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CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL – REGIONAL LESTE 2 Encontro de seminaristas de 4º ano de Teologia, diáconos transitórios e padres recém-ordenados Pe. Vanildo de Paiva 1 _______________________________________________________________________ INICIAÇÃO À VIDA CRISTÃ E ORGANIZAÇÃO PASTORAL: UMA RELAÇÃO DIALÉTICA 2 I. INTRODUÇÃO 01. Especialmente desde o Concíilo Vaticano II, documentos da Igreja vem apontando para a necessidade de uma revisão dos processos iniciáticos de crianças e adultos. A Conferência latino-americana de Aparecida (2007) deu importante impulso ao se demorar sobre o assunto. Os números 289 a 294 do documento final trazem “propostas para a Iniciação Cristã”, já delineando alguns aspectos que foram amadurecidos ao longo de todo esse trajeto. Estes aspectos foram acolhidos pela CNBB no estudo 97 “Iniciação à Vida Cristã: um processo de Inspiração Catecumenal”, até que, em 2011, a Iniciação à Vida Cristã entrou nas Diretrizes Gerais da CNBB como uma urgência pastoral. Finalmente, o documento 107 da CNBB, “Iniciação à Vida Cristã: itinerário para formar discípulos missionários”, foi publicado como resultado da 55ª Assembleia Geral dos nossos bispos, em maio de 2017. E a justificativa foi muito clara: “Sabemos que o processo de Iniciação à Vida Cristã requer novas disposições pastorais. São necessárias perseverança, docilidade à voz do Espírito, sensibilidade aos sinais dos tempos, escolhas corajosas e paciência, pois se trata de um novo paradigma” (CNBB, doc. 107, n.9. Grifo nosso) 3 . 02. Mas o que exatamente requer “novas disposições pastorais”? Como entender essa expressão? Obviamente, percebe-se necessidade de mudanças, já que temos, na realidade atual, novos interlocutores (cf. nn. 39.51), e os modelos tradicionais de transmissão da fé não respondem mais à altura do que a realidade do nosso povo exige, isto é, estamos dando respostas a perguntas que não mais são feitas, ou ao menos, como dizem os bispos, “não podemos dar respostas antes de ter escutado as perguntas” (n.3). Mas, que perguntas são essas? Do povo, em geral, comumente se ouve: Por que a Igreja Católica não me satisfaz, não “toca” meu coração? Já fiz a crisma; posso ir embora? Preciso fazer a crisma para casar? Não posso ser madrinha de batizado só porque não tenho primeira comunhão? Que tem a ver uma coisa com a outra? E da parte dos pastores, catequistas e cristãos engajados, outras questões ressoam: Quando a Igreja vai parar de fazer de conta que acredita que esses crismados estão maduros para assumir a vida cristã? Por que os sacramentos da Iniciação cristã (batismo-crisma-eucaristia) se fragmentaram e se separam tanto uns dos outros? Qual a razão de tanta incoerência ética praticada por cristãos? O que falta na catequese, se a instrução é garantida tão fortemente? Por que grande parte das assembleias litúrgicas não participa de modo pleno, consciente e ativo das celebrações (cf. SC 14)? E por aí vai... 03. Uma questão grave tem ocupado, há um bom tempo, as pautas dos pastores e pastoralistas: a crise dos processos de transmissão da fé e de sua vivência no seio de nossas comunidades cristãs, alimento e incentivo para o testemunho cristão na sociedade. Em outras palavras, é forçoso admitir que nossos modelos pastorais e configuração de “paróquia” parecem não corresponder mais às demandas e necessidades dos novos tempos; também o tradicional modelo catequético doutrinal e conceitual, não obstante os mais de 40 anos do documento Catequese Renovada, não mais satisfaz. “Mas hoje o mundo tornou-se diferente, exigindo novos processos para a transmissão da fé e para o discípulado missionário” (n. 46. Grifo nosso). Sabemos da impossibilidade de um adequado processo de iniciação à vida cristã sobreviver em modelos paroquiais e pastorais obsoletos, bem como a de pensar a renovação de nossas comunidades sem um frutuoso itinerário de iniciação. São urgências que se exigem mutuamente! Como aponta Reinert 4 : “Trata-se de um círculo dialético em que o fortalecimento de um incide no outro e este, ao mesmo tempo, requer a vitalidade do primeiro. A iniciação à vida cristã catecumenal será efetiva à medida que houver uma reconfiguração eclesial adequada; do mesmo modo, uma iniciação catecumenal de qualidade, na riqueza de seus elementos pedagógicos, litúrgicos e pastorais, lançará luzes para repensar o institucional paroquial”. 1 Pe. Vanildo de Paiva é sacerdote da Arquidiocese de Pouso Alegre (MG). É mestre em Psicologia como Ciência e Profissão e assessora formação nas áreas de Liturgia, Catequese e Psicologia em todo o Brasil. [email protected] 2 Texto em construção. Colaborações serão bem-vindas. Favor enviar pelo e-mail: [email protected] 3 A partir daqui, neste texto, quando nos referirmos ao documento 107 da CNBB citaremos apenas os números. 4 Reinert, João Fernandes. Paróquia e iniciação cristã paroquial: a interdependência entre renovação paroquial e mistagogia catecumental. In Vida Pastoral maio/junho de 2016.

CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL ......3 A partir daqui, neste texto, quando nos referirmos ao documento 107 da CNBB citaremos apenas os números. 4 Reinert, João Fernandes

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Page 1: CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL ......3 A partir daqui, neste texto, quando nos referirmos ao documento 107 da CNBB citaremos apenas os números. 4 Reinert, João Fernandes

CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL – REGIONAL LESTE 2 Encontro de seminaristas de 4º ano de Teologia, diáconos transitórios e padres recém-ordenados Pe. Vanildo de Paiva1 _______________________________________________________________________

INICIAÇÃO À VIDA CRISTÃ E ORGANIZAÇÃO PASTORAL: UMA RELAÇÃO DIALÉTICA2

I. INTRODUÇÃO

01. Especialmente desde o Concíilo Vaticano II, documentos da Igreja vem apontando para a necessidade de uma revisão dos processos iniciáticos de crianças e adultos. A Conferência latino-americana de Aparecida (2007) deu importante impulso ao se demorar sobre o assunto. Os números 289 a 294 do documento final trazem “propostas para a Iniciação Cristã”, já delineando alguns aspectos que foram amadurecidos ao longo de todo esse trajeto. Estes aspectos foram acolhidos pela CNBB no estudo 97 “Iniciação à Vida Cristã: um processo de Inspiração Catecumenal”, até que, em 2011, a Iniciação à Vida Cristã entrou nas Diretrizes Gerais da CNBB como uma urgência pastoral. Finalmente, o documento 107 da CNBB, “Iniciação à Vida Cristã: itinerário para formar discípulos missionários”, foi publicado como resultado da 55ª Assembleia Geral dos nossos bispos, em maio de 2017. E a justificativa foi muito clara: “Sabemos que o processo de Iniciação à Vida Cristã requer novas disposições pastorais. São necessárias perseverança, docilidade à voz do Espírito, sensibilidade aos sinais dos tempos, escolhas corajosas e paciência, pois se trata de um novo paradigma” (CNBB, doc. 107, n.9. Grifo nosso) 3.

02. Mas o que exatamente requer “novas disposições pastorais”? Como entender essa expressão? Obviamente, percebe-se necessidade de mudanças, já que temos, na realidade atual, novos interlocutores (cf. nn. 39.51), e os modelos tradicionais de transmissão da fé não respondem mais à altura do que a realidade do nosso povo exige, isto é, estamos dando respostas a perguntas que não mais são feitas, ou ao menos, como dizem os bispos, “não podemos dar respostas antes de ter escutado as perguntas” (n.3). Mas, que perguntas são essas? Do povo, em geral, comumente se ouve: Por que a Igreja Católica não me satisfaz, não “toca” meu coração? Já fiz a crisma; posso ir embora? Preciso fazer a crisma para casar? Não posso ser madrinha de batizado só porque não tenho primeira comunhão? Que tem a ver uma coisa com a outra? E da parte dos pastores, catequistas e cristãos engajados, outras questões ressoam: Quando a Igreja vai parar de fazer de conta que acredita que esses crismados estão maduros para assumir a vida cristã? Por que os sacramentos da Iniciação cristã (batismo-crisma-eucaristia) se fragmentaram e se separam tanto uns dos outros? Qual a razão de tanta incoerência ética praticada por cristãos? O que falta na catequese, se a instrução é garantida tão fortemente? Por que grande parte das assembleias litúrgicas não participa de modo pleno, consciente e ativo das celebrações (cf. SC 14)? E por aí vai...

03. Uma questão grave tem ocupado, há um bom tempo, as pautas dos pastores e pastoralistas: a crise dos processos de transmissão da fé e de sua vivência no seio de nossas comunidades cristãs, alimento e incentivo para o testemunho cristão na sociedade. Em outras palavras, é forçoso admitir que nossos modelos pastorais e configuração de “paróquia” parecem não corresponder mais às demandas e necessidades dos novos tempos; também o tradicional modelo catequético doutrinal e conceitual, não obstante os mais de 40 anos do documento Catequese Renovada, não mais satisfaz. “Mas hoje o mundo tornou-se diferente, exigindo novos processos para a transmissão da fé e para o discípulado missionário” (n. 46. Grifo nosso). Sabemos da impossibilidade de um adequado processo de iniciação à vida cristã sobreviver em modelos paroquiais e pastorais obsoletos, bem como a de pensar a renovação de nossas comunidades sem um frutuoso itinerário de iniciação. São urgências que se exigem mutuamente! Como aponta Reinert4: “Trata-se de um círculo dialético em que o fortalecimento de um incide no outro e este, ao mesmo tempo, requer a vitalidade do primeiro. A iniciação à vida cristã catecumenal será efetiva à medida que houver uma reconfiguração eclesial adequada; do mesmo modo, uma iniciação catecumenal de qualidade, na riqueza de seus elementos pedagógicos, litúrgicos e pastorais, lançará luzes para repensar o institucional paroquial”.

1 Pe. Vanildo de Paiva é sacerdote da Arquidiocese de Pouso Alegre (MG). É mestre em Psicologia como Ciência e Profissão e assessora formação nas áreas de Liturgia, Catequese e Psicologia em todo o Brasil. [email protected] 2 Texto em construção. Colaborações serão bem-vindas. Favor enviar pelo e-mail: [email protected] 3 A partir daqui, neste texto, quando nos referirmos ao documento 107 da CNBB citaremos apenas os números. 4 Reinert, João Fernandes. Paróquia e iniciação cristã paroquial: a interdependência entre renovação paroquial e mistagogia catecumental. In Vida Pastoral maio/junho de 2016.

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2 Iniciação à Vida Cristã e organização Pastoral: uma relação dialética

04. Tudo isso convoca e provoca a Igreja a repensar o modo como tem lançado os fundamentos da fé cristã, e que

estruturas podem dar sustentação à fé dos iniciandos e iniciados (cf. doc 102, n.45). Daí a urgência de “revisão dos processos” (n. 1), “processo de conversão pastoral e de aprendizagem” (n. 2; Cf n. 55.59. 244), “novo paradigma pastoral” (n. 3), “interlocuções novas” (39), “transformação missionária da nossa Igreja” (n. 51), “trilhar novos caminhos” (n. 54), expressões que perpassam o documento 107 e nos fazem compreender que “não se trata de fazer apenas ‘reformas’ na catequese, mas de rever toda a ação pastoral, a partir da Iniciação à Vida Cristã” (n. 138. Grifo nosso). Nossos bispos afirmam: “Fica para trás um determinado modelo eclesial, marcado pela segurança da sociedade de cristandade e desponta um processo de renascimento de um modelo de Igreja pobre, com os pobres, em saída missionária para as periferias geográficas e existenciais (cf. EG, n. 20-23). É tempo de germinação, somos chamados a viver algo novo que nasce, por meio do impulso revitalizador do Espírito Santo, que renova a face da terra” (n. 52). Resta saber: teremos coragem para tanto?

II. INICIAÇÃO CRISTÃ DE INSPIRAÇÃO CATECUMENAL

05. Nesses quase dois mil anos de missão, a Igreja foi tentando se adaptar as exigências de cada época, ora com mais

eficácia, ora com parcos resultados. O catecumenato5, processo catequético de iniciação dos primeiros séculos, foi uma maneira muito criativa encontrada para responder às urgências da época, tornando-se “verdadeira escola de fé”6. Hoje ele é proposto pela Igreja como modelo, visto apresentar elementos muito importantes, que, adaptados à nossa realidade, podem contribuir eficazmente na elaboração de itinerários próprios para cada contexto, para repensarmos o processo evangelizador e catequético atual. É importante ressaltar que a ideia de “modelo” apresentado pelos Diretórios Geral e Nacional de Catequese, bem como por outros documentos, não significa que se deva impor a mesma metodologia dos primeiros séculos, mas que o catecumenato antigo sirva antes de inspiração (cf. n. 117), leve-nos a uma mística, a um estilo iniciático de encontro e introdução da pessoa no mistério de Cristo, para que ela alcance a maturidade da fé e possa dizer com a própria vida, como concluiu o apóstolo Paulo: “Já não sou eu mais que vivo; é Cristo que vive em mim!” (Gl 2,19). A proposta do estudo 97 da CNBB parece ser sensata ao alertar que o modelo catecumenal “não é um projeto fechado, para ser seguido ao pé da letra em todas as situações. Há muita possibilidade – e certamente haverá necessidade – de adaptações, soluções locais criativas, maneiras de conviver com eventuais carências”.7

1) A inspiração catecumenal e seus elementos

06. Por isso é preferível falar de uma iniciação com “inspiração catecumenal” 8, que contemple os elementos essenciais

do catecumenato primitivo como iluminadores de novos itinerários, ou mesmo de adaptação das experiências já bastante ricas que temos, mas que podem assumir um estilo mais iniciático. Mas, que elementos são esses? O que podemos aprender com as primeiras comunidades e experiências cristãs? Em que o catecumenato primitivo pode nos inspirar? Estas perguntas não têm respostas acabadas. A reflexão atual da Igreja, também no Brasil, tem apontado pistas bastante interessantes para iluminarmos nossa vida pastoral e nossa catequese, especialmente com adultos, aos quais todos os esforços devem ser envidados, visto serem eles os destinatários prioritários da ação evangelizadora da Igreja. Como sustentam os bispos do Brasil: “A inspiração catecumenal que propomos é uma dinâmica, uma pedagogia, uma mística, que nos convida a entrar sempre mais no mistério do amor de Deus. Um itinerário mistagógico, um desejo que nunca acaba. Porque Deus, sendo Amor, nunca se esgota. A mística é a entrada nesse movimento de busca de Deus, que para a fé cristã, concretiza-se no encontro com o outro” (n. 56). Podemos citar alguns desses elementos:

07. a) Passagem de uma catequese sacramentalizadora para uma catequese evangelizadora

Enquanto insistirmos numa catequese com finalidade somente sacramental, “para” a primeira Eucaristia ou Crisma, ou nos tradicionais e quase sempre inócuos “cursos” de batismo e para noivos em forma intensiva e fortemente conceitual, não daremos conta de uma realidade muito mais ampla que nos desafia e questiona: uma multidão de

5 Cf. CNBB. Iniciação à vida cristã (Estudo 97), n. 71-89 6 cf. CNBB. Diretório Nacional de Catequese, n. 130 7 CNBB. Iniciação à vida cristã, n. 159 8 Cf. Idem

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3 Iniciação à Vida Cristã e organização Pastoral: uma relação dialética

pessoas que busca e necessita de um encontro com a boa notícia da vida e do amor, de uma experiência com o Cristo que possa ser-lhes suporte durante a vida toda, numa fé madura e comprometida com o Reino. Se o foco for os sacramentos pelos sacramentos, e nessa dimensão estancarem os nossos esforços, a missão evangelizadora será bastante reduzida, perpetuaremos um cristianismo sem consequências práticas na vida das pessoas, e muitas delas continuarão à margem da vida eclesial, por não se enquadrarem em nossos critérios e “pacotes” canônicos e pastorais! Isso não significa que os sacramentos não tenham o seu lugar. Pelo contrário, dentro de uma mística iniciática, entende-se que eles iniciam a pessoa na vida nova do cristianismo, pois, no seu conjunto, são “atos do próprio Cristo” (n. 125) e constituem “o sacramento da iniciação” (n. 123). A descoberta da pessoa de Jesus, a acolhida e o convívio com os irmãos na comunidade, os apelos fortes que brotam da Palavra para uma vivência coerente com a fé, o testemunho dos cristãos comprometidos com o Reino contagiarão as pessoas em processo de iniciação, de modo que os sacramentos sejam vivenciados não como conveniência e demissão da caminhada de fé, mas como adesão ao projeto de Jesus Cristo, no discipulado missionário que dura a vida inteira. “O sacramento é uma consequência de uma adesão à proposta do Reino, vivida na Igreja. Nosso processo de crescimento na fé é permanente; os sacramentos alimentam esse processo e têm consequências na vida”.9

08. b) Cristo como centro e referência da catequese

Apresentar a pessoa de Jesus, sem maquiagem e fundamentalismos, como sentido máximo para a vida, muito além da Instituição, é fundamental! Proporcionar o encontro com Ele e a experiência do seu amor...Isso exige uma catequese mais “enxuta”, voltada para o essencial, despojada de tantos conteúdos e temas que podem ser compreendidos ao longo de toda a vida cristã. É importante ter a clareza de que não é necessário “congestionar” a catequese inicial, seja com crianças ou adultos, com uma quantidade exagerada e sem prioridade de conteúdos. Supõe-se que a catequese permanente seja um caminho até o final da vida, no qual um conhecimento sistemático e progressivo das questões relativas à fé vá acontecendo paulatinamente. “Recordamos que o caminho de formação do cristão, na tradição mais antiga da Igreja, ‘teve sempre caráter de experiência, na qual era determinante o encontro vivo e persuasivo com Cristo, anunciado por autênticas testemunhas’”.10 Cabe-nos, ainda, alertar para o risco de experiências equivocadas propostas por setores mais intimistas e alienados da própria Igreja, que dissolvem a espiritualidade cristã na busca de um Cristo etéreo e descomprometido com a realidade, ou no “periférico” das devoções, experiências estas que não contemplam o Jesus de Nazaré, o Cristo histórico, Deus que assumiu nossa carne e armou sua tenda entre nós (cf. Jo 1,14). Como enfatizam as Diretrizes Gerais para a Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil (2015-2019): “Jesus Cristo é a fonte de tudo o que a Igreja é e de tudo o que ela crê. Em sua missão evangelizadora, ela não comunica a si mesma, mas o Evangelho, a palavra e a presença transformadora de Jesus Cristo, na realidade em que se encontra (...). O fundamento do discipulado missionário é a contemplação e o seguimento de Jesus Cristo” (doc 102, n.4. Grifo nosso). A escolha do ícone bíblico do encontro de Jesus com a mulher samaritana (Jo 4,4-42) como inspiração e mística que perpassam todo o documento 107 não é um grande indicativo do que dissemos até aqui? (cf. nn. 11-38).

09. c) O papel fundamental da comunidade cristã

A comunidade está ausente dos nossos atuais itinerários catequéticos. Não podemos nos esquecer de que ela é fonte, conteúdo, agente e ponto de chegada do cristão iniciado e maturo no testemunho cristão11. É ela que acolhe, motiva, ajuda e testemunha a fé no cotidiano dos iniciandos em processo de educação da fé. A tarefa iniciática não é responsabilidade somente do catequista, mas de toda a comunidade cristã, a começar pelas suas lideranças. “Todos os membros da comunidade paroquial são responsáveis pela evangelização dos homens e mulheres em cada ambiente”.12 Formar comunidades acolhedoras e comprometidas com o Reino é condição indispensável para que todo itinerário de iniciação dê frutos. “Onde há uma verdadeira comunidade cristã, ela se torna uma fonte viva da catequese, pois a fé não é uma teoria, mas uma realidade vivida pelos membros da comunidade”.13 A vida fraterna e tantas experiências de comunhão vividas na e pela comunidade cristã sinalizam e possibilitam a experiência da presença de Jesus, como ele mesmo garantiu: “Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, ali estou no

9 CNBB. Diretório Nacional de Catequese, n. 50 10 CELAM. Documento de Aparecida, n. 290 (Grifo nosso) 11 Cf. IV parte do documento Catequese Renovada (Documento 26 da CNBB) 12 CELAM. Documento de Aparecida, n. 171 13 CNBB. Diretório Nacional de Catequese, n. 52

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meio deles” (Mt 18,20). Portanto, “sem vida em comunidade não há como efetivamente viver a proposta cristã. Comunidade implica convívio, vínculos profundos, afetividade, interesses comuns, estabilidade e solidariedade nos sonhos, nas alegrias e nas dores. A comunidade eclesial acolher, forma e transforma, envia em missão retaura, celebra, adverte e sustenta” (doc 102, n. 55). Para que a Iniciação Cristã não se torne uma pastoral a mais, entre tantas outras, mas uma ação conjunta das forças vidas da Paróquia, faz-se necessária uma Pastoral Orgânica14 que reflita, planeje e assuma a coordenação e avaliação de todo o processo.

10. d) A interação Catequese-Liturgia15

No início do cristianismo não havia compêndios e livros catequéticos. Rezava-se o que se acreditava. Acreditava-se no que se rezava. “A missão de iniciar na fé coube, na Igreja antiga, à liturgia e à catequese. Ambas caminhavam de mãos dadas16, intimamente unidas, em um processo chamado Iniciação à Vida Cristã, que tinha como centro a imersão no mistério de Cristo e de sua Igreja. Tudo acontecia em clima de espiritualidade, oração, celebrações e ritos, enfim, em clima mistagógico” (n. 70). A liturgia era e precisa continuar sendo formadora e educativa do cristão, pois é o principal meio de transmissão da fé, ainda que sua natureza seja celebrativa e não discursiva. O jeito de celebrar, os elementos simbólicos e rituais, a Palavra e boas homilias formam eficazmente o cristão. “Há uma relação íntima entre a fé, a celebração e a vida. O mistério de Cristo anunciado na catequese é o mesmo que é celebrado na liturgia para ser vivido”.17 A pessoa em processo de iniciação cresce com um “olho no altar e outro na vida”. A liturgia ajuda a guardar e assumir profundamente o que foi descoberto na caminhada. Assim, as celebrações têm por finalidade “gravar nos corações dos catecúmenos o ensinamento recebido quanto aos mistérios de Cristo e a maneira de viver o que daí decorre (...); levá-los a saborear as formas e as vias de oração; introduzi-los pouco a pouco na liturgia de toda comunidade”.18 Isso requer uma catequese mistagógica. Mistagogia vem de duas palavras gregas: 'myst ' e 'agogein', e significa guiar, conduzir para dentro a através do Mistério. Está intimamente ligada à ação ritual, que nos insere na vida do Cristo, nos converte e nos mobiliza à transformação da nossa própria vida. Aí entram a familiaridade com os símbolos, os ritos, com a experiência orante, com a Sagrada Escritura e o aprofundamento teológico, que culmina no encontro pessoal com Jesus Cristo, no momento atual, existencial de nossa vida pessoal, comunitária e social. “A mistagogia nos leva a uma conversão da interioridade, uma adesão existencial à pessoa de Jesus Cristo e não apenas intelectual ou moral. E esta adesão nos leva a uma atitude ética, um modo de vida de acordo com o evangelho de Jesus Cristo”. 19

11. e) O acompanhamento personalizado

Ainda que demande um número maior de pessoas disponíveis para a tarefa iniciática, vale a pena investir num acompanhamento personalizado dos iniciandos, visto que cada um tem um ritmo, uma experiência de vida e uma cosmovisão diferente do outro. “O povo que a Igreja tem a missão de acolher e servir é uma multidão, com rostos variados que precisam ser reconhecidos, identificados, personalizados”.20 A dinâmica da acolhida e do afeto exige que não se perca de vista o sujeito, com suas demandas pessoais e diversas. A figura do introdutor, infelizmente pouco considerada em nossos itinerários atuais, simbolicamente representa a exigência de uma atenção individualizada a quem está sendo iniciado: “o candidato que solicita sua admissão entre os catecúmenos deve ser acompanhado por um introdutor, homem ou mulher, que o conhece, ajuda e é testemunha de seus costumes, fé e desejo”.21 Por priorizar os adultos, o acompanhamento se complexifica, pois a demanda adulta e as indagações que trazem são mais exigentes, já que possuem uma história mais densa, cheia de experiências, perplexidades, alegrias e decepções. E aí não basta estudar o cristianismo. O adulto cheio de perguntas quer descobrir sentido na vida. Nos

14 Cf. CNBB. Iniciação à vida cristã. Estudo 97, nn. 28; 146-147 15 Uma boa referência para uma compreensão mais ampla dessa interação pode ser encontrada no livro “Catequese e Liturgia: duas faces do mesmo Mistério”, de minha autoria. São Paulo: Paulus, 2007 16 Mais do que “de mãos dadas”, o que admite ainda alguma distância, podemos falar em “duas faces do mesmo Mistério”, entendendo que não há separação entre catequese e liturgia, ainda que cada dimensão, a seu modo, conduza o iniciando, para e através do Mistério, ao encontro com Cristo. 17 CNBB. Diretório Nacional de Catequese, n. 119 18 RICA – Ritual de Iniciação Cristã de Adultos, n. 106 19 Ione Buyst. Mistagogia, o que é isso? Catequistas em formação. 20 CNBB. Iniciação à vida cristã, n. 110 (grifo nosso) 21 Ritual de Iniciação Cristã de Adultos (RICA), n. 42

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5 Iniciação à Vida Cristã e organização Pastoral: uma relação dialética

seus relacionamentos, no mistério de Deus...22Atente-se, entretanto, para não particularizar radicalmente a caminhada, perdendo-se, assim, o vínculo essencial com a comunidade. É necessário ter cuidado com catequeses desvinculadas da caminhada comunitária, das celebrações litúrgicas, de cunho individualista ou muito particularizada em grupos e movimentos.

12. f) Catequese a partir da vida e para a vida do iniciando

O ponto de partida da catequese não é o livro nem as definições teológicas, mas sim a vida do iniciando. O acompanhamento personalizado e o bom senso do iniciador/catequista permitem uma consideração do iniciando a partir de seu contexto, de sua realidade social, econômica, política, cultural, religiosa, existencial... “A vida, a história, as experiências, os sentimentos, os sonhos, os projetos, os medos das pessoas devem ser considerados, escutados, valorizados em todo processo evangelizador, especialmente na Iniciação à Vida Cristã. Não há como viver a vida cristã e anunciar o Evangelho sem esta realidade, pois é nela que Deus se manifesta”.23 Se o processo de iniciação não incidir na vida, não transformá-la, se envidarão muitos esforços por quase nada!

13. g) Processo gradual e permanente

O processo catequético precisa respeitar o desenvolvimento natural da pessoa, em seus aspectos essenciais. Absorver, introjetar e assumir certos conteúdos fortes e relevantes demanda tempo, paciência, construção diária, foco no essencial. Por isso fala-se de catequese permanente, desde o útero materno até a hora da morte! Acolhida e sustentação do cristão no caminho de Jesus Cristo são duas dimensões que não podem ser esquecidas por nenhum itinerário de iniciação e evangelização. Mais uma vez apontamos para a necessidade de uma pastoral orgânica, centrada nos objetivos da iniciação, que proporcione ao caminhante possibilidades de se reconhecer membro da comunidade continuamente alimentado e sustentado por ela, que siga feliz o seu caminho, como aquele servo da rainha da Etiópia, evangelizado e batizado por Felipe (cf. At 8,26-39). “Se a paróquia precisa ser lugar da iniciação à vida cristã, necessita igualmente assumir o compromisso com o contínuo aprofundamento da fé dos já iniciados. Caso contrário, corre-se o risco de, conforme um ditado bastante brasileiro, ‘morrer na praia’. Formação inicial e formação permanente (iniciação cristã catecumenal e ‘catecumenato permanente’) são, portanto, momentos distintos de um único processo na construção de comunidades eclesiais adultas e de cristãos adultos”.24 Isso requer a sensibilidade da comunidade e do iniciador/catequista para que respeite o tempo, o “kairós” de cada iniciando, sem pressões para que tome decisões, receba sacramentos ou assuma trabalhos na comunidade. Esse elemento também reforça a ideia de uma catequese mais personalizada, que acompanhe melhor a diversidade do ritmo de crescimento de cada um, sustente itinerários diversificados conforme as várias faixas etárias dos iniciandos e conheça as suas dificuldades no discernimento e adesão ao projeto de Jesus.

14. h) O lugar essencial da Palavra de Deus

A Palavra de Deus, escrita na Bíblia e na vida, precisa ocupar um lugar de destaque na catequese, pois o seu conhecimento e a sua meditação ajudam o iniciando a perceber a história de salvação que continua hoje e a presença constante do Deus na vida na sua caminhada pessoal, com força de libertação. Inseridos na mais antiga e rica tradição cristã, cabe-nos salientar a importância da Palavra de Deus como despertadora da fé e mobilizadora de conversão: "Logo, a fé provém da pregação e a pregação se exerce em razão da palavra de Cristo” (Rm 10,17). Ao colocar a animação bíblica da vida e da pastoral como uma das exigências da evangelização, a CNBB ressalta que “iniciação à vida cristã e Palavra de Deus estão intimamente ligadas” 25. E completa: “Na alvorada do terceiro milênio, não só existem muitos povos que ainda não conhecem a Boa-Nova, mas há também muitos cristãos que têm necessidade que a Palavra de Deus lhes seja anunciada novamente, de modo persuasivo, para poderem assim experimentar concretamente a força do Evangelho”26. É preciso continuar questionando, portanto, certo

22 Cf. CNBB. Iniciação à vida cristã. Estudo 97, n. 08 23 CNBB. Iniciação à vida cristã. Estudo 97, n. 109 24 Reinert, João Fernandes. Paróquia e iniciação cristã paroquial: a interdependência entre renovação paroquial e mistagogia catecumental. In Vida Pastoral maio/junho de 2016. 25 doc 102, n.47. Grifo do documento 26 Idem

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6 Iniciação à Vida Cristã e organização Pastoral: uma relação dialética

reducionismo, não raro ainda hoje, de toda a riqueza oferecida ao cristão pela Igreja às espécies eucarísticas do pão e do vinho consagrados, em detrimento da proclamação e escuta da Palavra de Deus na sagrada liturgia, ainda que sempre tenham ensinado a dignidade e o valor da Liturgia da Palavra, presença “real” do Cristo, Pão do Céu a alimentar os fiéis. 27 O documento 107 (n. 179) aponta a centralidade da Palavra de Deus como um dos elementos essenciais da inspiração catecumenal de toda a vida pastoral, citando a Exortação Apostólica Verbum Domini, do papa emérito Bento XVI, que afirma a necessidade de uma evangelização “impregnada e embebida do pensamento, espírito e atitudes bíblicas e evangélicas, mediante um contato assíduo com os próprios textos sagrados” (VD, n.74).

15. i) A unidade teológica dos Sacramentos de Iniciação Cristã28

Nos primeiros séculos do cristianismo, quem queria tornar-se cristão fazia uma caminhada séria de iniciação, permeada por ritos, encontros humanos, aprofundamento da Palavra, inserção na comunidade e testemunho na vida cotidiana. E os sacramentos de iniciação eram celebrados numa festa só, na solene liturgia da Vigília Pascal. Historicamente, isso muda com a obrigatoriedade do cristianismo pelo Império Romano, e seus desdobramentos pastorais. A unidade sacramental se fragmenta, e até hoje os sacramentos do batismo, confirmação e eucaristia são celebrados e, infelizmente, entendidos separadamente pela maioria dos que os celebram, como também por muitos sacerdotes. Se cronologicamente dificilmente se conseguirá uma unidade dos sacramentos de Iniciação, importa que o iniciando perceba a unidade teológica que há entre eles, não fragmentando as vivências sacramentais ou isolando umas das outras, sob pena de vincular-se efetivamente a nenhum dos sacramentos e empobrecer a vida cristã. “A mútua referência dos três sacramentos é pouco matizada nos livros de catequese. É comum encontrarmos catequistas que não sabem relacionar o Batismo, a Confirmação e a Eucaristia. É justamente esse dinamismo referencial que garante a unicidade de todo o processo, fundamenta a identidade do ser cristão e projeta-a como tarefa pascal a ser cumprida ao longo de toda a existência do fiel”.29 Essa preocupação em resgatar a unidade teológica e pastoral dos sacramentos de iniciação cristã também é destacada no documento 107, bem como a de rever a ordem de sua recepção, para que a eucaristia ocupe o seu lugar de plenitude de todo o processo iniciático (cf. nn. 126-133, 240-242).

16. j) Compromisso Sócio transformador O princípio de interação fé-vida, fundamental característica da Catequese Renovada30, na mais fiel tradição da Igreja latino-americana, é princípio que deve iluminar todo itinerário de iniciação cristã, garantindo que a opção preferencial de Jesus Cristo pelos pobres e marginalizados seja sempre atualizada e assumida no testemunho do cristão amadurecido e implicado com sua fé. É na vivência do compromisso sóciotransformador da sua realidade que o iniciando (e iniciado!) vai dando sinais de adesão a Jesus Cristo e ao seu projeto de justiça, vida e fraternidade, especialmente em nosso continente marcado pela exclusão social e desrespeito à vida de tantos irmãos empobrecidos, muitos na linha de miséria. “O justíssimo desejo de levar a sério o processo de iniciação e de ter cristãos realmente comprometidos, conscientes e imersos nas grandezas do mistério da fé não pode transformar a Igreja numa sociedade excludente que não seria capaz de acolher todos os que precisam e têm direito de se sentir amados por Deus.” 31 Ênfase seja dada à defesa da qualidade de vida no planeta e a ações transformadoras que garantam ao ser humano a dignidade e a vida em plenitude. Não nos restam dúvidas de que a vivência cristã seja o principal fruto da iniciação: “O processo de Iniciação à Vida Cristã salienta o princípio de interação entre a fé e a vida que se expressa em conversão, mudança de vida e atitudes ético-sociais. Responssabilidade e compromisso são respostas efetivas à dinâmica da qual o iniciante toma consciência e adere livremente. Sendo assim, cada interlocutor e toda comunidade, tornam-se atentos aos sinais dos tempos, em busca das respostas necessárias a situações existenciais e sociais” (n. 135).

27 Cf. Dei Verbum n. 21; Verbum Domini n. 55-56 28 A esse respeito, há um interessante capítulo (3º) no livro: Catequese com estilo catecumenal, de Antônio Francisco Lelo. São Paulo: Paulinas, 2008 29 LELO, a. F. Catequese com estilo catecumenal, p. 40 30 CNBB. Catequese Renovada (documento 26), n. 113 31 CNBB. Iniciação à vida cristã, n. 98

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7 Iniciação à Vida Cristã e organização Pastoral: uma relação dialética

17. k) A formação do discípulo missionário em uma igreja em saída Costumeiramente ouvimos dizer e afirmamos que “a Igreja é missionária por natureza” (cf. AG n.2; DAp n. 347. Grifo dos documentos). De fato, a história da salvação, que desemboca em Jesus Cristo, peregrino do Reino, nos coloca nessa perspectiva de uma Igreja em constante movimento para fora de si mesma. O papa Francisco não nos cansa de lembrar esse caráter essencial da evangelização: “Prefiro uma igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de ser agarrar às próprias seguranças. Não quero uma Igreja preocupada com ser o centro, e que acaba presa num emaranhado de obsessões e procedimentos.” 32 Trata-se de um desafio para que a Igreja – diga-se, todos nós – não apenas repense todo o seu procedimento pastoral, mas principalmente se autodefina, e teologicamente olhe para sua essência de comunidade a serviço da missão. Essa empreitada já fora enfrentada pelo Concílio Vaticano II, ao convidar a Igreja a tomar consciência de quem ela era (na constituição Lumen Gentium), em vista de sua presença no mundo (Constituição Gaudium et Spes). Afinal, na sua origem está o mandato da “saída”: “Ide, pois, fazei discípulos todos os povos, batizando-os em nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a cumprir tudo quanto vos tenho mandado” (Mt 28,19-20). Desse modo, Jesus deixa como legado aos seus discípulos a prática pastoral que Ele mesmo inaugura: a do peregrino do Reino, que não tem “onde reclinar a cabeça” (Mt 8,20), mas sempre está onde o povo está: nas estradas, na praia, no templo, nas ruas, nas praças, nas casas, etc. Um processo iniciático de inspiração catecumenal necessariamente exige a missão. Sobretudo em seu início, o que corresponde ao chamado “pré-catecumenato” ou “tempo do anúncio”, a missão se faz o caminho do encontro da Igreja com o homem e a mulher sedentos de Deus. “Era preciso que Jesus passasse pela Samaria” (Jo 4,4) é imperativo inerente à evangelização e a toda e qualquer ação pastoral, já que na “Samaria dos nossos dias” (n. 51) muitos são aqueles e aquelas sedentos da Água viva. E quem bebe desta água nunca mais tem sede (cf. Jo 4,14). E não se contenta em guardar para si essa experiência. Torna-se missionário, pois “o estado permanente de missão só é possível a partir de uma efetiva Iniciação à Vida Cristã”.33 (n. 65)

18. l) Educação para o Ecumenismo e para o Diálogo Religioso Em um mundo globalizado e plural, no qual a diversidade é cada vez mais entendida como valor e riqueza, é de grande importância que o cristão maduro na fé assuma atitudes de respeito e valorização das diferenças individuais e de grupos, especialmente religiosos. O processo de iniciação deve colaborar na educação do cristão para que este saiba acolher o seu próximo sem preconceitos, abrir-se ao diálogo religioso e a perceber as sementes do Reino de Deus espalhadas em todos os povos e culturas. “A identidade católica se estabelece, respeitando as pessoas em suas mais diversas formas de expressão religiosa. Isso faz parte integrante de nosso caminho de fé e deve influenciar nossas atitudes pastorais, de acordo com o Magistério da Igreja” (n. 190). Consciente de sua fé católica, mas sem fundamentalismos ou proselitismos, a pessoa que trilha o caminho da iniciação cristã é o homem/mulher da paz, do entendimento e, sobretudo, da caridade (n. 188) que a todos aproxima, muito além das divisões sociológicas ou culturais da religião ou de qualquer outro partidarismo. “A convivência ecumênica é parte da experiência de ser comunidade com os outros discípulos de Jesus; a catequese precisa educar para essa convivência, esclarecendo o que já nos une e ajudando a dialogar com afetuosa serenidade sobre o que ainda divide as Igrejas. 34

III. INICIAÇÃO CRISTÃ COMO EIXO DE TODA A VIDA PASTORAL

19. Tendo pontuado as principais características de um itinerário de iniciação à vida cristã de inspiração catecumenal, resta-nos perguntar que relações esse processo tem com a complexidade da vida pastoral. O esforço seguinte será o de tirar luzes para enfrentar a tarefa de repensar nossos modelos paroquiais de ação pastoral e evangelizadora, cientes de que “fazer da Igreja uma casa da Iniciação à Vida Cristã é um caminho necessário para a evangelização no contexto atual” (n. 61). Trata-se de um novo paradigma pastoral (cf. n. 3). Os últimos documentos da CNBB têm insistido no tema da conversão pastoral, empreita ousada que exigirá, além de novos métodos e estratégias, sobretudo a conversão pessoal de nossas mentalidades e corações. Precisará ser assumida com alegria e esperança, coragem e paciência, criatividade e decisão e, sobretudo, “docilidade à voz do Espírito” (nn. 9; 69).

32 EG 49 33 DGAE 2011-2015, n. 39. 34 CNBB. Diretório Nacional de Catequese, n. 219

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8 Iniciação à Vida Cristã e organização Pastoral: uma relação dialética

20. No dizer de Reinert, as duas tarefas – a reestruturação da dinâmica paroquial pastoral e o resgaste da iniciação

cristã com inspiração catecumenal – caminham juntas, uma possibilitando o florescimento da outra. Não dá para esperar uma comunidade ideal para depois começar o processo iniciático, nem pensar a iniciação sem o protagonismo dos agentes pastorais e uma conscientização da comunidade sobre o seu papel. Segundo ele, “há entre as duas instituições uma cumplicidade pastoral, uma responsabilidade mútua, uma interferência recíproca, em que a vitalidade de uma depende do fortalecimento da outra”. 35

21. Que lugar a iniciação à vida cristã deverá ocupar nesse novo paradigma pastoral? Com uma clareza maior do que nas Diretrizes da Ação Evangelizadora (2015-2019), o documento 107, após garantir a inter-relação das cinco urgências da evangelização (n. 64), estabelece que os processos iniciáticos deverão tornar-se o eixo de toda vida pastoral: “Não se trata, porém, de uma pastoral a mais, e sim de um eixo central e unificador de toda ação evangelizadora e pastoral. Tem como objetivo a formação inicial e, ao mesmo tempo, permanente do discípulo missionário de Jesus Cristo, para viver e anunciar a fé cristã no coração da civilização em mudança” (76), reforçando o que já havia anunciado anteriormente, ao convocar-nos a “assumir a inspiração catecumenal como eixo condutor de toda a ação evangelizadora, pastoral, litúrgica e missionária de nossas dioceses, paróquias e comunidades eclesiais”(n. 49. Grifo nosso). E o que isso significa? Certamente que não poderemos mais descurar de sua relevância, tendo que ampliar nosso olhar para sua centralidade e priorização, já que “para responder aos desafios da evangelização, principalmente na transmissão da fé cristã, é fundamental ter um projeto diocesano de Iniciação à Vida Cristã, através do qual seja possível promover a renovação das comunidades paroquiais. Não se trata de fazer apenas ‘reformas’ na catequese, mas de rever toda a ação pastoral a partir da Iniciação à Vida Cristã (n. 138. Grifo nosso)”.

22. O documento 107, entre os números 64 e 69, apresenta

brevemente a iniciação à vida cristã na função de articuladora das urgências na ação evangelizadora, conforme delineadas nas atuais diretrizes da CNBB (como no gráfico ao lado). Estabelece uma dependência de cada delas em relação à iniciação cristã, e a importância desta para que as outras urgências possam realmente alcançar as suas finalidades. Assim, (1) Igreja em estado permanente de missão (M); (2) Animação bíblica da vida e da pastoral (AB); (3) Comunidade de comunidades (C); (4) A serviço da vida plena para todos (VP); e (5) Casa da iniciação à vida cristã se exigem reciprocamente.

23. a) Iniciação à vida cristã e Igreja em estado permanente de missão: a missão antecede, perpassa e ecoa o encontro do iniciando (e do iniciado) com Jesus e com sua Palavra. Especialmente em tempos em que não se pode mais pressupor o “primeiro anúncio” de Jesus Cristo, uma comunidade eclesial estará tanto mais a serviço da iniciação quanto mais missionária e querigmática ela for. Há muita gente que ainda necessita ser tocada pela presença de Deus e despertada para caminhar com Ele, inclusive entre os que já receberam os sacramentos da iniciação e necessitam ser reencantados com o discipulado. Uma “igreja em saída” é capaz de chegar às “periferias existenciais” e “Samarias” de hoje, levando Jesus e sua proposta de vida a todos. Isso exige, no entanto, flexibilidade das estruturas pastorais para superar o autocentramento e dispor-se a “ir às ovelhas perdidas da casa de Israel’ (cf. Mt 10,6). “Nesse sentido, a Iniciação à Vida Cristã expressa a força missionária e, ao mesmo tempo, gera novos missionários para a Igreja”(n. 65).

24. b) Iniciação à vida cristã e a animação bíblica da vida e da pastoral: como já acenamos acima, a Palavra de Deus tem forte dimensão iniciática enquanto nos conduz, pedagogicamente, ao encontro do Cristo e de seu mistério. São Paulo é enfático ao dizer que “a fé vem pelo ouvir, e o ouvir vem pela palavra de Cristo” (Rm 10,17). Pode vir, também, em nossa ajuda a clássica afirmação de são Jerônimo: “Ignorar as Escrituras é ignorar o próprio Cristo”. 36 Uma paróquia animada pela Palavra cresce no conhecimento, na vida litúrgica e na mística missionária, e seus

35 Reinert, João Fernandes. Paróquia e iniciação cristã paroquial: a interdependência entre renovação paroquial e mistagogia catecumental. In Vida Pastoral maio/junho de 2016. 36 S. Jerônimo. Prólogo ao Comentário sobre o Livro do Profeta Isaías, n. 1.2.

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membros encontram aí elementos para uma espiritualidade equilibrada e orante, pois “o contato interpretativo, orante e vivencial com a Palavra de Deus não forma, necessariamente doutores; forma santos” (doc. 102, n. 54). É a Palavra que converte e vincula a Cristo, transmitida e testemunhada pelo evangelizador. E um iniciado, como a mulher samaritana, não se cansa de contar a seus irmãos tudo aquilo que Jesus lhe disse (cf. Jo 4, 29). Desse modo, a relação entre a dimensão bíblica e iniciática é intrínseca.

25. Iniciação à vida cristã e a Igreja como comunidade de comunidades: Desde o início da Igreja o caminho de iniciação sempre esteve a serviço da comunhão das pessoas com Jesus Cristo e com sua comunidade de fé. Sempre se entendeu que “seguir Jesus Cristo é juntar-se, fraternalmente, aos outros discípulos. Assim a fé, nascida na comunidade da Igreja, renova permanentemente a própria comunidade a partir da sua raiz profunda, a comunhão com Deus, e gera novas comunidades eclesiais” 37. Portanto, a vida em comunidade – e esta se dá, via de regra, mediante a “Paróquia” teologicamente entendida como a casa de todos os cristãos-, precisa ser ambiente favorável ao encantamento, consolidação, preservação e testemunho da fé em Jesus Cristo. Comunidade eclesial não se reduz, obviamente, à matriz e suas estruturas pastorais. Hoje se abre um leque imenso de possibilidades de experiências comunitárias, algumas mais coerentes com o projeto comunitário de Jesus, outras menos. No entanto, é sempre nesse canteiro fecundo de vocações e ministérios que o ser cristão se alimenta e frutifica. Segue-se que iniciação cristã e comunidade eclesial se alimentam uma da outra. “A Iniciação encontra na comunidade eclesial o seu ambiente próprio; ela é a atmosfera na qual o discípulo missionário de Jesus nasce e se fortalece(...). A comunidade é também a meta a ser atingida pela Iniciação: o itinerário catecumenal educa para a vida de fé na comunidade, alimenta-a e renova” (n. 111).

26. d) Iniciação à vida cristã e a Igreja a serviço da vida plena para todos: “Eu vim para que todos tenham vida, e a tenham em abundância” (Jo 10,10): esta foi a descrição que o próprio Jesus fez de sua missão. Outra, portanto, não será a do cristão. Se “o Evangelho da vida está no centro da mensagem de Jesus” 38, estará também no centro da vida de todo iniciado ao discipulado de Jesus Cristo. A iniciação cristã não se reduz à recepção dos sacramentos, mas, e justamente por causa dos sacramentos, “conduzirá a atitudes concretas de missão e testemunho transformador das estruturtas desumanizantes e injustas” (n. 68). É lamentável que, “em muitas situações, ainda encontremos a pastoral dos sacramentos da iniciação desligada da vida comunitária, da pastoral de conjunto e do compromisso sócio-transformador” (n. 53i).

IV. POSSÍVEIS PISTAS DE AÇÃO

27. Diante de tudo o que foi exposto, chega-se, necessariamente, à pergunta: e na prática, como deve ser? O caminho

está por se fazer, com paixão, alegria e coragem. Como Igreja em comunhão, pastores e leigos estamos descobrindo os novos rumos a tomar, certos de que o Espírito está nos oportunizando um momento de graças na história de nossa Igreja do Brasil. São sinais que precisam ser assumidos com discernimento e decisão, concretamente, pois requer novas atitudes, estruturas e mentalidades, como insistem as Diretrizes atuais: “A catequese de inspiração catecumenal traz consigo importantes consequências para a ação evangelizadora. Requer uma série de atitudes: acolhida, escuta da Palavra de Deus e adesão à vida comunitária. Implica estruturas eclesiais apropriadas, nos mais diversos lugares e ambientes, sempre disponíveis a acolher, apresentar Jesus Crsito e dar as razões da nossa esperança (1Pd 3,15). Pressupõe, por fim, um perfil de catequista/evangelizador, ponte entre o coração que busca descobrir ou redescobrir Jesus Cristo e seu seguimento na comunidade de irmãos, em atitudes coerentes e na missão de colaborar na edificação do Reino de Deus”.39 Algumas pistas podem ser sugeridas, para iluminar nossa reflexão:

28. a) Superação da ideia de iniciação como tarefa de uma pastoral específica, mas missão de toda a comunidade: Tendo entendido que a iniciação à vida cristã não é tarefa apenas da catequese entendida enquanto ministério específico, e que ela será tanto mais frutuosa quanto mais for assumida pela comunidade, não há como levar adiante um projeto sem articular, em nível paroquial, experiências de organicidade. “Sujeito indispensável dos processos de Iniciação à Vida Cristã é toda a comunidade cristã. Ela é responsável pelo rosto que a Igreja vai

37 Catequese Renovada (documento 83 da CNBB), n. 65 38 Encíclica Evangelium Vitae, n. 1 39 (doc 102, n. 45).

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apresentar a quem dela se aproxima; é necessário recuperarmos esta convicção e com ela sermos coerentes. O processo de Iniciação à Vida Cristã requer a acolhida, o testemunho, a responsabilidade da comunidade. Quem busca Jesus precisa viver uma forte e atraente experiência eclesial. A Iniciação dos chamados ao discipulado se dá pela comunidade e na comunidade”. (n. 106. Grifo nosso). “Por organicidade entende-se, aqui, a comunhão e a interpenetração das ações e esforços, bem como a ‘unidade espiritual’ que perpassa as decisões e trabalhos de todas as pastorais, movimentos e ornanismos, nos diversos níveis”. 40 E certamente são os conselhos eclesiais (na paróquia o Conselho Paroquial de Pastoral) as primeiras instâncias a se responsabilizarem pela iniciação à vida cristã na comunidade. É ali que algumas questões precisam ser respondidas assertivamente: o que queremos com a iniciação à vida cristã? Que responsabilidade pode ser assumida por cada pastoral, movimento, comunidade de vida, etc.? O que fazer com tantos projetos exigidos ao mesmo tempo (em nível de Igreja mundial, no Brasil, na (arqui)diocese e na paróquia)? Que ações concretas podem ser assumidas em parceria (catequese e liturgia, pastoral missionária e movimento Mãe Rainha, pastoral familiar e pastoral batismal, por exemplo)? Que recursos financeiros podem ser investidos?

29. b) Atitudes fundamentais de acolhida, escuta e visitação: Ainda que tenhamos caminhado um pouco nesse aspecto, ainda corremos o risco de tornar nossas estruturas paroquiais e pastorais frias demais, legalistas e presas aos calendários e agendas, em detrimento do contato humano e do afeto. Devemos ser uma “Igreja samaritana” ou a “casa do pai do filho pródigo”. Quanto a isso o papa Francisco tem nos alertado a todo o momento: “Sair em direção aos outros para chegar às periferias humanas não significa correr pelo mundo sem direção nem sentido. Muitas vezes é melhor diminuir o ritmo, por de parte a ansiedade para olhar nos olhos e escutar, ou renunciar às urgências para acompanhar quem ficou caído à beira do caminho. Às vezes, é como o pai do filho pródigo, que continua com as portas abertas para, quando este voltar, poder entrar sem dificuldade”.41 A experiência pastoral tem nos ensinado: nosso povo sofrido quer afeto, tempo para ser escutado, mãos amigas que apontem a direção de Jesus Cristo, sentido maior para sua vida! Naturalmente, ninguém “entra para a Igreja” primeiramente para ter um grupo afetivo no qual aliviar a dor de suas feridas... Mas também para isso. Do mesmo modo que saem dela para buscar o aconchego de comunidades cristãs menores onde tenham visibilidade, afeto e sugurança na fé. Iniciação de novos cristãos e reencantamento dos que já foram batizados exigirá de nós, talvez mais do que em outras épocas, novas disposições de tempo, abertura (do coração, da cabeça e das portas da igreja e da secretaria paroquial!) e acolhida do nosso povo, em variadas condições de vulnerabilidade. Aqui podemos, concretamente, nos perguntar: acolhida em nossas comunidades é só um agente de pastoral com jaleco em nossas portas de igrejas, ou postura de toda a liderança, a começar pelos padres? Não seria o momento de formarmos adequadamente agentes leigos para a pastoral da escuta e da visitação? Se “vejam como ele se amam!” 42era o grande atrativo das comunidades cristãs do início, como podemos, hoje, primar pela caridade?

30. c) O resgate da mistagogia nas celebrações litúrgicas e na espiritualidade cristã: Falar de liturgia mistagógica é praticamente um pleonasmo, pois sendo a liturgia a celebração do mistério pascal, não é possível vivenciá-la autenticamente a não ser por via mistagógica. Ressaltam os nossos bispos que “a iniciação à oração pessoal, comunitária e litúrgica se constitui em componente essencial do ser cristão, para mantê-lo progressivamente na comunhão com o Senhor e na disponibilidade e generosidade para a missão. A lex orandi lex credendi (que pode ser entendida: ‘oramos como cremos e cremos como oramos’) alimenta cotidianamente a vida de fé, em comunidade, para a missão. A este conjunto de experiências de fé e espiritualidade chamamos mistagogia”(n. 103). Trata-se de compreender a iniciação à vida cristã como uma “grande celebração”, na qual os ritos expressam sentimentos e compromissos, pois esse conjunto de ações simbólicas envolve a pessoa inteira (cf. n. 104), trazendo “uma preciosa experiência do belo, do sublime, do mistério do amor divino que tudo envolve. Por isso é capaz de tocar o espírito da pessoa que está sendo iniciada” (n. 82). Desse modo, “cada liturgia é profissão de fé (...). Isso exige que cada cristão seja colocado em condições de adquirir o valor da interiorização do conteúdo da liturgia, unido à redescoberta de uma atmosfera mais orante e contemplativa”.43 Pensar em uma renovação da paróquia para que seja, de fato, ambiente iniciático, leva-nos a questionar: como nossas equipes de liturgia e de celebração entendem a própria natureza da liturgia? Como poderá ser mistagógica e iniciática uma celebração totalmente esvaziada do mistério pascal, se transformada em show, espetáculo, magia, ou extremamente rotineira, quando não vernizada de exterioridades ou tinturas conservadoras? Como catequese e liturgia se inter-relacionam na prática cotidiana das

40 Plano de Ação Evangelizadora 2017-2020 (Arquidiocese de Pouso Alegre), n. 91 41 A Alegria do Evangelho (Exortação do papa Francisco), n. 46 42 Tertuliano. Apolégico, n. 39 43 Boselli. Liturgia e transmissão da fé. In O Sentido Espiritual da Liturgia, pp. 108.203

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nossas comunidades?

31. d) Formação bíblica e litúrgica para os agentes pastorais: sem formação não se redescobre toda a riqueza da

iniciação à vida cristã com inspiração catecumenal. Em todos os níveis ela é necessária, ainda que de modo especial para os catequistas e demais evangelizadores. Há muita liderança que desconhece e não foi formada para esse novo paradigma. E, por conta disso, somado ao comodismo, temos agentes de pastoral “colocando remendo novo em roupa velha” (cf. Mt 9,16), isto é, fazendo o de sempre, com a ineficácia de sempre, com “cara” de método novo. Além da urgência das instâncias formativas, temos que perguntar: como se dão as nossas formações? Visam a informar e repassar conteúdos meramente teóricos, ou apontam para a vivência concreta e testemunhal? Por formação compreende-se apenas o conhecimento do RICA? Que experiência de catequese catecumenal eles já possuem, e foram realmente iniciados no caminho do discipulado e da missão? Como a formação bíblica é feita, e que tipo de interpretação se faz? Há ressonância na vida e na espiritualidade do evangelizador?

32. e) A mística da “Igreja em saída”: As Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil 2015-2019

insistem em uma nova consciência missionária, que interpela o “discípulo missionário a ‘primeirear’, isto é, tomar a iniciativa, a sair ao encontro das pessoas, das famílias, das comunidades e dos povos para lhes comunicar e compartilhar o dom do encontro com Cristo.”44 De modo preferencial, uma Igreja “em saída” é aquela que deixa o conforto da matriz, das burocráticas estruturas eclesiais, para ir literalmente ao encontro daqueles que estão distantes da vida eclesial, os que o papa Francisco diz serem tratados como “resíduos e sobras”45da sociedade, os que vivem “sem alimentação, casa, terra, trabalho, educação, saúde, lazer, liberdade, esperança e fé.”46 A missionaridade precisa estar a serviço da iniciação cristã. Basta lembrar, com Reinert, que além da preocupação com “primeiro anúncio”, deve-se incluir a missão em todo o itinerário de iniciação. Também devemos nos preocupar com os novos espaços de anúncio, “nas artérias da sociedade, no mundo da saúde, da educação, da solidariedade social, das comunicações midiáticas, das famílias, dos jovens, etc”. O que pensar de uma paróquia por demais presa a ambientes fechados, distante das famílias, das ruas, muito impotente ainda diante dos clamores dos afastados por questões sociais, morais, culturais, etc.”? 47

V. A INICIAÇÃO CRISTÃ NAS NOVAS DIRETRIZES DA CNBB (2019-2023)

33. As Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil 2019-2023 (doc. 109) têm como seus eixos inspiradores a comunidade e a missão e, tem como referência para falar da Igreja a ideia de “casa” (lar), com seus quatro pilares: a Palavra, o Pão, a Caridade e a Ação Missionária. Sob o foco da urbanidade, grande desafio para a evangelização nos dias de hoje, definem como objetivo geral: “EVANGELIZAR no Brasil cada vez mais urbano, pelo anúncio da Palavra de Deus, formando discípulos e discípulas de Jesus Cristo, em comunidades eclesiais missionárias, à luz da evangélica opção preferencial pelos pobres, cuidando da Casa Comum e testemunhando o Reino de Deus rumo à plenitude”.

34. Ainda que todo o “espírito” das novas Diretrizes esteja em plena continuidade com as Diretrizes anteriores (2015-2019) e com o documento 107 “Iniciação à Vida Cristã: itinerário para formar discípulos missionários” (doc. 107), as referências à Iniciação à Vida Cristã parecem não lhe dar a ênfase que se esperava. Embora se afirme novamente que se deva “assumir o caminho de iniciação à vida cristã, de inspiração catecumenal, com a necessária reformulação da estrutura paroquial, catequética e litúrgica...” (n. 150), os rumos dessa reformulação, que exige ousadia e coragem, não são claramente delineados. É necessário, portanto, ler as Diretrizes cuidadosamente, fazendo as devidas ligações com os processos iniciáticos, para delas tirar consequências práticas para além do que explicitamente se diz da Iniciação.

35. Alguns números das Diretrizes nos remetem diretamente à Iniciação Cristã (cf. nn. 3, 8,69, 88-92, 150-159). Esta, que nas antigas Diretrizes era considerada como uma das urgências da Evangelização, agora é agrupada à animação

44 CNBB. Doc. 102, 38 45 EG 53 46 CNBB. Doc. 102, 65 47 Reinert, João Fernandes. Paróquia e iniciação cristã paroquial: a interdependência entre renovação paroquial e mistagogia catecumental. In Vida Pastoral maio/junho de 2016.

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2 Iniciação à Vida Cristã e organização Pastoral: uma relação dialética

bíblica no pilar “casa da Palavra”(n. 8). O número 88 reforça o discipulado da pessoa iniciada, o que supõe seu “encontro pessoal e comunitário com Cristo”. A comunidade eclesial é chamada a ser iniciadora por excelência no testemunho do amor e da acolhida. O número 90 enfatiza a íntima relação da Iniciação à Vida Cristã com a escuta, meditação e vivência da Palavra de Deus.

36. Dos números 145 a 159 as novas Diretrizes apresentam alguns encaminhamentos práticos para o pilar da Palavra: iniciação à vida cristã e animação bíblica da vida e da pastoral. Recordam que o processo de inicação não se reduz à preparação para os sacramentos, mas fundamenta-se no querigma e desencadeia um caminho de formação e de amadurecimento (n. 145). Para tanto, é necessário:

a) Comunidades mistagógicas, que favoreçam o encontro das pessoas com Jesus Cristo (n. 145); b) Reformulação da estrutura paroquial, catequética e litúrgica (n. 150); c) Revisão do dinamismo das comunidades eclesiais missionárias (n. 151); d) Apresentação de Jesus cada vez mais explicitada (n. 152); e) Experiências concretas de vida eclesial a partir do relacionamento fraterno (n. 153); f) Iniciativas ecumênicas (n. 154); g) Sagrada Escritura como alma da missão (n. 155); h) Pequenas comunidades eclesiais ao redor da Bíblia (n. 156); i) Potencial das redes sociais para que a Palavra alcance todas as pessoas e situações (n. 159).

VI. CONCLUSÃO

37. Enfim, há muito que fazer! Permanece, portanto, o desafio do processo de aprofundar e fazer acontecer essa necessária relação dialética entre iniciação à vida cristã e uma nova organização pastoral paroquial. Cientes de que uma nova realidade se configura rapidamente, e nela estamos inseridos e por ela somos afetados, e de que os homens e mulheres do nosso tempo clamam por sentido em suas vidas, cabe-nos oferecer-lhes, com alegria, a experiência que buscamos fazer de Jesus, tornando audível e credível a todos eles a mesma resposta que Ele deu à mulher samaritana, quando ela falava de seus sonhos e esperanças como realidades projetadas para tão distante, para quando chegasse o Messias prometido e ansiosamente aguardado: “Sou eu mesmo esse Messias, e estou falando com você”! (cf Jo 4, 26). Aqui está o “nó existencial” que amarra mistagogia e querigma. E só seremos credíveis ao mundo, quando sairmos de nossos templos para as periferias existenciais de nossos tempos, anunciando com nossa vida a mensagem salvífica que assimilamos e nos fez homens e mulheres novos.

38. Assim, o nosso coração baterá na proporção do coração de Jesus, o Bom Pastor: “A paróquia não é uma estrutura caduca; precisamente porque possui uma grande plasticidade, pode assumir formas muito diferentes que requerem a docilidade e a criatividade missionária do Pastor e da comunidade. Embora não seja certamente a única instituição evangelizadora, se for capaz de se reformar e adaptar constantemente, continuará a ser ‘a própria Igreja que vive no meio das casas dos seus filhos e das suas filhas’. Isto supõe que esteja realmente em contato com as famílias e com a vida do povo, e não se torne uma estrutura complicada, separada das pessoas, nem um grupo de eleitos que olham para si mesmos. A paróquia é presença eclesial no território, âmbito para a escuta da Palavra, o crescimento da vida cristã, o diálogo, o anúncio, a caridade generosa, a adoração e a celebração. Através de todas as suas atividades, a paróquia incentiva e forma os seus membros para serem agentes da evangelização.

Page 13: CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL ......3 A partir daqui, neste texto, quando nos referirmos ao documento 107 da CNBB citaremos apenas os números. 4 Reinert, João Fernandes

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3 Iniciação à Vida Cristã e organização Pastoral: uma relação dialética

VII. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA Documentos do Magistério da Igreja

CELAM. Documento de Aparecida. São Paulo: Paulinas, 2007. Constituição Dogmática Dei Verbum (Sobre a Palavra de Deus). In Compêndio do Vaticano II. Petrópolis: Vozes, 1987. Constituição Sacrosantum Concilium (Sobre a Sagrada Liturgia). In Compêndio do Vaticano II. Petrópolis: Vozes, 1987. Decreto Ad Gentes (Decreto sobre a atividade missionária). In Compêndio do Vaticano II. Petrópolis: Vozes, 1987. Decreto Christus Dominus (Decreto sobre os Bispos e as Igrejas particulares). In Compêndio do Vaticano II. Petrópolis: Vozes, 1987. CNBB. Catequese Renovada: orientações e conteúdo (doc 26). São Paulo: Paulinas, 1983. _____ Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil 2019-2023 (doc 109). São Paulo: Paulinas, 2019. _____ Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil 2015-2019 (doc 102). São Paulo: Paulinas, 2015. _____ Diretório Nacional de Catequese (doc 84). São Paulo: Paulinas, 2005. _____Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil 2011-2015 (doc 94). São Paulo: Paulinas, 2011. _____Iniciação à Vida Cristã: itinerário para formar discípulos Misisonários (doc 107). Brasília: Edições CNBB, 2017. _____ Iniciação à Vida Cristã: um processo de inspiração catecumenal (Est 97). Brasília: Edições CNBB, 2009. _____ Ministério e Celebração da Palavra (doc 108). Brasilia: Edições CNBB, 2019. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium (A Alegria do Evangelho). São Paulo: Paulinas, 2013. Exortação Apostólica Verbum Domini (Verbo de Deus). São Paulo: Paulinas, 2010. Encíclica Evangelium Vitae (O Evangelho da Vida). São Paulo: Paulinas, 1995. Plano de Ação Evangelizadora 2017-2020. Arquidiocese de Pouso Alegre. Pouso Alegre, 2016. Ritual de Iniciação Cristã de Adultos (RICA). São Paulo: Paulinas, 2003.

Outras obras Boselli, G. O Sentido Espiritual da Liturgia. Brasília: Edições CNBB, 2014. Lelo, A. F. Catequese com estilo catecumenal. São Paulo: Paulinas, 20. Secretariado Nacional de Liturgia. Antologia Litúrgica. Fátima, 2015. Reinert, J. F. Inspiração Catecumenal e Conversão Pastoral. São Paulo: Paulus, 2018.

Bibliografia online

Buyst, I. Mistagogia, o que é isso? Disponível http://www.catequistasemformacao.com/2014/04/formacao-liturgica-mistagogica.html, acessível em 02.11.2017. Reinert, J. F. Paróquia e iniciação cristã paroquial: a interdependência entre renovação paroquial e mistagogia catecumental. In Vida Pastoral maio/junho de 2016. Disponível em http://www.paulus.com.br/loja/paroquia-e-iniciacao-crista-a-interdependencia-entre-renovacao-paroquial-e-mistagogia-catecumenal_p_4125.html, disponível em 01.11.2017.