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6 brasil brasil de 30 de outubro a 5 de novembro de 2014 Bruno Pavan da Redação NO DOMINGO, 26 de outubro, mais de 54 milhões de brasileiros optaram por dar mais quatro anos de mandato pa- ra a presidenta Dilma Rousseff. Em uma decisão apertada, muitos se preocupam com a “divisão” do país e do que vai ser os próximos quatro anos. Acontece que a dificuldade para as or- ganizações ligadas aos direitos huma- nos já era clara desde o primeiro tur- no, quando o Brasil viu a bancada fun- damentalista – representada por depu- tados e senadores ligados ao agronegó- cio, evangélicos, da bancada da bala, empresários e outros – crescer substan- cialmente. Esse novo Congresso pode representar sérias ameaças aos avanços nos direitos humanos, já que na própria campanha diversos dos eleitos já empunhavam ban- deiras, como a da redução da maioridade penal, a do endurecimento das penas pa- ra criminosos no Brasil, a de marginali- zação dos movimentos sociais e contra o avanço da pauta LGBT. A pesquisadora e coordenadora da ONG Justiça Global, Isabel Lima, alerta para o perigo que essas pautas avancem, já que o Brasil tem hoje a terceira maior população carcerária do mundo e que vi- vem em situação precária. “Não precisa- mos de cadeias mais cheias”, afirma. Um dos grandes assuntos dos conser- vadores nessa eleição foi a diminuição da maioridade penal no país. Com um dis- curso de proteção à família, ele chegou até mesmo a fazer parte do programa do candidato derrotado à presidência Aé- cio Neves, que prometia a medida contra adolescentes de 16 anos que praticassem “crimes graves”. Apesar de não ser tarefa fácil mexer nessa questão, por ela ser cláusula pétrea da Constituição Federal, Isabel chama a atenção para o que pode ser uma saída mais fácil para a bancada conservadora: o aumento do tempo máximo de reclusão para jovens infratores. “A retomada desta pauta é preocupan- te, já que ela é bastante incentivada pe- la grande mídia. Pode-se avançar nesse tipo de cerceamento que seria o de au- mentar o tempo máximo de reclusão pa- ra os jovens, que estão nesse mesmo bo- jo do debate.” Congresso conservador: mais punição e menos direitos humanos à vista POLÍTICA Especialistas alertam para mais repressão e aumento da população carcerária no Brasil Endurecimento “Bandido bom é bandido preso” é um discurso que se ouve há muito tempo no Brasil. Ele significa que endurecer as penas para os crimes cometidos no país é a única forma de resposta contra a im- punidade. Natália Damázio, advogada da Justiça Global, reforça que a cultura da punição como responsabilização é algo que está presente no sistema político e judiciário brasileiro. Ela argumenta que um Con- gresso mais conservador em 2015 pode reforçar ainda mais essa lógica. “Com a formulação anterior, a permea- bilidade de leis que limitam as liberdades e direitos através do inchamento do po- der punitivo já vinha se mostrando pre- sente. Com uma formulação ainda mais punitiva e conservadora como a atual, o cenário é de privilégio de projetos que re- presentem retrocessos e violações aos di- reitos humanos.” Natália reforça ainda que esse pensa- mento não enxerga as nuances da socie- dade brasileira e pode, muitas vezes, re- forçar ainda mais as injustiças e os pro- blemas sociais do país. Para explicar como essa lógica pode aprofundar, ela dá o exemplo da reali- dade dos presídios brasileiros. “O siste- ma de justiça criminal no país é falho; e o endurecimento penal, que é e preocu- pação quando o Congresso tem uma ten- dência mais conservadora, tende apenas a agravar este tipo de situação.” Números apresentados pelo Conselho Nacional de Justiça, em junho deste ano, mostram que o Brasil ultrapassou a Rús- sia e tem a terceira maior população car- cerária do mundo. Com 711.463 presos, o país só perde para Estados Unidos e Chi- na. Natália alerta para o fato de mais de um terço desses presos serem provisó- rios, ou seja, ainda não tiveram um jul- gamento. “O uso da prisão provisória, apesar de ser um mecanismo excepcional, é utilizado de forma cotidiana, em com- pleto desacordo com os direitos huma- nos , sendo inclusive uma das questões centrais no superencarceiramento bra- sileiro”, analisa. Maconha: legalizar ou não? A legalização das drogas, principal- mente da maconha no Brasil tem sido alvo de muito debate. Depois do exem- plo do Uruguai, que estatizou a venda e a produção da droga em todo o território nacional, foi proposta também a lei de le- galização. O deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ) apresentou o PL 7270/2014 que, além de legalizar o consumo e a ven- da, prevê a anistia para os traficantes que forem presos pela comercialização da substância. “A maioria é composta por vapores, aviões, pequenos assalariados do tráfico, jovens e adolescentes que moram nas pe- riferias e nas favelas e que entraram no ‘movimento’ porque era o que o país lhes oferecia para ser alguém na vida”, defen- deu Wyllys em um artigo. Porém, a partir do ano que vem, o Congresso pode ter uma frente parla- mentar contra a legalização da maco- nha. O senador Magno Malta (PR-ES) afirmou que já tem assinaturas necessá- rias para a criação do grupo que conta- ria com 75 senadores e 400 deputados federais. Isabel alerta que a comissão, que pre- vê um debate maior sobre a liberação da maconha para uso medicinal, pode avançar para outros assuntos para en- durecer ainda mais as penas para quem vende ou consome a droga, aumentan- do consideravelmente o número de pre- sos no Brasil. Projetos de lei contra o terrorismo Nessa mesma onda, foram para o cen- tro do debate, após a série de protestos em 2013 e 2014, os projetos de lei que tentam tipificar o terrorismo no Brasil. Mesmo com o Congresso não conse- guindo emplacar a aprovação de nenhum até o final da Copa, eles ainda preocupam as especialistas. “Eles podem voltar com toda a força assim que os movimentos voltarem às ruas”, explica Isabel. Natália destaca os PLS 508 e o 499, que tratam dos crimes de vandalismo e a tipificação do crime de terrorismo res- pectivamente. Para ela, o único intuito dos dois seria o de desmobilizar os movi- mentos organizados da sociedade. “Ambos apresentam os mesmos pro- blemas centrais: eles vêm como uma res- posta estatal autoritária às manifesta- ções de 2013 e 2014; possuem tipos aber- tos e criminalizam condutas que já pos- suem tipificação no Código Penal em ou- tras figuras. Sendo assim, o intuito úni- co desses projetos é o endurecimento pe- nal para que se desmobilize os protestos. Por consequência, são amplamente vio- latórios de direitos humanos, como a li- vre reunião e assembleia, além da liber- dade de expressão”. Em todo o mundo, vêm se reforçando projetos do mesmo tipo com o intuito de cercear a liberdade de expressão e de ma- nifestação de movimentos. Natália expli- ca que desde o atentado ao World Trade Center eles são uma tendência, mas que a América Latina vem passando por um processo acelerado de leis contra “desor- dem pública” e “terrorismo”. A criminalização dos direitos humanos ocorre, por exemplo, contra os indígenas da etnia Mapuche, no Chile, e contra os estudantes na Argentina. Na contramão, a proteção dos manifestantes que pos- sam ter sido alvo de prisões arbitrárias, é um ponto que ainda engatinha no Bra- sil. O maior exemplo foi o dos estudantes Fábio Hideki e Rafael Lusvarghi, que fo- ram mantidos presos pela Polícia Militar acusados de portarem explosivos. Porém, laudos do GATE e do instituto de Criminalística concluíram que Hideki tinha na mochila um frasco de fixador de corantes em tecidos. Já Lusvarghi, um frasco de achocolatado que os policiais acreditaram ser um coquetel molotov. “Não há o mesmo movimento quan- do o assunto é a proteção destes direitos. Esse caso é exatamente o retrato de co- mo o sistema penal opera no movimen- to de criminalização, no qual você aplica de forma completamente arbitrária uma normativa penal para criminalização e desmobilização de defensores ou organi- zações políticas”, critica Natália. O Congresso pode representar sérias ameaças aos avanços nos direitos humanos, já que na própria campanha diversos dos eleitos já empunhavam bandeiras como a da redução da maioridade penal e endurecimento das penas para criminosos no Brasil Números apresentados pelo Conselho Nacional de Justiça, em junho deste ano, mostram que o Brasil ultrapassou a Rússia e tem a terceira maior população carcerária do mundo. Com 711.463 presos, o país só perde para Estados Unidos e China “O intuito único destes projetos (antiterrorismo) é o endurecimento penal para que se desmobilize os protestos; por conseqüência, são amplamente violatórios de direitos humanos, como a livre reunião e assembleia, além da liberdade de expressão” Números mostram que o Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo Manifestante é detido por policial em São Paulo durante protesto Wilson Dias/ABr Nelson Antoine/ABr

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6 brasilbrasilde 30 de outubro a 5 de novembro de 2014

Bruno Pavanda Redação

NO DOMINGO, 26 de outubro, mais de 54 milhões de brasileiros optaram por dar mais quatro anos de mandato pa-ra a presidenta Dilma Rousseff. Em uma decisão apertada, muitos se preocupam com a “divisão” do país e do que vai ser os próximos quatro anos.

Acontece que a dificuldade para as or-ganizações ligadas aos direitos huma-nos já era clara desde o primeiro tur-no, quando o Brasil viu a bancada fun-damentalista – representada por depu-tados e senadores ligados ao agronegó-cio, evangélicos, da bancada da bala, empresários e outros – crescer substan-cialmente.

Esse novo Congresso pode representar sérias ameaças aos avanços nos direitos humanos, já que na própria campanha diversos dos eleitos já empunhavam ban-deiras, como a da redução da maioridade penal, a do endurecimento das penas pa-ra criminosos no Brasil, a de marginali-zação dos movimentos sociais e contra o avanço da pauta LGBT.

A pesquisadora e coordenadora da ONG Justiça Global, Isabel Lima, alerta para o perigo que essas pautas avancem, já que o Brasil tem hoje a terceira maior população carcerária do mundo e que vi-vem em situação precária. “Não precisa-mos de cadeias mais cheias”, afirma.

Um dos grandes assuntos dos conser-vadores nessa eleição foi a diminuição da maioridade penal no país. Com um dis-curso de proteção à família, ele chegou até mesmo a fazer parte do programa do candidato derrotado à presidência Aé-cio Neves, que prometia a medida contra adolescentes de 16 anos que praticassem “crimes graves”.

Apesar de não ser tarefa fácil mexer nessa questão, por ela ser cláusula pétrea da Constituição Federal, Isabel chama a atenção para o que pode ser uma saída mais fácil para a bancada conservadora: o aumento do tempo máximo de reclusão para jovens infratores.

“A retomada desta pauta é preocupan-te, já que ela é bastante incentivada pe-la grande mídia. Pode-se avançar nesse tipo de cerceamento que seria o de au-mentar o tempo máximo de reclusão pa-ra os jovens, que estão nesse mesmo bo-jo do debate.”

Congresso conservador: mais puniçãoe menos direitos humanos à vistaPOLÍTICA Especialistas alertam para mais repressão e aumento da população carcerária no Brasil

Endurecimento “Bandido bom é bandido preso” é um

discurso que se ouve há muito tempo no Brasil. Ele significa que endurecer as penas para os crimes cometidos no país é a única forma de resposta contra a im-punidade.

Natália Damázio, advogada da Justiça Global, reforça que a cultura da punição como responsabilização é algo que está presente no sistema político e judiciário brasileiro. Ela argumenta que um Con-gresso mais conservador em 2015 pode reforçar ainda mais essa lógica.

“Com a formulação anterior, a permea-bilidade de leis que limitam as liberdades e direitos através do inchamento do po-der punitivo já vinha se mostrando pre-sente. Com uma formulação ainda mais punitiva e conservadora como a atual, o cenário é de privilégio de projetos que re-presentem retrocessos e violações aos di-reitos humanos.”

Natália reforça ainda que esse pensa-mento não enxerga as nuances da socie-dade brasileira e pode, muitas vezes, re-forçar ainda mais as injustiças e os pro-blemas sociais do país.

Para explicar como essa lógica pode aprofundar, ela dá o exemplo da reali-dade dos presídios brasileiros. “O siste-ma de justiça criminal no país é falho; e o endurecimento penal, que é e preocu-pação quando o Congresso tem uma ten-dência mais conservadora, tende apenas a agravar este tipo de situação.”

Números apresentados pelo Conselho Nacional de Justiça, em junho deste ano, mostram que o Brasil ultrapassou a Rús-sia e tem a terceira maior população car-cerária do mundo. Com 711.463 presos, o país só perde para Estados Unidos e Chi-na. Natália alerta para o fato de mais de um terço desses presos serem provisó-rios, ou seja, ainda não tiveram um jul-gamento.

“O uso da prisão provisória, apesar de ser um mecanismo excepcional, é utilizado de forma cotidiana, em com-pleto desacordo com os direitos huma-nos , sendo inclusive uma das questões centrais no superencarceiramento bra-sileiro”, analisa.

Maconha: legalizar ou não?A legalização das drogas, principal-

mente da maconha no Brasil tem sido alvo de muito debate. Depois do exem-plo do Uruguai, que estatizou a venda e a produção da droga em todo o território nacional, foi proposta também a lei de le-galização.

O deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ) apresentou o PL 7270/2014 que, além de legalizar o consumo e a ven-da, prevê a anistia para os traficantes que forem presos pela comercialização da substância.

“A maioria é composta por vapores, aviões, pequenos assalariados do tráfico, jovens e adolescentes que moram nas pe-riferias e nas favelas e que entraram no ‘movimento’ porque era o que o país lhes oferecia para ser alguém na vida”, defen-deu Wyllys em um artigo.

Porém, a partir do ano que vem, o Congresso pode ter uma frente parla-mentar contra a legalização da maco-nha. O senador Magno Malta (PR-ES) afirmou que já tem assinaturas necessá-rias para a criação do grupo que conta-ria com 75 senadores e 400 deputados federais.

Isabel alerta que a comissão, que pre-vê um debate maior sobre a liberação da maconha para uso medicinal, pode avançar para outros assuntos para en-durecer ainda mais as penas para quem vende ou consome a droga, aumentan-do consideravelmente o número de pre-sos no Brasil.

Projetos de lei contra o terrorismoNessa mesma onda, foram para o cen-

tro do debate, após a série de protestos em 2013 e 2014, os projetos de lei que tentam tipificar o terrorismo no Brasil.

Mesmo com o Congresso não conse-guindo emplacar a aprovação de nenhum até o final da Copa, eles ainda preocupam as especialistas. “Eles podem voltar com toda a força assim que os movimentos voltarem às ruas”, explica Isabel.

Natália destaca os PLS 508 e o 499, que tratam dos crimes de vandalismo e a tipificação do crime de terrorismo res-pectivamente. Para ela, o único intuito dos dois seria o de desmobilizar os movi-mentos organizados da sociedade.

“Ambos apresentam os mesmos pro-blemas centrais: eles vêm como uma res-posta estatal autoritária às manifesta-ções de 2013 e 2014; possuem tipos aber-tos e criminalizam condutas que já pos-suem tipificação no Código Penal em ou-tras figuras. Sendo assim, o intuito úni-co desses projetos é o endurecimento pe-nal para que se desmobilize os protestos. Por consequência, são amplamente vio-latórios de direitos humanos, como a li-vre reunião e assembleia, além da liber-dade de expressão”.

Em todo o mundo, vêm se reforçando projetos do mesmo tipo com o intuito de cercear a liberdade de expressão e de ma-nifestação de movimentos. Natália expli-ca que desde o atentado ao World Trade Center eles são uma tendência, mas que a América Latina vem passando por um processo acelerado de leis contra “desor-dem pública” e “terrorismo”.

A criminalização dos direitos humanos ocorre, por exemplo, contra os indígenas da etnia Mapuche, no Chile, e contra os estudantes na Argentina. Na contramão, a proteção dos manifestantes que pos-sam ter sido alvo de prisões arbitrárias, é um ponto que ainda engatinha no Bra-sil. O maior exemplo foi o dos estudantes Fábio Hideki e Rafael Lusvarghi, que fo-ram mantidos presos pela Polícia Militar acusados de portarem explosivos.

Porém, laudos do GATE e do instituto de Criminalística concluíram que Hideki tinha na mochila um frasco de fixador de corantes em tecidos. Já Lusvarghi, um frasco de achocolatado que os policiais acreditaram ser um coquetel molotov.

“Não há o mesmo movimento quan-do o assunto é a proteção destes direitos. Esse caso é exatamente o retrato de co-mo o sistema penal opera no movimen-to de criminalização, no qual você aplica de forma completamente arbitrária uma normativa penal para criminalização e desmobilização de defensores ou organi-zações políticas”, critica Natália.

O Congresso pode representar sérias ameaças aos avanços nos direitos humanos, já que na própria campanha diversos dos eleitos já empunhavam bandeiras como a da redução da maioridade penal e endurecimento das penas para criminosos no Brasil

Números apresentados pelo Conselho Nacional de Justiça, em junho deste ano, mostram que o Brasil ultrapassou a Rússia e tem a terceira maior população carcerária do mundo. Com 711.463 presos, o país só perde para Estados Unidos e China

“O intuito único destes projetos (antiterrorismo) é o endurecimento penal

para que se desmobilize os protestos; por conseqüência, são amplamente

violatórios de direitos humanos, como a livre reunião e assembleia, além da

liberdade de expressão”

Números mostram que o Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo

Manifestante é detido por policial em São Paulo durante protesto

Wilson Dias/ABr

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