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http://6cieta.org São Paulo, 8 a 12 de setembro de 2014.ISBN: 978-85-7506-232-6
CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS EM COMUNIDADESREMANESCENTES DE QUILOMBOS SOB A PERSPECTIVA
DO TERRITÓRIO. O CASO DA COMUNIDADE DECAROBINHO EM CAMPOS DOS GOYTACAZES (RJ)
Evelyn Rebouças de Gouvêa
Universidade Estadual Norte Fluminense
APRESENTAÇÃO DO TEMA
O presente trabalho foi realizado na comunidade quilombola de Carobinho, que
está localizada em Morangaba, 9º Distrito do município de Campos dos Goytacazes, a 49 km
do distrito sede. O acesso à comunidade é difícil, pois o Quilombo do Carobinho está
localizado em área de forte declividade, nas proximidades do Parque Estadual do
Desengano (PED). Entretanto, há 15 anos um grande proprietário rural se instalou no
entorno da comunidade e, desde então, o contato entre as partes vem se dando de forma
antagônica, marcada por disputas territoriais e pela divergência cultural que se expressam
de forma direta e indireta. Nesse contexto, o território se torna uma categoria de
fundamental importância para compreensão do conflito, partindo do entendimento de que
este é definido e delimitado por e a partir de relações de poder (Raffestin, 1993).
O município de Campos dos Goytacazes possui cinco comunidades
remanescentes dos antigos quilombos, especificamente em Morangaba. Historicamente tal
localidade ficava próxima a áreas produtoras de cana-de-açúcar que eram dominadas por
latifúndios que utilizavam mão de obra escrava. Após a abolição, os antigos escravos se
tornaram cortadores de cana assalariados e continuaram a morar nas dependências da
usina que ali existia, se organizando em comunidades de intensa vida coletiva, que foram
capazes de se manter após o declínio da produção de açúcar, principalmente por causa da
reprodução de um modo de vida social e cultural orientado pelos próprios moradores
(MONTEIRO et al, 2013).
Deste modo, a relevância desta pesquisa se justifica devido aos dilemas
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territoriais das comunidades tradicionais permanecerem num processo de invisibilidade
social dentro do município, sem o devido suporte por parte do poder público. É também
notável a falta de estudos detalhados sob o ponto de vista do conflito ambiental em
comunidades quilombolas na região, sobretudo acerca da Comunidade de Carobinho, o que
caracteriza um déficit na produção do conhecimento acadêmico numa área de grande
importância social, cultural e ambiental.
Além disso, tendo em vista a tensão entre as racionalidades e disputas acerca do
sentido de território para os sujeitos envolvidos, o objetivo deste trabalho foi verificar como
se dá o conflito ambiental territorial no Carobinho e quais suas consequências - diretas e
indiretas - para a comunidade em seus modos de usos e significações do ambiente. A
premissa que orientou a investigação foi a de que o conflito ambiental abordado produz
prejuízos à reprodução física, social, econômica e cultural da comunidade, dificultando
assim a continuidade das formas de apropriação do meio biofísico, bem como o exercício da
territorialidade específica das comunidades quilombolas.
Comunidades Remanescentes de Quilombos: caracterização política e conceitual
Ao propor uma definição de comunidades quilombolas, Rubert & Silva (2009)
apontam que as mesmas se caracterizam por serem grupos diferenciados em seu
funcionamento cultural e social e que, dentro do território onde vivem, dão continuidade às
tradições de seus ancestrais marcando, historicamente, a resistência dos negros à
colonização europeia. Além disso, Almeida (2000) sublinha que os territórios em que vivem
os descendentes de quilombolas – neste caso comunidades remanescentes dos antigos
quilombos- podem ter várias origens, sejam elas ocupação de terras livres, heranças,
doações ou mesmo aquisição de terras após o fim da escravidão. Os quilombos, portanto,
têm sido constituídos não somente por escravos fugitivos, como também por negros livres
pós-escravidão, e até mesmo brancos e índios, sendo locais de refúgio e luta pela
sobrevivência.
É importante ressaltar que a lei abolicionista, aprovada em 1888, não foi
suficiente para dotar os negros das mesmas condições usufruídas pelos brancos, já que a
manutenção de uma hierarquia econômica e racial continuou a manter os negros excluídos
de direitos básicos (Oliveira, 2001). Consequentemente esta população foi mantida à
margem dos setores mais dinâmicos de desenvolvimento. Esta exclusão também explica,
ao menos em parte, a demora no processo de definição conceitual das populações
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quilombolas e dos elementos que constituem o seu território, o que se deu por meio do
Decreto n° 4.887/2003. Este decreto estabelece que são considerados remanescentes de
populações dos quilombos aqueles grupos étnico-raciais “segundo critérios de
auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas,
com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica
sofrida” (ABIRACHED et al., 2010, p. 11).
Para Rubert & Silva (2009) uma característica marcante das comunidades
quilombolas é o uso que fazem do ambiente e de seus recursos, pois, para além da
pretensão de se obter lucros, os quilombolas visam principalmente à perpetuação de sua
comunidade e cultura numa relação comumente íntima e harmônica com a natureza. De
forma adicional, Abirached et al. (2010) ressaltam que além dos direitos territoriais de
quilombolas, os direitos de outras populações ditas “tradicionais" também são assegurados
no Brasil. A Política Nacional de Povos e Populações Tradicionais, instituída pelo Decreto nº
6.040/07, trouxe a figura dos territórios tradicionais e das populações tradicionais, descritas
como: “grupos culturalmente diferenciados com formas próprias de organização social, que
ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural,
social, religiosa, ancestral e econômica, transmitidos pela tradição” (DECRETO n º6.040/07,
art, 3º, inciso I).
Litle (2002) esclarece que:
“O uso do conceito de povos tradicionais procura oferecer um mecanismo
analítico capaz de juntar fatores como a existência de regimes de propriedade
comum, o sentido de pertencimento a um lugar, a procura de autonomia
cultural e práticas adaptativas sustentáveis que os variados grupos sociais
analisados aqui mostram na atualidade” (LITLE, 2002, p.23).
Por outro lado, Itaborahy (2012) indica que para uma comunidade ser
oficialmente considerada remanescente dos antigos quilombos, é necessária criteriosa
pesquisa da história comunitária, viabilizada atualmente pela Fundação Cultural Palmares,
órgão responsável pelo estudo e certificação destas comunidades. No município de Campos
dos Goytacazes este procedimento é viabilizado pela Superintendência de Igualdade Racial
em articulação com a Fundação Cultural Palmares que atua em nível federal. Após a
emissão desta certificação é possível dar início ao processo de titulação de terras, que é
realizado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA).
O direito dos quilombolas à terra foi garantido pela Constituição Federal de
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1988, que em seu Artigo 68 trata dos Atos das Disposições Transitórias que “Aos
remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é
reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os respectivos títulos”
(BRASIL, 1998). Tal colocação traz uma série de questões, já que a regularização fundiária
articula motes como o tema racial, o agrário, educacional, de saúde e ambiental.
Território e Comunidades Tradicionais
Num esforço para clarificar a importância que o território possui para os povos e
populações tradicionais, Arruda & Diegues (2001) consideram que este é um espaço que,
para além permitir a “reprodução econômica das relações sociais, também se apresenta
como o lócus das representações mentais e do imaginário mitológico dessas sociedades”,
(ARRUDA & DIEGUES, 2001, p. 29).
Haesbaert (2006) sugere em sua definição de território que no mesmo estão
presentes tanto dimensões ideais, simbólicas e culturais, quanto dimensões materiais, as
quais articulam a importância da Natureza para a reprodução dos grupos que dele
dependem para sua sobrevivência e reprodução. Em conformidade ao que é postulado por
Haesbaert, Porto Gonçalves (2002) argumenta que a compreensão de territorialidades deve
se pautar no esforço conceitual de superação da dicotomia homem-natureza e da dicotomia
material-simbólico, já que o território é complexo e multifacetado, abrangendo todos estes
significados.
Já para Casimir (1992) a territorialidade é uma força latente em qualquer grupo,
cuja manifestação explícita depende de questões sócio-históricas. Assim, o fato de um
território ser produto das condutas de um grupo social implica que todo território é um
produto histórico de processos sociopolíticos. Para análise do território de qualquer grupo,
portanto, precisa-se de uma abordagem contextualizada historicamente, que aborde os
determinantes específicos em que surgiu e as conjunturas em que foi defendido e/ou
reafirmado (CASIMIR, 1992).
Assim sendo, é razoável que para os povos tradicionais, o território se
caracterize como o lugar no qual os sujeitos referenciam sua existência. O trabalho, os
saberes, as redes de sociabilidade, solidariedade, reciprocidade e até mesmo afetividade só
fazem sentido se concebidos junto a este recorte espacial (Raffestin, 1993).
De forma adicional, é importante levar em conta a afirmação de Almeida (2000)
para quem a territorialidade funciona como fator de identificação, defesa e força, mesmo
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quando se trata de apropriações temporárias dos recursos naturais, por grupos sociais
classificados muitas vezes como itinerantes. Assim é que nestes grupos, laços solidários e
de ajuda mútua formam um conjunto de regras firmadas sobre uma base física considerada
comum, essencial e inalienável a todos os seus integrantes.
Sobre esse processo, Bandeira (1991) afirma que:
“O controle sobre a terra se faz grupalmente sendo exercido pela coletividade
que define sua territorialidade com base em limites étnicos fundados na
afiliação por parentesco, co-participação de valores, de práticas culturais e
principalmente da circunstância específica de solidariedade e reciprocidade
desenvolvidas no enfrentamento da situação de alteridade proposta pelos
brancos” (BANDEIRA, 1991, p.8).
Finalmente, também é importante lembrar a formulação de Little (2002) que
define territorialidade como sendo “o esforço coletivo de um grupo social para ocupar, usar,
controlar e se identificar com uma parcela específica de seu ambiente biofísico,
convertendo-se assim em seu território” (2002, p. 3). Esta formulação de Little permite a
colocação de que o esforço de um grupo social para usar e controlar um território pode
gerar divergências junto a outros grupos sociais em seus interesses e necessidades, abrindo
ainda espaço para discussões em torno dos chamados conflitos ambientais, que é um
aspecto central no desenvolvimento deste trabalho.
Conflitos ambientais territoriais: territorialidade do agronegócio versus territorialidade tradicional
O campo de estudos dos conflitos ambientais se intensificou nas últimas
décadas do Século XX, ganhando a atenção de diversos setores da sociedade e
impulsionando as produções acadêmicas em torno da temática. Neste sentido, Acselrad
(2004) argumenta que o meio ambiente se tornou um terreno contestado material e
simbolicamente, elaborando a partir daí a noção de conflitos ambientais enquanto fatores
essenciais para apreender a dinâmica conflitiva própria aos diferentes modelos de
desenvolvimento.
O conceito de conflito socioambiental tem sido utilizado para compreender
tensões que envolvem diferentes grupos sociais a partir da distribuição e do acesso aos
recursos naturais, assim como as diversas formas de apropriação do meio biofísico por
estes grupos (ITABORAHY, 2012). O conflito aponta para o fato de que toda problemática
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ambiental é, antes de qualquer coisa, uma crise das formas de sociabilidade, fruto da
relação entre os homens, que por sua vez interroga a questão ambiental, sendo reveladoras
das organizações sociais do poder.
Acselrad define os conflitos socioambientais como:
“Aqueles envolvendo grupos sociais com modos diferenciados de apropriação,
uso e significado do território, tendo origem quando pelo menos um dos grupos
tem a continuidade das formas sociais do meio que desenvolvem ameaçada por
impactos indesejáveis – transmitidos pelo solo, água, ar ou sistemas vivos –
decorrentes do exercício das práticas de outros grupos” (ACSELRAD, 2004a, p
26).
Uma vez que o que está em cheque são os diferentes modos de apropriação,
uso e significado do território é importante assimilar a visão de “conflito ambiental
territorial”, proposta por Laschefski e Zhouri (2012), para quem a existe uma tipologia das
modalidades de conflitos ambientais, na qual o conflito ambiental territorial é entendido
como “situações em que existe sobreposição de reivindicações de diversos grupos sociais,
portadores de identidades e lógicas culturais diferenciadas, sobre o mesmo recorte espacial”
(LASCHEFSKI & ZHOURI, 2012, p. 7).
Para Acselrad (2004), a análise dos conflitos ambientais territoriais permite
reconhecer os múltiplos projetos de sociedade que ativam diferentes matrizes de produção
material e simbólica e esbarram nas assimetrias de poder presentes nas esferas sociais e
políticas. Assim, quando há disputa entre sentidos atribuídos à natureza por determinados
grupos com posições sociais desiguais, os impactos indesejáveis que comprometem a
coexistência de distintas práticas sociais estimulam a organização de membros dos grupos
atingidos contra a atividade daqueles que os gera (ACSELRAD, 2004).
Uma dos principais características que permeia o conflito abordado neste
trabalho é a contraposição da concepção da territorialidade do agronegócio versus a
territorialidade quilombola e camponesa. A noção de agronegócio foi formulada nos
Estados Unidos em 1957, pelos economistas John H. Davis e Ray A. Goldberg, que defendiam
ser o agronegócio um complexo de compras, distribuição de suprimentos agrícolas,
produção, armazenamento, processamento e distribuição dos produtos acabados. Esta
noção se difundiu no Brasil junto com o avanço técnico-científico e a disponibilidade de
terras em grandes extensões para a adoção de grandes monoculturas (CAVALCANTE &
FERNANDES, 2008). Ainda segundo Cavalcante e Fernandes, este modelo de
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desenvolvimento agrícola monopolizador de terras é também um claro processo de
monopolização do território pelos latifundiários em detrimento de outros tipos de modos de
produção ou lógicas territoriais, como a quilombola.
De forma complementar Fernandes (2005) sugere que o agronegócio é um
vigoroso circuito de lógica capitalista que se territorializa no campo, à medida que avança
adquirindo terras, imprimindo nelas a lógica produtiva e territorial das grandes empresas.
Desta forma, o agronegócio implanta novas racionalidades que possuem ampla capacidade
de reestruturar o território em função da lógica produtiva. Santos & Silva (2004) afirmam
que o agronegócio se expande verticalmente dominando e controlando as relações
existentes no território, ao mesmo tempo em que passa a suprimir as relações de
horizontalidade anteriormente existentes e caracterizadas pela contiguidade de lugares
vizinhos reunidos por uma continuidade e cooperação territoriais.
Além disso, a reconfiguração das dinâmicas territoriais promovidas pela ação do
agronegócio, que negam a possibilidade de uso plural do espaço às outras racionalidades
existentes, estabelecem conflitos ambientais territoriais e denunciam, segundo Laschefski e
Zhouri (2012) e Alier (2007), situações de injustiça ambiental. Assim sendo, tais situações se
tornam condição própria a sociedades desiguais em que operam mecanismos sociopolíticos
que destinam a maior carga dos danos e negligências ambientais a grupos sociais de baixa
renda, segmentos raciais discriminados, parcelas marginalizadas e mais vulneráveis da
cidadania.
Finalmente, é importante notar que no estado do Rio de Janeiro, a existência de
diversos conflitos socioambientais motivou a realização de diversos estudos que vão desde
a investigação da problemática envolvendo monoculturas de eucalipto (PEDLOWSKI &
FOEGER, 2004), passando pela identificação das tensões existentes em torno do uso da água
no norte fluminense (CARNEIRO, 2003), e chegando à disputa por recursos em comunidades
pesqueiras (VALPASSOS & DIAS NETO, 2006).
PERCURSO METODOLÓGICO
Para melhorar a compreensão da temática abordada foi realizado inicialmente
estudo bibliográfico referente a conflitos socioambientais, território e comunidades
quilombolas. Além disso, um resgate histórico da comunidade do Carobinho foi feito junto à
Superintendência Municipal de Igualdade Racial (SMIR), órgão ligado à Fundação Cultural
Jornalista Oswaldo Lima (FCJOL). É importante notar que, além de acompanhar as
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comunidades quilombolas do município, a SMIR é responsável pelo Censo Quilombola de
Campos dos Goytacazes de 2010.
A coleta de dados primários sobre a situação da comunidade do Carobinho se
deu a partir de trabalhos de campo nos quais o principal objetivo foi observar o seu
cotidiano para levantamento de maiores informações e identificação dos impactos do
conflito socioambiental sobre a reprodução material da mesma. Uma das principais
dificuldades deste levantamento in situ foi o acesso difícil à comunidade (Figura 1).
Figura 1: Área de acesso à comunidade do Quilombo do Carobinho.
Fonte: arquivo do autor.
Em função dessa dificuldade, as visitas à comunidade se deram em parceria com
SMIR, que disponibilizou seus veículos para as atividades de campo e facilitou o contato
inicial com os moradores. Esta parceria foi importante para garantir o contato com a
comunidade, pois dado o seu isolamento geográfico, os habitantes possuem pouco contato
com o seu exterior, enquanto os servidores da SMIR realizam um trabalho de
acompanhamento no local há quatro anos (Figura 2).
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Figura 2: Servidores da SMIR numa trilha de acesso a uma unidade domiciliar no interior do Quilombodo Carobinho durante a realização de um dos trabalhos de campo desta pesquisa.
Fonte: arquivo do autor.
RESULTADOS PRELIMINARES
A comunidade do Carobinho é composta por aproximadamente 15 famílias,
possuindo habitantes de variadas idades. O isolamento do local é um aspecto significativo,
dada a distância entre a comunidade do Carobinho a comunidade mais próxima, além da
forma como são dispostas as casas, que ficam afastadas uma das outras e ocultas por causa
da densa vegetação que cobre a área. A ocupação do território remete a épocas distantes,
pois a maioria dos moradores - dos idosos aos mais jovens - declara residir ali desde que
nasceram. Os moradores declararam também ter sua residência em área que é fruto de
herança, atribuída ao fator parentesco, em uma cadeia sucessória do direito a terra.
Uma importante informação coletada durante a realização dos trabalhos de
campo foi a de que a comunidade não possui ainda projeto de reconhecimento, fato que
permitiria sua certificação como comunidade quilombola frente à Fundação Cultural
Palmares. Este é um fator complicador para a garantia dos direitos territoriais dos
moradores do Carobinho, já que esta certificação é necessária para a posterior titulação de
terras e salvaguarda da garantia dos direitos das populações remanescente dos antigos
quilombos frente a outras formas de apropriação territorial.
Os distintos usos do território pelos moradores apontam para os fatores de
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fixação, reprodução e sobrevivência no próprio local. Um exemplo disso foi a construção de
imóveis para habitação, o que implica numa relação de ligação dependente ao território
ocupado. Além disso, também são exemplos desta relação direta com o ambiente natural,
elementos como a extração de lenha para uso em fogão e o uso de plantas como
dispositivos medicinais, que exibem uma relação direta com os recursos do local, bem como
a captação da água vinda de cachoeiras existentes no território ocupado pela comunidade
(Figura 3).
Figura 3: Ponto de abastecimento de água para uma residência a partir de uma cachoeira existentedentro do Quilombo do Carobinho.
Fonte: arquivo do autor.
A maioria da população exerce atividade econômica familiar que envolve de
forma direta o meio em que está inserida, tais como o plantio de culturas anuais (inhame,
feijão) e perenes (diversos tipos de cítricos e banana). A Figura 4 mostra um dos cultivos de
laranja que foram identificados dentro da comunidade
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Figura 4: Cultivo de laranja no interior do Quilombo do Carobinho.
Fonte: arquivo do autor.
Os moradores também realizam a criação de diversos tipos de animais, tais
como porcos, gansos e galinhas, os quais alimentados com as produções familiares. Outra
tarefa comumente realizada no cotidiano da comunidade é a reunião das mulheres para
ensacamento e carregamento de frutas até as unidades domiciliares (figura 5).
Figura 5: Moradoras da comunidade numa trilha de acesso a unidades domiciliares no interior doQuilombo do Carobinho em realização de suas atividades cotidianas.
Fonte: arquivo do autor.
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Historicamente, os moradores comercializam a parte excedente ao seu consumo
de subsistência. Entretanto a comercialização da produção excedente tem sido interrompida
de forma rotineira, desde a chegada do latifundiário à região. O fato é que, com base no
levantamento histórico e nos dados coletados, foi determinado que o latifundiário assim
que chegou à região construiu cancelas ao longo das vias que dão acesso para suas terras e
às terras da comunidade. Estas cancelas são mantidas trancadas e suas chaves são de posse
somente do latifundiário e seus funcionários (Figura 6).
Figura 6: Cancela colocada pelo latifundiário que ao ser trancada impede a livre circulação dosmoradores de Carobinho.
Fonte: arquivo do autor.
A chegada do latifundiário e a colocação das cancelas implicaram no surgimento
de diversas problemáticas que foram apontadas pelos membros da comunidade. Nas
entrevistas realizadas foi relatado que as cancelas representam uma barreira à livre
circulação dos habitantes e seus animais, comprometendo assim atividades de natureza
distintas que são realizadas no Carobinho.
Dentre as dificuldades arroladas pelos moradores, foram citadas a interrupção
da venda de produção agrícola pela impossibilidade de automóveis chegarem ao local
necessário para escoamento da produção; a dificuldade de acesso ao transporte escolar
fazendo com que as crianças de Carobinho andem um longo percurso a pé para alcança-lo;
a impossibilidade de acesso de ambulância, e também o impedimento da passagem de
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animais utilizados como transporte pela população, fazendo com que eles tenham que
percorrer longas distâncias a pé.
Segundo os relatos dos moradores, a partir da colocação das cancelas, a
situação econômica da comunidade foi muito prejudicada, levando os homens que antes
trabalhavam apenas em suas lavouras, a fazerem trabalhos informais e temporários em
áreas vizinhas. Além disso, diversas famílias acabaram migrando para a parte central da
cidade à procura de melhores condições de vida. Acrescenta-se a esse cenário de
deterioração da condição econômica, o processo de intimidação que os moradores dizem
sofrer por parte do latifundiário e seus empregados, o que acaba dificultando a realização
de diálogos ou acordos com o mesmo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir das evidências obtidas em campo é possível afirmar que o conflito na
comunidade do Carobinho explicita e demarca as diferentes formas de apropriação do
território e reflete a existência de assimetrias no controle dos recursos existentes.
Este caso pode ser colocado num contexto mais amplo de conflitos territoriais
causados por formas distintas de apropriação e uso de recursos naturais, nos quais as
comunidades quilombolas e outras populações tradicionais estão envolvidas para garantir
seus territórios. Neste sentido, o reconhecimento dos territórios quilombolas representaria
uma conquista sociocultural e também ambiental, pois ao se reconhecer o direito de uma
população ao seu território, legitimar-se-ia também sua relação diferenciada com o
ambiente, com aquilo que os quilombolas definem como sendo Natureza.
Os resultados deste trabalho também corroboram a concepção de que os
moradores do Carobinho são portadores de valiosos saberes que explicitam uma forte
solidariedade social, o que os capacita a transfor sua forma particular de apropriação do
meio biofísico em uma relação específica de poder que, por sua vez, os habilita a fazer
frente à lógica territorial do agronegócio, que é a dominante. Assim a resistência quilombola
configura uma importante estratégia de consolidação de autonomia de um conjunto de
pessoas com interesses parecidos, que se identificam entre si, e compartilham a gestão
comunitária de um território que serve para a manutenção de uma forma particular de vida.
Por outro lado, os problemas vivenciados pela comunidade estudada se mostraram, em
grande medida, vinculados aos problemas sociais e econômicos que foram exacerbados
pelo isolamento físico a que vem sendo submetida pelas ações realizadas por um
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latifundiário, fato que é agravado pela negligência do Estado.
Finalmente, os resultados deste trabalho confirmam a importância da categoria
território para se analisar conflitos emergentes, especialmente naquelas circunstâncias em
que a disparidade de forças resulta em formas de isolamento que podem comprometer os
mecanismos de sobrevivência e permanência de comunidades em áreas que ocupam
tradicionalmente.
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CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS EM COMUNIDADES REMANESCENTESDE QUILOMBOS SOB A PERSPECTIVA DO TERRITÓRIO. O CASO DA COMUNIDADE DE CAROBINHO EM CAMPOS DOS GOYTACAZES (RJ)
EIXO 2 – Dinâmicas e conflitos territoriais no campo e desenvolvimento rural
RESUMO
O presente trabalho foi realizado na comunidade quilombola do Carobinho, que está localizada
em Morangaba, 9º Distrito do município de Campos dos Goytacazes - RJ. O acesso ao Quilombo
do Carobinho é difícil, pois o mesmo está situado em área de forte declividade nas proximidades
do Parque Estadual do Desengano (PED). É importante observar que o PED concentra cerca de
60% da área de preservação ambiental de fragmentos de Mata Atlântica do Rio de Janeiro (IBGE,
2000). Há 15 anos um grande proprietário se instalou no entorno da comunidade e, desde então,
o contato entre as partes vem se dando de forma antagônica, marcada por disputas territoriais
expressas de forma direta e indireta. Nesse contexto, o território se torna uma categoria de
fundamental importância para compreensão do conflito, partindo do entendimento de que este é
definido e delimitado por e a partir de relações de poder. Assim, o objetivo central deste trabalho
foi verificar como se dá o conflito ambiental territorial no Carobinho, e quais são suas
consequências para a comunidade em termos dos modos de apropriação, usos e significações do
ambiente. A premissa que orientou a investigação de campo foi que o conflito abordado produz
prejuízos à reprodução física, social, econômica e cultural da comunidade dificultando a
continuidade das formas de apropriação do meio biofísico e o exercício da territorialidade
específica das comunidades quilombolas. A coleta de dados ocorreu com base em trabalhos de
campo em que o cotidiano da comunidade foi observado para determinar os impactos do conflito
socioambiental sobre a reprodução da mesma. A partir das evidências obtidas em campo é
possível afirmar que o conflito em curso explicita e demarca as diferentes formas de se apropriar
do território, e refletem as assimetrias das estruturas sociais existentes na sociedade brasileira.
Por outro lado, os problemas ambientais vivenciados pelos quilombolas se mostraram vinculados
aos problemas sociais e econômicos causados pelo isolamento físico a que a comunidade vem
sendo submetida a partir de ações realizadas pelo latifundiário. Finalmente, os resultados desta
pesquisa confirmam a importância da categoria território para se analisar conflitos emergentes,
especialmente naquelas circunstâncias em que a disparidade de forças resulta em formas de
isolamento que podem comprometer a sobrevivência e permanência de comunidades tradicionais
em áreas que ocupam sem que lhes seja conferida a propriedade da terra.
Palavras-chave: conflito; território; quilombo.
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