Upload
isaac-james-chiaratti
View
212
Download
0
Embed Size (px)
DESCRIPTION
Conhecimento Prático Pessoal No Ensino de Música - Anais Abem IX 2000 - educação musical
Citation preview
O CONHECIMENTO PRTICO PESSOAL NO ENSINO DE MSICA:
A VOZ DE UMA PROFESSORA
Viviane Beineke
Resumo
Neste estudo so discutidos os conhecimentos prticos pessoais que orientam a prtica educativa de uma professora de msica atuante na escola fundamental, com a finalidade de desvelar algumas das lgicas que guiam e sustentam as suas aes pedaggicas. Para responder a essa questo, foram assistidas seis aulas de msica ministradas pela mesma, sendo estas gravadas em vdeo e, posteriormente, foram realizadas entrevistas semi-estruturadas e de estimulao de recordao, nas quais a professora foi incentivada a refletir sobre as suas prticas educativo-musicais enquanto assistia s suas prprias aulas no vdeo. Os dados obtidos so analisados luz dos conceitos de conhecimento prtico pessoal desenvolvidos por ELBAZ (1981) e CLANDININ (1985). Os resultados revelam os conhecimentos prticos que orientam a prtica educativa da professora, apontando para a possibilidade de serem elaborados conhecimentos educacionais a partir das prticas, ativamente construdas e refletidas pela professora.
Introduo
Este trabalho tem o objetivo de discutir os conhecimentos prticos
pessoais que orientam a prtica educativa de uma professora de msica
atuante na escola fundamental, com a finalidade de desvelar algumas das
lgicas que guiam e sustentam as suas aes pedaggicas.
Esse enfoque situa-se no campo das pesquisas sobre o pensamento
do professor, as quais esto voltadas para o estudo dos pensamentos dos
professores em relao s suas prticas profissionais, com o objetivo de
compreender a forma como eles concebem e justificam suas aes
pedaggicas, seus problemas, seu fazer e o contexto que delimita a sua
atuao.
Essa temtica abordada em minha dissertao de mestrado1, na qual
discuto os conhecimentos prticos de trs professoras de msica. Nesta
1 Dissertao desenvolvida no Programa de Ps-Graduao em Msica Mestrado e Doutorado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sob orientao da prof Dr Liane Hentschke e co-orientao da prof Dr Jusamara Souza, intitulada O conhecimento prtico pessoal do professor de msica: trs estudos de caso.
2
2
comunicao, focalizo um dos trs estudos de caso que realizei com
professoras de msica atuantes no ensino fundamental.
1. Perspectivas tericas
Os conhecimentos prticos dos professores, segundo CLANDININ
(1985), so construes individuais e, para reforar essa idia, a autora utiliza
a expresso conhecimento prtico pessoal, adotada neste trabalho.
O conhecimento prtico pessoal no se refere a um corpo de
conhecimentos estruturados, como os encontrados em livros-textos de
professores. O conhecimento prtico pessoal a matriz pessoal e existencial
que forma o que um professor conhece sobre ensinar (CLANDININ, 1985, p.
362-363).
O conhecimento prtico pessoal o conhecimento que est imbudo com todas as experincias que formam a pessoa. Seu significado derivado e entendido em termos da histria experiencial da pessoa, tanto profissional como pessoal. (CLANDININ, 1985, p. 362).
Para fundamentar este estudo, recorri pesquisa desenvolvida por
Freema ELBAZ (1981) sobre os conhecimentos que orientam a prtica
educativa do professor. Em seu trabalho, a autora discute a dinmica da prtica
educativa do professor atravs da anlise dos conhecimentos que orientam as
suas aes.
ELBAZ (1981) identificou cinco orientaes do conhecimento prtico,
nomeadas como: situacional, pessoal, social, experiencial e terica. No
contexto desta pesquisa, encontrei as trs primeiras situacional, pessoal e
social e utilizo-as para interpretar o discurso da professora sobre a sua
prtica.
A orientao situacional refere-se utilizao do conhecimento prtico
para fazer sentido e responder s situaes imediatas do ensino. J a
orientao pessoal refere-se ao uso que o professor faz do seu conhecimento
para capacit-lo a trabalhar de formas pessoalmente significativas, englobando
a maneira como ele seleciona e interpreta uma situao. A orientao social,
por sua vez, diz respeito s interferncias e determinaes sociais que influem
3
3
no trabalho do professor, incluindo tanto as adequaes que o professor
precisa fazer dos seus conhecimentos em razo das condies e limitaes
sociais do seu trabalho, como tambm o papel ativo do professor na
estruturao do cenrio social de ensino.
Em trabalhos dessa natureza, necessrio que os conhecimentos
prticos sejam vistos a partir da perspectiva dos prprios professores,
valorizando e legitimando esses conhecimentos. Segundo ELBAZ (1981, p.
60-61), muito fcil definir negativamente os conhecimentos prticos, mas,
apesar de ser mais difcil, mais importante definir os conhecimentos dos
professores de forma positiva, em termos das caractersticas que do
condies para os professores atuarem na prtica.
Nessa perspectiva, necessrio dar voz ao professor, procurando
compreender o conhecimento voltado para a prpria ao que o professor
utiliza para resolver as situaes concretas com as quais se defronta no
contexto prtico. Segundo WOODS (1999), necessrio dar voz aos
professores, o que significa ver os professores menos como objetos e sujeitos
da investigao, e mais como pessoas que tm algo de valor a dizer por direito
prprio (ibid., p. 146), idia que norteou a construo do mtodo desta
pesquisa.
2. Metodologia
Nesta investigao assumo uma abordagem qualitativa, optando pelo
estudo de caso, que caracteriza-se por preservar o que o caso tem de nico e
particular, sem visar a uma generalizao dos resultados (LDKE e ANDR,
1986, p. 17).
Para possibilitar o acesso ao pensamento da professora participante,
utilizei trs tcnicas de coleta de dados: a observao, entrevista
semi-estruturada e entrevista de estimulao de recordao.
Inicialmente, observei uma seqncia de seis aulas de msica
ministrada pela professora em uma mesma turma, sendo essas aulas gravadas
integralmente em vdeo. Aps a observao da quarta aula dei incio s
entrevistas semi-estruturadas e, concludas as observaes, realizei trs
4
4
entrevistas de estimulao de recordao com a professora. A entrevista de
estimulao consiste na tcnica de realizao de entrevista enquanto o
professor assiste prpria aula em vdeo, refletindo sobre a sua prtica
(PACHECO, 1995, p. 74).
Figura 1: Estrutura da coleta de dados
Essas tcnicas de coleta de dados fundamentam-se na idia de que o
discurso e a reconstruo da experincia pelos professores podem revelar os
seus conhecimentos prticos pessoais, pois este um conhecimento formado
e baseado na narrativa da experincia (CLANDININ, 1985, p. 363).
3. Os conhecimentos prticos da professora
A trajetria profissional da professora Madalena caracteriza-se por uma
diversidade de experincias musicais. Atua como professora de msica na
escola regular, professora de piano e de tcnica vocal, regente coral, cantora,
pianista e participa de uma banda. Seu primeiro curso de graduao foi em
Pedagogia e, posteriormente, formou-se no Curso de Regncia Coral da
UFRGS.
Entrevistas de
Estimulao de
Recordao (3 aulas)
Observao e gravao
em vdeo (6 aulas)
Entrevistas Semi-
Estruturadas (a partir da
quarta observao)
5
5
O discurso de Madalena revelou que as suas orientaes pessoais
para o ensino de msica esto relacionadas com os seguintes pontos: (1) as
concepes sobre o que significa saber msica e os objetivos da educao
musical na escola e (2) as concepes de educao e de como se aprende
msica.
As orientaes pessoais do conhecimento prtico de Madalena
colocam a produo musical como o centro do processo educativo. O prazer
no fazer musical orienta todas as atividades desenvolvidas em sala de aula.
Para ela, produzir msica engloba: (1) atividades de execuo instrumental
e/ou vocal, incluindo a execuo para um pblico; (2) atividades de
composio, incluindo a criao de arranjos e (3) a atividade de analisar
msica, que permeia as outras atividades, pois as msicas analisadas podem
ser tanto as composies e execues dos prprios alunos, quanto msicas de
outros compositores.
Para Madalena, msica se faz muito em grupo, sendo a maioria das
atividades de produo musical realizada em pequenos grupos de alunos.
Assim, ela acredita estar dando oportunidade para os alunos se expressarem
com autonomia, desenvolvendo suas prprias idias musicais. Para Madalena,
cada aula faz sentido por si mesma, pela produo que acontece no momento.
A longo prazo, ela acredita que a educao musical deve formar ouvintes
crticos.
A forma como a professora entende o ensino de msica conduz todas
as suas aes em sala de aula, pois as interpretaes que ela faz das aes
dos alunos, dos seus interesses e a maneira como compreendem o contexto
escolar esto vinculadas s suas orientaes pessoais.
As orientaes sociais do conhecimento prtico da professora
Madalena esto relacionadas principalmente ao que ela chama de fazer a
leitura das crianas. Ela observa e interpreta os comportamentos e a produo
musical dos alunos em sala de aula para, a partir desses conhecimentos,
elaborar estratgias de ao e selecionar os contedos musicais que sero
trabalhados.
6
6
A anlise das composies dos alunos e os conhecimentos que eles
revelam quando falam sobre as msicas ouvidas em aula vo determinando a
seqncia e a continuidade do trabalho de Madalena, que procura mediar os
conhecimentos dos alunos com os conhecimentos musicais socialmente
produzidos.
Na prtica de Madalena, a orientao situacional est ligada
principalmente sua concepo de que na aula devem ser travados dilogos
inteligentes entre a professora e os alunos. Essas decises do momento so
chamadas por Madalena de improvisos do professor, e esses improvisos,
que podem ser chamados de reflexo-na-ao, s acontecem porque os
alunos esto sendo ouvidos e as decises da professora so tomadas a partir
do que est vindo dos alunos.
No discurso de Madalena, percebo um equilbrio na focalizao das
orientaes pessoais, sociais e situacionais. Ela justifica suas aes a partir de
suas concepes pessoais sobre educao musical, relacionando-as ao
contexto social no qual a prtica encontra-se inserida, localizando essas
perspectivas em relao situao especfica daquele momento da aula.
Ao refletir sobre a sua prtica, Madalena analisa as situaes sob uma
diversidade de perspectivas, relacionando-as entre si. Quando ela afirma, por
exemplo, que o professor precisa ouvir os alunos, esse ouvir significa
compreender o processo de aprendizagem dos alunos e valorizar os
conhecimentos trazidos por eles. Nesse processo, a professora relaciona sua
orientao pessoal, a de que os alunos devem ser ouvidos, com as orientaes
situacionais e sociais, o que lhe permite adequar o seu trabalho ao contexto
social e s situaes especficas da aula de msica.
Ouvir os alunos, para Madalena, tambm significa reconhec-los
como seres inteligentes, uma outra imagem que permeia a sua prtica,
segundo a qual ela procura elaborar estratgias de trabalho que valorizem o
dilogo e a autonomia de pensamento dos alunos.
As experincias de Madalena como musicista surgem como um fio
condutor da sua prtica, que est ligada imagem de que a felicidade tocar.
Para Madalena, fazer msica feliz, e ela quer ver essa felicidade nos
7
7
alunos. Ligada idia de felicidade est tambm a sua concepo de
aprendizagem, quando afirma que quando h prazer na produo musical, h
aprendizagem. Outra forma de ser feliz aprendendo, surge quando Madalena
expressa seu desejo de que os alunos aprendam pensando junto, porque
recebendo tudo pronto do professor talvez a aprendizagem no fosse to
feliz. Em torno dessa imagem, que d significado sua prtica educacional e,
segundo a professora, d sentido tambm sua vida, Madalena construiu sua
maneira de dar aula, elaborando estratgias para que essa felicidade na
produo musical, no desenvolvimento de um pensamento autnomo dos
alunos e desejo de aprender msica, se concretizem em sala de aula.
Ressalto que as orientaes dos conhecimentos prticos reveladas
neste trabalho no tm o objetivo de abranger a totalidade dos conhecimentos
prticos da professora, porque a mesma foi incentivada a discutir aqueles
pontos que ela prpria considerava mais relevantes.
Concluses
Atravs desta pesquisa, julgo que foi possvel dar uma nova posio ao
conhecimento que o professor tem e utiliza em sua prtica educativa,
abordando-o de um ponto de vista terico e conceitual. Desse ponto de vista,
procuro compreender e valorizar o pensamento do professor, reconhecendo a
legitimidade dos conhecimentos produzidos a partir das suas reflexes sobre a
prtica educativo-musical. Como afirma GIMENO SACRISTN,
Uma anlise a partir da prtica sugere novos caminhos, nos quais o conhecimento formalizado no se limita a deduzir as prticas, exprimindo-se antes numa reflexo sobre a estrutura do pensamento dos actores e sobre a prtica enquanto realidade preexistente que pode ser investida do ponto de vista terico. (GIMENO SACRISTN, 1995, p. 85).
Estudos dessa natureza permitem que seja desenvolvida uma
conscincia progressiva sobre a prtica (GIMENO SACRISTN, 1995) dos
professores de msica, possibilitando a construo de conhecimentos sobre
prticas reais e a partir delas, indo alm das discusses sobre a eficcia de
tcnicas e mtodos de ensino.
8
8
Neste trabalho, procurei dar voz professora, o que permitiu uma
aproximao entre os conhecimentos produzidos nas escolas e na
universidade, evitando a dicotomizao e a polarizao entre as prticas e as
teorias. Como defende GIMENO SACRISTN (1999), isso implica uma nova
compreenso de teoria e prtica, onde a teoria aparece integrada com a
prtica pela ao, e a relao entre ambas no poder ser compreendida sem
entend-las em um quadro mais amplo no qual o componente dinmico
encontre guarida: a inteno e a direo das aes (ibid., p. 48).
Dar voz professora significa analisar as prticas a partir da sua
perspectiva, seu olhar, sua lgica de organizao e ao educativa. Significa
reconhecer a legitimidade e consistncia dos seus conhecimentos profissionais
postos em ao nas prticas educativas. Nesse sentido, a participao de
Madalena na pesquisa configurou-se como um momento de reflexo sobre a
prtica e, mais do que isso, um momento de articular e construir novos
conhecimentos a partir de sua prtica. Madalena confirma essa idia em seu
depoimento:
Na condio de leitora da minha prtica, muitas vezes esbarro na emoo de ver, em documento escrito, aquilo que foi vivenciado entre quatro paredes como num pacto familiar. Esta experincia de afastamento versus aproximao que acontece concomitantemente durante essa leitura me traz a sensao direta de que o fazer, uma vez registrado, toma uma proporo muito maior, a proporo da palavra, do seu peso e da teoria. A imagem que me vem a de uma simples cadeira que no ambiente natural perde seu valor, mas, se colocada no palco com luzes, cresce aos olhos, mostrando uma silhueta nunca dantes reparada. Uma nova cadeira. assim que vejo agora a minha prtica: uma nova cadeira. (Madalena 30/05/2000).
Construir conhecimentos educacionais a partir das prticas, ativamente
construdas e refletidas pela professora, tambm uma forma de incentiv-la a
valorizar seus prprios conhecimentos, assumindo todo seu potencial como
profissional ativa e reflexiva.
9
9
Referncias Bibliogrficas
CLANDININ, D. Jean. Personal practical knowledge: a study of teachers classroom images.
Curriculum Inquiry, v. 15, n. 4, p. 361-385, 1985.
ELBAZ, Freema. The teachers practical knowledge: report of a case study. Curriculum
Inquiry, v. 11, n 1, p. 43-71, 1981.
GIMENO SACRISTN, Jos. Conscincia e aco sobre a prtica como libertao profissional
dos professores. In: NVOA, Antnio (org.). Profisso professor. 2. ed. Porto : Porto
Editora, 1995. p. 63-92.
______ . Poderes instveis em Educao. Porto Alegre, Artes Mdicas, 1999.
LDKE, Menga; ANDR, Marli E. D. A. Pesquisa em Educao: abordagens qualitativas. So
Paulo, EPU, 1986.
PACHECO, Jos Augusto. O pensamento e a aco do professor. Porto, Porto Editora, 1995.
WOODS, Peter. Investigar a arte de ensinar. Porto, Porto Editora, 1999.