OCUPAÇÃO DO IMÓVEL. OCUPAÇÃO QUE SÓ OCORREU QUANDO O IMÓVEL ESTAVA EM CONDIÇÕES DE SER OCUPADO.LUCROS CESSANTES. VALOR MÉDIO DO ALUGUEL DE IMÓVEL DE IGUAL PADRÃO, NA REGIÃO. RECURSO NÃO PROVIDO. APELAÇÃO 1. CLÁUSULA CONTRATUAL DE TOLERÂNCIA DE PRAZO PARA ENTREGA DA OBRA: 180 DIAS, SEM JUSTIFICATIVA. CLÁUSULA UNILATERAL EM CONTRATO DE ADESÃO. ABUSIVIDADE. CLÁUSULA QUE NÃO ATENDE AOS PRINCÍPIOS DA PROBIDADE E DA BOA-FÉ CONTRATUAL E TAMPOUCO A FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO. O CONTRATANTE, AO ELABORAR O CONTRATO, NÃO DEVE LEVAR EM CONTA SÓ SEU INTERESSE, MAS O DO OUTRO TAMBÉM. DANO MORAL CARACTERIZADO. ABUSO DA PARTE MAIS FORTE.INCÔMODO, IRRITAÇÃO, SENSAÇÃO DE DESCASO QUE ULTRAPASSAM O MERO ABORRECIMENTO. VALOR DA INDENIZAÇÃO ARBITRATO EM R$20.000,00. MULTA CONTRATUAL. PREVISÃO SÓ EM CASO DE INADIMPLEMENTO DO COMPRADOR. ABUSIVIDADE. APLICAÇÃO À AMBAS AS PARTES. SUCUMBÊNCIA QUE DEVE RECAIR SÓ SOBRE A RÉ. RECURSO PROVIDO. CONCLUSÃO: APELAÇÃO 1 PROVIDA E 2 NÃO PROVIDA.(TJPR - 8ª C.Cível - AC - 1089337-3 - Foro Central da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba - Rel.: Jorge de Oliveira Vargas - Unânime - - J. 13.03.2014). Disponível em https://portal.tjpr.jus.br/jurisprudencia/j/11645303/Ac%C3%B3rd%C3%A3o-1089337-3

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O destaque é o princípio da boa-fé objetiva, supostamente ferido pela

cláusula de tolerância. É um entendimento fundamentado, mas que, todavia,

encontra posicionamento diverso, exatamente pelo mesmo princípio.

Nesse confronto, a procura por precedentes de outros Estados da

federação, evidencia que a situação referida no voto da 8ª Câmara não é tão

pacífico. Um bom exemplo é o Tribunal de Justiça de Minas, que textualmente

afirma a compatibilidade da cláusula de tolerância com a boa-fé objetiva: “

Neste contexto, deve-se inicialmente esclarecer que a previsão contratual de

prazo de tolerância para entrega do imóvel leva em consideração as

peculiaridades do contrato em exame e não ofende o postulado da boa-fé

objetiva.”161

Outros Regionais já enfrentaram a interpretação da validade da

cláusula de tolerância por esse artigo consumerista, sem enxergar a nulidade

vislumbrada pela 8ª Câmara. Os Estados do Rio Grande do Sul e do Espírito

Santo tem precedentes com indicação diversa, afirmando a compatibilidade da

cláusula de tolerância com a disciplina das nulidades contratuais do CDC.

Inicie-se a abordagem pela posição do Tribunal de Justiça do Rio

Grande do Sul onde nos autos 0144214-89.2014.8.21.7000162, a textualidade

da decisão permite aferir que não haveria arbítrio do fornecedor ao estipular

essa previsão em seu contrato de adesão: “A pactuação, ademais, não se

sujeita ao puro arbítrio da fornecedora, tampouco confere desvantagem

exagerada ao consumidor, de modo que não ofende o disposto no art. 51, IV,

do Código de Defesa do Consumidor”

Na fundamentação, muito embora não se vislumbre maior exploração

teórica da boa-fé objetiva, sua compatibilidade com o sistema é perceptível

161 MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. Base de Jurisprudência. Apelação Cível 1.0024.12.163540-3-/01. Des. Valdez Leite Machado. Disponível em 161 http://www5.tjmg.jus.br/jurisprudencia/pesquisaNumeroCNJEspelhoAcordao.do?numeroRegistro=1&totalLinhas=1&linhasPorPagina=10&numeroUnico=1.0024.12.163540-3%2F001&pesquisaNumeroCNJ=Pesquisar. Acesso em 16 fev. 15. 162 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Base de jurisprudência. Apelação Cível 0011856-63.2014.8.21.7000. Relator Carlos Cini Marchionatti. Disponível em http://www3.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento.php?ano=2014&codigo=730727. Acesso em 16 fev. 15.

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pela imprevisibilidade dos fatores que se relacionam com a construção civil.

Disso a validade da cláusula de tolerância, sendo sua previsão no contrato

suficiente para uso pela incorporadora:

A previsão contratual da tolerância de 180 dias na entrega da obra não se afigura abusiva, como alegam os autores. Na verdade, trata-sede cláusula padrão nos contratos como o da espécie, cujo empreendimento possui natureza complexa e sujeita a situações involuntárias das mais variadas espécies, sendo dever da construtora alertar o promitente comprador acerca de eventual atraso na entrega da obra, mediante previsão contratual expressa, como no caso.

Na mesma linha o Tribunal de Justiça do Espírito Santo. Ele, ao julgar a

Apelação Cível sob nº 0006850-19.2011.8.08.0024163 da 10ª Vara Cível de

Vitória, interpretou que o emprego da cláusula de tolerância não afronta às

hipóteses do artigo 51 do Código de Defesa do Consumidor:

Nesse passo, por evidenciada a clareza das disposições contratuais acerca do efetivo prazo para a conclusão da obra, não há que se falar na alegada abusividade suscitada pelos recorrentes a ensejar a nulidade da cláusula combatida, não se enquadrando o caso dos autos em qualquer das hipóteses previstas no artigo 51 do Código Consumerista.

Cria-se então um imbróglio, que a depender do seu resultado pode

impactar na situação de milhares de consumidores ligados à construção civil ou

de empresas desse ramo, que litigam sobre essa tese. Não há por parte do

Superior Tribunal de Justiça uma posição final sobre o assunto, especialmente

por meio de Sumula, gerando a incerteza e a proliferação das demandas dessa

ordem.

163 ESPÍRITO SANTO. Tribunal de Justiça. Base de Jurisprudência. Apelação Cível. 0031849-36.2011.8.08. 0024. Relator Victor Queiroz Schneider. Disponível em http://aplicativos.tjes.jus.br/sistemaspublicos/consulta_jurisprudencia/temp_pdf_jurisp/11142393767.pdf?CFID=5666650&CFTOKEN=37442718. Acesso em 16 fev. 2015

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4.3. As razões para a validação ou a nulificação da cláusula de tolerância

Há diversos fundamentos em prol da adoção da cláusula de tolerância

aos compromissos de venda e compra, podendo o mais incipiente ser traduzido

num dos artigos da Lei de Incorporação Imobiliária, que leva o número

4.591/64. Referida disposição prevê em seu corpo a possibilidade de constar

no projeto e no memorial de incorporação imobiliária, o prazo de entrega das

obras e as condições e formas de sua eventual prorrogação.164

A disposição legal trata de hipótese diversa àquele vivenciada no

mercado imobiliário atual. Na situação narrada, tem-se o acerto para a

construção de empreendimento pelos próprios adquirentes e uma construtora,

o que difere das hipóteses contemporâneas, de imóveis na planta, onde a

contratação é feita de modo isolado pelos compromissários-compradores.

Todavia, essa diferenciação não retira o âmbito de eficácia da

disposição aos casos mais modernos, na medida em que sempre houve a

possibilidade de dilação de prazo, condicionado no caso da Lei 4.591/64 à

forma de sua prorrogação. Numa interpretação baseada num juízo de

razoabilidade, não se mostra exagerado que a existência de uma dilação de

prazo (desde que certa), não possa ser empregada.

Aos críticos, o melhor fundamento contrário à essa prerrogativa estaria

no Código de Defesa do Consumidor e o seu rol não taxativo de abusividades

contratuais constantes do já referidos artigo 51. Para eles, a mera inserção da

disposição no compromisso de compra de venda, seria nula de pleno direito, o

que não pode ser admitido como regra.

Nulificar uma disposição apenas porque o consumidor a ela aderiu é

atitude não consentânea à segurança jurídica. Muito embora o contrato possa

ostentar essa natureza adesiva, sem a possibilidade de alteração das suas 164 BRASIL. Lei 4591/64. Art. 48. A construção de imóveis, objeto de incorporação nos moldes previstos nesta Lei poderá ser contratada sob o regime de empreitada ou de administração conforme adiante definidos e poderá estar incluída no contrato com o incorporador (VETADO), ou ser contratada diretamente entre os adquirentes e o construtor. § 1º O Projeto e o memorial descritivo das edifcações farão parte integrante e complementar do contrato; § 2º Do contrato deverá constar a prazo da entrega das obras e as condições e formas de sua eventual prorrogação. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l4591.htm. Acesso em 27 abr. 15.

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disposições, a preservação de certas disposições é essencial a esse vetor de

segurança.

Sobre essa questão, pertinente a referência de decisão do TJ/PR165,

envolvendo a temática:

Primeiramente, o apelante busca a declaração de nulidade da data de entrega estabelecida no segundo contrato, pois teria sido induzido em erro pela construtora, que se aproveitou de sua inferioridade como consumidor diante do contrato de adesão apresentado. Argumenta que as cláusulas contratuais devem ser interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor e que, ademais, a requerida não comprovou que o requerente não foi induzido em erro, ônus que lhe incumbia, nos termos do art. 333, II, do CPC. Não merece acolhida a tese de que foi induzido em erro pela construtora no que concerne à data de entrega do imóvel, simplesmente pelo fato de ser consumidor e estar diante de contrato de adesão. Ora, se assim o fosse, todos os contratos firmados entre consumidores e fornecedores, simplesmente pelo fato de serem "de adesão", teriam de ser anulados.

Portanto, o argumento da adesividade do consumidor à avença que

prevê à tolerância pode sucumbir frente à segurança jurídica. Caso esse

entendimento prevalecesse de modo irrestrito, os contratos não seriam

firmados para seu cumprimento, mas, todavia, para sua revisão pelo Poder

Judiciário.

De forma paralela à norma consumerista gravitam outras normas

jurídicas, especialmente como se demonstrou no presente trabalho: a

165 PARANÁ. Tribunal de Justiça. Base de Jurisprudência. APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO ORDINÁRIA. ATRASO NA ENTREGA DA OBRA. REPERCUSSÕES JURÍDICO- CONTRATUAIS. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. APLICABILIDADE. INVERSÃO DO ÔNUS PROBATÓRIO. IMPOSSIBILIDADE DE PRODUÇÃO DE PROVA NEGATIVA PELO FORNECEDOR. PRAZO DE TOLERÂNCIA. ART. 18, §2º, DO CDC. DATA PREVISTA PARA O TÉRMINO DA OBRA. CLÁUSULA QUE ESTAVA EM DESTAQUE E EM POSIÇÃO DE FÁCIL VISUALIZAÇÃO. VALIDADE. TERMO FINAL PARA O CÔMPUTO DE LUCROS CESSANTES. VEDAÇÃO DA REFORMATIO IN PEJUS MANUTENÇÃO DA SENTENÇA, QUE UTILIZOU A DATA DA VISTORIA DO IMÓVEL PELO COMPRADOR. "INVERSÃO" DA MULTA MORATÓRIA EM FAVOR DO COMPRADOR. INVIABILIDADE.PODER JUDICIÁRIO QUE NÃO PODE CRIAR MECANISMOS COERCITIVOS OU SANCIONATÓRIOS INEXISTENTES NO CONTRATO. OBRA ENTREGUE NO PRAZO AVENÇADO. DANO MORAL TRIBUNAL DE JUSTIÇA APELAÇÃO CÍVEL Nº 1.211.481-7 INEXISTENTE NO CASO. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO. (TJPR - 6ª C.Cível - AC - 1211481-7 - Curitiba - Rel.: Clayton de Albuquerque Maranhão - Unânime - - J. 10.03.2015). Disponível em https://portal.tjpr.jus.br/jurisprudencia/j/11857735/Ac%C3%B3rd%C3%A3o-1211481-7#.

96

razoabilidade. Tal vetor pode ser harmonizado com a vigência da cláusula de

tolerância empregada na construção civil, na medida em que tal disposição se

justifica em situações próprias ao setor.

Nesse fundamento, pertinente o referencial da doutrina de Humberto

Avila quando refere o vetor em seu clássico que versa sobre os princípios. Para

ele, a razoabilidade possui três facetas, almejando uma plena exação da norma

ao fato em análise.

Relativamente à razoabilidade, dentre tanta acepções, três se destacam. Primeiro a razoabilidade é utilizada como diretriz que exige a relação das normas gerais com as individualidades do caso concreto, quer mostrando sob qual perspectiva a norma deve ser aplicada, quer indicando em quais hipóteses o caso individual, em virtude de suas especificidades, deixa de se enquadrar como norma geral. Segundo, a razoabilidade é empregada como diretriz que exige uma vinculação das normas jurídicas com o mundo a qual elas fazem referência, seja reclamando a existência de um suporte empírico e adequado a qualquer ato jurídico, seja demandando uma relação congruente entre a medida adotada e o fim que ela pretende atingir. Terceiro a razoabilidade é utilizada como diretriz que exige a relação de equivalência entre duas grandezas.166

Tais indicativos permitem concluir que o fundamento da mitigação

consumerista para fazer incidir a cláusula de tolerância pode encontrar base no

vetor da razoabilidade, especialmente em razão da natureza do produto final.

A construção civil é atividade muita específica. Apesar dos avanços

tecnológicos, a mão de obra é fator preponderante na consecução dos

empreendimentos e nesse quesito, importante defasagem houve nos últimos

anos.

Essa defasagem, diga-se de passagem, decorre de um processo de

déficit educacional em matéria de formação técnica. Com o crescimento

assombroso do ensino superior, propagaram-se os bacharéis, sem a devida

formação de um grupo intermediário, destinado às atividades técnicas mais

qualificadas.

166 ÁVILA, 1995. p. 152.

97

A má qualidade da educação brasileira e as limitações históricas do ensino técnico, combinados com o aquecimento da economia brasileira nos últimos anos, que levou a uma queda progressiva das taxas de desemprego, parecem justificar uma preocupação generalizada na sociedade brasileira a respeito de um suposto “apagão de mão de obra”, ou seja, a dificuldade do setor produtivo conseguir no mercado de trabalho pessoas com as qualificações profissionais de que necessita. Os baixos níveis de desemprego, mesmo com o desaquecimento da economia nos anos mais recentes, parecem também confirmar a existência de um problema estrutural de falta de mão de obra.167

Nesse grupo deficitário se enquadram mestres de obra, eletricistas e

outros técnicos, pessoas que demandam de formação técnica mínima para sua

atuação no setor da construção civil. Houve demanda de trabalho, mas o

atendimento foi insuficiente em razão da inaptidão dos candidatos, que apenas

tinham condições de ocupar o chão da construção civil.

Esse déficit, causado em razão do aquecimento do setor, foi um dos

preponderantes para estender os prazos estabelecidos contratualmente, sendo

a cláusula de tolerância empregável em razão desse fator. Seria pouco

razoável imaginar o atraso de um empreendimento por mera vontade do

incorporador/construtor, até porque como principal interessado no recebimento

dos valores devidos pelo imóvel, recuperando seu capital e obtendo lucros.

Evidente que na condição de adquirente de produto final, o

compromissário-comprador tem seu favor as disposições consumeristas,

podendo em razão disso, gozar das prerrogativas que lhe são próprias. Essa

condição, no entanto, não pode tocar esse prazo suplementar dado ao

construtor para finalização da bora, sendo ele compatível com o princípio da

boa-fé objetiva.

A questão, além de robusta base jurisprudencial tem fundamento em

amplo debate legislativo, capitaneado recentemente pelo deputado paranaense

167 SCHWARTZMANN, Simon; CASTRO, Claudio de Moura. Ensino, formação profissional e a questão de mão de obra. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/ensaio/v21n80/a10v21n80.pdf. Acesso em 27 abr. 2015.

98

Eduardo Sciarra168. No projeto de Lei originário, sob n 178/2011169, de autoria

do deputado paulista Eli Correia Filho, se estabelecia a nulidade de pleno

direito da cláusula de tolerância, estipulando-se em desfavor do

incorporador/construtor uma punição de 2% do valor do contrato, a ser paga ao

consumidor, além de outra multa de 0,5% sobre o valor do empreendimento, a

ser revertida em favor do Procon.

Todavia, após esse debate, prevaleceu um projeto substitutivo 170 ,

invertendo o espírito da intenção anterior e validando a cláusula de tolerância

de até 180 dias, desde que o comprador receba a informação sobre possíveis

atrasos na entrega. Ultrapassado esse prazo, o construtor/incorporador estaria

incurso numa pena correspondente a 1% (um por cento) do valor até então

pago pelo adquirente, mais multa moratória de 0,5% (meio por cento), podendo

tais valores ser abatidos do saldo devedor final a ser quitado pelo comprador.

Com a oficialização dessa disposição, ainda na roupa de lege ferenda,

a polêmica da validade da cláusula de tolerância estaria encerrada, mas,

contudo, ser esvaídos os debates acerca da reparação pecuniária nesse

período.

Qual a natureza dessa punição? Seria ela de natureza contratual,

apesar de prevista em lei? Seria ela suficiente para indenizar o

compromissário-comprador relativamente à todas despesas sofridas no

período? E, por fim, ainda que o debate não se limite a tal dúvida, essa

penalidade compensatória supriria eventual condenação moral?

Tais questionamentos são relevantes tendo-se em consideração o que

vem deliberando o STJ para situações onde ocorre atraso de obra. Neles,

reconhece-se a possibilidade de cumulação de multa em desfavor da

168 BRASIL. Câmara dos Deputados. Câmara aprova multa para atraso na entrega de imóvel na planta. Disponível em http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/CIDADES/470031-CAMARA-APROVA-MULTA-PARA-ATRASO-NA-ENTREGA-DE-IMOVEL-NA-PLANTA.html. Acesso em 169 BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei 178/2011. Disponível em http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=837710&filename=Tramitacao-PL+178/2011. Acesso em 28 abr. 15. 170 BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei 178-D/2011. Disponível em http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1305660&filename=Tramitacao-PL+178/2011. Acesso em 28 abr. 15.

99

construtora/incorporadora, sem prejuízo de cumulação da indenização,

inclusive de modo presumido 171 . Na hipótese, os entendimentos

jurisprudenciais via de regra, invertem as multas devidas em razão de mora

pelo comprador, mediante a sua aplicação contra o construtor/incorporador.

Portanto, ainda que a lei possa servir para validar a tolerância, caso

seja mesmo aprovada, caberá aos Tribunais novo enfrentamento das questões

alusivas à entrega do bem compromissado, especialmente se a pena

decorrente da lei abrangeria todas as indenizações possíveis ao comprador.

Mais uma prova que o campo dado aos princípios será ainda mais fértil.

4.4. Cláusula resolutória x boa-fé objetiva: a jurisprudência estaria

decretando o fim desse instituto?

Outro ponto relevante ao se abordar a incidência da boa-fé objetiva ao

compromisso de compra e venda, está na sua harmonização com outra

cláusula existente nos contratos dessa ordem, a resolutória.

O Código Civil de 1916 já estabelecia previsão autorizando que as

partes dispusessem sobre a resolução de um contrato sem a necessidade de

um termo de resilição, e menos ainda, à mercê de decisão judicial declaratória.

Mas, todavia, foi na década de 30, quando o legislador estabeleceu a

possibilidade da aquisição de terrenos urbanos em prestações mensais, o

modo mais enfático da sua aplicação. O Decreto Lei 58/37 emprestou garantias

171 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Base de Jurisprudência. DIREITO CIVIL. PROMESSA DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL EM CONSTRUÇÃO. INADIMPLEMENTO PARCIAL. ATRASO NA ENTREGA DO IMÓVEL. MORA. CLÁUSULA PENAL. PERDAS E DANOS. CUMULAÇÃO. POSSIBILIDADE. 1.- A obrigação de indenizar é corolário natural daquele que pratica ato lesivo ao interesse ou direito de outrem. Se a cláusula penal compensatória funciona como pre-fixação das perdas e danos, o mesmo não ocorre com a cláusula penal moratória, que não compensa nem substitui o inadimplemento, apenas pune a mora. 2.- Assim, a cominação contratual de uma multa para o caso de mora não interfere na responsabilidade civil decorrente do retardo no cumprimento da obrigação que já deflui naturalmente do próprio sistema. 3.- O promitente comprador, em caso de atraso na entrega do imóvel adquirido pode pleitear, por isso, além da multa moratória expressamente estabelecida no contrato, também o cumprimento, mesmo que tardio da obrigação e ainda a indenização correspondente aos lucros cessantes pela não fruição do imóvel durante o período da mora da promitente vendedora. 4.- Recurso Especial a que se nega provimento. (REsp 1355554/RJ, Rel. Ministro SIDNEI BENETI, TERCEIRA TURMA, julgado em 06/12/2012, DJe 04/02/2013)

100

aos compromissários-compradores, mas também assegurou aos vendedores,

mecanismos mais efetivos de retomada do bem em caso de mora.

Fora do Código Civil, há disposições sobre a resolução legal na Lei nº 6649/79, art. 32, que regula hipóteses de extinção resolutiva, independentemente de resolução contratual, pelo atraso no pagamento de prestações devidas na quitação de imóvel urbano loteado, assim como já constava no art. 14 do Decreto-Lei nº 58, de 10/12/37 e no art. 14 do Decreto 3079, de 15/09/38, que dispunham sobre a mesma matéria.

De forma paralela, a Lei 9.504/97, reforçada pelas alterações

decorrentes da Lei 10.931/2004, deixou mais evidente a predileção do

legislador por meios de garantia da dívida imobiliária e a possibilidade de

retomada do bem, especialmente em caso de mora pelo devedor.

A dinâmica também constava do anteprojeto do jurista Miguel Reale,

que aguardava de forma paciente sua aprovação pelo Congresso Nacional. O

instituto foi aprovado junto com o Novo Código Civil de 2.002, constando em

vários artigos.

A resolução legal está prevista no Código Civil para todos os contratos bilaterais (art. 475) havendo disposições apropriadas a cada modalidade de obrigação (art. 233 e ss. do Código Civil) e normas especiais para a resolução da venda vitalícia (art. 810) para a doação modal (art. 562) e para a venda de imóvel com área a menor (art. 500), além de outras regras esparsas.172

Todavia, mesmo à luz de tantas evidências acenando pela validade

das disposições resolutórias imobiliárias, a sua segurança no universo dos

negócios dessa área tem sido colocada em dúvida. Houve sim algum

refinamento dos institutos correlatos, mas isso não serviu para convencer

muitos juristas da sua efetividade.

172 AGUIAR JUNIOR, Ruy Rosado de. Extinção dos contratos por incumprimento do devedor. Rio de Janeiro: AIDE Editora, 2004. p. 54.

101

Retirou de uso o vetusto pacto comissório para dar vez e destaque às cláusulas ou condições resolutivas expressas como sucedâneo muito mais eficiente. Assim, por meio dos artigos 121, 474 e 475, tornou possível que as partes, mesmo usando de pagamento fracionado do preço, lavrem e firme escritura pública de compra e venda, imperando condição resolutiva expressa segundo a qual, não pago o preço na forma e no prazo convencionado, a compra e venda simplesmente se desfaz.173

É que apesar da sua autorização legal, a exemplo do que acontece

com a cláusula de tolerância, em analogia à Lei de Incorporação Imobiliária, a

temática resolução extrajudicial do contrato foi judicializada. Sustenta-se que

apesar da existência da disposição resolutiva, os motivos que levaram o

inadimplemento da parte adversa (não pagamento, inobservância de prazos e

cláusulas e etc.), careceriam de crivo do Poder Judiciário.

Imprescindível, portanto, a propositura de ação de resolução contratual, sob o rito ordinário, oportunidade em que caberá à parte que não deu causa ao rompimento do contrato provar a efetiva infração às obrigações nele previstas.174

Valter Farid Antonio Junior sustenta que o cumprimento da notificação

extrajudicial por meio público não teria o condão de resolver o negócio

estabelecido. Seria apenas um documento imprescindível à propositura da

ação de rescisão de contrato, sendo sua ausência, passível de levar o

processo à extinção sem julgamento de mérito.

Ainda que haja, no contrato de compromisso de compra e venda, a determinação do tempo, modo e local para o cumprimento da obrigação de pagar o preço nele avençado, a prévia notificação do compromissário comprador em mora é indispensável, sem o que não se aprecia o mérito da ação de resolução contratual.175

173 GALLI, 2.009. p. 522. 174 ANTONIO JUNIOR, 2009. p. 46. 175 ANTONIO JUNIOR, 2009. p. 47.

102

Nesse entendimento, o autor busca elementos de interpretação no

Código de Defesa do Consumidor, afirmando que em razão da hipossuficiência

do aderente, não existiria como lhe impor a prevalência de um instrumento

extrajudicial de rescisão, ainda que previsto no ordenamento jurídico. Talvez

em razão dessa condição especial, sustente ele que na hipótese de rescisão

pelo comprador, a declaração de rescisão é facultativa, podendo ser feita por

meio de carta com aviso de recebimento.

A prévia notificação é dispensada apenas nos casos em que a ação de resolução contratual é de iniciativa do compromissário comprador, onde, por exemplo, pleiteie a desconstituição do contrato cumulada com devolução de quantias pagas ou alegue alteração indevida do conteúdo do contrato (v.g. atraso na entrega da obra, divergência entre a planta prometida e construção, localização de lotes). Quanto à forma de notificação, o compromitente vendedor pode utilizar tanto forma extrajudicial como judicial, sendo que a primeira goza de maior difusão diante sua maior praticidade e menor custo. Eleita a via extrajudicial, o compromitente vendedor poderá se valer, por exemplo, de correspondência com aviso de recebimento ou de documento expedido por Cartório de Títulos e Documentos.176

Registre-se que essa posição não é meramente doutrinária. Forte

jurisprudência do STJ acompanha essa linha de entendimento, afirmando que

mesmo na vigência da cláusula resolutória, os efeitos não são automáticos,

demandando declaração da rescisão da avença. Nesse sentido a posição da 3ª 177 e 4ª Turma 178.

176 ANTONIO JUNIOR, 2009. p. 47. 177 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Base de Jurisprudência. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. MANUTENÇÃO DA DECISÃO. NATUREZA DO CONTRATO CELEBRADO. ANÁLISE. INCIDÊNCIA DAS SÚMULAS 5 E 7/STJ. CLÁUSULA RESOLUTÓRIA EXPRESSA. REINTEGRAÇÃO DE POSSE. AUSÊNCIA DE EFEITO AUTOMÁTICO. NECESSIDADE DE AÇÃO DE RESCISÃO CONTRATUAL. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. (AgRg no AREsp 175.485/SP, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 10/12/2013, DJe 17/12/2013). Disponível em https://ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa/?src=1.1.3&aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGenerica&num_registro=20120093356. Acesso em 16 fev. 15 178BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Base de Jurisprudência. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. REINTEGRAÇÃO DE POSSE. CONTRATO DE PROMESSA DE COMPRA E VENDA. CLÁUSULA RESOLUTÓRIA EXPRESSA. NECESSIDADE DE AÇÃO DE RESCISÃO CONTRATUAL. OMISSÃO DO ACÓRDÃO. INOCORRÊNCIA. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL. NÃO DEMONSTRADO. 1. É firme a jurisprudência do STJ no sentido de ser "imprescindível a prévia manifestação judicial na hipótese de rescisão de compromisso de compra e venda de imóvel para que seja consumada a resolução do contrato, ainda que existente cláusula resolutória expressa, diante da necessidade de observância do princípio da

103

Então, tem-se uma dicotomia entre o sistema civil, que autoriza a

cláusula resolutória e o posicionamento jurisprudencial do Superior do Tribunal

de Justiça. Mais que essa divergência, a ultima Corte chega a fundamentar a

necessidade da declaração de rescisão do contrato, considerando-se o

princípio da boa-fé objetiva, estudado de forma prévia no presente trabalho.

Em pese novamente existir razões consumeristas para uma filiação ao

que preceitua o Superior Tribunal de Justiça, também em contrapartida, há

motivos para se entender a desnecessidade de tal manobra, notadamente em

razão da demora no processo judicial.

Em se tratando de empreendimentos consistentes em apartamentos,

incide sobre a unidade os débitos condominiais, dada a sua natureza propter

rem. Evidente que até a respectiva posse, o compromissário-comprador não

faz esse pagamento, o que também pode não ser feito pelo

construtor/incorporador até o transito em julgado da sentença de confirmação

da rescisão do contrato.

A explicação é simples: não se torna razoável que ele pague débito

dessa natureza, pois em eventual improcedência da rescisão do compromisso

de compra e venda o pacto é considerado hígido, tendo o compromissário-

boa-fé objetiva a nortear os contratos. 3. Por conseguinte, não há falar-se em antecipação de tutela reintegratória de posse antes de resolvido o contrato de compromisso de compra e venda, pois somente após a resolução é que poderá haver posse injusta e será avaliado o alegado esbulho possessório". (REsp 620787/SP, de minha relatoria, QUARTA TURMA, julgado em 28/04/2009, DJe 27/04/2009, REPDJe 11/05/2009, REPDJe 15/06/2009).2. Não há falar em afronta ao artigo 535 do CPC se o Tribunal de origem examinou os aspectos delineados na lide e apresentou os fundamentos fáticos e jurídicos nos quais apoiou suas conclusões. 3. Para que se configure o prequestionamento da matéria, há que se extrair do acórdão recorrido pronunciamento sobre as teses jurídicas em torno dos dispositivos legais tidos como violados, a fim de que se possa, na instância especial, abrir discussão sobre determinada questão de direito, definindo-se, por conseguinte, a correta interpretação da legislação federal (Súmula 211/STJ).4. A admissibilidade do recurso especial, na hipótese da alínea "c" do permissivo constitucional, exige a indicação das circunstâncias que identifiquem ou assemelhem os casos confrontados, mediante o cotejo dos fundamentos da decisão recorrida com o acórdão paradigma, a fim de demonstrar a divergência jurisprudencial existente (arts.541 do CPC e 255 do RISTJ), o que não ocorreu na hipótese.5. Agravo regimental não provido.(AgRg no REsp 1337902/BA, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 07/03/2013, DJe 14/03/2013). Disponível em https://ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa/?tipoPesquisa=tipoPesquisaNumeroRegistro&termo=201301525426&totalRegistrosPorPagina=40&aplicacao=processos. Acesso em 28 de abril de 2015.

104

comprador a possibilidade (ainda que extremamente remota) de se tornar

efetivo proprietário da unidade.

Logo, com o devido respeito ao posicionamento do STJ, a confirmação

de uma rescisão de compromisso de compra e venda é medida que apesar de

prestigiar a ação judicial e sua inafastabilidade, gera consequências

indesejáveis para os contratantes, ainda mais se a tutela for demorada.

Não bastassem os débitos condominiais, lembre-se da incidência do

IPTU em razão da posse ou da propriedade imobiliária179, ônus esse que não

será arcado por nenhum dos contratantes, ao menos que tenham certeza da

confirmação da rescisão ou sucessivamente da continuidade do compromisso

para o respectivo exercício da posse.

Tamanha a superação desse modelo que a Lei 13.097/15

anteriormente tratada para referir o “Renavam Imobiliário”, também cuidou de

dar reforço à auto resolução do compromisso de compra e venda, mediante

disposição específica, aludindo aos Decretos-Lei 58/37 e 745/69 e ao artigo

474 do Código Civil:

“Art. 1o Nos contratos a que se refere o art. 22 do Decreto-Lei no 58, de 10 de dezembro de 1937, ainda que não tenham sido registrados junto ao Cartório de Registro de Imóveis competente, o inadimplemento absoluto do promissário comprador só se caracterizará se, interpelado por via judicial ou por intermédio de cartório de Registro de Títulos e Documentos, deixar de purgar a mora, no prazo de 15 (quinze) dias contados do recebimento da interpelação.

Parágrafo único. Nos contratos nos quais conste cláusula resolutiva expressa, a resolução por inadimplemento do promissário comprador se operará de pleno direito (art. 474 do Código Civil), desde que decorrido o prazo previsto na interpelação referida no caput, sem purga da mora.” (NR)180

179 BRASIL. Código Tributário Nacional. Art. 32. O imposto, de competência dos Municípios, sobre a propriedade predial e territorial urbana tem como fato gerador a propriedade, o domínio útil ou a posse de bem imóvel por natureza ou por acessão física, como definido na lei civil, localizado na zona urbana do Município. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5172.htm. Acesso em 28 abr. 15 180 BRASIL. Lei 13.097/2015. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13097.htm. Acesso em 15 fev. 15

105

Certo que a preocupação do STJ é a manutenção da relação

contratual, protegendo-se especialmente o compromissário-comprador da

rescisão unilateral e indevida. A isso não se pode negar a utilidade do crivo

judicial, ainda mais quando aquele demanda o construtor/incorporador

suscitando questões alusivas à entrega, à correção do saldo e até da situação

da unidade compromissada.

Todavia, como fica a situação em que o compromissário-comprador

não deseja mais a posse do imóvel ou então, não reúne condições financeiras

para quitar as prestações remanescentes, invariavelmente de grandes

proporções? Estaria o construtor/incorporador relegado em aguardar o trânsito

em julgado de uma sentença de confirmação de rescisão, quando o próprio

Código Civil já prevê a resolução extrajudicial da avença?

A resposta é negativa e um veículo processual pode ser empregado

para liberar o construtor/incorporador dos efeitos concernentes à rescisão do

contrato pela aplicação da cláusula desprestigiada pelo STJ. Trata-se da

consignação em pagamento, cuja dimensão permite a devolução das quantias

que o compromissário-comprador veio a adimplir, além de possibilitar que ele

discuta implicações concernentes à rescisão do negócio e o valor depositado

pelo construtor/incorporador.

É que referida demanda tem caráter dúplice, possibilitando que o

discuta-se em sede de contestação as matérias do artigo 896 do Código de

Processo Civil, inclusive apurando-se valor adicional aquele depositado no

início do processo. (artigo 899, §2º).

Assim, nos casos onde a constituição em mora é efetivada e inexiste

insurgência ou quitação pelo compromissário-comprador, a consignação em

pagamento181, pode ser empregada para restituição dos valores já antecipados

181 PARANÁ. Tribunal de Justiça. Base de Jurisprudência. APELAÇÃO. COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA.INADIMPLÊNCIA DO PROMITENTE COMPRADOR.IMÓVEL SEM OCUPAÇÃO. NOTIFICAÇÃO EXTRAJUDICIAL PARA CUMPRIMENTO DA AVENÇA.DECURSO DO PRAZO LEGAL SEM PAGAMENTO.CONTRATO COM PREVISÃO DE CLÁUSULA RESOLUTÓRIA. APLICAÇÃO DO ART. 474 E 475 DO CÓDIGO CIVIL. DEVOLUÇÃO DE PARTE DOS PAGAMENTOS FEITOS POR MEIO DE AÇÃO CONSIGNATÓRIA. PROMITENTE VENDEDOR QUE FAZ DEPÓSITO DE 50% DAS PARCELAS PAGAS.VALOR INSUFICIENTE. PRECEDENTES DO STJ QUE ESTIPULAM O

106

pelo comprador visando à aquisição do imóvel. Nos compromissos atualmente

firmados há o pagamento de pequeno sinal de negócio e invariavelmente

parcelas e “balões” os quais devem ser restituídos em razão da rescisão do

contrato.

Registre-se que esse percentual pode variar de acordo com cada

contrato, mas a jurisprudência do STJ já definiu que mesmo no caso de

rescisão imotivada, a fração apropriada gravita entre 75182e 90%183 dos valores

pagos, pois o construtor/incorporador pode deduzir uma parcela desse

montante, para o ressarcimento de suas despesas de ordem administrativa.

DIREITO DE RETENÇÃO EM 25%.NECESSIDADE DE COMPLEMENTAÇÃO DO DEPÓSITO. SALDO A SER DEVIDO PELA VENDEDORA QUE SE PASSA A CONSTITUIR TÍTULO LÍQUIDO. ART. 899,§ 2º DO CPC. MODIFICAÇÃO DA SUCUMBÊNCIA. APELAÇÃO PARCIALMENTE PROVIDA. POR MAIORIA. (TJPR - 7ª C.Cível - AC - 1142949-5 - Curitiba - Rel.: Antenor Demeterco Junior - Rel.Desig. p/ o Acórdão: Victor Martim Batschke - Por maioria - J. 13.05.2014). Disponível em https://portal.tjpr.jus.br/jurisprudencia/j/11755599/Ac%C3%B3rd%C3%A3o-1142949-5#integra_11755599. Acesso em 28 abr. 15. 182 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Base de jurisprudência. AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO. INEXISTÊNCIA. PROMESSA. COMPRA E VENDA. DESISTÊNCIA. PROMITENTE COMPRADOR. VALORES PAGOS. RESTITUIÇÃO. RETENÇÃO. 25% (VINTE E CINCO POR CENTO). JUROS DE MORA. TERMO INICIAL. DECISÃO JUDICIAL. PARCIAL PROVIMENTO. 1. Não é deficiente em sua fundamentação o julgado que aprecia as questões que lhe foram submetidas, apenas que em sentido contrário aos interesses da parte. 2. A desistência do promitente comprador, embora admitida por esta Corte, rende ao promitente vendedor o direito de reter até 25% (vinte e cinco por cento) dos valores por aquele pagos a qualquer título, desde que não supere o contratualmente estipulado. 3. "Na hipótese de resolução contratual do compromisso de compra e venda por simples desistência dos adquirentes, em que postulada, pelos autores, a restituição das parcelas pagas de forma diversa da cláusula penal convencionada, os juros moratórios sobre as mesmas serão computados a partir do trânsito em julgado da decisão." (REsp 1008610/RJ, Rel. Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 26/03/2008, DJe 03/09/2008). 4. Agravo regimental a que se dá parcial provimento. (AgRg no REsp 927.433/DF, Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, QUARTA TURMA, julgado em 14/02/2012, DJe 28/02/2012). Disponível em https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=200700372560&dt_publicacao=28/02/2012. Acesso em 29 abr. 15. 183 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Base de jurisprudência. PROMESSA DE COMPRA E VENDA. RESTITUIÇÃO. O COMPRADOR QUE DEIXA DE CUMPRIR O CONTRATO ALEGANDO INSUPORTABILIDADE DA OBRIGAÇÃO TEM O DIREITO DE PROMOVER AÇÃO PARA RECEBER A RESTITUIÇÃO DAS IMPORTANCIAS PAGAS. APLICAÇÃO DA REGRA DO ART. 924 DO CCIVIL, PARA REDUZIR A DEVOLUÇÃO A 90% DAS IMPORTANCIAS RECEBIDAS PELA PROMITENTE VENDEDORA. RECURSO CONHECIDO, PELA DIVERGENCIA, E PARCIALMENTE PROVIDO. (REsp 132.903/SP, Rel. Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR, QUARTA TURMA, julgado em 16/09/1997, DJ 19/12/1997, p. 67507). Disponível em https://ww2.stj.jus.br/processo/ita/listarAcordaos?classe=&num_processo=&num_registro=199700354520&dt_publicacao=19/12/1997. Acesso em 29 abr. 15.

107

Após o depósito do montante, como condição para seguimento da ação

de consignação em pagamento, a apresentação de resposta escrita é momento

crucial para a convolação da consignação em pagamento como medida apta à

confirmação da rescisão.

Lembre-se que nesse estágio o compromissário-comprador já foi

notificado nos moldes do Decreto-Lei 745/69, cuja vigência foi ratificada pela

novel Lei 13.097/2015. Portanto ele já teria no mínimo os quinze dias previstos

na primeira disposição para controverter o saldo devedor, exercitando o seu

direito de ação por meio de demanda autônoma, quiçá, depositando o

incontroverso para efeito de receber as chaves do seu imóvel.

Assim, quando o comprador é citado na demanda de consignação em

pagamento, invariavelmente se limita a questionar o percentual em devolução,

não atacando a resolução extrajudicial do compromisso de compra e venda.

A falta de impugnação ao ato de rescisão gera então a não

controvérsia do fato e os efeitos processuais decorrentes. Orbitando as teses

da defesa apenas sobre as causas da quebra contratual e o percentual em

devolução (sem atingir a rescisão), o processo segue para a finalidade

desejada por ambos os contratantes.

Para que um fato possa ser considerado não contestado, não basta simplesmente a não contestação – ou um mero comportamento passivo em relação ao fato -, sendo necessário verificar se outras alegações, contidas na contestação ou mesmo na reconvenção, não significam, mesmo que implicitamente, a sua negação. Se o réu deixa de contestar um fato de forma específica, o efeito da não contestação - ou seja, a admissão do fato como verdadeiro – somente se produzirá se as demais alegações da defesa não forem tomadas como negação do fato não contestado de maneira individualizada. 184

Através desse veículo pode então o compromissário-comprador atacar

a causa da rescisão, o que influenciará no percentual em devolução, inclusive

na sua totalidade, caso haja culpa da parte adversa.

184 MARINONI, Luiz Guilherme. Processo de conhecimento. 12ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. p. 283

108

Lembre-se que mesmo com a insuficiência do valor depositado na

consignação, não deve o juiz julgar improcedente a medida. O artigo 899, §2º

do CPC empresta base para que nos próprios autos seja apurado o valor

devido em favor do compromissário-comprador.

A ação de consignação em pagamento admite o exame da validade e da interpretação de cláusulas contratuais, uma vez que se trata hoje de instrumento processual eficaz para dirimir os desentendimentos entre as partes a respeito do contrato, em especial, do valor das prestações. A insuficiência do depósito não significa mais a improcedência do pedido: quer dizer apenas que o efeito da extinção da obrigação é parcial, até o montante da importância consignada, podendo o juiz desde logo estabelecer o saldo líquido remanescente, a ser cobrado na execução, que pode ter curso nos próprios autos. (STJ, 4ª T. Resp. 448.602-SC, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 10.12.2002. v.u. DJU 17.2.2003185

Outra vantagem evidente ao compromissário-comprador está na

previsão desse mesmo artigo em seu parágrafo anterior. Ele faculta o

levantamento do valor incontroverso depositado, possibilitando que o

compromissário continue a discutir o montante remanescente.

Com esse levantamento, indubitável que o compromissário concorda

de forma inquestionável com a rescisão. Assim, pode o construtor/incorporador,

de forma totalmente segura, entender como rescindido o compromisso,

alienando a unidade para terceiros.

Essa solução, consentânea com o espírito da novel Lei 13.097/2015,

não afronta a boa-fé objetiva e as prerrogativas, especialmente de ordem

consumerista, do compromissário-comprador. No prazo de 15 dias assinalado

para purgação da mora, há tempo para o exercício das medidas preservativas

dos seus interesses, especialmente a quitação do saldo devedor pelo que

entende correto.

Novamente a jurisprudência ampara essa linha, sendo muito pacífica

em deliberar pelo congelamento, ainda que provisório, do saldo devedor

185 NERY JUNIOR, Nelson. Código de processo civil comentado e legislação extravagante. 14ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. p. 1426.

109

decorrente do compromisso de compra e venda, possibilitando o pagamento

pelo compromissário186. Há então caminho muito tranquilo a ele, caso pretenda

mesmo prosseguir no cumprimento do contrato integralizando o preço

correspondente ao imóvel, fazendo uso de demanda autônoma.

Como se demonstra, a jurisprudência do STJ precisa adequar-se ao

que preceituam as disposições de resolução extrajudicial do compromisso de

venda e compra. A jurisdição é inafastável, mas não pode ser

contraproducente, ao passo de exigir uma delonga judicial para a resolução de

um contrato que invariavelmente, pelo comportamento do seu comprador,

jamais será cumprido.

186 PARANÁ. Tribunal de Justiça. Base de Jurisprudência. AGRAVO DE INSTRUMENTO - AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE DE CLÁUSULA CONTRATUAL C/C REPARAÇÃO DE DANOS E PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO PARCIAL DE TUTELA - AQUISIÇÃO DE IMÓVEL - FINANCIAMENTO DO SALDO DEVEDOR - CONGELAMENTO DO SALDO DEVEDOR ATÉ A DATA PREVISTA NO CONTRATO PARA ENTREGA DO IMÓVEL - PRESENTE O RISCO DE DANO IRREPARÁVEL OU DE DIFÍCIL REPARAÇÃO - PRESENÇA DOS REQUISITOS DO ARTIGO 273, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL - DECISÃO MANTIDA PARA O FIM DE CONGELAMENTO DO PREÇO DO SALDO DEVEDOR ATÉ A CONCLUSÃO DEFINITIVA DA OBRA - AGRAVO DE INSTRUMENTO DESPROVIDO. (TJPR - 7ª C.Cível - AI - 977881-2 - Curitiba - Rel.: Antenor Demeterco Junior - Unânime - - J. 10.09.2013). Disponível em https://portal.tjpr.jus.br/jurisprudencia/j/11547812/Ac%C3%B3rd%C3%A3o-977881-2#. Acesso em 29 abr. 15

110

5. CONCLUSÃO

O Brasil ingressou no século XXI mergulhado numa realidade

econômica mais favorável, onde o acesso aos bens de consumo incentivou o

alcance para uma classe consumidora antes relegada. Um dos maiores

visados nessa empreitada foi o bem imóvel, especialmente no meio urbano,

fazendo surgir uma verdadeira indústria composta por estandes de vendas,

andaimes e contratos.

Essa busca, por vezes desordenada, decorreu de fenômenos políticos

e econômicos, culminando numa expectativa de segurança própria aos

investimentos de longo prazo. Aqueles que necessitam adquirir um bem imóvel

e outros, que por meio desse instrumento almejavam investir (algo plenamente

lícito no sistema escolhido pelo país), não titubearam na compra desses bens

de raiz.

Como consequência, esse mercado cresceu em proporção descomunal

e os empreendimentos invadiram o meio urbano, trazendo não só o

atendimento das expectativas do futuro morador/investidor, mas também uma

série de percalços no cumprimento das obrigações contratadas de parte a

parte.

Essas controvérsias inundaram o Poder Judiciário, que hoje

seguramente tem dentre a sua clientela mais assídua os compradores de

imóveis na planta e via de consequência, os construtores/incorporadores.

Esperanças e empreendimentos foram judicializados, restando novamente aos

juízes dar resposta adequada às frustrações dos envolvidos.

O presente trabalho, além da base concernente ao compromisso de

compra e venda e a boa-fé objetiva focou duas casuísticas, a cláusula de

tolerância e a resolução extrajudicial dessa avença, sendo elas uma pequena

parte das discussões alusivas ao um novo ramo do direito, tratando dos

empreendimentos imobiliários. Cobrança de corretagem pelo imóvel na planta

a cargo do adquirente, entrega de áreas comuns, culpa do Poder Público na

111

concessão do “habite-se” em empreendimentos sem condições, perdas e

danos do construtor/incorporador pelo período relativo à indefinição do

pagamento do saldo, dentre outras, demandariam várias outras pesquisas.

Todas essas temáticas levam à conclusão de que nem todo o direito

escrito é suficiente a emprestar segurança necessária aos envolvidos. A

casuística, especialmente por meio dos precedentes jurisprudenciais, fez-se

necessária para determinar a amplitude do compromisso de compra e venda.

Nessa análise, um dos vetores à mão do juiz é o princípio da boa-fé

objetiva. Vetor de origem milenar, teve ainda a sua construção no direito

romano e algumas adaptações ao decorrer dos séculos, para chegar ao século

XXI positivado no Código Civil, fulminando qualquer alegação contrária a sua

importância.

Devidamente compreendido ao caso concreto, pode ser o diferencial

nas interpretações alusivas ao compromisso de compra e venda, evitando o

extremismo que invariavelmente impera nas decisões judiciais. De um lado, a

interpretação consumerista desmedida, podendo nulificar aquilo que sequer é

desejo do próprio litigante e de outro, a crença empresarial irrestrita na força

vinculante de um contrato, especialmente sob a forma de adesão.

Balancear esses dois fundamentos é o desafio dos operadores do

direito. Como se registrou, as ilegalidades precisam ser repelidas, mas não ao

ponto de decretar uma verdadeira intervenção judicial no setor. Deve-se

privilegiar o princípio da livre iniciativa, sem tirar o interesse do empresariado

no setor, ainda num tempo de recessão econômica.

Nas duas temáticas abordadas, (clausula de tolerância e resolução

extrajudicial do compromisso de compra e venda), percebeu-se a sensibilidade

do julgador e do legislador, respectivamente. Na primeira, a prevalência do

entendimento de validade da disposição no Tribunal de Justiça do Paraná,

demonstra a sua compreensão do real alcance da previsão. Já na outra, nota-

se que em razão de novel legislação (Lei 13.097/2015), busca-se dar força ao

que o Código Civil já bem dispunha quanto à possibilidade de resolução

extrajudicial de um contrato dessa ordem.

112

Entretanto, notou-se que os problemas decorrentes do compromisso de

compra e venda, também decorrem de uma secular falha consistente na

imperfeição dos serviços cartorários brasileiros. Ainda concebidos num modelo

colonial, relegam do seu âmbito uma parcela considerável da população,

fazendo que o histórico relativo a um imóvel, especialmente o exercício de

posses, não seja público.

O Código Civil de 2.002 veio mitigar esse cenário, possibilitando tornar

publico o compromisso de compra e venda para terceiros. Antecipa-se o

resultado daquela mera relação obrigacional, evitando indesejável alienação do

mesmo bem para terceiros e ainda, alertando qualquer interessado sobre a

relação jurídica inerente ao imóvel.

Trata-se de um manto protetivo, especialmente daqueles que elegem o

bem imóvel como integrante do patrimônio essencial à sua dignidade como ser

humano, na forma do magistério do Prof. Fachin, que de forma concomitante à

conclusão do presente, alcançou indicação ao STF

A pacificação social relativa aos interesses de compromissário-

comprador e construtor/incorporador demanda a maturação de todos esses

elementos, que como bem se demonstrou não será atingida pela mera

aplicação de normas. Ainda que na quimera de um registro imobiliário coerente

com a realidade do imóvel, público e acessível para todos e também no

cumprimento exato das normas contratuais pelas partes, ainda haverá espaço

para boas discussões, ainda mais num mercado tão promissor como da

construção civil.

O objetivo do presente focou de modo preponderante um único vetor,

mas as fontes do direito, (não necessariamente a norma escrita) são ricas em

fornecer novos elementos para o estudo doutrinário/acadêmico e seu

aproveitamento casuístico. Do mesmo modo em que um capítulo não se limita

um livro, a abordagem dos princípios é um processo em constante criação,

sendo o fato social elemento de constante aprimoramento.

113

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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