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Tirando a venda dos espertos: reflexões sobre a formação de psicólogos em tempos de cinismo * Conrado Ramos Hoje em dia, quando o conceito de proletariado, intocado em sua essência econômica, está tão obliterado pela tecnologia que, no maior dos países industrializados, não há possibilidade de uma consciência proletária de classe, o papel dos intelectuais já não seria alterar os obtusos para seus interesses mais patentes, porém tirar a venda dos olhos dos espertos, tirar a ilusão de que o capitalismo, que faz deles seus beneficiários transitórios, baseia-se em outra coisa que não sua exploração e opressão. Theodor W. Adorno, Mensagens numa garrafa A recente leitura do artigo Psicologia da violência ou violência da Psicologia?, de Mello e Patto (2008), convocou-nos a refletir sobre as tendências atuais dos cursos de psicologia e de seus alunos, assim como das condições sociais e históricas que os sustentam em sua deformação. As autoras começam o artigo com as seguintes questões: A morte violenta de crianças pelas mãos de seus familiares está se tornando comum, assim como o abandono de bebês recém-nascidos nas ruas, em terrenos baldios, em latas de lixo. O que podemos concluir dessas trágicas notícias que os jornais * Agradeço à Maria Helena Souza Patto pelo cordial debate que muito contribuiu para as idéias que aqui sustento. 1

Conrado Ramos_Tirando a Venda Dos Espertos

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Psicologia

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Minha Cara Maria Helena

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Tirando a venda dos espertos: reflexes sobre a formao de psiclogos em tempos de cinismo*Conrado Ramos

Hoje em dia, quando o conceito de proletariado, intocado em sua essncia econmica, est to obliterado pela tecnologia que, no maior dos pases industrializados, no h possibilidade de uma conscincia proletria de classe, o papel dos intelectuais j no seria alterar os obtusos para seus interesses mais patentes, porm tirar a venda dos olhos dos espertos, tirar a iluso de que o capitalismo, que faz deles seus beneficirios transitrios, baseia-se em outra coisa que no sua explorao e opresso.Theodor W. Adorno, Mensagens numa garrafa

A recente leitura do artigo Psicologia da violncia ou violncia da Psicologia?, de Mello e Patto (2008), convocou-nos a refletir sobre as tendncias atuais dos cursos de psicologia e de seus alunos, assim como das condies sociais e histricas que os sustentam em sua deformao. As autoras comeam o artigo com as seguintes questes:A morte violenta de crianas pelas mos de seus familiares est se tornando comum, assim como o abandono de bebs recm-nascidos nas ruas, em terrenos baldios, em latas de lixo. O que podemos concluir dessas trgicas notcias que os jornais nos trazem todos os dias? O que leva os adultos prtica de atos como esses?

A resposta inicial das autoras coloca a base de um problema que pouco discutido, qual seja, que a dificuldade de pensar esses acontecimentos no apenas de leigos, o que leva profissionais mal formados a prticas ideolgicas e irresponsveis, e por vezes, desastrosas. Nesse contexto, ao examinarem criticamente as condies atuais de formao de psiclogos, as autoras diagnosticam:

Estamos diante de um quadro gravssimo e inaceitvel, no s porque h psiclogos vitimando pessoas, mas tambm porque a credibilidade de uma cincia e profisso que conta com excelentes pesquisadores e profissionais, capazes de contribuir para a construo da cidadania, est ameaada.

Pois bem, nesse debate que este artigo tambm quer entrar, mas escolhemos por situar nossas reflexes na investigao do cinismo que deforma tanto os adultos que jogam os filhos nas latas de lixo quanto os cursos que formam psiclogos que vitimam pessoas e, ainda, os prprios alunos destes cursos. A aproximao que nossa frase anterior sugere, entre pais que jogam os filhos nas latas de lixo e cursos de psicologia que formam mal seus alunos, apesar de caricata, no acidental. Guardadas as devidas propores entre o ato dos pais e o dos agentes dos cursos, entendemos haver em ambos manifestaes da barbrie que no podemos deixar de explicitar em suas articulaes sociais e histricas. Nosso objetivo trazer tona o mal-estar que se quer ocultar nesse assunto, no de modo a imobilizar nossos destinatrios, mas sim para que um nvel de angstia possa levar reflexo e, qui, a algum ato transformador.

Suspeitamos que parte relevante dos cursos de psicologia, ao menos no Brasil, tem se limitado a oferecer sua clientela aquilo que cabe entre o menor custo possvel e a maior adequao conseguida aos critrios oficiais de avaliao institucional. Os cursos das IES so feitos cada vez mais para os acionistas dos papis da educao e para os avaliadores do MEC, sendo que os primeiros (os acionistas) talvez tenham uma funo determinante muito maior do que os segundos.

Assim como as emissoras de TV ilusoriamente produzem programas para os telespectadores (pois, de fato, so os patrocinadores os verdadeiros clientes aos quais a audincia real produto destas emissoras vendida), tambm os cursos, cada vez mais, so feitos aos seus patrocinadores, aos quais as estatsticas de matrcula e freqncia, ou seja, os alunos, so vendidos. No cremos, frente a essa situao, que possamos dizer com convico que o produto destas empresas seja o ensino ou a educao. Estes ltimos talvez se reduzam a maquinrio para a produo massificada de alunos, isto , so meios e no mais os fins.

Dentro deste quadro que s vemos ampliar-se no horizonte, confessamos que nos parece s vezes romntico ainda apostar no projeto de uma formao nos princpios sustentados por Adorno (1959/1972) ao afirmar que a formao no outra coisa que a cultura pelo lado de sua apropriao subjetiva(p.142-3). A formao pressupe uma dialtica entre a adaptao do sujeito realidade social e histrica existente e o seu processo de busca de autonomia e singularidade, o que implica a transformao da prpria realidade e, portanto e ao mesmo tempo, a ruptura possvel com o existente.

Sabemos que no devemos abrir mo, resignadamente, desse projeto de formao cultural. Isto nos levaria adeso imediata lgica da existncia prpria dos cnicos. Mas sabemos tambm que a batalha em questo muito grande, posto que a lgica dos cnicos j est instalada: estamos seguros de que muitos daqueles que possuem uma experincia como professores j ouviram de alunos, queixosos dos sacrifcios que tinham que fazer em nome de alguma formao, aquela frase que j virou um ditado popular e que mostra parte da verdade que s um chiste pode revelar dizem eles: a faculdade quer vender o diploma, o aluno quer comprar e o professor aquele que atrapalha a negociao. Adorno (1966/1995a) no teria dado as mediaes histricas condensadas nesse chiste em Tabus acerca do magistrio? O autor expressa a mesma idia do seguinte modo, ao falar das caractersticas prprias do trabalho do professor numa sociedade que permanece baseada na fora fsica (106):[...] seu trabalho realiza-se sob a forma de uma relao imediata, um dar e receber, para a qual, porm, este trabalho nunca pode ser inteiramente apropriado sob o jugo de seus objetivos altamente mediatos. (p.112)Mas Adorno faz tambm a crtica dos alunos:Reina uma espcie de antinomia: o professor e os alunos praticam injustias uns em relao aos outros: aquele quando divaga sobre valores eternos, que na verdade no o so, e os alunos quando em resposta se decidem pela idolatria debilide aos Beatles. (p.110)

Pois bem, temos repensado algumas de nossas posies sobre a deformao do indivduo: num primeiro momento supomos o ideal de indivduos sedentos de cultura e excludos da mesma pelos perversos sistemas de excluso ou simplificao das IES. Esses indivduos ainda existem, mas acreditamos que so cada vez mais comuns aqueles que querem exatamente os cursos rasos que so oferecidos a eles. So esses, muitas vezes, aqueles capazes de jogar seus filhos nas latas de lixo ou atir-los pela janela ou, ento, de ficar na porta das casas dos que fizeram isso com o nico objetivo de serem vistos na televiso.

Qualquer curso de psicologia digno desse nome deveria, minimamente, mostrar o lado obsceno disso tudo. Trata-se, ao nosso ver, de desmascarar a enorme encenao coletiva de gozo em que estamos metidos, mostrando que a, na verdade, no h gozo algum. Tudo no passa de uma falsa aposta como pudemos ver recentemente, com o capitalismo ameaado de derreter-se pela ausncia da confiana!

Por traz da grande racionalidade administrativa que reina em nossa sociedade, continua a existir a aposta de Blaise Pascal (16--/1973), que de modo bastante simplificado podemos expressar assim: se no acredito em Deus e estiver errado, vou para o inferno; se no acredito e estiver certo, no perco nada; se acredito e estiver errado, tambm no perco nada; mas se acredito e estiver certo, serei premiado com o paraso. Logo, a melhor alternativa acreditar... H na aposta de Pascal uma renncia ao gozo sustentada na crena de que todo gozo pode ser contabilizado, se no imediatamente, num suposto futuro. Neste campo a psicanlise nos permite diferenciar a perda de gozo implicada na castrao que produz o sujeito de desejo, da renncia ao gozo que carrega a esperana de encontrar o gozo perdido nas promessas do Outro (pai, propaganda, cincia, capitalismo...). Levada s ltimas consequncias, esta aposta que sustenta do ponto de vista subjetivo os imperativos de gozo da sociedade de consumo:

A sociedade de consumo, se podemos cham-la assim, se sustenta na enunciao de que todas as inscries de gozo so possveis e, se o gozo particular de um sujeito ainda no est disponvel, basta que ele aguarde, pois certo que a cincia est cuidando de invent-lo ou de descobri-lo. (RAMOS, indito)

sob a aposta numa contabilizao total dos gozos que se funda a renncia dos cnicos e sua crena nas promessas da sociedade de consumo, mas esta aposta no outra coisa seno a internalizao histrica de imperativos sociais. nesse sentido que entendemos o porqu de Adorno (1951/2006) colocar na categoria de impostura e na idia de encenao os princpios dos processos de identificao dos indivduos do mundo administrado:

A categoria da impostura (phonyness) se aplica aos lderes tanto quanto ao ato de identificao por parte das massas e a seus supostos frenesi e histeria. Do mesmo modo que, no fundo do corao, as pessoas pouco crem nos judeus como demnio, elas tambm no acreditam completamente no lder. No se identificam realmente com ele, mas simulam essa identificao, encenam seu prprio entusiasmo e participam, assim, da performance de seu lder. por meio dessa encenao que atingem um equilbrio entre seus desejos instintuais continuamente mobilizados e a fase histrica de esclarecimento que alcanaram e que no pode ser arbitrariamente revogada. provavelmente a suspeita do carter fictcio de sua prpria psicologia de grupo que torna as multides fascistas to inabordveis e impiedosas. Se parassem para raciocinar por um segundo, toda a encenao desmoronaria, e s lhes restaria entrar em pnico. (p.188)

A fase histrica de esclarecimento que alcanamos no pode ser arbitrariamente revogada. Isso quer dizer que somos responsveis pelos estados de anomia que sustentamos. A atrao que a barbrie exerce sobre indivduos do nosso tempo no pode ser encarada como fruto da ingenuidade. As noes de deformao do sujeito contemporneo no podem prescindir da questo sobre o sujeito dessa deformao. Interrogar esse sujeito por meio de sua impostura o mesmo que tirar sua venda e coloc-lo frente a frente com suas paixes, atraes e admiraes secretas da barbrie.

H uma secreta admirao de muitos pelos pais que matam ou abandonam seus filhos. Eles so os heris dos cnicos e, no mais, humanos ou monstros. H um certo fascnio pelo gozo que se supe no ato assassino que cometeram. A vontade que muitos tm de mat-los, a raiva assassina que nos acomete (do mesmo modo que os acometeu, diga-se de passagem), resulta possivelmente do nosso horror frente ao que nos revelam: como portadores da nossa verdade que esses assassinos so venerados e precisam ser mortos. H certas figuras que amamos tanto que queremos matar: esquisita condio que une a celebrao ao sacrifcio. Dentro desse contexto, acreditamos que no h mais tanta culpa nos psiclogos que usam de suas canetas para entregar as vtimas aos seus algozes. Cumpre investigarmos se esses psiclogos no se identificam com tais algozes...

s vezes pensamos que no se trata mais apenas de apontar os compromissos da psicologia com a dominao como forma de alertar e acordar os formadores e estudantes para as armadilhas da alienao. Entendemos que isso j foi muito mencionado, e de tal forma, que no possvel que os destinatrios nunca tenham ouvido falar. Concordamos com Zizek (1989/1996): talvez no caiba mais crer no dito bblico eles no sabem o que fazem. Ele sugere: eles sabem o que fazem e assim mesmo fazem-no. Por qu? Porque no apostam que outra realidade seja possvel (j que assim mesmo e no tem jeito, relaxa e goza...(sic)). Novamente a aposta nica no existente: se nele no h cu, certamente fora dele s h inferno.

A sugesto de Zizek, ao deslocar a ideologia do saber para o fazer, prope tambm o deslocamento da crtica do plano da conscincia para o campo do gozo. [...] a mentira ostensiva, na qual ningum efetivamente acredita, est cada vez mais substituindo as ideologias de ontem, que tinham o poder de convencer aqueles que acreditavam nelas (ADORNO e SIMPSON 1941/1994, p.146). Isso enfraquece o poder descritivo de categorias como alienao, mas faz ascender a seu valor poltico categorias como impostura e responsabilidade. Adorno (s.d.), j em 1946, questionava a responsabilidade do sujeito e colocava a sobriedade cnica como caracterstica da mentalidade fascista:

altamente duvidoso se o que ocorre no fascismo uma verdadeira hipnose, pois isso tambm pode ser uma metfora fcil, que permite ao observador dispensar uma anlise mais aprofundada do fenmeno. Provavelmente, a sobriedade cnica muito mais caracterstica da mentalidade fascista do que a intoxicao psicolgica. Alm do mais, todos que j tiveram a chance de observar as atitudes fascistas puderam notar que mesmo os estgios de entusiasmo coletivo, aos quais se refere o termo hipnose coletiva, possuem um elemento de manipulao consciente, seja pelo lder, seja pelo prprio indivduo. Dificilmente pode-se ver nesses estgios o resultado de um contgio passivo. Falando psicologicamente, o ego tem um papel muito grande na irracionalidade fascista, para que se interprete o seu suposto xtase como mera manifestao do inconsciente. Sempre existe algo de esprio, de auto-estilizado e auto-ordenado na histeria fascista. Isso demanda um ateno critica, se para a teoria psicolgica do fascismo no se render aos slogans irracionais que o prprio fascismo promove.

Essa a posio subjetiva que encontramos quando a ideologia e a realidade no se distinguem mais: se toda realidade ideologia, ento, por um lado, no h mais esperanas para uma sociedade livre e camos numa espcie de vale tudo, pois no h mais verdade, mas, por outro lado, bastaria no abrirmos mo do valor tico da verdade para desmantelarmos toda a falsidade do existente como nica realidade possvel. Horkheimer e Adorno (1956/1973) assim sintetizam esta idia:Entretanto, precisamente porque a ideologia e a realidade correm uma para a outra; porque a realidade dada, falta de outra ideologia mais convincente, converte-se em ideologia de si mesma, bastaria ao esprito um pequeno esforo para se livrar do manto dessa aparncia onipotente, quase sem sacrifcio algum. Mas esse esforo parece ser o mais custoso de todos. (p.203)

Diante da posio cnica da subjetividade contempornea, a crtica e o esclarecimento se tornam impotentes e insuficientes. Assim, para os cnicos, do mesmo modo que para os jitterbugs, a resistncia encarada como um sinal de m cidadania, como incapacidade de se divertir, como falta de sinceridade do pseudo-intelectual (ADORNO & SIMPSON, 1941/1994, p.142). Por outro aspecto, ainda na perspectiva dos cnicos, a impotncia da crtica transforma aqueles que se dispem a refletir em seres delirantes. por isso que, segundo Adorno (1966/1995a):Com frequncia os professores so vistos conforme as mesmas categorias com que se focaliza o infeliz heri de uma tragicomdia do naturalismo; em respeito a eles poderamos falar de um complexo de devaneius. Eles encontram-se em permanente suspeio de estarem fora da realidade. (p.109)

Porm, Adorno no cede resignado perspectiva cnica de uma falncia da crtica. assim que considera, no fim de Mensagens numa garrafa ttulo genial por condensar a esperana e o no recuo diante da impotncia atual do esclarecimento , que:[...] o papel dos intelectuais j no seria alterar os obtusos para seus interesses mais patentes, porm tirar a venda dos olhos dos espertos, tirar a iluso de que o capitalismo, que faz deles seus beneficirios transitrios, baseia-se em outra coisa que no sua explorao e opresso. Os trabalhadores enganados dependem diretamente daqueles que ainda conseguem enxergar alguma coisa e falar-lhes de seu engano. Seu dio pelos intelectuais sofreu uma mudana correspondente. Alinhou-se com as opinies correntes do senso comum. As massas j no desconfiam dos intelectuais por eles trarem a revoluo, mas porque eles talvez a queiram; com isso, revelam quo grande sua prpria necessidade de intelectuais. (ADORNO, 1962/1996, p.50 [itlicos nossos])

Cada vez menos a crtica que mostra uma verdadeira realidade por trs da ideologia encontra seu destinatrio, qual seja, o tpico e clssico alienado que no sabe o que faz. A realidade e a ideologia so, hoje, a mesma coisa. O alienado de hoje aquele que, de algum modo, sabe mas encena: o alienado do nosso tempo o impostor. Ideolgico, assim, acreditar que outra realidade no possvel, o que o mesmo que apostar apenas na realidade existente (o cinismo, tambm, uma questo de f). aqui que reside hoje o engano dos espertos: ainda acham que o capitalismo pode faz-los gozar, isto , que ele se baseia em outra coisa que no sua explorao e opresso. E, no entanto, h uma verdade oculta nesse engano, se considerarmos o quanto os espertos no retiram um obscuro gozo justamente desse lugar de explorados e oprimidos. Que fique claro: no estamos a culpar a vtima, mas a chamar para a reflexo o plano da impostura. Certamente h dominao, mas questionamos tambm o que h de entrega e o seu por que.

Assim, sabemos que o capitalismo ruim, mas alm do trabalho que daria para mud-lo, o que poderia haver fora dele seno o vazio?, pensaria o cnico vendando-se com a sua ideologia. Melhor deixar como est, ou como se diz atualmente por a: t ruim, mas t bom... (sic). No nesse esprito que encontramos a oferta e a demanda de boa parte dos cursos de psicologia?

A f no capitalismo , por um lado, aposta entusiasmada nas suas promessas de gozo, e aqui entram com sua funo de fisgamento ideolgico dos sujeitos a propaganda e a cincia, ao espalharem aos quatro cantos que se algum no encontrou o objeto da sua felicidade porque no procurou direito ou porque ele est quase para ser descoberto/inventado.

Por outro lado e ao mesmo tempo, a aposta cnica no entusiasmada, mas sim resignada. De certo modo ela traz uma formulao inversa aposta de Pascal: o que tenho disposio no exatamente o que quero, mas no vou me arriscar a buscar outra coisa fora desse sistema: e se no tiver Deus nenhum l fora!? mais seguro gozar com o pouco que me dado pelo falso deus-mercado...

Diante de todo esse quadro, entendemos que um curso de psicologia engajado e crtico deveria produzir e transmitir o conhecimento necessrio para desmascarar a obscenidade presente na deformao do indivduo contemporneo. No se leva mais to facilmente um sujeito tica apelando a princpios racionais e universais, o que, alis, Adorno (1965/1995) j afirmou em Educao aps Auschwitz:No acredito que adianta muito apelar a valores eternos, acerca dos quais justamente os responsveis por tais atos reagiriam com menosprezo; tambm no acredito que o esclarecimento acerca das qualidades positivas das minorias reprimidas seja de muita valia. (p.121)

No contexto que consideramos, cada vez mais se torna evidente que s se pode levar um sujeito cnico tica colocando-o frente a frente com a impostura de seu gozo que seu, mas que tambm socialmente imposto, uma vez que enquanto sujeito ele foi interpelado pela ideologia. Para atingir os sujeitos cnicos, isto , para tirar a venda dos espertos, talvez seja preciso apont-los, nome-los provocativamente e dizer: eu sei de teus medos, de tuas crenas, de tuas vergonhas e de teus gozos... estou te vendo na cena em que te escondes.... Vale lembrarmos o que diz Adorno (1965/1995): o primeiro passo seria ajudar a frieza a adquirir conscincia de si prpria, das razes pelas quais foi gerada(p.136). E mais adiante:

Mesmo que o esclarecimento racional no dissolva diretamente os mecanismos insconscientes conforme ensina o conhecimento preciso da psicologia , ele ao menos fortalece na pr-conscincia determinadas instnciasde resistncia, ajudando a criar um clima desfavorvel ao extremismo. Se a conscincia cultural em seu conjunto fosse efetivamente perpassada pela premonio do carter patognico dos traos que se revelaram com clareza em Auschwitz, talvez as pessoas tivessem evitado melhor aqueles traos (p.136)

J em 1956 Horkheimer e Adorno (1973) propuseram o seguinte a respeito da possibilidade da resistncia a partir de processos psicossociais e marcando claramente o papel da f para a falsa eternidade da existncia massificada:Assim, uma autntica cegueira dirigir recriminaes veementes contra as massas cegas, opondo fico da hegemonia funesta da massa uma solicitude por uma chamada Personalidade, que uma difamao desse conceito. O que cada indivduo poderia fazer esclarecer-se sobre o que o leva a converter-se em massa, para opor uma resistncia consciente propenso para seguir deriva num comportamento de massa. Os modernos conhecimentos sociolgicos e psicossociais podem oferecer uma valiosa ajuda para a aquisio dessa conscincia. Eles podem, entrementes, rasgar a cortina ideolgica predominante sobre a suposta inevitabilidade da existncia massificada, e ajudar os homens a libertarem-se de um sortilgio cuja potncia demonaca ter a mesma durao da f que os homens lhe outorgam. (p.87-8)

Desmascarado o gozo, surgem a angstia e a vergonha, e com elas a questo sobre outra realidade possvel, sem o que no h ato transformador, mas apenas resignao. Aqui cabe marcarmos o valor revolucionrio atribudo por Marx vergonha, j em 1843 quando, numa carta Arnold Ruge, com quem trabalhou no nico nmero da revista Anais Germano-Franceses, Marx escreve: "Voc pode olhar para mim com um sorriso e perguntar: o que se ganha com isso? Nenhuma revoluo feita a partir da vergonha. Eu respondo: a vergonha j um tipo de revoluo. O cinismo que hoje denunciamos tem, certamente, suas razes histricas articuladas ao capitalismo. O cinismo burgus e Marx pde reconhec-lo na forma da vergonha poltica. , pois, disso que se trata: de tentar provocar nos cnicos o aparecimento da vergonha poltica, o que talvez possa ser feito mediante o desvelamento do que h de perverso no gozo que sustentam numa sociedade de consumo.

Nesse sentido, concordamos com a anlise de Safatle (2008) de que os modos de justificao social incorporaram situaes de anomia e indeterminao, de maneira que o capitalismo no se orienta mais por padres normativos de justia, mas a partir da promessa de modos de satisfao e gozo ligados anomia, indeterminao, ironizao (p.27). Nos tempos de Marx a vergonha j era um tipo de revoluo, mas era entendida talvez como um sentimento capaz de vir tona mediante a crtica sustentada por padres normativos de justia. Hoje, porm, em nossa sociedade sem vergonha, no adianta muito apelar a valores eternos.

Nesse momento, s resta crtica ser crtica dos modos de satisfao que legitimam nossas formas de vida. Ou seja, ser clnica da economia libidinal do capitalismo avanado, embora ainda no esteja claro o que isso possa vir a ser, afinal. (SAFATLE, 2008, p.27)

Ser que os cursos de formao fundados na racionalidade pedaggica das competncias e habilidades do conta de desmascarar esse gozo? Como fazer isso dentro da lgica fechada das aes possveis nas IES? Ser que no devemos desconfiar do quanto o pragmatismo e a racionalizao que tomaram conta dos cursos de formao esto comprometidos at o pescoo com o prprio gozo que deveriam desmascarar?

aqui que encontramos a importncia, para a formao do psiclogo, da filosofia e da histria. Aqueles campos de pensamento que atualmente chamamos pejorativamente de conteudistas, que no sabemos direito para que servem e o que fazer com eles, so esses campos de pensamento que nos oferecem condies de avaliarmos criticamente a sociedade em que vivemos e nos orientarmos eticamente nela. Nas palavras de Adorno (1962/1972a):

O que possui uma funo fica enfeitiado no mundo funcional. S o pensamento que, sem reservas mentais, sem iluses de reinado interior, confessa sua carncia de funo e sua impotncia, alcana talvez um olhar da ordem do possvel, do no existente, onde os homens e as coisas estariam em seu justo lugar. Porque no serve para nada, por isso ainda no est caduca a filosofia; e nem por isso sequer seria lcito reclamar-se, se que no quer cegamente repetir sua culpa, a sua posio por si mesma. (p.23)

Nenhuma competncia e habilidade adquirem valor se no for tica e politicamente orientada, isto , se no tiver pautada por tradies culturais bastante slidas, conteudistas, de fato. Concordamos, pois, inteiramente com Giacia Jr (2006) quando se refere[...] ao perigo de submeter o ideal filosfico de formao a injunes e interesses que lhe so estranhos e avessos, e que podem conduzir ao barateamento irreversvel do talento filosfico. por isso que devemos estar atentos ao que nos apregoam como flexibilizao, adaptao s necessidades regionais ou mercadolgicas. (p.1301)

Assim, parodiando o que Giacia Jr. (2006) afirma acerca da filosofia, entendemos como fundamental pensar a relevncia atual da psicologia [...] e a importncia estratgica de seu potencial emancipatrio e crtico num projeto pedaggico e social que pretenda ser mais do que dcil e til adaptao a cnones cegamente obedecidos e aos interesses dominantes da indstria em que se transformou a cultura. (p.1293)

Podemos perceber que uma psicologia que se proponha a compreender a subjetividade de nosso tempo deve, antes de mais nada, poder pensar seu objeto historicamente, o que significa poder pensar a si prpria criticamente. No possvel pensar os problemas psicolgicos isolados da totalidade em que se constituem. Faz-lo, no leva a outra coisa seno perpetuao da inverdade dessa totalidade: uma praxis que se proponha o estabelecimento de uma humanidade madura e racional persiste sob o feitio do desastre sem uma teoria que pense o todo em sua inverdade (ADORNO, 1962/1972a, p.21). O psiclogo precisa estar muito atento s questes que ultrapassam a pessoa ou as pessoas que recebe, escuta, atende ou orienta.

Sob o risco de parecermos conservadores, afirmamos que preciso, minimamente, trazer de volta os contedos crticos que, aos poucos em especial na ltima dcada , tem sido apagados dos currculos de formao de psiclogos, em nome de um ensino que prioriza a formalizao esvaziada das competncias e habilidades e de um ensino de massa pasteurizado. E, no entanto, isso no basta! No pensamos nesse trazer de volta como a salvao, mas como um caminho possvel de resistncia contra o acelerado esvaziamento crtico dos cursos. Temos cincia do quanto esse esvaziamento de contedos est afinado com as novas dinmicas ps-fordistas do gerenciamento da produo e das relaes de trabalho. Ao contrrio de um especialista envolvido criticamente e em profundidade com os temas e objetos de seu trabalho, o que temos o esforo por uma flexibilizao profissional que facilite a rpida adaptao e insero s novas necessidades de mercado, mas sem revelar o que isto significa em termos de adeso alienada s condies de opresso social. H um abismo entre esta concepo de formao e aquela que apresentamos no incio deste texto.

No podemos concluir do exposto at agora que ao enfraquecimento dos pontos fixos de orientao do indivduo no mundo do trabalho corresponde uma certa organizao perversa do sujeito no campo do desejo? Interessante notarmos neste ponto o comentrio que faz Safatle (2008) da desterritorializao do manager nesta poca de flexibilidade e comunicaes em redes como mimese das figuras sociais que em outros tempos no tinham lugar fixo no interior da estratificao social: o manager e o malandro esto mais prximos do que nunca, assim como o marketing pessoal e a racionalidade cnica. No mundo do trabalho conseguimos ir alm da cristalizao ideolgica das identidades, mas no na direo do que Adorno compreendia como no-idntico, e sim rumo a uma conscincia desligada de qualquer compromisso tico e poltico e voltada unicamente gesto do prprio sucesso a qualquer custo. De que modo os psiclogos de nosso tempo so afetados por esta lgica da esperteza no mundo do vale tudo em seu cotidiano profissional?

Ao invs da democratizao do acesso ao conhecimento, esvaziamos o conhecimento distribudo para que se torne inofensivo s estruturas vigentes da dominao. O conhecimento assim esvaziado, quando chega s camadas populares, no serve mais transformao social, mas apenas ao ajustamento ideolgico. Assistimos tecnicizao progressiva do saber e consolidao de subjetividades marcadas pela racionalidade tecnolgica. Caminhamos para aquilo que Adorno chamou de mundo administrado e no sem a grande contribuio de uma pseudoformao administrada capaz de produzir as subjetividades adequadas atual sociedade de consumo.

Alm disso, so notveis as ntimas relaes que podem ser feitas entre o esvaziamento dos contedos e a subjetividade cnica, como descreve Hegel (18--/1974):Outra expresso da negatividade irnica reside na afirmao da vacuidade do concreto, do moral, de tudo o que rico em contedo, na afirmao da nulidade de tudo o que objetivo e possui um valor imanente. Quando o eu adota este pondo de vista, tudo lhe parece mesquinho e vo, a no ser a sua prpria subjetividade que, isolada, fica tambm vazia e v. Por outro lado, o eu pode no se sentir satisfeito com a fruio de si prprio, achar-se incompleto e sofrer a exigncia de qualquer coisa firme e substancial, de interesses essenciais e precisos. Disso resulta uma situao infeliz e contraditria, com o sujeito a desejar a verdade e a objetividade mas impotente para se arrancar ao seu isolamento, sua fuga, quela interioridade abstrata e insatisfeita. (p.142)

Nesta poca de acelerado esvaziamento dos contedos dos cursos de formao, de fundamental importncia marcar a responsabilidade daqueles professores que carregam e constituem, em si mesmos, a memria viva de uma Universidade que se quer deixar no passado esquecida para a mais imediata comercializao e consumo acrticos de cursos pasteurizados. A memria de outros cursos possveis tem valor poltico de resistncia no por seu aspecto nostlgico, mas porque sabemos o quanto que o salto para o futuro, passando por cima das condies do presente, aterrissa no passado (ADORNO, 1962/1996, p.48).

Enfim, se a ruptura com a racionalidade cnica parece impossvel, ento precisamos dar um estatuto poltico categoria do impossvel, o que no podemos fazer sem paixo e romantismo. Afinal, segundo Hegel (apud LALANDE, 1996), nunca nada de grande foi cumprido ou poderia s-lo sem as paixes. uma moralidade morta, e mesmo freqentemente uma moralidade muito hipcrita, a que se eleva contra a paixo pelo simples fato de ser uma paixo(p.782).

No contexto poltico teoricamente sustentado no qual estamos trabalhando importante no cedermos ao impossvel como se este fosse a ideologia de uma outra realidade possvel, afinal:

A ideologia o sonho impossvel, no apenas em termos de superar a impossibilidade, mas em termos de sustent-la de uma forma aceitvel. Ou seja, a idia de superao sustentada como um momento adiado de reconciliao, sem que seja preciso passar pela dor da superao como tal. (DALY, 2004/2006, p.20)

Precisamos, portanto, enfrentar o desamparo resultante da morte do deus-mercado e do esvaziamento da f no existente. Noutros termos, opor falncia da crtica a falncia da f, o que o mesmo que substituir a renncia ao gozo seguida de uma aposta na contabilizao total do mesmo pela perda de gozo e a tica do desejo como prope a psicanlise pela qual nos orientamos. Mas precisamos ter cuidado: se a psicanlise afirma, a partir da experincia clnica, que h uma ordem de gozo que impossvel, isto no pode ser tomado como uma impossibilidade poltica de transformao social. A poltica da resignao aquela que sustenta o gozo total mediante a negao de sua impossibilidade, mas isto muito diferente da poltica do desejo que, por permitir-se a queda das iluses de gozo, posiciona-se frente ao impossvel em sua condio de devir. O impossvel no pode ser negado, mas tambm no deve ser afirmado de modo conformista. De uma perspectiva poltica podemos formular que o desejo justamente o afeto que nos leva a arriscar o impossvel.Na cultura ps-moderna de hoje, a idia do impossvel tende a ser canalizada para uma linguagem de transitoriedade, parcialidade, precariedade e assim por diante. Todo gesto, de certo modo, j desmentido por um sentimento de ironia, artificialismo e superao. O problema, portanto, que o entusiasmo ps-moderno com a impossibilidade presta-se, com demasiada facilidade, a um tipo de poltica que se torna, ela mesma, excessivamente parcial e provisria, e na qual a ambio poltica j limitada por seu prprio senso de limitao como tal. Em outras palavras, o perigo potencial ficarmos com uma poltica que se detenha no nvel da impossibilidade, sem jamais tentar como que possibilitar o impossvel. (DALY, 2004/2006, p.22)

Podemos antecipar as crticas de utopia que nos sero direcionadas por nossa posio em relao defesa de um impossvel. Mas defendemo-nos lembrando o que afirma Jameson (2004/2006):

[...] o declnio da utopia um sintoma histrico e poltico fundamental que, por si s, merece um diagnstico [...]. De um lado, esse enfraquecimento do senso histrico e da imaginao da diferena histrica que caracteriza a ps-modernidade est paradoxalmente entrelaado com a perda daquele lugar alm de toda histria (ou depois do seu final) que chamamos de utopia. De outro lado, hoje bastante difcil imaginar algum programa poltico radical sem o conceito de alternncia sistmica, de uma sociedade alternativa, que apenas a idia de utopia parece manter vivo, ainda que de modo dbil. claro que isso no significa que, ainda que consigamos reviver a prpria utopia, os contornos de uma poltica prtica nova e eficaz para a poca da globalizao vo se tornar visveis de imediato; mas apenas que jamais chegaremos a ela sem isso. (p.160)

A utopia ou o impossvel so, pois, histria enquanto potencialidade. a histria em seu prprio devir. a dialtica, enfim, que precisamos recuperar trazendo poltica a teoria que ela, mais do que nunca, revela precisar. E, nesta perspectiva, s uma coisa pode ser pior do que uma psicologia sem dialtica: cursos de psicologia sem teoria.

E aqui vale voltarmos ao apelo apaixonado razo que encontramos na insistncia em se apontar os compromissos da psicologia com a dominao. O que fazermos quando o apelo razo se revela infrutfero? Aqui nos recordamos de uma citao de Maar (2007):

Urge criticar a instrumentalizao conservadora de intelectuais pelo status quo, esta, sim, irm do fascismo. Todos ns, sensveis em relao aos outros, partilhamos o sentimento de horror em relao a crimes brbaros. Mas isso no significa contrapor sensibilidade e razo. Ao contrrio, precisamos de mais, e no menos razo.

E nas palavras de Adorno (1959/1972) temos:[...] agarrar-se formao cultural depois que a sociedade a privou de sua base pois a cultura carece de toda outra possibilidade de sobreviver fora da auto-reflexo crtica sobre a pseudocultura, na qual se converteu necesariamente . (p.174)

Assim, quando nos deparamos com a impossibilidade da razo, o que precisamos justamente de mais razo!

Cabe pensarmos o quanto a modernidade, em si mesma, romntica. Abrir mo da universalidade que ela sustenta dar vitaminas ao cinismo, que ps-moderno e no precisa mais de verdade alguma. No deve ser toa que os cnicos desprezam o romantismo... Vale lembrarmos que as mais severas crticas vida moderna tm a imperiosa necessidade de recorrer ao modernismo, para nos mostrar em que ponto estamos e a partir de que ponto podemos comear a mudar nossas circunstncias e a ns mesmos (BERMAN, 1982/1986, p.124). Em outro lugar dissemos que[...] no h possibilidades de imaginao se no houver encantamento. Num mundo totalmente desencantado a fantasia torna-se uma mentira sem sabor. Onde tudo administrado, imaginar perder tempo. Por isso a projeo artstica no pode s ser pensada sob o ponto de vista tcnico, mas precisa compreender um momento no qual o artista se deixa perder no arcasmo das experincias imediatas com deuses e magias. (RAMOS, 2004, p.174)

Ainda em defesa do esprito romntico como atualmente necessrio sustentao de um ariscar o impossvel, no podemos deixar de citar Adorno (1965/1983), para quem a idiossincrasia do esprito lrico contra a prepotncia das coisas uma forma de reao coisificao do mundo, dominao de mercadorias sobre homens que se difundiu desde o comeo da idade moderna e que desde a revoluo industrial se desdobrou em poder dominante da vida (p.195).

O cinismo a subjetividade que resulta do mundo desencantado. O sujeito do mundo desencantado aquele que no mais capaz de desejar, mas que, no entanto, goza com a forma pura a que se reduz tudo que se deixa tomar totalmente pelo desencanto. O sujeito desencantado o sujeito vazio, isto , um no-sujeito, como podemos compreender em Hegel (18--/1974), que antecipou a subjetividade do ironista que nega o romantismo:Mas a ironia, que prpria da individualidade genial, consiste na autodestruio de tudo o que nobre, grande e perfeito, de modo que a arte fica reduzida, at em suas produes objetivas, representao da subjetividade absoluta, visto que tudo quanto para o homem tem valor e dignidade se revela inexistente aps a sua auto-destruio. Razo essa para que se no tome a srio, no s a justia, a moral e a verdade, mas tambm o sublime e o melhor que, ao manifestarem-se nos indivduos, nos seus caracteres e suas aes, a si prprios se desmentem e destroem, isto , no passam de uma ironia de si prprios. (p.143)

diante do impossvel que nos vemos quando nos perguntamos como atingir os cnicos. Talvez ainda apostemos numa resposta que possa alcanar quem j cruzou essa fronteira do cinismo, o que no quer dizer que ns no vejamos resistncia na formao possvel daqueles que no cruzaram. No perdemos o encantamento, mas no opomos a sensibilidade razo.

H, naquilo que chamamos de aposta no gozo, todos os elementos de uma utopia da resignao, enquanto que, ao apostarmos no sujeito do desejo, sustentamos aquilo que Lukcs (1934/1992) chamou de tendncia epopia. A f submissa e moralizante do primeiro caso se ope ao esprito combativo e pico do segundo. O individualismo exacerbado do cnico, o interesse exclusivo por si mesmo que o torna incapaz de identificar-se com as misrias da humanidade em que se insere, compensado pela inesgotvel dependncia do Outro que dita os nomes, as fontes, as regras e os limites de sua pouca satisfao ou, como descreve Hegel (18--/1974), a insatisfao que engendra um estado mrbido, o de uma bela alma a morrer de tdio (p.142). Por outro lado, a tendncia epopia

[...] desperta, nas massas mais amplas, energias at ento deformadas ou adormecidas, forjando nelas homens de valor, conduzindo-os ao que revela todas as qualidades que eles mesmos ignoravam [...]. As particularidades individuais destes homens consistem, ento, no atualizar, de modo claro e determinado, os elementos de universalidade da vida social da que, progressivamente, eles tomem as caractersticas do heri pico. (LUKCS, 1934/1992, p.187)

Por fim perguntamos: pode a psicologia e seus cursos de formao, tal como esto organizados, transformar cnicos em heris picos? toda uma sociedade que precisamos tirar das latas de lixo da cultura descartvel resultante do consumismo imperativo: de que modo a psicologia pode contribuir com este processo?

Ao invs da aposta resignada da f, a tendncia epopia do romantismo. Mais encanto e mais razo! Esta a mensagem que queremos deixar na garrafa que aqui jogamos ao mar...REFERNCIAS

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No pretendemos, neste trabalho, definir exaustivamente o que entendemos por cinismo. Por ser um texto com um propsito mais poltico do que acadmico, preferimos deixar que o conceito de cinismo possa ser extrado da constelao em que se encontra, a partir da crtica s diferentes perspectivas do objeto que abordamos. Para a noo de constelao sugerimos Adorno (1966/1992).

Sigla para Instituio de Ensino Superior. Sigla ironicamente adequada pelo carter submisso e colonizado do sim que ela deixa atravessar, em oposio ao termo Universidade, que preferimos deixar guardada para marcar um momento histrico da formao que ao nosso ver no existe mais.

Vale notarmos que se o capitalismo se sustenta na confiana porque ele est prximo da religio: seu suporte a f e no a razo.

No inoportuno lembrarmos o que disse Lacan (1975/2005): As coisas so feitas de esquisitices. Talvez seja um caminho pelo qual se possa esperar um futuro da psicanlise ela devia se dedicar suficientemente esquisitice (p.64).

Agradeo Maria Helena Souza Patto por esta referncia e pela traduo do trecho citado.

A traduo livre nossa.

A traduo livre nossa.

No julgamos contraditrio um apelo apaixonado razo, pois a paixo no necessariamente irracional, assim como o mundo desencantado no se revelou mais livre e mais humano, mas regrediu barbrie.

A traduo livre nossa.

Melhor dizendo, no o cinismo que ps-moderno o cinismo burgus , mas o ps-modernismo que cnico.

Observemos que se trata, antes, de supor um sujeito para o desejo do que de cristalizar uma figura idealista de sujeito desejante. Isto , orientados pela tica da psicanlise, postulamos o sujeito como efeito do desejo e no como senhor do mesmo.

Segundo a definio de Hegel (18--/1974, p.142): tal a significao geral da ironia divina: consiste ela na concentrao do eu, no eu que rompe todos os laos e s pode viver na felicidade que lhe oferece a fruio de si prprio.

No sentido descrito por Lukcs pode haver expresso poltica mais romntica e pica do que a conclamao final do Manifesto do partido comunista?

Os comunistas no se rebaixam a dissimular suas opinies e seus fins. Proclamam abertamente que seus objetivos s podem ser alcanados pela derrubada violenta de toda a ordem social existente. Que as classes dominantes tremam idia de uma revoluo comunista! Os proletrios nada tm a perder nela a no ser suas cadeias. Tm um mundo a ganhar.

PROLETRIOS DE TODOS OS PASES, UNI-VOS! (MARX & ENGELS, 1848/s.d., p.47)