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 Cooperação Brasil-África para o desenvolvimento: caracterização, tendências e desafios Lídia Cabral Dezembro de 2011 CINDES é o coordenador da LATN no Brasil LATIN AMERICAN TRADE NETWORK apoio 

Cooperação Brasil-África para o desenvolvimento: caracterização, tendências e desafios Lídia Cabral 2011

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Cooperação Brasil-África para odesenvolvimento: caracterização,tendências e desafios - Lídia Cabral

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  • Cooperao Brasil-frica para o desenvolvimento: caracterizao, tendncias e desafios

    Ldia Cabral Dezembro de 2011

    breves cindes59

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    LATIN AMERICANTRADE NETWORK

    apoio

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    Ldia Cabral*

    Cooperao Brasil-frica para o desenvolvimento: caracterizao, tendncias e desafios

    Com uma economia em expanso e uma democracia estvel, o Brasil tem-se esta-belecido como uma potncia global, a par da China e da ndia. A agenda diplo-mtica intensa posta em prtica durante a administrao do anterior Presidente da Repblica, Lula da Silva, levou a uma expanso significativa da presena do Brasil no mundo. Tradicionalmente, o Brasil vinha concentrando as suas relaes comer-ciais e diplomticas dentro do continente americano. Porm, nos anos recentes, o pas tem ampliado o seu campo de atuao e influncia, particularmente do outro lado do Atlntico. O Brasil tem gradualmente emergido como um ator cada vez mais expressivo no continente africano. A sua presena assinala-se como fonte de investimento privado, parceiro comercial, aliado em iniciativas diplomticas entre potncias do Sul, e fonte de conhecimento tcnico e cientfico em vrios domnios.

    As ligaes histricas e afinidades culturais tornam as relaes entre o Brasil e o continente africano particularmente fluidas, especialmente com os pases com os quais partilha a lngua portuguesa. Os cinco pases lusfonos na frica1 so os principais destinatrios da cooperao tcnica e os investimentos por parte da indstria brasileira tm-se multiplicado, especialmente nas reas de construo, petrleo e minerao (ABC 2011; Iglesias e Costa 2011).

    1. Introduo

    O objetivo do projeto de pesquisa do Centro de Estudos de Integrao e Desenvol-vimento (CINDES) em que o presente estudo se insere o de documentar e ana-lisar as relaes Brasil-frica nas suas vrias vertentes: comrcio, investimento privado e cooperao para o desenvolvimento. Este estudo debrua-se sobre a coo-perao, um tema ainda relativamente novo, quer ao nvel do panorama poltico, quer ao nvel dos debates pblicos e da pesquisa dentro do Brasil.

    Este estudo visa contribuir para o aprofundamento do conhecimento e a promoo da anlise crtica do percurso do Brasil nesta nova rea de atuao, concentrando--se especificamente nas relaes de cooperao com frica.

    O texto est organizado em cinco sees. Seguindo-se a esta breve introduo, a segunda seo procede a uma caracterizao geral da cooperao brasileira para o desenvolvimento, fornecendo elementos de contextualizao, analisando o con-ceito de cooperao e descrevendo com algum detalhe dois tipos de cooperao praticados: a cooperao tcnica e formas de cooperao econmica e financeira que se comeam a intensificar. A terceira seo concentra-se nas relaes de coo-perao com frica, recorrendo-se experincia da cooperao na agricultura para ilustrar algumas das tendncias recentes. A quarta seo discute uma seleo de temas que se julga oportuno destacar como contribuio para uma reflexo sobre os desafios e percursos a seguir no processo de maturao da cooperao brasileira como matria de poltica nacional. A quinta seo conclui com alguns comentrios finais.

    * Consultora do CINDES.

    1 Os cinco pases lusfonos na frica so: Angola, Cabo Verde, Guin-Bissau, Moambique e So Tom

    e Prncipe.

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    2.1. Breve contextualizao

    Ao longo dos ltimos anos, o Brasil tem-se afirmado internacionalmente como um provedor de cooperao para o desenvolvimento. O crescimento econmico, a estabilidade governamental e o dinamismo da poltica externa so fatores que tm propiciado a expanso do programa brasileiro de cooperao. A necessidade de abrir novos mercados e buscar oportunidades de investimento para a indstria nacional tm motivado o governo brasileiro na sua poltica de alargamento das relaes diplomticas. A poltica externa do Itamaraty tem tambm perseguido objetivos de outra natureza, nomeadamente uma maior influncia do Brasil em fruns internacionais e a afirmao do pas como potncia global. A cooperao para o desenvolvimento surge como instrumento da poltica externa, ajudando a consolidar as relaes bilaterais e reforando tambm o ncleo de pases no--alinhados no sentido de um reequilbrio de foras em escala global.

    A cooperao brasileira registrou crescimento acelerado ao longo do segundo mandato do Presidente Lula, fruto de uma poltica externa muito ativa e direcio-nada para a abertura de novas frentes diplomticas, particularmente ao nvel dos pases emergentes e em desenvolvimento da frica, sia e Mdio Oriente. No mbito das relaes Sul-Sul, o interesse pelo continente africano surge destacado na diplomacia presidencial de Lula, que v na frica no apenas uma responsa-bilidade moral e solidria, mas tambm um significativo potencial comercial e de aliana poltica (Matos 2011).

    2.2. Caractersticas gerais

    Um modelo em formao

    A cooperao para o desenvolvimento, do ponto de vista do provedor, ainda um conceito pouco desenvolvido dentro do Brasil. O Brasil continua a ser receptor de cooperao dos designados doadores tradicionais do hemisfrio norte2 e, at h pouco tempo, a cooperao prestada tinha apenas uma ocorrncia espordica. Como tal, a conceitualizao deste tipo de atividade est ainda em maturao.

    O panorama atual , porm, relativamente dinmico e a recente acelerao das ati-vidades de cooperao no exterior tem gerado necessidades de maior sistematiza-o e reflexo acerca do tema. Em 2010, o governo brasileiro realizou o primeiro levantamento de atividades de cooperao brasileira para o desenvolvimento inter-nacional. De forma complementar, e visando um pblico internacional, a Agncia Brasileira de Cooperao (ABC), entidade responsvel pela coordenao da coo-perao tcnica, produziu recentemente uma brochura descrevendo a cooperao tcnica e fornecendo ainda alguns dados acerca da cooperao bilateral e trilateral em diferentes regies do mundo (ABC 2011).

    Princpios orientadores e outras caractersticas do quadro institucional

    A solidariedade entre povos, o respeito soberania e a no interferncia nos assuntos internos dos pases parceiros destacam-se como princpios basilares da cooperao brasileira. Estes princpios decorrem das relaes histricas entre os pases do designado Sul e invocam o legado do Movimento dos Pases No Ali-nhados. Na linha de uma diplomacia solidria (IPEA et al, 2010), as autorida-

    2. Cooperao brasileira para o desenvolvimento: caracterizao

    2 O termo doador tradicional frequentemente utilizado na literatura para designar os pases membros

    da OCDE que tm um histrico relativamente mais longo como fontes de assistncia ao desenvolvimen-to e que subscrevem uma srie de princpios para melhorar a eficcia da ajuda (aid effectiveness). O ter-mo normalmente contrastado com o termo doador emergente, que se refere a economias emergentes que tm recentemente vindo a intensificar as suas relaes de cooperao.

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    des governamentais do Brasil preferem referir-se cooperao brasileira para o desenvolvimento como cooperao Sul-Sul, sinnimo de uma relao horizontal de benefcio mtuo que se pretende diferenciada de formas de cooperao verti-cal associadas aos pases do Norte, a cooperao Norte-Sul.3 Do mesmo tipo de posicionamento decorrem os princpios da resposta a demandas dos pases par-ceiros (frequentemente designado de abordagem demand driven) e da no con-dicionalidade, ou seja, da no imposio de condies em troca da prestao de assistncia ao desenvolvimento.

    Com a exceo dos princpios gerais acabados de mencionar, no existem orientaes polticas escritas e inequvocas acerca dos objetivos, prioridades e critrios de distribuio dos recursos para a cooperao. A cooperao para o desenvolvimento pratica-se ainda, num modo geral, de forma ad hoc e fre-quentemente em resposta s vicissitudes da diplomacia, o que dificulta o pla-nejamento de mdio prazo e compromete a previsibilidade das intervenes e a avaliao da eficcia da implementao.

    Uma outra caracterstica geral da cooperao brasileira a natureza segmentada do quadro institucional. H uma multiplicidade de instituies envolvidas direta-mente na cooperao e que operam de forma relativamente independente. A ABC a entidade mandatada para a coordenao da cooperao tcnica, apesar de algu-mas dificuldades nesta tarefa, mas h ainda outras modalidades de cooperao cuja direo poltica no est claramente definida.

    2.3. Definio, modalidades e abrangncia

    O estudo do IPEA supramencionado estabeleceu a seguinte definio de coope-rao brasileira para o desenvolvimento internacional: a totalidade de recursos investidos pelo governo federal brasileiro, totalmente a fundo perdido, no governo de outros pases, em nacionais de outros pases em territrio brasileiro, ou em organizaes internacionais, com o propsito de contribuir para o desenvolvi-mento internacional, entendido como o fortalecimento das capacidades de organi-zaes internacionais e de grupos ou populaes de outros pases para a melhoria das suas condies socioeconmicas (IPEA et al. 2010: 11).

    A partir desta definio, o estudo do IPEA identifica quatro modalidades de coo-perao brasileira para o desenvolvimento: (i) a assistncia humanitria; (ii) as bolsas de estudo; (iii) as contribuies para organismos internacionais e bancos regionais; e (iv) a cooperao tcnica.

    A Tabela 1 apresenta o volume de recursos destinado anualmente a cada modali-dade e a Figura 1 ilustra o peso relativo de cada uma delas.

    3 Este contraste na maior parte das vezes retrico. De fato, importante notar que os termos Sul-Sul e

    Norte-Sul so uma simplificao muito grosseira e, por vezes, podem ser mesmo deturpar a realidade. A cooperao Norte-Sul abarca uma variedade de doadores com diferentes polticas e formas de trabalhar. O mesmo acontece dentro da cooperao Sul-Sul: o prprio Brasil considera as suas prticas de coope-rao muito diferentes das da China.

    Tabela 1Cooperao brasileira para o desenvolvimento:

    volume anual de recursos segundo modalidade, 2005-9

    Fonte: IPEA et al. (2010)

    Modalidade de cooperao2005

    Milhes de Reais a preos constantes de 2009

    Assistncia humanitria 1.42006

    6.52007

    35.72008

    31.12009

    87.0Bolsas de estudo para estrangeiros 70.9 67.2 63.4 74.0 44.4Cooperao tcnica 35.1 39.0 40.0 61.5 97.7Contribuies para organismos multilaterais 378.3 607.0 501.2 479.1 495.1Total 485.8 719.9 640.5 645.9 724.4

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    At ao momento, o clculo da cooperao brasileira para o desenvolvimento no inclui formalmente a designada cooperao econmica e financeira, um conceito ainda em formulao mas que, para efeitos do presente estudo, inclui as seguintes modalidades: o perdo da dvida de outros Estados, as doaes em dinheiro e o crdito em termos concessionais.4 Porm, uma atualizao por parte do IPEA do estudo sobre a cooperao brasileira dever, de acordo com informao prestada pela ABC, incluir no clculo tambm estas formas de cooperao, nomeadamente os crditos concessionais brasileiros exportao.

    2.4. Cooperao tcnica

    Apesar do seu peso relativamente baixo no total de recursos para a cooperao internacional, que dominado pelas contribuies a organismos internacionais, a cooperao tcnica representa, em grande medida, a imagem de marca da coope-rao brasileira. A Figura 2 ilustra o acelerado crescimento desta modalidade ao longo dos anos recentes, quer em termos de volume de recursos quem tem termos de novos projetos iniciados anualmente.

    Os projetos e programas de cooperao tcnica brasileira consistem na transfern-cia de conhecimento, prticas e tecnologias relativas a diversas reas setoriais e temticas, visando o reforo de capacidades individuais e institucionais. Trata-se sobretudo de prestaes em espcie, sem transferncia de recursos financeiros pro-priamente ditos e sem intermediaes. A partilha, ou intercmbio, feita(o) dire-tamente pelos tcnicos das instituies brasileiras da especialidade, que trabalham nas reas selecionadas para a cooperao dentro do prprio Brasil.

    Esta modalidade de cooperao abrange um amplo leque de reas setoriais da admi-nistrao pblica e, nalguns casos, da iniciativa privada, destacando-se a agricultura, a sade, a educao e formao profissional, a segurana pblica, a gesto do meio ambiente e o desenvolvimento social. Estas so as reas em que polticas pblicas e investimentos privados tm sido considerados bem sucedidos dentro do Brasil.

    Mas apesar da sua amplitude temtica, a cooperao tcnica concentra-se forte-mente em torno de trs setores. No perodo de 2003 a 2010, cerca de metade do total de recursos contabilizados ao nvel desta modalidade destinaram-se a proje-tos nas reas da agricultura, sade e educao (Figura 3).

    Assistncia Humanitria5% Bolsas de estudo para estrangeiros

    10%

    Cooperao tcnica8%

    Contribuies para organismos multilaterais77%

    Figura 1Cooperao brasileira para o desenvolvimento:

    volume de recursos acumulados segundo modalidade, 2005-9

    Fonte: IPEA et al. (2010)

    Figura 2Cooperao tcnica: volume anual de recursos (2005-9)

    e novos projetos (2003-9)

    Fonte: IPEA et al. (2010) e ABC.

    20406080

    10045

    23 19

    69153 181

    256

    413

    20042003 2005 2006 20092007 20080 N

    mer

    o de

    nov

    os p

    roje

    tos

    Milh

    es

    de re

    ais

    (pre

    os

    de 2

    009) Volume de recursos (preos constantes 2009)

    Nmero de novos projetos

    5004003002001000

    4 O tema da cooperao econmica e financeira tratado com pormenor na seo 2.4.

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    Um grande nmero de instituies brasileiras est envolvida na prestao da coo-perao tcnica. Esta multiplicidade de atores no decorre apenas na amplitude temtica da cooperao, pois tambm ao nvel de reas setoriais individuais, a multiplicidade de atores considervel.

    Esta complexidade orgnica cria dificuldades de coordenao para a ABC, devido sua fragilidade institucional apesar de designada de agncia, formalmente, a ABC apenas um departamento do MRE, sem autonomia administrativo-finan-ceira. Uma dificuldade adicional prende-se ausncia de regulamentao espec-fica sobre a realizao de atividades de cooperao no exterior, que permita o fluxo de recursos associado a tais atividades.

    Apesar dos reconhecidos constrangimentos legais e administrativos, a reforma do quadro institucional de cooperao para o desenvolvimento continua uma incg-nita. Enquanto isso, porm, algumas mudanas vo ocorrendo de forma discreta nas abordagens e formas de trabalhar e que vo moldando e alterando o perfil da

    cooperao brasileira. Trs mudanas devem ser destacadas. Uma destas mudan-as diz respeito transformao progressiva da abordagem de cooperao tcnica. Aes pontuais, que at recentemente dominavam o portflio brasileiro, esto progressivamente dando lugar a projetos de maior volume e com um horizonte temporal mais amplo, designados de projetos estruturantes, que visam uma ao continuada de maior impacto e sustentabilidade institucional. Por outro lado, for-mas simples de capacitao de tcnicos esto dando lugar a projetos que visam objetivos mais abrangentes como a adaptao de polticas pblicas brasileiras ao contexto do pas parceiro. Uma outra mudana diz respeito ao surgimento de novas modalidades de cooperao bilateral, nomeadamente a prestao de crditos con-cessionais exportao de produtos brasileiros, associadas a atividades de coope-rao tcnica. Finalmente, a terceira mudana de destaque refere-se expanso da cooperao trilateral ou triangular, que consiste numa parceria a trs, envolvendo dois pases prestadores e um pas receptor.

    2.5. Cooperao econmica e financeira

    Cooperao econmica e financeira o termo genrico utilizado no Brasil para designar um conjunto de modalidades da cooperao bilateral que visam promo-o de objetivos de desenvolvimento e do lugar a uma movimentao de recursos financeiros na cooperao com o exterior. Nestas modalidades incluem-se: o per-do da dvida, o crdito s exportaes em termos concessionais e as doaes em dinheiro. No Brasil apenas as duas primeiras modalidades tm expresso na atu-alidade. As doaes em dinheiro constituem ainda uma ocorrncia excepcional.5

    O perdo da dvida consiste no perdo total ou parcial das dvidas de pases estrangeiros para com o Brasil. O perdo parcial pode incidir diretamente sobre o montante em dvida ou sobre as taxas de juros aplicadas. Os acordos de perdo da dvida pelo Estado brasileiro so submetidos aprovao do Senado Federal, sendo o Comit de Avaliao de Crditos ao Exterior (COMACE) a entidade res-

    Cultura1,7%

    Outros10,0% Agricultura

    21,9%

    Sade16,3%

    Educao12,1%

    Meio ambiente7,4%

    Segurana pblica6,3%

    Administrao pblica6,3%

    Desenvolvimento social5,3%

    Energia3,4%

    Desenvolvimento urbano2,4%

    Trabalho2,3%

    Indstria2,0%

    Gesto da cooperao2,0%

    Cincia e tecnologia1,7%

    Figura 3Cooperao tcnica: distribuio de recursos segundo reas temticas

    2003-2010

    Fonte: ABC (2011).

    5 H apenas registro de uma doao em dinheiro para o Paraguai, feita em carter extraordinrio.

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    ponsvel pela formulao de diretrizes para a poltica de recuperao dos crditos externos e o estabelecimento de parmetros para as renegociaes. Apesar de no ser membro permanente do Clube de Paris6, o Brasil segue os princpios e orienta-es deste frum no tratamento do perdo da dvida.

    Embora a informao sobre o perdo da dvida pelo Brasil seja, por princpio, do domnio pblico, dada a sua ratificao pelo Senado, no existem dados dispo-nveis acerca dos detalhes dos montantes perdoados e dos pases beneficiados. Numa publicao recente da ABC, estimava-se que o total do perdo concedido pelo Brasil entre 2005 e 2009 foi da ordem dos 474.2 milhes de dlares (ABC 2011).7 Sabe-se ainda que as atividades do COMACE se tm intensificado para dar resposta ao aumento significativo de operaes de perdo da dvida, sobretudo no continente africano Figura 4.

    O Comit de Financiamento e Garantia das Exportaes (COFIG) a entidade que estabelece os parmetros e condies para a concesso de assistncia financeira s exportaes e de prestao de garantia da Unio, sendo responsvel pelo acom-panhamento do Proex. Trata-se de um rgo colegiado integrante da Cmara do Comrcio Exterior (CAMEX) do Conselho do Governo, cuja Secretaria Executiva da responsabilidade do Ministrio do Desenvolvimento, Indstria e Comrcio Exterior (MDIC). O agente financeiro da Unio para a operacionalizao do Proex o Banco do Brasil.

    Os crditos concessionais incluem-se na modalidade de financiamento direto do Proex (Proex Financiamento), estando definido no Programa um teto de 25% para crditos desta natureza, sendo que em 2011 o oramento do Proex Financiamento totalizou 1.3 bilhes de reais.8 O grau de concessionalidade dos crditos definido pela taxa de juro anual (normalmente aplica-se uma taxa de 2% ou a Libor9, se esta for inferior a 2%), pelo perodo de carncia e pela longevidade do emprstimo. Dadas as condies oferecidas, o grau de concessionalidade dos crditos disponi-bilizados pelo Brasil de cerca de 35%.

    Para alm destes crditos concessionais, h outras linhas de crdito s exportaes. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico e Social (BNDES) uma fonte importante de crdito s exportaes brasileiras e tem expandido fortemente o seu portflio na frica. O BNDES afirma no fazer crdito concessional, dado que aplica uma taxa de juro sempre acima da Libor. Por outro lado, o principal pro-psito destes emprstimos o de estimular a insero de empresas brasileiras no mercado internacional e no o de promover a cooperao para o desenvolvimento de outros pases. Contudo, nalgumas operaes recentes desta entidade bancria, o Estado brasileiro assume o risco poltico dos crditos a certos pases, permitindo ao BNDES oferecer condies de crdito competitivas aos pases beneficirios. Uma nova modalidade praticada pelo BNDES, visando a comercializao no exterior de

    6 O Clube de Paris um grupo informal de pases credores cujo papel propor solues coordenadas

    e sustentveis para as dificuldades enfrentadas pelos pases devedores no pagamento das suas dvidas. http://www.clubdeparis.org/en/ 7 No foi possvel, porm, autora deste estudo a verificao das fontes utilizadas neste clculo.

    Figura 4Frequncia das reunies do COMACE para deliberao

    do perdo da dvida, 2009-2011

    Fonte: Diviso de Cooperao Financeira e Tributria, Ministrio das Relaes Exteriores (consultada em Novembro 2010).

    2009

    12345

    02010 2011

    Os crditos s exportaes em termos concessionais enquadram-se numa das componentes do Programa de Financiamento s Exportaes (Proex) do Governo Federal. O Proex foi institudo para promover as exportaes brasileiras, dando--lhes condies de financiamento equivalentes s do mercado internacional.

    8 Informao disponibilizada pela CAMEX.

    9 A Libor, London InterBank Offered Rate, uma taxa de juro de referncia para as transaes financei-

    ras internacionais.

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    bens industriais brasileiros de elevado valor agregado, o BNDES Exim Autom-tico. Uma particularidade desta linha de crdito que o BNDES assume no apenas o risco de crdito dos bancos parceiros no exterior mas tambm o risco poltico do pas do importador. Segundo dados da imprensa, os montantes de financiamento negociado para o Exim Automtico atingiram j um bilho de dlares.10

    A ABC procedeu recentemente a uma estimativa do crdito s exportaes de carter concessional, que indica um valor total de crdito concedido entre 2005 e 2009 de 1.7 bilhes de dlares (ABC 2011). Desconhecem-se os critrios e pres-supostos assumidos do clculo, mas o valor sugere que, para alm dos crditos concessionais do Proex, o clculo inclua outros tipos de crdito s exportaes, possivelmente parte dos crditos concedidos pelo BNDES.

    10 BNDES assume risco poltico em nova linha para exportao, Folha de S. Paulo, edio de 1 de

    Dezembro de 2011. 11 Dilma rev estratgia para a frica, Valor Econmico, edio de 8 de Novembro de 2011.

    3. Cooperao Brasil-frica: caractersticas e tendncias

    3.1. A importncia crescente da frica nas relaes diplom-ticas e econmicas do Brasil

    Tal como anteriormente mencionado, a frica tem especial destaque no atual panorama das relaes diplomticas e econmicas do Brasil. A rede de embaixa-das expandiu-se fortemente desde 2003 e as relaes diplomticas intensificaram--se de forma significativa. Neste perodo, o nmero de embaixadas brasileiras no continente africano mais do que duplicou, tendo sido abertas ou reabertas 19 novas embaixadas, elevando a representao brasileira em frica para um total de 35 embaixadas e 2 consulados (MRE 2011).

    Tambm as relaes econmicas com o continente se tm intensificado. O cresci-mento do comrcio bilateral Brasil-frica foi, entre 2002/02 e 2007/09, superior ao observado para o comrcio exterior brasileiro como um todo, aumentando o peso relativo da frica como parceiro comercial do Brasil (Costa e Veiga 2011). Os investi-mentos de empresas privadas brasileiras em pases africanos tm igualmente crescido (Iglesias e Costa 2011). Empresas como a Odebrecht, a Petrobras, a Vale, a Andrade Gutierrez e a Camargo Corra tm uma presena cada vez mais forte no continente.

    A evoluo da cooperao brasileira para o desenvolvimento reflete tambm esta crescente importncia da frica, quer ao nvel da cooperao tcnica, quer ao nvel da cooperao econmica e financeira. A recente criao pela Presidente Dilma do Grupo frica, um grupo interministerial que rene tambm especialis-tas e executivos do setor privado, visa precisamente associar vendas e investimen-tos brasileiros a programas de desenvolvimento local na frica, de forma a que as iniciativas empresariais deixem um legado aos africanos.11

    3.2. Cooperao tcnica com pases africanos

    A frica atualmente a principal regio destinatria da cooperao tcnica brasileira, tendo em 2010 representado 57% do total da execuo oramental desta modalidade (Figura 5). O continente registrou tambm o maior aumento de recursos no ltimo ano, tendo a execuo oramental mais do que duplicado entre 2009 e 2010 (Figura 6).

    frica$22,1 ; 57%

    Amrica Central, do Sul e Caribe$14,4 ; 38%

    sia e Oriente Mdio$2,1 ; 5%

    Figura 5Cooperao tcnica: distribuio geogrfica da execuo oramental 2010

    (milhes de dlares)

    Fonte: Fonte: ABC (2011).

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    O Brasil mantm projetos de cooperao tcnica com 38 pases africanos. Os cinco pases de lngua oficial portuguesa (PALOP) surgem no topo da lista de parceiros do continente (Figura 7). Em 2010, os PALOP absorveram 74% dos recursos des-tinados a toda a frica (Cabral e Winestock 2010). Apesar desta concentrao de recursos, a diversidade de pases africanos parceiros do Brasil em iniciativas de cooperao tcnica tem gradualmente aumentado, fruto, em grande medida, da expanso da rede diplomtica.

    Figura 6Cooperao tcnica com frica: execuo do oramento anual

    2003-2010

    Fonte: ABC (2011).

    Milh

    es

    de U

    SD

    5

    10

    15

    20

    25

    2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 20100

    Figura 7Cooperao tcnica com frica:

    principais parceiros segundo o nmero de projetos em execuo

    Fonte: ABC (2011).

    0 5 10 15 20 25Moambique

    Guin-Bissau

    Cabo Verde

    S. Tom e Prncipe

    Angola

    Algria

    Congo

    Senegal

    Gana

    Tanznia

    Tal como para o portflio global da cooperao tcnica, o portflio de projetos na frica abrange um leque variado de temticas (Figura 8).

    Sade22%

    Figura 8Cooperao brasileira para o desenvolvimento:

    volume de recursos acumulados segundo modalidade, 2005-9

    Fonte: ABC (2011).

    Outros17% Agricultura

    26%

    Educao e formao profissional14%Meio ambiente

    5%

    Energia5%

    Administrao pblica4%

    Desenvolvimento urbano3%

    Desenvolvimento social2%

    Planejamento2%

    3.3. Cooperao econmica e financeira com pases africanos

    A ausncia de dados quantitativos consolidados e disponveis acerca dos fluxos de cooperao econmica e financeira do Brasil para com o exterior no permite tirar ilaes definitivas acerca da evoluo destas modalidades de cooperao. Porm, a percepo geral captada atravs das entrevistas deste estudo de que estas moda-lidades tm se tornado mais expressivas no relacionamento bilateral do Brasil com o continente africano.

    Acerca do perdo da dvida, por exemplo, no h uma orientao poltica escrita e inequvoca. No entanto, de acordo com a informao recolhida, existe uma orien-tao implcita do atual governo de perdoar a dvida a pases africanos, na sequn-cia da orientao do governo anterior. As atividades recentes do COMACE tm-se, de fato, concentrado essencialmente na anlise do perdo da dvida a pases africa-nos. O perdo ou renegociao da dvida uma condio para poder avanar com

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    novos emprstimos por parte das instituies bancrias brasileiras e h portanto interesse, dadas as oportunidades de investimento que se apresentam na frica, em desbloquear a situao.

    Relativamente aos crditos concessionais s exportaes para frica, estes so em nmero ainda limitado. Foram identificadas, com base nos relatos dos entrevista-dos, linhas de crdito concessional aprovadas para pelo menos sete pases africa-nos: Cabo Verde, Moambique, Angola, So Tom e Prncipe, frica do Sul, Gana e Zimbabue. A linha de crdito para Cabo Verde, por exemplo, destina-se a apoiar a construo de instalaes para a administrao pblica. As linhas de crdito para Gana e Zimbabue correspondem ao programa Mais Alimentos frica. A este respeito, a CAMEX aprovou recentemente crdito exportao de implementos agrcolas brasileiros no valor de 640 milhes de dlares.

    Tal como referido anteriormente, o BNDES tem expandido as suas operaes na frica, tendo em vista a insero das empresas brasileiras e a promoo das exportaes. H linhas de crdito aprovadas para o financiamento da construo de infraestruturas de transporte, comunicao, transmisso energtica e abasteci-mento de gua e saneamento bsico. Angola o principal destinatrio com uma linha de crdito orada em US$ 3.2 bilhes, tendo j sido desembolsados US$ 1.7 bilhes (BNDES 2011). A modalidade BNDES Exim Automtico est atualmente a ser lanada e, segundo a imprensa, foi recentemente fechada uma linha de finan-ciamento de exportaes brasileiras para a Nigria, estando em negociao linhas de crdito para frica do Sul, Angola e Moambique.12

    O grau de concessionalidade destes crditos necessita porm ser apurado. Do ponto de vista do clculo da cooperao para o desenvolvimento, tnue a linha que separa conceitualmente os emprstimos concessionais do Proex e algumas das linhas de crdito do BNDES, especialmente aquelas que se destinam a obras que geram benefcios sociais (como, por exemplo, o abastecimento de gua e sanea-

    mento) e que, no obstante no observarem o princpio da taxa de juro a 2% (ou Libor se inferior), contam com a garantia do Tesouro Nacional que confere ao crdito condies mais competitivas.

    Em 2010, por ocasio do Dilogo Brasil-frica, anteriormente mencionado, o Pre-sidente Lula defendeu publicamente a criao de uma linha de financiamento do BNDES para os pases pobres da frica.13 Resta a dvida se a linha de crdito BNDES Exim Automtico que financia a exportao, nomeadamente, de mqui-nas, implementos agrcolas e geradores brasileiros14, deveria ser contabilizada no apuramento da cooperao brasileira para o desenvolvimento, a par das linhas de crdito concessionais do Proex acima mencionadas.

    12 Folha de S. Paulo, op. cit.

    13 Lula defende linha de financiamento do BNDES para a frica, Vote Brasil, 8 de Novembro de 2011,

    http://www.votebrasil.com/noticia/politica/lula-defende-linha-de-financiamento-do-BNDES-para-a-africa.14

    http://www.bndes.gov.br/SiteBNDES/bndes/bndes_pt/Institucional/Sala_de_Imprensa/Noticias/2011/todas/20110601_bb.html.

    4. A trajetria futura da cooperao brasileira para o desenvolvimento: algumas questes para reflexo

    Esta seo analisa quatro temas relevantes para a discusso da trajetria futura da cooperao brasileira para o desenvolvimento, levantando questes que se julga pertinente considerar.

    4.1. Abrangncia do conceito de cooperao e transparncia das prticas

    Persiste alguma ambiguidade acerca do tratamento a dar a formas de cooperao econmica e financeira, o que levanta, acima de tudo, questes acerca do grau de transparncia da ao do Brasil no mbito da cooperao.

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    O tema da transparncia das prticas de cooperao para o desenvolvimento tem assumido grande proeminncia ao nvel internacional nos ltimos anos. Em 2005, o frum de Paris sobre a eficcia da ajuda colocou em destaque a importncia de medir os resultados da assistncia ao desenvolvimento e de prestar contas de forma recproca (entre doadores e beneficirios) acerca das aes para o desenvolvimento. O frum de Accra que lhe sucedeu em 2008 estabeleceu compromissos espec-ficos para tornar a ajuda mais transparente e a International Aid Transparency Initiative (IATI) foi criada logo de seguida com o intuito de fazer cumprir estes compromissos e, em particular, de criar um padro internacional consensual na prestao de informao sobre a assistncia ao desenvolvimento.15 Uma das dis-cusses que surge em torno desta iniciativa de padronizao internacional a da compatibilidade entre os critrios usados para definio da assistncia ao desen-volvimento pelos pases membros do CAD da OCDE e aqueles utilizados pelos no-membros, onde se incluem o Brasil e outros com grande representatividade no volume global da cooperao ao desenvolvimento internacional.

    O Conselho Econmico e Social das Naes Unidas (ECOSOC) estabelece que a cooperao Sul-Sul um conceito mais amplo do que conceito de assistncia ofi-cial ao desenvolvimento (ODA) do CAD. A principal diferena entre as definies do CAD e do ECOSOC diz respeito ao tratamento dado aos crditos exportao, que o CAD exclui do clculo da ODA e classifica como outros fluxos oficiais (OOF), alegando que o propsito principal destes crditos a promoo de obje-tivos comerciais do pas credor e no o desenvolvimento econmico dos pases tomadores do crdito. O ECOSOC, por outro lado, mantm que, no mbito da coo-perao Sul-Sul, estes fluxos so importantes para o desenvolvimento econmico dos pases parceiros e que como tal devem ser contabilizados no clculo, desde que os emprstimos sejam concedidos em termos concessionais (ECOSOC 2009:6).

    A opo do Brasil nesta matria no foi ainda oficializada. Tal como observado anterior-mente, o levantamento realizado em 2010 sobre a cooperao brasileira para o desenvol-

    vimento (IPEA et al. 2010) exclui modalidades de cooperao econmica e financeira do clculo e da anlise. Segundo o que se pode apurar no trabalho de campo para o pre-sente trabalho, de esperar, no entanto, que a prxima verso do estudo16 venha a incluir no clculo este tipo de modalidades. Entretanto, a ABC numa publicao recente (ABC 2011) avanou com estimativas acerca do perdo da dvida e dos crditos concessionais exportao, revelando uma orientao consistente com a proposta do ECOSOC.

    Independentemente das opes metodolgicas acerca da abrangncia do clculo da cooperao tomadas pelo estudo do IPEA em curso, necessrio um esclareci-mento poltico e, se possvel, um debate pblico acerca do conceito de cooperao brasileira e sobre os critrios utilizados para incluir ou excluir determinados fluxos e atividades, de forma a conferir maior transparncia s opes do governo bra-sileiro nesta matria e a adotar um posicionamento inequvoco perante os fruns internacionais que se debruam sobre a mensurao dos fluxos de assistncia ao desenvolvimento. Esta no meramente uma deciso tcnica. Confirmando-se as estimativas preliminares da ABC (2011) acerca das modalidades de cooperao econmica e financeira, a composio da cooperao brasileira altera-se significa-tivamente (Tabela 2), tornando-se necessrio refletir sobre as implicaes de natu-reza poltica e institucional no novo quadro da cooperao para o desenvolvimento.

    15 http://www.aidtransparency.net/. 16 Que se prev ser publicada no incio de 2012.

    Tabela 2Estrutura da cooperao brasileira para o desenvolvimento em 2005-9,

    comparao de definies

    Fonte: IPEA et al. (2010) e ABC (2011).

    Modalidade de cooperaoMilhes USD Percentagem

    Clculo IPEA et al. (2010) Clculo ABC (2011)

    Milhes USD Percentagem

    Assistncia humanitria 81.0 5 81.0 2Bolsas de estudo para estrangeiros 160.1 10 160.1 4Cooperao tcnica 136.8 9 136.8 3Contribuies para organismos multilaterais 1,230.5 77 1,230.5 29Perdo da dvida 474.2 11

    Perdo da dvida 349.3 8Crdito concessional s exportaes 1,742.8 42

    Total 100 4,174.7 100

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    4.2. Clareza e adequabilidade do atual mapa institucional

    O mapa institucional da cooperao brasileira para o desenvolvimento caracte-riza-se, acima de tudo, por uma considervel segmentao e multipolaridade. A segmentao da cooperao tcnica no necessariamente um inconveniente, dado que decorre da prpria natureza da cooperao, que demanda a participao direta nos programas e projetos das entidades brasileiras especializadas, como a Embrapa ou a Fiocruz, nas vrias temticas abrangidas. Por outro lado, existe ao nvel desta modalidade de cooperao, um polo de coordenao, a ABC, que, com maior ou menor agilidade, desempenha a funo de liderar a negociao, imple-mentao e acompanhamento dos programas e projetos. Esta uma coordenao de carter essencialmente operacional, pois a orientao poltica que a sustenta concebida no seio do Itamaraty. Todavia, a existncia da ABC, apesar da sua limitada autonomia, confere cooperao tcnica uma unicidade e convergncia orgnica que facilita, nomeadamente, a interao intragovernamental e com enti-dades da sociedade civil, bem como a interao com fruns internacionais sobre assistncia ao desenvolvimento.

    Existem porm outras modalidades importantes no mapa geral da cooperao bra-sileira para o desenvolvimento, algumas de peso muito superior ao da cooperao tcnica. A liderana ou coordenao institucional dessas outras modalidades no de todo inequvoca. Se por um lado o MRE tem um papel tcito de orientao pol-tica para todas as formas de cooperao17, j o Ministrio da Fazenda assume um papel preponderante nas decises tomadas no mbito do COFIG (acerca dos cr-ditos s exportaes) e do COMACE (acerca do perdo dvida). O MDIC exerce tambm uma influncia significativa atravs da CAMEX, particularmente no que diz respeito a novas formas de cooperao envolvendo crditos exportao de produtos industriais brasileiros. No havendo regras claras sobre a governana da cooperao e no havendo uma prtica estabelecida de documentao escrita

    das orientaes polticas que regem as decises, torna-se difcil fazer uma leitura precisa do percurso, objetivos e estratgias que norteiam a cooperao brasileira.

    A clarificao do mapa institucional que governa a cooperao brasileira para o desenvolvimento um imperativo. necessrio tornar mais claras as atribuies dos vrios intervenientes e desse modo conceber um mapa coerente de poltica e de gesto da cooperao brasileira. Este um passo fundamental para tornar a cooperao para o desenvolvimento como uma matria de poltica pblica pro-priamente dita, e no o produto da confluncia de estratgias, no necessariamente coerentes, de diplomacia, poltica comercial, industrial e financeira.

    4.3. Definio de polticas e compromissos

    Com a exceo dos princpios orientadores da cooperao tcnica, no existe uma poltica e estratgia explcita de cooperao internacional. Este vazio normativo, que decorre em parte da segmentao e multipolaridade institucional, por vezes apresentado como uma prerrogativa da cooperao brasileira, que decorre dos princpios da no imposio de condies e da resposta a demandas dos pases parceiros. Segundo esta lgica, o Brasil entra na cooperao sem uma agenda pr--estabelecida, no podendo, portanto, partida ter uma poltica definida. Este tipo de posicionamento (tendencialmente retrico) ignora, porm, que a cooperao, ainda que solidria e sem outros interesses subjacentes, no deve estar dispensada da transparncia, responsabilizao e prestao de contas. Estas exigem um quadro de referncia, com objetivos, grupos-alvo e metas pr-definidas que sirva de base ao planejamento, acompanhamento e avaliao das intervenes, sem prejuzo, contudo, da necessidade de garantir o envolvimento e apropriao por parte das entidades dos pases parceiros. A inexistncia de uma poltica clara de cooperao, quer ao nvel de orientao geral quer ao nvel da atuao em reas especficas, pode ainda resultar em incoerncias, duplicidade de esforos e, por conseguinte, comprometer a eficcia e reputao do Brasil no exterior.

    17 O Itamaraty tem tido, por exemplo, um grande protagonismo na orientao do crdito para

    frica desde 2003.

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    A questo da definio de polticas de cooperao revela tambm alguns dilemas que o Brasil, mais cedo ou mais tarde, ter que confrontar, nomeadamente as con-tradies existentes ao nvel das polticas pblicas nacionais que se comeam a refletir na cooperao com o exterior.

    Ser que medida que a importncia do Brasil como parceiro da cooperao para o desenvolvimento aumenta nos pases beneficirios, a cooperao brasileira ser levada a assumir um posicionamento menos ambguo em relao aos processos de desenvolvimento dos pases onde atua? E que implicaes isto ter para os princ-pios orientadores da cooperao brasileira?

    4.4. Adaptabilidade dos modelos brasileiros s realidades africanas

    Os vnculos histricos e culturais so uma afirmao recorrente nos discursos polticos acerca das relaes Brasil-frica. tambm comum o argumento que as polticas pblicas e tecnologias desenvolvidas no contexto brasileiro so facil-mente adaptveis s realidades africanas, o que constitui uma mais-valia da coo-perao brasileira (Banco Mundial e IPEA 2011). crvel que as semelhanas agroclimticas e epidemiolgicas, pelo menos em relao a alguns pases do vasto continente, facilitem a troca de experincias no campo da agricultura e da sade. E a partilha da lngua agilizar, sem dvida, o intercmbio com os PALOP. Mas a proximidade e semelhanas entre o Brasil e a frica so por vezes superestima-das, tendendo-se a uma atitude que, por um lado, ignora a limitada influncia dos afrodescendentes brasileiros no seio das instituies polticas do Brasil e que, por outro lado, simplifica as idiossincrasias dos diversos contextos africanos ao nvel poltico, sociolgico e antropolgico. De fato, apesar dos vnculos histricos, a profundidade do conhecimento do Brasil sobre a frica contempornea ques-tionvel, dada a pouca expressividade da rea de estudo africanos na formao e investigao acadmica dentro do Brasil.

    Por outro lado, a ideia de que as polticas pblicas brasileiras podem ser facilmente transferveis para o contexto africano segue uma lgica tecnicista que ignora, no

    apenas a capacidade de absoro dos pases africanos (pelos motivos acima assi-nalados), mas tambm, a prpria trajetria das polticas pblicas brasileiras e, em particular, o papel importante que a sociedade civil e os movimentos sociais dentro do Brasil tm desempenhado na formao e desenvolvimento dessas polticas. A este respeito, Campolina (2011) argumenta que a consolidao de alguns avanos importantes ao nvel das polticas pblicas brasileiras resultaram da capacidade e perseverana da sociedade civil organizada dentro do Brasil. A transferncia des-tas conquistas para frica no pode ignorar esta trajetria e deixar de considerar a importncia das dinmicas Estado-sociedade na formao de modelos de desen-volvimento. Este argumento tem implicaes sobre a forma de exerccio da coope-rao, questionando um modelo baseado em relaes essencialmente governo-a--governo e sob a gide da poltica externa.

    5. Concluso

    A cooperao brasileira tem registrado grande dinamismo ao longo dos ltimos anos. As relaes com a frica destacam-se no atual quadro de cooperao, fruto essencialmente de uma forte ofensiva diplomtica dirigida ao continente pelo ex--Presidente Lula da Silva, mas aliada tambm a uma intensificao das relaes comerciais e do investimento privado direto por parte de empresas e instituies financeiras brasileiras. O entusiasmo acerca da cooperao brasileira cada vez mais notrio nos discursos polticos e na imprensa internacional, comparando-se frequentemente o Brasil a outras potncias mundiais, como a China e a ndia, com capacidade para alterar o equilbrio global da arquitetura do desenvolvimento internacional. A prosperidade econmica e social do Brasil e sua crescente afirma-o no plano internacional entraram no imaginrio de desenvolvimento de muitos pases africanos que vm no percurso do Brasil um ideal atingvel. At que ponto o Brasil ir conseguir gerir e dar resposta s crescentes expectativas e demandas externas uma questo que permanece em aberto.

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    Internamente, a cooperao para o desenvolvimento permanece um assunto em maturao, que tem ainda que se afirmar como tema de poltica pblica com legiti-midade prpria. A desvinculao da poltica externa improvvel, apesar de exis-tir um movimento em desenvolvimento ao nvel da sociedade civil a demandar a afirmao da cooperao como poltica de Estado, resguardada das vicissitudes governamentais.18 Entretanto, no processo evolutivo dinmico que a cooperao atravessa, h vrios assuntos que necessitam de reflexo, nomeadamente: (i) a abrangncia do conceito de cooperao e transparncia das prticas; (ii) a clareza e adequabilidade do atual mapa institucional; (iii) a definio de polticas e com-promissos; e, mais especificamente sobre as relaes com frica, (iv) a adaptabi-lidade dos modelos brasileiros s realidades desse continente.

    medida que a experincia avana, e que a cooperao brasileira para o desen-volvimento se destaca, no apenas no plano internacional, mas tambm na matriz interna de polticas e de temas de debate pblico, de esperar que ocorram mudan-as no quadro poltico-institucional. A abertura do debate pblico sobre estas mudanas importante no apenas por uma questo de transparncia, mas tambm para conferir maior legitimidade e sustentabilidade poltica s opes tomadas.

    Referncias bibliogrficas

    18 Uma rede de organizaes no governamentais brasileiras, encabeada pela ABONG e incluindo

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