7
Considerações sobre a interdisciplinaridade como necessidade no campo da Educação Esméria de Lourdes Saveli 1 RESUMO O presente texto tem por objetivo discutir criticamente a posição assumida por FAZENDA no seu livro: Interdisipinaridade: História, Teoria e Pesquisa. Campinas:Papirus,1995. Palavras-chave: interdisciplinaridade, educação 1 Docente do Deptº de Educação da Universidade Estadual de Ponta Grossa e Doutoranda em Educação/UNICAMP- Campinas A professora Ivani Catarina Arantes Fazenda é autora de mais de uma dezena de livros na área da edu- cação. A interdisciplinaridade e a metodologia de pesquisa educacional constituem o foco de suas investiga- ções. Coordena, desde 1986, o Nú- cleo de Estudos e Pesquisas sobre Interdisciplinaridade na PUC-SP, onde já foram produzidos cerca de quarenta trabalhos, entre dissertações de mestrado e teses de doutoramento. Interdisciplinaridade: História, Teoria e Pesquisa é o 13º livro da autora. O referido livro está organizado por vários textos produzidos, pela autora, entre os anos de 75 a 94, apre- sentados em congressos, conferênci- as e ou publicados em revistas. Essa organização permite uma leitura não seqüencial da obra, já que os textos são independentes um do outro, e muitas discussões se repetem ao lon- go dos diversos textos, o que compro- mete uma certa unidade do livro. Inicialmente, a autora delineia ao leitor a sua trajetória acadêmica in- Olhar de professor, Ponta Grossa, 2 (2):207-213, nov. 1999.

Consideracoes Sobre a Interdisciplinaridade e Educacao

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Consideracoes Sobre a Interdisciplinaridade e Educacao

Considerações sobre ainterdisciplinaridade como necessidade

no campo da Educação

Esméria de Lourdes Saveli1

RESUMO

O presente texto tem por objetivo discutir criticamente a posição assumidapor FAZENDA no seu livro: Interdisipinaridade: História, Teoria e Pesquisa.Campinas:Papirus,1995.

Palavras-chave: interdisciplinaridade, educação

1 Docente do Deptº de Educação da Universidade Estadual de Ponta Grossa e Doutoranda emEducação/UNICAMP- Campinas

A professora Ivani CatarinaArantes Fazenda é autora de mais deuma dezena de livros na área da edu-cação. A interdisciplinaridade e ametodologia de pesquisa educacionalconstituem o foco de suas investiga-ções. Coordena, desde 1986, o Nú-cleo de Estudos e Pesquisas sobreInterdisciplinaridade na PUC-SP,onde já foram produzidos cerca dequarenta trabalhos, entre dissertaçõesde mestrado e teses de doutoramento.Interdisciplinaridade: História,Teoria e Pesquisa é o 13º livro da

autora.O referido livro está organizado

por vários textos produzidos, pelaautora, entre os anos de 75 a 94, apre-sentados em congressos, conferênci-as e ou publicados em revistas. Essaorganização permite uma leitura nãoseqüencial da obra, já que os textossão independentes um do outro, emuitas discussões se repetem ao lon-go dos diversos textos, o que compro-mete uma certa unidade do livro.

Inicialmente, a autora delineia aoleitor a sua trajetória acadêmica in-

Olhar de professor, Ponta Grossa, 2 (2):207-213, nov. 1999.

Page 2: Consideracoes Sobre a Interdisciplinaridade e Educacao

208

formando-o que iniciou a pesquisasobre a interdisciplinaridade no co-meço da década de 70 e que em 1990,debruçou sobre os caminhos percor-ridos, para uma reflexão crítica, quelhe possibilitou perceber alguns gan-hos e a indicação de novas direções.

Segundo a autora, o seu trabalhode pesquisa tem lhe indicado que épossível a construção de uma única,absoluta e geral teoria da interdisci-plinaridade contudo, é fundamentalcompreender o movimento pelo qualos estudiosos da interdisciplinaridadetêm convergido nas três últimas dé-cadas. Aponta que o objetivo do pre-sente trabalho será explicitar as facese contradições desse movimento.

A primeira preocupação, da auto-ra, é esclarecer ao leitor que em to-dos os teóricos, pesquisados por ela,que tratam da interdisciplinaridade,foi encontrada a discussão sobre anecessidade da superação da dico-tomia ciência/existência, no trato daquestão. A categoria TOTALIDADEé a explicitada, pela autora, como fun-damental para pensar a interdis-ciplinaridade. Afirma, ainda, quemuitos estudiosos têm proclamadouma verdadeira crise das ciências.Essa posição exige que qualquer ati-vidade interdisciplinar, seja ela depesquisa ou de ensino, requer o mer-gulho nas questões epistemológicas

mais fundamentais e atuais. Para aautora, o exercício da interdisci-plinaridade facilitaria o enfrentamentodessa crise do conhecimento e dasciências.

Ela propõe como caminho a serpercorrido, para compreender as incer-tezas e as dúvidas, revisitar Sócrates,aquele que primeiro colocou a dúvi-da: “Conhece-te a ti mesmo. Conhe-cer a si mesmo é conhecer em totali-dade, interdisciplinarmente.”(p.15).A autora, constrói o seu discursoargumentativo, partindo do princípiode que a totalidade só é possível pelabusca da interioridade. Afirma: “Doconhecimento de mim mesmo ao co-nhecimento da totalidade.”(p.15).Aponta a interioridade como um exer-cício de humildade onde o sujeito par-tindo do conhecimento interior buscao conhecimento exterior, do mundo.

Penso, que essa argumentação,reduz a interdisciplinaridade a umasubjetividade voluntarista, caracterís-tica das filosofias do sujeito2 . Não égratuitamente que ela se apóia emSócrates, nesse caso a interdisci-plinaridade é tomada numa concepçãoa-histórica onde se desconsidera a ten-são entre o sujeito pensante e as con-dições objetivas para o pensamento.

É importante ter claro, que a cons-trução histórica do conhecimento exi-ge a relação tensional entre o objeto,

2 A filosofia do sujeito não é articulada/elaborada por nenhuma escola/tendência/corrente filosó-fica específica. Ela põe-se de fato, em várias acepções. Grosso modo caracteriza-se por privilegi-ar a ação do sujeito sobre o objeto , de modo a tornar o sujeito um absoluto na construção doconhecimento e do pensamento.

Page 3: Consideracoes Sobre a Interdisciplinaridade e Educacao

209

o sujeito pensante e as condições ob-jetivas. Para resolver a questão doconhecimento objetivo a autora anco-ra a sua posição no pensamento deDescartes, na assertiva: Penso, logoexisto. Justifica que a busca da totali-dade leva o conhecimento ao caos.Esse todo caótico precisa ser ordena-do, as dúvidas precisam ser compro-vadas, testadas e avaliadas, o que exi-ge a busca de um paradigma filosófi-co, onde a razão para olhar o real éponto fundamental e não há espaçopara a subjetividade que permaneceadormecida. Nessa abordagem filosó-fica o mim mesmo, o eu, o sou sãoreduzidos ao penso, o que quer dizerque somente conheço quando penso.

A autora diz que a subjetividadeé despertada pela Psicologia, ciênciacriada no início do século XX, quenão dá conta de resolver o impasseda crise da ciência pois ela éconstruída a partir de critérios clássi-cos da objetividade, assim radicalizaa polaridade ciência/existência. Con-tudo, afirma que a superação dessadicotomia já se anuncia como possi-bilidade em alguns segmentos dasnovas ciências, apesar da permanên-cia de alguns equívocos teóricos. Namedida em que as ciências avançam,mais explícitas vão se tornando as hi-póteses da interdisciplinaridade. Nes-se ponto, é interessante observar quea interdisciplinaridade é colocada,pela autora, como saída para resolver

a questão da produção do conheci-mento científico.

O movimento vivido pela inter-disciplinaridade é apresentado, pelaautora, subdividido em três décadas:1970, 1980, 1990.

• 1970, momento em que se par-tiu para uma construção epis-temológica da interdisciplinaridade,caracterizado pela busca de umaexplicitação filosófica.

Neste período, os pesquisadoresprocuravam uma definição de inter-disciplinaridade e esta década pode sergrosseiramente indicada como a déca-da da estruturação conceitual, cuja pre-ocupação fundamental era a explici-tação terminológica que implicava emcompreender a palavra “interdis-ciplinaridade” nos seus aspectos se-mântico e ortográfico.3

• 1980, momento para aexplicitação das contradições episte-mológicas decorrentes da construçãodo período anterior, caracterizadopela busca de uma matriz sociológi-ca. Os pesquisadores tentavamexplicitar um método para a interdis-ciplinaridade.

• 1990, momento atual em que setenta construir uma nova episte-mologia, a própria interdiscipli-naridade. Caracterizado pela busca deum projeto antropológico, onde separta para a construção de uma teoriada interdisciplinaridade.

Apesar da autora, para fins didáti-

3 No Brasil a palavra aparece escrita de duas formas: interdisciplinaridade (traduzida do IngLêse Francês) e interdisciplinariedade ( traduzida do Espanhol).

Page 4: Consideracoes Sobre a Interdisciplinaridade e Educacao

210

cos, caracterizar esses três momentosde forma distinta, penso que as bus-cas em cada período estão imbricadas,ocorrendo apenas a ênfase de deter-minado aspecto o que leva um momen-to a se diferenciar do outro.

O movimento da interdisci-plinaridade surge na Europa, especi-ficamente França e Itália, em meadosda década de 60, época em que ocor-rem os movimentos estudantis reivin-dicando um novo estatuto de Univer-sidade e de Escola. No bojo dessemovimento, alguns professores pro-põem o rompimento com uma formade educação que privilegiava o “capi-talismo epistemológico”, onde a Ci-ência era multipartida o “que incita-va o olhar do aluno numa única,restrita e limitada direção”(p.19),postura denominada por .Japiassú de“patologia do saber4 ”, é desse autor aprimeira produção significativa sobreo tema no Brasil.

É importante registrar, que as dis-cussões chegam no Brasil na décadade 60 com sérias distorções. A pala-vra interdisciplinaridade, neste perí-odo, virou modismo e o vocábulopassou a transitar por todos os textosdas reformas educacionais empreen-didas em 1968 e 1971. No entanto,não houve um avanço da compreen-são das implicações teóricas dainterdisciplinaridade. Ainda, na dé-cada de 70, aparece o trabalho de dis-sertação de mestrado da autora, cuja

discussões permaneceram mais notrato das questões à conceituação dovocábulo do que à metodologia. Nadécada de 80, havia inúmerasdicotomias que, segundo a autora,precisariam ser enfrentadas. Entre ela:teoria/prática, verdade/erro, certeza/dúvida, processo/produto, real/simbó-lico, ciência/arte. Essas dicotomiasconstituíram–se em objeto de reflexãoe pesquisa da autora. Foram elas quepassaram a orientar todo o processoinvestigativo por ela produzido.

FAZENDA afirma que “os anos90 representam o ápice da contra-dição para estudos e pesquisas so-bre interdisciplinaridade. “(p.34).Essa contradição é marcada pela pro-liferação indiscriminada das práticasintuitivas. O número de projetos edu-cacionais que se intitulavam interdisci-plinares cresceu, numa progressãogeométrica, surgiam da intuição ou damoda, sem intenções explícitas, apoi-ando-se numa literatura provisória di-fundida. Para reversão desse quadroum dos caminhos abertos, pela pesqui-sadora/autora, foi a criação do Núcleode Estudos e Pesquisas composto demestrandos e doutorandos da PUC/São Paulo. Neste espaço, há desen-volvimento de pesquisas que procu-ram explicitar o caminho percorridoem práticas interdisciplinares. A pro-dução acadêmica desse núcleo é apre-sentada ao leitor no último capítulo dolivro, que traz um resumo das pesqui-

4 Ver JAPIASSÚ, J. Interdisciplinaridade e Patologia do saber. Rio de Janeiro: Imago,1976.

Page 5: Consideracoes Sobre a Interdisciplinaridade e Educacao

211

sas desenvolvidas pelo grupo. O leitorlê o capítulo num fôlego só e se im-pressiona , pelo jeito, muito singular,como Ivani Fazenda trata seusorientandos e o seu objeto de estudo.O entusiasmo é tão eloqüente que dá aimpressão que a questão “interdiscipli-naridade” passou para a autora para ocampo da fé. A sua postura “holística”está prenhe de religiosidade.

Esse holismo fica bem marcadoquando a pesquisadora/autora sugereo mergulho no interior de cada um,para a busca da metáfora que vai per-mitir traçar relações para compreen-der o real. Penso, que esse posi-cionamento, é também um mergulhona filosofia do sujeito. Por mais quea autora defenda a posição dealteridade como saída da polaridadeentre objetividade e subjetividade, elatende, quase sempre, a valorizar opolo subjetivo.

A professora Ivani Fazenda dis-cute a categoria IDENTIDADE, como intuito de delinear o perfil do pro-fessor que tem uma postura interdis-ciplinar. Esse professor tem comocaracterísticas:

a) o gosto por conhecer;b) o compromisso com seus alu-

nos;c) a marca da solidão e da resis-

tência;d) trabalhar muito.

Para a autora

Competência, envolvimento, com-promisso marcam o itinerário des-

se profissional que luta por umaeducação melhor, afirmando-a di-ariamente (p.49).

Essas características trazem a mar-ca da subjetividade, parece que tudotende a ficar na vontade do sujeito eno esforço individual. Esse professorse diferencia dos demais por “seuempenho pessoal”. Ele trabalha mui-to , e seu trabalho acaba por incomo-dar os que têm a acomodação por pro-pósito. Pergunto: e as condições ob-jetivas? Não contam?

Um outro ponto, que não descartaessa marca, da vontade e do esforçopessoal, é a crença da autora de que otrabalho interdisciplinar exige a neces-sidade de um projeto em parceria, co-letivo e que leve em consideração pro-jetos pessoais de vida. Aqui, também,há o risco de transformar a interdis-ciplinaridade num grande sopãoepistemológico e metodológico, isto é,numa mistura de conteúdos ou méto-dos de diferentes disciplinas ou mes-mo confundir interdisciplinaridadecom técnica didática.

Penso, que a base para açõesinterdisciplinares, não pode estar naconsideração de que as ciências sãofragmentadas, mas na consideração deque interdisciplinaridade é forma deorganização do mundo. A linguagemé que possibilita essa organização,pois os homens na busca de satisfazersuas múltiplas e sempre históricas ne-cessidades de natureza biológica, in-telectual, cultural, afetiva, estética es-tabelecem as mais diversas relações

Page 6: Consideracoes Sobre a Interdisciplinaridade e Educacao

212

sociais pela linguagem. Portanto, elaé categoria fundamental da interdis-ciplinaridade.

A autora discute esse ponto, to-mando a prática de leitura como for-ma de passar de um saber setorizadoa um conhecimento integrado, a umaintersubjetividade. Assim, a leitura étomada no sentido de comunicação,como uma intersubjetividade, quepossibilita a troca de experiências.Afirma que estabelecemos

o valor da linguagem como elabo-radora da história e do própriohomem, ressaltamos o papel daleitura em tornar o homem maisconsciente, mais responsável, maisdinâmico, interferindo no proces-so da vida. (p.59).

O conceito de leitura, explicitadopela autora, é bem abrangente, atualela não ignora que a leitura é uma ati-vidade eminentemente polimorfa quedesencadeia processos interiores quepermitem ao leitor penetrar nas entra-nhas dos fenômenos da realidade,num processo de significação que pro-voca mudanças nas representações doleitor. Nesse sentido, a leitura permi-te relações entre o mundo subjetivo,isto é o conhecimento que está por trásdos olhos e o mundo objetivo que sãoas informações diante dos olhos. Ca-minhando nessa direção, a autoraexpressa o valor da leitura quando dizque “a leitura é o veículo por exce-lência por meio do qual o homempode se expressar e conhecer a ex-

pressão do outro. “(p.58).Finalizando, penso que é indiscu-

tível a contribuição teórica-práticadesta obra de Ivani Fazenda para aeducação em função do interesse erelevância que os professores e a pró-pria pesquisadora dá ao tema. É im-portante registrar, ainda, que IvaniFazenda é considerada a profissionalda educação, no Brasil, que tem maisrefletido em torno do objeto inter-disciplinaridade. No entanto, é preci-so descartar a crença de que a interdis-ciplinaridade é a formula mágica paratirar a educação da caminhada em di-reção ao abismo ou até mesmo, a so-lução para todos os seus problemas.

Isso vale dizer, que não se podeconsiderar a interdisciplinaridade se-parada da história. Não se pode es-quecer que o processo de fragmenta-ção do conhecimento caminhou ladoa lado com o processo de fragmenta-ção do trabalho. Na formação do pro-fessor o conhecimento foi fragmen-tado em diversas áreas. Nesse senti-do, não se justifica lamentar a unida-de perdida, até porque o genérico e oespecífico não são excludentes. Ainterdisciplinaridade pode ser con-quistada mediante uma atuação indi-vidual ou coletiva, tendo como pontode partida a criação de espaços depesquisa, seja na escola de ensino fun-damental ou na Universidade. Partin-do desse ponto de vista, a interdis-ciplinaridade é tomada como princí-pio válido para a produção do conhe-cimento e mais concretamente para apesquisa, rompendo com a visão in-

Page 7: Consideracoes Sobre a Interdisciplinaridade e Educacao

213

gênua que trata a interdisciplinaridadecomo método didático.

REFERÊNCIASBIBLIOGRÁFICAS

1 FAZENDA, Ivani C. Arantes.Interdisciplinaridade: His-tória, Teoria e Pesquisa.Campinas: Papirus, 1995.

2 JANTSCH, Ari Paulo et BIAN-CHETTI, Lucídio. (Orgs).Interdisciplinaridade - Paraalém da filosofia do sujeito.São Paulo: Vozes, 1997.