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 Universidade de Lisboa Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa Conectados e vigiados Entre o autoritarismo e a liberdade na I nt e r ne t  João Miguel Pedroso Marques Dissertação orientada pela Professora Doutora Teresa R. Cadete Mestrado em Cultura e Comunicação 2014

Conectados e Vigiados, Autoritarismo e Liberdade 2014

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Conectados e vigiados, autoritarismo e liberdade 2014

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    Conectados e vigiados

    Entre o autoritarismo e a liberdade na Internet

    Joo Miguel Pedroso Marques

    Dissertao orientada pela Professora Doutora Teresa R. Cadete

    Mestrado em Cultura e Comunicao

    2014

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    Conectados e vigiados

    Entre o autoritarismo e a liberdade na Internet

    Joo Miguel Pedroso Marques

    Dissertao orientada pela Professora Doutora Teresa R. Cadete

    Mestrado em Cultura e Comunicao

    2014

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    Resumo

    Apesar do impacto econmico da crise, continuam a faltar mudanas necessrias

    a um sistema social cada vez mais desigual. O sistema est baseado numa forte

    componente cultural, a mesma que ajudou a formar o capitalismo moderno, e justifica a

    manuteno do statu quo. No entanto, com a crise e a melhoria no acesso informao,

    surgiram vrios movimentos sociais com um impacto forte no espao pblico. A partir

    da Internet, que se perfila como um meio importante para o rejuvenescimento do espao

    pblico, aqueles movimentos tm tentado passar a sua mensagem de mudana.

    Contudo, a Internet tambm tem servido para a implementao de medidas autoritrias

    que visam apenas reforar o poder dos Estados. O dilema do futuro ser o da escolha

    entre a segurana e a estabilidade de um sistema desigual ou a luta pela liberdade de

    renovar esse sistema para fazer face aos desafios do futuro

    Abstract

    Despite the impact of the economic crisis, we still lack the necessary changes to a

    increasingly unequal social system. The system is based on a strong cultural

    component, the same one that helped to form modern capitalism, and justifies the statu

    quo. However, with the crisis and improving access to information, various social

    movements emerged with a strong impact on public sphere. From the Internet, which is

    outlined as an important means for the rejuvenation of the public sphere, those

    movements have tried to pass his message of change. However, the Internet also has

    served for the implementation of authoritarian measures that aim only to strengthen the

    Nation states power. The futures dilema will be the choice between security and

    stability of an unequal system or the freedom of struggle to renew this system to meet

    the challenges of the future

    Palavras-chave

    Democracia, espao pblico, movimentos sociais, Internet, sociedade em rede

    Key words

    Democracy, public sphere, social movements, Internet, network society

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    Agradecimentos

    Desejo agradecer aos meus pais e irmo pelo apoio que me concederam a todos os

    nveis. Aos amigos que ficam e que provam que o lugar do indivduo em sociedade,

    partilhando experincias e memrias. Por ltimo, deseja agradecer minha orientadora,

    a Professora Doutora Teresa R. Cadete, pela orientao e conselhos importantes para a

    realizao do meu trabalho final.

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    ndice

    Introduo 7

    Parte I 14

    Conectados e conscientes 14

    Snowden 28

    Parte II 34

    Os limites do ilimitvel 40

    O autoritarismo: as novas tecnologias de comunicao ao servio da

    fora 50

    Imprevisibilidade e controlo 57

    Concluso 64

    Bibliografia 72

    Referncias electrnicas 74

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    A seguir, o rosto do Grande Irmo tornou a desvanecer-se,

    e em vez dele surgiram, em grossas maisculas,

    as trs palavras de ordem do partido:

    GUERRA PAZ

    LIBERDADE ESCRAVIDO

    IGNORNCIA FORA

    In 1984, de George Orwell (2007:21); Antgona, editores refractrios, Lisboa

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    Introduo

    Crise provavelmente um dos vocbulos mais utilizados na poltica, economia e

    comunicao social nos ltimos anos. Crise econmica, crise poltica, crise de valores.

    A sociedade ocidental parece no desistir do dramatismo hollywoodesco que caracteriza

    cada acontecimento como um pressgio do fim do mundo como o conhecemos.

    Crises econmicas nos pases capitalistas no so incomuns, variando apenas a

    intensidade com que elas fazem sentir em relao preparao dos Estados afectados.

    No entanto, a crise actual parece ser o palco necessrio para a exposio de pontos de

    vista acerca da sociedade que permaneciam mais ou menos escondidos por entre a

    aparente abundncia e riqueza do Ocidente. A repetio de colapsos econmicos 1929

    e 2008 exige uma anlise profunda que v para alm da economia e dos seus

    fundamentos. As crticas comuns ao capitalismo individualismo, ganncia e falta de

    tica surgem do sentimento de insatisfao para com o sistema social, com base nas

    constataes de que o mundo ocidental, principalmente as sociedade europeias e

    americana, cada vez mais desigual, com a riqueza a fluir constantemente para o topo

    (o que representa o oposto do mito do trickle down economics, precioso para o neo-

    liberalismo, que supe que medidas fiscais brandas sobre os mais ricos e melhores

    condies para os mesmos ajuda a criar emprego e, por essa ordem de ideias, a

    generalizar a riqueza).

    A realidade mostra que, tanto na Europa como nos EUA, a disparidade salarial

    entre topo e fundo do mercado de trabalho aumentou para nveis incomportveis nos

    ltimos trinta anos. Esse perodo fica marcado pela recuperao do neo-liberalismo e

    pela profunda economizao da poltica, que se tornou, em definitivo, o palco de

    tecnocratas aplaudidos pelos seus conhecimentos tcnicos, principalmente em pocas de

    crise, e que substituem aqueles com mais preparao poltica.

    No entanto, a crise o subproduto de uma sociedade regida, em grande parte,

    pela economia, onde o indivduo est permanentemente identificado pela funo que

    ocupa, pelo lugar que tem na hierarquia social e pela aparente riqueza que tem e que se

    mostra no crescente consumo de bens fteis. As convulses que experienciamos agora

    so mais um ponto, um que poder ser de viragem, na histria dos ltimos trs sculos

    da sociedade europeia. A formao de Estados-nao permitiu a criao de sociedades

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    centralizadas, onde o poder corresponde a uma autoridade central monopolizadora da

    fora e na qual o indivduo pode representar um elemento passvel de homogeneizao,

    cuja submisso necessria para o correcto funcionamento do Estado. Aquilo a que

    Alain Touraine chama de modelo europeu de desenvolvimento o resultado da mistura

    entre a ordem poltica central, o Estado, e o desenvolvimento econmico fruto da

    industrializao e que colocou o foco na economia (Touraine; 2005:57), que criaram um

    sistema social que se sustenta a si mesmo, fruto da crena ilimitada na capacidade

    destas sociedades para se autotransformarem (Touraine; 2005:59).

    Nos ltimos trinta anos foi possvel observar um fenmeno de crescente

    desregulao do mercado financeiro. Leis que proibiam fuses entre os bancos de

    investimento e bancos comerciais foram revogadas (principalmente nos EUA e na Gr-

    Bretanha onde este processo se iniciou sob a influncia de Ronald Reagan e Margaret

    Thatcher respectivamente). Ao mesmo tempo foi permitida a criao de produtos

    financeiros cada vez mais complexos como os Credit Default Swaps (ttulos de dvida

    que garantiam o reembolso do investimento em caso de incumprimento atravs da

    contratao de um seguro [CDSs]), medida que as restries alavancagem (processo

    pelo qual uma instituio, pblica ou privada, aumenta a sua capacidade econmica

    recorrendo ao endividamento) eram levantadas e as entidades reguladoras iam

    perdendo, gradualmente, o seu poder devido fora dos lobbys do mercado financeiro.

    Esses lobbys tinham origem, principalmente, na rea da banca que encarava a regulao

    do mercado como uma barreira criao de lucro, numa perspectiva que se insere na

    doutrina liberal de que a interveno estatal tem efeitos nefastos no mercado, pois

    compromete o princpio da livre concorrncia, sendo que o mercado deve ser capaz de

    se regular a si mesmo. Aquelas medidas eram justificadas pela ideia de que o mercado

    se tornava mais seguro e isento de risco mas, de facto, o que aconteceu foi o

    aparecimento de instituies com um peso na economia to elevado (bancos como

    o Lehman Brothers, o Barclays, o Citigroup ou o Socit Gnrale e seguradoras

    como a AIG) que a sua queda teria de ser evitada a todo o custo sob pena de todo o

    sistema financeiro colapsar, dado que, ao contrrio do parece ser aceite por muitos na

    sociedades europeias e americana, no so os bancos centrais que produzem dinheiro

    mas sim os bancos privados, a partir literalmente do nada, cada vez que fornecem um

    crdito. O excesso de crdito, ou de dinheiro criado artificialmente pelos bancos, uma

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    das principais causas da crise pois todo o sistema econmico mundial est hoje baseado

    em dvida.

    Sem regulao estatal, o mercado financeiro auto - regulou-se. O objectivo de

    uma empresa sempre o lucro e nesse sentido o sucesso das instituies financeiras

    desde o incio do processo de desregulao impressionante, com um aumento drstico

    nos lucros. Contudo, esse sucesso foi alcanado custa da transformao de um

    mercado de risco controlado (os bancos de investimentos eram, geralmente, pequenas

    empresas com um grupo de investidores limitado que usavam o seu prprio dinheiro e

    por isso tendiam a ser bastantes cautelosos com os riscos que assumiam) num mercado

    onde o risco passado de mos em mos at que o sistema colapse.

    At ao momento a opo, dentro da Unio Europeia (UE), para resolver a crise

    tem recado nas polticas de austeridade. A lgica por detrs desta escolha traduz-se na

    argumentao segundo a qual os Estados viveram acima das suas possibilidades e agora

    tm de contrair os seus gastos, o que demonstra no s desconhecimento da mecnica

    do sistema econmico baseado em dvida e para o qual o consumo essencial, como

    uma instrumentalizao tica crise. O facto da dvida privada tambm ser elevada pode

    levar concluso de que os prprios indivduos e empresas privadas gastaram acima de

    nveis que pudessem suportar1. O consumo foi o motor do crescimento de pases como a

    Alemanha, que chegou at a ser apelidado de milagroso. A mesma Alemanha que agora

    encabea o discurso da conteno e aponta o dedo aos pases do Sul pelo seu

    comportamento nos ltimos anos.

    A austeridade parece tambm funcionar como poltica punitiva do mau

    comportamento oramental dos Estados. A ideia de viver acima das possibilidades ,

    assim, criticada pelos pases do Norte da Europa cuja poltica fiscal e oramental tem

    sido muito mais equilibrada. O discurso oficial dentro da UE o de que os pases do Sul

    tm dificuldades em superar uma certa preguia (que remete para a falta de

    produtividade) e corrupo natural que impede o seu desenvolvimento e coloca em

    perigo toda a Europa. uma situao em que a tomada de decises influenciada pelos

    preconceitos, algo que deveria ser sempre mantido fora da esfera da poltica.

    1 Os valores da dvida privada consolidada portuguesa (aquela cujo prazo de pagamento superior a um

    ano) em relao percentagem do PIB foram de 202.8 milhes de euros em 2007 e 216.2 m. de euros em

    2008. Em Espanha estes valores atingiram os 200.4 m. de euros em 2007 e 206.5 em 2008, enquanto na

    Grcia registaram-se valores de 107.2 m. de euros em 2007 e 119.0 m. de euros em 2008. Fonte: Eurostat

    (2012)

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    Os preconceitos que abundam no discurso poltico e econmico (por exemplo o

    discurso que acusa os europeus do sul, principalmente portugueses e gregos, de

    preguiosos e maus trabalhadores), alm de deterministas, partem de princpios que do

    forma ao actual sistema social de organizao capitalista. A arquitectura hierrquica,

    com desigual distribuio de poder e riqueza, s faz sentido porque existe todo um

    corpo de pressupostos culturais em torno do Trabalho, que esto na origem do

    capitalismo moderno, que justifica a actual sociedade como a mais correcta e benfica,

    imputando o insucesso ao comportamento individual. contra aqueles pressupostos

    culturais que do forma a uma sociedade regida pela economia, na qual agentes

    polticos e econmicos misturam-se para se beneficiar mutuamente, que muitos

    movimentos sociais que surgiram na ltima dcada na Europa e EUA se insurgem.

    Os interesses daqueles que compram influncia so recompensados

    custa das Pessoas, de quem o deriva o poder do governo. Ns acreditamos

    que esta falha no nosso sistema est no centro de muitos problemas

    interconectados que, como sociedade, enfrentamos actualmente, e a sua

    resoluo a chave para um futuro justo. por isso que exigimos a criao

    de uma verdadeira Democracia, desligada da influncia corrosiva do poder

    econmico e apelidamos a todos os que partilham deste objectivo comum a

    tomarem uma posio connosco e actuar com vista a este fim (Johnson;

    2011)

    A transcrio exposta parte da declarao do movimento Ocuppy Albany e

    ilustra o ponto volta do qual giram os protestos que tm tomado lugar na Europa e

    EUA. O que move os protestantes a ideia de que os governos se tornaram

    representantes dos mercados financeiros e do poder econmico, ao invs de

    representarem os eleitores. E esse sentimento comum a todos os movimentos de

    protesto, quer estes se limitem a denunciar as polticas da austeridade, quer se renam

    em torno da ideia de que so necessrias mudanas estruturais profundas nos sistemas

    democrticos e capitalistas, com o propsito de os tornar mais justos e igualitrios.

    Porque que se salvam empresas que abalaram a economia em vez de se procurar

    responsabiliz-las por isso? E, principalmente na Europa, porque se escolhe a

    austeridade que afecta mais os indivduos do que essas mesmas empresas que parecem

    passar inclumes pela crise? So perguntas legtimas, principalmente se atendermos ao

    facto de que as causas da crise no foram combatidas. Antes, elas foram at empoladas.

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    O problema das dvidas tem sido resolvido com o recurso a mais dvida2 e as

    instituies que eram consideradas demasiado grande para cair, ou falir, cresceram na

    sua dimenso atravs da fuses e aquisies3. Enquanto isso, as taxas de desemprego

    tm subido na Europa (principalmente em Espanha, Portugal e Grcia) e com isso

    aumenta o descontentamento, na opinio pblica, perante os governos.

    Ao nvel europeu, apesar do exerccio democrtico que se exerce nas ruas

    atravs dos protestos, as decises continuam a ser tomadas apenas tendo em conta a

    reaco das instituies financeiras, no que aparenta ser uma ditadura informal que

    compromete o poder poltico, no sentido em que este devia representar a vontade dos

    eleitores. A poltica tem por objectivo configurar um horizonte comum de sentido no

    qual se articulem as expectativas individuais com o progresso colectivo (Innerarity;

    2011:151). Mas so essas expectativas individuais que aparentam ser defraudadas para

    garantir o funcionamento do mercado financeiro. Mesmo que esse mercado seja

    publicitado como o grande motor do progresso nos ltimos trinta anos, o seu custo,

    para os indivduos (nomeadamente na classe mdia e classe baixa), que os movimentos

    de protesto apontam (principalmente o aumento das desigualdades que se traduzem

    numa crescente discrepncia entre salrios mais altos e salrios mais baixos assim como

    o aumento dos ndices de pobreza)4.

    O problema principal da influncia dos mercados sobre os governos (o que pode

    significar que a economia se tem vindo a superiorizar poltica, ou seja, que esta ltima

    tem perdido poder de controlo sobre a primeira) est no facto desses mesmos mercados

    no poderem ser escrutinados, ao contrrio dos governos. Um governo pode demitir-se,

    caso as condies de governao no permitam a sua actuao, ou pode no ser

    reconduzido, se perder as eleies. Mas isso no possvel com as instituies

    2 Os bancos centrais emprestam dinheiro, e no o cedem, aos Estados nem a instituies privadas, pelo

    que a dvida tende sempre a crescer, alm de que o mtodo de funcionamento dos resgastes consiste em

    emprstimos.

    3 Por exemplo, o Merryl Linch acabou por ser adquirido pelo Bank of America e em Espanha o Bankia

    foi criado para resgatar sete bancos espanhis em dificuldades (Caja Madrid, Bancaja, La Caja de

    Canarias, Caja de vila, Caixa Laietana, Caja Segovia e Caja Rioja). J este ano, o governo espanhol foi

    forado a solicitar um resgate para o Bankia.

    4 So paradigmticos os casos do pagamento de elevados bnus, por exemplo no Barclays, quando a crise

    j ajudava a expor o comportamento errtico dos bancos.

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    financeiras e grandes empresas, assim como no possvel evitar que alguns indivduos

    alternem cargos entre instituies privadas e pblicas. E para aqueles que se envolvem

    nos movimentos de protesto, uma das ideias principais a de que a sua voz no conta

    para a deciso poltica, que influenciada pela aco dos grupos econmicos, que

    parecem demonstrar averso participao pblica na poltica.

    A Internet o meio impulsionador dos movimentos sociais que surgiram,

    principalmente, aps o incio da crise na Europa e EUA. um meio democrtico e

    mutvel, no qual os indivduos encontram a oportunidade de participar no espao

    pblico, independentemente da sua condio social. Ao contrrio de outros meios de

    comunicao, a Internet no se limita a ser parte do espao pblico, sendo mais uma

    arena do mesmo porque permite ao indivduo actuar, ao invs de ser um espectador

    passivo da aco. A Internet elimina as barreiras do tempo e da falta de conhecimento,

    permitindo ao indivduo conectar-se e formar comunidades poderosas, atravs das quais

    pode participar na modelao do futuro. No entanto, tambm um espao inseguro, um

    meio que pode ser usado para reprimir autoritariamente os indivduos.

    O impacto da Internet no aparecimento dos movimentos sociais e na sua

    propagao poder se tornar o foco principal da anlise das tendncias do espao

    pblico para o futuro. Se verdade que a Internet pode ser um meio que alarga o espao

    pblico generalidade dos indivduos, tambm acarretar os seus perigos. Alm disso,

    apesar ser um espao sem limites, ele prprio coloca entraves aco dos movimentos.

    O protesto online no chega, por si s, para provocar as mudanas necessrias no

    sistema vigente. Qual o impacto da Internet, e as consequncias da manipulao que

    dela se faz, para a segurana e liberdade individual o ponto principal que ser debatido

    nas prximas pginas. Face s oportunidades que a Internet fornece, tanto para a

    formao de um espao pblico livre como para a implementao de medidas

    autoritrias, estaremos numa era de liberdade de informao, ou caminhamos para um

    futuro de represso e autoritarismo?

    O trabalho aqui apresentado focar-se- na Europa e EUA, principalmente nos

    acontecimentos da ltima dcada, entre a Crise e a descoberta dos projectos de

    vigilncia em massa, expostos por Edward Snowden. Na primeira parte a Internet ser

    analisada como um foco essencial para alteraes, actuais e futuras, no espao pblico,

    com mais relevncia para a organizao de redes de poder e a oposio organizao

    social de base capitalista. Posteriormente o foco recair no caso Snowden, ainda que o

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    impacto das suas revelaes, das actividades de aparente cariz autoritrio de alguns

    Estados e dos limites da Internet participao no espao pblico fiquem reservados

    para a segunda parte.

    Neste trabalho o indivduo ser encarado como um elemento singular e capaz de

    produzir uma perspectiva sobre a sua realidade, ligado em rede a outros iguais, que do

    forma e se movem no espao pblico em paralelo com outros grupos tanto polticos

    como econmicos. O impacto da tecnologia nas relaes entre actores no espao

    pblico ligados em rede constituindo uma sociedade conectadaser o ponto essencial

    de pesquisa. Como afirma Manuel Castells:

    a estrutura social de uma sociedade em rede resulta da interaco entre o

    paradigma da nova tecnologia e a organizao social num plano geral.

    Frequentemente, a sociedade emergente tem sido caracterizada como sociedade

    de informao ou sociedade do conhecimento. Eu no concordo com esta

    terminologia. No porque conhecimento e informao no sejam centrais na

    nossa sociedade. Mas porque eles sempre o foram, em todas as sociedades

    historicamente conhecidas. O que novo o facto de serem de base

    microelectrnica, atravs de redes tecnolgicas que fornecem novas capacidades

    a uma velha forma de organizao social: as redes (Castells; 2005:17).

    O conceito de sociedade em rede como forma de organizao essencial e pode

    ser definido recorrendo novamente a Castells:

    [A] sociedade em rede, em termos simples, uma estrutura social baseada em

    redes operadas por tecnologias de comunicao e informao fundamentadas na

    microelectrnica e em redes digitais de computadores que geram, processam e

    distribuem informao a partir de conhecimento acumulado nos ns dessas redes

    [] um sistema de ns interligados E os ns so, em linguagem formal, os

    pontos onde a curva se intersecta a si prpria (Castells; 2005:20).

    Dentro da rede, o indivduo um n, um ndulo, um ponto de informao e interaco

    cuja caracterstica inata de actor social em permanente processo de mudana a base da

    estrutura social.

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    Parte I

    Conectados e conscientes

    As luzes piscam numa ritmo ora mais acelerado ora mais lento, aparentemente

    sem um padro discernvel. O modem e o router, os cabos, as ondas invisveis que

    conectam placas, objectos electrnicos, portas, tudo este aparato mecnico cria uma

    ponte entre indivduos, uma componente fsica necessria para um espao cuja forma,

    etrea ou no, varia consoante quem e como usufrui dele.

    O indivduo pode conectar-se ao mundo em seu redor atravs da construo de

    uma rede de contactos cujos pontos de interseco aumentam com cada interaco com

    o Outro. No mbito da rede, os indivduos ndulos de informao e de vivncia, de

    experincia, representando uma perspectiva da realidade que ganha sentido no espao

    pblico. Todo o contacto entre indivduos representa uma conexo que se forma ou se

    renova, aprofundando a rede atravs da qual a informao e o conhecimento circulam

    no espao pblico.

    A rede tanto maior quanto mais contactos existem. De cada ndulo partem

    vrias linhas de contacto que se interligam e formam uma comunidade, uma constelao

    que tender a aumentar em proporo diminuio das barreiras e entraves

    comunicao. A primeira das barreiras a incompatibilidade de cdigos culturais que

    distorce a conversao, impedindo a transmisso e a recepo da mensagem. A segunda

    barreira a da relao fsica com o meio, dado que a comunicao simplificada pela

    ocupao fsica do mesmo espao pelos intervenientes. As duas barreiras, em conjunto,

    impedem a criao de redes alargadas, de comunidades de grande dimenso que

    ocupam largas extenses de territrio. Enquanto a semelhana ou equivalncia de

    cdigos culturais essencial para a comunicao e qualquer divergncia pode ser

    ultrapassada com aprendizagem, as limitaes impostas pelas barreiras fsicas podem

    forar o contacto repetitivo e limitado entre indivduos que no alargam a sua

    comunidade. O nmero de ndulos e ligaes pode no crescer, porque no so

    introduzidos novos indivduos na rede, e a informao que circula no espao pblico

    pode ficar limitada porque existem menos oportunidades de a renovar com novos

    elementos.

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    Os meios de comunicao, com nfase no avano mais recente que a Internet,

    podem quebrar as barreiras da comunicao e alargar o tamanho da rede, porque tm

    um maior raio de aco. Permitem o contacto entre indivduos que partilham dos

    mesmos elementos identitrios, ou a disseminao dos cdigos culturais at que se

    alcancem condies minimamente satisfatrias para a comunicao, sem que seja

    necessrio ocupar o mesmo espao fsico. A disseminao da informao tende a

    intensificar-se, porque existem mais canais de transmisso, e o debate alargado aos

    que estavam excludos do mesmo. A informao em circulao tende a aumentar,

    estando sujeita a mais interpretaes, notando-se tambm o intensificar do aparecimento

    de ndulos e crescimentos das redes comunitrias porque a rede de contactos dos

    indivduos tambm pode crescer.

    Os meios de comunicao fazem parte do espao pblico, pela sua funo

    veiculadora de informao e promotora do debate. A Internet, no entanto, mais do que

    um elemento da esfera pblica. Ao contrrio do que acontece com outros meios de

    comunicao, o indivduo participa activamente na Internet, ultrapassando muitas vezes

    o papel de espectador e tornando-se parte da aco, ao mesmo tempo que est sujeito ao

    escrutnio e observao, caractersticas fulcrais do espao pblico (Arendt; 2001:64).

    As condies de acesso Internet no so diferentes de qualquer outro tipo ou espao

    de acesso esfera pblica, dependendo sempre da interaco fsica com um indivduo

    ou com um mediador, neste caso uma mquina. Mais do que a tecnologia que permite a

    sua existncia, a Internet a reunio dos utilizadores (das suas vrias identidades) e da

    informao nela contida, fluxos que existem sobre um estrutura programada

    mimetizando a sua contra-parte fsica, pelo que nesse sentido se torna um mundo a

    explorar (Johnson; 2001:32). A mquina existe como uma extenso do corpo humano,

    uma prtese (idem), mas torna-se tambm um ponto de acesso a um espao cuja

    capacidade para influenciar a realidade permanece ainda, em grande medida, por

    explorar.

    O que o novo mundo da Internet tem de admirvel a possibilidade que oferece

    aos indivduos de ignorarem as formas organizacionais tradicionais, ou seja, at ao

    momento actual capitalismo, socialismo ou qualquer outro ismo pouco ou nada

    afectam o processo de organizao das relaes online. Obviamente, a utilizao os

    padres de organizao, a forma de usufruto influenciada pelo contexto

    organizacional no qual o indivduo se insere mas a Internet, por ser ainda uma

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    novidade, mesmo que em parte, e por ser voltil - porque est menos dependente da

    organizao fsica e estrutural que d corpo memria colectiva - encontra-se ainda

    relativamente imune s influncias da organizao, num contexto mais prximo do

    europeu e norte-americano, capitalista. A influncia capitalista mais notria num site

    especfico do que no conjunto total que compe a Internet, da mesma forma que se

    encontra mais variedade gentica entre indivduos do que na espcie humana como um

    todo.

    A Internet um meio atravs do qual o indivduo pode participar activamente

    junto da comunidade, tanto local como globalmente, principalmente na ltima dcada,

    em que assistimos ao aparecimento de redes sociais de grande implementao junto do

    pblico. Apesar de a Internet como meio para o pblico j ter algumas dcadas, a

    grande potencializao das suas vantagens (aquelas experienciadas at agora) tem

    ocorrido nos ltimos anos, mas de forma muito rpida e incisiva. A melhoria dos meios

    tcnicos e a crescente especializao das empresas no mercado online tem ajudado

    sedimentao da Internet como o grande meio de comunicao, ao mesmo tempo que

    no mundo poltico tambm se comeam a descobrir as vantagens desse meio para a

    propaganda. Se Kennedy impressionou com a sua imagem na televiso, tambm Obama

    marca uma gerao de governantes que do primazia, ou mais importncia, Internet

    como meio de comunicao pela sua abrangncia e rapidez na transmisso da

    informao.

    As relaes sociais podem sofrer mudanas importantes no mbito da Internet.

    A componente fsica das relaes tende a perder relevncia, dado que o indivduo s

    precisa de contactar com o seu ponto de acesso, com a mquina que faz a ponte entre ele

    e a sua nova gora. A hierarquia das relaes (na maioria dos pases europeus e EUA),

    estabelecida geralmente atravs da insero na estrutura de organizao social

    capitalista e que faz da sociedade a forma na qual a dependncia mtua em prol da

    subsistncia, e de nada mais, adquire importncia pblica, e na qual as actividades que

    dizem respeito mera sobrevivncia so admitidas na praa pblica (Arendt, 2001:61),

    parcialmente anulada porque as relaes na Internet dependem menos da funo do

    indivduo. Cada utilizador pode escolher as pginas a que acede e essas escolhas so

    influenciadas pelos seus gostos e relaes fora da Internet reflectindo, em geral, os seus

    padres de consumo, contudo, estando online, o indivduo pode estabelecer contactos

    que ultrapassam as suas relaes sociais habituais, visitando os mesmo espaos que

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    17

    outros indivduos, independentemente da sua origem. Na Internet o indivduo tende a

    encontrar menos limitaes s suas escolhas e uma estrutura normativa mais fraca, pelo

    que pode recriar toda uma nova rede de relaes independente da organizao social a

    que est, em grande medida, sujeito no mundo fsico. Ainda que a Internet seja, em

    grande medida, o reflexo da estrutura do mundo fsico, sendo construda a partir dessa,

    as diferenas, principalmente ao nvel do tempo e do espao, podem alterar parte da

    mecnica das relaes sociais.

    O tempo e o espao so factores sujeitos a regras diferentes no mundo online.,

    tornando-se mutveis e vagos, sem fronteiras ou limites para alm da arquitectura fsica

    que permite o acesso Internet. Quando acede Internet, o indivduo est mais

    prximo da dimenso quntica do que da realidade fsica em que habita. O tempo o

    espao existem atravs de interconexes que se misturam para formar uma realidade

    que est isolada, porque a prpria natureza da utilizao concedeu Internet vida

    prpria, e ao mesmo tempo conectada com o mundo exterior, dado que o que se passa

    para l da Internet serve de base para o que nela transmitido, ou seja, todo aquele

    mundo novo , acima de tudo, uma lente magnificadora s vezes, outra perturbadora, da

    realidade. As interconexes so os fluxos de informao que no funcionam de forma

    linear, antes existindo como uma teia, uma rede nodular na qual passado, presente e

    futuro se mesclam para formar um ambiente totalmente renovvel e mutvel. A

    ausncia de linearidade, porque as conexes de informao desencadeiam fenmenos

    que carecem de pontos bvios de causa e efeito, faz da Internet um ambiente de caos,

    que obriga o indivduo a lidar de forma diferente com as suas relaes sociais.

    O espao pblico na Internet muito menos estruturado do que o da sua

    contraparte fsica. As regras que se aplicam no mundo exterior tm menos validade na

    Internet, ou pelo menos podem no mesmo efeito. A Internet , agora, o nico reduto de

    espao pblico no qual as relaes no se definem tanto pelo trabalho. O indivduo

    estabelece ligaes baseadas nas suas redes de contacto mas tem tambm a

    possibilidade de as ultrapassar, conectando-se com desconhecidos e indivduos de

    outros meios completamente diferentes, que no entrariam, de outra forma, no domnio

    das suas relaes sociais. O sentimento de pertena e identificao individual

    exponenciado pela possibilidade que o indivduo tem de contactar com aqueles que

    noutra situao permaneceriam desconhecidos, ao mesmo tempo que pode escolher

    manter o anonimato que no capaz de preservar no mundo exterior.

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    18

    A partir da Internet, o indivduo obtm dois elementos essenciais participao

    no espao pblico e na democracia: informao e tempo. Atravs da Internet possvel

    encontrar todo o tipo de dados que permitem ao indivduo entrar em contacto com o

    mundo sua volta, assim como perceber o necessrio sobre os processos governativos e

    decisrios. Atravs da Internet, um indivduo pode munir-se da mesma informao que

    agentes polticos e econmicos possuem para tomar as suas decises. Tal facto permite

    ao indivduo perspectivar as consequncias das medidas tomadas pelos governantes,

    dotando-o de uma maior capacidade de perceber a relao entre a aco do passado, do

    presente e do futuro. O indivduo tem sua disposio outras vias de informao para

    alm do discurso poltico para perceber como ser afectado pelas escolhas de quem

    governa, o que lhe pode conferir mais poder para intervir, assumindo conscientemente o

    seu papel de actor social, na definio do futuro da comunidade.

    O reverso desta situao o excesso de informao. No domnio da Internet a

    falta de controlo sobre os fluxos de informao tambm pode ser prejudicial. No mbito

    da Internet o indivduo est menos sujeito a direces editoriais, escolhendo os canais

    de acesso e a que informao acede, contudo essa situao pode gerar um menor

    controlo da quantidade e qualidade dessa mesma informao. O indivduo confrontado

    com a superabundncia de fluxos e conexes, ao mesmo tempo que est exposto a

    informao de fontes duvidosas e tem de aprender a escolher e a interpretar mais rpido

    e com mais critrio o que v. A Internet um domnio de confronto de ideias,

    caracterstica essencial do espao pblico, mas tambm de trivialidade e impreciso ao

    qual o indivduo tem de se adaptar. O desafio que se coloca perante o indivduo j no

    o do acesso informao, mas sim o da seleco correcta das fontes. A liberdade da

    planificao de acesso e manipulao da informao benfica, sem dvida, mas

    exigido ao indivduo que lute diariamente por ela, dado que tem de se debater com o

    excesso e pouca fiabilidade resultantes da menor exigncia normativa da aco dos

    canais de acesso.

    Alm da informao, o indivduo ganha tempo. A Internet dispensa grande parte

    do ritualismo fsico de participao no espao pblico. Qualquer local, desde que com

    viabilidade de meios, permite aceder Internet, o que liberta o indivduo da presena

    fsica nos fruns de discusso. Ao invs de ter de esperar pelo fim do seu horrio de

    trabalho para participar politicamente no espao pblico, o indivduo pode faz-lo

    enquanto desempenha as suas funes, ainda que com algumas (maiores ou menores)

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    19

    limitaes. O trabalho deixa de ser um factor impeditivo, pelo consumo de tempo e

    disponibilidade fsica que impe ao indivduo, de participao activa no debate pblico.

    possvel que, a seu tempo, a natureza das relaes sociais no mbito da estrutura

    capitalista venham a ser alteradas, emulando a estrutura anrquica (com mais igualdade

    e redistribuio do poder) da Internet. No entanto, o poder influenciador da Internet

    ainda est longe de provocar tais alteraes, at porque continua a ser, em grande

    medida, uma extenso do mundo fsico e no seu paralelo.

    Alm da constante participao no espao pblico, a Internet permite tambm a

    compresso do tempo e do espao no sentido em que a partir de um nico ponto o

    indivduo pode entrar em contacto com grupos de origens e locais diferentes. Os tempos

    de aco desses grupos fundem-se e as barreiras fsicas desaparecem, sendo que as

    limitaes horrias deixam de existir. O indivduo acede informao em tempo real,

    ou to perto dessa medida quanto possvel e sem dvida mais perto do que nunca, no

    estando dependente da velocidade de transmisso dos meios tradicionais, e f-lo atravs

    de vrios canais, o que lhe permite cruzar informao e colmatar lacunas. A medio do

    lapso entre acontecimento e disperso da informao infinitesimal. O indivduo tem a

    escolha de participar da aco ao mesmo tempo que est a ser testemunha de outra,

    sendo assim o participante e o espectador. Durante as revolues da primavera rabe era

    comum ver indivduos na rua no s a protestar como a assistir, ainda antes de ter

    acesso aos canais informativos tradicionais, a protestos noutras cidades ou mesmo

    pases, transmitidos em directo atravs de telemveis ou outro equipamento que

    acediam s redes sociais. O tempo da aco e o tempo da contemplao mesclam-se ao

    ponto de se equipararem, como nunca havia acontecido antes.

    Informao e tempo fazem da Internet o meio mais eficaz de transmisso da

    informao que a humanidade j utilizou, e por isso mesmo, o mais difcil de controlar,

    estando rapidamente a tornar-se o alvo prioritrio de agentes polticos e econmicos,

    principalmente em situaes de crise. Se alguns pases, como a China, mantm uma

    censura permanente sobre a Internet, numa tentativa de controlar o fluxo de informao

    e dissidncia, outros fazem-no de forma espordica e conjuntural. Foi o caso da

    Primavera rabe em que Estados como o Egipto ou Lbia tentaram bloquear o acesso s

    redes sociais e rede mvel, para evitar a propagao nacional e internacional da

    informao sobre os protestos. O fluxo incontrolvel e permite a organizao de

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    20

    manifestantes, assim como a divulgao dos acontecimentos, quase imediata, o que

    dificulta a aco de preveno, e em muitos casos represso, das foras estatais.

    As caractersticas da Internet tendem a ser emuladas pelos movimentos sociais

    que nela se formam. A volatilidade, destruturao e ausncia de liderana fixa

    caracterizam muitos dos movimentos sociais que surgiram no decorrer destes ltimos

    cinco anos (principalmente nos EUA e UE), transpondo para o mundo fsico os aspectos

    que fazem da Internet um meio imprevisvel e de difcil controlo e restrio. Da mesma

    forma que a Internet mutvel porque depende mais da aco individual um

    indivduo capaz de quebrar ou levantar barreiras e de modificar o contedo para

    melhor servir as suas necessidades, tendo sempre meios de fuga ao controlo tambm

    estes novos movimentos vo mudando conforme so confrontados com a transposio

    do mundo online para o mundo fsico, que os obriga a uma determinada cristalizao

    dos seus objectivos. No entanto, no perdem a dinmica que os caracteriza.

    O elemento mais marcante dos movimentos sociais que surgiram na Europa e

    EUA a sua dinmica e a das causas em torno das quais se formam. Estes movimentos

    so extremamente mutveis e difceis de fixar no tempo e no espao. A vaga de

    movimentos a que assistimos, principalmente desde o incio da crise, no se foca num

    assunto ou tema mas em vrios. O que defendem menos identificvel no sentido em

    que pode ser interpretado e aproveitado de vrias formas, tm uma agenda voltil,

    porque os seus objectivos tambm o so. mais complicado definir o que trata o pedido

    por mais democracia ou igualdade do que, por exemplo, proteco do ambiente. Da

    mesma forma que as suas exigncias so dinmicas, porque esto sujeitas a foras

    acima de tudo polticas e econmicas - que influenciam o seu sentido (e no tanto o seu

    propsito) tambm estes movimentos o so. Surgidos da Internet, parecem querer que o

    resto do mundo se conforme estrutura desse mesmo espao, emulando-a, algo que

    parece ainda impossvel dada a natureza completamente diversa dos mundos fsico e

    online.

    Exigir mais democracia ou mais igualdade e liberdade vago e passvel de

    induzir em erro quem est a observar esses movimentos a partir de fora, alm de os

    deixar vulnerveis a ataques dos seus opositores. Por outro lado, aparentam ser menos

    susceptveis a instrumentalizaes de grupos partidrios, provavelmente porque os

    partidos so encarados como parte do problema, parte de um statu quo inadequado para

    a pretenso desses movimentos o que no vlido para todos os casos . A prpria

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    21

    estrutura partidria rgida, muitas vezes constituindo um aparelho dentro do qual

    contam mais as influncias e acordos do que o mrito, no se coaduna com as

    pretenses da maioria dos movimentos

    O que significa mais democracia, igualdade e liberdade? A dificuldade em

    definir tais ideias vem da opacidade provocada pela utilizao exaustiva desses

    conceitos, quase ao ponto de se tornarem um chavo. Quando utilizados como conceitos

    de luta, podem tornar-se palavras desprovidas de sentido porque esto saturadas dele,

    isto , so to vagos que qualquer perspectiva cabe neles. O seu uso como pilar de

    protesto pertinente mas apenas quando ilustram uma perspectiva definida, em

    conjunto com casos identificveis.

    fcil definir conceitos como democracia, igualdade ou liberdade, o problema

    est em precisar o que significa mais de todas essas ideias. No caso dos pases

    europeus e dos EUA existe democracia, igualdade e liberdade, ou pelo menos assim nos

    dito. Se compararmos regimes democrticos actuais, como a maioria dos europeus e o

    americano, com diversos regimes polticos ditatoriais do sc. XX, difcil afirmar que

    uns e outros so iguais. Existe mais democracia, igualdade e liberdade hoje do que

    existiu em grande parte da Europa quase at ao fim do sculo anterior. Tambm

    podemos comparar regimes ditatoriais e autoritrios e regimes democrticos actuais e

    acabaremos, invariavelmente, por afirmar que vivemos em Estados nos quais a

    liberdade e a igualdade existem, at porque so direitos suportados constitucionalmente.

    Na Europa e nos EUA a formalidade da democracia , em princpio, respeitada.

    O direito de voto universal e o seu resultado encarado quase como sagrado, porque o

    voto tido como a expresso mxima do processo democrtico. So cada vez mais raros

    os casos de governos democraticamente eleitos, em regimes com uma democracia

    consolidada, que caem por presso de movimentos sociais ou protestos pblicos, porque

    esse gnero de recursos democrticos so considerados importantes mas no tanto

    nem to decisivos ou definidores quanto o voto. Os mecanismos pelos quais o

    indivduo se pode fazer ouvir so vrios e pouco restringidos. So regimes

    constitucionais, nos quais a lei respeitada e igual para todos, Estados nos quais um

    indivduo livre para escolher o que consumir, como usar o seu tempo, livre para

    exercer os seus direitos. inegvel que se trata de regimes livres e seguros, e contudo

    surgem movimentos que colocam em causa a existncia prtica da democracia,

    igualdade e liberdade. Informao a sua disponibilidade a chave para perceber o

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    22

    que leva formao, na ltima dcada nos EUA e UE, de movimentos socias e as

    causas que defendem. O monoplio da informao desapareceu. Os indivduos j no

    dependem do Estado para obter informao e formao extra, nem dos media

    convencionais, que so encarados como fontes inseguras devido aos interesses privados

    de quem os detm. A Internet tornou-se o veculo de informao, no s pela

    quantidade como tambm pela velocidade com que aquela transmitida. Ainda que a

    Internet, em muitos casos, se destaque mais pela quantidade do que pela qualidade da

    informao - mais quantidade tambm pode significar mais lixo electrnico no

    restam dvida que o meio de transmisso mais eficaz, porque existem, de facto, fontes

    bastantes seguras que fornecem informao de qualidade e, virtualmente, sem

    limitaes, sendo capaz de satisfazer as necessidades dos seus interlocutores.

    O discurso da complexidade da governao, que fechava as portas ao indivduo

    comum, s era credvel quando agentes polticos e econmicos detinham controlo sobre

    a informao, ou seja, quando os conhecimentos necessrios para a governao eram

    relativamente exclusivos. A informao fulcral para governar circulava por grupos

    praticamente fechados, permitindo-lhes garantir a sua posio social. O monoplio da

    informao garantia poder e cristalizava a hierarquia social, dado que quem o

    controlava tinha a faculdade de escolher a quem, como e o que transmitir de entre tudo

    o que sabia. Ao pblico chegava apenas a informao que bastava para os governantes

    obterem o consentimento necessrio para a manuteno da sua posio, ao gnero do

    relatrio de contas pblicas anual. Desde que as contas batessem certo,

    independentemente dos estratagemas utilizados para tal como aconteceu na Grcia

    aquando da sua adeso ao Euro -, e o nvel de vida se mantivesse estvel e permitisse

    determinados comportamentos, seria possvel manter o statu quo. Indivduos menos

    esclarecidos tendem a no questionar, ou a no colocar tanta presso, nos seus

    representantes eleitos que, sem grande escrutnio, actuam sem restries, transformando

    a representao num mandato aberto.

    Esse estado de coisas parece ameaado. Surgiu um novo meio de comunicao,

    mais difcil de controlar porque dinmico e mutvel, ao contrrio dos meios

    tradicionais. A imprensa escrita, a rdio e a televiso, so capazes de se adaptar mais

    fazem-no lentamente, alm disso, a velocidade a que a informao transmitida por

    esses meios, principalmente na imprensa escrita, insatisfatria para as necessidades

    actuais, necessidades criadas, em parte, e respondidas pela existncia de um meio mais

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    23

    eficaz. Velocidade e independncia so elementos fundamentais para a escolha do

    veculo de informao, determinando o sucesso de um meio em detrimento de outro.

    muito mais complicado para um governo de um regime democrtico controlar

    o fluxo de informao. O que chega ao pblico e muitas vezes como chega est hoje

    menos dependente da aco de agentes polticos e econmicos e da sua influncia sobre

    os meios de comunicao. So muitos os indivduos que assumem a tarefa de procurar e

    difundir informao por meios prprios a Internet perfeita para esse propsito

    porque alm de permitir resultados imediatos tambm barata ao mesmo tempo que

    colocam em causa o que veiculado pelos meios tradicionais de comunicao. O

    escrutnio maior, a margem de manobra de governantes menor e a influncia de

    grupos privados sobre as instituies pblicas torna-se, em alguns casos, mais evidente,

    graas informao que circula no espao pblico.

    Se o pblico dispe da mesma informao que os governantes, o papel daqueles

    torna-se mais complexo. J no podem depender da manipulao da informao para

    manter a sua posio e j no so os nicos a ter conhecimento dos assuntos cuja

    resoluo depende da sua aco. Governos e empresas deparam-se hoje com um pblico

    mais informado e, muitas vezes, mais crtico e interessado. A posse de informao e

    conhecimento podem conferir ao indivduo a capacidade de participar activamente e de

    forma crtica no espao pblico. O indivduo tende a tornar-se mais habilitado e

    perceber as escolhas que tem pela frente, de calcular os riscos e consequncias das

    mesmas e de se preparar para as eventualidades. Muitas vezes acedem e possuem as

    mesmas capacidades que agentes polticos e econmicos dispem para realizar as suas

    tarefas. No entanto, a mais conhecimento no corresponde um incremento na

    capacidade decisria, acumulao de informao no se deu um processo subsequente

    de aumento de poder, porque os mecanismos do mesmo esto fechados ao pblico.

    desse pormenor que nasce a insatisfao em muitas das sociedades europeias e

    americana.

    O indivduo informado tender a procurar no s mais poder como tambm mais

    responsabilidade, sendo que uma e outra so, muitas vezes, indissociveis. Os

    indivduos so capazes de decidir o que melhor, esto menos, ou mesmo nada

    dependentes da aco de representantes nos quais muitos j no se revem e a quem no

    reconhecem capacidades superiores s suas para ocupar os cargos que ocupam. Com

    mais noo da sua capacidade para se responsabilizar pelas suas escolhas baseadas no

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    acesso informao, o indivduo apercebe-se do seu papel como actor poltico, mesmo

    que no espao pblico, muitas vezes, se continue a fazer a distino entre o indivduo

    comum e o poltico.

    natural que surjam mais protestos e exigncias por mais responsabilidade e

    para tal necessria mais democracia, igualdade e liberdade. Para assumir a

    responsabilidade de construir o seu futuro, o indivduo precisa de mais democracia que

    lhe confira poder decisrio o que pode implicar que se realizem alteraes no sistema

    representativo caracterstica da maioria das naes europeias e dos EUA-, mais

    igualdade, ou seja, o fim ou amenizao da estrutura social hierrquica, e liberdade para

    escolher efectivamente, para se auto-determinarem fora de um sistema que muitos

    parecem considerar injusto e ineficiente. Apercebendo-se que um poltico porque

    participa no espao pblico, o indivduo ganha noo, tambm da sua para impulsionar

    a mudana, sendo que a restrio aos mecanismos decisrios para efectuar a mesmo so

    motivo de protesto. Na maioria das vezes o protesto no se refere ao fim do sistema

    representativo ou instaurao de um regime poltico diferente, mas sim criao de

    mecanismos polticos e decisrios que correspondam aos desejos e necessidades de

    indivduos mais informados.

    O ponto comum entre os vrios movimentos, tanto na Europa como nos EUA,

    a exigncia por uma sociedade mais justa, ou seja, uma melhor redistribuio do poder.

    O objectivo que o indivduo tenha espao para exercer o seu livre arbtrio e

    capacidade de deciso, que muito limitada pelos desequilbrios naturais de estruturas

    hierrquicas como o a organizao social capitalista. A distribuio desigual do poder

    significa, partida, que a sociedade se baseia num sistema de vantagens e desvantagens

    onde os grupos so estruturados de acordo com a sua capacidade de influncia e onde

    lhes so atribudas funes desiguais. Um ambiente de competio pode parecer mais

    libertrio mas, de facto, cria apenas situaes onde o indivduo se torna mais

    dependente das suas necessidades fsicas porque o acesso aos meios para as saciar

    restrito, colocando em causa a sua liberdade.

    A vantagem competitiva que deriva da distribuio desigual do poder no pode

    ser eliminada apenas com a equiparao dos rendimentos ou uma melhor redistribuio

    da riqueza. A produo de mais riqueza no pe fim s desigualdades porque ela

    desigualmente redistribuda com primazia para os detentores dos meios de produo e,

    acima de tudo nas ltimas dcadas nas quais os mercados financeiros cresceram em

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    25

    volume de transaces e poder, para aqueles que vivem da explorao do rendimento

    sem investimento - e essa desigualdade uma forma de manter intacto o sistema

    hierrquico. Acrescenta-se a isto o facto de no ser a riqueza o factor determinante da

    hierarquia:

    A discriminao social, o poder, etc que permanecem o essencial,

    transferiram-se para esferas diferentes do rendimento ou da riqueza [] pouco

    importa que todos os rendimentos sejam, no limite, iguais [] critrios como o

    saber, a cultura, as estruturas de responsabilidade e de deciso, o poder, embora

    largamente cmplices da riqueza e do nvel de rendimento, relegaram os

    ltimos, bem como os signos exteriores do estatuto para a ordem dos

    determinados sociais do valor, para a hierarquia dos critrios do poder

    (Baudrillard; 2008:57).

    O sistema, portanto, nunca tender para a igualdade enquanto permanecerem as

    hierarquias e os mecanismos autoritrios necessrios para as manter. No podemos

    sequer afirmar que a sociedade hierrquica apenas uma marca passageira da histria

    humana, uma ponte para um sistema de completa igualdade, pois hierarquia e

    autoridade so marcas de vrias formas de organizao social.

    O estilo de vida baseado no consumo, caracterstico de vrias naes europeias e

    EUA, deixa de ser suficiente se serve apenas para manter a maioria afastada do poder,

    porque satisfaz vrias necessidades mas no corresponde a nenhum aumento ou

    redistribuio de poder. A democratizao de um estilo de vida consumista no significa

    que o indivduo suba na escala social porque os critrios da mobilidade so dominados

    por aqueles que ocupam o topo da hierarquia, representando apenas um possvel

    incremento na capacidade econmica individual. O acesso aos bens de consumo, fruto

    do desenvolvimento e crescimento econmicos dos Estados, resultou no aumento do

    conhecimento mas tambm em mais insatisfao que no entender daqueles que se

    inseriram (e inserem) em diversos movimentos sociais na ltima dcada no pode ser

    aplacada a no ser pelo acesso ao poder em conformidade com as capacidades que

    possuem. Dado que o acesso aos canais decisrios est, em grande parte vedado, os

    protestantes recorrem aos mtodos mais sublimes da democracia, retirando-a dos fruns

    oficiais e retornando rua, onde se sente menos a desigualdade no acesso ao poder, ou

    recorrendo Internet para vocalizar o seu protesto.

    A desigualdade parte intrnseca da organizao capitalista e a igualdade, ou a

    ideia dela, est permanentemente em discusso como consegui-la e preserv-la.. De

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    26

    facto, por estar permanentemente em discusso necessrio consagr-la na lei. S

    quando algo que deveria ser um dado adquirido na sociedade est em perigo que se

    torna um direito, como tal, a igualdade s tem de ser resguardada na lei porque existe,

    efectivamente, desigualdade e necessrio um mecanismo que a amenize ou disfarce.

    Nesse sentido, o direito igualdade semelhante a outros direitos adquiridos como o

    direito ao trabalho:

    assim como no existiu direito de propriedade seno a partir do momento

    em que j no havia terra para toda a gente, tambm no houve direito ao

    trabalho a no ser quando o trabalho se tornou, no quadro da diviso do

    trabalho, uma mercadoria permutvel, isto , que deixou de pertencer

    pessoalmente aos indivduos (Baudrillard; 2008:62).

    A existncia de um sistema hierrquico, assim como de diferentes graus de

    acesso ao poder significa que tendem a surgir e perpetuar grupos que que encaram a

    governao como natural, porque tm mais poder econmico, mais acesso ao

    conhecimento, mais capacidade de influncia sobre os mecanismos governativos e

    obtm mais controlo sobre o sistema, cristalizando a sua posio social. um sistema

    fechado: a hierarquia justifica a existncia de grupos mais aptos para governar e a

    existncia destes justifica a hierarquia dado que ela fulcral para que mantenham o seu

    estatuto. Deste sistema surgem elites com melhor preparao para governar e, por isso

    mesmo, com um direito natural para o fazer.

    Existe um diviso natural entre o eleitorado e os lderes, sendo que o nico poder

    efectivamente concedido ao primeiro o de fazer a renovao da liderana atravs do

    voto. O que os movimentos sociais tm contestado, tanto na Europa como nos EUA,

    ideia de que existe um grupo naturalmente mais inclinado para a governao graas ao

    poder que se perpetua atravs da sua rede fechada. Os indivduos que participam

    naqueles movimentos esto cientes da sua capacidade autnoma para decidir, encarando

    a hierarquia actual como desnecessria ou desfasada do que a realidade necessita. No

    espao pblico, esses movimentos colocam em confronto vrias perspectivas at

    porque uma das caractersticas essenciais destes movimentos a abertura, na

    generalidade, a vrios quadrantes polticos acabando por promover o debate, ao

    mesmo tempo que se insurgem contra o discurso determinista dos governantes, como

    por exemplo o discurso da austeridade que tem sido a base da poltica governativa em

    muitos dos Estados membros da UE.

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    27

    A diferena no acesso educao ou de acesso a uma educao de qualidade -

    e riqueza, assim como o sistema de trabalho assalariado, podem forar o indivduo a

    uma condio de subalternidade, reforada pelo facto de um sistema poltico elitista

    restringir o espao pblico porque, independentemente de todos os indivduos serem

    iguais e capazes de formular e partilhar as suas perspectivas pessoais, estas so, em

    larga medida, desconsideradas.

    excepo do momento nico do voto e de espordicos casos em que a

    concertao e a presso pblica provocam a mudana principalmente quando essa

    presso exercida na rua e estruturada em torno de uma ideia exequvel -, a capacidade

    individual de influenciar os processos de tomada de decises referentes ao bem comum

    so limitadas. Neste sentido, a restrio da capacidade individual sempre perniciosa,

    seja ela originada pelo pensamento paternalista que encara o indivduo como incapaz de

    fazer bem a si prprio e ao Outro se no for correctamente dirigido para tal, ou pela

    ideia de que a capacidade de governar advm da posio social e da riqueza. A questo

    est na definio do poder que deve ser encarada como mais do que a mera acumulao

    de riqueza qual corresponde determinada capacidade decisria. Poder significa

    tambm a capacidade para a auto-determinao, portanto o livre-arbtrio, em conjunto

    com a liberdade de participar no debate pblico de uma forma activa e constante.

    A generalizao da Internet e de meios de comunicao gratuitos que escapam

    ao controlo dos grandes grupos econmicos podem conferir uma maior profundidade ao

    debate pblico, ao mesmo tempo que incluem aqueles que, de outra maneira, ficariam

    de fora dessa discusso. O indivduo comum tem agora acesso a tanta informao como

    o poltico ou o economista, sendo muito mais capaz de criar opinies informadas,

    baseadas na busca pessoal pela informao.

    Num mundo baseada na comunicao constante e activa, o poder rgido o

    poder que s flui do topo para a base perdeu o p [] o monoplio da

    informao, em que o sistema poltico assentava no tem futuro no quadro de

    total abertura das comunicaes globais (Giddens; 2007:73).

    O controlo da informao, que dava a agentes polticos e econmicos a capacidade de

    afirmar que o indivduo comum no se devia preocupar com a governao pela

    complexidade desta, posto em causa, o que, perante uma maior consciencializao

    indivduo e do seu papel de actor social, deveria gerar importantes alteraes no s ao

    nvel da Democracia como tambm na percepo que o sujeito faz da sua relao com a

    sociedade

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    28

    As alteraes nos meios de comunicao podem ser encaradas como a face

    visvel das mudanas nas redes de poder. Mais do que nunca, a direco em que o poder

    exercido torna-se difcil de discernir, o que significa que existe, ou parece existir, uma

    tendncia crescente para a sua descentralizao. Os canais pelos quais o poder flui j

    no so apenas verticais ou horizontais, antes imiscuem-se e criam novas situaes e

    possibilidades de exerccio da conscincia individual. medida que aumenta a

    informao disponvel para o indivduo, e este tende a tomar parte no processo de

    criao e obteno da mesma, o poder deveria ser redistribudo forando alteraes na

    estrutura hierrquica da organizao social capitalista. O indivduo deveria tornar-se

    mais independente do sistema e mais capaz de experienciar o mundo nos seus prprios

    modos menos limitado pelas convenes sociais especficas do seu meio ambiente -, e

    as redes de poder entrariam em choque provocando a destabilizao da estrutura social.

    As redes de poder so cada vez menos estticas, mais maleveis e

    interconectadas. Nascem novos locais de conflito e exerccio do poder em paralelo a

    velhos campos de batalha que renascem pelo meio do domnio de uma sociedade que

    os havia conformado norma nica, com o debate pblico confinado a institutos,

    escolas e parlamentos. A informalidade parece ser a palavra de ordem, por oposio

    estrutura rgida e formal dos Estados-nao da Democracia representativa e dos partidos

    e seus rituais tradicionalistas de afirmao e legitimao. A generalizao do poder,

    contudo, no significa que exista mais igualdade, ainda que a tendncia poder vir a ser

    essa, dependendo apenas da capacidade dos vrios grupos anularem o pensamento e

    concepo hierrquica da sociedade. Como afirma Alain Touraine:

    [A] decomposio da sociedade nos pases mais modernizados atinge as suas

    formas extremas quando se rompe o elo entre o sistema e o actor, quando o

    sentido de uma norma para o sistema j no corresponde ao que ela tem para o

    actor. Tudo assume ento um duplo sentido e o indivduo quer afirmar-se pela

    sua oposio linguagem da sociedade (Touraine; 2005:79)

    precisamente fora do mbito do Estado e do mercado que podero ocorrer mudanas

    importantes que, no futuro, colocaro em causa toda a organizao das sociedades de

    organizao capitalista. Trata-se de uma questo de disputa do poder: Estado e mercado

    detm um monoplio da autoridade e da hierarquia que funciona em favor de ambos e

    do qual dificilmente abdicaro, ou seja, polticos e agentes financeiros, que muitas vezes

    se misturam na mesma pessoa, sofrero mais contestao ao seu poder e influncia

    sobre as instituies pblicas e privadas que possuem o poder autoritrio e econmico.

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    29

    A economia continuar a ser uma disciplina importante e os governos tendncia

    parece ser a do crescimento de uma tecnocracia, mas essa sofrer a concorrncia

    cidados cada vez mais versados nessas reas, o que significa que no podero alegar

    que a dificuldade inerente poltica e economia motivo suficiente para impedir a

    participao do indivduo nos processos de deciso. [] os velhos mecanismos da

    governao no funcionam numa sociedade em que os cidados partilham com os

    governantes os mesmo meios de informao plena (Giddens; 2010:75). O segredo e a

    recluso j no so (e tendero a ser ainda menos) mtodos viveis de governao: o

    escrutnio geral e o indivduo tem a possibilidade ser mais independente de

    parlamentos ou assembleias representantes para estar a par do que fazem os eleitos para

    cargos governativos, o que significa tambm que a teatralidade tradicional da poltica,

    com todo o ritualismo que lhe prpria, poder perder grande parte da sua

    funcionalidade e sentido, alm de que a exigncia por polticos preparados para o

    debate, em vez de tecnocratas sem predisposio democrtica tender a ser cada vez

    maior

    O escrutnio a que a aco poltica est sujeita, assim como o aparecimento de

    vrios movimentos sociais com forte impacto social na ltima dcada nos EUA e

    Europa vem provar como errada a ideia de que os indivduos perderam o interesse pela

    poltica, ainda que demonstre existir descontentamento com as estruturas e processos

    governativos e de escolha de governantes. Muitos esto mais atentos, possuem mais

    conhecimentos e so menos tolerantes com as atitudes que consideram reprovveis de

    vrios polticos (desde a guerra no Iraque comeada no governo de Bush at s polticas

    de austeridade na Europa). A insatisfao dirigida aos actores polticos e no tanto

    Democracia em si, contudo, como as instituies democrticas falham, vrias vezes, em

    responder s exigncias dos cidados, estes so forados a procurar alternativas para

    fazer valer o seu poder no espao pblico.

    Movimentos como o Occupy e Indignados ou grupos como os Anonymous5 tm

    de uma caracterstica importante: nasceram nas redes sociais a partir de uma ideia

    comum partilhada por indivduos de diferentes origens, o que faz deles conjuntos

    relativamente destruturados e atomizados atravs dos quais se contestam as instituies

    democrticas tradicionais cuja capacidade representativa acusam de estar diminuda

    5 Uma colectividade de hackers e activistas (hacktivistas) que usa o anonimato e a internet para lutar por

    causas variadas desde o combate pedofilia at denncia de casos de corrupo. Usam a mscara

    semelhante da personagem principal de V for Vendetta, o filme baseado na graphic novel homnima de

    Frank Miller, que encarna o esprito revolucionrio de Guy Fawkes.

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    30

    pelo aparecimento de vrios governantes pouco preparados para o exerccio das suas

    funes no espao pblico (mesmo que economicamente competentes) e/ou manietados

    por interesses privados que contrariam ou prejudicam a sociedade como um todo. As

    suas reivindicaes no so apenas de cariz econmico, de facto centram-se muito mais

    nos direitos humanos, na exigncia por mais democracia uma maior democratizao

    da sociedade atravs da disperso do poder e acesso aos mecanismos de influncia

    correspondentes ao nvel de conhecimento a que o indivduo pode aceder e no tanto

    pela distribuio da riqueza, ainda que tambm seja uma exigncia ou na luta pelas

    liberdades individuais.

    O que distingue aqueles movimentos e a natureza dos protestos iniciados por

    grupos com o mesmo cariz desde a Europa at aos EUA (como por exemplo o

    movimento Que se lixe a Troika que comeou nas redes sociais como um pequeno

    grupo e se expandiu at se concretizar numa das maiores manifestaes da ltima

    dcada em Portugal), de movimentos e protestos anteriores a sua forma de

    organizao. So espontneos, resultando da facilidade comunicacional promovida

    pelas redes sociais e pelos meios de telecomunicao mveis. No tm estruturas fsicas

    ou lderes, excepto em tarefas pontuais, tratando-se, ao invs, de fenmenos de reunio

    voluntria despojados de hierarquias, baseando-se na distribuio equitativa do poder de

    participao no espao pblico. So mveis e inorgnicos mas por isso mesmo pouco

    dados cristalizao ou manipulao pelas foras polticas tradicionais.

    Os movimentos sociais parecem assumir-se como a contraparte dos partidos

    polticos, podendo garantir ao indivduo um lugar influente no espao pblico que ,

    muitas vezes, difcil de encontrar. O que movimentos sociais originados na Internet tm

    de original a ciso com ideia de que os indivduos no tm capacidade de organizao

    se no estiverem submetidos a hierarquias e estruturas rgidas. No s podem alterar a

    forma de participar no espao pblico, tornando a participao menos limitada pelos

    processos formais da Democracia, como mostram que existem alternativas aos grupos

    estruturados e rgidos, e por isso menos capazes de acompanhar os ritmos de mudanas,

    tradicionais da poltica.

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    31

    Snowden

    No necessrio ir at a regimes cuja democracia apenas uma teoria sem

    correspondente prtico, para encontrar exemplos de Estados onde o poder est cada vez

    mais concentrado num grupo no-eleito de indivduos. Casos como a Rssia ou a China,

    pases onde existe o voto mas severas restries da liberdade de informao e direitos

    humanos, so importantes pontos de comparao com Estados europeus, por exemplo,

    mas nem necessrio alargar tanto o espectro de observao porque exemplos muito

    semelhantes ocorrem mesmo nossa porta.

    Aps o fim da segunda guerra, e com o crescimento do que viria a ser a Unio

    Europeia, no seria de esperar um retrocesso na democracia. Tudo parecia apontar para

    um aprofundamento das liberdades individuais, da tolerncia e da igualdade, em

    conjunto com riqueza abundante. No entanto, ainda que do ponto de vista formal, os

    pases europeus, na sua maioria, e EUA cumpram com os trmites dos regimes

    democrticos, o que as ltimas dcadas provam que tambm aconteceram ataques

    importantes igualdade e liberdade.

    Um Estado tem o direito de se defender e tem o direito de empregar os meios ao

    seu alcance para tal. No entanto, dever do pblico e governantes (porque decises que

    envolvem os direitos humanos devem sempre passar pelo escrutnio pblico e a deciso

    deve ser tomada por todos e no apenas pelos representantes eleitos) pesar as

    consequncias ticas de determinadas medidas tomadas em nome da segurana. O

    dilema da segurana e do quo longe estamos dispostos a ir envolve o presente - dado

    que as necessidades de segurana so sempre prementes e de curto prazo, porque os

    perigos surgem, em geral, no presente e no futuro imediato - mas tambm o futuro, dado

    que a preveno dos perigos actuais no justifica medidas que restrinjam os direitos de

    geraes futuras, que obviamente no tm poder de deciso no presente.

    A ingerncia nos assuntos internos de outros Estados, a espionagem, a venda de

    armas, entre outros mtodos, so antigos e ainda eficazes meios de obter vantagem

    sobre os adversrios. No existem aliados no plano das relaes internacionais, na

    prtica existem apenas armistcios mais ou menos duradouros. Quando confrontados

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    32

    com a sua sobrevivncia, os Estados empregam todos os meios ao seu alcance, mesmo

    que isso implique violar normas internacionais e os mais bsicos conceitos ticos.

    A partir de que ponto se traa o limite? At onde, dentro de um determinado

    conjunto de valores democrticos e ticos que colocam a liberdade individual acima de

    qualquer outro valor, se pode ir, sem que existe oposio utilizao de mtodos

    repressivos? essa discusso que permanece por fazer, e permanece assim no por

    desinteresse do pblico mas porque no do interesse das elites com poder ver os seus

    recursos mais drsticos serem colocados em causa. No um debate que agentes

    polticos e econmicos estejam dispostos a fazer, mesmo que seja difcil prever se as

    suas intenes esbarram ou no na vontade pblica. Os meios de represso empregados

    pelos Estados, principalmente desde o incio deste sculo, s tm sido aceites se

    aplicados num contexto dum discurso baseado no medo pela segurana, ou se

    empregados em segredo. O secretismo tambm s possvel porque agentes polticos e

    econmicos sentem que existe liberdade de aco, ou seja, que esto mandatados para

    actuar conforme os seus desejos e interesses sem que tenham de se submeter vontade

    dos eleitores. No legtimo considerar que programas que espiam os indivduos

    secretamente, e partindo do princpio que somo todos potenciais culpados, sejam

    justificados pelo acto eleitoral, e por essa mesma razo tm de permanecer secretos.

    No que diz respeito cedncia de poder, a democracia um regime de contra-

    senso porque provavelmente o nico no qual o poder , na maioria das vezes, cedido

    pacificamente. Trata-se de uma das premissas base da democracia: a alternncia nas

    estruturas governativas, que permitem distribuir o poder por todos os quadrantes da

    sociedade, garantido que todos vem as suas necessidades satisfeitas, mesmo que em

    pocas diferentes. No entanto, se o poder do Estado controlado por entidades que

    existem para l dele, logo fora do mbito eleitoral, ou por indivduos menos

    preocupados com os dilemas ticos que esto associados governao e ao poder, como

    costume na tecnocracia que grassa na Europa, ento ceder o poder, ou lidar com a

    diferena e oposio na democracia, pode ser encarado como um entrave que, no

    podendo ser abatido, tem de ser contido. por isso que os laivos de democracia que vo

    surgindo em pases intervencionados causam tanto problema interpretativo a quem

    compreende o poder apenas como mecanismo de imposio da vontade. Do desejo de

    referendo participao na UE proposto pelo antigo primeiro-ministro grego

    Papandreou, actividade do tribunal constitucional em Portugal, passando pelos

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    33

    protestos e movimentos que so descartados como o descontentamento da minoria, todo

    e qualquer reflexo da democracia encarado como uma afronta ao discurso nico e

    vontade de quem tem no seu horizonte nada mais do que a imposio da sua viso de

    como deve funcionar a sociedade.

    Observao e controlo so parte essencial das tcticas empregadas pelos Estados

    para garantir vantagem na cristalizao do seu poder, e por isso mesmo a estrutura

    hierrquica da sociedade intacta. necessrio manter o indivduo sob vigilncia

    constante, o que permite controlar a sua actividade e as suas redes de relaes, mesmo

    que essa observao seja feita de forma ilegal e, acima de tudo, desprovida de tica.

    Vigiar e monitorizar os perigos so prticas constantes dos Estados ao longo da histria.

    A observao, e atravs dela, o controlo do perigo, parte da lgica subjacente criao

    de prises, por exemplo, onde aqueles que esto desajustados da sociedade so

    monitorizados e contidos. Obviamente, dado que a prpria estrutura da sociedade no

    permite a eliminao do crime, mtodos de observao e monitorizao, de separao

    fsica, so essenciais e facilmente justificveis. No entanto, quando aquela lgica

    alargada e abrange todos os indivduos, e isso inclui aqueles que nunca foram

    considerados culpados de qualquer crime ponto essencial num Estado de direito -,

    entramos no domnio da tica, forando-nos a escolher, eventualmente, entre uma

    instituio que trata os cidados como potenciais criminosos ou a liberdade.

    Com o statu quo ameaado, natural que os Estados respondam. As respostas,

    contudo, no demonstram abertura para ouvir o que os indivduos tm a dizer sobre o

    gnero de futuro que querem. Ao contrrio, a tendncia tem sido para reprimir qualquer

    tipo de discurso que se oponha norma vigente que impe, ao nvel mais bsico da

    cultura e da sociedade, a ideia de que o ambiente competitivo capitalista o nico que

    permite alcanar a riqueza e a felicidade, no qual se pode viver na abundncia. Na

    verdade, o que se passa que existem grupos que dependem das suas relaes com o

    estado para permanecer na sua posio de vantagem, e para a manter esto dispostos a

    empregar todos os meios, mesmo que pouco ticos. Tanto a Europa, como os EUA,

    como o Norte de frica, tm assistido a variados e poderosos movimentos de mudana

    que continuam a ser excludos do debate poltico ou a ser violentamente atacados ou, no

    caso da primavera rabe, a ser instrumentalizados para colocar no poder grupos que

    pouco diferem, nas suas prticas, dos regimes que depuseram.

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    34

    A violncia fsica no s mais bsica das formas de represso como tambm

    a mais directa, ainda que, no contexto actual, das menos eficazes. Tal no significa que

    no seja empregada para controlar os indivduos. Movimentos de protesto, desde os

    EUA Turquia so repudiados, muitas vezes, com nveis elevados de violncia fsica.

    Tratando-se de autnticas revolues, algumas que se prolongaram ou ainda prolongam

    em guerras civis, a existncia de mortos, principalmente devido ao nvel de violncia

    empregada pelas foras estatais, era natural. O contexto dictatorial no qual tais

    movimentos surgem, e sendo natural a associao entre regimes despticos e o uso da

    fora excessiva como mecanismo de represso e generalizao do medo, fazia prever

    respostas duras por parte dos diferentes Estados. No entanto, o recurso fora excessivo

    no exclusivo de regimes ditactoriais do Norte de frica. Na Europa, principalmente

    em alguns pases que sofrem mais com a crise, e nos EUA, a violncia das foras

    estatais clara, com intuito de reprimir aqueles que se atrevem a lutar por vises

    diferentes da norma.

    O comportamento das foras policiais nas manifestaes o espelho da vontade

    daqueles que governam o Estado. A polcia a extenso fsica do poder do Estado,

    reflectindo na sua actuao a matiz desptica da instituio a que pertencem, com

    intensidade que varia conjunturalmente. O trabalho policial em manifestaes ou

    protestos obrigatoriamente diferente da restante funo dessa instituio. Zelar pela

    segurana dos protestantes e meio ambiente envolvente uma premissa menor, pois o

    verdadeiro objectivo do colocar presso psicolgica nos manifestantes, lembrando-

    lhes que o Estado tem a fora do seu lado. Como representantes directos do Estado, a

    polcia - ou instituies semelhantes representam a fora e a violncia e nesse

    sentido que comparecem nas manifestaes e protestos, o que significa que a interaco

    com o Estado feita pelo confronto e no pelo debate.

    Da Grcia a Portugal, os protestos contra a austeridade tm sido afrontados com

    violncia excessiva por parte das foras policiais. A situao de crise que vigora

    actualmente um motivo para medidas drsticas e tem revelado a incapacidade dos

    governantes, mesmo em questes que pouco se relacionam com a economia, como na

    comunicao. As falhas de comunicao no so apenas fruto de impreparao mas

    tambm da incapacidade, misturada com um sentimento de irresponsabilidade, em

    transmitir algo que fuja ao discurso pr-preparado da crise e da austeridade. Como tal,

    ao confrontarem-se com o protesto, regimes cujos governantes lidam cada vez pior com

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    35

    os actos informais da democracia, parecem sentir-se acossados, justificando o uso da

    fora como forma de colocar um fim a dissidncias, ao mesmo tempo que, no campo

    simblico, demonstram o seu poder.

    O recurso fora no se limita aos pases que atravessam crises econmicas. A

    incapacidade de perceber a dinmica do espao pblico como pea fundamental da

    democracia leva lderes e governos a recorrerem com mais celeridade do que razovel

    violncia, levada a cabo pelas foras estatais definidas para essa tarefa. Assim, surgem

    exemplos cada vez mais graves de represso, aliados a discursos incriminatrios e

    divisores, que tentam colocar os indivduos numa situao de confronto entre si.

    A Turquia tem sofrido desde 2013 com esse gnero de violncia promovida pelo

    governo e apoiada pelo Estado. Os protestos recentes naquele pas no se limitavam

    proteco do parque Gezi. Por detrs da retrica da proteco do ltimo espao verde de

    Istambul, estava a luta contra a crescente islamizao do Estado turco, cuja repblica se

    caracteriza exactamente pelo laicismo, promovida pelo primeiro presidente Mustafa

    Atartuk. Em causa estavam as restries liberdade de escolha e a crescente violncia,

    mais do foro psicolgico, de medidas que configuram a criao de um estado islmico,

    disfarado pelo discurso dos bons costumes. O protesto era, de facto, pelo humanismo e

    pela liberdade de escolha, por um regime poltico laico, no qual a democracia fosse

    generalizada, ou seja, onde todos pudessem ter uma voz, ao invs de ficarem de fora do

    debate importante que implica mudanas estruturais na sociedade turca.

    A incapacidade de Erdogan para lidar com a oposio, que uma caracterstica

    comum a muitos governantes modernos, criou o ambiente necessrio para a represso

    violenta de um movimento pacfico, que j durava h sete dias antes dos confrontos se

    iniciarem. a falta de habilidade, e vontade, em abrir o dilogo que fora os

    governantes a escudarem-se por detrs de medidas repressivas. Porque muitos

    governantes actuais esto pouco, ou mesmo nada habituados, ao confronto poltico

    muitos deles nem so polticos de facto mas apenas tecnocratas com cargos pblicos

    sem vontade, preparao ou hbito de confronto de ideias resta-lhes a fora para se

    imporem.

    O perigo do recurso violncia que esta se torne ineficaz, ao ponto de ser

    necessrio increment-la para obter sucesso. A nica forma de a violncia no obter os

    resultados esperados se existir resistncia, pacfica ou no, capaz de agregar uma

    maioria de indivduos dispostos a expressar os seus pontos de vista. No entanto, de

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    36

    esperar que os protestantes respondam com mais violncia. Obviamente nem todos os

    casos so assim e existem exemplos bastante diferentes. Na Grcia, na Turquia ou em

    Espanha, em resposta violncia excessiva das foras polcias, movimentos e

    protestantes, mesmo que no apoiados pela maioria dos participantes, englobam faces

    que respondem com o recurso fora. Em Portugal, por outro lado, a resistncia tem

    sido mais pacfica, assistindo-se a um desnvel muito maior na fora empregada entre

    manifestantes e foras policiais.

    Todos aqueles pases tm, no seu passado recente, episdios de ditaduras e

    autoritarismo, mas com contornos bastante diferentes que ainda hoje influenciam a

    dinmica dos protestos e dos confrontos. A Espanha, por exemplo, tem uma histria

    mais marcada pela luta armada, desde a resistncia ao regime franquista at ao

    separatismo, muito apoiada nos movimentos de extrema-esquerda que encaravam a

    violncia como a nica resposta ao poder central do Estado. Por outro lado, em

    Portugal, quarenta anos de ditadura criaram um mito de brandos costumes que muitos

    parecem utilizar como um ponto de orgulho, at mesmo quando referem a revoluo dos

    cravos como pacfica. A diferena na atitude perante o poder, a deferncia com que este

    encarado, tambm ajuda a explicar as atitudes mais ou menos pacficas em situao de

    confronto.

    A fora fsica tem limites. Eventualmente criar anti-corpos importantes no seio

    do espao pblico e colocar em risco a imagem das foras policiais e,

    consequentemente, daqueles a que elas respondem. A utilizao da fora sobre a sua

    prpria populao, coloca o governante numa situao delicada: ou tem um discurso

    divisionista, criador de plos opostos que tm de se confrontar cria inimigos e

    poderoso o suficiente para convencer a maioria, ou arrisca-se a perder a credibilidade e

    poder. Nesta ltima situao restam-lhe duas sadas: resignao ou reforo da sua fora,

    levando a extremos que, invariavelmente, terminaro numa sucesso de eventos

    violentos fracturantes, sendo um exemplo disso mesmo o caso da Sria. por isso que

    muitos regimes apostam noutra forma de autoritarismo, na qual o poder do Estado no

    usado primariamente para a represso fsica mas sim para o controlo e preveno,

    produzindo uma sociedade na qual se torna regra o panptico como forma de restringir a

    liberdade.

    O caso de Edward Snowden exps os meios que esto ao alcance dos Estados

    para exercer o seu poder sob o indivduo. Mostra uma parte dos jogos de sombras que se

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    37

    processam nos e entre Estados, situaes que ficam fora do espao pblico e cuja

    revelao acarretam consequncias, no mnimo, indesejveis para quem as protagoniza.

    Espionagem e crimes de guerra no so actos desconhecidos, apesar da imoralidade que

    representam. O que muda, se que de facto muda alguma coisa, a extenso desses

    actos e o quo longe os agentes polticos, e outros interessados, vo para os esconder.

    tambm uma questo tica que envolve o limite do poder do Estado sobre o indivduo,

    at que ponto pode um cidado ser alvo dos mecanismos repressivos e autoritrios do

    Estado.

    O caso Snowden levanta um importante dilema tico sobre a actuao dos

    Estados, ainda que decorrente de actos diferentes. possvel conceber o mundo actual

    sem espionagem? Provavelmente no. A competio no s entre indivduos, o

    sistema obriga os Estados a competir por vantagens no cenrio poltico mundial e nesse

    confronto, espiar o adversrio a melhor forma de ficar frente. Trata-se de uma

    corrida que ganha por quem tem mais meios e que tem como prmio o acrscimo de

    poder para garantir a sobrevivncia. A vantagem ganha um incentivo para incrementar

    os meios empregados e prosseguir com as aces de espionagem. No entanto,

    necessrio traar os limites para determinados actos levados a cabo pelos Estados.