17
DA HISTÓRIA ENSINADA AOS SEUS FUNDAMENTOS TEÓRICOS: A CONCEPÇÃO DE HISTÓRIA DE AUGUSTO COMTE * Simone da Silva Negri Carrosi ** Maria Ap.Leopoldino T. Toledo *** RESUMO: O reconhecimento de que o ensino da História se faz dominantemente através da exposição de fatos históricos sustentados pela memorização conduziu- nos ao objetivo deste trabalho que consiste em problematizar tal prática pedagógica, através do estudo e da compreensão da concepção de história veiculada nas obras de Augusto Comte (1798-1857). O interesse em estudar este autor decorre da preocupação em investigar os fundamentos históricos que estão enraizados em sua teoria que, como expressão do pensar na sociedade capitalista, cristalizou-se na transmissão do saber histórico. Palavras-chave: Augusto Comte, concepção de História, História ensinada. HISTORY AS IT IS TAUGHT AND ITS THEORETICAL BASIS: COMTE’S CONCEPT OF HISTORY ABSTRACT: Since history is chiefly engaged in the exposition of historical facts supported by memorization, the problematization of such a pedagogical practice is provided. Research deals with an analysis and comprehension of the concept of history in the works of August Comte (1798-1857). The author’s interest in studying Comte is her concern in investigating the historical bases ingrained in the philosopher’s theories. Since these bases express the way of thinking in capitalist society, they form the substratum in the transmission of historical knowledge. Key words: August Comte, concept of History, History as it is taught. INTRODUÇÃO Este artigo teve origem nas reflexões realizadas através do programa de Iniciação Científica (PIBIC), que envolveu o estudo das principais obras de Augusto Comte (1798-1857), na busca de vasculhar em seus escritos a concepção que esse autor tem da história, entendida enquanto movimento real vivido pelos homens. A escolha desse autor não foi aleatória, mas com o propósito de buscar as raízes históricas da história que se ensina nas séries iniciais do ensino fundamental. Nossa relação com este objeto trava-se, assim, no campo dos fundamentos teórico-metodológicos da ação do pedagogo. Nossa preocupação, portanto, está voltada em indagar que conhecimento * Texto elaborado a partir do Projeto de Iniciação Científica (PIBIC/CNPq) intitulado: “A concepção de história de Augusto Comte”. ** Aluna do curso de Pedagogia da Universidade Estadual de Maringá/UEM. *** Professora doutoranda (PUC-SP) do Departamento de Teoria e Prática da Educação/UEM.

concepção_augusto_comte

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: concepção_augusto_comte

DA HISTÓRIA ENSINADA AOS SEUS FUNDAMENTOS TEÓRICOS: A CONCEPÇÃO DE HISTÓRIA DE AUGUSTO

COMTE*

Simone da Silva Negri Carrosi** Maria Ap.Leopoldino T. Toledo***

RESUMO: O reconhecimento de que o ensino da História se faz dominantemente através da exposição de fatos históricos sustentados pela memorização conduziu-nos ao objetivo deste trabalho que consiste em problematizar tal prática pedagógica, através do estudo e da compreensão da concepção de história veiculada nas obras de Augusto Comte (1798-1857). O interesse em estudar este autor decorre da preocupação em investigar os fundamentos históricos que estão enraizados em sua teoria que, como expressão do pensar na sociedade capitalista, cristalizou-se na transmissão do saber histórico. Palavras-chave: Augusto Comte, concepção de História, História ensinada.

HISTORY AS IT IS TAUGHT AND ITS THEORETICAL BASIS: COMTE’S CONCEPT OF HISTORY

ABSTRACT: Since history is chiefly engaged in the exposition of historical facts supported by memorization, the problematization of such a pedagogical practice is provided. Research deals with an analysis and comprehension of the concept of history in the works of August Comte (1798-1857). The author’s interest in studying Comte is her concern in investigating the historical bases ingrained in the philosopher’s theories. Since these bases express the way of thinking in capitalist society, they form the substratum in the transmission of historical knowledge. Key words: August Comte, concept of History, History as it is taught. INTRODUÇÃO

Este artigo teve origem nas reflexões realizadas através do programa de Iniciação Científica (PIBIC), que envolveu o estudo das principais obras de Augusto Comte (1798-1857), na busca de vasculhar em seus escritos a concepção que esse autor tem da história, entendida enquanto movimento real vivido pelos homens.

A escolha desse autor não foi aleatória, mas com o propósito de buscar as raízes históricas da história que se ensina nas séries iniciais do ensino fundamental. Nossa relação com este objeto trava-se, assim, no campo dos fundamentos teórico-metodológicos da ação do pedagogo. Nossa preocupação, portanto, está voltada em indagar que conhecimento * Texto elaborado a partir do Projeto de Iniciação Científica (PIBIC/CNPq) intitulado: “A

concepção de história de Augusto Comte”. ** Aluna do curso de Pedagogia da Universidade Estadual de Maringá/UEM. *** Professora doutoranda (PUC-SP) do Departamento de Teoria e Prática da Educação/UEM.

Page 2: concepção_augusto_comte

CARROSI e TOLEDO

46

histórico tem dominado a visão e a apropriação do passado nas aulas de história das séries iniciais do Ensino Fundamental.

Nesta perspectiva, a partir do reconhecimento feito através das atividades de estágio supervisionado realizadas no curso de Pedagogia, de que a história apresentada se fazia por meio de exposições de fatos desconectados de seu contexto, como também da memorização de nomes e datas consideradas importantes, constatamos, preliminarmente, que a presente ação pedagógica está sendo direcionada por uma explicação naturalizada do processo vivido pelos homens em sociedade. Esta situação nos indica que o professor, provavelmente, por não compreender a história como movimento real, não reconhece as diferentes concepções de história criadas para explicar a realidade social1.

Compreendendo que as concepções teóricas nascem na prática dos homens, e que são desenvolvidas na e pela produção material, consideramos necessário buscar nas relações de produção da sociedade capitalista as origens dessa concepção de história factual que se faz presente não só nas salas de aulas, mas nas diferentes práticas sociais dos homens.

Nessa busca, nos deparamos com os estudos de Marx (1818-1883) e sua afirmação, na Ideologia Alemã de que “toda concepção histórica, até o momento, ou tem omitido completamente esta base real da história, ou a tem considerado como algo secundário, sem qualquer conexão com o curso da história.[...]” (MARX, 1987, p.57). Ou seja, entendia o autor em questão que: “[...] enquanto os franceses e os ingleses se atêm à ilusão política, que está certamente mais próxima da realidade, os alemães se movem na esfera do ‘espírito puro’ e fazem da ilusão religiosa a força motriz da história [...]” (MARX, 1987, p.58).

A importância de Comte nesse período é incontestável, não só pela quantidade de textos publicados, mas porque se atendo à “ilusão política” seus escritos influenciaram vários pensadores, de tal forma que Reis (1996, p.5) afirma: “[...] pós-kantiano e comteano, o século XIX possui um a priori: a metafísica é uma impossibilidade, fora dos fatos apreendidos pela sensação, nada se pode conhecer.”

As obras deste autor são, em grande parte, responsáveis pelo “espírito positivo” que domina o século XIX e passa a predominar entre os historiadores a partir da idéia de que não existiu “[...] até agora, verdadeira

1 Indicamos “provavelmente”, por reconhecermos que na sua formação, a relação estabelecida

com a história ocorreu de forma fragilizada, ou seja, nos cursos de magistério o acadêmico fica restrito aos conteúdos da disciplina metodologia do ensino de história, que muitas vezes deixa de proporcionar condições para tais reflexões.

Page 3: concepção_augusto_comte

TEORIA E PRÁTICA DA EDUCAÇÃO – 5 (10): 45-61, mar./2002 – ISSN 1415-837X

47

História, concebida com espírito científico, isto é, tendo por fim a pesquisa das leis que presidem ao desenvolvimento social da espécie humana [...]” (COMTE, 1989, p.165).

Comte, na tentativa de teorizar os assuntos públicos, como a industrialização, tarefa necessária de seu tempo, “[...] perguntava-se a si mesmo se a Política, a arte de governar as sociedades humanas, não poderia, por seu turno, pedir algumas luzes à ciência. [...]” (LONCHAMPT, 1959, p.25).

Temas fundamentais como a política, a religião, a indústria, são discutidos entre intelectuais na busca em organizar a sociedade capitalista que havia destruído a forma feudal de os homens se relacionarem. Intensificam-se os interesses para conhecer a ciência como fonte necessária para direcionar o caminho da ordenação da sociedade pós-revolução francesa. Diante desse debate, um problema central se colocava: não tinha sido criado, ainda, um saber confiável (científico) da sociedade. Em relação ao conhecimento histórico, Comte é tomado sob o impulso dos seguintes pensamentos:

[...] Mas o estudo da história, tal como tinha sido estabelecido até então, não apresentava nenhum dos caracteres do método científico; não seria, pois, possível, seguir nesta ordem de pesquisas o mesmo caminho que nas outras? E se isto fosse possível, a história assim estudada não poderia oferecer aos estadistas conselhos semelhantes aos que as ciências físicas dão aos manufatureiros e aos agricultores? (LONCHAMPT, 1959, p.25). A análise desses excertos nos faz pensar que, para Comte e para a

classe que ele representava, o historiador ideal seria aquele que, despido de valores e fiel aos documentos, se transforma num porta-voz do Estado. Isso porque, se na compreensão de Comte, até então não houve uma “verdadeira História” capaz de pesquisar as leis por vias científicas, logo não se poderia oferecer aos estadistas um saber baseado nas ciências da observação (ciências físicas) uma vez que se configurava como um saber desprovido de julgamento, fiel ao observado, como no caso da história, aos documentos.

No desdobramento dessa análise, indagamos: por que a busca pelo saber histórico científico se deu fortemente nos moldes do positivismo? Que elementos teórico-metodológicos o positivismo comporta que o faz dominante na atualidade? Como este saber histórico articula-se ao ensino de História?

Para melhor compreendermos como é estabelecida a relação entre o ensino da História e a sociedade que o produziu, analisaremos o

Page 4: concepção_augusto_comte

CARROSI e TOLEDO

48

pensamento de Augusto Comte, no interior do contexto histórico-social de sua época, para conseguir suscitar respostas às questões acima levantadas. Por isso passaremos, inicialmente, da análise da história ensinada para seus fundamentos teóricos, ou seja, a concepção de história de Augusto Comte e, no final, passaremos dos fundamentos teóricos à história ensinada.

Importa salientarmos ainda que este texto não pretende se reconhecer como a mais completa reflexão da relação dos fundamentos teóricos e da história ensinada, mas tão somente ensaiar uma aproximação teórica do autor com a prática pedagógica que vivenciamos nos estágios. 1 – DA HISTÓRIA ENSINADA AOS SEUS FUNDAMENTOS TEÓRICOS

A Revolução Francesa (1789-1799) foi um movimento que marcou o advento da nova forma de ser e existir das relações sociais, a partir da crise do sistema feudal no âmbito político da vida moderna. Referiu-se à tomada do poder econômico pela burguesia européia numa sociedade que se destruía em função da mercantilização, tendo por base a troca por dinheiro e o lucro individual. Conforme indica Tocqueville (1805-1859), “[...] a Revolução Francesa foi essencialmente uma revolução social e política que não pretendeu nem a perpetuar a desordem e torná-la de certa maneira estável, nem a metodizar a anarquia, mas antes a aumentar o poder e os direitos da autoridade pública” (TOCQUEVILLE, 1989, p.67).

Como não se pode revolucionar uma sociedade sem destruir seus princípios básicos, a Revolução Francesa estendeu-se pelo tempo que foi necessário ao processo de transformação social. Para isso tornar-se realidade, foi preciso que a sociedade francesa “passasse pela guilhotina todos os pensamentos ultrapassados” e forjasse um novo espírito para os homens. Este espírito do homem moderno enraizou-se nos princípios políticos básicos da Revolução Francesa: liberdade, igualdade e fraternidade.

Fruto dos ideais do Iluminismo, há uma rejeição por parte da maioria dos modernos, das velhas crenças e das antigas tradições oriundas do período medieval, tendo, portanto, como características a renovação intelectual e filosófica dos seres sociais. A crença inabalável na razão e a idéia de que o progresso do homem pode ser infinito, desde que o espírito humano, através do livre exercício de suas faculdades, se liberte das superstições, misticismo e a ignorância do passado a que, até então, o espírito humano estivera subordinado, foi o resultado da preocupação em explicar o mundo racionalmente.

Page 5: concepção_augusto_comte

TEORIA E PRÁTICA DA EDUCAÇÃO – 5 (10): 45-61, mar./2002 – ISSN 1415-837X

49

Esses princípios tornavam-se aceitáveis na medida em que as condições materiais já estavam consolidadas, ou seja, a Revolução Industrial caminhava rapidamente entre os países industrializados. A Inglaterra, à frente do comércio, estava preocupada em expandir a forma capitalista de organização das relações comerciais. Nesse momento, os homens estão cada vez mais empenhados na busca pelo lucro e no acúmulo de capital com o fim de aumentar a produção e melhorar a produtividade da mercadoria.

O período iluminista representou a busca dos homens em tornar a natureza aliada das relações comerciais, que vieram sofrendo alterações a partir do século XVI. Para isso, estavam convencidos de que era preciso “conhecer para transformar”.

Os conhecimentos científicos desenvolvidos na modernidade possibilitaram que a produção passasse a ser mecanizada, substituindo, num processo crescente, o trabalho humano. Sobre essas transformações sofridas, paulatinamente, pelas forças produtivas, Pereira e Gioia (1996, p.258) indicam:

Uma forma de aumentar os ganhos do capitalista e que independe da capacidade física do trabalhador seria a introdução de instrumentos que aumentassem a quantidade de bens produzidos numa mesma quantidade de tempo. E foi o que a Revolução Industrial fez: a especialização do trabalho, reduzindo-o a um conjunto de tarefas simples, possibilitou a introdução da máquina para realizar essas tarefas, em substituição ao braço do operário, com a ferramenta. Com a introdução da máquina (inicialmente a máquina a vapor), operou-se uma revolução no processo de trabalho, que se viu liberado das limitações impostas pela capacidade física do operário. A máquina possibilitou a substituição da força motriz humana por outras (ar, água, vapor, etc). Agora é a máquina, e não o trabalhador, com a ferramenta, que fabrica o produto, e o trabalho do operário limita-se ao de vigiar a máquina. Agora o capitalismo pode se desenvolver plenamente [...].

No entanto, se no século XVIII surge a indústria mecanizada e uma

nova forma dos homens viverem em sociedade, no século XIX, seus efeitos já causavam grandes impactos: grande avanço na produção; crescimento de novas cidades com um número enorme de assalariados; capital acumulado nas mãos de poucos; miséria da maioria da população; crianças fora da escola; avanço na jornada de trabalho de até dezesseis horas diárias e em condições precárias, além disso a liberdade parecia não ser um fim em si mesma, bem como a igualdade material.

Page 6: concepção_augusto_comte

CARROSI e TOLEDO

50

Devido às condições sub-humanas de vida em que o proletário se encontrava, como protesto à sua situação, quebram as suas supostas rivais: as máquinas. Além disso, concentram-se nas grandes cidades e organizam-se formando os sindicatos. Essas manifestações deixaram claro o antagonismo entre os proletários e os capitalistas, marcando o quadro conflituoso que seria a nova sociedade2.

Os conflitos de classe se acirravam na medida em que o capital ia se construindo como única forma de produção, conforme afirmam Pereira e Gioia (1996, p.260):

[...] A indústria criou novos mercados para produtos agrícolas, forneceu ferramentas e energia para a agricultura. O capitalismo estendeu-se ao campo, desenvolvendo uma agricultura de mercado (em lugar de agricultura de subsistência) preocupada em tornar a terra cada vez mais produtiva e em tirar dela lucros cada vez maiores, determinando, assim, o fim do regime feudal de exploração da terra.

É justamente nesse processo de consolidação das relações

capitalistas no século XIX, que faz sentido a obra de Augusto Comte. Este pensador nasceu na cidade de Montpellier, na França, e viveu entre os anos 1798-1857, período pós-revolucionário. Conviveu com o universo teórico advindo do Iluminismo e no processo final da Revolução Francesa.

Comte esteve na dianteira dos acontecimentos sociais de seu século. Com relação ao crescimento do proletariado industrial, posicionou-se como um típico conservador de sua época, por defender a propriedade privada, a permanência dos capitalistas no poder e a necessidade da ordem hierárquica das classes sociais para chegar ao progresso, conforme se verifica nesta passagem de sua obra Reorganizar a Sociedade:

A única maneira de pôr termo a esta situação tempestuosa, de travar o progresso da anarquia que invade diariamente a sociedade, enfim, e numa só palavra, de reduzir a crise a um simples movimento moral, é a de determinar as nações civilizadas a que deixem a direção crítica para que tomem à direção orgânica, a que conduzam seus esforços para a formação do novo sistema social [...]. (COMTE, 1993, p.30 – grifo nosso).

O pensamento comteano surge, portanto, da crise do antigo regime,

no advento da Revolução Industrial e no período pós-revolucionário.

2 O socialismo, enquanto teoria do operariado, revela a necessidade de transformações

econômicas e políticas. Ao despontar neste movimento de luta entre as classes, veio pregar a igualdade social para os proletários.

Page 7: concepção_augusto_comte

TEORIA E PRÁTICA DA EDUCAÇÃO – 5 (10): 45-61, mar./2002 – ISSN 1415-837X

51

Seu país de origem, a França, juntamente com a Inglaterra, constituem o centro desse processo revolucionário, por ser o palco dos acontecimentos do século XVIII, cada um com suas características próprias.

Enquanto na Inglaterra se trata de legitimar o desenvolvimento material da sociedade burguesa, que flui naturalmente, removendo, por si só, os obstáculos que se interpõem no seu caminho e, por isso, o pensamento liberal se preocupa apenas em adotar o homem egoísta de uma moral, no sentido de afirmar a autonomia da sociedade civil, na França, a questão se põe de forma diferente porque é o Estado, com todas as suas velhas instituições feudais, que precisa ser removido para dar razão ao desenvolvimento da natureza egoísta dos homens e das coisas. Foi preciso uma unidade de espírito para o cumprimento dessa grande tarefa e o espírito francês conseguiu, de um só golpe, realizar essa façanha que é mudar a natureza das coisas (LEONEL, 1994, p.54).

Em relação à França do século XVIII, Leonel (1994) afirma que

coube a esta sociedade estabelecer uma nova organização política, enquanto que aos “espíritos revolucionários” do século XIX coube consolidar e conservar essas mesmas instituições. Dessa forma, a classe burguesa de revolucionária no passado passa a ser conservadora, e a classe operária, recolhendo a bandeira abandonada pela burguesia, surge como a nova classe revolucionária. Temos, neste processo, a contradição, que se encontra por toda parte e lugar:

Na verdade, depois do jacobinismo, o mundo já não era mais o mesmo; ou seja, continuava o entusiasmo pela ciência que caracterizou o Iluminismo, mas sem o seu entusiasmo político. O período da Restauração, que segue após a queda de Napoleão até 1848, representa, com a volta dos antigos poderes, uma reação à organização do Estado com base na soberania popular. Existem agora duas formas de despotismo a serem combatidas: o despotismo de um só e o despotismo da maioria, sendo o segundo mais ameaçador que o primeiro. [...]. Se, na Revolução, a soberania popular serviu para subverter a ordem, agora, o seu direito se restringe a manter a ordem, submetendo a minoria revolucionária à vontade da maioria conservadora (LEONEL, 1994, p.148-149).

Ou seja, no século XVIII o lema burguês de liberdade era indicativo

de que os homens nasciam naturalmente livres; a luta em nome da igualdade revelava que as relações feudais impediam a igualdade entre os homens; levantavam também o princípio da falta de tolerância, indicando que o poder religioso e político impediam tal prática social. Assim, no século XIX, o pensamento liberal é forçado a se rever exatamente pelo fato de que

Page 8: concepção_augusto_comte

CARROSI e TOLEDO

52

os princípios de liberdade e igualdade traziam novos problemas a serem enfrentados pelo conjunto dos homens.

Em sintonia com este universo de preocupações, Comte colocou-se na tarefa de auxiliar o conhecimento moderno, dando-lhe base científica. Em sua formação intelectual, recebeu influências de pensadores que ainda eram revolucionários no século XVIII, como Condorcet (1743-1784) e os biólogos naturalistas Bichat (1771-1802) e Gall (1758-1828).

Além disso, foi discípulo de Saint-Simon, (1760-1825), do qual em 1817 Comte tornou-se secretário. A respeito de Saint-Simon, Comte declara em carta de 1818:

Pela cooperação e amizade com um desses homens que vêem longe nos domínios da filosofia política, aprendi uma multidão de coisas, que em vão procuraria nos livros; e no meio ano durante o qual estive associado a ele meu espírito fez maiores progressos do que faria em três anos, se eu estivesse sozinho; o trabalho desses meses desenvolveu minha concepção das ciências políticas e, indiretamente, tornou mais sólidas minhas idéias sobre as demais ciências (COMTE, 1983, p.VIII).

Apesar da sublime participação de Saint-Simon na vida teórica de Comte, houve um desentendimento entre ambos, devido ao conteúdo da obra de Comte: Planos de Trabalhos Necessáriosà Reorganização da Sociedade, da qual Saint-Simon discordava. O amor pela liberdade e o ódio pelo velho regime era o que os unia.

Condorcet e Saint-Simon, preocupados em entender o encaminhamento da sociedade, afirmavam que uma nova ordem social surgia: “[...] que a indústria e a ciência substituiriam a guerra e a Teologia. [...]”. Por isso, em breve “[...] não haveria mais padres, nobres ou soldados dirigindo a sociedade [...]”; mas sim “[...] engenheiros, chefes industriais e operários; associações para cultivar a terra, para fabricar, para estender ao longe o comércio, para fazer surgir e manter os cientistas e artistas. Tudo para a indústria, guiada pela ciência” (LONCHAMPT, 1959, p.24-25).

Dessas relações, Comte se apropriou do conhecimento científico oferecido pela física e pela matemática para pensar o trajeto seguido para a humanidade, pois a velha concepção de sociedade cedia lugar a outros referenciais, entre as quais Comte advoga a favor das leis positivas.

No pensamento de Comte, a ciência vai desempenhar um papel religioso e ordenador das questões sociais. Isso porque, para Comte a ciência deveria assumir a autoridade religiosa que antes era assumida, de fato, pela Igreja Católica. Para ele, só a Religião Positiva poderia por fim à revolução. A ordem não é mais fruto do misticismo teológico mas da

Page 9: concepção_augusto_comte

TEORIA E PRÁTICA DA EDUCAÇÃO – 5 (10): 45-61, mar./2002 – ISSN 1415-837X

53

aplicação técnica das leis naturais, fundamentadas cientificamente, e que governam a humanidade para a ordem e progresso das sociedades.

Na lógica da teoria de Comte, a filosofia positiva seria a estrutura básica das diretrizes teóricas de onde se ergueriam os demais princípios explicativos da sociedade. Seu pensamento desenvolve-se a partir da idéia de ordem. Nas suas palavras: “O amor por princípio, a ordem por base e o progresso por fim”, percebe-se que Comte associou uma teoria progressista da história a um interesse prático pelos problemas de organização social e política; e acalentou o ideal de aplicar o método científico ao estudo da sociedade.

O resultado disso é a concepção de história que em suas obras (Curso de filosofia positiva; Discurso preliminar sobre o conjunto do positivismo e Catecismo positivista) transparece.

A teoria comteana restringe o conhecimento da sociedade aos fenômenos e às relações comparativas entre fenômenos; enfim, não se pode conhecer o que está para além do empírico, do experimental. Dessa forma, o estudo histórico se restringe em descobrir as regras que governam a sucessão e a coexistência dos fenômenos. Comte chamou de Física Social a ciência que investigaria os fenômenos históricos e sociais.

Por meio do estudo fundamentado no método positivo, Comte, preocupado em conhecer a evolução da sociedade, chega à “lei dos três estados3”. Sua tese central é de que assim como o espírito humano passou do estado teológico para o metafísico e desse para o científico, o movimento progressivo da história vivida se deu na ordenação social, de forma que a humanidade deveria passar invariavelmente de uma fase histórica à outra. Ou seja, a marcha progressiva do espírito humano consiste:

[...] na passagem necessária de toda concepção teórica por três estados sucessivos: o primeiro, teológico, ou fictício; o segundo, metafísico, ou abstrato; o terceiro, positivo, ou real. O primeiro é sempre provisório, o segundo puramente transitório, e o terceiro o único definitivo. Este último

3 No Estado teológico ou fictício as explicações dos fenômenos da natureza são dadas através

das idéias, de deuses e divindades, desempenhando, assim, “um papel de coesão social, fundamentando a vida moral”. No Estado metafísico ou abstrato os diferentes fenômenos são observados através de um só princípio (Deus, Natureza etc.) cuja explicação consiste, então, em determinar para cada um, uma entidade correspondente, algo superior ao controle do homem. É função desse estado destruir a “idéia teológica de subordinação da natureza e do homem ao sobrenatural”. E, por fim, no Estado positivo a filosofia positiva considera impossível a redução dos fenômenos naturais a um só princípio. Este é o verdadeiro estado definitivo da inteligência humana, a etapa mais correspondente ao século XIX onde a ciência passa a dominar a vida industrial e determinar os comportamentos humanos.

Page 10: concepção_augusto_comte

CARROSI e TOLEDO

54

difere, sobretudo, dos outros dois pela sua substituição característica do relativo e absoluto, quando o estudo das leis toma, enfim, o lugar da pesquisa das causas. Entre os dois primeiros não existe, no fundo, outra diferença teórica a não ser a redução das divindades primitivas a simples entidades. Mas semelhante transformação, tirando das ficções sobrenaturais toda forte consciência, sobretudo social, e mesmo mental, a metafísica permanece sempre puro dissolvente da teologia, sem nunca poder organizar seu próprio domínio [...]. (COMTE, 1983, p.208).

Assim, para Comte (1989, p.145-146), o exame atento do passado

vai mostrar que na história da civilização a humanidade passou, como o espírito humano, por três grandes épocas ou estados de civilização:

A primeira é a época teológica e militar. Nesse estado da sociedade, todas as idéias teóricas, tanto gerais como particulares, são de ordem puramente sobrenatural. [...]. Do mesmo modo, todas as relações sociais, quer particulares, quer gerais, são franca e completamente militares. A sociedade tem como objetivo de atividade, única e permanente, a conquista. De indústria há apenas o indispensável para a existência da espécie humana. A escravidão pura e simples dos produtores é a principal instituição.

A segunda época, foi denominada de época metafísica e legista,

sendo caracterizada como um estado transitório, intermediário e bastardo. Para ilustrar esta época, Comte (1989, p.146) analisa em que estágio a sociedade se encontra:

[...] a sociedade não é mais francamente militar, nem é ainda francamente industrial, quer nos seus elementos, quer no seu conjunto. A indústria é a princípio cuidada e protegida como meio militar. Mais tarde, sua importância aumenta, e a guerra acaba por ser concebida, por sua vez, sistematicamente, como meio de favorecer a indústria, o que constitui o último estado desse regime intermediário.

Após a segunda época, tem-se conseqüentemente a última época:

a científica e industrial. De acordo com a teoria positiva, as idéias teóricas particulares quando chegarem neste estágio tornar-se-ão positivas, logo as idéias gerais tendem também a se tornarem. É o que explica Comte (1989, p.147):

No temporal, a indústria tornou-se preponderante. Todas as relações particulares estabeleceram-se pouco a pouco em bases industriais. A sociedade, tomada coletivamente, tende a organizar-se do mesmo modo,

Page 11: concepção_augusto_comte

TEORIA E PRÁTICA DA EDUCAÇÃO – 5 (10): 45-61, mar./2002 – ISSN 1415-837X

55

dando-se-lhe como objetivo de atividade, única e permanente, a produção. Numa palavra. Esta última época já se realizou quanto aos elementos, e está prestes a começar quanto ao conjunto. Seu ponto de partida direto data da introdução das ciências positivas na Europa pelos árabes, e da emancipação das comunas, isto é, por volta do século XI.

A mudança social processa-se dentro dessa ordem cronológica e

natural, condição indispensável para o progresso linear das sociedades. Sendo assim, os acontecimentos ocorridos fora da ordem são uma anomalia4, podendo somente ser corrigida através da doutrina positiva. Idéia esta, que colocou a teoria comteana em prática através da “Sociedade Positiva de Paris” fundada em março de 1848.

O estudo da história só pode ser ciência porque tanto as ações humanas individuais como as coletivas se subordinam às leis naturais invariáveis. É preciso, então, para Comte, conceber os fenômenos sociais como inevitavelmente submetidos a leis naturais que comportam, regularmente, uma precisão racional que pode ser reconstruída com objetividade pelo historiador.

Como a física social não tem o mesmo grau de perfeição dos ramos da filosofia natural, é preciso estabelecer ao conjunto dos fenômenos sociais uma coordenação sistemática de seus estados. Deve-se considerar o estado estático e o estado dinâmico de cada fenômeno estudado, como a teoria positiva da ordem e do progresso do organismo social. O estudo desses estados seria de responsabilidade da Sociologia estática e da Sociologia dinâmica, respectivamente.

Nessa perspectiva, entendemos que a história, na concepção comteana, é importante para mostrar o processo evolutivo percorrido pela humanidade e não estudar a sociedade em seus estados. No entanto, sem negá-los, a história deve solicitar ajuda à sociologia, mas seus objetos não se misturam; enfim, quem faz a anatomia social é a Sociologia e quem explica a evolução cronológica é a História.

Dessa forma, na totalidade da obra de Comte existe a idéia de harmonia científica, ou seja, todas as ciências criadas estão em sentido único, qual seja: preservar a ordem e o progresso social, como se verifica nesse excerto:

[...] A combinação dessas duas marchas é o único meio que permite reunir as vantagens de ambas, neutralizando seus perigos. Subir do mundo ao homem sem ter primeiro descido do homem ao mundo expõe a estender

4 Anomalidade social.

Page 12: concepção_augusto_comte

CARROSI e TOLEDO

56

demasiado os estudos inferiores, perdendo de vista o verdadeiro destino teórico de tais estudos [...] (COMTE, 1983, p.212 – grifo nosso].

Sob estes princípios, o fundador do Positivismo acredita que o

progresso social é mero deslocamento, um mero aperfeiçoamento de estruturas que são perenes e imutáveis. Neste quadro, a Sociologia foi chamada para descobrir por quais leis a sociedade é governada, para assim poder controlá-la. Para isso, é preciso que os homens fiquem à espera de que a sociedade chegue ao estado positivo, pois nada podem fazer a não ser aguardar seu desenvolvimento natural, respeitando sua ordem, seu tempo, seus limites.

Nesse caminho, atribui à Moral, que para ele é considerada uma ciência, a responsabilidade em se ocupar do conhecimento, do amadurecimento e aperfeiçoamento da natureza humana para a aceitação dos princípios naturais que a determinam.

Comte divide esta ciência em teórica e prática. A educação seria a Moral política capaz de “adequar” o indivíduo à sociedade. Por isso, deve ser universal, abrangendo todas as classes da sociedade e todos os ramos do conhecimento humano.

Só a Moral, através da religião positiva, é que poderia superar a anarquia moderna, fazendo sentir por toda parte que cada ação social, individual, não comporta jamais outra recompensa senão a satisfação de efetuá-la e o reconhecimento que proporciona diante do conjunto da sociedade.

Uma vez alcançada esta unidade, o homem encontra-se com a felicidade, pois estará passando por um verdadeiro aperfeiçoamento, pessoal ou social. É certo que não existe uma única religião. Mas, segundo Comte, somente o Positivismo poderia fugir a esta regra, tornando-se ao mesmo tempo universal e definitiva.

De acordo com a teoria comteana, esta doutrina tornou-se positiva graças ao conjunto de preparações espontâneas, ou seja, a união do preparo físico com domínio da moral. Esta fusão da arte humana (corpo e mente) com a ciência humana é de ordem natural e constitui-se como a característica essencial do positivismo.

Nestes termos, a doutrina positiva é a única a conciliar radicalmente a ordem com o progresso, estabelecendo, assim, a seguinte regra: O Amor por princípio, a Ordem por base, e o Progresso por fim. Nessa máxima positivista está clara a preponderância contínua do coração sobre o espírito. Assim, para estabelecer o domínio natural da religião, para “[...] constituir uma harmonia completa e duradoura, é preciso ligar o interior pelo amor e o religar ao exterior pela fé [...]” (COMTE, 1983, p.141). E para executar tal

Page 13: concepção_augusto_comte

TEORIA E PRÁTICA DA EDUCAÇÃO – 5 (10): 45-61, mar./2002 – ISSN 1415-837X

57

ação, essas duas condições gerais da religião que são naturalmente conexas: coração e o espírito, são primordiais.

Sob esses princípios emerge a lei moral do Positivismo: VIVER PARA OUTREM, onde se condena a prática de caráter rígido e severo, uma vez que estas ações diminuem as nossas forças, tornando-nos menos aptos para o serviço de outrem. Nesse sentido, a verdadeira unidade moral, ou seja, o progresso social, é uma dádiva apenas das raças sociáveis, pois é característico principalmente da existência humana.

Considerando que toda doutrina religiosa repousa necessariamente sobre uma explicação “qualquer” do mundo e do homem, a ordem universal ao pretender dominar toda a existência humana se empenhou em descobrir o “como” e nunca o “porquê” dos acontecimentos. Sobre esta questão, Comte (1983, p.7) afirma que os acontecimentos apenas podem ser constatados, e nunca explicados, afastando, assim, qualquer pesquisa acerca das causas primeiras:

[...] Cada um sabe que, em nossas explicações positivas, até mesmo as mais perfeitas, não temos de modo algum a pretensão de expor as causas geradoras dos fenômenos, posto que nada mais faríamos então além de recuar a dificuldade. Pretendemos somente analisar com exatidão as circunstâncias de sua produção e vinculá-las umas às outras, mediante relações normais de sucessão e similitude.

Assim, reafirma-se a idéia de que à história cabe apenas, no estudo

da evolução social, registrar a “sucessão” e a “similitude” dos fenômenos. E auxiliar na conquista da harmonia social, reafirmando, juntamente com a Sociologia, a importância da obediência civil para o desenvolvimento do progresso social.

É desnecessário, portanto, indicar que a história ensinada, principalmente nas séries iniciais do ensino fundamental, pauta-se dominantemente, por esses pressupostos teórico-metológicos. 2 – DOS FUNDAMENTOS TEÓRICOS À HISTÓRIA ENSINADA: UMA PRIMEIRA APROXIMAÇÃO

Considerando que uma reflexão que visa a superar o didatismo (desvinculação da didática do conteúdo que é ensinado) ainda muito presente nas discussões sobre o ensino de História e, mais do que isso, superar a fragilidade analítica das relações sociais que se vive, não deve jamais abrir mão do pensamento crítico, portanto histórico-dialético. Voltar à

Page 14: concepção_augusto_comte

CARROSI e TOLEDO

58

unidade desse processo reflexivo é fundamental para explicitar porque o positivismo ainda persiste nas práticas educativas e como se articula, clara ou veladamente, com a história ensinada.

As teses de Comte nos permitem refletir sob dois aspectos a influência de sua concepção de história no ensino. A primeira diz respeito aos princípios teóricos da metodologia que a história, para Comte, deve tomar para explicar os fatos. A segunda diz respeito aos fins histórico- sociais a serem atingidos pela sua máxima: “o Amor por princípio, a Ordem por base e o Progresso por fim”.

Quanto ao primeiro aspecto, pensamos ter sido significativa a exposição das idéias de Comte feita anteriormente. Nas suas obras, o autor restringe o domínio do conhecimento aos fenômenos e às comparações entre fenômenos sociais; ou seja, não se pode conhecer o que está para além da aparência, a tentativa desse exercício são pretensões sem qualquer garantia de verdade. O método positivo de investigação da realidade, em todas as esferas, deve ser o das ciências empíricas, cujo único objetivo, na concepção de Comte, é descobrir as regras que governam a evolução desses fenômenos.

Dessa tese inicial, conclui-se que a história vivida, que está submetida às leis da natureza, se faz nesse contínuo progresso linear que a evolução exige. Portanto, a história se confunde com a “marcha progressiva do espírito humano”, ou seja, os atos humanos, individuais ou coletivos, estão submetidos a uma lógica da natureza, invariável em seu destino, que é previsível porque racional e certeiro. Isso significa que o que acontece e vai acontecer na trajetória humana já está predeterminado. Assim, seguindo a ordenação natural dos três estágios, o Brasil, por exemplo, passou da era Colonial, para a Imperial e dessa para a era Republicana, num tempo evolutivo e sem rupturas bruscas, de forma a obedecer à lei da natureza.

Para estudar a história vivida de forma científica, portanto, é necessário reconhecer como radicalmente aplicável, pela sua natureza, a quaisquer fenômenos, o estado estático e o estado dinâmico de cada objeto de estudos positivos, considerando-os separadamente, mas sempre com vista a uma exata coordenação sistemática.

Nessa perspectiva, o historiador busca os fenômenos responsáveis pela ordem, entre as diversas condições de existência das sociedades humanas; e vê, igualmente, que o estudo do progresso nada mais é que a dinâmica (evolução) da vida coletiva. Sob esta perspectiva, chega-se ao conhecimento da cronologia, que é provisoriamente destinada a ser sucessiva.

Isso se traduz, por exemplo, em aulas nas quais o professor, junto com o livro didático, apresenta a história como evolução da humanidade e,

Page 15: concepção_augusto_comte

TEORIA E PRÁTICA DA EDUCAÇÃO – 5 (10): 45-61, mar./2002 – ISSN 1415-837X

59

no desdobramento da temática, mostra o processo cronológico dos estágios evolutivos (estado dinâmico) e sua ordenação natural (estado estático). É isso que se verifica na História do Brasil, quando há uma explicação naturalizada de que os primeiros habitantes deste país, bem como a chegada dos portugueses em 1500, ocorreram pela força da natureza social humana; ou seja, como estava na natureza da humanidade evoluir, do estado teológico para o positivo, os europeus, por estarem na evolução para o último estado, foram naturalmente impelidos a buscar os elementos que pudessem dar continuidade ao desenvolvimento do comércio, como estava previsto na natureza dessa prática social.

Explicada dessa forma, a história não se processa em movimento contraditório e conflituoso pelo qual os homens em sociedade transformam a natureza em condições que lhe são dadas, num tempo e espaço determinados; mas subentende-se que a ocupação do Brasil estava traçada no percurso da humanidade5.

É, neste sentido que, desconectada do movimento histórico do qual faz parte, a frase “certo dia” aparece com freqüência em textos didáticos, como se os europeus aqui apareceram por um acaso, sem motivações objetivadas pela necessidade que constrói. Simplesmente chegaram, gostaram da flora e fauna e perceberam o quanto a terra era rica, e por isso exploraram-na.

Essa história ensinada no ensino fundamental impulsiona uma prática docente em que o objetivo maior deste ensino centra-se na memorização de datas e nomes importantes. Assim, consta que em 22 de abril de 1500 temos o “Descobrimento do Brasil” e devemos celebrar Pedro Álvares Cabral porque foi ele quem “um dia” descobriu o Brasil para o mundo, permitindo, assim, aos homens que aqui estavam, os índios, “perdidos na mata”, sem tecnologia, sem contato como o mundo, conhecerem a civilização, o estado superior da humanidade. É assim, que se atribui ao personagem histórico a façanha, motivado pelo espírito positivo, de impulsionar o desenvolvimento e o avanço natural da sociedade brasileira.

Nestes termos, as relações sociais não são abordadas como objetivo produzido a partir da forma social de garantir a vida; as lutas que os portugueses travaram com os índios ou não são mencionadas, e nesse caso, a explicação é de que, de início, havia uma relação de amizade entre os índios e os europeus, ou são vistas como um processo natural da eliminação, pelo mais forte (civilizado) do mais fraco (nativo).

5 Para a explicação da origem do nativo brasileiro, o documento utilizado por este professor

citado foi a Revista Nova Escola, abr. 1999.

Page 16: concepção_augusto_comte

CARROSI e TOLEDO

60

Nesta perspectiva positiva, no conjunto dos homens, eles são abordados somente como peças da história, e mais, sua função é aguardar as coisas acontecerem por si sós, pois nada podem fazer para mudar seu “destino”. Ficando evidente, portanto, nos conteúdos escolares, a necessidade de se elegerem heróis, atribuindo a essas divindades o mérito do progresso da nação. Assim, é preciso expor os fatos em uma ordem cronológica dos feitos históricos, que marcam o progresso, necessário para a construção de uma memória nacional, capaz de cristalizar a história a partir de figuras que, dominadas pelo espírito positivo, são incumbidas de trazer melhorias para o povo, levando à ordem e a civilização.

Ao mesmo tempo, a história compreendida pela perspectiva comteana, contém o princípio moral de um ensino voltado para “ordenar” a sociedade que se faz em condições conflituosas. Cultivar e demonstrar o amor à Pátria é objetivo central de um ensino sob esta perspectiva. Ensinar a honrar a Pátria e a Humanidade, a importância do amor ao próximo, da subordinação do espírito subjetivo e privado ao espírito objetivo e público, do cumprimento do dever cívico, da ação cooperativa etc., é tarefa das humanidades, principalmente da história, porque ela mostra que em momentos de anomalia social nada mais é preciso para corrigir o caminho do que a solidariedade e a submissão de todos aos sentimentos de altruísmo.

Ao atribuir ao ensino de história este caráter idílico, este ensino não desenvolve a capacidade de raciocínio crítico, uma vez que não é abordado o passado dos homens enquanto movimento histórico, mas como evolução, ação esta que contribui para neutralizar a explicação das mudanças ocorridas na forma de pensar, agir e viver que se processam a partir de tendências e possibilidades de preservação, reformulação ou mudança radical da estrutura organizativa das relações fundamentadas no trabalho. E mais, essas possibilidades constituem um movimento que não é linear, evolutivo ou progressivo, nem circular ou repetitivo, mas contraditório. REFERÊNCIAS AZEVEDO; DARÓS. Estudos Sociais: Brasil. São Paulo: FTD, 1989. p.64-68. COMTE, Auguste. Curso de filosofia positiva: discurso sobre o espírito positivo; Discurso preliminar sobre o conjunto do positivismo; Catecismo positivista. Seleção de textos de José Arthur Gianotti. Trad. José Arthur Gianotti e Miguel Lemos. 2.ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Os Pensadores). COMTE, Augusto. Reorganizar a sociedade. Trad. Álvaro Ribeiro. 3.ed. Lisboa: Guimarães Editores, 1993. (Filosofia & Ensaios).

Page 17: concepção_augusto_comte

TEORIA E PRÁTICA DA EDUCAÇÃO – 5 (10): 45-61, mar./2002 – ISSN 1415-837X

61

COMTE, Auguste. Sociologia. Evaristo de Moraes Filho (Org.). 3.ed. São Paulo: Ática, 1989. (Grandes Cientistas Sociais). LEONEL, Zélia. Contribuição à História da Escola Pública: elementos para a crítica da teoria liberal da educação. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 1994. Tese de Doutorado. LONCHAMPT, J. Epítome da vida e dos escritos de Auguste Comte. Trad. Miguel Lemos. 2.ed. Rio de Janeiro: Igreja e Apostolado Positivista do Brasil, 1959. MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã (Feuerbach). Trad. José Carlos Bruni e Marco Aurélio Nogueira. 6.ed. São Paulo: Hucitec, 1987. BENCINI, Roberta; ALENCAR, Marcelo. O índio redescoberto: a saga dos velhos brasileiros. Revista Nova Escola, São Paulo, n.121, p.10, abr. 1999. PEREIRA, M. E. Mazzilli; GIOIA, S. Catarina. Séculos XVIII e XIX: revolução na economia e na política. In: ANDERY, Maria Amália et al. Para compreender a ciência: uma perspectiva histórica. 6.ed. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo; São Paulo: EDUC, 1996. p.257-294. REIS, José Carlos. A história entre a filosofia e a ciência. São Paulo: Ática, 1996. TOCQUEVILLE, A. de. O antigo regime e a revolução. 3.ed. São Paulo: Hucitec, 1989.