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PORTO ALEGRE – Quando começou a de- sapropriação dos mora- dores da vila Dique, lo- calizada atrás do aero- porto Salgado Filho, na capital gaúcha, em 2009, a prefeitura ofe- receu transporte para que os filhos em idade escolar continuassem a estudar nos colégios próximos às suas anti- gas casas. A mudança foi para o Porto Novo, um conjunto habitacio- nal distante cerca de no- ve quilômetros. Mas, pouco tempo depois, es- sa ajuda acabou. “Eles tiveram que pegar ônibus e não tinham di- nheiro para passagem. Muitos chegaram a per- der o ano”, lamenta Alme- rinda Argenta Gambin, de 47 anos, conhecida co- mo Miranda, líder comu- nitária e membro da dire- toria do Clube de Mães. Naquele momento, as famílias começaram a buscar vagas em escolas nos arredores, mas não havia para todos. Para piorar, eles conviviam com o preconceito de se- rem “diqueiros”, ou seja, da vila Dique, conhecida por ser uma região violen- ta da cidade. Agora, passados quase cinco anos do início das remoções, as pessoas já estão mais adaptadas à mudança, mas ainda não há escolas para to- dos na região. A estudante Bianca da Silva Ortiz, de 15, conti- nua a estudar no antigo colégio e gasta mais de uma hora no ônibus. Mas conta com a solidarieda- de para arcar com o custo do transporte. “Como es- tou fazendo o curso (de culinária) aqui no Clube de Mães, recebo vale- transporte”, relata. Para ela, a mudança foi boa. “Tinha muita gente que morava em situação muito precária”, lembra. Em Porto Alegre foram mais de 3.200 famílias de- sapropriadas. Dificuldade detransporte efaltade vagas Bruno Moreno [email protected] RIO DE JANEIRO – Per- to do meio-dia de uma sexta-feira de março, Lu- cas*, de 15 anos, acom- panha com o olhar os alunos que retornam da escola, na comunidade Novo Lar, no Recreio, zona Oeste do Rio de Ja- neiro. Enquanto isso, pe- neira a areia que será utilizada para fazer o concreto de um barra- co. Desde o ano passa- do, o garoto não pisa em uma sala de aula e o trabalho de ajudante de pedreiro tem sido a prin- cipal ocupação. Ele é um dos milhares de crianças e adolescen- tes das cidades-sede da Copa do Mundo que ti- veram o direito à educa- ção lesado. A estimati- va é a de que entre 57,3 mil e 76,5 mil, com ida- de entre zero e 19 anos, tenham sido removidos por conta das obras re- lacionadas direta ou in- diretamente ao Mun- dial de futebol e às Olimpíadas de 2016. Com isso, enfrentaram dificuldades para conti- nuar a vida escolar, co- mo mostra o Hoje em Dia desde a última se- gunda-feira. No Rio de Janeiro não há um número preciso, mas o Comitê dos Atingi- dos pela Copa e Olimpía- das estima em mais de 10 mil famílias removi- das em função desses megaeventos. RETORNO A família de Lucas mora- va na vila Recreio II e foi removida para a cons- trução do BRT Transoes- te, em 2012. Como com- pensação, receberam o apartamento de um pro- grama habitacional em Campo Grande, no extre- mo oeste da capital flumi- nense. Entretanto, não se adaptaram à nova realida- de. Por isso, no ano passa- do alugaram uma quitine- te (quarto, banheiro, cozi- nha e sala) na Novo Lar, comunidade a 300 metros da antiga vila Recreio II. A família, composta pe- la mãe, padrasto e quatro filhos, foi desmembrada. Dois dos irmãos não fo- ram para Campo Grande e decidiram morar com a avó. Outro irmão, Rodri- go*, de 16, também traba- lha ajudando o padrasto na construção de casas. “A escola era boa aqui perto. Lá (em Campo Grande), os alunos que mandam na escola, é uma bagunça. Hoje passo o dia na lan house, fico sentado aqui no banco da árvore, ajudo meu padras- to”, diz Lucas. Ele afirma que sente fal- ta da escola, mas não a de Campo Grande. Apesar disso, só pretende voltar em 2015. Assim, terá per- dido três anos de estudos, abandonados em 2012. “Quando voltamos, fiz ins- crição pela internet, só consegui escola pro lado de Campo Grande. Não ti- nha escola perto”, relata. Para a assessora de Di- reitos Humanos na Anis- tia Internacional no Bra- sil, Renata Neder, as famí- lias não poderiam ter sido levadas para áreas distan- tes. “O reassentamento deve ser em área próxima e em condições adequa- das. Nunca você pode le- var uma família para uma situação pior. Esse proces- so aprofunda as desigual- dades urbanas”, avalia. A Secretaria Municipal de Habitação do Rio de Janeiro informou que na obra do BRT Transoeste foram desapropriadas 666 famílias, e que elas foram acompanhadas por assistentes sociais até os moradores alcançarem a autonomia. *Nomesfictícios > Por ter sido removido de onde morava, jovem de 15 anos está sem estudar desde 2012 COPA SEM ESCOLA COPA SEM ESCOLA TERCEIRADEUMASÉRIE RIO DE JANEIRO – Adolescente que parou de estudar em 2012 ajuda o padrasto em serviços de pedreiro Da sala de aula para o canteiro de obra PORTO NOVO – Conjunto abriga famílias removidas para obras na capital gaúcha FOTOS SAMUEL COSTA hojeemdia.com.br 31 BeloHorizonte,quarta-feira,14.5.2014 HOJEEMDIA Minas

Copa sem escola_14 05 14

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PORTO ALEGRE –Quando começou a de-sapropriação dosmora-dores da vila Dique, lo-calizada atrás do aero-porto Salgado Filho, nacapita l gaúcha, em2009, a prefeitura ofe-receu transporte paraque os filhos em idadeescolar continuassem aestudar nos colégiospróximos às suas anti-gas casas. A mudançafoi para o Porto Novo,um conjunto habitacio-nal distante cerca de no-

ve quilômetros. Mas,pouco tempo depois, es-sa ajuda acabou.“Eles tiveramque pegar

ônibus e não tinham di-nheiro para passagem.Muitos chegaram a per-deroano”, lamentaAlme-rinda Argenta Gambin,de47anos, conhecida co-mo Miranda, líder comu-nitária emembro da dire-toria do Clube de Mães.Naquele momento, as

famílias começaram abuscar vagas em escolasnos arredores, mas nãohavia para todos. Parapiorar, eles conviviamcom o preconceito de se-rem “diqueiros”, ou seja,da vila Dique, conhecidapor seruma regiãoviolen-ta da cidade.Agora, passados quase

cinco anos do início dasremoções, as pessoas jáestão mais adaptadas àmudança, mas aindanão há escolas para to-dos na região.A estudante Bianca da

Silva Ortiz, de 15, conti-nua a estudar no antigocolégio e gasta mais deuma hora no ônibus. Masconta com a solidarieda-de para arcar como custodo transporte. “Como es-tou fazendo o curso (deculinária) aqui no Clubede Mães, recebo vale-transporte”, relata.Para ela, a mudança foi

boa. “Tinha muita genteque morava em situaçãomuito precária”, lembra.Em Porto Alegre foram

maisde3.200 famíliasde-sapropriadas. l

Dificuldadedetransporteefaltadevagas

BrunoMoreno

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RIODE JANEIRO – Per-to do meio-dia de umasexta-feirademarço, Lu-cas*, de 15 anos, acom-panha com o olhar osalunos que retornam daescola, na comunidadeNovo Lar, no Recreio,zonaOestedoRiode Ja-neiro.Enquanto isso, pe-neira a areia que seráutilizada para fazer oconcreto de um barra-co. Desde o ano passa-do, o garoto não pisaem uma sala de aula e otrabalho de ajudante depedreiro temsidoaprin-cipal ocupação.Ele é umdosmilhares

de crianças e adolescen-tes das cidades-sede daCopa do Mundo que ti-veramodireito à educa-ção lesado. A estimati-va é a de que entre 57,3mil e 76,5mil, com ida-de entre zero e 19 anos,tenham sido removidospor conta das obras re-lacionadas direta ou in-diretamente ao Mun-dial de futebol e àsOlimpíadas de 2016.Com isso, enfrentaramdificuldades para conti-nuar a vida escolar, co-mo mostra o Hoje emDia desde a última se-gunda-feira.No Rio de Janeiro não

há um número preciso,masoComitêdosAtingi-dospelaCopaeOlimpía-das estima em mais de10 mil famílias removi-das em função dessesmegaeventos.

RETORNO

AfamíliadeLucasmora-vana vilaRecreio II e foiremovida para a cons-truçãodoBRTTransoes-

te, em 2012. Como com-pensação, receberam oapartamento de um pro-grama habitacional emCampo Grande, no extre-mo oeste da capital flumi-nense. Entretanto, não seadaptaramànova realida-de. Por isso, no ano passa-do alugaramumaquitine-te (quarto, banheiro, cozi-nha e sala) na Novo Lar,comunidadea 300metrosda antiga vila Recreio II.A família, composta pe-

lamãe, padrasto e quatrofilhos, foi desmembrada.Dois dos irmãos não fo-ram para Campo Grandee decidirammorar com aavó. Outro irmão, Rodri-go*,de16, tambémtraba-lha ajudando o padrastona construção de casas.“A escola era boa aqui

perto. Lá (em CampoGrande), os alunos quemandam na escola, éumabagunça.Hoje passoo dia na lan house, ficosentado aqui no banco daárvore, ajudomeupadras-to”, diz Lucas.Ele afirmaque sente fal-

ta da escola,mas não ade

Campo Grande. Apesardisso, só pretende voltarem 2015. Assim, terá per-dido três anos de estudos,abandonados em 2012.“Quandovoltamos, fiz ins-crição pela internet, sóconsegui escola pro ladodeCampoGrande.Não ti-nha escola perto”, relata.Para a assessora de Di-

reitos Humanos na Anis-tia Internacional no Bra-sil, RenataNeder, as famí-lias não poderiam ter sidolevadas para áreas distan-tes. “O reassentamentodeve ser em área próximae em condições adequa-das. Nunca você pode le-var uma família para umasituaçãopior. Esseproces-so aprofunda as desigual-dades urbanas”, avalia.A Secretaria Municipal

de Habitação do Rio deJaneiro informou que naobra do BRT Transoesteforam desapropriadas666 famílias, e que elasforam acompanhadas porassistentes sociais até osmoradores alcançarem aautonomia. l*Nomesfictícios

l> Por ter sidoremovidodeondemorava,jovemde 15anosestá semestudardesde2012

COPA SEM ESCOLACOPA SEM ESCOLA

TERCEIRADEUMASÉRIE

RIODEJANEIRO–Adolescentequeparoudeestudarem2012ajudaopadrastoemserviçosdepedreiro

Da sala deaula parao canteirode obra

PORTONOVO–Conjuntoabriga famílias removidasparaobrasnacapitalgaúcha

FOTOSSAMUELCOSTA

hojeemdia.com.br 31BeloHorizonte,quarta-feira,14.5.2014

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