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Copyright © 2013 by ACERP/TV Escola

Coordenação editorial

Rosa Helena Mendonça

Diagramação e editoração

Norma Cury

Capa

Daniel Barroca

Preparação e revisão:

Magda Frediani Martins

Revisão Final

Milena Campos Eich

DaDos InternacIonaIs De catalogação na PublIcação (cIP)

(câmara brasIleIra Do lIvro, sP, brasIl)

Africanidades brasileiras e educação [livro eletrônico] : Salto para o Futuro / organização

Azoilda Loretto Trindade.

Rio de Janeiro : ACERP ; Brasília : TV Escola, 2013.

1,58 Mb ; PDF

Vários autores.

Bibliografia.

ISBN 978-85-60792-06-1

1. África - História 2. afro-brasileiros - brasil 3. Diversidade cultural 4. educação - brasil 5. mul-

ticulturalismo 6. Preconceitos 7. Professores - Formação 8. Programa salto para o Futuro (tv

escola) I. trindade, azoilda loretto.

13-11695. cDD-370.117

Índices para catálogo sistemático: 1. afro-brasileiros e africanos : Diversidade : educação 370.117

Todos os direitos desta edição reservados à Associação de Comunicação Educativa Roquette-Pinto

(ACERP) e à TV Escola (MEC)

reprodução de textos permitida para fins educativos e desde que citada a fonte.

e-mail: [email protected]

rua da relação, 18, 4º andar

ceP.: 20231-110 – rio de janeiro (rJ)

2013

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3

Presidência da República

Ministério da Educação

Secretaria de Educação Básica

AFRICANIDADES BRASILEIRAS E EDUCAÇÃO

SALtO pARA O FUtURO

Organização

Azoilda Loretto da Trindade

acerP

tv escola/mec

rio de Janeiro/ brasília

2013

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AFRICANIDADES BRASILEIRAS E EDUCAÇÃO

SuMáRiO

Apresentação ........................................................................................................... 8

introdução ..............................................................................................................10

Capítulo 1 – ABORDAgEnS gERAiS SOBRE MultiCultuRAliSMO E DivERSiDADE

CultuRAl ................................................................................................................18

i. Multiculturalismo ou de como viver junto ..........................................................21

Mary Del Priore

ii. Por um multiculturalismo democrático ........................................................ ...28

Sueli Carneiro

iii. Pluralidade e diversidade ................................................................................. 33

Carla Ramos

iv. Saberes culturais e educação do futuro ............................................................ 39

Edgard de Assis Carvalho

v. Redes de convivência e de enfrentamento das desigualdades ............................ 47

Elizeu Clementino de Souza

vi. Diversidade e currículo .................................................................................... 55

Nilma Lino Gomes

vii. Reinventando a roda: experiências multiculturais de uma educação para

todos ...................................................................................................................... 58

Azoilda Loretto da Trindade

Capítulo 2 – AFRiCAniDADES .................................................................................. 64

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A. ASPECtOS gERAiS

i. Africanidades, afrodescendências e educação .................................................... 68

Henrique Cunha Júnior

ii. Humilhação, encorajamento e construção da personalidade ............................ 80

Azoilda Loretto da Trindade

iii. A lei n. 10.639/2003 altera a lDB e o olhar sobre a presença dos negros no Brasil

e transforma a educação escolar............................................................................ 86

Bel Santos

iv. áfrica viva e transcendente! ............................................................................. 92

Narcimária Correia do Patrocínio Luz

v. Diversidade étnico-racial no currículo escolar do ensino fundamental ........... 101

Véra Neusa Lopes

vi. O legado africano e a formação docente .........................................................108

Marise de Santana

vii. As relações étnico-raciais, a cultura afro-brasileira e o projeto

político-pedagógico ............................................................................................... 119

Lauro Cornélio da Rocha

B. EDuCAÇÃO inFAntil

i. valores civilizatórios afro-brasileiros na educação infantil ............................... 131

Azoilda Loretto da Trindade

ii. As relações étnico-raciais, história e cultura afro-brasileiras na educação

infantil ..................................................................................................................139

Regina Conceição

iii. tin dô lê lê: brinquedos, brincadeiras e a criança afro-brasileira

(uma reflexão) .......................................................................................................144

Azoilda Loretto da Trindade

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C. EDuCAÇÃO QuilOMBOlA

i. Os quilombos e a educação ...............................................................................153

Maria de Lourdes Siqueira

ii - Quilombo: conceito ..........................................................................................158

Gloria Moura

iii. Saberes tradicionais de saúde .........................................................................162

Bárbara Oliveira

iv. Organização social e festas como veículos de educação não-formal ...............168

Verônica Gomes

v. Kalunga, escola e identidade – experiências inovadoras de educação nos

quilombos .............................................................................................................172

Ana Lucia Lopes

vi. lei nº 10.639/2003 e educação quilombola – inclusão educacional e população

negra brasileira .....................................................................................................178

Denise Botelho

D. AFRiCAniDADES BRASilEiRAS

Documentário: “Africanidades Brasileiras e Educação” ........................................184

Capítulo 3 – EntRECRuZAMEntOS tEMátiCOS – MultiCultuRAliDADES,

DiSCiPlinARiDADES E AFRiCAniDADES ................................................................199

i. Ciência multicultural ........................................................................................202

Ubiratan D’Ambrosio

ii. Afroetnomatemática, áfrica e afrodescendência .............................................208

Henrique Cunha Junior

iii. A multiculturalidade na educação estética .....................................................220

Ana Mae Barbosa

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7

iv. A Construção estético-cultural de um espaço .................................................226

Laura Maria Coutinho

v. O espaço dos vídeos na sala de aula: a difusão de mensagens sobre

afro-brasileiros .....................................................................................................232

Heloisa Pires Lima

vi. O significado da oralidade em uma sociedade multicultural ..........................237

Maria Elisa Ladeira

vii. no tempo em que os seres humanos conversavam com as árvores ..............245

Narcimária Correia do Patrocínio Luz

viii. Os versos sagrados de ifá: base da tradição civilizatória iorubá ...................253

Juarez Tadeu de Paula Xavier

iX. Cantos e re-encantos: vozes africanas e afro-brasileiras .................................257

Andréia Lisboa de Sousa e Ana Lúcia Silva Souza

X. Conto popular, literatura e formação de leitores ..............................................272

Ricardo Azevedo

Xi. literatura e pluralidade cultural ......................................................................280

Marisa Borba

Xii. novas bases para o ensino da história da áfrica no Brasil .............................288

Carlos Moore

Xiii. Enfrentando os desafios: a história da áfrica e dos africanos no Brasil na nossa

sala de aula ............................................................................................................301

Mônica Lima

Xiv. Sons de tambores na nossa memória – o ensino de história africana e

afro-brasileira .......................................................................................................307

Mônica Lima

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APRESENTAÇÃO

AFRICANIDADES BRASILEIRAS E EDUCAÇÃO

Rosa Helena Mendonça1

a coletânea Africanidades brasileiras e educa-

ção, organizada por azoilda loretto trinda-

de, é composta de textos que foram produzi-

dos para o programa salto para o Futuro, da

tv escola, ao longo da última década2.

o projeto surgiu e ganhou força durante a

produção do documentário Africanidades

brasileiras e educação, exibido em outubro

de 2008, pela tv escola.

Para a realização do documentário foi ne-

cessário realizar uma pesquisa que envolveu

uma seleção de textos sobre a temática nas

publicações eletrônicas, além do visiona-

mento de séries e transcrição de entrevistas

que compõem o acervo do programa. Daí

para esta coletânea, estava dado o primeiro

passo.

caberia à organizadora explicitar, a partir

da linha editorial, a concepção teórica que

fundamenta o trabalho e a organização

dos capítulos, de acordo com as temáticas

subjacentes aos textos. ela foi além, empre-

endendo uma busca que excedeu às séries

realizadas especificamente para subsidiar a

implementação da lei n. 10.639/03. nessa

perspectiva, a obra traz infinitas possibili-

dades de leitura e combinações temáticas

desafiadoras. o capítulo 1 trata de Abor-

dagens multiculturais amplas; o capítulo

2, que inclui o texto complementar ao do-

cumentário, enfoca as Africanidades; e o

capítulo 3 aponta para Entrecruzamentos

temáticos, ao destacar as contribuições da

ciência e da literatura nas abordagens mul-

ticulturais.

este livro é mais uma iniciativa da secretaria

de educação básica (seb), do ministério da

educação, que, por meio do programa sal-

to para o Futuro, da tv escola, tem buscado

contribuir para a formação continuada de

1 supervisora pedagógica do programa salto para o Futuro/tv escola (mec). Doutoranda no ProPeD-uerJ.

2 os créditos dos autores correspondem à época em que os textos foram escritos. considerando que um dos objetivos da publicação é refletir o pensamento sobre a temática ao longo desse tempo, optamos também em não solicitar aos autores a atualização dos textos, preservando, assim, a perspectiva histórica dos mesmos.

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professores da educação básica na implan-

tação da lei 10639/03.

a realização desta obra não teria sido possí-

vel sem a colaboração de ana maria miguel

e de carla ramos, analistas educacionais do

programa, que participaram da seleção ini-

cial do material, e de magda Frediani mar-

tins, revisora, que foi responsável pela pre-

paração e revisão do livro, contribuindo na

edição com sua experiência e sensibilidade.

Devemos, ainda, a Fernanda braga, analista

educacional, a formatação inicial dos textos,

a organização de notas, títulos e outros as-

pectos gráfico-editorais, o que possibilitou a

primeira versão dos originais. também par-

ticiparam deste projeto a analista educacio-

nal mônica mufarrej, que organizou um cD

com os textos, e amanda souza, estagiária

do salto para o Futuro, que fez a transcrição

das fitas com entrevistas.

De minha parte, sinto especial satisfação em

ter idealizado esta publicação e supervisio-

nado todo o processo de edição. ao longo

de vários meses, tive o privilégio de fazer a

interlocução entre a organizadora da coletâ-

nea e os demais profissionais envolvidos, to-

dos empenhados em fazer chegar às escolas

brasileiras mais esta obra de referência para

a implementação da lei nº 10.639/03 e da lei

nº 11.645/08.

vale destacar que a maior parte dos textos

que compõem esta publicação foi produzida

para séries que foram realizadas pelo salto

para o Futuro/tv escola por demandas fei-

tas pela secretaria de educação continuada,

alfabetização, Diversidade e Inclusão (seca-

DI), do ministério da educação. o objetivo

comum é o de colocar em pauta a questão

da diversidade, tão significativa para a cons-

trução de uma escola mais equânime, numa

sociedade que precisa, cada vez mais, se

assumir como multicultural e pluriétnica,

ultrapassando exclusões e preconceitos de

todas as ordens.

É com prazer que fazemos chegar aos pro-

fessores e professoras esta obra, no ano em

se comemoram os 10 anos da promulgação

da lei 10639/03. Desejamos uma excelente

leitura, que possa se desdobrar em traba-

lhos e em outros textos, criando e alimen-

tando essa rede de educação que constitui o

programa salto para o Futuro.

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INTRODUÇÃO

Azoilda Loretto da Trindade 13

A todas as pessoas irmãs da pátria (mátria) amada que não fogem à luta, nem

temem segurar a clava forte da justiça quando isto se faz necessário.

a tarefa de organizar um livro sobre Africani-

dades Brasileiras e educação, a partir do ma-

terial produzido pelo programa Salto para o

Futuro, foi, sem dúvida, muito desafiadora,

tendo em vista que a produção de saberes

e fazeres no campo da educação é um dos

compromissos que assumimos no enfrenta-

mento do racismo e na construção de uma

sociedade que respeite os direitos humanos,

sociais, civis e, em especial, o direito à vida

– em todas as suas manifestações. uma so-

ciedade em que a deusa Justiça, entidade

mitológica cultuada desde a antiguidade

clássica, seja, efetivamente, para todos e to-

das.

o acervo do programa salto para o Futuro

representa um patrimônio para a história da

educação do brasil. são mais de vinte anos

de programa, com a presença de educadores

e educadoras compartilhando suas reflexões

e ações educativas, seja como acadêmico(a)

s, docentes ou ativistas, atravessando gover-

nos e gestores diversos, sem perder o com-

promisso com a educação de qualidade neste

país.

o contato com todo este material escrito,

disponível na página do programa, também

nos coloca diante de reflexões sobre a diver-

sidade de visões, contradições e paradoxos.

são produções que nos inspiram e, a partir

delas, temos ideias que podem gerar, tanto

projetos para a ação pedagógica cotidiana,

quanto outras produções escritas e novos

documentários... sentimo-nos como o me-

nino do conto A função da arte, de eduardo

galeano4:

Diego não conhecia o mar. O pai, San-

tiago Kovadloff, levou-o para que desco-

brisse o mar.

Viajaram para o Sul.

3 Doutora em comunicação pela eco/ uFrJ. mestre em educação pelo Iesae/Fgv-rJ. organizadora desta coletânea

4 galeano, eduardo. O livro dos abraços. ed. lP&m, 2005.

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Ele, o mar, estava do outro lado das du-

nas altas, esperando.

Quando o menino e o pai enfim alcança-

ram aquelas alturas de areia, depois de

muito caminhar, o mar estava na frente

de seus olhos. E foi tanta a imensidão do

mar, e tanto fulgor, que o menino ficou

mudo de beleza.

E quando finalmente conseguiu falar,

tremendo, gaguejando, pediu ao pai:

Me ajuda a olhar!

são muitas informações, muitos conheci-

mentos, muitos conteúdos, muitos saberes,

quer no acervo das produções do salto, quer

nos espaços instituídos de produção de co-

nhecimento, como as escolas, as universi-

dades, as instituições da sociedade civil, or-

ganizada ou não. os textos são muito ricos

e inspiradores, os minidocumentários gera-

dores dos debates são igualmente ricos, so-

bretudo em possibilidades pedagógicas. Por

tudo isto, fica difícil escolher, decidir e sele-

cionar, inclusive pela atualidade dos temas

e dos textos a eles relacionados e pelo valor

que este material constitui para a educação

no brasil.com relação à organização do li-

vro, convém destacar dois pontos:

o primeiro relacionou-se à seleção dos tex-

tos e dos conteúdos a serem privilegiados

com sua presença nos currículos escolares

e no dia a dia propriamente dito. a relevân-

cia e a escolha foram mediadas pela menta-

lidade inclusiva e antirracista dos educado-

res e educadoras presentes nas instituições

de ensino e por sua força de convencimen-

to, argumentação e luta. Destaco, assim,

que se trata de compromisso político, de

desafio e de pacto com a justiça e com uma

proposta de escola feliz, inclusiva, capaz

de mudanças de mentalidade e comporta-

mentos. essa perspectiva também atende

às questões políticas, dentre elas a da com-

preensão de que currículo é um documento

de identidade. se o currículo é o documen-

to de identidade da escola, da sociedade e/

ou de um grupo, imaginem o desafio que

é mudá-lo. Porque, historicamente, a insti-

tuição escola vive processos contraditórios,

dialéticos, complexos. É, muitas vezes, uma

escola que tem uma identidade negadora

da sua população, da sua imagem, da sua

riqueza cultural e que precisa, por isso, se

modificar.

ao pensarmos qual é o papel da escola, fica-

mos de frente com a necessidade de mudar

essa sua identidade, mudar esse documento

de identidade, “trocar” este documento por

outro que olhe e que diga da riqueza que

é o brasil, da riqueza que é um país plural

como o nosso. a nossa escola frequente-

mente nega isso, hierarquiza as diferenças

humanas, frontalmente. o que acontece se

formos, em qualquer dia, numa sala de aula,

e observarmos o que mostram os murais e

quem são as crianças e os adolescentes que

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estão naquela escola? observar é um exer-

cício simples, não só na nossa escola espe-

cificamente, mas também se ampliarmos

a observação para outros espaços. Que

identidade é essa? Que escola é essa? Que

imaginário é esse que atravessa e perpassa

a nossa prática e a nossa ação docente? a

escola e os currículos podem ter um papel

importante, na medida em que eles se pro-

ponham a se transformar, a se olharem no

espelho e a não ter vergonha do que veem. É

um grande desafio docente, este que se co-

loca para todos nós, educadores e educado-

ras, que queremos transformar essa escola,

transformá-la na sua imagem, na sua estru-

tura, nas suas ações, na sua eficácia e nos

seus conteúdos.

outro ponto relevante nesta introdução é

o fato de estarmos focados na história e

cultura africana e afro-brasileira, na im-

plementação da lei n. 10.639, de janeiro

de 2003, que neste ano completa dez anos,

num tema que faz parte de um dos mais

graves, viscerais e emblemáticos proble-

mas brasileiros: as desigualdades étnico-

-raciais.

sabemos e reconhecemos como importante

aspecto de análise e intervenção a questão

das desigualdades, dos preconceitos, dos es-

tigmas e do racismo na escola. e sabemos

também que esses processos não se limitam

aos pretos e pardos (negros), mas a vários

grupos: mulheres, indígenas, pessoas com

deficiências, com necessidades especiais...

a escola e a sociedade estão marcadas por

essa problemática que afeta, não só os afro-

-brasileiros(as), mas a outros grupos hu-

manos. estamos marcados pelo machismo,

pelo patrimonialismo, pelo elitismo... lidar

com isso é, portanto, uma escolha política,

uma vez que também sabemos o quanto de

invisibilização, de desconhecimento e de es-

tereotipias existem com relação às histórias

e culturas africanas e afro-brasileiras. Quem

sabe podemos ter, em breve, e o acervo do

programa indica isso, coletâneas sobre os

povos indígenas (lei n. 11.645/2008), sobre as

questões de gênero e orientação afetivo-se-

xual, como já temos sobre cultura popular

e outros temas? e quem sabe, um dia, não

precisemos mais nos ocupar com inclusão,

com preconceito e racismo? Por ora, como

poderemos ver na primeira parte desta cole-

tânea, temos ainda um longo caminho a ser

trilhado.

POR QuE tRABAlHAR AS

AFRiCAniDADES nAS ESCOlAS

BRASilEiRAS?

embora a pergunta feita seja única, ela tem

múltiplas e inúmeras respostas. vamos a al-

guns pontos de vista:

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13

PROvéRBiO AFRiCAnO

“Até que os leões tenham seus próprios

historiadores, as histórias de caçadas

continuarão glorificando o caçador” 5.

Para elisa larkin6 (intelectual, pesquisado-

ra):

Eu acho que em primeiro lugar a gen-

te não pode falar em humanidade sem

falar nos africanos. Inclusive porque a

África, hoje existe um consenso na an-

tropologia, na arqueologia, a África foi

o berço realmente do nascedouro da

própria espécie humana. Então, há esse

aspecto que, na verdade, o próprio ser

humano nasce na África e vai desenvol-

vendo na África sua cultura, em épocas

muito remotas, vai povoando o mundo.

se a escola é um campo, um espaço de pro-

dução e de apropriação de conhecimentos,

então é fundamental, justo e função da es-

cola que os saberes africanos, que são um

patrimônio da humanidade, sejam compar-

tilhados, aprendidos, conhecidos. a escola

não deve negar à população este patrimô-

nio, não pode subtrair um direito, que é de

todos, de conhecer o repertório cultural dos

povos africanos. se a escola não veicula es-

tes saberes, está tirando o direito das pes-

soas de se informarem sobre isso. Isso não

é justo, não é bom. o patrimônio cultural

produzido pelos africanos tem muito mais

do que 500 anos. e tudo que a África pro-

duziu e espalhou pelo mundo em termos

de conhecimentos, de sentimentos, de sa-

beres, de arquiteturas, de engenharia? Isso

foi como que subtraído da nossa memória

social. assim, nossa escola hoje tem esse de-

safio, a educação formal tem esse desafio,

os educadores e as educadoras têm esse de-

safio, de aprender o que a África produziu,

que patrimônio é esse que foi tirado da nos-

sa formação. e há um outro desafio maior

ainda: que nós, educadores, educadoras, ao

aprendermos sobre isso, transformemos a

nossa prática docente, de modo a incorpo-

rar todo este conhecimento no cotidiano. e

incorporar não só na “cabeça”, no campo

da racionalidade, mas incorporar também

nas entranhas, no campo da corporeidade,

do ser humano na sua completude. Porque

não basta, por exemplo, trabalharmos com

a história africana, afro-brasileira e indíge-

na, isso só não dá conta. É preciso incorpo-

rar esses saberes no cotidiano da escola. É

possível, a partir desse patrimônio africano

ou indígena, ou de outros patrimônios cul-

turais, transformar o cotidiano da escola?

Isso, sem dúvida, é bastante desafiador! e

fantástico! Imaginem o que de revolucioná-

rio pode acontecer quando incorporarmos

na escola os valores civilizatórios afro-bra-

sileiros, que levem em conta, por exemplo,

5 Provérbio africano citado por eduardo galeano em “o livro dos abraços”.

6 série currículo, relações raciais e cultura afro-brasileira (2006).

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a questão do comunitarismo? Juntos com-

partilharemos os conhecimentos, a alegria,

a ludicidade e a ciência, para fazerem parte,

não apenas de uma grade curricular, mas

também da vida e do dia a dia da escola,

com potência, riqueza, garra.

Para muniz sodré (intelectual e escritor):

Não há como negar a presença da cultu-

ra europeia e das ciências nas escolas do

Brasil. Mas em relação à cultura negra,

dá pra negar e é por isso que demorou

tanto, porque se esqueceu deliberada-

mente de colocar nos livros escolares,

nas mentalidades dos professores das

escolas, a contribuição que o negro deu

para a formação da sociedade brasilei-

ra, da cultura, historicamente, ao longo

dos tempos. Essa contribuição não foi só

de trabalho. (...) Foi principalmente cul-

tural (...). É ai que se dá o esquecimento,

a contribuição foi também na cultura

erudita, porque não se diz ao estudan-

te na escola e não se fazem manuais

para dizer que até a abolição os gran-

des escultores e pintores da Academia

Imperial fundada pelo imperador, eram

negros, nas igrejas da Bahia, nas igrejas

de Minas, nas igrejas do Rio de Janeiro,

os pintores e escultores eram negros e

mulatos. Não se diz que os músicos da

corte do Império eram negros e mula-

tos, não se diz que o maior compositor

da corte no Império, o padre José Mauri-

cio, era um negro, grande compositor e

grande maestro da corte, e que estadis-

tas, deputados, parlamentares do Im-

pério também eram negros e mulatos.

Há um livro que recomendo muito para

as escolas A mão negra brasileira, que

foi editado por Emanuel Araújo, artista

plástico, que foi diretor do museu de

Arte Moderna de São Paulo, livro edita-

do por Valter Brest, onde se faz um rela-

to dessas figuras que integraram a cha-

mada cultura erudita. O maior escritor

brasileiro de todos os tempos, Machado

de Assis, se diz que era mulato escuro.

Machado de Assis era crioulão mesmo.

Lima Barreto era negro, ninguém diz

que o Brasil teve um presidente negro,

não se conta essa história, todo mundo

pensa que só houve presidente branco

no Brasil! Tivemos um presidente qua-

se negro chamado Nilo Peçanha, que é

retocado nos retratos para parecer que

não é negro. Assim como se retoca o

senhor Rui Barbosa, grande intelectu-

al baiano, mulato escuro, se retoca no

retrato para parecer que era branco.

Nilo Peçanha era negro, mulato escuro,

negro. Agora a família dele não era, era

mais clara. Então, o que eu quero dizer

é que a presença dos negros na cultu-

ra erudita foi forte com a abolição. E

o século XX foi esquecer isso, começou

a deixar de lado e, a partir daí, toda a

inserção do negro na cultura brasileira

foi só através da chamada cultura popu-

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lar, através da música, que foi gloriosa:

Pixinguinha, os grandes compositores,

o samba vem daí, o futebol, o carna-

val, os folguedos. (...) Por isso que digo

que houve uma denegação histórica da

contribuição do negro, da sua presen-

ça. É importante que o negro atue em

novelas, apareça em publicidade, mas

eu acho mais importante começar a di-

zer às pessoas, aos meninos nas escolas

sobre tudo isto (...). Na cultura erudita,

tanto quanto na cultura popular, o ne-

gro brilhou, é preciso contar também às

pessoas que até os anos 20, na Bahia, os

professores de matemática e de piano

eram todos negros malês, que sabiam

ler muito bem, inclusive em árabe, liam

árabe, liam o Alcorão e ninguém conta

isso.

e, para completar estas reflexões, nada me-

lhor que os versos da canção de nei lopes e

Wilson moreira:

Em toda cultura nacional

Na arte, até mesmo na ciência

O modo africano de viver

Exerceu grande influência

O negro brasileiro

Apesar de tempos infelizes

Lutou, viveu, morreu e se integrou

Sem abandonar suas origens .

entre fundamentos, argumentos e informa-

ções sobre africanidades, organizamos esta

coletânea.

“ME AjuDA A OlHAR”

nosso processo de organizar e selecionar os

textos não foi fácil, já que nos deparamos

com muitas vicissitudes acerca do tema. o

acabamento, o embelezamento, os ajustes

e os retoques ficaram sob a responsabilida-

de da equipe pedagógica do salto – fato que

merece destaque, pois produções para o co-

letivo são também coletivas, por mais indivi-

duais que pareçam. ao pesquisar, ler e reler

o material selecionado, nós nos conectamos

com algumas percepções que não nos fur-

taremos a compartilhar. Deparamo-nos com

caminhos que chamo de “exunicidades”, por

tratarem-se de encruzilhadas, possibilidades

que demandam encontros, comunicação,

articulação, negociação, conflitos... e, as-

sim, devemos fazer esta alusão a um deus

da mitologia africana: exu.

assim como não existe a África homogênea,

nem a história e a cultura africana e afro

-brasileira, já podemos dizer, com certeza,

que não existe um pensamento único sobre

a temática. Isso tudo, articulado com a di-

versidade de pensamento e de ações peda-

gógicas brasileiras, nos permite afirmar que

7 ao povo em forma de arte. composição de nei lopes e Wilson moreira.

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a implementação da lei também é plural e

complexa. Por exemplo, existe uma varieda-

de de denominações, concepções, conceitos

e visões que podem se associar a essa diver-

sidade pedagógica, como educação bancá-

ria, tradicional, formal, conservadora, sócio-

-histórica, liberal, conteudista...

Paradoxalmente, não há uma relação biuní-

voca entre o acesso ao conhecimento ou ao

patrimônio africano e afro-brasileiro e a di-

minuição das desigualdades étnico-raciais.

o sistema de apropriação, o racismo e o pa-

trimonialismo não estão abalados na nossa

sociedade. temos muito a aprender e a ca-

minhar na direção da eliminação do racismo

e das mentalidades e práticas racistas.

embora esteja na lei maior da educação bra-

sileira, a lbben, não temos a garantia da

introdução nos currículos escolares da(s)

história(s) e da(s) cultura (s) africana(s) e

afro-brasileira(s), nos mais de 5.000(cinco)

mil municípios brasileiros. a temática das

relações étnico-raciais ainda é controversa,

o mito da democracia racial ainda é forte,

muitos não acham este tema relevante e o

racismo recrudesce no brasil e no mundo.

temos, por outro lado, um significativo acer-

vo sobre as temáticas da lei n. 10.639/2003

em livros, sítios, núcleos de estudos nas

universidades, organizações do movimento

negro, organizações governamentais, filmes

e documentários, experiências pedagógicas,

quer na sua especificidade (segunda parte

desta coletânea), quer em interação com

áreas diversas de conhecimento (terceira

parte deste livro), o que nos leva a afirmar

que, a despeito do esforço abnegado de mui-

tas pessoas, sejam educadoras, educadores

ou ativistas, esta temática necessita de

compromisso político por parte, sobretudo,

dos gestores e dos definidores e definidoras

de recursos e ações para coletivos, incluindo

aí o reconhecimento dos saberes e fazeres

dos(das) docentes e dos educadores/as das

instituições escolares e da comunidade es-

colar como um todo. cremos que a imple-

mentação da lei precisa, para tal, suplantar

as visões equivocadas de ação afirmativa

como sinônimo de paternalismo e condes-

cendência, para visões de ação afirmativa

como potência e reconhecimento do direito

e potência do outro.

Posto isto, esta coletânea, tentando estar

em sintonia com o que foi dito nesta intro-

dução, está dividida em três capítulos;

1º – ABORDAGENS MULTICULTURAIS AM-

PLAS: uma articulação da temática do

livro com o multiculturalismo, a diver-

sidade, as narrativas e a complexida-

de, além, obviamente, do currículo;

2º – AFRICANIDADES: as africanidades em

foco;

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3º – ENTRECRUZAMENTOS TEMÁTICOS

– MULTICULTURALIDADES, DISCIPLI-

narIDaDes e aFrIcanIDaDes: nesta

parte da coletânea se pretende uma

interseção entre as temáticas das afri-

canidades e áreas de conhecimento,

como uma trama, uma tessitura.

FiOS DO tEAR DAS MOiRAS

FiAnDEiRAS8

MULTICULTURALISMOS | DIVERSIDADE CULTURAL |

INTERCULTURALISMOS | PLURALIDADE CULTURAL |

AFRICANIDADES | EDUCAÇÃO INDÍGENA | EDUCA-

ÇÃO ESPECIAL | EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS

| EDUCAÇÃO PATRIMONIAL | PEDAGOGIA QUEER

| ESTUDOS CULTURAIS | EDUCAÇÃO RELIGIOSA |

EDUCAÇÃO POPULAR | EDUCAÇÃO PÚBLICA | AFRI-

CANIDADES | PEDAGOGIA DIASPÓRICA | PEDAGOGIA

DA DIFERENÇA | PEDAGOGIA BRASILIS.

existe um rico repertório metodológico no

campo da multiculturalidade e, no que se

refere à educação étnico-racial, várias abor-

dagens podem e devem ser experimentadas,

vivenciadas, saboreadas: pedagogia griot, do

axé, dos terreiros, do samba, dos valores ci-

vilizatórios afro-brasileiros, em diálogo, em

confronto, encontro, encanto com as de-

mais pedagogias, quer sejam as oficiais, do-

minantes, quer sejam a dos povos indígenas

ou das florestas, ou dos ciganos, ou dos ára-

bes, judeus, orientais, das pessoas com defi-

ciência, com necessidades especiais... todo

este repertório, como o fio do destino tecido

pelas moiras, pode contribuir para construir

as bases da pedagogia brasilis, uma pedago-

gia voltada para a real e diversa população

brasileira.

8 na verdade, colocar as moiras ou mouras neste contexto é provocar as/os leitora/es acerca dos nomes e mitos das várias origens que povoam nosso imaginário.as moiras e/ou as mouras?

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CAPÍTULO 1

ABORDAgENS gERAIS SOBRE mULTICULTURALISmO

E DIvERSIDADE CULTURAL

neste capítulo selecionamos, entre os textos

do salto para o Futuro, alguns que lidam di-

retamente com questões conceituais gerais

que dão suporte para as reflexões ligadas às

africanidades ou que com elas dialogam.

a opção de não seguir uma linearidade cro-

nológica dos textos tem como objetivo visi-

bilizar a não linearidade do pensamento e

das reflexões sobre os temas em questão:

multiculturalismo e diversidade cultural.

esta introdução antecipa algumas indaga-

ções, presentes no texto da organizadora

desta coletânea, que encerram este primei-

ro capítulo. afinal, uma educação multi-

cultural, criativa e inclusiva, no sentido de

incluir na pauta as diferenças, o contato, o

diálogo e a interação com as diferenças, co-

loca a própria escola num lugar de questio-

namento quanto ao seu papel, seu sentido e

seu significado.

vamos aos questionamentos:

• Qual deve ser o papel da escola num con-

texto multicultural que se sabe político,

e que não se supõe racista, nem elitista,

nem machista, nem etnocêntrico?

• o que nós, como educadores, devemos fa-

zer na escola? e como o faremos? como

nosso currículo se configurará?

• como serão e deverão ser nossas aulas,

nossa avaliação, nossa sala de aula? como

será nossa postura?

• como não sermos tão individualistas e

julgarmos que os outros são muito dife-

rentes de nós? e como não sermos tão

universalistas a ponto de apagarmos as

singularidades culturais, políticas, sexu-

ais, sociais, intelectuais?

• como levar em consideração todos os

segmentos da escola? como enfrentar

que nossas mais belas intenções e ações

são ainda incipientes, que são muito pou-

cas, embora necessárias?

ao formular essas questões buscamos evi-

denciar que trabalhar o multiculturalismo

na escola não é apenas colocar imagens de

todas as etnias que compõem nossa escola

nos murais ou, simplesmente, festejar o Dia

do Índio e o Dia nacional da consciência

negra. não é apenas debater as políticas de

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cotas e outras ações afirmativas. ou, ainda,

ter a imagem de uma virgem negra como

padroeira do brasil. tampouco ter o atleta

do século l, um homem preto, como um íco-

ne nacional (sobretudo se o que se destaca,

nesse caso, é o dinheiro como submetendo

as questões relacionadas à cor da pele).

Para buscar respostas para essas e outras

questões, selecionamos os textos que se se-

guem, acreditando que, ao reorganizá-los

nesta coletânea, sob o tópico multicultura-

lismo e diversidade cultural, estaremos pro-

pondo novas e possíveis leituras:

i. Multiculturalismo, ou de como viver

junto, de mary Del Priore - onde a au-

tora faz uma apresentação panorâmi-

ca de questões muito caras à temática

multicultural deixando-nos a questão

desafio: como vIver Junto?

ii. Por um multiculturalismo democráti-

co, de sueli carneiro – destacando a

democracia como um fim, a autora

apresenta-nos variáveis contemporâ-

neas que põem em fragilidade a pers-

pectiva universalista e hegemônica de

conformação de sujeitos, convidando-

-nos a pensar um multiculturalismo

democrático brasileiro

Depois de dois textos, com seus desafios,

apresentamos o texto anunciado pelo título:

iii. Pluralidade e diversidade, de carla

ramos – objetivando discutir os con-

ceitos do título num mundo em movi-

mento, em mudanças, focando-se na

cidade como espaço onde estes movi-

mentos nos desafiam a pensar outra

geopolítica

iv. Saberes culturais e educação do futu-

ro, de edgard de assis carvalho. Dis-

cutindo os saberes culturais na pers-

pectiva da integração dos saberes, o

texto transita entre a poesia, a arte

e os saberes culturais como pistas

para a educação na sua complexida-

de e inclusividade, apresentando-nos

autores e perspectivas não hegemô-

nicas de pensar o mundo a partir do

paradigma, digamos, europeu, mas

como que anunciando um hibridismo,

mestiçagem cultural, e termina apre-

sentando-nos Fernando Diniz, talvez

paradigmático para este livro.

v. identidade e diferença no cotidiano

escolar: práticas de formação e de fa-

bricação de identidades docentes, de

elizeu clementino de souza. este texto,

nesta coletânea, coloca os e as docen-

tes no centro da roda como produtores

e produtoras de histórias de vida (s), no

fio de prumo da Identidade e da Dife-

rença.

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vi. Diversidade e Currículo, de nilma

lino gomes. De volta à discussão da

diversidade, agora focando-se o cur-

rículo, o que se torna mais um dos

desafios da escola que “normatiza”

a diferença sem hierarquizá-la e bus-

cando não ser uniformizadora. o tex-

to indica, prescreve e sinaliza alguns

desafios para esta arrojada ação polí-

tico-pedagógica.

vii. Reinventando a roda: experiências

multiculturais de uma educação para

todos, de azoilda loretto da trindade.

este texto é um convite à criação e ao

compromisso com uma educação para

a vida em expansão.

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I. mULTICULTURALISmO OU DE COmO vIvER jUNTO1

Mary Del Priore2

MultiCultuRAliSMO: COMO

vivER juntO?

nas democracias pluralistas, assistimos a

um movimento generalizado de incremento

das identidades particulares. minorias, po-

pulações autóctones, grupos de migrantes

e imigrantes manifestam seu desejo de re-

conhecimento cultural. “viver junto” é uma

questão cada vez mais premente.

o termo “multiculturalismo” designa tanto

um fato (sociedades são compostas de gru-

pos culturalmente distintos) quanto uma

política (colocada em funcionamento em

níveis diferentes) visando à coexistência pa-

cífica entre grupos étnica e culturalmente

diferentes. em todas as épocas, sociedades

pluriculturais coexistiram e, hoje, menos de

10% dos países do planeta podem ser consi-

derados como culturalmente homogêneos.

Por outro lado, o tratamento político da di-

versidade cultural é um fenômeno relativa-

mente recente.

Há menos de trinta anos, as primeiras me-

didas políticas de inspiração multicultura-

lista foram colocadas em ação na américa

do norte (canadá e eua). lá, a indiferença

frente à cor da pele foi substituída pelo prin-

cípio de consciência da cor. o debate sobre

multiculturalismo foi crescendo de intensi-

dade e, a partir dos anos 90, difundiu-se na

europa e américa do sul. a doutrina multi-

culturalista avança essencialmente na ideia

de que as culturas minoritárias são discri-

minadas e devem merecer reconhecimen-

to público. Para se realizarem ou consoli-

darem, singularidades culturais devem ser

amparadas e protegidas pela lei. É o Direito

que vai permitir colocar em movimento as

condições de uma sociedade multicultural.

EntRE univERSAliSMO E

MultiCultuRAliSMO

mas, de que diferenças culturais nós fala-

mos? muitas vezes reduzidas à questão da

1 Debates: multiculturalismo e educação – 2002 / Pgm 1.

2 Historiadora e coordenadora geral do arquivo nacional.

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etnicidade (condição ou consciência de per-

tencer a um grupo) ou, em alguns casos,

reduzidas até mesmo à “questão racial”, as

diferenças culturais não concernem apenas

aos particularismos de origem ou de tradi-

ção (religiosas ou linguísticas).

as reivindicações se enraízam cada vez mais

no particularismo dos mores (preferências

sexuais, por exemplo), de idade, de traços

ou de deficiências físicas (obesos, cegos,

paraplégicos). o multiculturalismo comba-

te o que ele considera como uma forma de

etnocentrismo, ou seja, combate à visão de

mundo da sociedade branca dominante que

se toma – desde que a ideia de raça nasceu

no processo de expansão europeia – por

mais importante do que as demais. a políti-

ca multiculturalista visa, com efeito, resistir

à homogeneidade cultural, sobretudo quan-

do esta homogeneidade afirma-se como

única e legítima, reduzindo outras culturas

a particularismos e dependência.

um detalhe importante nesta discussão é

que, em nossos dias, um cidadão raramen-

te “esquece” sua condição particular para

encarnar um pretenso universalismo. o

universalismo dificilmente se combina com

as condições da modernidade. com a libe-

ração dos mores e a emancipação sexual, a

vida privada foi maciçamente reconstruída,

revestindo-se de grande potencial político.

nesta perspectiva, identidade e individuali-

dade quase se sobrepõem. Isto pode parecer

paradoxal, mas a reivindicação cultural está

claramente associada ao individualismo

moderno, ao primado do “sujeito individu-

al”. ela emana da subjetividade pessoal da-

queles que se reconhecem neste ou naquele

particularismo e resolvem se engajar coleti-

vamente em reivindicações identitárias.

o debate de ideias entre monoculturalismo

e multiculturalismo funciona, de certa for-

ma, em duas vertentes de pensamento. ele

se organizou, primeiramente, em torno de

uma querela de filosofia política norte-ame-

ricana: os liberais, ou individualistas, sus-

tentavam que o indivíduo é mais importante

e antecede à comunidade. liberais recusam

a ideia de que direitos minoritários possam

ferir a preeminência legítima do indivíduo.

o comunitarismo ou coletivismo, ao contrá-

rio, acredita que os indivíduos são o produto

das práticas sociais e que é preciso prote-

ger os valores comunitários ameaçados por

valores individuais e, principalmente, reco-

nhecer as diferenças culturais.

tal debate, contudo, já é coisa do passado.

Pensadores como charles taylor e michael

Walzer avançaram posições mais nuança-

das. Inúmeros teóricos acreditam que os

direitos minoritários podem promover as

condições culturais de liberdade potencial

dos membros de grupos minoritários. na

europa, este “multiculturalismo liberal” pa-

rece ter se imposto por falta de alguma ideia

melhor. abandonou-se, então, o modelo que

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prevalecia desde a revolução Francesa e que

propugnava o cidadão unificado.

vejamos, num exemplo, como procede esta

vertente: a sopa passada no liquidificador

transforma tudo num todo homogêneo, no

qual não se distinguem mais os elementos

que a compõem. apenas um paladar avisa-

do poderá adivinhar, no sabor, cada um dos

ingredientes. na salada composta, por outro

lado, cada ingrediente se distingue dos ou-

tros, conservando sua aparência, seu gosto

e sua textura. nos eua, o mito do “melting-

-pot”, ou seja, da encruzilhada na qual todas

as culturas se fundem ao adotar o “ameri-

can way of life” – jeito americano de viver –,

sucedeu o modelo do mosaico, ou da “sala-

da”, imagem possível do multiculturalismo:

uma justaposição um pouco heterogênea de

grupos étnicos e minorias culturais coabi-

tando num mundo de concordância.

AS POlítiCAS MultiCultuRAiS

além do canadá (desde 1982), vários países

têm constituições multiculturais: austrália,

África do sul, colômbia, Paraguai. mas fo-

ram os eua que, antes de qualquer outro

país, colocaram a luta contra a discrimi-

nação no centro de suas preocupações. no

prolongamento da luta dos afro-americanos

por direitos cívicos, militantes e intelectuais

consideraram uma injustiça que as culturas

minoritárias não acedessem a um mesmo

patamar de reconhecimento do que a cul-

tura dominante branca, saxônica e protes-

tante.

em reação a esta “etnicização majoritária”,

na verdade, uma assimilação dissimulada –

leia-se, o mito do “melting pot” – operou-se

uma “etnicização das minorias”. o reconhe-

cimento público das identidades coletivas

resultou, por sua vez, de redes políticas vol-

tadas para a consolidação da ideologia do

“politicamente correto”.

na europa, as práticas multiculturalistas

são ainda pouco desenvolvidas. o modelo

do estado-nação afirmou-se no século XIX,

praticando uma política de redução de dife-

renças culturais e de assimilação de popula-

ções imigradas. nos países europeus, apesar

das importantes diferenças nacionais (na

Inglaterra, por exemplo, está bem avançada

a luta contra discriminações étnicas), o par-

ticularismo é percebido como uma divisão e

uma regressão culturais. o multiculturalis-

mo, por sua vez, é um desafio fundamental

para a consolidação da união européia. so-

bretudo, quando lá se pergunta se a europa

irá optar por uma cultura comum ou por

um regime multicultural constituído por

um mosaico de nações.

na França, por exemplo, as políticas de tra-

tamento preferencial são aplicadas para

combater as desigualdades socioeconômi-

cas ou as desigualdades entre gêneros (ho-

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mem-mulher). lá, cada vez mais, a etnicida-

de é reconhecida e respeitada nas práticas

(no Direito, ainda não): são dadas subven-

ções diretas a associações étnicas, são cria-

das políticas em favor de imigrantes, exis-

tem Fundos de ação social voltados para a

questão.

o modelo da diversidade francesa foi come-

morado no campeonato mundial de Fute-

bol de 1998, quando os jogadores de origens

diferentes (França, África do norte e África

central) tornaram-se campeões do mundo.

a imagem de uma equipe multiétnica fun-

diu-se com aquela de uma “equipe que ga-

nha”.

OS liMitES DO

MultiCultuRAliSMO

Para vários autores, o multiculturalismo

aparece como um mal necessário. Discute-

-se muito como aperfeiçoar o sistema, limi-

tando seus efeitos perversos e melhorando

a vida dos atores sociais. em alguns casos,

o multiculturalismo provoca desprezo e in-

diferença, como acontece no canadá entre

habitantes de língua francesa e os de língua

inglesa.

nos eua, esta militância só fez acentuar as

rivalidades étnicas. ao denunciar seus ad-

versários, tais políticas terminam por estig-

matizá-los e acabam, também, por dar uma

dimensão étnica às relações sociais.

a pergunta a fazer é: será que os fins justi-

ficam os meios? o princípio da discrimina-

ção positiva se choca com as exigências de

igualdade do Direito e à imparcialidade do

estado? caminhamos no sentido da justiça

social? a busca de uma igualdade real pode

ser incompatível com os princípios de igual-

dade formal?

sabemos que nem todos os membros das

minorias são desfavorecidos e os que sabem

aproveitar as vantagens são raramente os

mais desfavorecidos. Por outro lado, exis-

tem grupos da população realmente desfa-

vorecidos que não pertencem às minorias

étnicas.

neste caso, todas as diferenças podem ser

defendidas? sabemos que há o risco de

opressão do grupo cultural sobre seus mem-

bros: como proteger a minoria das outras

minorias, os explorados dos excluídos? Por

vezes, ocorre até o contrário, pois foi invo-

cando a noção de Direito que os brancos de

origem holandesa defenderam o sistema do

“apartheid”. muitos pensadores, entre eles

charles taylor, autor de Multiculturalismo,

Diferença e Democracia, acreditam que ne-

nhuma política identitária deveria ultrapas-

sar a liberdade individual. Indivíduos, no seu

entender, são únicos e não poderiam ser ca-

tegorizados.

a quem cabe a legitimidade de atribuir uma

identidade? não é o indivíduo o único capaz

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de escolher a sua, ou as suas identidades de

pertença? mais ainda, quando pensamos que

identidades individuais são construídas em

oposição ao grupo de pertença, os especia-

listas concordam sobre o princípio de que as

diferenças culturais não podem colocar em

causa os direitos do homem e do cidadão.

nOvAS PERSPECtivAS

não podemos analisar tudo em termos de

culturas. a denúncia das discriminações e as

reivindicações pelo reconhecimento cultu-

ral parecem ter se sobreposto à luta de clas-

ses e à denúncia da exploração socioeconô-

mica que caracterizaram a primeira metade

do século na europa, e na segunda metade,

no brasil.

mas, na luta contra as discriminações, o es-

quema dominados/dominantes não é mais

possível. os conflitos sociais são cada vez

menos óbvios, menos maniqueístas. cada

um de nós pode ser ao mesmo tempo discri-

minado e discriminador. um operário pode

ser discriminado socialmente, mas também

discriminar como homem, como pai e como

marido. existe, hoje, uma oposição entre as

políticas sociais e as políticas multiculturais.

os que são objeto de discriminação cultural

são também os que mais sofrem as desigual-

dades socioeconômicas. Por trás da tensão

entre brancos e negros, há, antes de qual-

quer coisa, a tensão entre ricos e pobres.

vale lembrar, ainda, que o reconhecimento

de uma cultura minoritária não implica o fim

de sua alienação socioeconômica. o grande

desafio consiste em conciliar as políticas de

reconhecimento e as de redistribuição.

Pesquisadores de todas as áreas insistem

sobre a necessidade de construir uma ver-

dadeira “educação intercultural”. apresen-

ta-se, aí, a ocasião de um aprendizado de-

mocrático. É a ideia de uma democracia de

mores proposta por Farhad Khosrokhavar,

na qual a comunicação cultural é possível:

democracia feita de respeito à alteridade

cultural e de tolerância. É, também, a ideia

de uma “democracia inclusiva”, na qual as

comunidades não se definiriam mais pela

exclusão.

É também a vontade de viver junto que

funda uma cultura e permite uma relativa

homogeneidade social. Quando uma socie-

dade se diz multirracial, ela se bate, igual-

mente, contra a desigualdade racial. taylor,

por exemplo, definiu a democracia como a

política do reconhecimento do outro, logo,

da diversidade. mais adiante, o debate so-

bre o multiculturalismo obriga também a

redefinir o conceito de cultura, sobretudo,

a alargá-lo para aí incluir um conjunto de

diferenças comportamentais. as culturas

são menos feitas de tradição do que de re-

presentações construídas pela história, sus-

cetíveis de mudanças tal como vemos nas

reivindicações de uns e outros.

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como já demonstraram o sociólogo michel

Wieviorka e o historiador serge gruzinski,

o hibridismo e a maleabilidade das cultu-

ras são, igualmente, fatores positivos de

inovação. considerar a cultura como algo

que não é variável, bem como julgar sobre

diferenças culturais são também formas de

marcar a cultura com um selo de autenti-

cidade que não existe e fixá-la num molde

único. uma saída possível seria considerar

as vantagens da mestiçagem cultural, este

poderoso fator de mudanças, de criativida-

de e de invenção, e que não é objeto de ne-

nhuma reivindicação. mas o que dizer de

mulatos que, na bahia e no caribe, despre-

zam os negros?

Foi se apoiando em suas raízes culturais

que a ação dos negros brasileiros tomou a

dimensão de um movimento social de mas-

sas. nas ruas das grandes cidades brasilei-

ras já é possível ler, em muitas camisetas,

“100% negro!”. Desde os anos 80, a questão

racial está nos espaços públicos e teve iní-

cio um debate interno sobre as representa-

ções coletivas, sua história, sua diversidade

cultural e racial. a maior parte deles acedeu

à consciência negra pela brecha da cultura

popular. a música afro-brasileira e as escolas

de samba tiveram aí um importante papel

mobilizador. a busca da “pureza africana”

acompanhou-se também de uma crítica fe-

roz ao sincretismo. Finalmente, a aprovação

de cotas para os afro-brasileiros na univer-

sidade e no funcionalismo público acabou

por negar a fábula do encontro harmonioso

entre as três raças. Durante muitos anos, os

negros aceitaram a ilusão de que a mestiça-

gem poderia ser a solução para a discrimi-

nação racial, diluindo a cor em casamentos

mistos. mas a questão da raça está também

ligada à da posição social: quanto mais so-

bem na escala social, mais os negros se tor-

nam brancos.

o processo de reafricanização do brasil tal-

vez melhore o status social, artístico ou reli-

gioso de muitos de nós. mudanças, contudo,

dependem diretamente da redistribuição

de renda e do fim das desigualdades imen-

sas entre ricos e pobres. aí, sim, estaremos

prontos para construir uma democracia in-

clusiva e intercultural.

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WIeWIorKa, michel; oHana, Jocelyne (dir.).

La différence culturelle. une reformulation

des débats. Paris: balland, 2001.

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28

II. POR Um mULTICULTURALISmO DEmOCRáTICO1

Sueli Carneiro 2

gênero, raça/etnia, orientação sexual, reli-

gião e classe social são algumas das variá-

veis que se impõem contemporaneamente,

conformando novos sujeitos políticos que

demandam ao estado e à sociedade por re-

conhecimento e políticas inclusivas.

a emergência desses novos atores decorre

da insuficiência da perspectiva universalista

para contemplar as diferentes identidades

sociais e realizar um dos fundamentos da

democracia, que é o princípio de igualdade

para todos. a imposição de um sujeito uni-

versal ao qual todos os seres humanos seriam

redutíveis obscureceu, ao longo dos tempos,

as ideologias discricionárias que promovem

as desigualdades entre os sexos, as raças, as

classes sociais, as religiões etc... são elas: o

patriarcalismo, que, ao instituir como natu-

ral a hegemonia do sexo masculino, justifi-

ca todas as formas de controle, violência e

exclusão social da maioria dos seres huma-

nos que pertencem ao sexo masculino; o eli-

tismo classista determinado por modos de

produção que instituem classes minoritárias

abastadas, que submetem e exploram maio-

rias despossuídas; homofobia decorrente da

imposição da heterossexualidade como for-

ma exclusiva de relacionamento afetivo e se-

xual e condenação arbitrária, muitas vezes

violenta, do relacionamento entre pessoas

do mesmo sexo; fundamentalismo religioso,

responsável por grande parte dos martírios

ocorridos na história da humanidade, em

que cada denominação religiosa, ao buscar

impor o seu Deus aos outros, transforma-o,

paradoxalmente, em uma das principais fon-

tes de intolerância do mundo; racismo que,

ao eleger que um grupo racial é superior ao

outro, provoca a desumanização de grupos

humanos, justificando as formas mais abje-

tas de opressão, tais como a escravidão, os

holocaustos e genocídios e a discriminação

étnica e racial.

essas são algumas das ideologias que cons-

piram contra a consolidação da democra-

cia e o pleno gozo dos direitos de cidadania

1 Debates: multiculturalismo e educação – 2002 / Pgm 2.

2 Diretora do geledés – Instituto da mulher negra, pós-graduanda em Filosofia da educação pela universidade de são Paulo e articulista do Jornal correio braziliense.

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para a maioria da população em nosso país,

tornando o homem branco, de classe supe-

rior e heterossexual, no único tipo humano

a desfrutar plenamente do exercício de di-

reitos e poder em nossa sociedade. Por isso,

esse tipo humano, embora se constitua uma

minoria, está em absoluta maioria nas ins-

tâncias de mando e de poder da sociedade.

É em função dessa evidência que adentram

à cena política os movimentos de minorias

políticas, como o movimento de mulheres

lutando pela igualdade de gênero, de gays

e lésbicas pelo direito e respeito à orienta-

ção sexual diferente, de negros ou afrodes-

cendentes por igualdade de direitos, etc. ou

seja, a afirmação da diferença constitui-se

num pressuposto para conquistar a igualda-

de. e, dentre esses movimentos, a questão

racial aparece no momento como aquela

que maior peso tem na estruturação das

desigualdades sociais no brasil, impactando

todos os indicadores sociais, como se pode

auferir pelos estudos realizados pelo Ibge,

IPea, DIeese entre outros. Por isso, a enfati-

zamos nesse texto.

a temática da diversidade sempre esteve

presente no debate nacional e informou as

principais teses sobre a identidade nacional

ou a formação do País enquanto nação.

triunfou, neste debate, um discurso ufa-

nista em relação ao caráter plural de nossa

identidade nacional, a despeito de esta ter

sido construída a partir de uma perspectiva

hierárquica, segundo a qual, no topo, se en-

contram os brancos responsáveis pelo nosso

processo civilizatório e, na base, os negros e

indígenas, contribuindo com pinceladas cul-

turais exóticas, que caracterizariam o jeito

especial de ser do brasileiro.

a primeira questão que esta visão coloca é

a despolitização dos processos de exclusão

e discriminação que os “diferentes” sofrem

em nossa sociedade, como também escamo-

teia a forma pela qual historicamente este

“diferente” vem sendo construído em opo-

sição a uma universalidade cultural branca

e ocidental, supostamente legítima para se

instituir como paradigma, segundo o qual

os diversos povos do mundo são avaliados.

Há um outro viés neste debate sobre diver-

sidade. ele é tão mais aceito quanto mais

for capaz de encobrir um elemento básico

e estruturante da nossa sociedade, que é o

racismo, o maior tabu da sociedade brasi-

leira, em relação ao qual há uma verdadeira

conspiração de silêncio.

as organizações negras vêm, ao longo das

últimas três décadas, denunciando os pro-

cessos de exclusão a que os negros estão

submetidos na sociedade brasileira, seja no

mercado de trabalho, sensibilizando as enti-

dades sindicais para a incorporação da luta

contra o racismo e pela utilização dos me-

canismos internacionais que combatem as

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discriminações no âmbito do trabalho, seja

no setor empresarial, sensibilizando-o para a

adoção de políticas de diversidade em seus

processos de seleção. ocupam-se ainda em

projetos de capacitação e reciclagem da mão-

-de-obra negra para o mercado de trabalho.

as ações que vêm sendo realizadas pelas

organizações negras no campo da educa-

ção expressam-se em diferentes dimensões

dessa temática, incidindo sobre a educação

formal nos diferentes níveis; na produção e

avaliação crítica de instrumentos didáticos;

em projetos de formação para o exercício da

cidadania, para a capacitação para o merca-

do de trabalho e/ou para o fortalecimento

da capacidade de pressão sobre o estado.

a compreensão de que o racismo e a discri-

minação impedem a distribuição igualitária

da Justiça no brasil vêm motivando diversas

iniciativas. a constiuição de 1988, ao tornar

o racismo crime inafiançável e imprescrití-

vel, criou uma oportunidade nova de enfren-

tamento do racismo na esfera legal. Desde

então, essa perspectiva jurídica fez surgir

projetos exemplares e pioneiros, como os

sos racismo, serviços de assistência legal

para vítimas de discriminação racial, uma

experiência exitosa que já se multiplicou em

diversos estados do país e em alguns dos pa-

íses da américa latina.

no campo da cultura, são inúmeras as ex-

periências de politização das expressões cul-

turais negras, no sentido do fortalecimento

da identidade étnica e racial da população

negra, tais como as oriundas dos terreiros

de candomblé, das bandas de rap ou dos

blocos afros. avançou a organização política

das comunidades remanescentes de quilom-

bos, adquirindo dimensões nacionais, e elas

demandam, cada vez com maior contun-

dência, ao estado, o direito pela titulação

de suas terras ancestrais e a um desenvolvi-

mento sustentado.

as organizações negras vêm monitorando

e denunciando as práticas discriminatórias

presentes nos veículos de comunicação de

massa e, através dos casos exemplares de

discriminação, mobilizam a opinião pública

para o debate da questão racial. essas de-

núncias e críticas vêm obrigando os veículos

de comunicação a ampliarem e diversifica-

rem a presença de negros nesses veículos,

em especial na televisão.

as organizações de mulheres negras, por sua

vez, vêm desenvolvendo uma série de expe-

riências-modelo em diversos campos, tais

como em comunicação, novas tecnologias,

advocacy em mídia; atendimento jurídico e

psicossocial a mulheres vítimas de violência

doméstica e sexual; experiências inovado-

ras na abordagem das sequelas emocionais

produzidas pelo racismo. e, sobretudo, as

organizações de mulheres negras impulsio-

naram a intervenção do ponto de vista racial

na questão da saúde, dando visibilidade às

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questões das doenças étnicas/raciais ou do-

enças de maior incidência entre a população

negra, denunciando o viés controlista sobre

a população negra que a esterilização tem

no brasil.

Portanto, as organizações negras vêm de-

senvolvendo um conjunto de “boas práti-

cas”, ou de experiências exemplares, em

nível nacional, para a inclusão efetiva dos

negros na sociedade brasileira.

essas experiências expressam a responsabili-

dade que os negros organizados têm em re-

lação à população negra, na busca de cons-

trução de uma rede de solidariedade baseada

na identidade racial e na consciência do per-

tencimento a uma comunidade de destino

fundada numa experiência histórica com-

partilhada. essas práticas visam à superação

da discriminação racial e, sobretudo, visam

oferecer ao estado e aos governos modelos

para políticas públicas que, ao beneficiarem

a comunidade negra, promovam a realização

da igualdade de direitos e oportunidades.

a sociedade civil negra vem fazendo a sua

parte: denuncia, reivindica, formula e im-

plementa propostas inclusivas. no entanto,

essas ações alcançam baixa visibilidade e

pouca adesão e solidariedade do conjunto

da sociedade.

a problemática racial requer vontade políti-

ca dos governos, empresas e demais institui-

ções da sociedade para a adoção de políticas

que rompam com a apartação racial existen-

te no brasil, que se exprime nos índices de

desigualdades raciais em alguns indicadores

superiores aos encontrados para a África do

sul.

como indica uma propaganda, “é hora de

mudar os nossos conceitos”. Isso implica,

por exemplo, desnaturalizar a heterossexua-

lidade, a hegemonia masculina, a suprema-

cia branca. nesse último caso, exige, sobre-

tudo, no rompimento com o “conforto” do

mito da democracia racial, em prol do reco-

nhecimento de que é imperiosa a correção

das injustiças sociais motivadas pela exclu-

são dos negros, em especial das mulheres

negras em nossa sociedade.

É uma exigência ética, um pressuposto para

a consolidação da democracia e condição de

reconciliação do país com sua história, no

sentido da construção de um futuro mais

justo e igualitário para todos.

uma inspiradora abordagem da questão do

multiculturalismo no brasil nos é oferecida

por Jacques Dadesky em seu livro Racismo

e anti-racismo no Brasil. Partindo da noção

hegeliana de reconhecimento, Dadesky nos

anuncia que é o desejo de reconhecimento

que nos leva à luta. Desejo de reconhecimen-

to de nossa igualdade e dignidade humanas,

o que se traduz politicamente na luta pelo

direito igualitário aos bens materiais e sim-

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bólicos de prestígio da sociedade. Desejo de

reconhecimento de nossa identidade cultu-

ral diferenciada, do qual decorre a luta pelo

direito de sermos quem somos, sem precisar

nos negar para sermos aceitos.

Para Jacques Dadesky, são esses os eixos de

luta que estruturam o discurso e a práxis

antirracista dos movimentos negros brasi-

leiros, em resposta ao racismo característi-

co de nossa sociedade que, segundo ele, ao

fundar-se num tipo de pluralismo étnico que

prescinde de um tratamento igualitário das

diferentes culturas, legitima as hierarquias

e desigualdades materiais e simbólicas entre

os grupos étnicos e raciais.

Da exegese das contradições colocadas por

essa forma de racismo e do tipo de antirracis-

mo que ele produz, Dadesky retirará o subs-

trato para a formulação de sua concepção de

um multiculturalismo democrático capaz de

realizar, a um só tempo, o reconhecimento

da igualdade da cidadania e do valor igualitá-

rio intrínseco das diferentes culturas.

tal como afirma o jurista Jorge da silva: “a

cidadania plena se afirma pela conjugação

do desfrute dos direitos civis, dos direitos

políticos e dos direitos sociais. a situação

dos cidadãos negros pode ser aferida pela

garantia desses direitos: de liberdade de ir

e vir (e não ser molestado pela polícia como

‘suspeito’ em função da cor da pele); de ser

lembrado para ocupar posições de confian-

ça e destaque; da possibilidade de acesso ao

trabalho digno e à moradia; de educar-se

nas mesmas condições dos cidadãos da clas-

se média e de acesso aos sistemas de saúde,

público ou privado”.

Portanto, da forma pela qual a sociedade

brasileira enfrentar estas questões depen-

de o projeto de nação inclusiva que todos

desejamos ou a consolidação do projeto

de nação excludente que vem sendo cons-

truído há mais de 500 anos de extermínio

dos povos indígenas e de marginalização

social dos negros em prol do desejado em-

branquecimento racial, étnico e cultural do

país.

REFERênCiAS

D’aDesKY, Jacques. Pluralismo Étnico e Multi-

culturalismo - racismos e antirracismos no

brasil. ed. Pallas, 2001.

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III. PLURALIDADE E DIvERSIDADE1

Carla Ramos2

uMA PEQuEnA HiStóRiA Ou

QuAnDO SigniFiCADOS E

SEnSAÇõES EStÃO juntOS

gosto da idéia de que as palavras têm sen-

tido e de que muitas delas carregam sensa-

ções3. Primeiramente, vamos ao significado:

Diversidade: qualidade daquilo que é diver-

so, diferente, variado; Pluralidade: fato de

existir uma grande quantidade, de não ser o

único; multiplicidade, diversidade4.

e, para debater estes conceitos, reporto-

-me a uma pequena história. em outubro de

2005, um homem com aproximadamente 60

anos para o seu carro numa rua da tranquila

cidade de malmo, sul da suécia, e inicia uma

discussão fervorosa com um grupo de jovens

estudantes. os gritos começam a chamar a

atenção dos vizinhos, que abrem as janelas

para olhar o que estava acontecendo. eu e

a minha amiga, na época radicada naquele

país, saímos apressadas para a rua, na ten-

tativa de entender o motivo daquele inusita-

do acontecimento. Quando chegamos bem

perto, um carro de polícia tinha acabado de

estacionar. o homem, visivelmente trans-

tornado, afirmava que aqueles jovens “só

podiam ser estrangeiros”, “só podiam ser

árabes” “porque não sabiam e nem respeita-

vam as regras de trânsito”. ao passo que os

estudantes, um deles mais exaltado, respon-

deu que os seus pais eram “chilenos”, e que

ele era “sueco”! a briga durou cerca de duas

horas e terminou com os policiais contem-

porizando a situação, os vizinhos fechando

silenciosamente as janelas, o homem indo

embora e os estudantes dispersando-se pelo

caminho.

a razão deste sério desentendimento foi

uma suposta infração do código de trânsito

cometida por um daqueles jovens, quando

andava de bicicleta. as regras para o trá-

1 a cidade como espaço educativo – 2008 / Pgm 5

2 mestre em sociologia e antropologia pela uFrJ/PPgsa e analista educacional do salto para o Futuro

3 bauman, Zygmunt. comunidade. A busca por segurança no mundo atual (cf. bibliografia).

4 Dicionário Houaiss. rio de Janeiro, editora objetiva, 2001.

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fego em vias suecas são rígidas e dizem

respeito também às pessoas que utilizam a

bicicleta como meio de transporte diário.

mas qual seria a importância deste evento

para pensarmos as noções de diversidade e

pluralidade? além de nos dar uma pequena

mostra das relações sociais daquele país, o

conflito nos permite observar, por exemplo,

que percepções de ordem moral e racial,

como o fato de atribuir comportamentos

desviantes a grupos estigmatizados social-

mente – neste caso: “árabes” e “estrangei-

ros” – fazem parte do repertório do nosso

mundo contemporâneo, tão marcado pelo

fenômeno da imigração e de um regime de

verdades, de um sistema de representações

– por que não dizer? – ainda tributário do

colonialismo5.

todos os dias somos bombardeados com

imagens, capturadas por agências de notí-

cias internacionais, que trazem o mundo

para dentro das nossas casas via telejornais,

jornais impressos, revistas, internet e outras

mídias. no entanto, cabe perguntar: como o

mundo está sendo representado? como as

“pessoas” aparecem? De que modo os luga-

res são retratados? Podemos observar, por

exemplo, uma notícia bastante conhecida

por todos nós: o conflito envolvendo israe-

lenses e palestinos. na maioria das reporta-

gens, os palestinos são mostrados como hor-

das de homens barbudos, que correm de um

lado para outro, aos berros, carregando cor-

pos de companheiros vitimados no confron-

to. as suas mulheres vestem exóticos trajes

cobrindo a cabeça e o rosto e perambulam

como fantasmas pelas mesmas ruas, ruas

devastadas; uma paisagem inóspita, digna

dos filmes de ficção científica hollywoodia-

nos. na África, que vale sublinhar, não é um

país, mas um continente, o que em geral é

mostrado são epidemias, mortes, guerras,

fome, desespero e brutalidade. Diante disso,

cabe perguntar: quem são estes “árabes pa-

lestinos” e quem são estes “africanos”? eles

sequer têm uma língua porque não têm voz;

não têm família, porque vivem aos bandos

e raramente são mostrados seus núcleos fa-

miliares. o que resta deste diferente, senão

a sua diferença estereotipada pela mídia? e

a pluralidade de vozes, de visões de mundo,

de pensamentos, de ideologias, de corpos,

de histórias, de História? tudo é facilmen-

te suplantado diante do fast food diário de

onde retiramos punhados de narrativas es-

tereotipadas sobre o Outro6.

ainda sob este aspecto, o filme do diretor ca-

nadense Paul Haggis, Crash: no limite, mos-

tra a população da cidade de los angeles,

nos estados unidos, na iminência de um co-

5 no brasil padecemos do mal causado pela discriminação racial, de gênero, religiosa, de classe, motivada pela opção sexual, etc. estas atitudes atingem e traumatizam milhares de pessoas todos os dias em nosso país.

6 só precisamos olhar ao nosso redor e prestar mais atenção nas nossas atitudes cotidianas para perceber as práticas discriminatórias, os nossos preconceitos e a dificuldade explícita de conviver com a diferença.

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lapso causado por um excesso de, digamos,

diversidade e pluralidade, e pela consequente

impossibilidade de convívio e comunicação

em tal contexto. neste caso, a emergência

das diferenças e do fundamentalismo das

identidades guetorizadas com nuanças es-

sencialistas desarticularam o aparato das

regras de convívio social que, idealmente,

serviria a todos da mesma maneira. a partir

de então, qualquer desentendimento pas-

sou a ser motivo para acusações de cunho

racial, todo problema é interpretado como

de fundo étnico, todos os desencontros são

causados por barreiras linguísticas ou de

costumes/tradições particulares, e as insti-

tuições operam de maneira a privilegiar gru-

pos religiosos, castas, etc. estes são momen-

tos profundamente dolorosos e traumáticos

para todo e qualquer grupamento humano.

não obstante este cenário pouco atraente,

os personagens permaneciam ligados; to-

dos estavam implicados nos rumos da tra-

ma, nos rumos daquela sociedade; os laços,

mesmo esgarçados, sobreviviam e aponta-

vam para algumas saídas e uma delas foi

o afeto. o afeto foi/é um dispositivo capaz

de reordenar, por exemplo, contextos mar-

cados por dinâmicas violentas de conflito e

cisão, como aconteceu na África do sul, no

pós-apartheid7.

DinâMiCAS DE CiSÃO E DE

RECOnStRuÇÃO

alguns autores apontam, e eu me identifi-

co com esta perspectiva, que estamos em

meio a um turbilhão de mudanças que

atingem, em cheio, os padrões de identida-

de que conhecemos na chamada moderni-

dade tardia8. De acordo com isso, teríamos

o seguinte quadro interpretativo: temos o

mundo social e os indivíduos que, por sua

vez, se ligam ao primeiro por um conjun-

to de referências e estas podem ser cultu-

rais, por exemplo. tais referências atuam

“estabilizando” os indivíduos em seus con-

textos. o meu objetivo neste texto é fazer

um exercício de reflexão acerca da noção

de diversidade e pluralidade num mundo em

movimento, não é demais lembrar, onde

as tradicionais fontes de representações

culturais, de significados, como o estado-

-nação, deixam de ser hegemônicos. as

consequências são variadas e é preciso um

esforço de investigação amplo e extenso

para dar conta de mapeá-las. no entanto,

é importante seguir algumas pistas que po-

dem nos levar na direção destas mudanças

na ordem das identidades culturais: se por

um lado os padrões de identificação tradi-

cionais do estado-nação perderam força

7 esta “saída” foi habilidosamente apresentada num romance da autora sul-africana nadine gordimer chamado: Engate.

8 não vou me estender aos pormenores do debate. Para tanto, sugiro o precioso e inspirador livro do autor jamaicano stuart Hall: A identidade cultural na pós-modernidade.

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no embate com a diversidade e a pluralidade

reivindicadas pelos grupos que antes esta-

vam silenciados sob o plácido manto “na-

cional”; de outro lado, acompanhamos o

ressurgimento de um nacionalismo de tipo

étnico/racial e fundamentalista religioso.

Diante deste quadro, quem sabe, podería-

mos resgatar a tese de gramsci, e trabalhar

a partir do entendimento de que o mundo

das disputas políticas é o palco para a con-

quista de mentes e corações para esta ou

aquela ideologia. a diversidade e a plurali-

dade, como valores para serem celebrados,

não nascem por geração espontânea, não

são algo genético, alguma coisa inevitável.

Pelo contrário, são ideologias, forjadas, la-

pidadas, escolhidas e levadas a cabo por

obra e engenharia humana, dos grupos so-

ciais, portanto, são históricos9! o brasil, por

exemplo, no século XIX, foi condenado pela

ciência europeia eugenista a poucos anos

de sobrevivência como nação; isto porque

era escandaloso verificar as variações de

cores e tipos de pessoas que conviviam nas

cidades do antigo Império Português. “es-

candaloso” é uma boa palavra para resumir

o sentimento de estranhamento e horror

declarado por renomados cientistas e po-

líticos franceses e ingleses depois de um

pequeno passeio pelas ruas do rio de Janei-

ro. não tínhamos saída! estávamos fadados

ao fim por causa de um povo/raça fraco e

doentio; um contingente de homens e mu-

lheres resultante de assombrosos intercur-

sos sexuais entre negros, brancos e índios.

uma população cuja força havia se enfra-

quecido biologicamente, havia se tornado

impura, sem chances de vida.

sobrevivemos a isso? alcançamos o século

XXI! mas de que maneira nos livramos desta

sentença de morte e alcançamos a condição

de “País do Futuro”10? Que engenharia so-

cial foi responsável por este acontecimento?

vou ressaltar, de maneira bastante sintéti-

ca, apenas uma dimensão desta luta por um

contra-argumento bastante representativo:

foram muitos anos de intensa produção

intelectual por estas terras e pelo mundo

afora até que a tese das diferenças culturais

conseguisse um campo maior de hegemo-

nia, em prejuízo do biologismo, da hipótese

segundo a qual a humanidade devia as suas

diferenças às divisões raciais que classifi-

cavam os grupos humanos de acordo com

a sua localização numa linha evolutiva11. o

brasil começou a ganhar fôlego e horizonte

a partir da celebração da mistura – genéti-

ca e cultural – do povo que por estas terras

está12. misturar, mesclar, sincretizar, tornar

híbrido tanto pessoas quanto tradições cul-

turais: a celebração destas possibilidades

precisa ser inventada.

9 uma leitura interessante é o artigo de claude lévi-strauss chamado Raça e História.

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A CiDADE COMO ESPAÇO A

SER PERMAnEntEMEntE

COnQuiStADO

visto isso, podemos pensar a respeito do

papel da cidade neste grande panorama

que acabamos de desenhar. a cidade é o

lugar onde estes embates se dão, ela é mol-

dada, ela está organizada, ela reflete e é

refletida nestes encontros promovidos sob

a égide da diversidade e da pluralidade. em

suma, a cidade é um ente pulsante neste

jogo. a geofísica, as fronteiras, a arquite-

tura, o seu desenho sociopolítico: a cida-

de é chão e abstração. Quando emigram,

as pessoas levam consigo as suas cidades.

com elas viajam hábitos, cheiros, gostos,

festas, paisagens, sotaques característicos,

etc. neste sentido, a cidade está inscrita

em nossos corpos. Dessa maneira, quão

desnorteador deve ser o desaparecimento

súbito de uma cidade que sucumbe à guer-

ra... Dá para imaginar o quanto de agonia

está disseminada entre milhares de pesso-

as que vivem há anos nos campos de re-

fugiados espalhados pelo planeta, que vi-

vem neste vácuo, neste espaço provisório

que teima em não permitir que elas deitem

raízes? mas a cidade também é raivosa e,

muitas vezes, dá as costas aos sujeitos. e

quando isso acontece, os movimentos so-

ciais – os coletivos organizados – precisam

retomá-la à força. Por isso, será necessário

apropriar-se do patrimônio da cidade, de

sua pedra e cal, da sua intangibilidade para

depois colocar no plural a História e, por

fim, afirmar como é diversa a cidade que

antes se fez arredia.

a cidade precisa ser constantemente captu-

rada por seus cidadãos, afinal de contas, são

eles que lhe imprimem sentido. a educação

formal e a não-formal nos dão instrumentos

mais eficazes para colocar em prática este

intenso processo de reelaboração das “his-

tórias locais” sem perder de vista os “pro-

jetos globais”13. Quando olhamos ao nosso

redor, quando descobrimos e organizamos

as histórias sobre o lugar onde nascemos,

o bairro onde vivemos, a cidade em que

transitamos, estamos refazendo a paisa-

gem, apresentando nossas vozes e nossas

percepções sobre aquele espaço. É como

me explicou um jovem participante do gru-

po “reperiferia”, do rio de Janeiro, dizendo

que “reperiferia” significa repensar a peri-

10 Para saber mais, indico a leitura do clássico livro de stefan Zweig: Brasil um país do futuro.

11 sobre este tema, as minhas fontes para estas questões costumam ser os livros: Casa Grande e Senzala, de gilberto Freire; Raça, Ciência e Sociedade, organizado por marcos chor maio e ricardo dos santos ventura; Intenção e gesto: pessoa, cor e a produção cotidiana da (in)diferença no rio de Janeiro, da antropóloga olívia cunha.

12 ver gilberto Freyre: Casa Grande e Senzala (1933).

13 Fiz esta referência inspirada por um pensador argentino que vale a pena ser lido, Walter mignolo. o livro em questão tem o título: Histórias locais, Projetos globais. colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. (2003).

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feria; pensar novamente alguns lugares da

cidade que já estiveram submetidos ao olhar

de outras pessoas, muitas vezes descoladas

daquela realidade. a ideia é recolocar-se na

cidade a partir de um entendimento amplo

dos procedimentos de construção de sua ge-

opolítica e das dinâmicas culturais e sociais

que algumas vezes nos separam, e em ou-

tras refazem laços afetivos que imagináva-

mos não mais existir.

REFERênCiAS

bauman, Zygmunt. comunidade. A busca

por segurança no mundo atual. rio de Janei-

ro: Jorge Zahar editor, 2003.

cunHa, olivia m. gomes da. Intenção e Ges-

to: pessoa, cor e a produção cotidiana da (in)

diferença no rio de Janeiro, 1927-1942. rio

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Iv. SABERES CULTURAIS E EDUCAÇÃO DO FUTURO1

Edgard de Assis Carvalho2

o que são saberes culturais? são o acervo

de conhecimentos, entendimentos, realiza-

ções, progressos, regressões, utopias, desen-

cantamentos, produto de uma aventura que

nós construímos no planeta terra, datada

de pelo menos 130 mil anos. as sociedades

humanas, tal como as conhecemos hoje,

são o produto de uma longa evolução que

possibilitou a um pequeno bípede, com um

cérebro muito assemelhado ao de um chim-

panzé, e ainda mais ao de um bonobo, criar

cognições, transmiti-las, codificá-las. nos-

sas diferenças para com os primatas não hu-

manos diminuem a cada dia. o genoma das

duas espécies tem semelhanças de 99%. mês

passado, foi identificado o FoXP2. Humanos

que apresentam defeito nesse gene apre-

sentam graves problemas de fala. chimpan-

zés, orangotangos, resus e gorilas também

o possuem. talvez uma dissipação genética

tenha sido responsável pelo fenômeno da

fala, essa fantástica marca dos primatas hu-

manas que tornou possível criar e transmitir

saberes. De qualquer modo, denominou-se

cultura a esse patrimônio material e imate-

rial de proporções milenares.

Desde que o mundo passou a ser explica-

do pela ciência, instituiu-se uma fronteira

entre humanos e não humanos que nunca

foi suficientemente explicitada. essa divisão

entre animalidade e humanidade foi respon-

sável por muitas das definições pelas quais

o conceito de cultura passou a ser entendi-

do. em finais do século XIX, por exemplo, a

cultura era definida como a mera soma de

fatos que incluía desde tecnologias, artes,

até magias, religião, parentesco. em meados

dos anos XX, o conceito adquiriu contornos

mais precisos, dado que o ocidente voltou

seu olhar e sua cobiça para outros mundos,

considerados por uns como inferiores, por

outros simplesmente como diferentes, nati-

vos, primitivos, selvagens.

Instalou-se, a partir daí, a pulsão da desco-

berta e a compulsão da descrição, definido-

1 complexidade e seus reflexos na educação (2002).

2 Professor titular de antropologia. coordenador de comPleXus – núcleo de estudos da complexidade da Faculdade/Pg de ciências sociais da Puc/sP.

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ras do metiê antropológico. as sociedades

humanas passaram a ser identificadas a or-

ganismos, cujas partes garantem, por vezes

precariamente, a continuidade harmoniosa

do todo. embora a analogia fosse precária,

os pesquisadores passaram a admitir que o

funcionamento das instituições era o único

responsável pela regulação da engrenagem

da sociedade. se, por um lado, esse tipo de

explicação propiciou uma radiografia por-

menorizada de usos e costumes, delibe-

radamente não levou em conta que essas

diferenças já faziam parte de um processo

histórico altamente desigual, que opunha, e

opõe até hoje, oriente a ocidente, civilizado

a primitivo, moderno a arcaico, capitalista a

nativo ou indígena.

no final dos anos 40, a distinção entre o

natural e o cultural passou por alteração

significativa, mesmo que a ideia da nature-

za como universalidade dos instintos e a de

cultura, como diversidade de padrões tenha

sido mantida. Passou-se a postular que entre

a natureza e a cultura havia algo simultane-

amente universal e particular, um fenôme-

no que se encontrava presente em todas as

sociedades humanas e que, ao mesmo tem-

po, era diferente em muitas delas. esse algo

mais era a proibição do incesto. o respon-

sável por este estudo foi claude lévistrauss.

se o incesto não tinha nada a ver, neces-

sariamente, com uniões consanguíneas, o

apelo da “voz do sangue” tornou-se inútil,

preconceituoso para explicar a essência dos

interditos. De qualquer forma, a proibição

passou a sinalizar a passagem da natureza

à cultura, da universalidade à diversidade,

garantia da perpetuação e reprodução do

mundo, propiciada pela circulação de mu-

lheres, bens econômicos e mensagens.

em decorrência disso, passou-se a questio-

nar se essas alteridades eram mesmo dife-

rentes em natureza (primitivo/civilizado),

em grau (inferior/superior) e pensamento

(pré-lógico e lógico). admitir que outros po-

vos pensavam como nós e, por vezes, me-

lhor do que nós, representou um duro golpe

para muitos, já narcisicamente abalados pe-

las impertinências e ferimentos provocados

pelas revoluções copernicana, darwiniana e

freudiana. mesmo que não tivessem escri-

ta para registrar seus saberes, os mitos que

construíram para entender melhor a reali-

dade em que viviam atravessaram gerações

e, até hoje, surpreendem leitores e pesqui-

sadores.

o arrogante pensamento domesticado, mo-

derno, científico, que se consolidou a partir

do século Xv, cercado de certezas, leis, de-

terminismos, causalidade, teleologias, dei-

xou de lado a preocupação com a totalidade,

com a intuição, com o imaginário, passando

a se concentrar no entendimento do frag-

mento, da parte, supondo que através deles

seria possível atingir uma objetividade sem

parênteses. com isso, virou as costas para

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o sujeito, para a incerteza e para a comple-

mentaridade, privatizou terras e mares, con-

siderou magias e mitos como algo irracio-

nal, produto descartável criado pela mente

obscura de selvagens, ou por alucinações

dos civilizados.

a principal consequência dessa visão de

mundo, no plano da educação, acabou por

consagrar, em décadas posteriores, a figura

do especialista, esse humano fechado em si

mesmo, egoísta, que descarta e desconsi-

dera tudo aquilo que ocorre para além dos

contornos infinitamente pequenos de sua

existência e de seu objeto de pesquisa.

o final dos anos 60 provocou outra altera-

ção no entendimento entre nós e os outros,

só que agora referente às formas materiais

de vida, às relações com a natureza pro-

priamente dita. um número considerável

de pesquisadores, identificados com o ma-

terialismo histórico, debruçou-se sobre po-

pulações não capitalistas, demonstrando

que uma vida igualitária, regida por normas

coletivas e solidárias não era coisa do outro

mundo. constatou-se, também, que não era

necessário trabalhar arduamente em tempo

integral para que a comunidade sobrevives-

se dignamente. maurice godelier e tantos

outros foram os responsáveis por essa esto-

cada no relativismo substantivista, que sem-

pre se traveste de tolerante para justificar e

manter a dominação.

Para surpresa de muitos, esses estranhos

mundos passaram a ser considerados como

as primeiras “sociedades da afluência”, pois

dedicavam poucas horas ao trabalho e, em

muitas delas, a palavra trabalho nem existia.

o restante do tempo era dedicado aos ritu-

ais reforçadores da vida e da solidariedade

coletivas.

essa ampliação cognitiva não conseguiu

abalar o sólido edifício do grande paradigma

do ocidente, e isso porque ainda mantinha

a definição do humano dentro de padrões

normativos demais. afinal de contas, fazen-

do parte do gênero homo, a espécie sapiens é

igualmente faber, porque fabrica instrumen-

tos, loquens, porque articula fantásticos jo-

gos de linguagem, ludens, porque se encan-

ta com jogos e rituais, simbolicus, porque

atribui significados ao mundo e acumula e

transmite saberes.

não foi fácil admitir que não éramos ape-

nas sapiens. se chimpanzés, bonobos, gori-

las já exibem sapientalidade, ganhamos um

segundo adjetivo e passamos a ser definidos

como sapiens sapiens. a repetição do ter-

mo não se deu por acaso. as pesquisas de

richard e louis leakey, Jane goodall, Frans

de Waal mostram a todos nós que a cultu-

ra, antes privilégio nosso, é algo muito mais

amplo do que supúnhamos anteriormente.

o “antropocentrismo satírico” de Wall fun-

damenta-se no pressuposto de que chim-

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panzés, por exemplo, vivem em sociedades

complexas, e se arranjam como podem para

enfrentar alianças, conflitos e lutas pelo po-

der. bonobos preferem fazer amor sob for-

mas as mais variadas, para que as contendas

se anulem e a reconciliação seja reposta.

a diminuição da distância intelectual e cog-

nitiva entre primatas exigiu que o conceito

fosse visto de modo menos excludente, o

que de fato ocorreu a partir dos anos 70. ao

manter acopladas as noções de unidade e

diversidade, a cultura passou a ser entendi-

da como um conjunto complexo de saberes,

por vezes contraditório, por outras harmô-

nico, de regras, normas, valores, mitos, so-

nhos, que primatas, humanos preferencial-

mente, acionam ao se defrontarem com os

desafios do ecossistema circundante.

semelhantes e diferentes, universais e par-

ticulares, produzimos diferenças locais que

não devem ser entendidas como ilhas inco-

municáveis de um arquipélago, mas como

um continente de objetos complexos, mani-

festações de algo mais profundo e universal,

construído num longo processo evolutivo

não linear, que envolveu sempre perdas, ga-

nhos, avanços e recuos.

longe de serem consideradas como uma

dualidade de fronteiras intransponíveis, é

preciso acionar os operadores da recursivi-

dade e da dialógica e enxergar a natureza na

cultura e vice-versa. somos naturais porque

inscritos numa complexa ordem biológica;

somos culturais porque capazes de elaborar

estratégias de sobrevivência e adaptação, a

curto, médio e longo prazos, onde quer que

nos encontremos. em resumo, e a ideia é de

edgar morin, somos 100% natureza, 100%

cultura, ou melhor dizendo, somos seres vi-

vos uniduais, carregamos conosco uma tra-

jetória biológica milenar, ao mesmo tempo

em que somos portadores de um vasto acer-

vo cultural constituído pela memória coleti-

va da espécie.

Porque falamos, comunicamos, planejamos,

calculamos, competimos, amamos e odia-

mos, passamos a nos autoatribuir uma su-

perioridade ímpar perante os demais seres

vivos. em cada um de nós existe algo que es-

capa a essas características normativas de-

mais, sistemáticas demais. a cada momen-

to, somos invadidos por delírios, sonhos,

excessos, loucuras, descomedimentos que

escapam a nosso controle explícito, cons-

ciente.

treinados pela educação familiar e escolar a

afastá-los de nossa imaginação e a recalcá-

-los em nossa psique, temos que reaprender

a conviver e dialogar com eles, ou seja, in-

trojetar em nossas cabeças que somos sá-

bios e loucos, unos e múltiplos, duplos, e

que é exatamente isso que vialibizará, sem

excessos, processos civilizatórios solidários

e processos educativos religados. Sapiens sa-

piens demens, eis nossa condição, plano de

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imanência que nos permite viver, sobreviver,

afrontar, e talvez superar, a insignificância

dos mal-estares pós-modernos comandados

pela unidimensionalidade da tecnociência,

pela compulsão da conectividade, pela des-

razão da política, pela insuficiência dos afe-

tos.

Precisamos de um novo sujeito do conhe-

cimento, que não seja tecnofóbico e muito

menos antropofóbico, que reconheça o pa-

pel das tecnologias do infinitesimal, sem

atribuir-lhes papel determinante para desti-

nos futuros. o planeta tem urgência de ser

mais integrativo e interdependente. se fosse

possível traduzir esse ponto de vista em slo-

gans de um programa político, as palavras de

ordem dessa biocosmopolítica serão: conser-

vação em lugar de destruição, religação em

lugar de fragmentação, cooperação em lugar

de competição, partilha em lugar de concen-

tração, inclusão em lugar de exclusão.

a unesco, ao promover os quatro pilares

da educação para o século XXI, em torno de

quatro formas de aprendizagem, a saber:

conhecer, fazer, viver junto e ser, estava cer-

tamente imbuída da ideia de que a humani-

dade, a terra-Pátria, não pode ser concebida

como um meio de obter lucros e vantagens

para poucos, mas como um fim a ser cons-

truído por todos e para todos. na verdade,

trata-se de um aprendizado complexo, a ser

exercitado não apenas nas escolas, mas na

vida em geral. um amplo processo partici-

pativo, restaurador do homem genérico,

que envolve princípios, valores, utopias e,

certamente, um contrato planetário, social

e natural, no qual animais e homens, natu-

reza e cultura não se separem mais.

traduzir esses pilares para a sala de aula é

uma tarefa complexa, dadas as condições

em que o ensino se encontra, debatendo-

-se entre uma utopia democrática, a escola

para todos, e uma realidade meritocrática, a

escola para alguns. além disso, a fragmen-

tação disciplinar, empenhada em transmitir

conteúdos e gerar competências, esquece-se

de que a formação do sujeito responsável re-

quer como ponto de partida a religação dos

saberes, cabeças bem-feitas, como preten-

dia montaigne.

uma vez perguntaram a um poeta, mais

exatamente a Yves bonnefoy, porque ele

considerava fundamental o ensino da po-

esia nas escolas. sua resposta foi direta e

incisiva. Disse ele que a poesia propiciava

a prática da liberdade para com as palavras

e a vivência da responsabilidade com um

mundo melhor, com o sentido da vida. a po-

esia e a literatura em geral, as artes, com as

imagens que constroem, criam uma fantás-

tica reserva de emoções, abrem janelas para

o mundo, acionam níveis de realidade não

percebidos pela linguagem fria e distante

dos conceitos. Quando se aprende um po-

ema de cor, quando se lê um romance pela

décima vez, ou se guarda a imagem de uma

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pintura, eles permanecem para sempre em

nossa mente, como fiéis companheiros que

nos convidam a encarar a desregulação do

mundo de modo menos pessimista, a per-

ceber a realidade de forma menos linear, a

descrer dos ditames da razão, a usufruir das

delícias do imaginário.

essa escuta do mundo não implica obrigar

as escolas a incluírem a poesia em seus cur-

rículos, embora isso fosse até desejável. ela

alerta, porém, para o fato de que ciência e

imaginação não se excluem, mas se comple-

mentam, empenhadas que estão na decifra-

ção dos enigmas da vida. não é mais possí-

vel que a educação do século XXI mantenha

a separação entre as duas culturas, a saber: a

cultura científica e a cultura das humanida-

des. refiro-me, mais uma vez, aos propósi-

tos da unesco que pregam os princípios de

educação permanente, sociedade educativa,

reciclagem e atualização contínua dos con-

teúdos, sinergia entre alunos e professores.

um ensino compartimentalizado não conse-

guirá jamais promover esses objetivos. a re-

ligação exige não apenas cabeças bem-feitas,

mas disponibilidade e revolta docentes para

abrir compartimentos, fomentar incertezas,

promover o diálogo, reinventar o mundo.

se o século XX presenciou a irrupção da de-

sordem, da incerteza e da complementari-

dade e expôs como nunca a interface en-

tre ciência e política, o século XXI tem pela

frente a inédita possibilidade de restaurar o

conhecimento pertinente e não se deixar se-

duzir pelos confortáveis apelos da fragmen-

tação e da hiperespecialização. restaurar o

conhecimento pertinente implica integrar

razão e paixão, onda e partícula, unidade e

multiplicidade, arte e ciência, em acionar

uma espécie de significante flutuante, uma

força primordial que circula por toda parte,

que atravessa todos os códigos, que recupe-

ra o sentir, o agir e o pensar, que religa indi-

víduo, sociedade e cosmo, que se situa além

e aquém da vida e da morte.

toda vez que pensadores instauradores de

discursividade utilizaram-se da forma meta-

fórica da arte para aclarar o conteúdo som-

brio e metonímico da ciência, os saberes

culturais se enriqueceram, as duas culturas

se interligaram, a educação sentiu-se mais

gratificada. vejamos alguns poucos momen-

tos escolhidos ao acaso na vasta história do

pensamento em que isso ocorreu.

claude lévistrauss, em 1962, muniu-se de

um pequeno quadro de François clouet do

século XvI (1515-1572), elisabeth da Áustria,

para construir a ideia de modelo reduzido

como elemento propiciador da emoção es-

tética e da visibilidade dialógica entre a par-

te e o todo, magia e ciência, arte e ciência,

jogo e rito.

Humberto maturana e Francisco varela

abrem seu fabuloso livro, A Árvore do conhe-

cimento, com Hieronimus bosch (1450-1516),

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“o cristo coroado de espinhos”. Para ma-

turana e varela, o quadro expressa as ten-

tações da certeza. cristo, no centro, revela

imensa paciência diante dos verdugos, coisa

que precisamos muito diante da vigilância

cognitiva que nos ataca constantemente. o

personagem do canto direito segura Jesus

pelo manto. restringe sua liberdade, parece

dizer “eu sei, eu sei”. certezas demais, con-

vicções demais.

edgar morin refere-se, com certa frequência,

a guiseppe archimboldo (1527-1593). Quan-

do tomamos contato com suas pinturas,

nos surpreendemos com o caráter alegórico

da harmonia e do caos, a interdependência

dos quatro elementos, das estações do ano,

a comple¬mentaridade de flores, frutos e

peixes, as agruras e o peso da acumulação

dos saberes. o livreiro, um de seus quadros

mais comentados pelos críticos de arte, en-

contra-se literalmente embriagado de livros,

tragado pelo conhecimento. Descarnado, a

cortina o livra das intempéries do frio. um

pouco de todos nós estamos contidos nas

imagens desse livreiro, que acumula e religa

saberes sem saber ao certo o que fazer com

eles, como operacionalizá-los.

Ilya Prigogine, Prêmio nobel de Química de

1977, debruçou-se recentemente sobre rené

magritte (1898-1967). Para Prigogine, magrit-

te enfatiza sempre os mistérios da existên-

cia humana, insistindo que a obra de arte

os explicita e a ciência pretende, apenas, de-

cifrá-los e analisá-los. se a história humana

possui sempre um caráter não determinista,

devemos privilegiar as experiências da cria-

tividade, esse algo mais que resiste ao pen-

samento em detrimento das experiências da

repetição, prosaicas, equilibradas demais.

a arte de viver expressa exatamente isso: a

luminosidade da criatividade e a singeleza

da repetição. simetricamente irreversíveis,

nos debatemos entre essas duas dimensões

existenciais, pulsões constitutivas do serno-

mundo, como se a ordem nascesse sempre

da desordem, a vida sempre da morte, e as-

sim sucessivamente.

Finalmente, reencontramos Fernando Diniz

(1918-1999). em 1944, foi preso e levado para

o manicômio judiciário, porque, segundo

dizem, andava nu pelas areias de copacaba-

na. em 1949, foi internado no centro Psiqui-

átrico D. Pedro II, de onde não saiu nunca

mais. Iniciou-se nos ateliês de artes coorde-

nados por nise da silveira, a doutora nise,

odiada pela vigilância cognitiva instalada

na psiquiatria cartesiana, que considerava

os coterapeutas utilizados pelos clientes

simplesmente como animais destituídos de

emoções. a doutora sabia muito bem que

seus gatos e cachorros sofreriam muito nos

corredores hospitalares do Pedro II. não

esmoreceu. colocou tintas, pincéis, barro,

tecidos, linhas nas mãos de artur bispo do

rosário, adelina, carlos, raphael, emygdio,

Fernando, permitindo que “inumeráveis es-

tados do ser” aflorassem, mesmo diante das

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tristes consequências que choques, medica-

mentos, desafetos e abandonos provocam

na psique. Qualquer visita ao museu das

Imagens do Inconsciente, criado em 1952 no

rio de Janeiro, produz uma infinita sensação

de êxtase diante dos símbolos que as forças

do inconsciente acionam e explicitam.

Fernando Diniz produziu não apenas tape-

tes digitais e mandalas, mas um mosaico de

imagens figurativas, abstratas, orgânicas,

inorgânicas. trinta mil obras: telas, dese-

nhos, modelagens, tapetes, alguns titulados

outros não. Diz ele: “mudei para o mundo

das imagens”. Instado a definir o que era

um pintor afirmou: “o pintor é feito um livro

que não tem fim”. Desfez a separação entre

arte e loucura, consciente e inconsciente,

religou saberes.

afinal de contas, como ele mesmo afirma

num texto que escreveu, “a estrela existe,

antes de tudo, em cima da estrela se dese-

nham círculos, e em cima dos círculos bor-

boletas ou margaridas”. em 1996, foi pre-

miado no Festival de gramado na categoria

de melhor curta-metragem com o desenho

animado “a estrela de oito pontas”, para o

qual realizou cerca de 40 mil desenhos. rea-

lizou sua última exposição em 1998, no mu-

seu nacional de belas artes, rio de Janeiro.

morreu em 1999.

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v. REDES DE CONvIvêNCIA E DE ENFRENTAmENTO DAS DESIgUALDADES1

Elizeu Clementino de Souza2

“Eu não sou eu nem sou o outro, sou qualquer coisa de intermédio: pilar da ponte

de tédio que vai de mim para o outro”

(Mário de Sá Carneiro).

SinOPSE

o texto aborda questões relativas à identi-

dade e à diferença no cotidiano escolar e

as implicações nas práticas de formação.

busca discutir aspectos concernentes à fa-

bricação de identidades docentes e formas

historicamente construídas de regulação no

cotidiano escolar e no desenvolvimento pro-

fissional dos professores, a partir das práti-

cas pedagógicas implementadas na cultura

escolar, no tocante à homogeneização das

identidades, em negação à cultura da dife-

rença.

neste texto, que visa oferecer subsídios aos

debates do terceiro programa da série, pre-

tendo discutir questões teóricas e práticas

relacionadas à construção da identidade e à

vivência das diferenças no cotidiano escolar.

Pretendo, também, analisar as implicações

da construção da identidade profissional no

processo da formação docente e do desen-

volvimento profissional de professores, no

que se refere às diferenças e à intercultura-

lidade na escola.

vivemos numa sociedade marcada pela plu-

ralidade de imagens e diferenças sociais

e culturais. a escola, por sua vez, buscará

desenvolver seu projeto pedagógico com

ênfase nas diferenças e nas relações que os

indivíduos estabelecem consigo mesmos e

com os outros. convém questionar se nós,

professores, desenvolvemos nossas práticas

tendo em vista a assunção das identidades

e o respeito às diferenças. como podemos

viver os projetos de igualdade e do respei-

to à diversidade, tão presente e marcada na

sociedade brasileira? De que maneira a es-

cola pode tornar-se um território favorável à

aprendizagem do convívio com a diferença?

1 espaços de encontro: corporeidade e conhecimento – 2005 / Pgm 3.

2 Doutor em educação pela FaceD-uFba, Professor do Programa de Pós-graduação em educação e contemporaneidade da universidade do estado da bahia e das Faculdades Integradas olga mettig.

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compreendo a educação como um processo

de autotransformação do sujeito, que en-

volve e provoca aprendizagens em diferen-

tes domínios da existência, evidenciando o

processo que acontece em cada indivíduo,

traduzindo-se na dinâmica que estrutura ou

é estruturada por cada um no seu modo de

ser, estar, sentir, refletir e agir. sendo assim,

a educação e, por consequência, também

a formação, não se esbarram na transmis-

são e aquisição de saberes, na transferência

de competências técnicas e profissionais e,

tampouco, na assertiva das potencialidades

individuais. Filio-me à perspectiva epistemo-

lógica da formação experiencial, por enten-

der que a noção de processo de formação

que ela implica possibilita o centramento

no sujeito na globalidade da vida, entendida

como interação da existência com as diver-

sas esferas da ‘con-vivência’ como perspec-

tiva educativa e formativa.

É na dinâmica da vida e nas histórias tecidas

no nosso cotidiano que aprendemos dimen-

sões existenciais e experienciais sobre nós

mesmos, sobre os outros e sobre o meio em

que vivemos. no entrecruzamento de nossas

aprendizagens, a escola exerce um papel sin-

gular, visto que neste espaço ‘convivemos’

e internalizamos papéis sociais apreendidos

no cotidiano familiar. o investimento na for-

mação de professores e no trabalho coletivo

na escola poderá possibilitar outras formas

de trabalho didático e pedagógico, que con-

tribuam para a reafirmação de identidades,

para a vivência, para a tolerância e para o

respeito ao exercício da cidadania.

Discutir a fabricação da igualdade, tomada

aqui como projeto de homogeneização dos

indivíduos e da negação das diferenças no

espaço da escola, é uma tarefa que exige re-

afirmação de novas e constantes opções que

cruzam e entrecruzam a compreensão do

mundo, da vida, das aprendizagens e expe-

riências construídas ao longo da existência.

a vivência escolar se entrecruza, no seu co-

tidiano, com valores produzidos no coleti-

vo e no âmbito social, na medida em que

esses valores se modificam de acordo com

os condicionantes econômicos, políticos,

institucionais, culturais, físico-ambientais e

ético-estéticos. compreendo que é desse en-

trecruzamento que são apropriados, cons-

truídos e reconstruídos diversos processos

e formas da vida dos sujeitos como produ-

tores e construtores da história. Por isso,

penso que não devemos fechar a noção de

“identidade” como algo fixo, imutável e cris-

talizado, porque significa construção, daí a

necessidade de compreendê-la como pro-

cesso que comporta subjetividades, comple-

xidades, diferenças e não igualdades.

É fundamental desconfiar de tudo que é

naturalizado, especialmente, em relação às

práticas cotidianas engendradas na escola e

no espaço familiar, as quais são ancoradas

em padrões, envolvendo os sujeitos e refor-

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çando o projeto de igualdade, reforçando a

marginalização e escamoteando as diferen-

ças3 daqueles que transitam e optam por

formas de expressão e de manifestação que

não se enquadram nas legitimidades sociais

e institucionais.

teoricamente, busco em louro (1997, 1998),

Hall (2000) e silva (1999, 2000) princípios te-

óricos que me possibilitem apreender con-

ceitos e políticas de sentido sobre a iden-

tidade e a diferença no cotidiano escolar,

visto que “[...] consideramos a diferença

como um produto derivado da identidade.

nesta perspectiva, a identidade é a referên-

cia, é o ponto original relativamente ao qual

se define a diferença [...]” (sIlva, 1999, p. 74-

5). numa outra perspectiva, e no que con-

cerne à fabricação de identidades docentes,

busco em lawn (2000), moita (1992) e nóvoa

(1992a, b), aspectos teóricos sobre a cons-

trução de identidades profissionais e práti-

cas de regulação engendradas nas políticas

de formação.

ao abordar a subjetividade e o processo de

formação e (auto) formação do “devir pro-

fessor”, Pereira afirma que: “Quando pensa-

mos a construção das identidades, também

somos perseguidos por esse modelo de es-

tabilidade, de harmonia e de cristalização

como padrão desejado. a sociedade nos

dá, prontas, algumas identidades: homem,

mulher, professor, artista, mãe, pai, família,

escola etc.” (Pereira, 2000, p. 36). Desta for-

ma, reitera o autor que: “uma identidade é,

nesse caso, uma configuração cristalizada,

estereotipada de uma maneira de ser ou um

ritmo determinado em responder às figuras

demandadas [...]. a institucionalização das

identidades é uma forma de homogeneizar

o cotidiano e construir os grupamentos e as

coletividades [...]” (idem, p. 37). evidencia-

-se que a identidade não é uma construção

do sujeito por ele mesmo em suas relações

individual e coletiva, mas sim uma diferen-

ça que o sujeito produz em si. Por isso, a

identidade é produzida e forjada conforme

os modelos e padrões estabelecidos, como

quer a nossa sociedade, com base nas es-

tratégias e estratificações convencionadas

socialmente.

ao discutir sobre “os professores e a fabri-

cação de identidades” lawn4 (2000) afirma

que a construção e as alterações na identi-

3 Para o aprofundamento dessa questão, consultar o trabalho de stela rodrigues dos santos (2001): ‘o mito da homogeneidade no cotidiano da escola: um ideal insensato’, quando a autora analisa implicações e práticas discriminatórias e homogeneizadoras no cotidiano escolar, no tocante à fabricação de identidades dóceis e subservientes.

4 embora, como salienta o autor, o texto trate de um caso particular – os professores e a sociedade inglesa –, entendo que as questões por ele colocadas são cabíveis em outras esferas, que não especificamente o sistema público inglês. afirma o autor que “[...] a identidade do professor tem o potencial para não só refletir ou simbolizar o sistema, como também para ser manipulada, no sentido de melhor arquitetar a mudança [...]” (lawn, 2000, p. 71).

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dade são forjadas e governadas pelo estado,

o qual utiliza discursos como forma de con-

trolar as “identidades oficiais”. o discurso

revela-se como elemento de governação das

identidades oficiais e gerencia as reformas

pensadas como estratégias políticas de um

determinado momento histórico.

o controle da identidade dos professores e

o estabelecimento de ações de fiscalização

instauram-se como matriz da gestão da pro-

fissão, porque a mesma deve refletir e ade-

quar-se ao projeto educacional do estado e

representar a ideia de “identidade nacional e

de trabalho” (p. 69), como forma de garantir

mudanças no sistema educativo.

evidencia-se que a identidade é produzida

e performatizada através do discurso legal,

do administrativo e do pedagógico, os quais

são expressos através de parâmetros, regu-

lamentos, manuais, portarias, discursos pú-

blicos, projetos e programas de formação.

a relação posta pelo autor entre a fixação de

uma identidade nacional ou oficial e o mun-

do do trabalho torna-se visível pelos efeitos

práticos e ideológicos da administração e

da governação dos professores, seja através

das políticas de formação, das exigências

e ‘competências’ requeridas para seleção

ou contratação, o que evidencia que “[...] a

identidade pode ser um aspecto chave da

tecnologia do trabalho [...]” (p. 71). as mu-

danças e reformas educativas vinculam-se

aos modelos político-econômicos e refletem

as alterações que são impressas no trabalho

docente, relacionando-se às formas de con-

trole sobre a identidade dos professores e as

tecnologias impostas pelo trabalho.

Historicamente, as questões sobre fabrica-

ção da identidade e políticas reguladoras de

fronteira são ilustradas pelas lutas e tensões

dos professores nos movimentos trabalhis-

tas ao longo do século XX, na vinculação a

partidos de esquerda, na eleição ou candi-

datura de professores e na participação em

movimentos sociais.

em diferentes períodos e reformas, a fixação

da identidade dos professores, gerenciada

através dos discursos, materializa-se nas

mudanças e na reestruturação do trabalho.

estruturas e políticas tácitas são pensadas

pelo estado como forma de regulação das

identidades dos professores, seja para a ma-

nutenção das identidades oficiais ou para o

policiamento das fronteiras identitárias. os

professores contrapõem-se, através dos mo-

vimentos associativos e sociais da profissão,

ao discurso de governação e às políticas de

fronteira. a autonomia e o domínio exerci-

do no espaço da sala de aula, assim como

o controle por parte do sujeito professor do

seu fazer, podem criar dimensões de não

subserviência, de oposições e tensões sobre

a manutenção e as políticas de fronteiras

pensadas e reguladas pela nação, visto que

a “[...] existência de professores que não se

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adequam às identidades oficiais causa pâni-

co. Da mesma forma, as ideias que os pro-

fessores têm, e as pessoas às quais se asso-

ciam, também causam pânico [...]” (p. 76).

este princípio configura-se como um dos

problemas relacionados à manutenção das

fronteiras, estabelecendo dificuldades para

controlar e manter fidedignas as identidades

oficiais.

novos problemas são impostos cotidiana-

mente à identidade dos professores e às

políticas de fronteira. gerir a identidade

docente, através da polifonia de discursos

construídos na modernidade – como forma

de um novo controle sobre a profissão, ou

para as transformações exigidas pela socie-

dade do aprender a aprender – instala uma

nova crise sobre a profissão e os saberes da

profissão. as mudanças na forma de pensar

e de viver a identidade docente são constru-

ídas desde a década de 80, e se consubstan-

ciam na emergência de uma sociedade tec-

nológica, numa economia globalizada e no

acirramento das injustiças e desigualdades

entre as pessoas e as nações.

tais mudanças mexem significativamente

com a forma de pensar e de exercer a pro-

fissão docente, incluindo os formatos de

controle e de regulação das identidades. se,

nos anos 80, a identidade dos professores re-

presentava um domínio sobre o fazer e cir-

cunscrevia-se no espaço da sala de aula e na

organização da escola, num modelo de des-

centralização como sinônimo de qualidade,

a partir do início dos anos 90 as identidades

e os mecanismos de controle são explicita-

dos nas políticas de formação e de certifica-

ção, as quais configuram modelos de com-

petências, de uma cultura da excelência e na

diversidade de imagens e de representações

de professores que é engendrada pelos dife-

rentes modelos de escolarização.

outra vertente de reflexão sobre a identida-

de é construída na perspectiva dos estudos

culturais5, apreendendo a identidade como

‘aquilo que é’ e a diferença, como o oposto

à identidade, como ‘aquilo que não é’, visto

que ambas estão numa relação de estreita

dependência. ou seja, a forma de expressão

da identidade, como fixa e imutável, demar-

ca e escamoteia as relações postas nesta

relação, ou como algo que se esgota em si

mesmo. “a identidade está ligada a estru-

turas discursivas e narrativas. a identidade

está ligada a sistemas de representação. a

identidade tem estreitas conexões com rela-

ções de poder” (silva, 1999, p. 97). Identidade

e diferença são produções históricas, resul-

tantes de processos de produção simbólica e

5 em relação às teorizações construídas no campo dos estudos culturais sobre identidade e diferença, busco em louro (1997, 1998), Hall (2000) e silva (1999, 2000) princípios teóricos que me possibilitem sistematizar aspectos sobre tal abordagem.

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discursiva que envolvem poder, saber, disci-

plinamento, inclusão, exclusão e que se ca-

racterizam em representações.

conforme louro (1997), “a escola delimita

espaços”6, os quais são instituídos a par-

tir de símbolos e códigos, mapeando o que

cada um pode ou não pode fazer, separando,

agregando, elegendo, classificando e legiti-

mando diferenças em suas identidades ‘es-

colarizadas’.

Das representações, sentimentos, gestos e

olhares, aprendemos, no cotidiano escolar,

a construir identidades e diferenças. É nesse

movimento de ‘arquitetura’ das identidades

que busco entender os mecanismos e movi-

mentos pensados ideológica e tacitamente

sobre as produções das identidades docentes

em suas transformações históricas. Identida-

des que são reguladas, imitadas, performati-

zadas conforme os modelos estabelecidos.

Para moita, a identidade profissional “[...] é

uma construção que tem uma dimensão es-

paço-temporal, que atravessa a vida profis-

sional desde a fase da opção pela profissão

até a reforma, passando pelo tempo con-

creto da formação inicial e pelos diferentes

espaços institucionais onde a profissão se

desenrola [...]” (1992 p. 115-6). a identidade

profissional assenta-se em saberes cientí-

ficos e pedagógicos e tem como referência

axiomas éticos e deontológicos. Pode-se

apreender que é forjada e performatizada

a partir do contexto e dos interesses postos

historicamente como forma de controle e

de organização das mudanças educativas

ou, ao contrário, como forma de não assu-

jeitamento ao estabelecido. ainda assim, a

autora reitera que a identidade profissional:

“É uma construção que tem marca das ex-

periências feitas, das opções tomadas, das

práticas desenvolvidas, das continuidades e

descontinuidades, quer ao nível das repre-

sentações, quer ao nível do trabalho concre-

to” (idem, p. 116).

conforme nóvoa (1992b, c), a identidade é

entendida como um lugar de lutas, tensões e

conflitos, caracterizando-se como um espa-

ço de construção do ser e estar na profissão,

que parte do pessoal para o profissional e

vice-versa. “[...] É um processo que necessita

de tempo. um tempo para refazer identida-

des, para acomodar inovações, para assimi-

lar mudanças” (1992b, c, p. 16).

as histórias de vida, as representações e as

narrativas de formação marcam, tanto na

6 segundo louro, “gestos, movimentos, sentidos são produzidos no espaço escolar e incorporados por meninos e meninas, tornam-se parte de seus corpos. ali se aprende a olhar e a se olhar, se aprende a ouvir, a falar e a calar; se aprende a preferir. [...] e todas essas lições são atravessadas pelas diferenças, elas confirmam e também produzem diferenças. evidentemente, os sujeitos não são passivos receptores de imposições externas. ativamente eles se envolvem e são envolvidos nessas aprendizagens – reagem, respondem, recusam ou as assumem inteiramente” (1997, p. 61).

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dimensão pessoal, quanto profissional, e

entrecruzam movimentos potencializado-

res da profissionalização docente, porque

“[...] um professor tem uma história de vida,

é um ator social, tem emoções, um corpo,

poderes, uma personalidade, uma cultura,

ou mesmo culturas, e seus pensamentos e

ações carregam as marcas do contexto nos

quais se inserem” (tardif, 2000, p. 15). nesta

perspectiva, a epistemologia da prática, os

saberes e a história de vida são significativos

para a aprendizagem profissional. não po-

demos separar os saberes das histórias, dos

contextos que os instituem, modelam e defi-

nem, visto que eles implicam a forma de ser

e estar na profissão e demarcam possibilida-

des de trabalhar o desenvolvimento pessoal

e profissional do professor, bem como po-

tencializam práticas pedagógicas centradas

na pedagogia da diferença.

REFERênCiAS

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ferença: a perspectiva dos estudos culturais.

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de: uma introdução às teorias do currículo.

belo Horizonte: autêntica, 1999.

tarDIF, maurice. Saberes profissionais dos

professores e conhecimentos universitários:

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sequências em relação à formação para o

magistério. revista brasileira de educação,

campinas, anPeD – autores associadas, nº

13, pp. 05-21, jan./abr. 2000.

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vI. DIvERSIDADE E CURRÍCULO1

Nilma Lino Gomes2

a diversidade, do ponto de vista cultural,

pode ser entendida como a construção his-

tórica, cultural e social das diferenças. ela

é construída no processo histórico-cultural,

na adaptação do homem e da mulher ao

meio social e no contexto das relações de

poder. os aspectos tipicamente observáveis,

que se aprende a ver como diferentes, só

passaram a ser percebidos dessa forma por-

que os sujeitos sociais, no contexto da cultu-

ra, assim os nomearam e identificaram.

o grande desafio está em desenvolver uma

postura ética de não hierarquizar as diferen-

ças e entender que nenhum grupo humano

e social é melhor do que outro. na realida-

de, todos são diferentes. tal constatação

e senso político podem contribuir para se

avançar na construção dos direitos sociais.

a cobrança hoje feita à educação, de inclusão

e valorização da diversidade, tem a ver com

as estratégias por meio das quais os grupos

humanos e sociais considerados diferentes

passaram a destacar politicamente as suas

singularidades e identidades, cobrando tra-

tamento justo e igualitário, desmistificando

a ideia de inferioridade que paira sobre dife-

renças socialmente construídas.

não é tarefa fácil trabalhar pedagogicamen-

te com a diversidade, sobretudo em um país

como o brasil, marcado por profunda exclu-

são social. um dos aspectos dessa exclusão

– que nem sempre é discutido no campo

educacional – tem sido a negação das dife-

renças, dando a estas um trato desigual.

Para avançar na discussão, é importante

compreender que a luta pelo reconhecimen-

to e pelo direito à diversidade não se opõe

à luta pela superação das desigualdades so-

ciais. Pelo contrário, ela coloca em questão

a forma desigual pela qual as diferenças vêm

sendo historicamente tratadas na socieda-

de, na escola e nas políticas educacionais.

essa luta alerta, ainda, para o fato de que, ao

desconhecer a diversidade, pode-se incorrer

1 esse artigo faz parte de um texto maior publicado na coletânea Indagações sobre Currículo – MEC. Parte do mesmo também integra o Documento-Referência da Conferência Nacional de Educação Básica (mec).

2 Professora adjunta da Faculdade de educação da uFmg. Doutora em antropologia social/usP e coordenadora do Programa ações afirmativas na uFmg.

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no erro de tratar as diferenças de forma dis-

criminatória, aumentando ainda mais a de-

sigualdade, que se propaga via conjugação

de relações assimétricas de classe, raça, gê-

nero, idade e orientação sexual.

compreender a relação entre diversidade e

currículo implica delimitar um princípio ra-

dical da educação pública e democrática: a

escola pública se tornará cada vez mais pú-

blica na medida em que compreender o di-

reito à diversidade e o respeito às diferenças

como um dos eixos norteadores da sua ação

e das práticas pedagógicas. Para tal, faz-se

necessário o rompimento com a postura

de neutralidade diante da diversidade que

ainda se encontra nos currículos e em vá-

rias iniciativas de políticas educacionais, as

quais tendem a se omitir, negar e silenciar

diante da diversidade.

a inserção da diversidade nas políticas edu-

cacionais, nos currículos, nas práticas peda-

gógicas e na formação docente implica com-

preender as causas políticas, econômicas e

sociais de fenômenos como: desigualdade,

discriminação, etnocentrismo, racismo, se-

xismo, homofobia e xenofobia.

Falar sobre diversidade e diferença implica,

também, posicionar-se contra processos de

colonização e dominação. Implica compre-

ender e lidar com relações de poder. Para tal,

é importante perceber como, nos diferentes

contextos históricos, políticos, sociais e cul-

turais, algumas diferenças foram naturaliza-

das e inferiorizadas, tratadas de forma de-

sigual e discriminatória. trata-se, portanto,

de um campo político por excelência.

cabe destacar, aqui, o papel dos movimen-

tos sociais e culturais em prol do respeito

à diversidade. os movimentos negro, femi-

nista, indígena, juvenil, dos trabalhadores

do campo, das pessoas com deficiência, gl-

bts3, dos povos da floresta, entre outros, são

atores políticos centrais nesse debate. eles

colocam em xeque a escola uniformizadora,

que, apesar dos avanços dos últimos anos,

ainda persiste nos sistemas de ensino. Ques-

tionam os currículos, imprimem mudanças

nos projetos pedagógicos, interferem na po-

lítica educacional, na elaboração das leis e

das diretrizes curriculares nacionais.

os movimentos sociais vão além da com-

preensão da diversidade como a construção

histórica, social e cultural das diferenças.

eles politizam as diferenças e as colocam no

cerne das lutas pela afirmação dos direitos.

ao atuarem dessa forma, questionam a ma-

neira como as escolas, o estado e as políticas

públicas lidam com a diversidade e cobram

respostas públicas e democráticas.

aos poucos, vêm crescendo, também, os co-

letivos de profissionais da educação, sensí-

veis à diversidade. muitos deles têm a sua

3 gays, lésbicas, bissexuais, transgêneros e transexuais.

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trajetória marcada pela inserção nos mo-

vimentos sociais, culturais e identitários, e

carregam para a vida profissional suas iden-

tidades coletivas e suas diferenças.

Há uma nova sensibilidade nas escolas pú-

blicas em relação à diversidade e suas múl-

tiplas dimensões na vida dos sujeitos, a qual

vem se traduzindo em ações pedagógicas

concretas de transformação do sistema edu-

cacional público em um sistema inclusivo,

democrático e aberto à diversidade.

os desafios postos pela diversidade na edu-

cação básica estão a exigir medidas políticas

que garantam para todos os grupos sociais,

principalmente para aqueles que se encon-

tram histórica e socialmente excluídos, o

acesso a uma educação de qualidade. Para

tal, é preciso desencadear ações articuladas

entre o estado, a comunidade, as escolas e

os diversos movimentos sociais que consi-

derem:

a) a necessidade de reorganização dos tem-

pos e espaços escolares, com vistas a

atender a diversidade presente nas es-

colas;

b) a inserção da discussão sobre diversidade

e currículo na formação inicial e conti-

nuada de professores e professoras;

c) a adoção de medidas que garantam às

comunidades indígenas a utilização

de suas línguas maternas e processos

próprios de aprendizagem, com ensino

bilíngue e formação de profissionais da

educação oriundos dos próprios povos

indígenas;

d) a implementação de novas formas de

organização e gestão para a educação

de jovens e adultos, para as escolas do

campo, para os povos da floresta e para

os estudantes com deficiência e /ou al-

tas habilidades/superdotação;

e) reconhecimento, garantia e construção

de projetos político-pedagógicos volta-

dos à educação das comunidades rema-

nescentes de quilombos;

f) a adoção de medidas político-pedagógi-

cas que garantam tratamento ético e

espaço propício às questões de raça/et-

nia, gênero, juventude e de sexualidade

na prática social da educação.

g) a criação de condições políticas e peda-

gógicas que garantam a implementa-

ção da lei n. 10.639/03 (obrigatoriedade

do ensino de História da África e da cul-

tura afro-brasileira na educação básica)

e as Diretrizes curriculares nacionais

para a educação das relações Étnico-

-raciais e para o ensino de História e

cultura afro-brasileira e africana, as

Diretrizes operacionais para a educa-

ção básica nas escolas do campo e as

Diretrizes nacionais para a educação

especial na educação básica.

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vII. REINvENTANDO A RODA: ExPERIêNCIAS

mULTICULTURAIS DE UmA EDUCAÇÃO PARA TODOS1

Azoilda Loretto da Trindade2

“Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante (...)

do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo.”

raul seixas

esse texto, na verdade, se propõe a fazer uma

aliança com a nossa potência de vida, com

nossa autonomia, com nossa criatividade

de professoras e professores. Pretendemos

dialogar com nossa parcela, com nossa di-

mensão educadora que se inquieta e se sente

desafiada a cada dia, parcela/dimensão dese-

jante, que ora se alegra, ora se desespera, que

se sente encantada pela vida, que não se can-

sa de ler no mundo palavras e ações que pos-

sam nos valer e nos possibilitam aprender a

trabalhar pedagogicamente, numa perspec-

tiva multicultural crítica, criativa e inclusiva,

num mundo marcado por desigualdades e

injustiças sociais, étnicas e culturais.

É bom sinalizar que qualquer caminho tri-

lhado no sentido de lidar com as diferenças

no cotidiano educacional não é neutro, nem

ideal. todas nós estamos marcadas por nos-

sas visões de mundo, por valores incorpora-

dos ao longo da nossa existência, por ideias

e ideais construídos ou apreendidos, por

concepções a respeito da vida e do mundo.

É bom lembrar que a vida, no singular e no

plural, é muito mais abrangente do que nos-

sa condição humana pode captar, compre-

ender, capturar.

Quando nos predispomos, quando somos

fisgadas pela percepção da existência da

diferença como valor, como expansão da

riqueza humana e não como um demérito,

perdemos o chão das verdades, da razão,

das certezas fechadas e absolutizadas e nos

colocamos no campo da dúvida, do devir, da

pergunta, da inquietação, da errante busca,

da incerteza.

Qualquer concepção teórica ou prática de

trabalhar com as diferenças na sala de aula,

no cotidiano escolar, é passível de críticas,

1 Debates: multiculturalismo e educação – 2002 / Pgm 5.

2 mestre em educação pelo Iesae/Fgv-rJ, Doutora em comunicação pela eco/uFrJ. organizadora desta coletânea.

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de análise, de necessidades, de acertos, ajus-

tes. toDas são insólitas, na medida da me-

tamorfose constante da própria vida, afinal,

“nenhum rio passa duas vezes no mesmo lu-

gar”, lembram? ora, se a diferença é a regra,

se tudo é devir, se tudo é movimento, é di-

nâmica, o problema que nos coloca a vida,

o problema que nos desafia é como sermos

capazes de ver, perceber, conhecer, intera-

gir com o diferente de nós. e é bom desta-

car que somos diferentes, inclusive, de nós

mesmos... somos diferentes de nós mesmos

a cada momento: um livro que lemos, um

filme que vemos, um acontecimento que vi-

venciamos, um carinho que recebemos ou

damos, uma injustiça que presenciamos,

praticamos ou sofremos, o tempo passado,

o sol, o frio, o calor, o amor ou desamor,

a violência, o dia-a-dia... tudo nos altera a

cada instante.

estamos diante do desafio, talvez similar ao

momento que antecedeu à invenção da roda,

talvez um desafio menos conceitual e mais

prático, mais vivencial, mais visceral, que

nos coloca diante dos nossos próprios pre-

conceitos, do nosso racismo, do nosso ma-

chismo, do nosso elitismo. ora, nosso maior

desafio, talvez, seja enfrentar o que está den-

tro de nós, no nosso sangue, no nosso cora-

ção, na nossa mente, em nós mesmos.

trabalhar com a percepção da existência da

Diferença, como uma constante, obriga-nos

a rever valores, posições, preconceitos:

• Imagine, por exemplo, quanto esforço é

necessário para que possamos admitir

que fazem parte da espécie humana tira-

mos como Hitler, ou um pedófilo, ou um

criminoso. É fácil perceber a humanidade

no que é espelho, no que consideramos

ser semelhante a nós, ou no que deseja-

mos ser e valorizamos. É fácil reconhecer,

portanto, a humanidade de gandhi, da

criancinha que achamos lindinha, lim-

pinha e arrumadinha. mas naquele ou

naquela que desprezamos, abominamos,

desqualificamos, desejamos ver longe de

nós, tal reconhecimento é de fato muito

difícil.

• o que demanda em nós de energia para a

desconstrução de preconceitos ao vermos

inteligência, por exemplo, numa criança

com algum tipo de síndrome, ou numa

criança ou adulto com paralisia cerebral.

ao percebermos força e potência em pes-

soas com alguma deficiência, não admi-

tindo pensar nelas como “coitadinhas”.

ao percebermos essas pessoas como mais

uma expressão da vida humana, e não

como vítimas de um castigo, de uma des-

graça, de uma infelicidade para a pessoa

ou para os seus pais.

• o que demanda de desconstrução de ver-

dades percebermos a sabedoria nas popu-

lações indígenas, ou para desarticularmos

a sinonímia entre a palavra “escravo” e

os povos afrodescendentes no brasil. ou,

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ainda, para conseguirmos deixar de ver

como “natural” a ideia contida na expres-

são “manda quem pode e obedece quem

tem juízo”, muito cara nos espaços de

trabalho, sobretudo no escolar, expressão

elitista que coloca a obediência como um

valor, um mérito, e desqualifica o sujeito,

subtrai dele a inteligência, sua capacidade

de pensar, ponderar, discordar, ter contri-

buições, criar.

• o que se exige de nós, em termos de força,

não nos silenciarmos diante de qualquer

tipo de discriminação, de injustiça social,

cultural, ou de qualquer espécie? o que

de energia é exigido de nós, em termos

de aprendizagem, crítica e reflexão, para

conseguirmos reconhecer, analisar e ava-

liar tais situações?

• Imagine ver, no analfabeto, sabedoria, afi-

nal, a alfabetização em massa é um fenô-

meno recente na história da humanidade

e ainda hoje há culturas eminentemente

orais. constatar que a escola não é o úni-

co espaço de desenvolvimento dos seres

humanos (embora seja um espaço privi-

legiado para isto). Imagine ver e valorizar

o saber que não é cientifico, a sabedoria

popular que diz, por exemplo, que galo ve-

lho bota ovo, que tem cobra que de noite

mama o leite da mulher e coloca o rabo

na boca da criança, que os astros influen-

ciam a nossa vida, que tem gente com

olhar de “seca-pimenteira”!

• Imagine admitir que a escola não é o lu-

gar, como muitos dizem, onde a criança

se prepara para “ser alguém na vida”, ou

para “ser gente”, ou para se preparar para

a vida. gente e alguém todos nós já somos

e a vida já está sendo, aqui e agora, onde

quer que estejamos.

• Quanto de energia física, mental, intelec-

tual precisamos dispender para ver que

nossa visão religiosa, pedagógica, polí-

tica, sexual, não é a melhor para toda a

humanidade, é apenas a nossa visão, que

pode, ou não, ser compartilhada por mui-

tos? Que a ideia da maioria não é necessa-

riamente a melhor para todos?

• e se a gente não sofrer em admitir tudo

isto, quanto de humildade precisamos ter

para não nos sentirmos melhores ou pio-

res que aqueles que consideramos erra-

dos, reacionários e conservadores...

ora, uma educação multicultural, criativa e

inclusiva, no sentido de incluir na pauta as

diferenças, o contato, o diálogo, a interação

com as diferenças, coloca a própria escola

num lugar de questionamento quanto ao

seu papel, seu sentido, seu significado. Qual

o papel da escola num contexto multicultu-

ral que se sabe político, e que não se propõe

racista, nem elitista, nem machista, nem

etnocêntrico... É essencial percebermos a

dimensão disto tudo. o que nós, como edu-

cadores, faremos? e como faremos? como

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nosso currículo se configurará? como serão

e deverão ser nossas aulas, nossa avaliação,

nossa sala de aula? como será nossa pos-

tura? como não sermos tão individualistas

e julgarmos que os outros são muito dife-

rentes de nós, a ponto de nos transformar-

mos numa ilha cercada de ilhas por todos

os lados? como não ser tão universalistas a

ponto de apagarmos as singularidades cul-

turais, políticas, sexuais, sociais, intelectu-

ais? como levar em consideração todos os

segmentos da escola?como enfrentar que

nossas mais belas intenções e ações são ain-

da incipientes, que são muito poucas, em-

bora necessárias? Por exemplo, trabalhar

o multiculturalismo na escola não é ape-

nas colocar imagens de todas as etnias que

compõem nossa escola nos murais, festejar

o Dia do Índio e o Dia nacional da consciên-

cia negra. não é apenas debater as políticas

de cotas e outras ações afirmativas. nem

ter a imagem de uma virgem negra como

padroeira do brasil. tampouco ter o atleta

do século como um ícone nacional (se o que

conta, nesse caso, é o dinheiro e não a cor

da pele).

acreditamos que uma educação multicul-

tural, inclusiva, crítica e criativa demanda

mudanças radicais nas estruturas de poder

da escola e da sociedade, demanda mudan-

ças em nós mesmos e mudanças de para-

digmas. aliás, para as mudanças de para-

digmas, para incorporarmos outros atores

e interlocutores, é necessário revermos os

saberes socialmente valorizados e historica-

mente construídos. a Psicologia, a sociolo-

gia, a História, a matemática, a biologia, a

Física, as ciências de um modo geral terão

que ser revistas e rediscutidas. as disciplinas

poderão até ser ultrapassadas, como aponta

o professor ubiratan D’ambrósio (2002).

É um campo delicado, sobretudo num mun-

do que assiste ao recrudescimento do racis-

mo, do conservadorismo, da intolerância,

que assiste a guerras religiosas e vê a violên-

cia se expandir galopantemente. Que perce-

be que o poder do capital se fortalece a cada

dia, em detrimento da vida e da sobrevivên-

cia da própria espécie e do planeta.

temos que nos saber aprendizes, eternos

aprendizes, na medida em que estamos no

momento de inventarmos a roda de um tra-

balho multicultural na educação. Iremos

inventar, porque não existirá O trabalho úni-

co, que deverá ser seguido, imitado, copiado

pelos demais. cada grupo, cada coletivida-

de, cada comunidade escolar deverá bus-

car construir sua roda (ou suas rodas), mas

como não se trata de ilhas de pessoas, como

o conhecimento é coletivo e construído em

comunhão, algumas palavras-ações básicas

devem ser fortalecidas:

a autonomia, como capacidade de cada um

tomar suas próprias decisões, mas a partir

da interação e diálogo com pontos de vistas

deferentes e diversos dos nossos;

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o diálogo, que implica ouvir o outro, escu-

tar e se deixar preencher com a palavra, com

a idéia, com a perspectiva do outro;

o movimen,to que concretiza a ação, que

realiza a mudança e a criação; e

o contato. não dá para se trabalhar com

educação multicultural apenas no gabinete,

na sala de estudo individual, no computa-

dor, através dos textos, da palavra escrita. o

outro e nós temos um cérebro, uma mente,

produzimos palavras, poesia, virtualidade,

distanciamentos. mas temos também um

corpo que tem cheiro ou cheiros, cor, textu-

ras, odores, sabores, expressões corporais...

e esta percepção só acontece realmente

como contato, com o encontro.

como diz a cosmovisão dominante, judaica

cristã, somos descendentes de babel, des-

cendentes de um povo que falava a mesma

língua e que tentou chegar aos céus através

de uma torre, desafiando Deus. castigados

por Deus, homens e mulheres perderam a

harmonia e foram condenados à multiplici-

dade, a falarem várias línguas e a se descen-

trarem na terra. sendo assim, que sejamos

pelo menos uma babel feliz, encantada com

a multiplicidade, com o outro.

como conta uma lenda africana Iorubá, da

criação do ser humano e do mundo, somos

resultantes da ação de um Deus – o orixá

que tinha bebido vinho de palma – e fomos

criados em meio a soluços ébrios. segundo

a lenda, a cada momento um ser foi criado

e nunca um era igual ao outro. logo, somos

seres diversos, singulares e irregulares, so-

mos todos diferentes, mas nos reconheça-

mos a todos como uma criação divina.

como prêmio, contingência ou como casti-

go, somos fadados à multiplicidade e a his-

tória nos coloca diante do grande desafio de

aceitar a diferença e aprendermos ecologi-

camente, com respeito, sabedoria, humil-

dade, quiçá com amor, a lidar com elas em

todos os espaços, sobretudo, o que é o nos-

so caso, na escola. neste caso, precisamos

fortalecer nossa autonomia, nossa capaci-

dade de ler e aprender no/com o mundo,

assumirmos a nossa responsabilidade em

escrever no e para o mundo nossas experi-

ências na busca da invenção da nossa roda,

a roda de trabalhos multiculturais cons-

cientes, críticos, criativos e, assim, contar

essas experiências, esse exercício, sair dos

muros da escola no sentido de compartilhar

nossas ações com outros coletivos e fortale-

cer a complexa rede de produção de saberes

da humanidade.

REFERênCiAS

Del PrIore, mary. Corpo a corpo com a mu-

lher: Pequena história das transformações do

corpo feminino no Brasil. são Paulo: editora

senac. são Paulo, 2000.

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FugantI, luiz antonio. saúde, Desejo e

Pensamento. In: Saúde e Loucura 2: 19-82.

são Paulo: editora Hucitec (s/d).

morIn, edgar. ensinar a condição Huma-

na. In: Os sete saberes necessários à Educação

do Futuro. são Paulo: cortez, brasília, DF,

unesco, 2000.

trInDaDe, azoilda loretto da. O racismo no

cotidiano escolar. rio de Janeiro: Fgv/Iesae.

Dissertação de mestrado, 1994.

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CAPÍTULO 2

AFRICANIDADES

o segundo capítulo do livro pretende apre-

sentar uma panorâmica de reflexões rela-

cionadas à temática afrodescendente, ou

afro-brasileira. embora tenha o título de afri-

canidades, seus textos são de diversas visões

positivadas acerca do patrimônio africano e

afro-brasileiro. nossa intenção é garantir a

possibilidade de observarmos a riqueza teó-

rica, social, política, histórica, psicológica e

cultural deste patrimônio.

certamente não contemplaremos todas as

autorias significativas... algumas lacunas se

farão presentes, assim como algumas abor-

dagens... mas nenhum livro pode ser maior

que um patrimônio milenar como o africano

e, assim, fica o convite para novas pesquisas

e novas descobertas.

Dividiremos este capítulo do livro em quatro

blocos:

A. ASPECtOS gERAiS. selecionamos textos

com a expectativa de fundamentarmos a te-

mática.

i. Africanidades, afrodescendências e

educação, de Henrique cunha Júnior.

esse texto apresenta força argumenta-

tiva em articulação com a história, a

política e a cultura, afirmando a pers-

pectiva das africanidades na educação

brasileira, como presença e como par-

ticipação na construção de uma edu-

cação emancipatória.

ii. Humilhação, encorajamento, e cons-

trução da personalidade, de azoilda

loretto da trindade. esse texto, sim-

ples e leve no seu aspecto teórico,

escrito antes de 2003, tem atualida-

de no que se refere a acontecimen-

tos do cotidiano que legitimam sua

presença nesta coletânea, sobretudo

por nos ajudar a pensar que, além da

lei n. 10.639/2003, temos desafios na

construção de práxis educativas in-

clusivas.

iii. A lei n. 10.639/2003 altera a lDB e o

olhar sobre a presença dos negros no

brasil e transforma a educação esco-

lar, de bel santos. temos aqui um tex-

to rico em fundamentos do cotidiano

para a implementação da lei, e mais

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rico ainda pelo seu caráter de otimis-

mo em relação a políticas públicas

transformadoras e a eliminação da ex-

clusão.

iv. áfrica viva e transcendente!, de narci-

mária correia do Patrocínio luz. esse

texto é uma expressão da rica e exube-

rante complexidade que a implemen-

tação da lei pode oferecer e significar

para as bases, diretrizes e práxis da

educação brasileira.

v. Diversidade étnico-racial no currícu-

lo escolar do ensino fundamental, de

véra neusa lopes. aqui, a perspecti-

va das narrativas se afirma e o texto,

além de revelador no que se refere ao

projeto de desafricanização embuti-

da na filosofia e política educacionais

brasileiras, obriga-nos a refletir sobre

as bases filosóficas e conceituais hege-

mônicas que fundamentam nossas es-

colas. Para além da constatação, apre-

senta uma inspiradora experiência de

práxis transformadora.

vi. O legado africano e a formação do-

cente, de marise de santana. baseado

em observações e em dados oficiais,

o texto é um convite ao trabalho co-

letivo para a implementação da lei n.

10.639/2003, com algumas importan-

tes sugestões nesta direção.

vii. As relações étnico-raciais, a cultura

afro-brasileira e o projeto político-

-pedagógico, de lauro cornélio da ro-

cha. o foco aqui está no diálogo Pro-

jeto Político Pedagógico e a educação

das relações étnico-raciais e a cultura

afro-brasileira no cotidiano escolar

brasileiro. ao apresentar propostas

significativas nesta direção, o autor

exemplifica as proposições com o rela-

to de um trabalho exitoso – o Projeto

raiz.

B. EDuCAÇÃO inFAntil. acreditamos que

a educação infantil mereça um destaque no

que se refere à implementação da lei. temos

muitos relatos que sinalizam que crianças

de 2 ou 3 anos já percebem sua cor de pele

e observam as imagens que as representam

no entorno, como cartazes, outdoors, co-

merciais de tv, livros infantis... sabemos,

também, do despreparo de muitos(as) do-

centes no trato com as crianças afro-bra-

sileiras de pele escura. sabemos, ainda, da

importância deste período na formação da

personalidade e os prejuízos que uma desa-

tenção a certas temáticas, por exemplo, da

pedagogia da diferença, pode causar na for-

mação de autoimagem e da autoestima de

toDas as crianças. conhecemos, também,

algumas experiências individuais e de redes

de ensino voltadas para a educação Infantil

e a implementação da lei n. 10.639/2003, e

vemos como é fundamental este trabalho.

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nesta direção, destacamos três textos que

abordam esta temática, para início ou for-

talecimento de conversas e ações político-

-pedagógicas:

i. valores civilizatórios afro-brasileiros na

Educação infantil – Azoilda loretto da

trindade

ii. As relações étnico-raciais, história e

cultura afro-brasileira na Educação

infantil – Regina Conceição1

iii. tin dô lê lê: brinquedos, brincadeiras

e a criança afro-brasileira (uma refle-

xão) – Azoilda loretto da trindade

C. EDuCAÇÃO QuilOMBOlA. É impressio-

nante e animador observarmos a energia

vital que alguns povos nos apresentam. os

povos indígenas, os ciganos... uma infinida-

de de exemplos e situações. Povos e grupos

que afirmam a sua potência de vida, a des-

peito ou em meio a emaranhados genoci-

das da diferença ou da diversidade. nesta

coletânea, destacaremos a educação Qui-

lombola como vivências ensinantes e como

uma das pistas para a construção de uma

Pedagogia Brasilis.

i. Os quilombos e a educação, de maria de

lourdes siqueira com esse texto pre-

tendemos oferecer aos e às docentes

uma abordagem informativa e afetiva

da dimensão pedagógica da vivência

quilombola.

ii. Quilombo: conceito, de gloria mou-

ra. É um texto didático, não só sobre

o conceito de quilombo, mas por ser

uma genealogia deste conceito, ainda

em construção, pois uma história ain-

da está sendo construída.

iii. Saberes tradicionais de saúde, de bár-

bara oliveira. esse texto, que poderia

estar na última parte do livro, insere-

-se num campo pouco explorado, mas

fundamental para a compreensão da

vida do povo de origem africana: os

saberes tradicionais de saúde.

iv. Organização social e festas como ve-

ículos de educação não-formal, de

verônica gomes. com a focalização

da vida dos moradores das comunida-

des remanescentes de quilombos, so-

bretudo, no que se refere “ao uso das

ervas medicinais, no modo de trabalhar

a terra, de tirar dela seu sustento, nas

linguagens gestuais, na música, nas fes-

tas, no modo de se divertir, de cantar,

dançar e rezar”, defrontamo-nos com

uma pedagogia de afirmação positiva

da diferença, com destaque à questão

de gênero.

v. Kalunga, escola e identidade – experi-

ências inovadoras de educação nos

quilombos, de ana lucia lopes. Des-

tacamos dois aspectos deste texto: ele

aponta para uma visão de Quilombo

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para além da hegemônica visão que

o atrela à fuga e à resistência e apre-

senta um valioso relato de experiência

que nos propicia refletir sobre um dos

dilemas que nos perpassa ao pensar-

mos a lei n.10. 639/2003 – “na tensão

entre a valorização do conhecimento

Kalunga[tradicional] produzido histori-

camente e o direito de acesso ao conhe-

cimento do novo por eles reivindicado.”

vi. lei nº 10. 639/2003 e educação quilombo-

la: inclusão educacional e população negra

brasileira, de Denise botelho. texto crítico

acerca dos impasses, resistências e insufici-

ências nacionais, na implementação de polí-

ticas públicas educacionais para a população

afro-brasileira e de enfrentamento de proble-

mas sociobrasileiros, “em especial, aqueles re-

lacionados com os chamados excluídos sociais

– negros, quilombolas, mulheres, indígenas, de-

ficientes físicos, pessoas com orientações sexu-

ais diferenciadas e outros”.

D. AFRiCAniDADES BRASilEiRAS

Apresentaremos o texto do documentário, e

esperamos que todas as escolas possam ter

acesso ao programa.

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A. ASPECTOS gERAIS

I. AFRICANIDADES, AFRODESCENDêNCIAS E EDUCAÇÃO1

Henrique Cunha Júnior2

o educador negro Pretextato dos Passos sil-

va apresentou ao ministério Público uma

petição para a criação de uma escola desti-

nada a meninos pretos e pardos. no requeri-

mento, ele argumenta que, sendo ele negro

e compreendendo a vida daquelas crianças,

poderia “ensinar com perfeição e sem coação”.

considerava as escolas existentes discrimi-

natórias, portanto, ambiente pouco adequa-

do para o aprendizado dos pretos pardos,

que tinham seu desempenho escolar pre-

judicado. seu projeto foi acompanhado de

lista de assinatura dos pais dessas crianças,

solicitando a criação da escola em questão

(sIlva, 2000, p.14-18).

os temas de interesse da população afro-

descendente e as especificidades dessa

população na educação têm sido olhados

com descaso por uma parcela significativa

de educadores responsáveis pelos sistemas

educacionais e por parte da população em

geral, bem como por parte dos movimentos

sociais, partidos políticos e alguns setores

dos movimentos sindicais.

Pela predominância de um pensamento de

base universalista, as alegações contrárias

às reivindicações dos afrodescendentes fo-

ram sempre problematizadas no campo da

igualdade de oportunidades de todos e da

negação da existência de sistemas de inclu-

são controlada e diferenciada. sistemas em

que as regras etnocêntricas brancas e as sis-

temáticas de inferiorização da cultura e da

população afrodescendente não são denun-

ciadas como tais. Ignoram-se, nos universos

de análise, os processos históricos e os resul-

tados das estatísticas que indicam a existên-

cia de problemas de ordem específica e se

impõem silêncios no campo da educação so-

bre os diversos temas relativos à população

de origem africana. Desconhecem-se a exis-

tência e a importância desses temas, negan-

do-se a existência das diversidades culturais

e a incidência do tratamento dado a estas

1 Debate: educação, direito e cidadania – 2001 / Pgm 4.

2 Professor titular da universidade Federal do ceará (uFc) / membro da associação brasileira de Pesquisadores negros (abPn) e do centro de estudos sergipanos (ceser).

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sobre os resultados educacionais e sociais

colhidos pelas diversas etnias. nem mesmo

a razão da assimetria dos resultados étni-

cos preocupou os diversos pesquisadores

ou formuladores de políticas educacionais.

os conformismos e os descasos processam

a ideia de que se trata apenas de um pro-

blema de pobreza, e deixam de questionar a

produção diferenciada da pobreza entre as

etnias. Persiste, ainda, a recusa do sistema

educacional em admitir a existência de um

racismo à brasileira, portanto, distinto dos

demais de outras nações na sua formulação

e expressão, produzindo entretanto, um sis-

tema de dominação e opressão com resulta-

dos similares aos dos outros países racistas.

sistema que reduz absurdamente o acesso

aos bens sociais para nós afrodescendentes

e limita as possibilidades de expressão cul-

tural e política.

Duas ideias têm dificultado o avanço do tra-

to dos temas de interesse dos afrodescen-

dentes nos últimos 50 anos. uma é a con-

solidação do ideário dos grupos dominantes

na sociedade e na cultura nacional sobre a

“democracia racial”. Ideário que impediu

em diversos setores uma reflexão mais acen-

tuada e problematizadora sobre as questões

das estruturas étnicas vigentes na socieda-

de e sobre os problemas daí decorrentes no

trato com a cultura e a educação. comple-

mentar ao ideário da democracia racial, es-

teve sempre a segunda ideia, a da base na-

cional miscigenada, portanto, negadora da

particularidade. miscigenação biológica é

tratada com propósitos da política. a ideia

da “casa grande e senzala” tornou-se mo-

delo não somente da interpretação da so-

ciedade, como das razões políticas. Foram

esquecidas, propositalmente, as relações de

produção representadas pelo eito. confun-

de-se um universo biológico como político,

mascara-se não somente a base racista e et-

nocêntrica dessa interpretação, mas a base

positivista. embora apareça na equação de-

terminante do brasil, tanto cultural como

constitutiva do povo, a ideia das três raças,

estranhamente, somente uma aparece lo-

calizada como possuidora e depositária de

processo civilizatório.

a História da educação presta um desserviço

ao não registrar e não problematizar a pre-

sença dos afrodescendentes nos sistemas

educacionais e nas ideias sobre a educação

anterior aos anos 50 do século passado. as

ideias são falhas em apresentarem a presen-

ça dos afrodescendentes na educação, a par-

tir do meados dos anos 50, como resultados

dos processos de urbanização da sociedade

brasileira e de universalização do ensino pú-

blico. Diversas evidências e resultados de

pesquisas demonstram tratar-se de mais um

equívoco, cujos resultados repercutem nas

perspectivas da compreensão do presente

pela história do passado (nunes cunHa,

1999), (sIlva, 2000), (rIbeIro, 2001).

venho há muito tomando consciência em-

pírica deste equívoco por diversas razões.

uma delas vinda da escolarização da minha

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mãe, eunice de Paula cunha e de minha

madrinha Zobeida, ambas formadas como

professoras primárias nos anos 30 em são

Paulo e parte de um grupo de professores

negros da mesma geração. e do conheci-

mento de que meu pai e seus amigos mili-

tantes dos movimentos negros dos anos 20

e 30 também eram alfabetizados, bem como

minhas avós, o que leva a história para o fi-

nal do século XIX. esta percepção nos leva a

questionarmos onde se educaram diversos

afrodescendentes de renome nacional e in-

ternacional, que viveram no séc. XIX e início

do séc. XX. o problema da não percepção da

nossa participação retarda a correlação en-

tre o registro das demandas educacionais e

o enfoque da especificidade, como também

a problematização sobre os grupos étnicos

nos confrontos dos cotidianos dos sistemas

educacionais.

entretanto, como tratamos no artigo Pes-

quisa educacionais em temas de interesse

dos afrodescendentes (cunHa Jr., 1999), os

movimentos negros da década de 70 foram

fomentadores de uma preocupação particu-

lar sobre a problemática da educação e das

relações interétnicas. a partir destes movi-

mentos sociais surge uma geração de edu-

cadores e pesquisadores trabalhando as te-

máticas dos afrodescendentes nos sistemas

de produção e transmissão da cultura. nes-

te ciclo do enfoque das questões educacio-

nais sob o crivo da afrodescendência, pelos

anos 1989 e 1990, introduzimos os conceitos

de africanidades e afrodescendência, preten-

dendo ampliar a percepção da participação

das populações de origem africana na cul-

tura nacional e nos sistemas educacionais.

estes conceitos serviram de referência para

uma dezena de trabalhos de mestrado e

Doutorado no ceará, Piauí, Paraíba, Per-

nambuco, são Paulo e rio de Janeiro (rIbeI-

ro, 1995), (souZa, 1997), (PImentel, 1998),

(ballesteros, 1998), (nunes cunHa,1999),

(sIlva, 1999), (gomes, 2000), (guIa, 1999),

(matos, 1999), (cruZ, 2000), (nascImen-

to, 2000), (conceIção, 2001), (PereIra,

2001), (olIveIra, 2001), (lIma, 2001), (rIbeI-

ro, 2001), embora tenha existido apenas a

divulgação dos originais mimeografados,

nunca publicado, de um texto de 1996 com

o título Afrodescendência e Africanidades Bra-

sileiras: a condição necessária, porém não

suficiente para compreensão da história

sociológica do povo brasileiro. este artigo

apresenta uma versão modificada do referi-

do texto. a intenção do texto não está na

ênfase conceitual, mas sim em apresentar

as razões de um percurso na elaboração dos

conceitos, de forma correlata com a trajetó-

ria afrodescendente no contexto educacio-

nal brasileiro.

os conceitos de africanidades e afrodescen-

dência são vinculados ao enfoque de etnia,

sendo que este último permanece como

problema nos debates sobre educação. et-

nia e raça, como terminologia e perspectiva

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teórica, fomentaram embates dentro da li-

teratura educacional. existem trabalhos que

oscilam entre um e outro, havendo mesmo o

uso etnia / raça. o importante neste artigo é

apresentar um enfoque, de caráter específi-

co, que recoloque a problemática da cultura

na orientação dos temas educacionais para

a sociedade brasileira. não se trata de um

problema novo, pois iniciei o texto relem-

brando o professor Pretextado e, proposital-

mente, omitindo a data do requerimento do

referido professor à corte no rio de Janeiro.

a data foi 1853, sendo que professor Pretex-

tado implantou e trabalhou em sua escola

por mais de 20 anos. não foi o único. outros

fazem parte da história dos movimentos so-

ciais negros na luta pela educação. outros

que têm sido sistematicamente esquecidos

pela literatura educacional brasileira.

OS MOtivOS

Desde os anos 90 venho fundamentando

os conceitos de afrodescendência e africani-

dades brasileiras, num processo não unica-

mente meu, mas presente em diversos tra-

balhos sobre cultura brasileira e negros(as)

no brasil.

o uso sistematizado de africanidades brasi-

leiras ocorreu em 1993, quando um grupo de

professores, composto por minha pessoa,

pela Profª Drª Petronilha beatriz gonçalves e

silva, o Prof. Dr. Álvaro risoli e o Prof. válter

silvério, da universidade Federal de são car-

los, apresentou uma disciplina em educação

como curso de extensão e com validade de

créditos para pós-graduação. em 1991, eu ti-

nha escrito um texto denominado Não mais

base zero para o estudo das Africanidades Bra-

sileiras, para um curso de formação de pro-

fessores da rede municipal de são Paulo, no

quadro de trabalhos da abrevIDa. são fon-

tes imprescindíveis para a elaboração destes

conceitos os trabalhos de muniz sodré, mar-

co aurélio luz e clóvis moura, para a crítica

cultural e historiográfica negra brasileira.

no campo internacional foram estruturais

as leituras de cheike anta Diop, rene Depes-

tre, edouard glissant, bem como dos inte-

lectuais da revolução Haitiana.

as viagens pelo brasil e caribe sedimenta-

ram o caráter empírico das reflexões e exer-

citaram a observação da existência de etnias

afrodescendentes. Foi marcante e signifi-

cativa a estada na guiana e na Jamaica. os

seminários da guiana de 1988 foram fontes

fundamentais de informação, nos quais se

pode ver a elaboração cultural dos afrodes-

cendentes sob um ângulo de uma cultura

universitária não massivamente branca, não

abusivamente eurocêntrica, dentro de um

país onde o racismo não é exercido na mes-

ma forma de dominação e no mesmo senti-

do que é dado na sociedade brasileira.

a sociedade guianense é Afro-Indo-Amerín-

dia-Européia, com predominância Afro-Indu,

sendo que 80% da população é desta for-

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mação étnica. estas etnias expressam uma

fenomenal diversidade cultural. Dentro de

cada uma das etnias temos diversas religi-

ões e culturas. existe na guiana uma liber-

dade de expressão étnica não pensável na

sociedade brasileira. não se pensa aqui na

liberdade de expressão das culturas bra-

sileiras. estas são raramente organizadas

pelo pensamento universitário. geralmente

sequer são apresentadas ou minimamen-

te reconhecidas. as diversas culturas são

reprimidas e desconsideradas nos espaços

públicos promotores de transmissão cultu-

ral. o que está em discussão, neste texto,

são as percepções sombrias que os intelec-

tuais brasileiros conseguem ter destas cul-

turas. Penso que os intelectuais nacionais

são míopes para estas culturas. Inexiste pre-

ocupação em organizá-las nos centros de re-

presentação da cultura nacional. a título de

depoimento, devo dizer que as duas primei-

ras vezes que não me senti sufocado, que saí

deste estado de quase asfixia, pela branqui-

dade conceitual sistemática e ideológica da

cultura nacional brasileira, foram quando

cursava mestrado em História em nancy-

-França e quando estive no caribe. sobretu-

do na guiana, na universidade da pequena

cidade de georgetown, capital da guiana.

outras experiências posteriores, também

significativas, de poder respirar, vieram nos

eua e na África. os afrodescendentes brasi-

leiros não conhecem, nem imaginam a sen-

sação libertária de poder, intelectualmente,

respirar. o eurodescendente é compulsório

no brasil. Quase somente ele pensa cultu-

ralmente. Quando não diretamente, fica

como fantasma assombrando os pensamen-

tos. todos devem pensar através dele, ainda

que seja, pelo menos, pela obrigatoriedade

bibliográfica. não são lidos os intelectuais

africanos nas universidades brasileiras. nem

mesmo reconhecem a existência destes. nas

universidades do caribe posso dizer que sou

negro, penso negro, sem vetos de censura,

sem precisar provar o terrorismo da afirma-

ção, sem as desconfianças de estar traindo

o espírito nacional. sem que me coloquem

no banco dos réus, por um suposto racismo

invertido. melhor ainda, lá não preciso dizer

que sou negro, todos sabem e respeitam. as

vozes negras podem ter eloquência na orga-

nização do conhecimento e nas expressões

das culturas universitárias. certamente os

intelectuais locais sentem outras restrições

relacionadas com o ex-colonialismo e o im-

perialismo, diferente das minhas inquieta-

ções.

as universidades brasileiras não têm equi-

distância sistemática do pensamento eu-

ropeu. Da forma que se dá, o pensamento

europeu recozido e recopilado, não fertiliza,

reduz, enfaixa, cristaliza e provoca a necrose

pensada. no caribe me vi livre destes fantas-

mas. Do europeu compulsório em todos os

espaços e dimensões da cultura acadêmica.

lá não há medo que o ritmo africano emba-

le o pensamento. a reflexão pode ser dança-

da e cantada na voz da minha avó. as avós e

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avôs africanos existem no cotidiano do pen-

samento e são reconhecidos no cotidiano

da vida. no pensamento africano, mesmo

o racionalismo matemático é representado

nas formas simbólicas da dança e da arte.

entretanto, os racismos, mesmo na guia-

na, trabalham nos processos de dominação.

É pertinente refletirmos sobre a sociedade

brasileira a partir do modelo guianense de

racismo. este opõe hindus aos negros. Hin-

dus, negros de cabelos lisos, a afro-negros

de cabelos crespos. tornam-se translúcidas

as bases culturais dos racismos, apagando

as ilusões do espectro das cores brasileiras.

os racismos se expõem na sua real função, a

de sistema de dominação, produzindo a ne-

cessidade da produção da alienação cultu-

ral para facilitar sua naturalização. racismo

que, no plano internacional, opõe europeus

a guianenses. o caribe negro, ex-colônia; a

europa branca, ex-colonizadora. as ideias de

etnias são muito fortes e amplas na guiana

e no caribe. mostram que racismos não têm

nada a ver com as ideias de raça, são proces-

sos de dominação, são construções tempo-

rais históricas.

o que está em discussão não são as cul-

turas brasileiras, mas as percepções que

os intelectuais brasileiros conseguem ter

desta. Percepções que instauram a produ-

ção da cultura nacional, aqui no singular,

significando a síntese oficial, genitora dos

programas de ensino e das práticas cultu-

rais legitimadas. Progenitora do que vai ser

pesquisado e admitido como novo no pen-

samento nacional, seja ele conservador ou

revolucionário.

Quais são os marcos exteriorizadores desses

pensamentos? apesar das eloquentes defe-

sas da constituição da nacionalidade brasi-

leira a partir de “três raças”, a pluralidade

daí resultante torna-se redução constante

do índio e do negro aos preceitos da inter-

pretação do branco. branco como resumo

do pensamento ocidental dominante e (re)

elaborado no brasil. Pensamento que tem

no seu centro a fonte inspiradora do ma-

nual do racismo e machismo, que é a gran-

de obra Casa Grande e Senzala, de gilberto

Freire. texto até agora não abolido, sequer

discutido quanto à sua validade nos cursos

de graduação. texto lido e relido como fun-

damento, indicado, reescrito na versão mais

sofisticada do povo brasileiro, visto como

fundamento, mas não explicado como fun-

damento do quê e para quem, mas sempre

com este status de fundamento. Fundamen-

to do controle étnico-sexual-social das mas-

sas contra nós, negros e índios, apesar dos

disfarces democráticos e intelectuais.

no pensamento nacional tornou-se siste-

mática a ideia do “escravo” como fator de

produção. não temos os escravizados como

fonte do pensamento e produção intelectu-

al, isto fica relegado ao branco, o europeu

magnífico. na cultura brasileira, o escravi-

zado não pensa, não cria, não tem noção

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política, nem consciência de ser visto e se

ver como ser humano, como produtor de

ideias. as referências feitas a africanos, des-

cendentes de africanos, ficam no patamar

das ações reativas, aos impulsos do imedia-

to. somos produtores de uma cultura Naife,

simplória e linda. Percebida como rica em

artefatos de simplicidade e improviso. não

de elaboração pensada e alicerce centrado

pelo uso da razão.

a redução branca das culturas negras no

brasil é produzida a partir da ignorância de

parte dos nossos intelectuais sobre as cultu-

ras africanas. somos tidos como ignorantes

pela ignorância deles, ignorância produzida

devido à ausência de cursos sobre África e

afrodescendência nas universidades. muito

menos somos sujeitos temáticos de pesqui-

sa, devido a estas tendências, alimentadas

pela inexistência de literatura sobre o assun-

to nas bibliotecas nacionais. o desaparelha-

mento do intelectual brasileiro é expresso

com o brilho do poema de castro alves, em

“navio negreiro”, no qual os africanos, imi-

grados forçadamente para o brasil, são tidos

como originários de uma suposta tribo de

homens nus. esta imagem da tribo dos ho-

mens nus perpassa toda a cultura brasileira,

produzindo os racismos que a perpassam.

raras são as exceções, entre elas os traba-

lhos de costa e silva, Kabengele munanga,

muniz sodré ou do secneb (sociedade de

estudos da cultura negra no brasil).

a imagem de tribos de homens nus é refe-

rência conceitual do pensamento brasileiro,

nos ditando uma suposta ausência de cul-

tura elaborada e desenvolvida dos africanos

aqui escravizados.

AFRODESCEnDênCiAS E

AFRiCAniDADES

em muitos dos cursos sobre africanidades

brasileiras, tenho sido questionado se a nova

História e os trabalhos de Darcy ribeiro não

têm exercido este papel de ruptura necessá-

ria para a compreensão ampliada da partici-

pação do afrodescendente na história social

e cultural nacional. Penso que a resposta é

negativa. nem um nem outro produziu os

elementos essenciais para a ruptura, ambos

continuam conceitualmente na base zero

para a história do(a) negro(a) brasileiro(a),

para a história dos afrodescendentes.

a (re)análise do escravismo não tem sido fei-

ta, considerando este sistema antes de tudo

como criminoso. a (re)análise continua nos

vendo como números e coisas. não procu-

ra captar a nossa dimensão humana. a su-

posta novidade em matéria de abordagem

não imagina o que o meu bisavô intelectual

africano pensava do criminoso escravizador.

não tem tomado a compreensão ampla do

sistema escravista e os quilombos como pro-

dução das alternativas políticas. a nova His-

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tória não tem, na sua essência, o imigrante

africano como produtor intelectual e como

um dos formadores de pensamentos polí-

ticos na ordem escravista. sobre Darcy ri-

beiro, sua abordagem me parece uma insis-

tente reprise da obra Casa Grande e Senzala,

cujo eixo central é uma missão da miscige-

nação como elemento pontificador. eu não

acredito nisso. Penso que a miscigenação é

um dado à parte dos processos ideológicos

de dominação. a miscigenação pouco con-

tribuiu para o suposto pacifismo. o conflito

existe pela violência do sistema, que utiliza

o racismo, o machismo, o classicismo e as

ignorâncias produzidas, como elementos ar-

ticuladores das dominações e das alienações

na sociedade nacional.

AS AFRiCAniDADES BRASilEiRAS

os trabalhos de Diop (1959) permitem uma

percepção da diversidade cultural africana,

dentro de uma unidade da matriz africana.

a diversidade é produzida pelos contextos

históricos, geográficos e econômicos. Pa-

rece-me possível, devido aos importantes

contingentes de africanos imigrados à força

para o brasil, advogar as mesmas participa-

ções nesta dinâmica de diversidade e unida-

de das culturas afrodescendentes processa-

das no brasil. os elementos de base africana

passam no brasil pelas restrições econômi-

cas e políticas do escravismo e do capita-

lismo racista. É essencial, na compreensão

da problemática afrodescendente brasileira,

o entendimento das restrições do político-

-econômico, uma vez que admitimos que a

(re)elaboração destas culturas foi realizada

sob forças de pressões e dominação. É essen-

cial ao conceito de africanidades brasileiras

a ideia de (re)elaboração. as africanidades

brasileiras são (re)processamentos pensa-

dos, produzidos no coletivo e nas individu-

alidades, que deram novo teor às culturas

de origem.

a ideia de (re)elaboração tem o conteúdo da

produção intelectual dos afrodescendentes.

Introduz a ideia do pensado, do nacional,

do produzido através de bases civilizadas

importantes preexistentes às invasões euro-

péias.

a (re)elaboração é o elemento dinâmico,

parte da compreensão de novas realidades

e dos novos embates políticos, ela é produ-

ção do novo. a (re)elaboração explica cons-

truções inexistentes nas culturas africanas

presentes nas africanidades brasileiras. en-

tretanto, as bases constitutivas desta nova

construção são dadas na diversidade cul-

tural africana. a ideia da (re)elaboração e

da sua importância foi percebida por mim

quando, em 1986, estava em viagem a trini-

dad y tobago. Impressionou-me a apresen-

tação de um grupo de steel band, sendo que

steel band são instrumentos de percussão

produzidos com barris metálicos, cortados

e abaulados, que através de um martelo pro-

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duzem um processo de afinação. são feitos

por grupos de afrodescendentes do caribe,

vivendo em regiões portuárias. Devido à re-

volução industrial, os portos recebiam gran-

de quantidade de barris metálicos. o steel

band é um instrumento que produz os sons

de todos os quatros grupos de instrumentos

de uma orquestra sinfônica. trata-se de um

quinto grupo de instrumentos com vários

tamanhos e formas. É um instrumento ine-

xistente na África e na europa, entretanto

aparece no caribe, graças à (re)elaboração

da base africana de música e percussão, sob

a referência de novo contexto de disponibili-

dades materiais. não é uma construção sim-

ples, ingênua, casual, seria impossível con-

ceber tal instrumento, sem uma elaboração

sistemática, instruída de bases dos conheci-

mentos complexos de processos racionais.

a partir da (re)elaboração pensada sobre o

steel band se descortinou um novo horizonte

para pensar o candomblé, a capoeira angola

e os quilombos, que são, assim, (re)elabora-

ção da base africana. a (re)elaboração abriu

o caminho para pensar a ideia de culturas

afrodescendentes e a existência de um con-

junto amplo, indo do pensamento brasileiro

à base material da cultura brasileira.

COnCluSõES

os racismos produzem justificativas de sua

existência, elaboram uma cultura que pre-

vê a sua preservação. as complicações deste

sistema de dominação não passam pela aná-

lise acadêmica amplificada. Produzem con-

siderações fortes sobre os pensamentos aca-

dêmicos, que produzem a sua reprodução.

os pensamentos, guiados por estruturas ra-

cistas, não foram ainda denunciados como

tais, com sistemática veemência. existe um

medo nacional das consequências desta de-

núncia. os racismos são ainda identificados

como de menor importância, como tolerá-

veis ou como passíveis de eliminação pelo

passar do tempo. a singularidade do traba-

lho brasileiro, durante quase 300 anos, sinô-

nimo de escravo, e escravo assemelhado a

negro, não sofreu ainda a devida elaboração

no pensamento nacional. continuamos com

os vetores dominantes no campo de um

marxismo dogmático e estranho às parti-

cularidades do processo histórico nacional.

temos, por outro lado, as dificuldades dos

grupos dominantes se reconhecerem como

dominadores, em face do discurso sorratei-

ro de um espírito democrático, igualitário.

as necessidades ideológicas dos grupos do-

minantes de um credo no universalismo e

na modernidade criam visões conflitantes

com as do particular, do localizado, do re-

gional e do étnico. são razões que precisam

ser percebidas e debatidas para a constru-

ção da pluralidade democrática. ademais,

outro fator não percebido na cultura brasi-

leira e, sobretudo, na política universitária é

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a do peso relativo da representação. a etnia

afrodescendente aparece sempre em des-

vantagem numérica, de poder e de acesso

à elaboração dos discursos oficiais. somos

derrotados pela ausência produtora e jus-

tificadora da precariedade do embate. sem

que se enfrentem as razões fundamentais

da ausência. as razões dos racismos e as so-

luções estão nos programas específicos de

formação.

Para a utilização e expansão dos conceitos

de afrodescendência e africanidades bra-

sileiras, não se apresentam até o presente,

fortes objeções de fundo teórico da produ-

ção de conhecimento, somente objeções de

caráter político. as estruturas do poder, de

domínio do certo e do errado, ficam aba-

ladas com o reconhecimento das africa-

nidades brasileiras. a verdade entra numa

competição de dominação, em que seus

supostos conhecedores podem se confortar

com as ignorâncias, com as faces dos racis-

mos no espelho. são revelações que podem

emergir do aprofundamento no conceito de

afrodescendência e de africanidades. são re-

sultados que abalam o equilíbrio político, o

poder do conhecimento sai da exclusividade

do branco.

as africanidades brasileiras formam um pa-

radigma poderoso para revisão dos concei-

tos e preconceitos vigentes na cultura bra-

sileira. Forjam-se nas ações e nos discursos

processados pelas camadas “racizadas” da

população brasileira. Favorecem a destrui-

ção das idealizações da cultura do domi-

nador. Produzem espaço de liberdade inte-

lectual, livre dos racismos e dos conceitos

produzidos nos processos da dominação

historicamente vigentes na cultura brasilei-

ra.

as afrodescendências instruem sobre a di-

versidade étnica brasileira, livre dos racialis-

mos, reconhecedora da presença ampla, di-

versa, múltipla e estruturada, de uma etnia

predominante afrodescendente.

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II. HUmILHAÇÃO, ENCORAjAmENTO E CONSTRUÇÃO DA PERSONALIDADE1

Azoilda Loretto da Trindade2

A todos as crianças, em especial às negras (afrodescendentes):

“Ao entrar na sala, após a merenda, a professora encontrou Rafael e Tiago,

também recém-chegados da merenda, brigando:

- E você? - perguntou Rafael.

- É, sou branco mesmo. Mas, pior é você, que é louro! - respondeu Tiago.

- Você também é louro, seu branquela! - falou Rafael.

– É, mas você é mais louro do que eu! - retrucou Tiago.”

(ambos, de 8 anos de idade, cursavam a 1ª série do ensino Fundamental,

numa escola pública do rio de Janeiro.)

esse acontecimento ficou gravado na mi-

nha memória como algo intrigante e eu o

destaco, agora, como ilustração de que, no

que diz respeito ao racismo e às exclusões e

discriminações, quer na sociedade, quer na

escola, todos nós estamos afetos e expostos:

mulheres, homens, negro/as, índios, ciganos,

judeus, nordestinos, crianças, idosos, etc. to-

dos nós somos e estamos envolvidos, trans-

versalmente enredados na teia do racismo

e dos preconceitos, ou por pertencer a um

determinado grupo, ou por não fazer parte

de outro e, estando à margem, não perceber-

mos o que aquele grupo vive, pensa ou sente.

Quero, no entanto, convidá-lo(a) a pensar a

negritude, a questão negra ou afrodescen-

dente na escola. uma questão complica-

da, por estar amalgamada com a questão

do racismo, e porque tendemos a negá-lo.

Quanto(a)s de nós falamos ou ouvimos “não

existe racismo, o que existe é questão de

classe”, “aqui não tem essa de racismo, todo

mundo é igual: preto, branco, amarelo, ín-

dio”, ou coisa parecida?

no entanto...

1 escola: exclusão e inclusão – 2000 / Pgm 3.

2 mestre em educação pelo Iesae/Fgv-rJ, Doutora em comunicação pela eco/uFrJ. organizadora desta coletânea.

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A nEgRítuDE nA ESCOlA

Fico fascinada ao ver, cotidianamente nas

ruas, nos horários de início das aulas, o

contingente de crianças, com seus/suas res-

ponsáveis, dirigindo-se às escolas. Quantos

sonhos e expectativas! muitos chegam a di-

zer que vão a escola para serem “alguém” na

vida, como se já não o fossem.

e as crianças e adolescentes negros, afro-

descendentes, que pertencem a um grupo

que têm a sua história escondida e/ou ne-

gada na sociedade; que têm suas necessi-

dades, seus modos de ser, seus problemas,

sua cultura, as lutas e ações positivas do

seu povo, sua voz, sua pele, seu cabelo

negados, escondidos, invisibilizados; que

sofrem diretamente com a omissão, segre-

gação e secundarização dos problemas es-

pecíficos do seu povo?

começo a lembrar de acontecimentos rela-

cionados a nós, negros e afrodescendentes

na escola.

mesmo com visíveis mudanças - hoje temos

os Parâmetros curriculares nacionais, com

a proposta de discutir a pluralidade cultu-

ral, em nível nacional; o Dia nacional da

consciência negra incorporado em muitos

calendários escolares; a voz do movimento

negro, ecoando em toda a sociedade - as si-

tuações que relatarei a seguir ainda nos são

contemporâneas.

FEStAS, DESFilES E

COMEMORAÇõES

Davidson, com 9 anos, na primeira série,

menino negro, pai e mãe negros, recusou-

-se a participar da festa junina se tivesse que

dançar com uma colega negra. alegou não

gostar de negros e que, por isso, não dan-

çaria com a menina. a professora disse-lhe

que, se ele não dançasse com a colega, ele

não dançaria com ninguém. ele ficou na fes-

ta apenas como espectador e não dançou

com ninguém. Imagine o nível de autonega-

ção daquela criança e como deve ter ficado

a menina.

amauri era um menino inteligente, só tira-

va excelentes notas. a regra da escola era

que o melhor aluno carregaria a bandeira

da escola no dia do desfile cívico. naque-

le ano, pelas notas e atitudes, amauri era

considerado o melhor aluno. no entanto,

no dia do evento, amauri foi preterido por

um outro aluno.

É importante que nos indaguemos quantas

crianças negras, sob nossa responsabilida-

de docente, têm a oportunidade de levar

a bandeira da escola, e/ou de representar,

nas festinhas da escola, coelhinhos da Pás-

coa, ou Jesus ou sua mãe maria, ou anjos,

ou situações que exprimam beleza e visibi-

lidade positiva?

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BRinCADEiRAS

“barra manteiga/no fuça da nega” ou “chi-

cotinho Queimado”. esses e outros tipos de

brincadeiras nada teriam demais, não fosse

a desumanização de negros, quem tem fuça

não é gente, ou a banalização de um instru-

mento de punição e coerção como o “chi-

cotinho queimado”, o chicote que já “quei-

mou” na pele de muita gente, sobretudo dos

negros escravizados do nosso país.

MuSiQuinHAS

músicas infantis, como, por exemplo “es-

cravos de Jó” que, embora pertencendo ao

nosso imaginário social, à nossa memória

afetiva, trazem no seu bojo a naturalização

da condição de escravo que, no caso do bra-

sil, é tido como sinônimo de negro.

COntOS DE FADAS E POPulARES

no nosso repertório de contos de fadas ou

populares mais conhecidos, quantas belas he-

roínas negras podemos, de pronto, destacar?

lendas que retratam a origem das “raças”

colocam os negros como os esquecidos de

Deus, ou como descrentes ou preguiçosos,

ou a cor negra como uma espécie de castigo.

são tantas exclusões, preconceitos, discri-

minações!

temos situações mais duras, que trazem, em

seu bojo, uma limitação de possibilidades da

criança ou do aprendiz, ou uma descrença

no potencial do outro/a como:

O DEStinO DE DEniSE

a mãe de Denise, menina negra, de família

de baixa renda, foi à escola da sua filha, que

era pública e situada em bairro popular, re-

clamar do ensino “fraco” daquela institui-

ção.

a professora, que gostava muito da Denise,

menina inteligente e boazinha, excelente

aluna, acalmou a mãe: “não se preocupe,

para ser auxiliar de enfermagem ou traba-

lhar num supermercado, este ensino está

ótimo. ela vai se dar muito bem, fique tran-

quila”.

Denise, hoje, é doutora em sociologia e pro-

fessora de uma universidade norte-america-

na.

Imagine se a mãe da Denise aceitasse aquela

profecia para sua filha...

Imagine quando uma criança é negra e, jun-

to com esta falta de expectativa, vier a cren-

ça de que aos negros cabem profissões que

exigem pouco estudo.

Imagine quantas crianças têm seu potencial

embotado por causa do racismo e preconcei-

to de algumas e alguns docentes, e/ou pela

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falta da confiança que tiverem em relação

a ela, pela falta daquele encorajamento, da-

quele estímulo para a aventura de aprender.

PROFESSORA nEgRA

o pai de uma criança de uma escola pública,

no primeiro dia de aula, ao ver que a pro-

fessora do seu filho era negra, foi solicitar à

diretora da escola que trocasse sua criança

de turma. “ora! logo meu filho com aquela

professora escurinha” - disse ele.

temos situações mais sutis, mais naturaliza-

das, submersas e corriqueiras, como:

• a exclusão da imagem negra com positivi-

dade dos murais, quadros de avisos, de ani-

versariantes do mês, dos quadros das cha-

madinhas, nos brinquedos adquiridos pela

escola, como, por exemplo, bonecos/as.

• a ainda incipiente quantidade de livros

didáticos ou paradidáticos e de literatu-

ra infantil e juvenil com imagens negras,

que não mostrem posições subalternas

ou de marginalidade.

• Quando compramos presentinhos iguais

para todas as meninas da escola, por

exemplo, pentes ou prendedores, sem le-

var em consideração a constituição dos

cabelos das meninas negras.

• Quando ficamos paralisados sem saber o

que fazer diante de xingamentos, apelidos

ou picadas relacionados ao povo negro,

ou quando as crianças negras se dese-

nham brancas de olhos claros.

• o desconhecimento e o desinteresse co-

letivos de que há um mundo submetido,

tornado subalterno, estereotipado, silen-

ciado pelo racismo e preconceito a tudo

que nos reporta à África e à sua diáspora:

o continente africano, sua gente e seus

descendentes, seus costumes, sua litera-

tura, seus saberes, religiões, ciência, sua

geografia, história, biologia - toda uma

riqueza a ser descortinada e reconheci-

da.

não destaco estes acontecimentos para

culpabilizar ninguém, mas porque sou pro-

fessora e sei a importância do nosso papel

na formação dos alunos/as e cidadãos(ãs),

na ampliação do seu desejo de aprender, no

formação da sua autoimagem, na sua auto-

confiança e sei o quanto a escola é crucial

para nós, afrodescendentes.

Destacamos estes acontecimentos para con-

vidar o/a leitor/a a entrar na escola com um

olhar antirracista e democrático porque, no

seu cotidiano, está presente a diversidade,

o movimento, as multiplicidades de sons,

cores, cheiros, vozes, formas, desejos, a di-

ferença, os negros/as - afrodescendentes,

a(s) cultura(s) negra(s), entre outras. essa

entrada na escola, numa perspectiva antir-

racista, requer atuarmos no seu cotidiano

criticamente:

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• na hora da matrícula, para não excluir

ninguém com mecanismos sutis e perver-

sos, mascarados, ou não, de bonzinhos;

• nas ações que incidem no controle do cor-

po e da fala dos alunos, já que este “con-

trole”, subliminarmente, aponta para um

padrão de corpo e linguagem humana que

nega as diferenças ou privilegia um deter-

minado aspecto como o melhor, o certo,

o válido;

• - quando da escolha e da organização de

turmas, no planejamento, nas ações coti-

dianas de sala de aula (definição de con-

teúdos e suas abordagens, livros didáticos

e paradidáticos, textos escolares, meren-

das, recreio, brincadeiras, musiquinhas,

nas reuniões docentes, em nossos discur-

sos, nas reuniões com as responsáveis,

etc.), para que o respeito, a valorização, o

diálogo, a tolerância, a construção coleti-

va, a expectativa positiva, a criatividade e

a paixão por aprender e ‘conhecer o mun-

do’ sejam realidades visíveis.

Destacamos estes acontecimentos para si-

nalizar a urgente necessidade de descobrir-

mos nossa negritude presente na escola e na

sociedade. Descobrirmos com outros olhos

a presença negra no brasil, para além da

circunscrita no folclore, para além da mera

contribuição na dança, música, samba, co-

res vivas, futebol. Percebermos a cultura

negra em todas as partes, ainda que sub-

mersa, na arte, na ciência, nas nossas vidas,

nas nossas lutas, no nosso sangue e na nos-

sa alma.

enfim, convidamos todo(a)s a perceber essa

cultura com sentimentos como a curiosi-

dade, a admiração, o interesse, e sobretudo

com respeito, muito respeito para com um

povo que, chegado ao brasil como chegou,

tendo vivido e vivendo uma história de injus-

tiça, exclusão, discriminação, não perdeu a

capacidade coletiva de dançar, cantar, sorrir,

criar e, como canta caetano, construir “mi-

lagres de fé no extremo ocidente” e que só

sobreviveu e sobrevive porque possui “essa

estranha mania de ter fé na vida”

afinal, romper com a discriminação e com

o racismo, investindo numa escola que

contemple e valorize nossas matrizes cul-

turais sem hierarquizá-las, que valorize e

atue com competência, conhecimento e

desejo político, rumo à construção de uma

educação libertadora e multicultural críti-

ca - esses são os nossos desafios e legados

históricos.

REFERênCiAS

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história do Brasil: mito e realidade. rio de Ja-

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85

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Paulo: cia. das letrinhas, 1998.

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lhoramentos, 1986.

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III. A LEI N. 10.639/2003 ALTERA A LDB E O OLHAR SOBRE A PRESENÇA DOS NEgROS NO BRASIL

E TRANSFORmA A EDUCAÇÃO ESCOLAR1

Bel Santos2

a alteração dos artigos 26 e 79 da lei n.

9.394/1996, de Diretrizes e bases da educa-

ção - lDb, através da lei n. 10.639/2003, deve

ser entendida como um passo importante a

caminho de uma pedagogia e de uma didáti-

ca que valorizem a diversidade étnico-racial

e cultural presentes no brasil.

uma das características do processo de de-

mocratização do país tem sido a alteração

do marco legal, incluindo, em forma de leis,

antigas reivindicações sociais de acesso aos

direitos. são exemplos: a constituição bra-

sileira (1988), o estatuto da criança e do

adolescente (lei n. 8.069/1990), a lDb (lei

n. 9.394/1996) e sua recente alteração (lei

n. 10.639/2003), tema deste texto. Indistinta-

mente, estas leis incorporaram, ao concei-

to de inclusão, o direito inerente a todas as

pessoas de serem tratadas em condições de

igualdade, independente de sua cor ou raça,

ao mesmo passo que deixaram patente que

a democracia racial, tão apregoada, não é,

ainda, uma realidade, necessitando, portan-

to, que seja garantida por lei.

Quando o assunto é lei, vêm logo a nossas

mentes algumas expressões do senso co-

mum: “lei no brasil não pega... é só mais

uma”, “é para inglês ver”, “se fosse bom o

governo não dava, vendia”, “é mais uma lei

que vem de cima para baixo, para complicar

a vida do/a professor/a3 e da escola”. os de-

mais programas desta série já trataram de

1 repertório afro-brasileiro – 2004 / Pgm 5.

2 Professora formada em matemática, com especialização em Pedagogia social. Durante 11 anos alfabetizou em escolas da rede Pública municipal de são Paulo e, desde 1992, atua em organizações não governamentais. atualmente é coordenadora de projetos de educação do centro de estudo das relações do trabalho e Desigualdades - ceert, voltado para a promoção da igualdade racial/étnica no ambiente escolar; sendo docente do Programa de Formação em Direitos Humanos do Instituto brasileiro de estudos e apoio comunitário – Ibeac

3 a partir deste momento, apenas para efeito de facilitação da leitura e da escrita, utilizaremos os artigos femininos apenas quando se tratar especificamente do gênero feminino. nos demais casos, utilizaremos o gênero masculino.

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apontar como as organizações do movimen-

to negro, por meio de pesquisas e denúncias,

se empenharam em tornar incontestáveis os

dados da desigualdade racial que marcam as

relações em nosso país4. a inferiorização e a

invisibilidade da população negra foram ex-

plicitadas. uma rápida olhada nos outdoors

das grandes cidades do país e a quantidade

de mulheres louras associadas a produtos de

beleza e de ascensão social nos levariam a

supor estarmos na Dinamarca ou em qual-

quer outra cidade européia. em contraparti-

da, as campanhas e propagandas de cunho

social (como saneamento básico, alfabeti-

zação, doação para orfanatos etc.) se valem

da imagem de pessoas negras, provocando a

rápida associação entre negro e miséria.

assim, é! todos nós vemos! todos os dias:

no jornal, na novela, nas revistas... assim

é a nossa sociedade! assim acontece fora

da escola, porque dentro... como acontece

dentro? como negros e negras são represen-

tados nos livros didáticos? Qual enfoque é

dado à sua participação na história e cultura

do país? aparecem como escravos? como

passivos? ou não? Já falamos de Zumbi e do

Quilombo dos Palmares... e o 20 de novem-

bro? e as várias insurreições negras, as ve-

lhas e atuais reivindicações pautadas pelos

movimentos negros, mas que beneficiarão

toda a sociedade?

se para lá dos muros da escola, os conteúdos

fazem com que os negros e negras se sintam

inferiores, como a escola pode se contrapor

e ir na contramão, oferecendo possibilida-

des para que crianças, adolescentes e jovens

negros construam uma justa imagem de si

mesmos?

Perguntas como estas, há décadas orien-

tam os estudos e intervenções de organiza-

ções negras e intelectuais brancos e negros,

como F. rosemberg, ana célia silva, eliane

cavalleiro e outros.

Permito-me argumentar que, ainda que ou-

tras leis sejam resultantes de reivindicação

popular, a inclusão da história e cultura da

África nos currículos escolares se destaca

pela intensa mobilização social e pela com-

petente metodologia produzida à margem

do sistema oficial de ensino. entendendo

que mudar o imaginário de África incidia di-

retamente no imaginário social sobre a po-

pulação negra no brasil, instituições como o

Ilê-aiyê da bahia, passaram a desenhar uma

proposta educacional para suas crianças, in-

cluindo uma história positiva da África, os

4 De acordo com dados do Instituto de Pesquisas aplicadas - IPea, com base na Pesquisa nacional por amostra de Domicílio (PnaD) de 1999, apesar de os negros representaram pouco menos da metade da população, são 70% dos que vivem em situação de miséria; a pobreza atinge 38% das crianças brancas e 65% das negras; um negro, com mesmo nível de escolarização que um branco ganha até 54% menos que este; entre os meninos brancos 44,3% estão cursando o 2o ciclo do ensino Fundamental, já para os negros este percentual cai para 27,4%; sete em cada dez negros não completam o ensino Fundamental.

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mitos, a ancestralidade e a topografia do

terreiro à sua concepção pedagógica. a prin-

cípio, estas práticas pretendiam ser com-

plementares ou alternativas à educação es-

colar que, baseada na ditadura do “mono”,

invalidava e abortava a diversidade cultural

e racial presente em seus alunos, produzin-

do, com esta invisibilização, uma escala de

valores, na qual a história e cultura da África

ocupavam os últimos lugares.

a experiência do apô afonjá, sistematiza-

da por vanda machado, é um feliz exemplo

de busca de uma pedagogia nagô, que liga

a educação escolar ao mundo do terreiro

com toda a sua riqueza material e simbólica,

envolvendo toda a comunidade com a ação

educativa e promovendo o conhecimento e o

respeito às religiões de matriz africana. crian-

ças, ainda muito pequenas, ouvem e reescre-

vem, com suas educadoras, histórias de reis

e rainhas africanos como a rainha nzinga,

de lutadores como “o caçador de uma flecha

só, que trouxe alegria”, e assim aprendem a

gostar mais de si mesmas. o passo seguinte

foi levar esta pedagogia para a escola, incluir

este novo olhar e novos sentidos à formação

dos educadores da rede pública aos espaços

acadêmicos. e assim vem acontecendo.

Desde 1940, o teatro experimental do negro,

preocupado com uma educação que valori-

zasse a participação do negro na construção

da história, criou cursos de alfabetização,

arte e cultura para adultos e crianças.

Foi o conjunto de práticas como estas que

impulsionou a inserção da história e cultura

da África e dos afro-brasileiros no currículo

oficial de algumas secretarias de educação

na década de 1990 e em 2003, em todo o sis-

tema educacional, como lei federal. Portan-

to, a lei n. 10.639/2003 não é um presente

“do governo”. no máximo um presente das

organizações do movimento negro para a

sociedade brasileira. um passo importante

neste processo foi a consolidação do Plano

de ação da III conferência mundial contra o

racismo, o direito de ter incluído nos currí-

culos escolares a história que até então não

tinha sido contada nas escolas.

atuando na formação de educadores e na

proposição de políticas de promoção da

igualdade racial, tenho observado que, no

geral, as unidades educacionais já reconhe-

cem que é delas a tarefa de educar para a

igualdade racial, ainda que alguns educado-

res estejam esperando uma situação explí-

cita de racismo, para então pensar no as-

sunto. Porém, para aqueles que acreditam

que é necessário fazer algo, a questão que

se apresenta é o como fazê-lo. a tendência

é delegar esta missão ao professor negro,

militante, ou ao professor de História, que

são considerados como “aqueles que sabem

destas coisas”, enquanto os demais ficam

à espera do dia em que estarão preparados

para tratar tema tão delicado!

as dificuldades, muitas vezes, estão pauta-

das, mais que na falta de conteúdos e fontes

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de pesquisas, em receios, medos, mágoas e

inseguranças em tratar a temática racial, que

não devem ser ignorados. muitas vezes, os

educadores brancos, negros, indígenas, etc.,

não tiveram oportunidade de refletir sobre

sua própria identidade racial, sobre suas vi-

vências das relações raciais. cabe uma pro-

posta efetiva de capacitação de educadores,

oferecendo conteúdos, mas também, dando

conta das questões subjetivas, para encorajá-

-los a uma prática que promova a igualda-

de racial. trata-se de mudar, não apenas os

conteúdos, mas o olhar e os sentidos dados

à diversidade étnico-racial. nessa perspec-

tiva, muitas práticas “alternativas”, muitos

materiais e experiências têm sido produzidos

em território nacional: bibliografias afro-

-brasileiras têm chegado às salas de leitura e

bibliotecas dos municípios de são Paulo, belo

Horizonte e campinas; programas de forma-

ção continuada nas unidades escolares, nos

horários coletivos, nas universidades; sele-

ção, análise e disseminação de práticas edu-

cacionais como as que são organizadas pelo

Prêmio Educar para a Igualdade Racial, promo-

vido pelo centro de estudos das relações de

trabalho e Desigualdades – ceert10. Práticas

que têm saído do combate ao racismo para a

promoção da igualdade racial na educação.

a experiência do Prêmio educar para a Igual-

dade racial apontou que a inclusão de uma

perspectiva africana ao currículo escolar

tem provocado grandes mudanças no modo

de ensinar, nas metodologias de ensino, nos

recursos didáticos utilizados. observa-se

que estas práticas são mais participativas,

contam com a presença da comunidade es-

colar em seu sentido mais amplo (familia-

res, organizações sociais etc.), estimulam a

pesquisa, valorizam a oralidade, os símbo-

los, os mitos, a ancestralidade.

a experiência do Prêmio educar para a Igual-

dade racial apontou que a inclusão de uma

perspectiva africana ao currículo escolar

tem provocado grandes mudanças no modo

de ensinar, nas metodologias de ensino, nos

recursos didáticos utilizados. observa-se

que estas práticas são mais participativas,

contam com a presença da comunidade es-

colar em seu sentido mais amplo (familia-

res, organizações sociais etc.), estimulam a

pesquisa, valorizam a oralidade, os símbo-

los, os mitos, a ancestralidade.

não tememos ser otimistas, ao dizer que a

lei n. 10.639/2003 já nasce ultrapassando o

limite da obrigatoriedade. a África está dei-

10 o Prêmio educar para a Igualdade racial, em duas edições, recolheu e analisou 524 experiências educacionais de promoção da igualdade racial/étnica, de todos os estados do país, da educação Infantil, do ensino Fundamental e médio. a primeira edição teve como um dos produtos a publicação “educar para a Igualdade racial” contendo as sínteses de 30 experiências e um cD com sugestões de atividades e uma bibliografia com mais de trezentos títulos. a publicação da segunda edição está em andamento, mas é possível verificar no site do ceert (www.ceert.org.br), um resumo de 32 práticas bem sucedidas.

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xando de ser um “país carente” para se tor-

nar um continente cheio de contradições e

belezas históricas. na mesma medida, a es-

cola deixa de ser o terreno da exclusão de

crianças negras e indígenas, para se tornar

espaço de intervenção pedagógica de com-

bate ao racismo e de promoção da igualdade

racial. vão desaparecendo as ações solitárias

das salas de aula e emergindo projetos co-

letivos, “projetos-continente”, partilhados

com outros educadores, com organizações

do movimento negro, pesquisadores e se-

cretarias de educação. os livros com visões

estereotipadas cedem o espaço àqueles que

falam de tantas diferentes gentes, em tan-

tas diferentes línguas, de tantos diferentes

sentimentos, mostram tantos diferentes

jeitos e cabelos. rompe-se o silêncio diante

de situações de discriminação, sejam elas

explícitas ou não. as referências negras,

as personalidades históricas não podem

mais ser contadas nos dedos das mãos, ta-

manhos os levantamentos feitos por edu-

cadores e educandos. cada vez que um

educador sente dificuldades para abordar

a temática racial ou tem vontade de apro-

fundar sua formação sobre os estudos afro-

-brasileiros conta com vasta bibliografia e

com a parceria das universidades locais e

seus pesquisadores. os quilombos deixam

de ser referência do passado e estão cada

vez mais perto do universo das escolas.

uma boa escola passa a ser assim denomi-

nada na medida em que reflete, em todos

os seus aspectos, a diversidade étnico-ra-

cial presente na sociedade brasileira. este

“projeto continente” não está pronto. está

sendo e poderá ser construído por cada

um, cada uma de nós, cotidianamente. sua

implantação impulsionará decisões asserti-

vas, políticas públicas transformadoras. e,

brevemente, nossos alunos, negros, bran-

cos, indígenas e de outros grupos étnicos

terão que consultar o dicionário para com-

preender o termo exclusão.

PARA AMPliAR O DEBAtE

vídeos:“Vista minha pele” – ceert

. [email protected]

“rompendo o silêncio” – sebraP

REFERênCiAS

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em preto e branco. são Paulo: ed. Ática, 1999.

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Iv. áFRICA vIvA E TRANSCENDENTE!1

Narcimária Correia do Patrocínio Luz2

[...] Eu digo para nunca esquecerem o lugar de suas origens. Se nós participamos

na religião de outros, se nós aprendemos a cultura dos outros, não devemos es-

quecer a nossa. Portanto, nós não devemos usar nossas mãos para relegar nossa

própria cultura a posições inferiores. Toda pessoa deve aprender a colocar-se

a si mesma num pedestal. Isto porque a galinha é que se abaixa quando está

entrando em casa.

Meus filhos, todos os tesouros do povo Yorubá estão em Ilé-Ifé. Ifé é o lar e a ori-

gem de todos nós... Ilé-Ifé é a terra sagrada do povo negro e de todos os devotos

da religião dos Orixás espalhados pelo mundo. Foi aqui em Ifé que Oduduwa

criou a Terra sobre a qual todos nós hoje estamos em pé e no seio da qual nós

desapareceremos quando mudarmos nossa presente posição mortal!!!Oduduwa

que desceu para a terra numa corrente, e que foi o primeiro Olofin, não deixará

secar nunca a fonte de vossa sabedoria. Eu saúdo a vossa coragem. Eu saúdo

vossa paciência. Eu estou muito feliz por ver que vocês não esqueceram o seu

lar ancestral...

(oba okunade sijuwade, olubuse II, rei de Ifé. Pronunciamento na I confe-

rência mundial da tradição do orixá, Ilê Ifé, nigéria, 1981.)

intRODuÇÃO

a efervescência do debate sobre a lei n.

10.639/03, que entrou em vigor em 09 de ja-

neiro de 2003 e que inclui, no currículo da

educação básica, o estudo da História da

África e cultura afro-brasileira, e sua im-

plementação no currículo oficial das esco-

las brasileiras são o foco da nossa análise,

principalmente depois de constatarmos

muita ansiedade entre os professores(as),

sob a pressão de ter que contribuir no pro-

1 currículo, relações raciais e cultura afro-brasileira – 2006 / Pgm 1.

2 Professora titular do Departamento de educação campus I da universidade do estado da bahia-uneb; Doutora em educação; pesquisadora no campo da educação, comunicação e comunalidade africano-brasileira; coordenadora do ProDese - Programa Descolonização e educação cnPq/uneb.

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cesso de implantação do ensino de História

da África e História e cultura afro-brasileira

nas suas escolas.

levando em consideração as questões mui-

tas vezes dispersas e equivocadas que vêm

afligindo professores(as), e aquelas que ha-

bitam o imaginário de crianças, adolescen-

tes e jovens que deverão vivenciar a lei, aqui

é importante esclarecer que o processo de

sua implantação não está ocorrendo em

águas tranquilas. a lei n. 10.639/03 é o resul-

tado do esforço envolvendo as comunalida-

des africano-brasileiras que, durante muito

tempo instituíram iniciativas em educação

que afirmassem e legitimassem seu patri-

mônio civilizatório: a África e sua (re)criação

nas américas.

apesar de reconhecermos a conquista ob-

tida pelas comunidades africano-brasileiras

em estabelecer canais de legitimação ins-

titucionais para que o estado assumisse a

diversidade civilizatória dos povos nas polí-

ticas de educação, vimos que há equívocos

na abordagem sobre a África e sua influ-

ência em nossas vidas. Isso, muitas vezes,

vem ocorrendo pela adoção de perspectivas

teórico-metodológicas, ainda derivadas das

projeções da História e da geografia civili-

zatórias greco-romanas, anglo-saxônicas e

ibéricas. são perspectivas que insistem em

representar a África compacta, homogê-

nea, submetida ao discurso universal que a

congela no tempo e no espaço da lógica do

projeto histórico da “ordem e progresso” ca-

pitalista, destituindo-a completamente dos

povos que detêm milenarmente um comple-

xo sistema de pensamento, de onde trans-

bordam cosmogonias, universos simbólicos,

um complexo sistema de comunicação cujas

linguagens e valores organizam comunali-

dades, instituições e suas hierarquias, tec-

nologias e modos de produção, além de uma

magnífica erudição estética...

nossa contribuição se alinha justamente

nesse esforço, de compor a África a partir

do repertório das comunalidades que a (re)

criaram aqui, tornando-a visceral em nos-

sas vidas. a África que aparece no currículo

escolar soa como um lugar distante, tudo é

estranho, fora das nossas entranhas. essa

África, que ganha o status jurídico, no âm-

bito das políticas de educação, perde a di-

nâmica de civilização transatlântica que há

muito atravessa o nosso viver cotidiano no

brasil. ora, se estamos dentro da dinâmica

entre tradição e contemporaneidade, é pre-

ciso que se diga: a África também está aqui!

está aqui o tempo todo envolvendo nossas

crianças e jovens, animando-os a estruturar

suas identidades e erguer a cabeça para lidar

com os espaços institucionais impregnados

do recalque ao que somos, enquanto povos

descendentes de africanos.

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PARA AléM DAS FROntEiRAS DO

CuRRíCulO ESCOlAR, EXiStE A

FlOREStA

se realmente pretendemos aproximarmo-

-nos da “áfrica viva”, será preciso pensar

em africanizar o currículo. a africanização

do currículo escolar é uma estratégia para

transcendermos as narrativas curriculares

que destituem os povos da África do direito

à existência e da afirmação de toda a exube-

rância que caracteriza o seu continuum ci-

vilizatório. nossas crianças e nossos jovens

precisam saber disso! É uma dinâmica de

currículo cujas linguagens e valores se inter-

cambiam entre as distintas civilizações que

compõem a nossa identidade nacional.

Isso nos leva à radicalidade das elaborações

sobre o tempo que atravessa o pensamento

africano. creio que muniz sodré nos ajudará

a elaborar essa transcendência:

[...] Os neo-alexandrinos tinham uma

categoria chamada ‘eon’, que é uma das

maneiras de dizer tempo em grego. O

‘eon’ é o tempo que recorre. Então, há

alguma coisa na Bahia que é a ordem do

‘éon’, ‘trans-histórico’, transtemporal.

Onde há ‘éon’ tem-se o princípio forte de

ancestralidade, de paternidade, e não de

história pura. A história, principalmente

a história como Hegel e Marx viram, é

dinâmica, é uma mutação sem compro-

misso com o pai, porque o Ocidente é

uma sociedade deicida e parricida, ma-

tou Deus e mata o pai. Bem, eu estou

falando com outra linguagem, do Egun,

que é o culto ao ancestral. Portanto, o

princípio da ancestralidade é poderoso,

porque nele você pode crescer, envelhe-

cer, morrer, e o tempo inteiro você é

atravessado por um discurso de funda-

ção de seu pai e sua mãe. Você não se

livra desse discurso. Você pode tentar

rejeitá-lo, mas quando joga fora é para

cair num outro que você funda, porque

você se livra de seu pai físico, mas quan-

do tem um filho vira o pai e você está no

discurso de fundação3.

vamos nos dedicar agora a realçar alguns

elementos dramáticos que nos permitem

a aproximação da singular visão de mundo

que faz expandir a complexidade da civiliza-

ção milenar africana entre nós.

trata-se do conto “Ajaká, iniciação para a

liberdade”4, que integra a herança nagô nas

américas, de modo particular na bahia. esse

mito foi (re)criado para um auto coreográ-

fico por mestre Didi, Deoscóredes maximi-

liano dos santos, Juana elbein dos santos e

orlando senna.

3 soDrÉ, muniz. entrevista a mariluce moura, Caderno Valor, 4 de março de 2001, p.10.

4 conto adaptado de santos, Deoscóredes m. et alii. Ajaká, a Iniciação para a Liberdade. salvador, secneb, 1991.

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esse auto coreográfico vem alimentando

nossas iniciativas teórico-metodológicas,

envolvendo professores de várias regiões do

brasil, para falar sobre a presença africana

e a contribuição de suas linguagens na área

de educação.

Fizemos uma adaptação cuidadosa e exclu-

siva de Ajaká para compor esse mosaico de

ideias sobre a “áfrica viva e transcenden-

te”, e irmos conversando, tocando no que

há de mais profundo no conto, a saber: os

percalços pelos quais akajá passa, que são

explorados entrelaçando dança, música, tex-

to, efeitos plásticos: uma linguagem assen-

tada no universo simbólico nagô. a floresta

é o cenário-chave do conto e nela crescem,

com maestria, conteúdos ético-estéticos

que revelam as mães ancestrais, represen-

tadas como o pássaro akalá; aroni, o orixá

das folhas, que se torna irmão de ajaká e seu

guia; os espíritos da água e da palmeira; os

ancestrais masculinos egunguns.

escutem com o coração e procurem extrair,

das imagens que alimentam a narrativa,

linguagens que levantem a auto-estima das

nossas crianças, adolescentes e jovens, que

precisam urgentemente (re)aprender a en-

contrar seu lar ancestral e com ele, e através

dele, projetar-se para uma ética do futuro,

podendo assumir a plenitude de ser e ter or-

gulho da sua descendência africana.

No tempo em que os seres humanos mo-

ravam nas árvores e conversavam com

elas5, os mais antigos nos contam que

Oduduwa, orixá patrono da criação da

Terra, vivia em seu palácio na cidade

de Ifé, na Nigéria, de onde se originam

a cultura nagô e as linhagens reais dos

diversos reinos do império nagô.

Oduduwa ficou muito doente e, se não

fosse logo cuidado, poderia ficar cego.

Ah! Se isso acontecesse, a existência es-

taria toda em perigo! O ânimo de todo o

povo de Ifé era a esperança de encontrar

a Folha da Vida, único remédio, planta sa-

grada que representa descendência, reno-

vação, cuja seiva permitirá que o Rei Odu-

duwa recupere a visão e a força da vida.

Mas não é fácil encontrar a folha da

vida! A hierarquia do palácio convoca

os caçadores experientes, que conhecem

bem as matas e florestas, mas infeliz-

mente eles não conseguem encontrar a

folha da vida.

Se abate por toda Ifé muita angústia e

tristeza, pela situação da saúde de Odu-

5 É assim que os/as mais antigos/as costumam transmitir saberes aos/às mais novos/as nas comunidades de matriz africana. as histórias, contos, cantigas, parábolas, provérbios são anunciados com essa introdução, carregada de poesia mítica, demonstrando que o conhecimento a ser transmitido vem de tempos imemoriais, isto é, desde que o mundo é mundo.

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duwa, que a cada dia se agrava. O Baba-

lawô, que é um sacerdote iniciado nos

mistérios oraculares e capaz de indagar

sobre o futuro, sabe que a folha da vida

é a única solução, e diante da situação

abre seu coração e indaga:

“Quem pode encontrar? Quem sabe re-

conhecer uma coisa em outra? Quem

sabe adivinhar o que não se vê e não se

toca? Quem pode sentir o impossível?

Quem?”

Diante dessas indagações apresenta-se

o jovem Ajaká, o primogênito, o primei-

ro neto do rei Oduduwa. Sabe aquele

adolescente, cheio de si e destemido?

Pois é! Ajaká é assim, e se oferece con-

fiante para ajudar Oduduwa, e com isso,

assegurar a continuidade e dinâmica da

transcendência que envolve o mistério

da existência na Terra.

Ajaká é capaz de dar continuidade, ex-

pandir e recriar os valores inaugurais

legados dos ancestrais. Ele é uma repre-

sentação mítica do orixá Ogum, que é

desbravador, caçador, e conhecedor pro-

fundo da floresta.

Será imerso a esse mundo sobrenatural

e de mistério que Ajaká faz a sua inicia-

ção da adolescência para se tornar um

adulto. Durante esse período de busca

pela folha da vida, absorve conhecimen-

tos ancestrais infinitos, contidos princi-

palmente na floresta.

no seu encontro no coração da floresta com

a Iya mi Agbá, a mãe ancestral, ela o orienta

dizendo-lhe que:

“(...) terá de aprender em seu próprio

corpo. Com a cabeça, com as mãos, com

os pés e o coração. Ori, Okan, ese, e òwo.

Com o estômago, com as vísceras, com

a saliva, o esperma e o sangue, com a

pele e o pensamento. A Folha da Vida

está em alguma parte, em qualquer lu-

gar no mais profundo recanto da flores-

ta, na zona mais difícil e oculta.”

Depois de beber o vinho da palmeira,

Ajaká torna-se irmão de Aroni, o orixá

das folhas, que também o orienta: “Você

pode aprender os mistérios das folhas,

das raízes, das flores e dos frutos, os

mistérios que eu sei, os mistérios que eu

sou. Você, meu irmão, pode aprender a

multiplicar, você pode aprender a eter-

nidade... As plantas podem curar, pro-

teger e revelar uma nova sabedoria, um

conhecimento infinito.”

Em Aroni, Ajaká identifica o saber so-

bre as plantas, a medicina, o segredo

da luz que abraça cada semente, grãos,

pétalas, fibra vegetal. Mas Ajaká desco-

bre que todo o conhecimento que Aroni

detém de reconhecer esse repertório so-

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bre a flora não abrange a folha da vida e

nem mesmo sabe onde ela está.

Mais uma vez, Aroni ensina a Ajaká que

os mistérios da vida não estão apenas

nas plantas, ele terá que aprender muito

em seu próprio corpo.

“Os mistérios da vida estão em outros

pontos da natureza, como em certas

partes animais. Para sabê-los você terá

de aprender a transformar-se em bicho.

Mas este é um segredo profundo, e agu-

do como a ponta do espinho, um segredo

das mães ancestrais.”

Assim, Ajaká invoca outra vez a mãe an-

cestral Akalá, e diz a ela da necessidade

de conhecer o corpo dos bichos. Akalá o

previne de que ele poderá, ou não, saber,

e pede-lhe que imagine a estranha, mas

maravilhosa inteligência do macaco, que

é o guardião da ancestralidade, o que

fala com os mortos. E como a Folha da

Vida encontra-se muito longe de onde

eles estavam, Akalá recomendou-lhe:

“Você precisa da força do búfalo, da fe-

rocidade e da agilidade da pantera; e da

serpente, que lhe dirá como é possível re-

nascer, renascer, renascer... Você será se

souber a mágica multicor do camaleão...

O macaco fala com os mortos, os que sa-

bem; Egun, Egun, Egun. O corpo do ma-

caco é feito de dor, dor, dor...”

E lá se vai Ajaká. Transformou-se doloro-

samente em macaco, e agora é capaz de

encontrar Egunguns, os espíritos ances-

trais.

Ajaká sabe que a Folha da Vida se en-

contra no ponto mais secreto da parte

desconhecida da floresta, a região mais

escura e úmida, a mais sagrada, protegi-

da pelos espíritos que impedem a passa-

gem. E pergunta aos Eguns como pene-

trar nessa região.

Os Eguns acolhem a pergunta de Ajaká.

De repente, um forte ciclone o leva para

os recônditos da floresta. Assim Ajaká se

aproxima da folha da vida, que fica quie-

tinha, escondidinha observando a apro-

ximação de Ajaká. Diante do silêncio da

folha da vida, que não se revela imedia-

tamente , Ajaká canta para ela:

“Ewê ê asa kojé

ewê gbogbo ni segun

ewê ê asá kojé tantan

ewê gbogbo ni ti tôrisá!

Folha da Vida!”

A folha da vida, revelando-se, responde:

“Encontre-me, ofereço-me àquele que

pode levar a vida aos olhos do Rei. Só um

descendente indicado pelo ixé, demons-

trando bravura, persistência, sabedoria

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e imensurável amor pelos ancestrais

sabe utilizar e honrar o que lhe é dado.

Sou a cura, a descendência e a renova-

ção, sou o que não pode ser encontrado

senão por aquele que venceu todos os

sofrimentos e dissolveu os obstáculos,

grande aprendiz, grande iniciado!”

E assim, Ajaká retorna ao palácio de

Oduduwa para devolver a visão e a exis-

tência ao orixá patrono da Terra.

Ajaká retorna um homem depois de todo

o processo de iniciação vivido na flores-

ta. É um Ser em permanente mutação.

“(...) Forte como um búfalo, veloz como

a pantera, leve como um pássaro, com

os sentidos de camaleão, o instinto do

peixe, mais sábio que o macaco e senhor

do segredo que se instala em cada plan-

ta, em cada semente.”

Por esse amor e fidelidade ao ancestral,

Ajaká recebe a espada Agadá, que lhe dá

o poder de desbravamento, e recebe o

título de Awasoju, o que vai à frente de

tudo e de todos.

o conto de ajaká, que adaptamos para os

propósitos desta série, nos leva a destacar

valores singulares da civilização africana.

Princípios como a fidelidade, o amor, o res-

peito aos mais velhos, aos ancestrais, à hie-

rarquia e os valores inaugurais da existência

estão presentes no conto.

todo o conhecimento – a aquisição de sa-

beres e/ou aprendizagem – é interdinâmico,

interpessoal; é necessária a presença do ou-

tro para que se estabeleça a linguagem, a

comunicação com sua riqueza de códigos e

formas de expressão. É um conhecimento

vivo e direto.

ajaká é a extensão da floresta, da natureza e

de seus mistérios. todas as outras formas de

existência presentes no aiyê, mundo visível.

mas ajaká também interage com o mundo

invisível, o orun, o que permite a completu-

de da sua iniciação. ajaká sabe e compreen-

de que a natureza não pode ser reduzida a

objeto, à manipulação e à exploração inces-

sante do homem. ele aprende na e com a na-

tureza. a natureza não é matéria-prima para

manufatura, submetida ao lema de “ordem

e progresso” do mercado capitalista.

a riqueza do conhecimento adquirido por

ajaká, na trajetória de sua iniciação, trans-

cende o comportamento ascético e inerte do

corpo, onde apenas a relação olho-cérebro é

permitida, como enfatizam os currículos es-

colares. apela-se para todos os sentidos do

corpo. o corpo é movimento, pulsão, vida!

a aprendizagem é permitida por essa intera-

ção profunda e singular entre a humanidade

e a natureza.

ajaká não se caracteriza como um desbrava-

dor ganancioso da “conquista” dos segredos

e mistérios da natureza, submetendo-a aos

seus caprichos.

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seu objetivo não é ascensão individual.

ajaká busca, de forma exuberante, a con-

tinuidade da vida, da existência do seu con-

tinuum civilizatório e comunalidade, da

preservação e expansão dos princípios ori-

ginais da existência, para que esse mundo

não se acabe.

como awasoju, aquele que vai na frente de

tudo e de todos, ajaká abre caminhos, per-

mitindo aos seus descendentes o legado dos

seus ancestrais, da dinamização dos princí-

pios cósmicos da existência à pulsão de so-

ciabilidade e comunalidade.

a folha da vida, como motivação iniciáti-

ca de ajaká, representa metaforicamente a

África viva contemporânea em cada um de

nós. retomemos uma passagem do mito,

em que o babalawô, diante da situação, diz

e indaga:

A Folha da Vida é a única solução. Quem

pode encontrar? Quem pode reconhecer

uma coisa em outra? Quem sabe adi-

vinhar o que não se vê e não se toca?

Quem pode sentir o impossível?

ajaká se atualiza e vive intensamente no co-

ração daqueles que acreditam que a educa-

ção merecida pelas nossas crianças e pelos

jovens e adultos deve ter a pulsão de um

repertório iniciático de aprendizagem e ela-

boração de conhecimento, cuja dinâmica

é envolta pela busca da folha da vida, que

metaforicamente usamos aqui para repre-

sentar a África, sua transcendência e a infi-

nitude de (re)criações contemporâneas nas

américas, principalmente no brasil, a nossa

floresta simbólica.

nas comunalidades tradicionais da bahia,

nossas crianças aprendem e elaboram co-

nhecimentos e expressam esses universos,

característicos do pensamento africano e

suas atualizações nas américas, através da

vivência e convivência com orikis, contos,

instrumentos percussivos, cujos toques

falam/comunicam/relatam histórias que

anunciam os primórdios da humanidade,

indicando princípios ético-estéticos para

que o corpo comunitário se expanda e dê

continuidade aos elos de ancestralidade

que projetam e anunciam a áFRiCA vivA,

tRAnSCEnDEntE.

relativizar é o que propomos! não podemos

colocar um “manto de ferro” nas crianças

que vivem imersas em territorialidades que

têm outros valores radicalmente distintos

da territorialidade imposta pelo mundo im-

perialista representado pela História e pela

geografia civilizatórias européias.

o que propomos, como educadores(as), é a

legitimação das várias tradições africanas

que constituem a formação social brasilei-

ra, nos currículos da educação Infantil, en-

sino Fundamental e ensino médio, evitando

o recalque perverso que tende a impor às

nossas crianças e aos nossos jovens apenas

a versão neocolonial sobre África.

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REFERênCiAS

sobre a presença da civilização africana nas

américas e sua contribuição para elaborar-

mos perspectivas educacionais promissoras,

recomendamos:

luZ, marco aurélio. Agadá, dinâmica da civi-

lização africano-brasileira. salvador: eDuFba,

2001.

______. Cultura Negra e Ideologia do Recalque.

rio de Janeiro: Ianamá, 1983.

luZ, narcimária. ABEBE: a criação de novos

valores na educação. salvador: edições sec-

neb, 2000.

______. (org.) Pluralidade cultural e educação.

salvador: secretaria da educação do estado

da bahia: edições secneb, 1996.

santos, Deoscóredes maximiliano. Contos

crioulos da Bahia e contos negros da Bahia.

salvador: corrupio, 2003.

soDrÉ, muniz. As Estratégias Sensíveis: afeto,

mídia e política. Petrópolis: vozes, 2006.

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v. DIvERSIDADE éTNICO-RACIAL NO CURRÍCULO ESCOLAR DO ENSINO FUNDAmENTAL1

Véra Neusa Lopes2

na vida fora da escola, ninguém tem dúvida

de que, no brasil, convivem pessoas de di-

versas origens étnicas. basta que tenhamos

um olhar atento para os que estão à nossa

volta, para os que aparecem nos jornais, re-

vistas, programas e noticiários de televisão.

sabemos que as diferenças existem, vemos

que somos diversos, mas não estamos, na

maioria das vezes, educados para perceber

o quanto estas diferenças influenciam e de-

terminam os modos de vida das pessoas e

fazem com que as mesmas venham a ocupar

posições distintas na esfera socioeconômica

e a desempenhar papéis também distintos

que, secularmente, são indicativos de quem

é quem na sociedade brasileira. estudos do

Ibge e do censo escolar apontam para esta

diversidade, indicando que quase metade da

população em geral e da população escolar,

respectivamente, é composta por negros

(pretos e pardos).

o relatório de Desenvolvimento Humano de

2005, por sua vez, aponta que os negros estão

pouco representados entre juízes, desembar-

gadores, procuradores, defensores públicos,

na máquina administrativa do estado, nos ni-

chos de mercado mais valorizados, enfim em

todas as posições de poder. Isto nos mostra

que a sociedade trata diferentemente aqueles

que não pertencem ao grupo hegemônico e

não se enquadram nas normas estabelecidas

por esse mesmo grupo. os que se encontram

na base da pirâmide social (e aí estão indíge-

nas e negros em sua maioria) são geralmente

discriminados, enfrentando dificuldades na

afirmação de sua identidade (pessoal, cultu-

ral e nacional), não conseguindo exercer em

sua plenitude a condição de cidadão brasi-

leiro. a invisibilidade com que a diversidade

étnico-racial é considerada torna-se danosa à

democracia brasileira, pois impede a promo-

ção da igualdade racial.

1 currículo, relações raciais e cultura afro-brasileira – 2006 / Pgm 3.

2 especialista em Planejamento educacional, licenciada e bacharel em ciências sociais. Integrante do coletivo estadual de educadores negros aPns/rs do regional sul 3 da cnbb. Integrante do gt Programa de educação anti-racista no cotidiano escolar da ProreXt/ uFrgs. membro da caDara/ mec – comissão técnica nacional de Diversidade para assuntos relacionados à educação dos afro-brasileiros.

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esta diversidade de que estamos falando

está presente, também, na escola, muito

embora nem sempre isto seja objeto de pre-

ocupação por parte das autoridades educa-

cionais, gestores escolares e professores. É

urgente pensar e promover mudanças em

direção a uma escola cidadã, comprometi-

da com os direitos humanos e a construção

de identidades que respeitem a contribuição

de cada grupo étnico para a formação da

sociedade brasileira. a lei n. 10.639 de 2003,

que alterou a lei de Diretrizes e bases da

educação nacional ao incluir os artigos 26-a

e 79-b, veio nesta direção ao contemplar, em

caráter obrigatório, a inclusão no currículo

escolar da história da África e dos africanos,

da luta dos grupos negros no brasil, da cul-

tura negra brasileira e do negro na forma-

ção da sociedade nacional, em especial, mas

não exclusivamente, nas áreas de educação

artística, literatura brasileira e História do

brasil. o art. 79-b introduz, no calendário

escolar, o dia 20 de novembro como Dia na-

cional da consciência negra.

a resolução cne/ cP 1/ 2004, que institui as

Diretrizes curriculares para a educação das

relações Étnico-raciais e para o ensino de

História e cultura afro-brasileira e africana,

enfoca dois campos de objetivos, em tudo

relacionados à questão da diversidade: a)

o da educação das relações Étnico-raciais

– divulgar e produzir conhecimentos, bem

como atitudes, posturas e valores que edu-

quem cidadãos quanto à pluralidade étnico-

-racial, tornando-os capazes de interagir e de

negociar objetivos comuns que garantam, a

todos, respeito aos direitos legais e valoriza-

ção de identidade, na busca da consolidação

da democracia brasileira; b) o do ensino de

História e cultura afro-brasileira e africana

– reconhecer e valorizar a identidade, a histó-

ria e a cultura dos afro-brasileiros, bem como

garantir o reconhecimento e a igualdade de

valorização das raízes africanas na nação bra-

sileira, ao lado das indígenas, européias e asi-

áticas. configura-se, assim, uma política de

estado, cuja duração transcende à política

de governo. estes dois artigos vieram para

ficar e serem cumpridos.

ao longo dos anos, os currículos foram sen-

do construídos, tendo por base um modelo

eurocêntrico, o que significa ter tomado o

homem branco como referência para a cons-

trução das propostas de ensino e aprendiza-

gem. Quem não atende aos requisitos desse

modelo constitui-se num problema para o

sistema escolar.

tomar consciência de que o brasil é um país

multirracial e pluriétnico e, portanto, re-

conhecer e aceitar que, nesta diversidade,

negros e indígenas também desempenham

papéis relevantes e substantivos, são apren-

dizagens que precisam ser realizadas e que

convergem para a educação das relações

étnico-raciais porque, conforme expressa o

Parecer cne/cP 3/2004, esta educação pode

oferecer conhecimentos e segurança para ne-

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gros orgulharem-se de sua origem africana;

para os brancos, permitir que identifiquem as

influências, as contribuições, a participação e

a importância da história e da cultura dos ne-

gros no seu jeito de ser, viver, de se relaciona-

rem com as outras pessoas.

o processo educativo, que viabiliza essas

aprendizagens essenciais para a construção

da identidade e formação do cidadão, encon-

tra embasamento nos princípios da consci-

ência política e histórica da diversidade, do

fortalecimento de identidades e de direitos,

das ações educativas de combate ao racismo

e às discriminações, também apontados no

mesmo Parecer.

a escola de ensino Fundamental, ao tratar

da questão da diversidade étnico-racial e

propor e executar medidas de implementa-

ção dos artigos 26-a e 79-b, cumpre a parte

que lhe toca nos compromissos de estado

assumidos pelo brasil, enquanto signatário

de tratados internacionais de combate às di-

ferentes manifestações de racismo, discrimi-

nação e preconceito raciais, comprometen-

do-se a construir uma democracia em que as

pessoas possam usufruir, em sua plenitude,

a condição de cidadãos, independentemente

de raça/ etnia, cor, posição e papel social, re-

ligião, gênero. a instituição escolar tem, as-

sim, de criar mecanismos e instrumentos de

uso permanente, via projeto político-peda-

gógico e currículo, para intervir na realidade

que exclui o negro (pretos e pardos), bem

como os indígenas, entre outros, do acesso

aos direitos humanos fundamentais. assim,

tem de colocar, necessariamente, a diversi-

dade étnico-racial como conteúdo escolar e

dar a esse conteúdo o tratamento adequado.

Para tanto, deve constituir-se em ambiente

educativo, acessível à comunidade à qual

serve, em que se respeita o outro, em que

se dá visibilidade a todos, combatem-se as

discriminações, busca-se eliminar os pre-

conceitos e são desfeitos os estereótipos,

estimulando a auto-imagem e a auto-estima

positivas e promovendo a igualdade étnico-

-racial, pelo reconhecimento da diversidade

e pela desconstrução das diferentes formas

de exclusão.

AlguMAS POSSiBiliDADES

a implementação da lei está longe de ser

concluída. em alguns lugares sequer come-

çou. É preciso avançar na tarefa de sensibi-

lização das pessoas para que se interessem

pelo assunto para a fase de comprometi-

mento dos profissionais da educação com

o cumprimento dos artigos 26- a e 79-b da

lDb, o que envolve profundas mudanças nas

estruturas organizacionais, administrativas

e pedagógicas das escolas, que vão dos pro-

jetos político-pedagógicos, currículos e pla-

nos didático-pedagógicos à gestão de pes-

soas, com base em princípios e valores que

regulam a educação das relações humanas e

os estudos de história e cultura afro-brasilei-

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ras e africanas, permeando todas as áreas do

conhecimento escolar.

todos da comunidade escolar estão convida-

dos a fazer parte do mutirão (pixurum) de

transformação dessa escola de que estamos

falando, ao abrir espaço para que, no estudo

da diversidade étnico-racial, seja oportuni-

zado o trato das questões afro-brasileiras e

africanas, de modo explícito e em igualdade

de condições com as demais etnias, de sorte

que todos venham a respeitar o afro-brasi-

leiro em suas especificidades e a valorizar

a contribuição do negro na formação da

sociedade brasileira. o que se tem de fazer

deverá ser fruto de uma construção coletiva

envolvendo toda a comunidade escolar.

estão todos chamados a colocar a sua inte-

ligência, saberes e habilidades a serviço da

construção de uma ampla proposta, fruto

de muitas cabeças e muitas mãos. cada es-

cola tem de definir esse processo. como su-

gestão, vale a pena lembrar o que se segue:

PARA A ESCOlA DE EnSinO

FunDAMEntAl

• constituir-se em espaço privilegiado de

inclusão, colocando em prática uma pe-

dagogia multirracial e interétnica, de res-

peito e valorização da diversidade étnico-

-racial da sociedade brasileira, voltada

para a formação do cidadão, direcionada

ao combate de todas as formas de discri-

minação, de eliminação dos preconceitos

e dos estereótipos, em que são estimula-

das a auto-imagem e a auto-estima posi-

tivas, em que são criadas condições de vi-

sibilidade do afro-brasileiro e do indígena;

• chamar a comunidade escolar e do en-

torno – por meio de suas legítimas re-

presentações, incluindo organizações

afro-brasileiras – para a reconstrução do

projeto político-pedagógico e da proposta

curricular, de modo que fique assegurado

o reconhecimento e o resgate da história

e cultura afro-brasileiras e africanas, em

todas as séries oferecidas, como condição

indispensável para a construção da iden-

tidade brasileira;

• criar condições para exercitar uma rela-

ção de ajuda e partilha, de modo que to-

dos possam se apropriar, em igualdade de

condições, da história, dos saberes e faze-

res dos diferentes grupos étnicos forma-

dores da sociedade brasileira;

• Possibilitar uma nova concepção de mun-

do, alicerçada em valores que favoreçam

uma relação fraterna e igualitária entre as

pessoas, observadas e respeitadas as espe-

cificidades dos grupos étnico-raciais e das

culturas a que pertencem;

• organizar, coletivamente, uma rede temá-

tica sobre história e cultura afro-brasilei-

ras e africanas, que permita o desenvol-

vimento de conteúdos (atitudes, valores,

conceitos e procedimentos), ao longo de

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toda a escolaridade oferecida pelo ensi-

no Fundamental. Por exemplo: negros

na África, africanos no mundo, africanos

no brasil e seus descendentes brasileiros;

trocas entre comunidades negras ao redor

do mundo: afro-brasileiros na África e no

mundo; presença africana no brasil atual;

presença negra na comunidade local, e na

comunidade escolar.

• construir coletivamente recursos que,

abordando a diversidade, deem visibilida-

de à história e à cultura afro-brasileiras e

africanas, como: calendário étnico, con-

templando vultos africanos e afro-descen-

dentes, com a inclusão de 20 de novem-

bro, como Dia nacional da consciência

negra; mostra fotográfica que evidencie a

contribuição dos negros na comunidade;

sarau cultural, apresentando manifesta-

ções da cultura afro-brasileira; exposição

de documentos e outras formas de regis-

tro sobre a cultura afro-brasileira.

PARA PROFESSORES E AlunOS

• colocar em prática comportamentos e

posturas que possibilitem viver numa

sociedade democrática, aprendendo a se

ver, a ver o seu entorno, de modo objetivo

e crítico, a comparar o hoje com outros

tempos e lugares, a observar permanên-

cias e transformações e a identificar o

quanto isso afeta a vida do homem.

• aprender a valorizar pessoas, povos e na-

ções, num combate permanente às ideias

preconceituosas, às ações discriminató-

rias, às manifestações racistas.

• Desenvolver ações que possibilitem o

aprender uns com os outros e uns dos

outros, pondo em prática verdadeiras co-

munidades de aprendizagem, construindo

progressivamente a noção de identidade

nacional, pessoal e cultural, bem como o

sentimento de pertencimento ao país.

Por oportuno, destacamos a seguir alguns

procedimentos pedagógicos possíveis de

serem adotados em sala de aula de classes

de séries ou ciclos iniciais do ensino Funda-

mental. tais procedimentos levam em conta

que é a pessoa na sua integralidade (corpo,

mente e emoção) que aprende, destacam a

importância do trabalho coletivo e em gru-

po e propõem a interdisciplinaridade e a

transdisciplinaridade como formas adequa-

das de tratamento das questões de diversi-

dade e da história e culturas afro-brasileiras

e africanas.

• criar situações que despertem o interes-

se das crianças para a questão das seme-

lhanças e diferenças entre os integrantes

da classe, incluindo o(a) professor(a). Por

exemplo: reunir as crianças em roda para

conversarem sobre cada um, explorando

perguntas tais como Quem sou? e Como

sou?. Pedir que uma criança comece ou,

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se for muito difícil, iniciar pela professo-

ra, que se apresentará, dando seu nome,

idade, endereço, filiação, nacionalidade,

origem étnica, preferências. observar a

reação das crianças, especialmente quan-

do disser qual é a sua origem étnico-ra-

cial. exercitar com as crianças, nessa oca-

sião, que pode estender-se por vários dias,

a oralidade, a observação, a escuta. Dar

tempo para que todos se apresentem.

• Propor a realização do auto-retrato, a par-

tir da observação da própria imagem re-

fletida no espelho. analisar com as crian-

ças a fidedignidade do auto-retrato.

• solicitar que os alunos tragam para classe

uma fotografia recente. observar com as

crianças as fotos uma a uma. tirar, depois,

uma foto coletiva e observar a diversida-

de existente em classe, incluindo a diver-

sidade étnico-racial. examinar fotos mais

antigas de outros grupos conhecidos. Dis-

cutir com os alunos a contribuição das

pessoas para o bem-estar da comunidade,

incluindo a escolar. construir um registro

coletivo.

Pedir ajuda aos pais ou responsáveis, para

que as crianças possam fazer um retrato fa-

lado de si mesmas. usar, em sala de aula, o

espelho para as crianças se descobrirem e

fazerem o seu retrato usando a linguagem

gráfica.

• Propor aos alunos que, aos pares, se ob-

servem e expressem oralmente como

vêem o parceiro. em roda, pedir que des-

crevam os colegas e a professora. comen-

tar as falas.

• conversar com as crianças sobre o fato

de, embora sendo de mesma nacionalida-

de, as pessoas podem ser de origem étni-

co-racial distinta. trabalhar as noções de

diversidade étnico-racial, nacionalidade,

naturalidade, ascendência, descendência.

• ajudar os alunos a identificarem seme-

lhanças e diferenças, quanto às origens,

às nacionalidades, ao modo de vestir, ao

modo de falar, ao modo de ser, aos hábi-

tos alimentares, aos costumes e tradições.

valorizar a presença dos mais velhos.

• trabalhar com as crianças outras lingua-

gens além da verbal, por meio das quais

podem expressar seus conhecimentos,

sentimentos e expectativas, a aceitação

ou rejeição do outro. trabalhar com brin-

cadeiras e jogos, cantigas e contos que va-

lorizem a diversidade cultural.

• orientar a produção coletiva para socia-

lização dos saberes. organizar o espaço

para valorizar a diversidade étnico-racial

e cultural existente na sala de aula.

• o desafio está posto! você é convidado(a)

a participar. o brasil precisa de você! en-

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tre na roda, e juntos(as) busquemos en-

contrar as saídas para mudar esse país, a

partir da educação escolar, especialmente

no ensino Fundamental.

REFERênCiAS

brasIl. ministério da educação e do Despor-

to. secretaria de educação Fundamental. Pa-

râmetros Curriculares Nacionais. Pluralidade

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vI. O LEgADO AFRICANO E A FORmAÇÃO DOCENTE1

Marise de Santana2

intRODuÇÃO

em todo o brasil, a alteração da lDb n.

9.394/96, primeiro com os Parâmetros cur-

riculares nacionais – Pcn e, em seguida,

oficialmente pela lei n. 10.639/2003, mexeu

com valores enraizados na educação. valo-

res de uma ciência que negou e silenciou

nos currículos escolares narrativas de gru-

pos considerados minoritários como, por

exemplo, o africano e seus descendentes.

essa educação de exclusão levou os afro-bra-

sileiros a desconhecerem e negarem suas

pertenças africanas.

Hoje, muitos de nós, brasileiros, em diver-

sas áreas do conhecimento, sentimos como

necessário abraçar as políticas de ações

afirmativas para descendentes de africanos

implementadas pelo governo Federal, a fim

de que possamos desenvolver atividades que

fortaleçam a identidade negra, através de

uma educação da pertença afro-brasileira.

tendo este objetivo em mente, atualmen-

te coordeno um programa de trabalho que

abarca: cursos de extensão em “educação e

culturas afro-brasileiras” e outro em pós-

-graduação lato sensu em “antropologia com

Ênfase em culturas afro-brasileiras”. Faz

parte deste programa o grupo de pesquisa

certificado pelo cnPq que oferece, para a

comunidade da região do sudoeste da bahia,

estudos abertos sobre o tema, bem como

eventos periódicos. também temos um pro-

jeto já aprovado pelo mec/unIaFro para

implantar um acervo com material biblio-

gráfico, documental, cartográfico e com pe-

ças das culturas africanas e afro-brasileiras.

vale salientar que estudos vários sobre as

culturas brasileiras apontam a construção

de um imaginário do povo brasileiro, edu-

cado para valorizar elementos culturais e

raciais que se enquadrem nas categorias

branca e cristã. tal formação torna-se desa-

fio para a educação brasileira, isso porque

1 currículo, relações raciais e cultura afro-brasleiro – 2006 / Pgm 4.

2 Professora adjunta do Departamento de ciências Humanas e letras da universidade estadual do sudoeste da bahia. coordenadora do oDeere - Órgão de educação e relações Étnicas com Ênfase em culturas afro-brasileiras da uesb / Jequié.

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os/as docentes foram formados/as para en-

tender o legado africano como saberes do

mal, saberes de culturas atrasadas e pré-ló-

gicas, repercutindo nos currículos escolares

com uma carga preconceituosa que gera as

discriminações. assim, neste texto, temos

como objetivo apresentar algumas ativida-

des didáticas, com conteúdos antropológi-

cos das culturas africanas e afro-brasileiras,

fruto de estudos realizados em pesquisas

para mestrado, doutorado e também de ex-

periências como coordenadora e professora

no curso de extensão em “educação e cultu-

ras afro-brasileiras” da universidade estadu-

al do sudoeste da bahia, para professores/as

que atuam com a disciplina “História e cul-

tura africana e afro-brasileira”, já implanta-

da nos currículos de algumas poucas escolas

públicas nesta região.

o curso de extensão objetiva que professores

desenvolvam atividades metodológicas com

saberes das culturas afro-brasileiras. nesta

perspectiva, estuda-se sobre a antropologia

dos povos africanos e afro-brasileiros, levan-

do-se em consideração seus mitos e saberes

populares, bem como seus símbolos, a partir

de suas formulações simbólicas. assim sen-

do, nosso objetivo é relatar as etapas do cur-

so e as respectivas atividades desenvolvidas,

além de indicar caminhos que viabilizem um

acervo didático teórico / prático de relevân-

cia para o trabalho docente no espaço da

sala de aula.

A DESAFRiCAniZAÇÃO COMO

COntEúDO EDuCAtivO

É sabido que os portugueses incluíram, em

sua agenda de explorar comercialmente as

terras das américas, intensificar o movimen-

to de cristianização, sobretudo depois da re-

forma Protestante. Primeiro pela catequese

e, depois, pela alfabetização, tanto um pro-

cesso como o outro buscava “recuperar” cul-

turalmente os povos considerados pagãos.

mazzoleni (1992) nos lembra que, mesmo

considerando o trabalho forçado e a vio-

lência padecida pelos índios, não se pode

esquecer que o comércio de escravos teve

como objeto os negros, e que aos mesmos

era negada sua condição de humanos. Desde

o início, o europeu rejeitou a cultura do ín-

dio, mas não rejeitou sua natureza humana.

“Do africano, ao contrário, o europeu rejeita

a inteligência e não só a cultura como a na-

tureza humana (...)”3

no século XvIII e XIX, afirmava-se a impos-

sibilidade de recuperar culturalmente os de

pele preta. mazzoleni nos diz que carlos li-

neu, ao catalogar as espécies vivas, distin-

gue o Homo sapiens do Homo afer (ou seja:

africano). voltaire, defensor da poligênese

humana, considera possível uma hierarquia

estável entre as raças, o que expressava nes-

te raciocínio:

3 mazzoleni (1992). p. 61-62.

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“A distinção entre selvagens recupe-

ráveis e seres impermeáveis à cultura

acabava criando um grave embaraço ao

espírito ecumênico do Ocidente cristão

(herdeiro entre outras coisas do antro-

pologismo helênico e do universalismo

‘civil’ romano): se os negros não eram

passíveis de cultura, tampouco o eram

de evangelização: mas isso teria dimi-

nuído irrecuperavelmente a missão da

Igreja” (p.65-66).

Pensando na relação entre Homo sapiens e

Homo afer, que se estabeleceu durante toda

a escravidão, mazzoleni diz que a possibi-

lidade de recuperar culturalmente o Homo

afer é cogitada porque a europa passa a vê-

-lo como Homo religiosus. Para o ocidente

cristão, o outro, que é o africano, seria co-

optado para ser o eu cristão. segundo ele:

“O africano, portanto, de ser (mais ou

menos humano) que vivia nas trevas (de

satanás) passou a viver na luz (do Se-

nhor) e tomou progressivamente toda

uma série de conotações, digamos inter-

mediárias, que não serviam a uma con-

traposição com o homem racional (bran-

co), que escolheu a luz da razão e as

explicações da ciência humana” (p.72).

assim, desde a colonização européia, o que

se buscava para o africano era que o mesmo

tivesse uma identidade cristã, embora lhe

fosse negada a humanidade. sendo assim,

vai dizer mazzoleni: “Pode-se falar, portan-

to, de uma monocultura cada vez mais ex-

tensa, na medida em que as classes dirigen-

tes dos países “ocidentais” agem de acordo

com uma orientação comum, utilizando

meios de persuasão cada vez mais eficazes

(...)” (p. 74).

essa persuasão passa pelo que Paulo Freire

chama de Pedagogia do oprimido, através da

qual se estabelece uma relação entre opres-

sor/oprimido. sobre essa relação binomial,

mazzoleni também vai dizer: “o componen-

te cristão da civilização ocidental, contudo,

está tentando uma recuperação de sua ‘mis-

são’, dirigindo-se aos oprimidos em nome

da mensagem cristã e atuando, portanto,

numa mediação das duas oposições”4.

na década de 90, a nova lei de Diretrizes e

bases da educação n. 9.394/96 traz para si a

reflexão oficializada acerca dos preconceitos

e das discriminações com a diversidade cul-

tural presente no espaço da escola, quando

propõe que o trabalho docente tome como

base os conteúdos dos Parâmetros curricu-

lares nacionais.

os Parâmetros curriculares sugerem que os

docentes atuem com uma proposta de res-

peito às diversidades existentes no espaço

4 mazzoleni (1992). p. 76.

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da sala de aula, diversidades estas compos-

tas de docentes e alunos que diferem em

suas formas de ver, sentir, pensar, comer e

cultuar seus deuses.

em trabalho para dissertação de mestra-

do, pesquisando docentes de 1ª a 4ª séries,

constatei que a formação e o trabalho de-

senvolvido por esses profissionais esta-

va entre o querer e o não saber lidar com

uma educação multicultural, por conta de

sua formação monocultural. ao tomar seus

depoimentos sobre a diversidade, eles nos

mostraram que a tradição em que foram

formados argumentava sobre a diversidade

de modo muito inadequado.

conforme dados de depoimentos, verifica-

mos que a orientação para o trabalho pe-

dagógico baseava-se numa formação mani-

queísta. Detectamos que os/as professores/

as abordavam os elementos culturais de

outros grupos étnicos, especialmente a re-

ligião, enquanto dimensão cultural, com

argumentações preconcebidas pelas catego-

rias branca e cristã, tal qual transcrevemos

nos dois depoimentos abaixo, retirados da

dissertação mencionada:

“Acho que Orixás são Espíritos e Buda

é uma estatuazinha gorda que se bota

de costas num lugar que chama dinhei-

ro (...). Deus, ele é único, é o único Deus

que existe, agora Buda e os outros eu

não considero como Deus, de forma ne-

nhuma e não acho que devem ser cultu-

ados como Deus, como deuses, ou como

falsos deuses.”

no depoimento a seguir, outra professora

afirma:

“Candomblé é alguma coisa que nós,

negros, trazemos no sangue, na alma,

sei lá... mas acho que isso pende mui-

to para o lado ruim (...) já sonhei com

o preto velho e contei para minha mãe,

no dia seguinte ela me levou a uma casa

de candomblé, porém ela me pediu mil

segredos, ela é católica; se a igreja sou-

besse que ela foi nesse lugar (...)”.

assim, apontamos como conclusão da dis-

sertação de mestrado defendida na Puc/sP,

que a formação monocultural dos docentes

dificultava um trabalho multicultural, devi-

do ao fato de suas mentalidades estarem es-

truturadas pela lógica do “bom senso”5.

ter “bom senso” é saber coisas que pessoas

com “bom senso” sabem, é não falar coisas

que pessoas com “bom senso” não falam;

portanto, se a representação mental religio-

sa de uma comunidade se estrutura no cris-

5 este termo é utilizado por geertz (1997) para falar sobre o bom senso que autoriza os membros de uma comunidade a se declararem ou não de uma religião que não seja a tradicional. o bom senso também autoriza se os membros da comunidade devem ou não dissimular ou discriminar os pertencimentos do “outro”.

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tianismo, pessoas de “bom senso” devem

falar em cultuar o deus cristão e não deuses

outros.

em função destes resultados na pesquisa

de mestrado, busquei investigar, no dou-

torado, o legado africano e a Formação e

trabalho Docente. o objetivo deste estudo

foi entender como a escola, enquanto es-

paço institucional nascido do primeiro pa-

radigma da educação jesuítica, lidava com

as culturas africanas, em especial com a

religião, enquanto dimensão da cultura

afro-brasileira. constatei que esta institui-

ção é partícipe na perpetuação do conflito

entre religião de matriz africana e outras

religiões. esse conflito fica estabelecido a

partir das concepções e sentidos construí-

dos pelos(as) professores(as) entre si e com

os(as) alunos(as), sobre os símbolos do le-

gado africano por eles/elas divulgados, equi-

vocadamente, em seu trabalho, como sabe-

res do mal, saberes de culturas atrasadas e

inferiores, “folclore”. assim, aponto a teia

de relações em que o legado cultural africa-

no se insere junto aos valores presentes nas

diversas denominações religiosas e como

isto se configura no discurso da escola.

CuRSO PARA A EDuCAÇÃO DA

PERtEnÇA AFRO-BRASilEiRA

as constatações acima descritas forneceram

subsídios para elaboração de uma proposta

de curso para professores(as) da região do

sudoeste da bahia, visando que os mesmos

se embasem de conhecimentos sobre as te-

máticas das culturas africanas e afro-brasi-

leiras, conforme descreverei a seguir.

o curso de extensão, de 180 horas, inicia-se

com um estudo das “teorias antropológi-

cas e Questões educacionais”. este estudo é

proposto em função de compreender que a

antropologia tem uma dívida histórica com

o africano, uma vez que ela nasce no sécu-

lo XIX reafirmando o modelo maniqueísta

e monocultural do ocidente, que distingue

europeus e africanos pelas categorias: supe-

rior e inferior; lógicos e pré-lógicos; civiliza-

dos e atrasados. Portanto, as grandes ideias

pedagógicas do século XX nasceram influen-

ciadas por essas categorias, o que evidente-

mente interferiu no espaço da escola.

o que se tem, no momento histórico em

que os jesuítas foram os primeiros profes-

sores e após sua expulsão, é uma orientação

que segue o paradigma da educação evan-

gelizadora. esse paradigma aponta para va-

lores elaborados pela racionalidade de parâ-

metros definidos pelo colonizador europeu,

buscando civilizar os povos através da “re-

cuperação cultural”. Portanto, foi entendido

que o processo de “recuperação cultural” do

africano deveria ser feito através da evange-

lização, fosse pela Igreja ou pelo sistema de

ensino.

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113

o movimento de higiene mental organizado

na américa do norte pelo “comitê nacional

de Higiene mental”, em 1909, pretendeu dar

continuidade a esse processo. em 1923, gus-

tavo riedel funda a “liga brasileira de Higie-

ne mental”. assim, no brasil, na década de

30, ao tempo em que se reivindica “educa-

ção Para todos”, um avanço para a época,

uma das grandes preocupações do Prof.o

anísio teixeira era de instalar, nas escolas

do Distrito Federal, um serviço de Higiene

mental, para erradicar a identidade cultural

“daqueles que frequentavam as macumbas

e os centros de feitiçaria”, gente considera-

da pelos higienistas como “grupos sociais

atrasados em cultura”.

acreditando que a escola deveria fornecer

àqueles que participavam da macumba uma

“mentalidade civilizada”, uma “mentalidade

lógica”6, o higienista arthur ramos afirma:

“Assim, para a obra da educação e da

cultura, é preciso conhecer essas moda-

lidades do pensamento ‘primitivo’, para

corrigi-lo, elevando-o a etapas mais

adiantadas, o que só será conseguido

por uma revolução educacional que aja

em profundidade, uma revolução ‘verti-

cal’ e ‘intersticial’ que desça aos degraus

remotos do inconsciente coletivo e sol-

te as amarras pré-lógicas a que se acha

acorrentado.” (p. 23)

essas ações pedagógicas, que alicerçaram

as políticas educacionais no brasil, tiveram

como objetivo homogeneizar e aniquilar as

diferenças culturais. arthur ramos (1955) vai

dizer que o movimento de higiene mental

era necessário para trabalhar a mentalidade

“pré-lógica” de “povos primitivos e sobrevi-

ventes dos meios atrasados em cultura, que

vivem entre nós, os homens da civilização

ocidental”.

sobre as políticas higienistas, luz (2000) vai

dizer que, nesse mesmo pacote de desafri-

canizar, o Prof.o Isaias alves, fundador dos

centros de Pesquisa Psico-Pedagógicas do

tradicional colégio Ypiranga na bahia, apli-

ca o teste de inteligência e concebe como

estratégia política educacional a extinção

das línguas africanas no brasil.

arthur ramos, enquanto comportamenta-

lista, vai dizer que “o homem é produto de

sua civilização e da sua sociedade”, por isso,

interessa para a higiene mental estudar os

fatores sociais e culturais que condicionam

o mesmo. Para ele, o movimento de Higie-

6 no século XIX, l. lévy-bruhl deu o nome de lei de participação ao “princípio próprio da mentalidade primitiva que rege as ligações e as pré-ligações das representações coletivas” (ramos, 1988, p.207). ramos nos diz que, para lévy-bruhl, segundo a lei de participação na mentalidade primitiva, seres, objetos, fenômenos podem emitir forças, qualidades ações místicas, sem deixarem de ser quem e o que são. a essa mentalidade ele chamou de pré-lógica. ainda nos diz ramos que pré-lógica não pode ser entendida como anterior no tempo, “mas pelo fato de ela não se adstringir ao nosso pensamento, de se abster da contradição”.

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ne mental deve pedir auxílio à sociologia e à

antropologia cultural, pois “o indivíduo vive

em círculos de sociedade: de família, de reli-

gião, de partido político (...). a higiene men-

tal investiga todos esses fatores, penetrando

‘intersticialmente’ na sua urdidura íntima”.

Daí ele salientar que não todas, mas algumas

religiões, são nefastas, e assegura:

“Já temos mostrado, em mais de um tra-

balho, os perigos dessa mentalidade pré-

-lógica, no Brasil, denunciando certos fe-

nômenos de feitiçaria, baixo-espiritismo,

demonopatias e outros, e sua nefasta

influência na formação da personalida-

de”7.

ao falar das religiões de povos com “menta-

lidade pré-lógica” e classificar essas religiões

como nefastas, com fenômenos de “demono-

patias”, tal preconceito ensinou para os(as)

professores(as), ao longo da história da edu-

cação, que o modelo oficial de escola não

deve tomar os saberes do legado africano.

na segunda etapa do curso, é feito um es-

tudo sobre a “antropologia das Populações

afro-brasileiras”. estuda-se sobre o legado

africano como um conjunto de saberes de

uma matriz não ocidental cristã, que trans-

cende o espaço dos terreiros. esses saberes

estão na base das culturas entendidas por

mircea eliade (1992) como culturas tradi-

cionais, arcaicas ou “primitivas”, as quais

na própria forma de apreender a realidade

diferenciam-se das culturas modernas.

a terceira etapa8 é um estudo sobre a “His-

tória cultural da África Pré-colonial”, bus-

cando entender os impérios, reinos e civili-

zações africanas antes da colonização. este

estudo é de fundamental importância para

o entendimento da dança, festas, músicas;

assim como o próprio cotidiano, permea-

do de elementos sacralizados, os quais, no

brasil, foram denominados de religiões afro-

-brasileiras.

na quarta etapa9 nos ocupamos de um estu-

do sobre a Diversidade linguística dos grupos

Étnicos africanos que vieram para o brasil.

sobre a diversidade dos grupos étnicos, ver-

ger (2002), falando sobre a tomada da bahia

na primeira invasão holandesa, em 1624, nos

informa que havia naquele momento predo-

minância da importação de africanos bantos,

pois havia, no porto da bahia nessa época,

seis navios vindos de angola com um total de

1.440 escravos, contra um único navio com

28 escravos vindos da guiné.

7 ramos (1955), p.29.

8 esta etapa é ministrada pela professora mestranda silene arcanjo, Historiadora, consultora do oPoXorÔ / bahia.

9 etapa ministrada pelo Prof Dr manoel soares sarmento, linguista do Departamento de ciências Humanas e letras da universidade estadual do sudoeste da bahia.

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entre 1641 e 1648, angola permanece nas

mãos dos holandeses, que cortam o rea-

bastecimento de escravos de lá provenien-

tes. estes fatos nos permitem pensar que

os bantos foram os primeiros negros expor-

tados em grande quantidade para a bahia.

nos três primeiros quartos do século XvIII,

porém, o tráfico de escravos em direção à

bahia já vinha da costa da mina e, entre 1770

e 1850, incluindo o período do tráfico clan-

destino, vinha da baía de benin. “a chegada

dos daomeanos, chamados Jejes no brasil,

fez-se durante os dois últimos períodos. a

dos nagôs Iorubas corresponde ao último”.

assim sendo, verger vai nos dizer que, nos

arredores da bahia, como por exemplo, na

vila de são Francisco do conde, cidade do

recôncavo baiano, em 1830 é constatada

uma maciça presença de nagô Ioruba, em

função do que passam a predominar suas

crenças e costumes em detrimento das dos

africanos bantos.

estes dados nos oferecem subsídios para

pensar sobre a diversidade de línguas, cren-

ças, saberes, enfim, de elementos culturais

dos africanos.

na quinta etapa10, desenvolve-se um estudo

sobre as “linguagens visuais, simbolismos e

culturas afro-brasileiras”. eliade (1991) nos

diz que “(...) as pesquisas sistemáticas sobre

o mecanismo das mentalidades primitivas

revelam a importância do simbolismo para

o pensamento arcaico e, ao mesmo tempo,

seu papel fundamental na vida de qualquer

sociedade moderna”. segundo ele, o resta-

belecimento do símbolo enquanto forma de

conhecimento é uma reação “(...) contra o

racionalismo, o positivismo e o cientificis-

mo do século XIX e já basta para caracterizar

o segundo quarto do século XX” (p. 5-6)

sobre os problemas ligados ao estudo do

simbolismo e de suas interpretações, elia-

de (1991) ainda chama a atenção para o fato

de que a forma de conhecimento e atuali-

zação de um símbolo não é mecânica: “ela

está relacionada às tensões e às mudanças

da vida social; em último lugar, aos ritmos

cósmicos”. o julgamento e o sentido inter-

pretativo de um símbolo dependem do vivi-

do. assim, não há como um símbolo possa

esgotar, para os diferentes julgamentos, o

seu sentido interpretativo.

byington (1996), buscando elaborar uma “Pe-

dagogia simbólica”, chama a atenção para

que se pense na problemática da educação

brasileira baseada no modelo da cultura oci-

dental. também nesta etapa nos ocupamos

de um estudo de antropologia interpretati-

va, com geertz (1978).

10 etapa ministrada pelos seguintes professores: Dr edson Dias Ferreira, cientista social – antropologia das linguagens visuais. Departamento de letras e artes da universidade estadual de Feira de santana. Professor mestrando lucio andré andrade. coordenador da divisão de Diversidade cultural da Prefeitura municipal da cidade de candeias / bahia.

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Já a sexta etapa, ocupa-se da Didática para o

ensino de culturas afro-brasileiras. segundo

brandão (1995), por todo o período da colo-

nização européia na américa latina, o pa-

radigma eclesiástico se fez presente através

do monopólio da Igreja católica, portanto,

nesta etapa busca-se entender essa forma-

ção que tem orientado o processo ensino-

-aprendizagem ao longo da história da edu-

cação brasileira através de um saber - fazer

que discrimina outras culturas, especial-

mente as africanas.

na sétima etapa, o objetivo é coletar dados,

visitando espaços de culturas afro-brasilei-

ras, tais como: casas de matriz religiosa afri-

cana; museu afro-brasileiro, em salvador; e

casas de benin e angola, em salvador. visi-

tam-se as cidades de Jequié, cachoeira, são

Francisco do conde e outras, com o objetivo

de enxergar a presença do legado africano.

ainda nesta etapa, os/as participantes do

curso, em um texto, articulam os dados co-

letados durante as visitas e as histórias de

vida. com isso, é esperado que eles e elas

busquem lidar com seu próprio processo

histórico-cultural, dando visibilidade aos

preconceitos e discriminações enraizados

em sua formação, assim como, possivel-

mente, possam superar alguns.

nas etapas 1, 2 e 6 do curso, nas quais as

atividades didáticas ficam sob minha res-

ponsabilidade, busco operacionalizar técni-

cas que viabilizem os métodos expositivos,

reprodutivos e de soluções de problemas;

assim, desenvolvo as seguintes atividades:

• análises de filmes e documentários (Kiri-

ku, Amistad, Negro fugido, Orixás, coleção

do correio da bahia, entre outros), com o

objetivo de que as imagens sensibilizem

os indivíduos e permitam-lhes localizar

memórias negadas e silenciadas histori-

camente.

• análises de mitos para compreensão da

estrutura histórico-cultural dos africanos

na África Pré-colonial;

• oficinas com conteúdos dos mitos africa-

nos e afro-brasileiros, levando os partici-

pantes do curso à reflexão acerca de seus

conhecimentos, com narrativas monocul-

turais etnocêntricas;

• utilização de músicas com palavras de

línguas africanas, traduzindo as mesmas

com o auxílio de dicionários. vale salien-

tar que esta atividade é de muita impor-

tância, uma vez que ao tempo que educa

os ouvidos para ouvir palavras de línguas

africanas, também desmistifica a ideia

de que as diversas línguas da África são

dialetos (“dialeto” no sentido de “língua

corrompida”; e não no sentido linguístico

de “variação de uma língua”), conforme

narrativas discriminatórias sobre o conti-

nente africano.

• Interpretação antropológica de textos

musicais e literários com temáticas afri-

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canas e afro-brasileiras. estes textos sem-

pre trazem elementos culturais, possibi-

litando uma educação de símbolos e de

processos simbólicos.

COnSiDERAÇõES FinAiS

salientamos que tanto nos estudos de mes-

trado e doutorado, como nas várias etapas

do curso, percebemos que desenvolver ativi-

dades com os/as professores/as é uma tarefa

difícil, pois eles/elas são conhecedores/as de

conteúdos de normas, valores da escola, mas

também são conhecedores/as dos conteúdos

doutrinários de suas religiões. Pude perceber

a dimensão da distância que esses docentes

colocam entre sua identidade religiosa e o

papel de respeito à diversidade no âmbito do

seu trabalho docente.

não podemos esquecer que o respeito à di-

versidade passa pelas leituras de outras reali-

dades, com informações desprovidas da car-

ga de preconceitos e de discriminação sobre

o outro. consorte (2003), em um artigo numa

revista de ensino religioso, afirma que desde

que a antropologia surgiu, na metade do sé-

culo XIX, seu grande desafio foi o de compre-

ender o fenômeno da diversidade humana.

ela nos lembra que os mitos dos mais diferen-

tes grupos humanos são registros que reco-

nhecem a diversidade. entretanto, assegura

que a diversidade não é percebida como ri-

queza da humanidade “(...) ela é geralmente

percebida como grave ameaça externa (...).

o ‘outro’ é aquilo que nós não somos. ele co-

loca em xeque a nossa verdade, questiona os

nossos valores, relativiza a nossa identidade.

É preciso desqualificá-lo” (p. 9). consorte

ainda nos lembra que essa desqualificação

passa historicamente pelo etnocentrismo e

que “a partir dos nossos modos de ser, fazer

e sentir” pode emergir o preconceito. assim:

“O preconceito é a atitude que, tributá-

ria do etnocentrismo, se forma a partir

das representações que construímos em

relação aos outros, informadas pelas

nossas referências (...); a discriminação

é o comportamento efetivo traduzido

em ações que põem em prática o pre-

conceito e que nos levam a negar ao ou-

tro aquilo que queremos só para nós, a

excluí-lo das oportunidades que estão ao

nosso alcance, mas às quais ele não deve

ter acesso” (p.10).

a reflexão elaborada feita até o presente

momento nos leva a perceber que existe

a falta de articulação entre teoria e práti-

ca na formação docente, isto porque nós,

professores(as) de um brasil colonizado por

europeus, colocamos entre parênteses nos-

sa pertença africana e repetimos a nossas

crianças o que nos foi ensinado, que essa

pertença é demoníaca, atrasada e inferior.

Perdemos o orgulho de ser como nossos an-

cestrais, auto-sustentáveis, dependentes da

natureza, do cosmo.

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REFERênCiAS

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humana: Fonte de riqueza ou ameaça? DIÁ-

logo – Revista de Ensino Religioso. são Paulo,

agosto de 2003.

elIaDe, mircea. O Sagrado e o Profano. tradu-

ção de rogério Fernandes. são Paulo: mar-

tins Fontes, 1992.

luZ, narcimária correia do Patrocínio. Abe-

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salvador/bahia: secneb, 2000.

maZZolenI, gilberto. O planeta cultural:

para uma antropologia Histórica. tradução

de liliana laganà e Hylio laganà Fernandes;

são Paulo: editora da universidade de são

Paulo: Instituto Italiano di cultura di san Pa-

olo e Instituto cultural Ítalo-brasileiro. são

Paulo, 1992.

santana, marise de. tese de doutorado. O

Legado Africano na Diáspora e o Trabalho Do-

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______. Dissertação de Mestrado: Formação e

Trabalho Docente: novos e velhos Desafios.

são Paulo: Puc- sP, 1999.

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vII. AS RELAÇõES éTNICO-RACIAIS, A CULTURA

AFRO-BRASILEIRA E O PROjETO POLÍTICO-PEDAgógICO1

Lauro Cornélio da Rocha2

APRESEntAÇÃO

ao pensarmos a relação da população negra

com o estado brasileiro, percebemos que,

desde a época da escravidão, foi marcada por

pressão por parte da população negra e dese-

jos de regulação por parte do estado. Havia

– e há – sempre, uma lei, tendo como pers-

pectiva controlar, estabelecer diálogo com a

comunidade e/ou atender a reivindicações.

Isso aconteceu com a primeira lei antitrá-

fico (1831); com a lei euzébio de Queiroz

(1850); com a lei do ventre livre (1871); com

a lei do sexagenário (1886); com a lei Áurea

(1888); com a lei afonso arinos (1951); com

a lei caó (1985); com a constituição Fede-

ral (1988); com a lei de Diretrizes e bases da

educação nacional (1996) e tantas outras

leis ordinárias que incluem o tema.

aqui não se trata de negar a perspectiva le-

gal implementada pelo estado e por sucessi-

vos governos. Porém, necessariamente, para

ser aplicada, uma lei depende da efetivação

de políticas públicas e da transparência na

aplicação de recursos.

a educação tem se configurado, nos últimos

anos, como área importantíssima na dis-

cussão das relações étnico-raciais no brasil.

este texto se propõe a discutir – ainda que de

forma sintética – o papel da lei n. 10.639/03

e das Diretrizes curriculares nacionais para

a educação das relações Étnico-raciais, que

são fundamentais no processo de mudança

das relações no espaço educacional e, con-

sequentemente, pontuar o projeto político-

-pedagógico como expressão do ser e do fa-

zer coletivo das escolas, inerente, portanto,

ao processo do ensinar-aprendendo e apren-

der-ensinando.

PEnSAnDO A lEi n. 10.639/033

a lei n. 10.639/03 se constitui num impor-

tante mecanismo de promoção de igualda-

de étnico-racial no ambiente escolar. como

1 currículo, relações raciais e cultura afro-brasileira – 2006 / Pgm 5.

2 mestre em História econômica – usP. coordenador Pedagógico da rede municipal de são Paulo.

3 lei de 09/01/2003. Inclui no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e cultura afro-brasileira” e dá outras providências.

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considerações iniciais, é preciso pontuar que

ela altera a lei de Diretrizes e bases da edu-

cação nacional, ao mesmo tempo em que

busca superar alguns obstáculos: pretende

superar a visão negativa sobre os africanos e

seus descendentes, construída ao longo dos

tempos no brasil; coloca a questão referente

aos africanos e afro-brasileiros como ques-

tão nacional; pretende ressaltar positiva-

mente a participação da população negra na

construção da história do brasil, quebrando

a lógica eurocêntrica na produção e difusão

do conhecimento; articula-se ao rol de polí-

ticas de ação afirmativa e, por fim, pretende

possibilitar a permanência bem sucedida da

população negra na escola.

o fato de ser quase consensual uma lacu-

na na formação inicial que é ministrada nas

universidades, faculdades e cursos de for-

mação permanente e continuada, no que se

refere à história da África e à cultura afro-

-brasileira, nos permite afirmar que a traje-

tória da educação no brasil nega a existência

do referencial histórico, social, econômico e

cultural do africano e não incorporou conte-

údos afro-brasileiros nas grades curriculares

escolares e, embora tenhamos muita notícia

de discriminação racial nas escolas, quando

há um processo de acusação por racismo,

a tendência é culpar os vitimizados pela

opressão sofrida.

Desde o início, o movimento negro busca

traçar políticas de combate à discriminação

racial e reparação de desigualdades na edu-

cação. o salto qualitativo dado ao longo dos

anos deveu-se principalmente a: a) ação de

educadores(as) negros(as), que colocaram

a discussão nos programas de suas disci-

plinas ou em atividades culturais; b) mais

recentemente, negros(as) nas estruturas

governamentais iniciaram um processo de

discussão e proposições; c) organizações

não-governamentais negras e não-negras,

em vários estados da Federação, promo-

vem ações para promoção da igualdade ra-

cial e sistematizam as produções nacionais

existentes; d) centros e núcleos de estu-

dos africanos e afro-brasileiros, dentro das

universidades, que se propõem a fomentar

a discussão nos seus espaços, com resulta-

dos significativos; e) Professores, em várias

universidades, têm constituído grupos de

pesquisa ou fomentado em seus alunos o

desejo ou necessidade de ampliar os hori-

zontes de pesquisas, tendo as relações étni-

co-raciais como foco.

essas e outras ações fizeram, sem dúvida,

com que a segunda lei aprovada pelo gover-

no lula fosse voltada à promoção da igual-

dade no sistema educacional.

a preocupação que se explicita quanto à

implementação da referida lei se coloca em

torno da criação de alternativas para forma-

ção, nas redes de ensino. neste momento,

são fundamentais a sensibilização de mem-

bros das secretarias de educação e a lucidez

para buscar parcerias com pessoas e organi-

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zações com trajetória histórica na discussão

do tema das relações étnico-raciais.

também ressalto algumas preocupações e

desafios que têm muito a ver com a forma

com que as pessoas compreendem a educa-

ção no brasil. as preocupações se referem

ao pensamento de pessoas que ocupam po-

sições estratégicas nas secretarias de educa-

ção de estados e municípios, com os quais

temos dialogado. algumas pessoas têm di-

ficuldade de entender a proposta da lei e de

uma educação para promoção da igualdade

étnico-racial. seus pensamentos, na verda-

de, se parecem muito com o pensamento de

educadores(as) das redes de ensino.

alguns dizem que a lei vem realçar o que já

era feito nas escolas, que esse tipo de ensino

já existia, mas não com força de lei. Dizem

que a questão discriminatória nasce na so-

ciedade, não na escola, e que a sociedade

teria outros mecanismos para reduzir o ra-

cismo, não só no setor educacional.

outros afirmam que a lei é desnecessária,

por já ser tratada a história e a cultura afri-

canas nos currículos... e, portanto, que isso

é redundância.

uma outra preocupação é a compreensão

de currículo presente na lei. Quando se fala

em colocar os estudos prioritariamente em

educação artística, literatura e História,

está explícito que currículo se confunde com

grade curricular, o que é um equívoco, do

meu ponto de vista. no meu entendimento,

currículo é a totalidade das relações que se

estabelecem nas escolas, independentemen-

te do espaço ser a sala de aula, quadra, aten-

dimento na secretaria, sala dos professores

ou horário do recreio. se, acreditamos que o

racismo está presente na escola, esse espa-

ço não é neutro, ele se manifesta também

nas relações estabelecidas pela comunidade

escolar.

ainda sobre currículo, podemos dizer que a

rede tenha avançado, do ponto de vista de

ser uma construção coletiva, mas o foco

ainda é a experiência dos educadores, base-

ada em livros didáticos. Dessa forma, pouca

importância é dada ao território, à troca de

experiência com colegas e não são privile-

giadas as vivências dos alunos e da comu-

nidade.

PEnSAnDO AS DiREtRiZES

CuRRiCulARES nACiOnAiS

PARA EDuCAÇÃO DAS RElAÇõES

étniCO-RACiAiS E PARA O

EnSinO DE HiStóRiA E CultuRA

AFRO-BRASilEiRAS E AFRiCAnAS4

as Diretrizes, construídas a partir de con-

sulta a grupos de movimento negro, con-

4 Parecer nº 003/2004 de 10/03/2004. aprovado pelo conselho Pleno do conselho nacional de educação.

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selhos estaduais e municipais de educação,

organizações da sociedade civil, militantes

e intelectuais, colocam como alvo central a

formação dos professores e a mudança da

qualidade social da educação. Destinam-se

aos sistemas de ensino, universidades, fa-

culdades, educadores, educandos e familia-

res, enfim, a todos os comprometidos com a

educação no brasil.

a proposta fundamental das diretrizes é a

construção da igualdade étnico-racial no

brasil. aqui não se trata de atribuir ao pre-

sente a culpa pelo passado, mas de dizer que

todos somos responsáveis – independente

de sermos negros ou negras – por ajudar na

superação do preconceito, discriminação e

racismo.

o grande determinante das diretrizes é tra-

balhar a consciência histórica e política da

diversidade, buscando ampliar o foco do

currículo, promovendo ações de igualdade

étnico-racial e fortalecendo identidades.

É, portanto, compromisso de todos os edu-

cadores dar visibilidade às Diretrizes, exigin-

do dos governos a efetivação da resolução

n. 01/2004, da lei n. 10.639/03 e a disponibi-

lização de bibliografia étnico-racial, além de

realizar atividades e projetos estabelecendo

parcerias com entidades que possam contri-

buir para este trabalho.

É necessário que o educador, como media-

dor do processo de transformação escolar,

atue contra a exclusão e pela promoção da

igualdade racial. ao olhar a escola e a sala

de aula, ele assume o compromisso de ul-

trapassar o limite das ações pontuais e fa-

zer com que as políticas educacionais de

promoção da igualdade façam parte das

discussões sobre reorientação curricular,

formação permanente e projeto político-

-pedagógico.

PEnSAnDO O PROjEtO

POlítiCO-PEDAgógiCO

o projeto político-pedagógico se constitui

como elemento norteador do ser e do fa-

zer da escola. na verdade, é um conjunto

de relações a partir das quais o educador

e a comunidade “lêem” a si mesmos e ao

mundo num processo relacional. ao educar

o olhar e a escuta para o mundo, a nação, a

cidade, o bairro, a rua, a escola e a sala de

aula processam suas sínteses, questionam

o exercício do poder, as situações de afetivi-

dade, as vivências das diferenças, situações

de conflito, a solidariedade, a cooperação e

a justiça.

o projeto político-pedagógico, nas suas

duas dimensões – o político e o pedagógi-

co – se constitui numa ação intencional,

com compromisso explícito assumido cole-

tivamente, reafirmando a intencionalidade

da escola: incluir todos os integrantes da

mesma num processo de transformação da

realidade.

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ele concretiza não só a prática pedagógica,

mas também a dinâmica do cotidiano esco-

lar, onde toda a comunidade educativa assu-

me, nos seus projetos de trabalho e planos

de ensino, um compromisso radical contra

os preconceitos, as discriminações e o racis-

mo.

neste sentido, questões étnico-raciais, de

gênero, de sexualidade, entre outras, não

podem ficar de fora do projeto político-

-pedagógico, sob pena de a escola não se

pensar e compreender-se como espaço de-

mocrático, plural e fundamental na atuação

contra a exclusão.

COnCluSÃO

a educação é base para construção de uma

sociedade democrática, com oportunidades

reais de inserção no mercado de trabalho

determinadas em parte pelo grau de instru-

ção.

É necessário que os educadores assumam

o compromisso de ultrapassar o limite de

ações pontuais para fazer com que, no coti-

diano das escolas, as políticas educacionais

de promoção da igualdade racial façam par-

te do projeto político-pedagógico.

É importante discutir e viabilizar propostas

concretas de mudança da mentalidade ra-

cista da sociedade brasileira, formular proje-

tos visando erradicar o racismo nas escolas

e na sociedade e trabalhar para a melhoria

de condições de vida de todos. a luta pelo

investimento na educação básica, quer em

políticas de formação permanente e conti-

nuada, quer no fortalecimento de práticas

democráticas na gestão escolar, deve ser

uma constante.

Por fim, gostaria de propor algumas estra-

tégias que poderão contribuir ou auxiliar na

implementação da lei, tendo como referên-

cia as Diretrizes e como fundamento o pro-

jeto político-pedagógico da escola:

• a construção de materiais pedagógicos e

curriculares contra-hegemônicos. a res-

peito disso, temos algumas experiências

bem sucedidas em várias secretarias de

educação e organizações não-governa-

mentais que trabalham com educação ou

ligadas ao movimento negro.

• Incorporar uma concepção de educação

humanizadora, com base na desconstru-

ção de conteúdos e práticas racistas e na

divulgação de experiências bem sucedi-

das de educadores e educandos que pro-

movam a igualdade racial no ambiente

escolar. essas experiências contribuem

para que se estabeleça um referencial me-

todológico no processo de Formação Per-

manente de educadores e reorientação

curricular;

• ultrapassar o limite de ações pontuais

para fazer com que, no cotidiano das es-

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colas, as políticas de promoção da igual-

dade racial façam parte do currículo, dos

processos de formação e da construção

do projeto político-pedagógico escolar.

• Programas de formação inicial e perma-

nente nas instituições de ensino que atu-

am nos níveis e modalidades da educação

brasileira;

• Promoção, pelos sistemas de ensino, de

cursos, projetos e programas de formação

para equipes de gestão e educadores(as),

estabelecendo canais de comunicação

com o movimento negro, grupos cultu-

rais, instituições formadoras de professo-

res, núcleos de estudos e pesquisas, orga-

nizações não-governamentais, buscando

subsídios para os projetos político-peda-

gógicos das unidades escolares e movi-

mento curricular, no sentido da perma-

nência bem sucedida da população negra

nas escolas.

PEnSAnDO AS AtiviDADES/

PROjEtOS

a ideia é propor atividades/projetos que

possam ser realizados nas escolas de ensi-

no Fundamental, eJa e ensino médio. alerto

que não acredito em ações pontuais, restri-

tas a determinado dia, ou momento de sala

de aula, ou comemoração especial. conside-

ro essas ações tranquilizadoras de consciên-

cia, como por exemplo: “Já trabalhei: em 08

de março, discuto a questão da mulher, em

19 de abril, discuto a questão do índio, em

13 de maio ou em 20 de novembro, discuto

a questão do negro. não quero mais pensar

sobre isso!”

ao formular um projeto para trabalho na

escola, alguns cuidados devem ser tomados

no planejamento:

• envolver várias áreas de conhecimento;

• relacioná-lo na proposta pedagógica da

escola, no sentido de adquirir cumplicida-

de da escola como um todo na realização;

• contar com o apoio de organizações, pes-

soas e entidades que tenham acúmulo de

conhecimentos no tema a ser trabalhado;

• Definir os objetivos de forma explícita, sa-

ber onde se quer chegar com o projeto/

atividade;

• Pensar todos os passos no desenvolvi-

mento, bem como as formas de envolver

a comunidade educativa;

• estabelecer critérios de avaliação que da-

rão possibilidade de continuidade ou redi-

mensionamento da proposta;

• Definir prazos para realização da ativi-

dade/projeto, sempre tentando fugir de

ações pontuais que, de forma geral, não

trazem mudanças de comportamento;

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• tratar de desmistificar preconceitos, dis-

criminação e/ou racismo, ter potencial de

replicabilidade (poderá ser realizada em

outras realidades, com possibilidade de

sucesso).

• Por fim, apresentaremos uma atividade/

projeto, como exemplo.

PROjEtO RAiZ5

Professora: Luzinete Araújo Benedito da

Silva

Contexto

a experiência Projeto Raiz foi desenvolvida de

maio de 2002 a abril de 2004, na emeF madre

maria Imilda do santíssimo sacramento, na

cidade de são Paulo (sP). atingiu aproxima-

damente 80 alunos com idade média de 14

anos. as principais áreas do conhecimento

envolvidas na experiência foram educação

artística, História, educação Física, língua

Portuguesa, geografia, sociologia e antro-

pologia.

Objetivos

conhecer, valorizar, difundir e resgatar a

cultura afro-brasileira. buscar ações trans-

formadoras, por meio da arte, da cultura e

da formação, para que se possa iniciar um

processo de mudança e participação efe-

tiva dos alunos e, consequentemente, da

comunidade. Dar oportunidade aos alunos

de participarem de atividades que envolvam

várias manifestações culturais: dança afro,

percussão, excursões a centros culturais

onde se conheça a cultura e história afro-

-brasileiras. trabalhar contra qualquer for-

ma de discriminação, pela liberdade, plu-

ralismo cultural, diversidades, igualdade e

respeito. Desenvolver o espírito participa-

tivo, responsável, crítico, cooperativo, soli-

dário, coletivo, e de respeito às diferenças.

apontar caminhos que levem à não-violên-

cia e à integração social. envolver a comu-

nidade para que se sinta corresponsável e

parte integrante do projeto. criar espaços e

momentos de reflexão e sensibilização dos

alunos, professores e comunidade acerca da

questão do negro no brasil e demais temas

relacionados à desigualdade. resgatar a au-

toestima dos alunos e a identidade étnica

afro-brasileira.conscientizar os alunos para

assumirem responsabilidades, tendo noção

de grupo e percebendo que são parte inte-

grante na tomada de decisões. Integrar os

alunos participantes do projeto à sociedade,

para que não estejam sujeitos às desagrega-

ções familiares e sociais. resgatar valores

culturais e empregar a arte como veículo de

transmissão desses valores. Promover o con-

5 experiência premiada no 2º Prêmio educar para Igualdade racial – experiências de Promoção da Igualdade racial/Étnica no ambiente escolar, promovido pelo ceert, são Paulo, 2004.

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126

tato com produções artísticas nas várias lin-

guagens expressivas. Incentivar a produção

artística de todos os alunos, ajudando-os a

desenvolver seu potencial, suas capacidades

e conhecimentos, para que possam contri-

buir como cidadãos críticos e criativos.

justificativa e planejamento

vivemos em um país em que a maioria da

população é composta por negros e afrodes-

cendentes. são mais de 70 milhões de pesso-

as, o que faz do brasil o maior país africano

fora da África (dados do Ibge – Instituto bra-

sileiro de geografia e estatística). Por isso

veio a preocupação de resgatarmos e difun-

dirmos a cultura negra como efetiva mani-

festação histórica. É inaceitável que em um

país com essas características, manifeste o

racismo e a discriminação social. Inaceitável

que haja desigualdades em todos os níveis e

instâncias.

a escola, como entidade que visa à trans-

formação, à formação e à integração dos

indivíduos na sociedade, deve ter seu papel

de mediadora no processo de valorização e

difusão da cultura afro-brasileira, como for-

ma de recuperar a autoestima e a identidade

étnica. Percebendo nosso papel como edu-

cadores e agentes de transformação, tanto

na escola quanto na sociedade, nós nos sen-

timos corresponsáveis (com base no nosso

Projeto político-pedagógico) em trabalhar-

mos a proposta com a nossa comunidade.

Desenvolvimento de atividades

conteúdos das atividades: 1. Processo de

colonização brasileira; 2. negros da África

e do brasil: histórias, valores e culturas de

ontem e de hoje; 3. Identidade, africanidade

e resistência; 4. Processo de escravidão, eu-

rocentrismo e ideologia do branqueamento;

5. lutas e processos de liberdade / descons-

trução e autoestima; 6. lideres negros, mo-

vimento negro; 7. Questões sociais, políticas

e culturais que historicamente estão intrín-

secas nestes processos; 8. Diversidades, dife-

renças, discriminação, preconceito, racismo

(“os porquês”); 9. Produção cultural, lingua-

gens artísticas (música, poesia, literatura,

dança, teatro, artes visuais, artes plásticas,

entre outras); 10. religiosidade afro-brasilei-

ra e suas matrizes africanas; 11. Direitos, ci-

dadania, respeito; 12. leis do período de es-

cravidão e as atuais quanto ao racismo; 13.

Dinâmicas das atividades; 14. realização de

oficinas de dança afro e percussão; 15. gru-

po de formação envolvendo alunos, profes-

sores e comunidade participante; 16. Pales-

tras com a participação de especialistas em

vários temas; 17. reuniões com os pais dos

alunos envolvidos no projeto (no mínimo,

duas por ano).

“outras vivências”: 1. uma vez por mês, o

grupo recebeu um convidado que fez uma

oficina diferente, propiciando um novo

olhar e novas vivências; 2. atividades reali-

zadas nas salas de aula nas diversas áreas do

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conhecimento (cada professor participante

foi responsável por ser o multiplicador dos

conteúdos e do projeto em cada sala que tra-

balhou); 3. apresentação de vídeos sobre te-

mas propostos; 4. visitações a lugares onde

se pôde aprofundar a cultura afro-brasileira;

5. Pesquisa contínua; 6. Painel permanente

com o conteúdo relacionado ao projeto, que

foi também um meio para formação e re-

flexão; 7. realização da semana da consci-

ência negra, além de várias intervenções no

espaço-escola, com o intuito de estimular a

participação e sensibilização; 8. leituras de

textos em grupo, debates e resumos.

Motivação e Participação do

Aluno

Despertamos o interesse e a curiosidade

dos alunos através da sensibilização. Por

exemplo, levamos para a escola um grupo

de dança afro da região. assim, iniciamos a

conversa e propomos as oficinas para que

eles participassem livremente aos sábados.

o diálogo também incluiu os colegas edu-

cadores, que manifestaram diferentes opini-

ões a respeito de discutir o preconceito no

ambiente escolar. algumas opiniões eram

preconceituosas.

também por parte dos alunos, os sentimen-

tos variaram. Houve quem se reconhecesse

na proposta, sentindo-se contemplado por

nós. Houve quem discriminasse, dizendo que

estávamos “fazendo macumba na escola”.

Houve quem se deixou levar pela força dos

tambores, que invadiam efetivamente aque-

le espaço. aos poucos, fomos arrancando as

amarras sociais e, por meio de leituras, dis-

cussões, dificuldades e resistências, fomos

incomodando e acomodando a situação.

Avaliação

nossos objetivos foram alcançados. eles se

refletiram nas atitudes dos nossos alunos,

em sua forma de argumentar e de se posi-

cionar diante das injustiças presenciadas

no dia-a-dia. observamos que a auto-estima

aumentou. Percebemos que os alunos se or-

gulharam ao dizer-se afro-brasileiros, que se

orgulharam do que são. alguns se tornaram

multiplicadores do que aprenderam nas ofi-

cinas. também recebemos o reconhecimen-

to da comunidade. Fomos chamados para

relatar nossa prática em um congresso mu-

nicipal e no Fórum mundial. utilizamos os

seguintes instrumentos de avaliação: relatos

verbais e escritos, questionários, conversas

com o grupo.

as dificuldades foram muitas: financeiras,

de falta de espaço, de carência de tempo,

de organização, de compreensão. todas elas

foram superadas, porque acreditávamos no

que fazíamos. a experiência implicou, des-

de o seu início, assumirmos determinadas

posturas na escola. não dá pra ficar “em

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cima do muro”, temos que romper com os

esquemas enraizados em nossa vida. Pas-

samos por muitos momentos perversos de

preconceito, desde a piadinha até a ofensa

feita de forma direta por parte de alunos e

de professores.

algumas vezes entrávamos na sala de pro-

fessores negros para argumentar com os

alunos acerca da pertinência do nosso tra-

balho e esses professores não participavam

das discussões. Isto mostra como é eficien-

te a ideologia do branqueamento, pois até

mesmo alguns afrodescendentes evitam dis-

cutir esses temas.

o trabalho implicou a íntima mudança de

cada um de nós, pois também temos pre-

conceito, não somos os anjos da sabedoria,

imaculados. o Projeto raiz nos transfor-

mou, nos fez reavaliar nossas vidas, ações,

conceitos, “pré-conceitos”, posturas, atitu-

des, história, identidade, família. ele nos fez

enxergar o que fizeram conosco e o que efe-

tivamente não queremos ser.

REFERênCiAS

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dade. são Paulo, eDusP, 1996. p.147-185.

inDiCAÇÃO DE FilMES

Quanto vale ou é por quilo? Direção sergio

bianci, brasil, 2005. sinopse: Filme de ficção,

baseado num conto de Machado de Assis. O

filme traça um paralelo entre a vida no pe-

ríodo da escravidão e a sociedade brasileira

contemporânea, focalizando as semelhanças

existentes no contexto social e econômico das

duas épocas. A ação se desenrola nesses dois

períodos históricos, ao mesmo tempo. Ao tra-

çar esse paralelo entre o século XIX e o tempo

atual, o filme questiona até que ponto a estru-

tura da sociedade brasileira realmente mudou

da época colonial até hoje.

Quase Dois irmãos. Direção lucia murat,

brasil, 2005. sinopse: Retrata as diferenças

raciais vividas entre prisioneiros brancos (pre-

sos políticos) e negros (presos comuns) no pre-

sídio da Ilha Grande, nos anos 70. Miguel é um

Senador da República que visita seu amigo de

infância Jorge, que se tornou um poderoso tra-

ficante de drogas do Rio de Janeiro, para lhe

propor um projeto social nas favelas. Retrata

o abismo entre brancos e negros na sociedade

brasileira.

na Rota dos Orixás. Direção: renato barbie-

ri. sinopse: O documentário apresenta a gran-

de influência africana na religiosidade brasi-

leira, mostra a origem das raízes da cultura

jêje-nagô em terreiros de Salvador, que virou

candomblé, e do Maranhão, onde a mesma in-

fluência gerou o Tambor de Minas.

um grito de liberdade. Direção: richard at-

tenbourough, 1987. sinopse: Sobre a luta con-

tra o apartheid, na África do Sul, enfocada sob

o ponto de vista de um homem branco e de um

negro.

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Além de trabalhador, negro. Direção: Daniel

brazil, brasil, 1989. sinopse: Filme didático,

que apresenta a trajetória do negro brasileiro

da abolição até os dias atuais.

vista a minha pele. Joel Zito araújo & Dan-

dara. brasil, 2004. sinopse: é uma paródia da

realidade brasileira, para servir de material

básico para discussão sobre racismo e precon-

ceito em sala de aula. Nesta história invertida,

os negros são a classe dominante e os brancos

foram escravizados.

Quilombo. Direção cacá Diegues. brasil,

1984. sinopse: num engenho de Pernambu-

co, por volta de 1650, um grupo de escravos

se rebela e ruma ao Quilombo dos Palmares,

onde existe uma nação de ex-escravos fugidos

que resiste ao cerco colonial, entre eles Gan-

ga Zumba, um príncipe africano. Tempos de-

pois, seu herdeiro e afilhado, Zumbi, contesta

as ideias conciliatórias de Ganga Zumba e en-

frenta o maior exército jamais visto na história

colonial brasileira.

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B. EDuCAÇÃO inFAntil

I. vALORES CIvILIzATóRIOS AFRO-BRASILEIROS NA EDU-CAÇÃO INFANTIL1

Azoilda Loretto da Trindade2

a criança gozará de proteção contra atos

que possam suscitar discriminação racial,

religiosa ou de qualquer outra natureza.

criar-se-á num ambiente de compreensão,

de tolerância, de amizade entre os povos, de

paz e de fraternidade universal e em plena

consciência de que seu esforço e aptidão de-

vem ser postos a serviço de seus semelhan-

tes. (adotada pela assembléia das nações

unidas, de 20 de novembro de 19593)

este texto, que se propõe a falar sobre os

valores civilizatórios afro-brasileiros na edu-

cação Infantil, tem como ponto de partida e

está ancorado no princípio acima referido.

Propõe um diálogo em aberto, que precisa

ter continuidade no trabalho de cada pro-

fessor, propondo um compartilhar ideias,

no sentido amplo, com aqueles que fazem

o cotidiano escolar. cotidiano este entendi-

do como vibrante, como lugar de desafios,

inquietações, movimento, encontros e de-

sencontros, alegrias, emoções, prazeres,

desprazeres, produção de saberes, de co-

nhecimentos e de múltiplos fazeres. espaço

de pessoas buscantes, pesquisadoras da sua

própria prática.

apresentamos, de início, algumas explica-

ções, antes de darmos continuidade a este

diálogo:

1ª) ao destacarmos a expressão “valores

civilizatórios afro-brasileiros”, temos

a intenção de destacar a África, na sua

diversidade, e o fato de que os africa-

nos e africanas trazidos ou vindos para

o brasil e seus e suas descendentes

brasileiros implantaram, marcaram e

instituíram valores civilizatórios neste

país de dimensões continentais, que

é o brasil. valores inscritos na nossa

memória, no nosso modo de ser, na

nossa música, na nossa literatura, na

1 valores afro-brasileiros na educação – 2005 / Pgm 2.

2 Doutora em comunicação pela eco/ uFrJ. mestre em educação pelo Iesae/Fgv-rJ, organizadora desta coletânea.

3 http://www.fvt.com.br/declaracaouniversal.htm

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nossa ciência, arquitetura, gastrono-

mia, religião, na nossa pele, no nos-

so coração. Queremos destacar que,

na perspectiva civilizatória, somos,

de certa forma ou de certas formas,

afrodescendentes. e, em especial, so-

mos o segundo país do mundo em

população negra.

a África e seus descendentes imprimiram

e imprimem no brasil valores civilizatórios

ou seja, princípios e normas que corporifi-

cam um conjunto de aspectos e caracterís-

ticas existenciais, espirituais, intelectuais

e materiais, objetivas e subjetivas, que se

constituíram e se constituem num pro-

cesso histórico, social e cultural. e apesar

do racismo, das injustiças e desigualdades

sociais, essa população afrodescendente

sempre afirmou a vida e, consequentemen-

te, constitui o/s modo/os de sermos brasi-

leiros e brasileiras4.

2ª) sobre a África, é bom destacar que é

um imenso continente, com 52 países,

com uma imensa e variada diversida-

de: política, econômica, social, cultu-

ral... e que, assim como podemos di-

zer que existem vários brasis no brasil,

existem várias áfricas na mãe África.

Fonte: www.paginas.terra.com.br/arte/

mundoantigo/africa

3ª) sempre cremos que é interessante fa-

lar do cotidiano para fazer formula-

ções. recentemente, ouvi uma senho-

ra reclamando que um dia na sua vida

foi discriminada por ser branca e isso

a indignou. afinal, como e por que

discriminá-la? alias, muitas pessoas

argumentam, baseadas em um único

exemplo da sua existência, o fato de

elas serem discriminadas, sobretudo

quando a discriminação vem da parte

daqueles que são, em geral, os mais

discriminados. outras pessoas desta-

cam outras formas de discriminação,

como que para amenizar a afirmação

do racismo e a discriminação, histó-

4 É bom dizer, para evitar as tradicionais inquietações quando se afirma a africanidade brasileira, que sabemos que somos um país plural, marcado por valores civilizatórios de outros grupos humanos, contudo, este não é o foco deste texto.

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rica e atual, sofrida pelos negros e

negras. referem-se ao fato de que al-

guém pode ser discriminado por ser

gordo, por ser pobre, por ser feio, por

ser muito bonito, por ser, ou não, in-

teligente... e por aí vai.

uma pessoa adulta, em geral, fica arrasada

ao ser discriminada, sofre, se revolta, fica fu-

riosa, deprimida... enfim, tem várias reações.

agora, imaginemos um ser humano negro

de 0 a 6 anos de idade, uma criança negra

que é, numa sociedade racista, discrimina-

da 24 horas por dia e, muitas vezes, com o

silêncio omisso dos adultos, da professora.

essa criança tem que se sustentar sozinha

nestas situações. Infelizmente, ainda há

muita insensibilidade para com as crian-

ças negras. estas, ao serem discriminadas,

ficam acuadas, envergonhadas, inibidas em

denunciar. se essa é uma experiência muito

confusa para uma pessoa adulta, imagine-

mos para um ser humano de pouca idade,

uma criança de 0 a 6 anos. Professores e

professoras, acreditem, a criança pode não

saber expressar oralmente a discriminação,

mas ela sente, sofre, seu corpo fica marca-

do, com a discriminação e com a omissão,

com o silêncio conivente, com a falta de

acolhida do adulto que ela tem como refe-

rência no momento.

não é apenas motivo de negligência a dis-

criminação, o preconceito, o racismo com

relação às crianças negras. É também uma

insensibilidade, que está ancorada nos 312

anos oficiais de escravidão neste país e nos

117 anos de promulgação da lei Áurea. É

impressionante que, por muito tempo, nin-

guém se preocupou com a importância de

colocar, no acervo de brinquedos das crian-

ças da educação Infantil, bonecas e bonecos

negros, livros infantis com imagens e per-

sonagens negros em posição de destaque,

não ter mural com personagens negros, não

serem trabalhadas as lendas, as histórias e

a História africanas, entre outras formas de

afirmação de existência e de valorização dos

negros em nosso país. e essa insensibilida-

de está inscrita na nossa memória coletiva

de brasileiros e brasileiras, que vendiam

crianças negras, que abusavam das crian-

ças negras, que matavam crianças negras,

que impediam que as crianças negras fos-

sem amamentadas por suas mães. a história

parece que nos legou uma responsabilidade

social especial para com essas crianças. es-

pecial, pois temos que ter responsabilidade

social para com todas.

Para ilustrar que, para a cultura iorubá, to-

das as pessoas são divinas, traremos, um

conto5 que é emblemático do valor civiliza-

tório afro-brasileiro de aceitação das dife-

renças humanas:

5 recontado por Heloisa Pires lima em Histórias de Preta. são Paulo, cia. das letrinhas, 1998. p. 61.

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(...) Olodumaré, que é um deus Iorubá,

quis criar a Terra e deu um punhado

dela, num saquinho, para Obatalá ir

criá-la. Antes de ir, Obatalá teria que

fazer a oferenda a Exu6, pois sem mo-

vimento não há ação. Obatalá, que é

muito velho, esqueceu e foi andando,

andando devagarinho, e no caminho

sentiu sede. Então viu uma árvore, des-

sas que têm água dentro, e parou, abriu

a planta e bebeu. Só que era uma bebida

que dava um pouco de tontura, e então

ele se deitou debaixo da árvore e acabou

dormindo.

Enquanto isso, Oduduá, que também

queria criar a Terra, fez as oferendas a

Exu e alcançou Obatalá. Vendo-o dor-

mir, achou que ele iria se atrasar muito,

pegou o saquinho e foi ele mesmo criar

a Terra. E criou.

Obatalá acordou e viu a Terra criada, e

foi reclamar para Olodumaré, que en-

viou e deu a ele barro, para que criasse

os homens na Terra. Obatalá foi e criou

os homens, mas de vez em quando to-

mava a bebida da árvore de que tinha

gostado, e ... não chegava a dormir, mas,

meio tonto, fazia uns seres humanos

meio tortinhos.

tECEnDO FAZERES E SABERES

AFRO-BRASilEiROS nA

EDuCAÇÃO inFAntil

“Cresci brincando no chão, entre formi-

gas. De uma infância livre e sem compa-

ramentos. Eu tinha mais comunhão com

as coisas do que comparação. Porque

se a gente fala a partir de ser criança,

a gente faz comunhão de um orvalho e

sua aranha, de uma tarde e suas graças,

de um pássaro e sua árvore.” manoel de

barros. In: Memórias Inventadas. a In-

fância.

vamos agora, pinçar alguns aspectos afro-

-brasileiros que consideramos caros à edu-

cação Infantil. alguns, pois há uma infini-

dade deles:

Principio do axé energIa vItal - tudo que é

vivo e que existe, tem axé, tem energia vital:

planta, água, pedra, gente, bicho, ar, tempo,

tudo é sagrado e está em interação. Imagi-

nem se nosso olhar sobre nossas crianças

de educação Infantil forem carregados da

certeza de que elas são sagradas, divinas,

cheias de vida.

Podemos trabalhar a potencialização des-

te princípio nas nossas crianças, se nosso

6 Divindade que simboliza na cosmovisão Iorubá, a transformação, a comunicação, os encontros, a contradição, o movimento.

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135

olhar, nosso coração e nosso corpo senti-

rem-nas verdadeiramente assim.

elogios, afagos, brincadeiras de faz-de-

-conta, nas quais elas se sintam a mais bela

estrela do mundo, a mais bela flor, alguém

que cuida, alguém que é cuidado. um es-

pelho para que elas se admirem, para que

brinquem com o espelho, e se habituem a

se olhar e a serem olhadas com carinho e

respeito.

oralIDaDe – muitas vezes preferimos ou-

vir uma história que lê-la, preferimos

falar que escrever... nossa expressão

oral, nossa fala é carregada de sen-

tido, de marcas de nossa existência.

Faça de cada um dos seus alunos e

alunas contadores de histórias, com-

partilhadores de saberes, memórias,

desejos, fazeres pela fala. Falar e ouvir

podem ser libertadores.

Promova momentos em que a história, a

música, a lenda, as parlendas, o conto, os

fatos do cotidiano possam ser ditos e redi-

tos. Potencialize a expressão “fale menino,

fale menina”.

cIrcularIDaDe – a roda tem um significa-

do muito grande, é um valor civiliza-

tório afro-brasileiro, pois aponta para

o movimento, a circularidade, a reno-

vação, o processo, a coletividade: roda

de samba, de capoeira, as histórias ao

redor da fogueira...

Já fazemos as tradicionais rodinhas na edu-

cação Infantil, e nas reuniões pedagógicas,

nas reuniões dos responsáveis. Que tal po-

tencializarmos mais a roda, com cirandas,

brincadeiras de roda e outras brincadeiras

circulares?

corPoreIDaDe – o corpo é muito impor-

tante, na medida em que com ele vi-

vemos, existimos, somos no mundo.

um povo que foi arrancado da África

e trazido para o brasil só com seu cor-

po, aprendeu a valorizá-lo como um

patrimônio muito importante. neste

sentido, como educadores e educado-

ras de educação Infantil, precisamos

valorizar nossos corpos e os corpos

dos nossos alunos, não como algo

narcísico, mas como possibilidade de

trocas, encontros. valorizar os nossos

corpos e os de nossas crianças como

possibilidades de construções, produ-

ções de saberes e conhecimentos cole-

tivizados, compartilhados.

cuidar do corpo, aprender a massageá-lo,

tocá-lo, senti-lo e respeitá-lo é um dos nos-

sos desafios no trabalho pedagógico com

a educação Infantil. Dançar, brincar, rolar,

pular, tocar, observar, cheirar, comer, beber

e escutar com consciência. aparentemente

nada de novo, se não fosse o desmonte de

corpos idealizados e a aceitação dos corpos

concretos

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musIcalIDaDe – a música é um dos as-

pectos afro-brasileiros mais emble-

máticos. um povo que não vive sem

dançar, sem cantar, sem sorrir e que

constitui a brasilidade com a marca

do gosto pelo som, pelo batuque, pela

música, pela dança.

Portanto, mãos à obra, som na caixa e muita

música, muito som, mas não os “enlatados”,

as músicas estereotipadas, o mesmismo que

vemos na tv e em quase todas os momentos

da escola, nos quais a música se faz presen-

te. vamos ouvir músicas que falem da nossa

cultura, que desenvolvam nossos sentidos,

nosso gosto para a música e, com isso, não

produzirmos alienados musicais desde a ten-

ra idade. nosso país é riquíssimo em ritmos

musicais e em danças, que tal investirmos

neste caminho? conhecer para promover.

luDIcIDaDe – a ludicidade, a alegria, o

gosto pelo riso pela diversão, a cele-

bração da vida. se não fôssemos um

povo que afirma cotidianamente a

vida, um povo que quer e deseja viver,

estaríamos mortos, mortos em vida,

sem cultura, sem manifestações cul-

turais genuínas, sem axé.

Portanto, brinquemos na educação In-

fantil, muita brincadeira, muito brilho no

olho, muito riso, muita celebração da vida.

cooPeratIvIDaDe – a cultura negra, a cul-

tura afro-brasileira, é cultura do plural,

do coletivo, da cooperação. não sobre-

viveríamos se não tivéssemos a capaci-

dade da cooperação, do compartilhar,

de se ocupar com o outro.

como dissemos, este texto é um compar-

tilhar ideias e contamos com seu retorno7

com opiniões, sugestões, críticas, comple-

mentações e ponderações, em nome de um

verdadeiro e profundo amor pelas nossas

crianças brasileiras, que merecem ter aces-

so a um patrimônio cultural que as consti-

tua como tais, que é o patrimônio cultural

afro-brasileiro.

muito axé.

REFERênCiAS

bento, maria aparecida da silva. Cidadania

em preto e branco: discutindo as relações ra-

ciais. são Paulo: Ática, 1998.

cavalleIro, eliane (org.). Racismo e Anti-Ra-

cismo na Educação-Repensando nossa Escola.

são Paulo: summus, 2001.

__________________. Do silêncio do lar ao silên-

cio escolar. são Paulo: contexto, 2000.

nen - nÚcleo De estuDos negros. Ne-

7 [email protected]

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137

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em educação. Florianópolis: editora atilèn-

de, 2002.

rocHa, rosa margarida de carvalho. Alma-

naque Pedagógico Afrobrasileiro. belo Hori-

zonte: n’Zinga/mazza edições, 2004.

soDrÉ, muniz. Claro e Escuros – identidade,

Povo e mídia no brasil. Petrópolis: vozes,

1999.

______. A Verdade Seduzida. Por um conceito

de cultura no brasil. rio de Janeiro: codecri,

1983.

trInDaDe, azoilda loretto e santos, rafael

(org.). Multiculturalismo – mil e uma faces da

escola. rio de Janeiro: DP&a, 2000.

______. Racismo no Cotidiano escolar. rio

de Janeiro: Fgv/Iesae, 1994. Dissertação de

mestrado em educação.

litERAtuRA inFAntil

Ana e Ana - célia godoy – Difusão cultural

do livro.

Agbalá, um lugar-continente – marilda casta-

nha – editora Formato.

A menina que tinha o céu na boca – Júlio emí-

lio braz – Difusão cultural do livro.

A semente que veio da África – Heloísa Pires

lima – salamandra.

A ovelha negra – bernardo aibê – ed. Ioni me-

loni naif.

As tranças de Bintou – sylviane a. Diouf – co-

sac e naify.

Berimbau – raquel coelho – editora Ática.

Bruna e a Galinha D’ Angola - gercilda de al-

meida – editora Pallas

Como as histórias se espalharam pelo mundo

– rogério andrade barbosa – editora Difusão

cultural do livro.

Duula, a mulher canibal – rogério andrade

barbosa – ed. Difusão cultural do livro.

Gosto de África – Histórias de lá e de cá – Joel

rufino dos santos – editora onda livre.

Histórias Africanas para contar e recontar -

rogério a. barbosa – ed. do brasil.

Histórias da Preta – Heloísa Pires lima – edi-

tora companhia das letrinhas.

Ifá, o adivinho – reginaldo Prandi- compa-

nhia das letrinhas.

Lendas Negras – Júlio emílio braz – editora

FtD.

Menina bonita do laço de fita – ana maria ma-

chado - editora Ática.

O amigo do rei – ruth rocha – editora Áti-

ca.

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O espelho dourado – Heloísa Pires lima – Pei-

rópolis.

O filho do vento – rogério andrade barbosa –

ed. Difusão cultural do livro.

O menino marrom – Ziraldo – ed. melhora-

mentos.

O menino Nito – sonia rosa – editora Pallas.

Os reizinhos de Congo – edimilson de almei-

da Pereira – ed. Paulinas.

Que mundo maravilhoso! – Julius lester – edi-

tora brinque-book.

Tanto, tanto! – tristh cooke – editora Ática.

A cor da ternura – geni guimarães – editora

FtD

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II. AS RELAÇõES éTNICO-RACIAIS, HISTóRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA NA EDUCAÇÃO INFANTIL1

Regina Conceição2

a promulgação da lei Federal nº. 10.639/03,

que torna obrigatório o ensino de História e

cultura afro-brasileira, bem como as Dire-

trizes Curriculares Nacionais para a Educação

das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de

História e Cultura Afro-Brasileira e Africana,

têm provocado mudanças nas práticas edu-

cativas de professores e professoras de toda

a educação básica, sem esquecer das refor-

mulações necessárias nos currículos de for-

mação de professores(as).

antes de traçar considerações a este respei-

to, é preciso dizer que tais mudanças não

são tarefas fáceis, pois implicam repensar e

reformular práticas pedagógicas cristaliza-

das e que são consideradas, por seus prati-

cantes, de boa qualidade e com resultados

garantidos.

sendo assim, há que se questionar: resul-

tados positivos para quem? ao desenvolver

tais práticas, as diversidades de gênero, raça/

etnia, religiosa, entre outras, estão contem-

pladas? são abordados aspectos de história

e cultura de origem africana? De que forma?

e de outras etnias?

no que se refere aos conteúdos de His-

tória e cultura afro-brasileira e africana,

muitos(as) educadores(as) relatam o desco-

nhecimento desses conteúdos como sendo

a principal causa para a não abordagem em

sala de aula. ou seja, como está sendo a for-

mação inicial de professores(as) no tocante

à diversidade humana e ao preparo para a

educação das relações étnico-raciais?

as Diretrizes Curriculares Nacionais para a

Educação das Relações Étnico-Raciais e para o

Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e

Africana (2004), que atendem “dispositivos

legais, bem como reivindicações e propos-

tas do movimento negro ao longo do sé-

culo XX” (p. 9), salientam a necessidade de

desenvolvimento de projetos que valorizem

1 currículo, relações raciais e cultura afro-brasileira – 2006 / Pgm 2.

2 assessora de educação Étnico-racial da secretaria municipal de educação e cultura/ Prefeitura municipal de são carlos (sP). mestre em educação (PPge/uFscar – área de metodologia de ensino). Professora das séries iniciais (rede municipal de ensino – são carlos – sP).

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a história e a cultura dos povos africanos e

afro-brasileiros “no sentido de políticas de

ações afirmativas, isto é, de políticas de re-

parações, de reconhecimento e valorização

de sua história, cultura, identidade” (p. 10).

como educadores(as) preocupados(as) e

comprometidos(as) com o desenvolvimen-

to de uma educação de qualidade para

todos(as), em todos os níveis de ensino, e

com a formação dos(as) educandos(as) para

a cidadania, de maneira que respeitem e va-

lorizem as diferenças e as diversidades da

nação brasileira, devemos abordar, desde a

educação Infantil, as histórias e as culturas

da população de origem africana.

as Diretrizes Curriculares Nacionais (2004),

enquanto política curricular de ações afir-

mativas, de reparações, de reconhecimento

e de valorização, “têm como meta o direi-

to dos negros se reconhecerem na cultura

nacional, expressarem visões de mundo pró-

prias, manifestarem com autonomia, indivi-

dual e coletiva, seus pensamentos” (p. 10)..

É direito das populações negras e não ne-

gras conhecerem e se orgulharem de suas

origens, isto é, serem educadas como “ci-

dadãos orgulhosos de seu pertencimento

étnico-racial – descendentes de africanos,

povos indígenas, descendentes de europeus,

de asiáticos (...)” (op. cit., 2004, p. 10).

as Diretrizes curriculares nacionais (2004)

não propõem a mudança de “(...) um foco

etnocêntrico marcadamente de raiz euro-

péia por um africano, mas ampliar o foco

dos currículos escolares para a diversidade

cultural, racial, social e econômica brasilei-

ra” (p. 17).

como ampliar o foco dos currículos se, por

um lado, nos livros didáticos, a história e

a cultura afro-brasileiras ficam restritas ao

trabalho escravo no período colonial e à sua

abolição em 13 de maio de 1888? se não tra-

tam das origens deste povo, ou seja, de onde

vieram?

Por que e como vieram para as américas?

como viviam na África? Quais as diferenças

de hábitos e costumes dos povos africanos?

segundo cavalleiro (2000), há educadores(as)

“que não percebem a influência dos livros

didáticos e paradidáticos na formação do

autoconhecimento e da identidade da crian-

ça” (p. 46).

Por outro lado, como superar as lacunas

da formação inicial de professores(as) e até

mesmo o que foi assimilado anos atrás? as

soluções têm sido as mais variadas possí-

veis: a busca por estes conhecimentos em

cursos de formação continuada, grupos de

estudos, estudos individualizados (loPes,

2003), entre outras, para que o ambiente

escolar e o de sala de aula possam, de fato,

incluir a cultura de origem africana e pro-

mover a educação para as relações étnico-

-raciais.

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abordar em sala de aula questões relativas

à educação das relações étnico-raciais, para

alguns educadores, é muito delicado, pois

implica rever valores éticos, pessoais e pro-

fissionais. É, por vezes, se descobrir racista,

preconceituoso, discriminador e que, mui-

tas vezes, as atitudes diante destas situações

são de silenciamento, por não ter a sensibi-

lidade necessária para identificá-las ou por

não saber como agir.

cavalleiro (op. cit.), em pesquisa realizada

numa escola de educação Infantil, diz que

este silenciamento “do professor facilita

novas ocorrências, reforçando inadvertida-

mente a legitimidade de procedimentos pre-

conceituosos e discriminatórios no espaço

escolar e, com base neste, para outros âmbi-

tos sociais” (p. 10).

alguns educadores de educação Infantil

não acreditam que, na faixa etária de 03

a 05 anos, sejam possíveis atitudes e/ou

ações de caráter racista, preconceituosa

e discriminadora. mais uma vez, caval-

leiro (op. cit.) ressalta que, nesta fase, as

“crianças brancas revelam um sentimento

de superioridade, assumindo em diversas

situações atitudes preconceituosas e dis-

criminatórias, xingando e ofendendo as

crianças negras, atribuindo caráter negati-

vo à cor da pele”, ao passo que as “crianças

negras já apresentam uma identidade ne-

gativa em relação ao grupo étnico ao qual

pertencem” (p. 10).

a preparação do ambiente escolar, bem como

o de sala de aula, é muito importante para

que todos(as) se sintam representados(as) e

valorizados(as). cartazes, fotos, textos diver-

sos – em livros didáticos e paradidáticos –,

além de brincadeiras e jogos, são estratégias

que visam à elevação da auto-estima e do

autoconhecimento “de indivíduos discrimi-

nados” e tornam “a escola um espaço ade-

quado à convivência igualitária” (cavalleI-

ro, 2000, p. 9-10).

a representação da diversidade no ambiente

escolar não é uma prática muito utilizada

pelos profissionais da educação, como sa-

lienta cavalleiro (op. cit.), quando diz que

“no decorrer do trabalho de campo, foi pos-

sível constatar a ausência de cartazes ou li-

vros infantis que expressassem a existência

de crianças não-brancas na sociedade brasi-

leira” (p. 44).

a escola e seus profissionais devem oferecer

aos educandos “uma educação de fato igua-

litária, desde os primeiros anos escolares

(...), pois as crianças dessa faixa etária ainda

são desprovidas de autonomia para aceitar

ou negar o aprendizado proporcionado pelo

professor”, ou seja, podem se tornar “víti-

mas indefesas dos preconceitos e estereóti-

pos transmitidos pelos mediadores sociais,

dentre os quais o professor” (cavalleIro,

op. cit., p. 37-38).

Diante destes fatos, como cumprir e garan-

tir “o sucesso das políticas públicas de esta-

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do, institucionais e pedagógicas (...) (Diretri-

zes curriculares nacionais, 2004, p. 13)” tais

como a lei Federal nº. 10.639/03, bem como

as Diretrizes Curriculares Nacionais para a

Educação das Relações Étnico-Raciais e para o

Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e

Africana com jovens, adultos e principalmen-

te com crianças que, segundo o estatuto da

criança e do adolescente (2002), são pessoas

em condição peculiar de desenvolvimento?

a resposta, mais uma vez, vem das referidas

Diretrizes curriculares nacionais (2004) que

dizem depender “de condições físicas, mate-

riais, intelectuais e afetivas favoráveis para

o ensino e para aprendizagens; (...) da reedu-

cação das relações entre negros e brancos;

(...) de trabalho em conjunto, de articulação

entre processos educativos escolares, políti-

cas públicas, movimentos sociais, visto que

as mudanças éticas, culturais, pedagógicas

e políticas nas relações étnico-raciais não se

limitam à escola” (p. 13).

a utilização da literatura infanto-juvenil,

tendo como base personagens negras, tem

mostrado “que é possível realizar um tra-

balho com esse material, pelo fato de ele

romper com um imaginário estereotipado

do negro, tão comum na literatura infanto-

-juvenil” (souza, 2001, p. 195), trazendo, as-

sim, resultados positivos para a educação

das relações étnico-raciais.

Para tanto, cabe destacar as considerações

de souza (op. cit.) a respeito de alguns livros

de literatura infanto-juvenil, por ela anali-

sados, dizendo que, naqueles, as persona-

gens negras aparecem “de maneira positiva,

como protagonistas, pertencentes a uma fa-

mília, com ilustrações bem delineadas” (p.

196). estes são alguns cuidados que se deve

ter quando se pretende uma educação que

vise à promoção da igualdade étnico-racial

no ambiente escolar.

o livro Bruna e a Galinha D’Angola, de gercil-

ga de almeida, pode ser considerado como

um exemplo positivo para trabalhar, com os/

as educandos/as da educação Infantil, a his-

tória e a cultura de origem africana.

neste livro, bruna aprende, com sua avó

nanã, a história da criação do mundo, a par-

tir de uma visão africana. uma história bem

escrita, atraente, com belas ilustrações, em

que é possível, ao final da leitura, confeccio-

nar, com a colaboração dos educandos, pais

e/ou responsáveis, os panôs que ilustram

toda a história.

uma outra sugestão de literatura infanto-

-juvenil é o livro A semente que veio da África

de Heloísa Pires lima, e de georges gneka e

mario lemos, dois autores africanos. o livro

conta a história do baobá, uma árvore que

nasce em todo o continente africano e, em

cada parte da África onde existe essa árvore,

há uma história diferente para explicar sua

importância para aquela comunidade. são

relatadas histórias da costa do marfim e de

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moçambique. Há belas fotografias do baobá

na África, com vários desenhos desta árvore

e, ao final do livro, a sugestão do jogo de

origem africana, a awalé ou mancala.

estas foram apenas algumas pequenas refle-

xões e sugestões de atividades que podem

ser desenvolvidas em sala de aula, desde a

educação Infantil até o ensino Fundamen-

tal. muitas outras experiências estão sendo

desenvolvidas em toda a educação básica,

resultando em atitudes de conhecimento e

valorização das diferenças, principalmente

aquelas que dizem respeito às culturas e às

histórias africanas e afro-brasileiras, como

determina a lei Federal nº. 10.639, de 09 de

janeiro de 2003, assim como na sua regula-

mentação, expressa nas Diretrizes Curricu-

lares Nacionais para a Educação das Relações

Étnico-Raciais e para o Ensino de História e

Cultura Afro-Brasileira e Africana.

Desenvolver práticas educativas a partir des-

tas situações tem sido importante para que

educandos e educadores conheçam histórias

e culturas das populações negras, desmisti-

ficando o tema e tornando positiva e real a

participação dos africanos e afro-brasileiros

na história nacional.

REFERênCiAS

almeIDa, gercilga de. Bruna e a Galinha

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científica e Pallas editora, 2000.

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especial de Políticas de Promoção da Igual-

dade racial, secretaria de educação conti-

nuada, alfabetização e Diversidade. Diretri-

zes Curriculares Nacionais para a educação

das relações étnico-raciais e para o ensino de

história e cultura afro-brasileira e africana.

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______. Estatuto da Criança e do Adolescente:

lei nº. 8069, de 13 de julho de 1990. brasília:

secretaria de estado dos Direitos Humanos,

Departamento da criança e do adolescente,

2002.

cavalleIro, eliane dos santos. Do silêncio

do lar ao silêncio escolar: racismo, preconcei-

to e discriminação na educação infantil. são

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lIma, Heloísa Pires. A semente que veio da

África. editora salamandra, 2005.

loPes, véra neusa. Inclusão étnico-racial –

cumprindo a lei, práticas pedagógicas con-

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souZa, andréia lisboa de. Personagens ne-

gros na literatura infanto-juvenil: rompen-

do estereótipos. In: cavalleIro, eliane dos

santos (org.). racismo e anti-racismo na edu-

cação: repensando nossa escola. são Paulo:

summus, 2001. p. 195-213.

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III. TIN Dô Lê Lê: BRINqUEDOS, BRINCADEIRAS E A CRIANÇA AFRO-BRASILEIRA (UmA REFLExÃO)1

Azoilda Loretto da Trindade2

Às crianças que foram invisibilizadas e silen-

ciadas ao longo da História

Abra a roda

tin dô lê lê

Abra a roda

tin dô lá lá

Abra a roda

tin dô lê lê

tin dô lê lê

tin dô lá lá3 ...

vamos convidá-lo(a) a lembrar dos sorri-

sos, da sua infância, das brincadeiras... Dei-

xe essas lembranças chegarem. Permita-se

lembrar dos sabores, odores/cheiros, cores,

texturas... Dos gritinhos, das corridas, dos

machucados... Das marquinhas que você

carrega no corpo como lembranças das pe-

raltices... não continue este texto sem lem-

brar. lembre, relembre, lembre...

lembrar para se religar à criança que está

dentro de nós, guardada no coração, a crian-

ça que ainda somos. avivar nossa memória,

puxar seu fio para que, quem sabe, possa-

mos perceber, no nosso corpo, o valor, a im-

portância dos brinquedos e das brincadeiras

para nós e, consequentemente, para nossas

crianças, as crianças sob nossa responsabi-

lidade de educadoras e educadores. afinal,

Há um menino, há um moleque moran-

do sempre no meu coração Toda a vez

que o adulto “balança” ele vem pra me

dar a mão.

Há um passado no meu presente. Um sol

bem quente lá no meu quintal,

Toda vez que o adulto fraqueja o menino

me dá a mão...

1 repertório afro-brasileiro – 2004 / Pgm 4.

2 Doutora em comunicação pela eco/ uFrJ. mestre em educação pelo Iesae/Fgv-rJ. organizadora desta coletânea.

3 abra a roda tin dô lê lê é uma cantiga de roda do nosso repertório popular.

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E me fala de coisas bonitas que eu acre-

dito que não deixarão de existir:

Amizade, palavra, respeito, coragem,

bondade, alegria e amor...

Pois não posso, não quero, não devo, vi-

ver como toda essa gente insiste em vi-

ver.

Não posso aceitar sossegado qualquer

sacanagem ser coisa normal4.

Devagarzinho /Tin dô lê lê/tin dô lê lê/

tin dô lá lá.

no clima dos brinquedos e brincadeiras, per-

cebamos a riqueza da roda aberta. olham-se

as diferenças e semelhanças, as igualdades,

a diferença dos seus participantes, sem hie-

rarquias. todos ali se vendo, de mãos dadas,

num círculo em cujo centro existem as pos-

sibilidades.

vamos, no entanto, devagarzinho, nos lem-

brar das crianças que ficaram de fora desta

roda ao longo da nossa História, de crianças

cuja memória histórica de brinquedos e brin-

cadeiras está ligada ao engenho de cana5, à

senzala, aos guetos, aos lugares invisibiliza-

dos, escondidos, ao estado, qualidade, con-

dição de escravas. Para evitar equívocos,

estamos nos referindo às crianças afro-bra-

sileiras, razão desta série, deste programa.

No centro da roda /Tin dô lê lê/tin dô lê lê/tin

dô lá lá. colocando estas crianças no centro

da roda, vamos, para começo de conversa,

tirá-las do lugar de carência e olhá-las como

força, como potência. como crianças cujo

axé, cuja energia vital foram e são tão fortes

que nos fazem pensar: como elas resistiram

e resistem à tanta perversidade social?

Desnaturalizar a concepção de criança es-

crava, como algo quase biológico, fecha-

do, etiquetado, e olhá-las como crianças

que foram, sim, escravizadas ontem e hoje,

parece-me fundamental. Fundamental para

desnaturalizar o lugar de subalternidade, de

marginalidade, de exclusão ao qual tentam

colar, aprisionar nossas crianças. Funda-

mental para reafirmar o compromisso e o

débito social de garantir-lhes sua infância,

seu direito de brincar, de sorrir, de ter orgu-

lho da sua memória e do seu povo.

Fechando a roda /Tin dô lê lê/tin dô lê lê/tin dô

lá lá. Agora bem próximos, vamos pensar que

temos uma memória social cindida, partida.

grande parte da nossa população brasileira

não se reconhece afro-brasileira. neste sen-

tido, o lado afro da nossa história, o escondi-

do, o submerso da nossa memória, necessi-

ta ser descortinado, exposto. essa memória

afro-brasileira precisa vir à tona e creio ser

no exercício de lembrar que o emergir, o sair

4 bola de gude, bola de meia, de milton nascimento e Fernando brant.

5 KIscHImoto,t. m. Jogos tradicionais Infantis: O jogo, a criança e a educação. Petrópolis,rJ: vozes, 1993 (p 26 a 59).

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da amnésia social, na qual nos encontramos,

podem acontecer coletivamente. e nada me-

lhor para isso do que lembrar das histórias

inscritas no nosso corpo, em especial no

nosso corpo de educadoras e educadores.

Histórias que entram em cena mediadas

por suas lembranças. Tais lembranças

necessitam ser faladas, escritas, lidas,

assumidas, afirmadas, escutadas, para

poderem assim ganhar status de memó-

ria, serem lapidadas. Elas nos habitam

individualmente, mas seu nascimento,

há muito, aconteceu no coletivo. Quan-

do socializadas, podem ser refletidas e

criticadas. (...)

Ver, porque ganhou distância, num

processo reflexivo, como construtor e

não reprodutor do próprio processo de

aprendizagem, possibilita a compreen-

são entre construir conhecimento e re-

produzir conhecimento, repetir história

e construir história6.

Destaco isto, pois creio que se nosso corpo

não estiver visceralmente envolvido com o

processo de construção de uma educação

efetivamente voltada para todos, sucumbi-

remos diante do árduo processo de imprimir

as africanidades brasileiras no nosso currí-

culo escolar, que se pretende multicultural.

o artigo Africanidades Brasileiras: esclare-

cendo significados e definindo procedimen-

tos pedagógicos, de Petronilha silva (2003)

refere-se às “raízes da cultura brasileira que

têm origem africana.(...)”. Dizendo de outra

forma, queremos nos reportar ao modo de

ser, de viver, de organizar suas lutas, pró-

prio dos negros brasileiros e, de outro lado,

às marcas da cultura africana que, indepen-

dente da origem étnica de cada brasileiro,

fazem parte do dia-a- dia”7.

ao tirar da prisão do esquecimento a me-

mória individual e coletiva afrodescendente

que habita nossa população, estaremos dan-

do um passo fundante para a concretização

dos nossos ideais democráticos em relação

à educação.

Dando um exemplo/Tin dô lê lê/tin dô lê lê/

tin dô lá lá. conceição nasceu no dia 8 de

dezembro, no final dos anos 70 do sécu-

lo XX, dia consagrado a nossa senhora da

conceição e, em algumas religiões afrodes-

cendentes ou afro-brasileiras, a oxum, orixá

feminino, que, segundo verger (1981, p. 174)

controla a fecundidade e reina sobre todos

os rios, exercendo seu poder sobre a águas

doce, fundamental para a vida na terra.

sua família, adepta da umbanda, uma reli-

gião afro-brasileira, desejou homenagear

6 FreIre, madalena. “memória: eterna idade.” Diálogos. são Paulo. espaço Pedagógico, ano II, n° 5, julho 1999.

7 sIlva. Petronilha beatriz gonçalves e. Africanidades Brasileiras: esclarecendo significados e definindo procedimentos pedagógicos. Revista do Professor. Porto alegre, 19 (73):26-30, jan./mar. 2003.

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oxum, colocando este nome na menina.

segundo ela, houve o impedimento no car-

tório e a família imediatamente deu-lhe o

nome de Conceição para poder homenagear

Oxum, sem repressão. esta história é emble-

mática em relação ao surgimento do nosso

sincretismo religioso.

Por muito tempo, mais de vinte anos, ela re-

lata que tinha vergonha de contar esta his-

tória e dizia que seu nome era em homena-

gem a nossa senhora da conceição.

ao compartilhar, coletivizar sua lembrança,

sua história identitária, conceição libertou

sua memória e sua própria identidade e cer-

tamente sua história lembrada e contada foi

disparadora de outras memórias e de outras

identidades.

relato este exemplo para fundamentar o de-

safio que se coloca à nossa frente ao nos pre-

dispormos a fazer valer a lei nº 10.639/2003

que regulamenta a inclusão da temática

“História e cultura afro-brasileira” no currí-

culo escolar. ora, nenhuma lei se torna exe-

quível sem envolvimento social, sem perten-

cimento coletivo. esta lei, especificamente,

só se concretizará, no cotidiano escolar, se

houver a real parceria com os professores e

professoras. se houver a vivência cotidiana

da crítica do cotidiano escolar, permeado

por conflitos, encontros e desencontros, ra-

cismos, preconceitos e discriminações, mui-

tas vezes alienadamente confundidos com

brincadeiras ingênuas, bobagens ou insigni-

ficâncias.

Dando outro exemplo/Tin dô lê lê/tin dô lê lê/

tin dô lá lá. Participava de um curso de for-

mação de educadores de educação Infantil,

quando a professora colocou um vídeo, onde

tinha a brincadeira infantil Barra manteiga

na fuça da nêga. vale destacar que o curso

tinha uma perspectiva crítica e progressista.

Fiquei constrangida, mas fui obrigada, pela

minha consciência, a questionar o material.

o argumento-resposta foi perfeito: “essa

brincadeira faz parte do nosso repertório

cultural e afetivo, todos já brincamos dessa

brincadeira”, foi dito. no entanto, contra-ar-

gumentei: “É, mas não foi dito que a nêga da

brincadeira é uma mulher negra, logo gente,

logo tem nariz e não fuça”. não foi dito que

não se coloca barra de manteiga no nariz de

ninguém, não foi dito que se tratava de uma

brincadeira que retratava um período de

nossa história (o escravismo). não foi dito

que o silêncio, a não-crítica, a não-reflexão

num curso de formação de professores aca-

bam por naturalizar a situação e reforçar a

violência simbólica que se pratica contra to-

dos os afro-brasileiros e afrodescendentes.

e, assim, não se questiona que com tantos

exemplos possíveis de brincadeiras, aquele

foi escolhido sem nenhuma crítica, num ví-

deo de um curso que se pretendia crítico,

multiplicador, formador de práticas e opini-

ões pedagógicas.

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esta situação significativa demonstra a to-

tal ou quase total insensibilidade para com

metade da população brasileira: os afro-bra-

sileiros. mas por quê?

Mão na testa/Tin dô lê lê/tin dô lê lê/tin dô lá

lá. e no repertório popular e afetivo da nos-

sa gente, temos muitos exemplos de brinca-

deiras significativas que nos levam a pensar:

Chicotinho queimado, as sinhazinhas das fes-

tas juninas, as músicas como Samba -lelê tá

doente,/ Tá com a cabeça quebrada/ Samba-

-lelê precisava /É de umas boas palmadas. ou

a tradicional Boi, boi, boi,/ boi da cara preta,/

pega essa menina /que tem medo de careta.

Das histórias como a do Negrinho do Pasto-

reio e da Moura Torta. creio que as brinca-

deiras e brinquedos estão em sintonia com

a sociedade na qual estão inseridos, então

não é surpreendente o que ocorre e ocorreu

numa sociedade com uma história de auto-

ritarismo como a nossa.

Vamos girando/Tin dô lê lê/tin dô lê lê/tin dô lá

lá. gostaria de concluir este texto pensando

em dois aspectos fundamentais para nós: a

importância do brincar e a importância do

corpo que brinca.

o brincar, no dizer de verden-Züller (2004, p.

230), “é atentar para o presente”. o não estar

preocupado com o futuro, com as consequ-

ências da ação, mas em vivê-la enquanto ela

está sendo vivida por nós. É encantar-se com

o aqui e agora, é entregar-se ao presente.

atentemos para o fato de que nós, educado-

ras e educadores, imersos em planejamen-

tos, currículos, controles, muitas e muitas

vezes, além de não brincarmos - capacidade

que em muitos de nós está aprisionada no

nosso corpo -, impedimos que o outro brin-

que, em nome, num sem número de vezes,

de uma desnecessária disciplina, lei, organi-

zação, em nome da nossa “autoridade”, con-

tribuindo assim, para a degeneração da vida

humana, que tem no brincar a afirmação da

vida.

vamos brincar um pouquinho, vamos nos

encontrar com os sacis, com as cucas, com

o negrinho do Pastoreio, com os bois das

caras-pretas de vez em quando. É, vamos re-

descobrir o prazer de brincar que, certamen-

te, tomou nosso corpo em algum momento

da nossa vida.

o corpo traduz a nossa presença concreta

no mundo. a nossa existência e potenciali-

dade se circunscrevem no nosso corpo. com

ele amamos, sonhamos, produzimos, senti-

mos, percebemos, nos constituímos como

sujeitos. o que é importante para nós, edu-

cadores e educadoras, é o respeito por este

corpo, o nosso e o do outro, dos nossos alu-

nos, das nossas alunas, nossos colegas, nos-

sas colegas, nossos companheiros e compa-

nheiras de existência.

corpos que carregam histórias e memórias,

marcas que anunciam e denunciam, que fa-

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lam, mesmo sem palavras. creio que esta di-

mensão de acolhida, respeitosa e amorosa,

do corpo do outro, sobretudo quando este

outro tem uma história-memória social de

violência, mutilação e insensibilidades com

relação ao seu corpo e aos corpos dos seus

iguais, é uma chave para a permanência e o

sucesso das nossas crianças, em especial as

crianças negras, na escola. Permanência e

sucesso, não de vítimas ou de carentes, mas

de cidadãos e cidadãs de direito, vitoriosos

sobreviventes de racismo, exclusões e injus-

tiças sociais.

Que tal, junto com elas e eles, construirmos

um belo repertório de brinquedos e brinca-

deiras? e assim, quem sabe, no coletivo, fa-

zermos emergir, no brincar, a nossa memó-

ria afro-brasileira. confie, o nosso corpo e o

corpo de nossas crianças, eles sabem brin-

car, afinal o brincar é um saber acontecente.

É só começar.

Inventando

tin dô lê lê

Inventando

tin dô lá lá

Inventando

tin dô lê lê

tin dô lê lê

tin dô lá lá...

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vÍDeos/FIlmes

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cIP e do Ibase:

Malcom X

Um grito de Liberdade

Documentário sobre luther King

Quando o crioulo dança -reDeH/mec

Racismo - Ibase vídeo

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152

Alguém falou de racismo

Meninas do Rio e FUNK RIO - cecip

Kiriku e a feiticeira Vista minha pele

Kiara, corpo de rainha.

Ilha Negra

Beleza Negra

Retrato em Preto em Branco

mÚsIcas

Milagres do povo- caetano veloso e gilberto

gil

Haiti - caetano veloso e gilberto gil

cD do antônio nóbrega - O marco do meio-

-dia

cD do Jorge aragão - Jorge Aragão ao vivo

cDs de nei lopes

cD Abra A Roda tin Dô lê lê, de lydia Hor-

télio

cD Tambolelê

Dia de Graça (candeia - sambista negro)

Wonderful world - louis armstrong

SitES

www.mulheresnegras.org

www.afirma.com.br

www.geledes.org.br

www.anped.org.br (GT de Relações Raciais)

www.terrabrasileira.net/folclore/manifesto/

jogos.html

www.projetohistoriadosamba.hpg.ig.com.br

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C. EDUCAÇÃO qUILOmBOLA

I. OS qUILOmBOS E A EDUCAÇÃO1

Maria de Lourdes Siqueira2

intRODuÇÃO

a sociedade brasileira, em sua grande maio-

ria, é animada por uma força ancestral que

mantém vivas tradições, costumes, crenças,

valores que há cinco séculos são repassados,

em nosso país, de uma geração a outra, so-

bretudo pela ação da mulher negra e das or-

ganizações de resistência negra.

a origem dessa tradição se inicia com os

africanos escravizados que chegam ao brasil

sob a ação do sistema colonial escravista,

no período compreendido entre os séculos

XvI e XIX. eram africanos de origem Yorubá

(nagô ou ketu), gegê, ewé, mina, congo, an-

gola, moçambique.

as organizações clássicas criadas em resis-

tência à dominação escravocrata e colonial

sempre existiram no brasil entre Irmanda-

des religiosas, terreiros de candomblé,

congadas, capoeira, Quilombos. nos anos

30, foram criados a Frente negra brasileira,

a Imprensa negra, o teatro experimental do

negro. nos anos 70, o movimento negro

ressurge com o Ilê aiyê e o movimento ne-

gro unificado – mnu.

a nossa proposta maior nesta reflexão é in-

cluir o significado do papel dos Quilombos

nos processos sócio-político-culturais de

construção da sociedade brasileira e a di-

mensão educativa que se realiza nos Qui-

lombos em todo o território nacional. Para

o professor, militante e senador abdias nas-

cimento, há um permanente:

“movimento de in-surreições, levantes,

revoltas proclamando a queda do siste-

ma escravo, que podem ser localizados

em toda a extensão geográfica do país,

particularmente naquelas de significa-

tiva população escravizada. Frequente-

mente aqueles movimentos tomavam

a forma de Quilombos, à semelhança

1 valores afro-brasileiros na educação – 2005 / Pgm 3.

2 Professora da universidade Federal da bahia/Diretora da associação cultural Ilê aiyê/ 2ª vice-presidente da associação de Professores Pesquisadores negros – seção bahia.

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de PALMARES: eram comunidades or-

ganizadas para africanos livres que se

recusavam a submeter-se à exploração

e à violência e buscavam a instituciona-

lização do poder inspirado na estrutura

do comunalismo tradicional da África”

(Nascimento, 2002).

Desde o século XIX, os Quilombos existem

no brasil, realizando ações de identidade,

trabalho, organização social e resistência

aos sistemas de dominação impostos aos

africanos e seus descendentes.

Há uma oralidade, de tradição, que realiza

permanentemente o exercício de guardar de

memória as lições de sabedoria e experiên-

cia dos ancestrais e transmiti-las aos seus

descendentes, sempre na perspectiva de

formar novas gerações sobre valores, prin-

cípios, crenças, costumes e tradições que

mantenham viva a ancestralidade originária

das civilizações tradicionais africanas.

Hoje, os Quilombos, denominados comu-

nidades remanescentes de Quilombos, ou

terras de Pretos, se reorganizam no país

inteiro, nas diferentes regiões, revivendo o

legado de seus antepassados. são núcleos

vivos de iniciativa comunitária, identitá-

ria, sem perder de vista as dinâmicas das

transformações histórico-político-culturais

ocorridas no decurso de tantos séculos, que

essas tradições atravessam em tempos e es-

paços diferentes.

as comunidades de Quilombos estão sujei-

tas a transformações, guardando um jeito

próprio de viver, transmitindo essa heran-

ça ancestral de resistência às gerações que

se sucedem. conhecemos, por exemplo,

a família de seu bernardino e Dona clara,

moradores dos matões dos moreira, cujos

descendentes convivem hoje entre matões e

santo antonio dos Pretos, constituindo qua-

tro gerações, presentes nesses Quilombos:

bisavó, avó, filho e neto juntos, vivendo o

cotidiano da vida quilombola. a bisavó cuida

de uma casa de santo de matriz africana, a

avó hoje é quilombola nos matões dos mo-

reira; o neto é agente cultural da comunida-

de e o bisneto, com a idade de cinco anos,

acompanha todos. essa família é parte de

minha própria família, no lugar onde nasci,

cujos herdeiros dessas terras de Pretos eram

meus avós, meus tios, e minha mãe.

De que modo os conhecimentos, os saberes,

são passados nas comunidades Quilombo-

las?

continuam vivas, nestes lugares, tradições

de candomblé, umbanda, tambor de mina,

terecô, tambor de crioula, bumba meu boi,

reisado, Festas do Divino, Festa de caboclo,

ladainhas para santos e encantados. Há um

processo educativo que, no cotidiano, zela,

transmite e celebra, a cada ano, na medida

do possível, estas culturas e expressões reli-

giosas de origem africana, reelaboradas na

dinâmica concreta da vida das pessoas, que

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às vezes vão se transformando, de um lugar

a outro, mas guardam sempre os fundamen-

tos.

as pessoas dos Quilombos, das terras de Pre-

tos, frequentam as escolas públicas ou até

pequenas “bancas” privadas para aprender

a ler, a escrever, a desenvolver as operações

de raciocínio matemático, porque elas preci-

sam entrar na engrenagem da vida em socie-

dade. mas elas não abandonam as tradições

de seus ancestrais que, para elas, constituem

os valores e princípios educacionais.

entre os múltiplos saberes, destaca-se: o sa-

ber respeitar as pessoas mais velhas; a histó-

ria da família dos seus antepassados; o culto

à natureza; os saberes em relação à chuva e

à posição do sol; os efeitos da lua; o tempo

de plantar e de colher; o perigo dos raios, a

leitura da força dos trovões; a importância

da água em todos os momentos da vida; os

segredos das plantas; o poder das folhas e

das raízes para curar, para fortalecer o corpo

e a alma das pessoas.

estes saberes são praticados dia a dia. É certo

que há rupturas, há separações, há quebras,

mas há uma Força maIor: a lembrança dos

antePassaDos, dos ancestraIs, dos mais

velhos da comunidade que têm força moral

ante suas famílias.

nesse processo de passagem de conheci-

mentos, a mulher negra é a educadora por

excelência. ela sempre guardou os saberes e

os cultivou e transmitiu em todos os lugares

por onde passou. ela é identificada com a

ancestralidade, porque incorpora essa an-

cestralidade, nos papéis de mãe, mulher (es-

posa, companheira) professora, enfermei-

ra, mãe de santo, filha de santo, ekede ou

makota, mestre, contra-mestre ou pratican-

te de capoeira, benzedeira, curadora, conhe-

cedora dos segredos da natureza. ela realiza

essas lutas e ações cotidianas com dignida-

de e pela DIgnIDaDe da família negra.

os Quilombos hoje mais reconhecidos nos

estados são principalmente:

no amazonas: bacia do trombetas; no

Pará: oriximiná Itamoari, são José; no ama-

pá – curiaú, no maranhão: santo antonio

dos Pretos, matões dos moreira, Ingarana;

em Pernambuco: castaninho, conceição

das crioulas; na bahia: rio das rãs e rio de

contas. mangal, barra, santana, são José,

da serra; em sergipe: mocambo; no rio de

Janeiro: campinho da Independência, san-

tana, são José serra da serra; no rio grande

do sul: serra geral, camizão; ceará: con-

ceição dos caetano; goiás: Kalungas; são

Paulo: Iporanduva, maria rosa, são Pedro

de eldorado, Iporanga; mato grosso: mata

cavalo; minas gerais: Porto coris, garim-

peiros, campo grande; ambrósio; tocan-

tins: lagoa da Pedra; Paraíba: caiana dos

crioulos.

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156

uma proposta de Políticas Públicas com

ações afirmativas em educação, para co-

munidades remanescentes de Quilombos,

pressupõe, fundamentalmente, conteúdos

educacionais e práticas pedagógicas; currí-

culo, programas de formação de professores

e produção de recursos pedagógicos, que in-

cluam o respeito às diferenças e às especifi-

cidades culturais destas populações em seus

lugares, vivendo a tradição das comunida-

des remanescentes de Quilombos.

COnCluinDO

as comunidades remanescentes de Qui-

lombos só existem porque elas são repre-

sentações vivas de princípios fundadores de

saberes seculares que perpassam, direta ou

indiretamente, ao estilo de uma seiva, que

alimenta uma semente que renasce dia a

dia, em forma de um processo educativo,

que se realiza a partir de um outro olhar, de

uma outra perspectiva, do ponto de vista

daqueles que conhecem a realidade onde vi-

vem, e detêm saberes úteis a toda a socieda-

de: convivência, partilha, o valor do outro, o

reconhecimento da diferença, a valorização

da natureza, a esperança, a alegria de viver,

a confiança no ser, independente do ter.

estes princípios hoje são incorporados em

distintas áreas do conhecimento: arquitetu-

ra, administração, arte, biologia, botânica,

cinema, culinária, cultura, Dança, enge-

nharia, gestão, Indumentária, linguagem,

medicina, música, Psicanálise, religião, te-

atro.

a experiência de Palmares, no estado de ala-

goas, e a liderança de Zumbi dos Palmares

constituem a referência de um líder e de

uma república que viveu a mais séria e du-

radoura experiência democrática em solo

brasileiro, além de ter sido a maior manifes-

tação de luta contra o escravismo na amé-

rica latina.

a continuidade dos Quilombos está articu-

lada a Políticas Públicas que proporcionem

a inclusão das dimensões mitológicas, sim-

bólicas e rituais em processos educacionais

nos Quilombos e na sociedade brasileira.

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II. qUILOmBO: CONCEITO1

Gloria Moura2

Da terra, na terra, quilombolas desenvolvem atividades. Plantam e co-

lhem os frutos de seu trabalho. Marcam sua história.

a história da propriedade rural brasileira tem

início com as capitanias Hereditárias e com

as sesmarias, as quais se constituíam de ter-

ras doadas pela coroa Portuguesa a benefici-

ários da corte. os donatários que não conse-

guissem cultivar essas terras as devolveriam

à coroa, daí a expressão terras devolutas.

Desde aquela época, terra no Brasil é

conflito entre Estado, latifundiários, pe-

quenos proprietários, camponeses. A Lei

de Terras (18503) pretendeu que o Estado

regulamentasse as sesmarias, desapro-

priasse terras improdutivas, vendesse

terras para subsidiar a imigração es-

trangeira. Proibiu doações.

Fazendeiros recusaram-se a registrar as ter-

ras, o que questionava os limites de suas

posses. em 1870, raros fazendeiros haviam

regulamentado as terras registradas, levan-

do a lei ao fracasso. as terras no brasil eram

possuídas por poucos, um bem de capital não

acessível à população. as doações previam

estabilizar o pretendente, que teria escravos

e se comprometeria a fazer benfeitorias.

ressaltamos, neste texto, o processo de for-

mação de quilombos na colônia e no Impé-

rio. escravos fugiam de fazendas e consti-

tuíam resistência à escravatura. Palmares é

símbolo-mor, quilombo com quase 100 anos

de existência e líderes como ganga Zumba e

Zumbi. em Palmares, terra era considerada

como sinônimo de liberdade. terra é patrimô-

nio onde se fincam aspirações de despossuí-

dos de espaço para plantar e viver. os negros

libertários fortaleciam-se, causavam apreen-

são e temor. magalhães magalhães (In: Mar-

cas da Terra, Marcas na Terra) comenta:

1 educação Quilombola – 2007 / Pgm 1.

2 Professora da Faculdade de educação da universidade de brasília. Pesquisadora do cnPq. consultora desta série.

3 lei n.º 601 (de terras), 1850. maria Jovita Wolney valente (org.) Legislação Agrária, Legislação de Registro Público, Jurisprudência (coletânea). ministério extraordinário para assuntos Fundiários, brasília, 1983.

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159

A terra representa, para esses sujeitos,

patrimônio cultural e histórico, na me-

dida em que há valores morais a ela atri-

buídos a serem transmitidos de geração

a geração. Ela não é percebida apenas

como objeto em si mesma, de trabalho

e de propriedade. Através de diversos

saberes e concepções de mundo criados

e reelaborados no trabalho cotidiano

com a terra, homens e mulheres, cam-

poneses migrantes (...) buscam que sua

dignidade seja reconstruída, garantida

e respeitada, para que possam também

transmitir a outras gerações uma obra,

uma história.

magalhães refere-se, na obra citada, a cam-

poneses migrantes, cujo valor da terra não

difere para negros assentados há mais de

200 anos. a terra é o sustento, o alimento

que vai mantê-los vivos. Da terra e na ter-

ra se desenvolvem atividades vitais, plantio

e colheita, marcos históricos. realizam as

tradições no chão de muitos anos na luta, o

que garantirá o direito de ser diferente sem

ser desigual frente à lei, sem receber a pecha

da marginalidade.

Frente à questão da terra no brasil, nosso

foco é a recente evolução do conceito de qui-

lombo quanto às comunidades rurais negras.

COnCEitO

Quilombos contemporâneos são comunida-

des negras rurais habitadas por descenden-

tes de escravos que mantêm laços de paren-

tesco entre si. a maioria vive de culturas de

subsistência em terra doada/comprada/se-

cularmente ocupada. seus moradores valo-

rizam tradições culturais dos antepassados,

religiosas (ou não), recriando-as. Possuem

história comum, normas de pertencimento

explícitas, consciência de sua identidade ét-

nica.

reviu-se e ampliou-se este conceito, por-

que manifestações culturais recriam-se em

sucessivas gerações. e a Fundação Instituto

brasileiro de geografia e estatística - Ibge

(1980) conceituou terras de preto, no mara-

nhão, como os quilombolas as chamavam:

As de nominadas terras de preto com-

preendem domínios doados, entregues

ou adquiridos, com ou sem formalização

jurídica, às famílias de ex-escravos, a

partir da desagregação de grandes pro-

priedades monocultoras. Os descenden-

tes de tais famílias permanecem nessas

terras há várias gerações sem proceder

ao formal de partilha e sem delas se apo-

derar individualmente (Censo Agropecu-

ário, IBGE, 1980).

Historicamente, no brasil, em função da res-

posta do rei de Portugal à consulta do con-

selho ultramarino (2 de dezembro de 1740),

define-se quilombo (ou mocambo) como

“toda habitação de negros fugidos que pas-

sem de cinco, em parte despovoada, ainda

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que não tenham ranchos levantados nem se

achem pilões neles”. ramos noticia quilom-

bos em data anterior:

A maioria dos historiadores brasileiros

assinala a data de 1630 para o início dos

quilombos que iriam constituir Palma-

res. Mas tudo leva a crer que as fugas de

negros escravos naquela região vinham

se dando em datas muito anteriores (RA-

MOS, 1971).

Quilombo, vocábulo que designou, por mui-

to tempo, apenas acampamentos de escra-

vos fugidos, tem origem africana. Para reis

(1996):

Quilombo derivaria de kilombo, socieda-

de iniciática de jovens guerreiros mbun-

du, adotada pelos invasores jaga (ou im-

bangala), formados por gente de vários

grupos étnicos desenraizada de suas co-

munidades.

esta matriz histórica dos quilombos foi reto-

mada para se referir às comunidades rurais

negras no brasil. o conceito de quilombo

tem sido objeto de reflexão histórica e po-

lítica desde os anos 70. o movimento negro

contribuiu significativamente para ressaltar

a importância do estudo dos quilombos na

história. reificou o conceito, considerando

agrupamentos quilombolas como nichos

culturais autônomos, pedaços da África no

brasil.

como resultado de pressão dos movimen-

tos, a luta para incluir na constituição ter-

ras ocupadas por descendentes de escravos

foi em parte consagrada no artigo 68, do ato

das Disposições constitucionais transitó-

rias: “aos remanescentes de quilombos que

estejam ocupando suas terras é reconhecida

a propriedade definitiva”. em 1996, o presi-

dente da república concedeu título de reco-

nhecimento de domínio às comunidades de

Pacoval e Água Fria, no Pará, cumprindo os

artigos 215 e 216 da constituição e o artigo

68 do ato das Disposições transitórias. Pelo

Decreto-lei n. 3.912 (2001), a FcP (Fundação

cultural Palmares), do minc (ministério da

cultura), pôde aplicar o artigo 68 e reconhe-

cer mais comunidades. em 2003, foi assina-

do o Decreto n. 4.887, que “regulamenta o

procedimento para a identificação, reconhe-

cimento, delimitação, demarcação e titula-

ção das terras ocupadas por remanescentes

das comunidades dos quilombos de que tra-

ta o artigo 68 do ato das Disposições cons-

titucionais transitórias”, que determina ser

o Incra (Instituto nacional de colonização

e reforma agrária), do ministério do Desen-

volvimento agrário, o órgão competente

para emitir títulos de propriedade.

comunidades rurais negras são objetos de

constantes invasões de terras por fazendei-

ros, porque os ocupantes não possuem do-

cumentos comprobatórios de propriedade,

embora essas ações também ocorram mes-

mo quando os possuem.

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remanescentes de quilombos vivem situa-

ção indefinida. Houve vitórias, mas não se

resolveu a questão. a visibilidade das comu-

nidades aumentou, há mais grupos interes-

sados em seu destino, mais estudos sobre o

assunto, mas muito a fazer. não foram fei-

tos, ainda, levantamentos sistemáticos das

comunidades existentes e dos problemas

jurídicos e sociais que enfrentam. no mara-

nhão, com o Projeto vida de negro, a socie-

dade maranhense de Direitos Humanos e o

centro de cultura negra, apoiados pela Fun-

dação Ford e a oxfam (organização oxford

para a cooperação do Desenvolvimento),

em 45 municípios do estado, levantaram 401

terras de preto, designação usual na região

para as comunidades rurais.

o centro de cartografia da universidade de

brasília publicou mapas de comunidades

remanescentes de quilombos, identifican-

do cerca de 2.000, mas ainda não se sabe o

número exato de ocorrências de quilombos

contemporâneos.

em resumo, pode-se dizer que há um pro-

cesso, em curso, de visibilidade e estudo, da

questão das comunidades remanescentes de

quilombos, destacando-se avanços e insegu-

ranças, ao mesmo tempo.

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162

III. SABERES TRADICIONAIS DE SAúDE1

Bárbara Oliveira2

as comunidades quilombolas encontraram

explicações e soluções para os distúrbios

de saúde do dia-a-dia e para os elaborados

processos do ato de dar continuidade à vida.

o nascer, para muitos quilombolas, é um

evento familiar e coletivo, desde que se des-

locaram e resistiram ao sistema escravista

e, posteriormente, à sociedade nacional que

não os incorporou de modo efetivo.

os saberes tradicionais e os costumes, pas-

sados e perpetuados através das gerações,

historicamente estruturaram o ciclo de vida

das comunidades quilombolas e norteiam,

atualmente, a estrutura social. Hoje em dia,

em grande parte das comunidades quilom-

bolas do país, há pessoas que tradicional-

mente dominam o conhecimento acerca de

rezas curadoras e de ervas e remédios con-

cebidos de forma tradicional, e pessoas que

detêm enorme saber sobre o processo re-

produtivo e o parto. mais conhecidas como

parteiras, remedieiras, curandeiras(os),

rezadeiras(os), benzedeiras(os), essas são

pessoas muito presentes na estrutura social

dessas comunidades.

os quilombolas depositam a esperança da

solução de diversas enfermidades, além de

auxílio no processo da procriação, nessas

pessoas. esse trabalho, em especial o das

“remedieiras” e das parteiras, remete-se às

mulheres. elas representam a continuida-

de dos ensinamentos de suas ancestrais.

as mulheres que atuam nos cuidados e nos

atendimentos às grávidas, parturientes,

mães e crianças (e realizam contatos mais

permanentes e intensos com as famílias)

são, a partir dessas relações sociais, legiti-

madas como lideranças e referências em

muitas comunidades quilombolas.

Detentoras de conhecimento tradicional de

saúde, as parteiras têm suas atuações e tra-

balhos tidos como ‘dádiva divina’. Partici-

pam de modo efetivo dos núcleos familiares

1 educação Quilombola – 2007 / Pgm 2.

2 mestre em antropologia pela unb. consultora na subsecretaria de Políticas para comunidades tradicionais na sePPIr.

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como referências muito próximas. as partei-

ras estão ligadas diretamente ao ciclo vital

da comunidade, são tratadas como mem-

bros das famílias das mulheres a quem pres-

tam auxílio. além de grande proximidade fa-

miliar, há toda a aura de autoridade de fala e

de ação que cerca essas representantes dos

saberes tradicionais.

a resistência, que marca tão profundamen-

te as comunidades quilombolas, se expressa

nas práticas autônomas de saúde, uma vez

que “o nascer” e “o morrer” se davam, e em

muitas comunidades ainda se dão, no âm-

bito do próprio grupo, a partir de sua cos-

movisão. clóvis moura (1981) ressalta que o

quilombo foi, incontestavelmente, a unida-

de básica de resistência dos negros escravi-

zados. o vínculo das comunidades quilom-

bolas com sua historicidade, baseada em

resistência e luta, é um aspecto fundante do

universo simbólico e da consciência coletiva

dessas comunidades. as práticas e saberes

relacionados à saúde têm íntima relação

com esse processo.

o trabalho dessas pessoas, que são referên-

cia em saúde nas comunidades quilombolas,

em especial o das parteiras, se dá de modo

coletivo, a partir de todo o universo cultural

que permeia as comunidades em que elas

atuam. na pesquisa realizada junto às par-

teiras Kalunga3, foi possível observar a im-

portância da ancestralidade nesse trabalho.

as parteiras sempre se remetem à brigda4,

referência ancestral que estrutura a organi-

zação do trabalho e dá força às mulheres.

em geral, nenhuma parteira presta auxílio,

sozinha, a uma parturiente. Isso ocorre ape-

nas em situações em que o parto progride

rápido demais. nesses casos, não há tempo

para chamar uma ‘cumpanheira’ e acaba

sendo uma atuação solo. caso o processo

do parto aconteça de forma costumeira,

conta-se com a presença de várias mulheres.

e cada uma tem uma função específica no

parto, assim como tem também o marido,

o(a) filho(a) mais velho(a), a mãe da partu-

riente, a vizinha, a benzedeira.

um dos aspectos importantes desse traba-

lho conjunto é a transmissão de conheci-

mento e o aspecto pedagógico dessa atua-

ção. a tradição oral envolve, há gerações, o

conhecimento sobre o parto, os remédios

tradicionais, as plantas, as garrafadas e o

benzimento. a passagem desse conheci-

mento segue vários critérios de escolha. os

saberes em relação ao parto, dominados, por

exemplo, pela “parteira veia”5, são passados

a algumas escolhidas. essa seleção não se-

gue rigorosamente o parentesco direto. a

3 souZa, bárbara o. Parteiras Kalunga: os saberes tradicionais e os processos de medicalização do parto. universidade de brasília, 2005, 117p.

4 Parteira, matriarca dos Kalunga, que é grande referência entre as parteiras. Pelos relatos orais, viveu na região há três gerações.

5 mais experiente e sabedora das práticas.

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“escolhida” pode ser uma sobrinha ou uma

parenta distante da parteira. o importante é

que a pessoa escolhida tenha o ‘dom’, ‘dado

por Deus’, e a partir daí, muita dedicação

para acompanhar e auxiliar a “parteira veia”

e ir acumulando conhecimento e experiên-

cia para, aos poucos, lidar com o processo

de gravidez, parto e puerpério. todo esse ci-

clo de transmissão de conhecimento entre

as parteiras está no âmbito da oralidade:

“Quem me ensinou foi minha avó e mi-

nha bisavó. Sempre que elas saíam, saí-

am comigo, saía mais elas, elas me ‘en-

sinava’. Saía de lá e elas tornava a me

ensinar. Tudo de ‘có’, de cabeça, não ti-

nha nada de letra nenhuma” (Maria Pe-

reira, parteira Kalunga).

É importante traçar um perfil de quem são

essas mulheres que atuam com o nascer,

com as ervas, raízes e rezas. Primeiramente,

são mulheres, que já deram a luz – muitas

vezes realizando seu próprio parto –, são ori-

ginárias da própria comunidade e atendem

a mulheres quilombolas, principalmente

nas últimas semanas de gravidez, durante o

parto e parte do puerpério. sua atenção com

as mulheres nesse período é estruturada a

partir de práticas de saúde baseadas nos co-

nhecimentos tradicionais, que lhes foram

transmitidos através do “dom divino” (dado

por Deus) e do acompanhamento de partei-

ras mais experientes.

carlos Zolla, citado por gordilho e bonals

(1994), define parteiras como “terapeutas

tradicionais” que atuam em sua comuni-

dade e possuem reconhecimento social de

seus conhecimentos, habilidades ou facul-

dades curativas. Pinto (2002) configura as

parteiras como “mulheres fortes, destemi-

das, independentes e valentes (…). são mães,

esposas avós, comadres, que aprenderam

com suas antepassadas a desempenhar afa-

zeres tanto no mundo natural, executando

as mais diversificadas formas de trabalho,

como no plano sobrenatural, benzendo, re-

citando rezas e invocando encantarias, para

obter ajuda na hora do parto e curar os ma-

les de seu povo” (p. 441 e 442).

o trato tradicional de plantas, de ervas cura-

doras e do corpo vem sendo construído ao

longo de séculos nas comunidades quilom-

bolas de todo o país. muitos conhecimentos

e sabedoria estão envolvidos nas práticas

das remedieiras(os), das curandeiras(os),

das rezadeiras(os) e das parteiras quilombo-

las. a importância dos conhecimentos qui-

lombolas em relação ao bioma no qual estão

inseridos perpassa toda essa tradição. Há

muito que aprender com as comunidades

quilombolas que vivem há séculos em várias

regiões do país e mantêm uma relação har-

moniosa com as plantas e os animais.

a partir de suas vivências e saberes adquiri-

dos na relação com o meio ambiente, estru-

tura-se uma enorme riqueza de conhecimen-

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tos relacionados ao bioma e ao corpo, com

ênfase nas plantas, raízes e outros elementos

curadores. É uma relação histórica e íntima

estabelecida com o ambiente, pois conheci-

mentos fitoterápicos e sobre plantas medici-

nais existem nas comunidades há gerações.

cabe ressaltar que os saberes das comuni-

dades quilombolas e de outros povos tradi-

cionais, sobretudo nos últimos anos, têm

atraído o interesse de empresas, muitas ve-

zes estrangeiras, e podem se tornar alvo de

biopirataria. Para proteger as comunidades

tradicionais desse tipo de ameaça, os prin-

cípios de proteção e compensação pelo uso

do patrimônio genético foram estabelecidos

na convenção sobre Diversidade biológica,

assinada durante a eco 92. na prática, entre-

tanto, muita coisa ainda ocorre sem que se

efetive o acordado na convenção.

outro aspecto é o processo de medicalização

crescente que se impõe sobre essas comu-

nidades, com vistas a normatizar o parto e

as práticas de saúde, a partir da perspectiva

biomédica. as diversas intervenções e rela-

ções estabelecidas entre o estado e as comu-

nidades quilombolas, potencializadas nas

últimas décadas, estabeleceram processos

de ressemantização de costumes, práticas e

tradições, e estes têm influência direta so-

bre o remanejamento social, político e cul-

tural da comunidade. são fatores que inci-

dem sobremaneira na atuação das parteiras

e “remedieiras” e se colocam como objetos

centrais no processo de regulamentação das

práticas de saúde nas comunidades.

são fatores que dialogam também com os

movimentos de expansão do projeto de es-

tado, no sentido de homogeneizar práticas,

controlar corpos e processos orgânicos,

como o nascer e o morrer. nesse processo de

“conquista”, a construção do “outro” pres-

supõe também a busca pela sua assimilação

e pela expansão do “nós” civilizador (souZa

lIma, 1995).

o processo de ressemantização de valores

e costumes de saúde faz parte de uma ló-

gica ampliada de relações de poder, de ne-

gociação identitária, de assimilações do

“novo”, a partir de contatos interétnicos e

de reafirmações do que é tido como ‘tradi-

cional’. nesse sentido, a importância das

parteiras, remedieiras(os), curandeiras(os) e

rezadeiras(os) para as comunidades quilom-

bolas e a continuidade de suas atuações têm

vínculo com o confronto entre estes distin-

tos significados para a identidade quilombo-

la, e em como esses fatores se configurarão

nas relações de poder externas e internas.

a organização das comunidades quilombo-

las é importante no processo de valorização

dos saberes tradicionais de saúde. a educa-

ção também é fundamental na preservação

da cultura quilombola e, nesse caso, dos

saberes tradicionais de saúde. Para que a

cultura quilombola se fortaleça, são neces-

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166

sários espaços para frutificar e fortalecer

essas práticas. as comunidades têm o direi-

to de ficar onde sempre estiveram. além do

direito à terra, cabe refletir também sobre

a educação e o currículo escolar e sobre

a relação que a cultura quilombola e os

conhecimentos tradicionais de saúde têm

com eles.

os conhecimentos tradicionais de saúde (se-

jam eles quilombolas, indígenas, caiçaras,

de terreiro, dentre outros) são pouco estu-

dados e não compõem de forma expressiva

os materiais didáticos de nossas escolas.

Portanto, apesar de serem fundamentais

para muitos povos, são concebidos como

inferiores, ou mesmo ultrapassados. acredi-

to que temos muitas coisas a aprender com

esses saberes e, por isso, é fundamental co-

nhecer mais sobre esse universo.

nós, professoras e professores, temos, por-

tanto, um desafio grandioso à frente, que é

o de “desenvolver, na escola, novos espaços

pedagógicos que propiciem a valorização

das múltiplas identidades que integram a

identidade do povo brasileiro, por meio de

um currículo que leve o aluno a conhecer

suas origens e a se reconhecer como brasi-

leiro” (moura, 2005, p. 69).

Portanto, nessa discussão sobre saberes tra-

dicionais de saúde, tendo como eixo os va-

lores e práticas culturais dos estudantes e

da comunidade na qual a escola está envol-

vida, cabe ressaltar que elaborar currículos

capazes de responder às especificidades e à

pluralidade da identidade brasileira é funda-

mental.

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168

Iv. ORgANIzAÇÃO SOCIAL E FESTAS COmO vEÍCULOS DE EDUCAÇÃO NÃO-FORmAL1

Verônica Gomes2

FORMAÇÃO DE ASSOCiAÇõES E

ORgAniZAÇÃO POlítiCA

as comunidades remanescentes de quilom-

bos no brasil buscam, cada vez mais, o reco-

nhecimento de seus direitos, a valorização de

sua cultura, a afirmação de sua identidade e

uma maior participação na sociedade envol-

vente. Para tanto, é necessário que sejam in-

tegradas à sociedade brasileira, do ponto de

vista sociopolítico e econômico, por meio de

políticas públicas, uma vez que elas são alvo

de diferentes formas de discriminação e pri-

vação dos direitos humanos fundamentais.

Do ponto de vista geopolítico-administrati-

vo, as comunidades quilombolas pertencem

a diversos municípios, entretanto, as iden-

tidades negras revelam-se firmemente en-

raizadas nos diversos territórios históricos e

geográficos bem delimitados.

com o domínio de informações acerca dos

direitos humanos, das políticas públicas e

dos direitos garantidos em lei, imprescindí-

veis à sua luta, os (as) quilombolas poderão

exigir a garantia de seus direitos de forma

efetiva, intervindo e participando de forma

mais qualificada.

assim, para que se consolide o estado Demo-

crático de Direito, a representação quilom-

bola deve estar organizada em associações,

como já ocorre, pois no âmbito organiza-

cional, os quilombolas, por meio de suas

associações comunitárias, clube de mães,

associações de trabalhadores rurais, dentre

outras, vêm se auto-reconhecendo como re-

manescentes de quilombos e fortalecendo

a sua luta pela titulação dos territórios. no

âmbito nacional, desde 1995, os movimentos

sociais quilombolas também vêm se organi-

zando na conaq – coordenação nacional de

Quilombos, a partir das associações locais,

nos municípios e nos estados-membros. Po-

rém, se essas associações, antes, tinham um

certo nível de informalidade, hoje a exigên-

cia é que se constituam de maneira formal

1 educação Quilombola – 2007 / Pgm 3.

2 mestre em sociologia pela universidade de brasília. Integrante da equipe técnica do Projeto de apoio a comunidades de Quilombo no brasil – ProacQ.

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e jurídica. a organização política implica a

compreensão dos instrumentos políticos,

dos marcos regulatórios, passa pela formali-

zação de saber empírico em um saber mais

formal de representação política. as organi-

zações sociais são importantes como parte

do controle social das políticas públicas e as

organizações sociais quilombolas são partes

integrantes desse universo.

enquanto o estado brasileiro não assegurar

aos quilombolas o recurso básico essencial

– a sua territorialidade – os movimentos

sociais deverão reforçar a importância dos

quilombolas na qualidade de sujeitos sociais

que, por meio de ações políticas, fazem va-

ler suas reivindicações e direitos.

FEStAS

Quando se constata a riqueza criativa das

vivências dos moradores das comunidades

remanescentes de quilombos, principalmen-

te dos mais velhos, no que diz respeito ao

uso das ervas medicinais, no modo de traba-

lhar a terra, de tirar dela seu sustento, nas

linguagens gestuais, na música, nas festas,

no modo de se divertir, de cantar, dançar

e rezar vê-se a importância de ter acesso a

esse conhecimento. É esse conhecimento

que constitui o contexto em que se tecem

as teias de significados que recriam inces-

santemente sua cultura e sua identidade

contrastiva, isto é, a afirmação da diferença.

nas práticas dos moradores das comunida-

des, há um forte apelo ao reconhecimento

dessa identidade.

o significado pedagógico deste tipo de pos-

tura pode ser avaliado à luz de análise feita

por Paulo Freire, que propugnava a esperan-

ça como valor fundamental para o indivíduo,

com a crença de que pode ser construída

uma comunidade de significados em torno

de experiências básicas da vida humana de

que todos compartilhem (FreIre, 1975).

trata-se de um saber que vai sendo trans-

mitido e assimilado de forma lenta e per-

manente, dando oportunidade de reflexão

sobre a necessidade de mudança, sempre

que as circunstâncias o exigirem, para que a

comunidade possa adequar-se às novas con-

dições do momento. É durante os rituais que

os valores que a comunidade reputa essen-

ciais se condensam e são reafirmados e rene-

gociados, constituindo, assim, um currículo

invisível através do qual são transmitidas as

normas do convívio comunitário. sem uma

intenção explícita, este currículo invisível

vai sendo desenvolvido, dando às crianças o

necessário conhecimento de suas origens e

do valor de seus antepassados, mostrando

quem é quem no presente e apontando para

as perspectivas futuras.

currículo invisível é a transmissão dos valo-

res, dos princípios de conduta e das normas

de convívio, ou, numa palavra, dos padrões

socioculturais inerentes à vida comunitária,

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de maneira informal e não explícita, permi-

tindo uma afirmação positiva da identidade

dos membros de um grupo social.

a construção desse currículo invisível cons-

titui, assim, um processo histórico, no qual

a linguagem e, em especial, as linguagens

musicais e corporais, desempenham um pa-

pel essencial.

liDERAnÇAS

as lideranças exercem um papel transfor-

mador junto às suas comunidades, atuam

politicamente em favor delas e estão engaja-

das em projetos sociais e culturais. Há uma

percepção geral de que é preciso buscar um

novo espaço de diálogo com o estado e de

que é essencial fazer algo com mais consis-

tência e consequência política.

existem características básicas para que um

indivíduo possa se tornar um líder, tais como

visão, integridade, conhecimento da realida-

de, autoconfiança, maturidade, capacidade

para ouvir e dialogar e disposição/vontade de

assumir riscos, dentre outros. os líderes são,

em regra, pessoas muito persistentes, com

grande carisma, motivadas pelo seu instinto

e detentores da capacidade de decidir.

no âmbito das comunidades remanescentes

de quilombos, os mais velhos, as mulheres,

ou um conselho de mais velhos constituem-

-se nas lideranças que levam a comunidade

a não esmorecer na árdua luta pelo reco-

nhecimento de suas terras, que animam a

comunidade a fortalecer os laços comuni-

tários participando das associações, que se

informam e repassam para os comunitários

essas informações, novos saberes e formas

organizativas, fomentando redes de multi-

plicadores que revelarão novas lideranças.

gênERO

vale salientar o papel da mulher quilombola

na organização da comunidade. Historica-

mente, citamos a ocorrência do movimen-

to da balaiada (1838 - maranhão) no qual,

apesar das lideranças da balaiada serem ho-

mens, as mulheres tiveram um papel muito

importante na luta, que foi a de guarDIãs

Das comunIDaDes.

cuidando das criações, da agricultura, das

filhas, dos idosos, dos recursos naturais, pro-

videnciando os alimentos para os refugiados,

escondendo-os, orientando crianças sobre

a luta, rezando, curando com ervas medici-

nais, as mulheres foram e continuam sendo

peças fundamentais na luta quilombola.

além do trabalho diário que fazem na roça e

que sustenta sua família, também cumprem

jornada como professoras, agentes de saú-

de, parteiras, quebradeiras de coco, dentre

outras atividades.

atualmente, muitas mulheres quilombolas

estão organizadas em associações, exercen-

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171

do cargos de tomada de decisão, cumprindo

mandato político ou engajadas em coorde-

nações de mulheres quilombolas.

REFERênCiAS

almeIDa, alfredo. Nas Bordas da Política Ét-

nica: os quilombos e as políticas sociais. texto

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brasília: IbraP/ProacQ , 2007, mimeo.

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v. KALUNgA, ESCOLA E IDENTIDADE – ExPERIêNCIAS

INOvADORAS DE EDUCAÇÃO NOS qUILOmBOS1

Ana Lucia Lopes2

intRODuÇÃO

ao se falar em quilombos, no brasil, as pa-

lavras fuga, resistência e liberdade apare-

cem imediatamente no imaginário que te-

mos acerca do tema. estudos recentes3 têm

mostrado que novos conceitos devem ser

incorporados à nossa compreensão do que

venham a ser os quilombos e sua história

em nosso país.

Primeiro conhecido por mocambo (entre os

séculos XvI e XvII), o nome quilombo desig-

nava grupos acima de três escravos fugidos.

muitos foram os quilombos ao longo da nos-

sa história, e entre eles, Palmares é conside-

rado um símbolo. o isolamento geográfico

de grande parte dos quilombos não estava

acompanhado da distância social e econô-

mica entre os quilombolas, os escravos, os

libertos e os indígenas. Havia, segundo o

historiador Flávio gomes, uma intensa rede

de relações econômicas e sociais, que possi-

bilitava a manutenção dos quilombos e, ao

mesmo tempo, as fugas faziam parte de es-

tratégias montadas pelos escravizados, que

incluíam até esconder escravos em fazendas

vizinhas, o que significava haver um circuito

de comunicação entre escravos nas fazen-

das e quilombolas.

no caso dos Kalunga, território quilombola

formado no final do século XvIII, na região

da chapada dos veadeiros, norte de goiás, a

memória dos mais velhos relembra histórias

contadas pelos seus antepassados a respeito

de incursões, que chegavam a durar cerca

de um ano, quando iam até belém para con-

seguir, entre outras coisas, sal ou panelas de

ferro. a importância e os desafios dessas via-

gens eram tais que, quando as embarcações

saiam, os foliões do Divino vinham para can-

1 educação Quilombola – 2007 / Pgm 4.

2 Doutora em antropologia social pela universidade de são Paulo. co-autora de Uma história do povo Kalunga. livro de leitura e caderno de atividades - primeiro projeto pedagógico para escolas em comunidades remanescentes de quilombos. brasília, mec/unesco, 2001.

3 reIs, João José; gomes, Flávio dos santos (orgs.) Liberdade por um fio. História dos Quilombos no brasil. são Paulo, cia. das letras, 1996.

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tar, invocando o espírito santo na proteção

dos viajantes. eles levavam farinha, arroz,

feijão, carne de gado salgada, pena de ema

e ouro, para vender ou trocar pelo que ne-

cessitavam4. esse é um exemplo, que a me-

mória de quilombolas confirma, da comple-

xa rede de relações entre os moradores dos

quilombos e outros grupos sociais.

assim, há muito que pesquisar e aprender

sobre a história dos quilombos, para além da

fuga e da resistência. atualmente, a situação

das diversas comunidades remanescentes de

quilombos nos traz questões, entre as quais

a da identidade, do pertencimento, da posse

da terra, da educação, da saúde, do trans-

porte, do desenvolvimento sustentável, que

não podemos deixar de discutir, inclusive na

pauta das políticas públicas.

neste sentido, o texto se propõe a refletir so-

bre uma experiência de educação, na região

Kalunga, que considerou os temas acima ci-

tados.

ESCOlA E iDEntiDADE

nos últimos meses do ano 2000, recebi o

convite para integrar uma equipe respon-

sável por conceber e escrever, a pedido da

secretaria de ensino Fundamental do mec,

dois livros didáticos destinados aos alunos

de terceira e quarta séries de uma comuni-

dade remanescente de quilombo localizada

em goiás – os Kalunga. as questões envol-

vidas nesse pedido baseavam-se em obser-

vações etnográficas que davam conta de

um processo discriminatório abusivo que

as crianças Kalunga sofriam quando iam

estudar nas escolas fora da área quilombo-

la. essas escolas ficavam nas sedes dos mu-

nicípios vizinhos e ofereciam os cursos de

quinta a oitava séries, já que as escolas da

região Kalunga só tinham classes de primei-

ra a quarta séries, em sua grande maioria

multisseriadas e com professoras leigas.

Frente a esse quadro, a questão da autoesti-

ma e da identidade positiva Kalunga deveria

ser o eixo orientador do conteúdo dos livros

solicitados pelo mec. os registros de uma

pesquisa de recorte etnográfico que havia

sido realizada nas escolas por pesquisadores

da universidade de brasília - unb, além de

uma série de materiais acerca da história da

comunidade Kalunga e suas principais ques-

tões atuais, foram colocados à nossa dispo-

sição; entre eles, contamos com desenhos e

cadernos de lição dos alunos, que nos foram

entregues.

em primeiro lugar, tratava-se de saber que

concepção pedagógica conduziria à elabo-

ração dos livros e, a partir dessa reflexão,

4 gomes, Flávio dos santos. A Hidra e os Pântanos. mocambos, Quilombos e comunidades de Fugitivos no brasil. são Paulo, editora unesP & editora Polis, 2005

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ao considerar a realidade da sala de aula

Kalunga, propus uma alteração do projeto,

na perspectiva pedagógica. ao invés de dois

livros didáticos, um para a terceira e outro

para a quarta séries, escreveríamos dois li-

vros, sendo um deles um livro de história, e o

outro, um caderno de atividades. a proposta

era contemplar todos os alunos de uma clas-

se multisseriada com conteúdos que disses-

sem respeito à autoestima, à identidade e à

valorização do patrimônio cultural por eles

construído. não fazia sentido, de um ponto

de vista pedagógico vinculado estreitamente

a uma abordagem antropológica de educa-

ção, tratar de autoestima com uns, enquan-

to outros, no mesmo momento, faziam as

lições tradicionais.

a equipe reescreveu o projeto, consubstan-

ciado desta vez em uma perspectiva antro-

pológica e pedagógica, e o encaminhou aos

responsáveis no ministério da educação, que

concordaram com a nova justificativa e seus

argumentos. Passamos a estudar profunda-

mente a comunidade Kalunga, para então

escrevermos um livro de leitura, um cader-

no de atividades e um encarte para o profes-

sor, que contemplassem questões curricula-

res de primeira a quarta séries, em diálogo

com conteúdos referentes à identidade e ao

pertencimento, e que trouxessem, segundo

pedido dos próprios moradores, conhecimen-

to de fora. eles sabiam que precisavam am-

pliar os seus recursos, e o nosso dilema era

o de trazer um repertório de conhecimen-

tos novos, mas fazendo com que, ao mesmo

tempo, os conhecimentos por eles produzi-

dos não perdessem lugar para a novidade de

fora. nosso trabalho se construiu na tensão

entre a valorização do conhecimento Kalun-

ga produzido historicamente e o direito de

acesso ao conhecimento do novo por eles

reivindicado.

Depois de alguns meses de trabalho inces-

sante, o material ficou pronto. vale lembrar

que, nesse processo, pudemos contar com a

colaboração de diversas pessoas e institui-

ções, que prontamente nos acudiram quan-

do faltavam referências sobre determinados

aspectos da vida e da história Kalunga, o que

evidenciava ainda mais a relevância do Pro-

jeto Vida e História Kalunga, que originou o

livro Uma história do povo Kalunga 5, acompa-

nhado do Caderno de atividades e do encarte

de orientação pedagógica para o professor.

nesse encarte, procuramos estabelecer com

os professores, que em grande parte eram

professores leigos, um diálogo a distância,

como uma carta informal que lhes enviás-

semos, para início de conversa... talvez valha

a pena transcrevê-la aqui, pois ela resume

o espírito com que todo o trabalho foi rea-

lizado.

5 montes, maria lucia e loPes, ana lucia. Uma história do povo Kalunga. brasília, mec/unesco, 2001.

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Caro Professor

Gostaríamos de conversar com você so

bre uma história – aliás, uma longa his-

tória – da qual você é um contador.

Nós, professores, somos, na verdade,

contadores de história. Contamos a his-

tória da humanidade para nossos alunos.

Nisso nós nos parecemos com os “mais

velhos” de uma tribo indígena ou de ou-

tras civilizações antigas, que tinham o

conhecimento das coisas da natureza

e dos seres vivos, das coisas sagradas e

dos valores que dão sentido à vida e que

passavam esse conhecimento aos mais

jovens, sendo por isso muito respeita-

dos. Só que a história que nós contamos

não é a história de um só povo. Temos

a missão de contar a história de muitos

povos, em tempos diferentes, e que tam-

bém tiveram modos diferentes de viver.

Esta é a história da humanidade que nós

contamos hoje. É uma tarefa muito gran-

de, pois ninguém conhece essa história

inteira e por isso nós costumamos dividi-

-la em “capítulos”. Às vezes os “capítulos”

dessa história que ensinamos são chama-

dos de Português, História, Geografia.

Outras vezes recebem outros nomes,

como Ciências, por exemplo, quando

tratamos do ar, dos animais selvagens e

dos animais domésticos, das plantas que

usamos como alimento, das plantas ve-

nenosas e daquelas que curam. E existem

ainda outros “capítulos” que tratam dos

números e das contas e são chamados

de Matemática, outros que tratam dos

mapas, dos países e dos Estados. Outros

tratam da leitura, da escrita, do desco-

brimento do Brasil, da Independência.

Nós, professores, temos essa função ma-

ravilhosa, nos tempos de hoje, que é a de

contar essa história e ensinar, em poucos

anos, conhecimentos importantes que le-

varam milhares de anos para serem cons-

truídos.

Você já parou para pensar em quantos

anos a humanidade levou para descobrir,

inventar e aprender tudo aquilo que hoje

ensinamos nas escolas? Quantos homens

não sobreviveram a venenos de plantas

até descobrirem que muitas delas po-

diam curar e se transformar em remé-

dios feitos nos laboratórios? Como foi que

aprenderam a domesticar alguns ani-

mais, que passaram assim a auxiliá-los

na luta diária pela sobrevivência? Quanto

tempo o homem andou pelo mundo sem

mapas para orientá-lo nas rotas de suas

viagens e como surgiram os primeiros

mapas? Certamente, o homem observava

a natureza, o céu, de noite e de dia, os

mares, os ventos, as chuvas. Mas demo-

rou muito tempo para que, observando o

que acontecia na natureza, comparando

um dia com outro, uma noite com ou-

tra, a posição da lua, dos planetas e das

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estrelas, o ciclo das estações, ele pudes-

se concluir que essas coisas se repetiam

com regularidade e podiam indicar quan-

do plantar e colher e servir para orientar

suas rotas de viagem. Foi então que ele se

tornou capaz de expressar tudo isso na

forma de desenhos e da escrita, inventan-

do todo esse conjunto de conhecimentos

que temos hoje.

Falando assim, até parece que o profes-

sor deve saber tudo sobre todas as coisas

do mundo. Impossível. Essa história da

humanidade tem muitos e muitos “capí-

tulos” e naturalmente nós não os conhe-

cemos todos. Mas nós, professores, pre-

cisamos querer saber sempre mais sobre

esses conhecimentos que são os capítu-

los dessa história e sobre como ensinar

tudo isso aos nossos alunos. Porque o

homem foi transformando a natureza e

seu modo de se relacionar com ela e com

os outros homens. E é por causa dessas

transformações que nós temos que pen-

sar também que às vezes é necessário

mudar o nosso jeito de ensinar. Porque

só assim poderemos ir sempre encon-

trando uma forma cada vez melhor de

contar para os alunos essa grande histó-

ria que não paramos nunca de aprender.

Sem dúvida, nós, que somos professo-

res, já aprendemos muito e precisamos

reconhecer o valor daquilo que sabe-

mos, daquilo que fomos aprendendo em

nossa vida e ao longo de vários anos de

experiência, ensinando nossos alunos.

Mas o que faz de nós professores é esse

compromisso de ensinar o que aprende-

mos, e é por isso que precisamos apren-

der sempre e sempre mais. Precisamos

fazer isso para que nossos alunos sejam

capazes de se lembrar no futuro dessa

história que lhes ensinamos, como nós

nos lembramos do que aprendemos com

outros que nos ensinaram. Como para

nós hoje, também para eles, no futuro,

esses conhecimentos serão necessários

em sua vida.

Este livro com o qual você vai trabalhar

de agora em diante, Uma história do

povo Kalunga, é um pequeno capítulo

dessa história grande da humanidade

que ensinamos. Mas é um capítulo mui-

to importante e que deve ser aprendido

com carinho, porque ele irá servir de

base para você ensinar aos seus alunos

outros capítulos daquela história maior.

E, sobretudo, porque os alunos que irão

aprender tudo isso são as crianças do

povo Kalunga e as que vivem nos municí-

pios de Cavalcante, Monte Alegre de Goi-

ás e Teresina de Goiás, onde está situado

o território Kalunga. É por isso que esse

livro é também uma história que nós

contamos e que vocês vão contar aos

seus alunos. Uma história do povo Ka-

lunga. Quem é Kalunga sabe. Quem não

é Kalunga precisa aprender.

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o livro de leitura foi desenvolvido como uma

história que estivesse sendo narrada, sobre

a saga de um povo descendente de quilom-

bolas que, ao longo da sua história, foi capaz

de construir uma identidade própria e um

patrimônio cultural que deveria ser conhe-

cido e valorizado. o caderno de atividades

foi organizado de modo a garantir a parti-

cipação dos alunos de todas as séries, da 1a

à 4a série. ele tinha a função de recuperar

e retomar os conteúdos do livro de leitura.

cada atividade começava com um trabalho

comum, a ser feito por todos os alunos. De-

pois, para cada série se pedia que os alunos

fizessem uma tarefa particular. Foi escolhida

uma cor para cada série, determinando-se

que a 1ª série seria amarela, a 2ª azul, a 3ª la-

ranja e a 4ª verde. em cada folha que tivesse

essa cor, o aluno encontraria a parte da ati-

vidade que correspondia à sua série e deveria

realizá-la sob a orientação do professor.

como procedimento didático-pedagógico, o

caderno de atividades se orientou em séries

didáticas como possibilidade de abrir ao pro-

fessor unidades curriculares que contem-

plassem diferentes áreas do conhecimento.

os alunos retomariam o caderno de ativi-

dades nas séries seguintes, aprofundando o

conteúdo estudado, porém, na perspectiva

da série atual. revisitar os conteúdos dentro

das novas condições das séries e faixas de

idade foi o princípio pedagógico orientador

desse livro.

as unidades que organizaram o caderno de

atividades se referiam aos temas percebidos

nas entrevistas, que muitas vezes revelaram

tensões vividas por eles, a ampliação de co-

nhecimentos e as competências dos alunos.

Por exemplo, o trabalho proposto com ma-

pas, partiu de dois eixos; a facilidade que ti-

nham em desenhar na perspectiva vertical

e a necessidade de aprender sobre mapas

em função da questão da posse da terra. são

quatro as unidades: 1) Olhar o mundo; 2) Nós

no mundo; 3) Perto e longe; 4) O passado en-

contra o futuro e um encarte com um que-

bra-cabeça do mapa do brasil político.

não abrimos mão da qualidade e da bele-

za do material, tanto para o livro de leitura

como para o caderno de atividades. assumi-

mos compromissos pessoais para garantir

que as crianças Kalunga vissem a sua ima-

gem com dignidade e destaque, e para isso

contamos com fotógrafos que se tornaram

aliados e parceiros dessa nossa empreitada.

Depois do material pronto, evidenciaram-se

os resultados do nosso trabalho e muito nos

gratificou saber da reação positiva de orgu-

lho e alegria das crianças e dos adultos, ao

se verem retratados com beleza e sofistica-

ção. tudo isso fazia parte da concepção do

projeto, que não separou forma de conteú-

do, pois é isso que se espera de um trabalho

educacional que, fundado numa perspectiva

antropológica, busca refletir e fazer refletir

sobre as relações que balizam a construção

de identidades e a noção de pertencimento.

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vI. LEI Nº 10. 639/2003 E EDUCAÇÃO qUILOmBOLA1

Denise Botelho2

inCluSÃO EDuCACiOnAl E

POPulAÇÃO nEgRA BRASilEiRA

aspectos da cultura afro-brasileira precisam

ser percebidos e explorados por todos e to-

das que participam do sistema educacional

brasileiro, como estratégia para minimizar

os preconceitos, as discriminações e o racis-

mo que imperam em nossa sociedade e atin-

gem, sobretudo, estudantes negros e negras

de nosso país. no campo das políticas públi-

cas educacionais, contamos com dois mar-

cos legais importantes para a inclusão da

população negra e, principalmente, para sua

permanência no sistema educacional brasi-

leiro: o artigo 26 da lei de Diretrizes bases

da educação nacional (lDb), que estabelece

a obrigatoriedade do ensino de História e

cultura afro-brasileira na educação básica;

e a resolução cne n. 01/2004, que instituiu

as Diretrizes curriculares nacionais para a

educação das relações Étnico-raciais e para

o ensino de História e cultura afro-brasilei-

ra e africana.

a partir desses instrumentos, os(as)

gestores(as) podem contribuir para que a

escola transcenda a transmissão do conhe-

cimento e seja, também, um espaço de refle-

xões críticas acerca dos processos de ensino/

aprendizagem de inclusão. com base em prá-

ticas de gestão democrática, podem ainda

estimular que a ação dos(as) educadores(as)

possibilite a reelaboração dos conteúdos

curriculares, a análise reflexiva do contexto

sociorracial e a reelaboração de um saber di-

recionado para a cidadania (botelHo, 2000,

p. 14). mesmo porque, cidadania supõe edu-

car na e para a diversidade:

(...) conhecer e valorizar a pluralidade do

patrimônio sociocultural brasileiro, bem

como aspectos socioculturais de outros

povos e nações, posicionando-se contra

qualquer discriminação baseada em di-

ferenças culturais, de classe social, de

crença, de sexo, de etnia ou outras ca-

racterísticas individuais e sociais (Brasil/

Secretaria de Educação Fundamental,

1998, p. 7).

1 educação Quilombola – 2007 / Pgm 5.

2 Professora no Departamento de Planejamento e administração (PaD) da Faculdade de educação da unb.

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com efeito, as discussões em torno da edu-

cação inclusiva têm avançado e promovido

a reversão de alguns paradigmas educacio-

nais vigentes, a exemplo das adequações dos

espaços escolares para deficientes físicos, a

ampliação de vagas na educação Indígena

e o fortalecimento da educação no campo.

entretanto, no que se refere à educação

em prol da valorização da população ne-

gra brasileira, ainda se verificam inúmeras

resistências. Precisamos, pois, identificar

políticas públicas que atendam às necessi-

dades desse contingente populacional, que

não se vê representado e valorizado nas ex-

periências educacionais. no caso específico

da população remanescente de quilombos,

precisamos avançar muito mais, posto que,

entre os afro-brasileiros, esse grupo soma os

maiores índices de exclusão educacional.

educar para a igualdade tem como pressu-

posto uma educação anti-racista3. e garantir

a equidade entre os diversos grupos étnico-

-raciais depende de inúmeras ações, entre

as quais conhecer e trazer, para o cotidiano

escolar, conteúdos que estimulem a partici-

pação de alunos e alunas negras como ato-

res sociais ativos, com a intencionalidade de

promover a igualdade de oportunidades e o

exercício da cidadania, como prevê a legisla-

ção brasileira, que garante “igual direito às

histórias e culturas que compõem a nação

brasileira, além do direito de acesso às di-

ferentes fontes da cultura nacional a todos

brasileiros” (resolução cne n. 01/2004).

É importante que educadoras e educadores

estimulem seus alunos e alunas a reconhe-

cerem a legitimidade dos diferentes sabe-

res presentes na sociedade e perceberem

como cada grupo sócio-racial contribuiu

para a formação da identidade cultural do

país. Diante de uma população escolar edu-

cacional multirracial, como a brasileira,

mostram-se imprescindíveis novas práticas

didático-pedagógicas que re-signifiquem os

conteúdos curriculares e as atividades de

sala de aula, por meio de recursos diferen-

ciados de ensino, como os presentes nas co-

munidades quilombolas e quase sempre não

apropriados por educadores e educadoras

como alternativas didático-pedagógicas.

mesmo com avanços significativos na área

educacional para as chamadas “minorias”,

a equidade étnico-racial em território brasi-

leiro ainda necessita de várias ações socio-

políticas, isso para atingir o que preconiza a

resolução n. 01/2004 do conselho nacional

de educação, que versa sobre:

(...) valorização e respeito às pessoas

negras, à sua descendência africana,

sua cultura e história. Significa bus-

car compreender seus valores e lutas,

ser sensível ao sofrimento causado por

tantas formas de desqualificação: apeli-

3 educação que promova um convívio harmonioso entre os diferentes, não permitindo que os preconceitos se concretizem em preconceitos manifestos, discriminações, xenofobias, sexismos e racismos.

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dos depreciativos, brincadeiras, piadas

de mau gosto sugerindo incapacidade,

ridicularizando seus traços físicos, a

textura de seus cabelos, fazendo pouco

das religiões de raiz africana. Implica

criar condições para que os estudantes

negros não sejam rejeitados em virtude

da cor da sua pele, menosprezados em

virtude de seus antepassados terem sido

explorados como escravos, não sejam

desencorajados de prosseguir estudos,

de estudar questões que dizem respeito

à comunidade negra (2002, p. 12).

Permanece, então, na ordem do dia a se-

guinte pergunta: como valorizar e respeitar

o contingente populacional afro-brasileiro

enfrentando as imagens preconceituosas

acionadas a partir do fato de que a maio-

ria dos negros e negras brasileiros teve seus

ancestrais sequestrados de várias nações do

continente africano e as suas trajetórias te-

rem sido subjugadas e escamoteadas da his-

tória oficial do país?

responder a essa questão não é tarefa sim-

ples, é preciso pensar o contexto sócio-his-

tórico do brasil. com a extinção do regime

escravocrata no brasil, o contingente popu-

lacional negro não teve sua vida social ime-

diatamente alterada, uma vez que foram li-

bertos sem qualquer apoio socioeconômico,

sendo ainda obrigados:

(...) a disputar a sua sobrevivência social,

cultural e mesmo biológica em uma so-

ciedade secularmente racista, na qual

técnicas de seleção profissional, cultu-

ral, política e étnica são feitas para que

ele permaneça imobilizado nas camadas

mais oprimidas, exploradas e subalterni-

zadas (MOURA, 1994, p. 160).

após a abolição da escravidão, uma aparen-

te integração interétnica e inter-racial sus-

tentou por muito tempo a ideia de uma de-

mocracia racial brasileira, o que dificultou a

percepção das práticas racistas no cotidiano

e camuflou as condições perversas de desi-

gualdades a que os negros foram e, ainda

estão, submetidos.

temos consciência da importância das vá-

rias iniciativas que vêm sendo realizadas em

território nacional em prol de uma socieda-

de étnico-racial realmente igualitária, mas

esperar que atitudes isoladas, fragmentadas

e de responsabilidade exclusiva dos negros

possibilitem uma transformação social efi-

caz nos parece ingenuidade. sem o desen-

volvimento de políticas públicas que privi-

legiem a igualdade nas relações raciais, tais

como a adoção de reserva de vagas (cotas)

em instituições de ensino superior, não

acreditamos que, a médio ou longo prazos,

tenhamos resultados positivos no combate

ao racismo no brasil.

Por que políticas de ações afirmativas para

negros e negras brasileiros? Porque, ainda,

são os negros o grande contingente popu-

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lacional vivendo em condições socioeconô-

micas precárias. trata-se de uma herança de

um processo de “libertação” da escravidão

desconexo e indiferente aos destinos dos

negros e negras libertos, sem assistência e

garantias que os protegessem na transição

para o sistema de trabalho livre. o “liberto”

ficou à mercê de sua própria sorte, tornan-

do-se responsável por sua pessoa e por seus

dependentes, diferentemente dos emigran-

tes, que foram convidados a trabalhar em

terras brasileiras com direitos trabalhistas

garantidos e direito à moradia. apesar de to-

das as dificuldades, a população negra tem

lutado arduamente para alcançar um status

de igualdade, de direitos de cidadania e para

que o racismo seja minimizado.

Devemos lembrar que, historicamente, o

contingente populacional afrodescendente se

encontra vulnerável a processos discrimina-

tórios, mantendo-se em situação social desfa-

vorável e de subordinação aos demais grupos

sócio-raciais brasileiros (botelHo, 2000; sIl-

va, 1995; Hasenbalg e sIlva, 1988; rosem-

berg, 1987; rego, 1976). Para o equaciona-

mento de tais disparidades, são necessárias

políticas públicas direcionadas aos afro-brasi-

leiros em todos os segmentos sociais.

no campo educacional, é preciso salientar

que, por falta de ações pedagógicas per-

manentes de valorização dos negros(as), o

racismo tem tornado a escola um palco de

violências raciais. a legislação atual garante

possibilidades de reversão do quadro. o esta-

tuto da criança e do adolescente, em seu ar-

tigo 58, garante à criança e ao adolescente o

direito de desfrutar de sua herança cultural

específica. a constituição Federal estabele-

ce que os conteúdos do ensino Fundamental

devem assegurar o respeito aos valores cul-

turais (artigo 210). a lDb determina que os

projetos, programas e currículos assegurem

o respeito às diferenças culturais, sociais e

individuais de todos aqueles que frequen-

tam a escola, bem como estabelece a obri-

gatoriedade do ensino da História e cultura

afro-brasileira na educação básica.

o baixo nível de escolaridade da população

negra retroalimenta sua exclusão do merca-

do de trabalho, agravada pelas atuais mu-

danças advindas do processo antidemocrá-

tico de mundialização econômica. antigas

reivindicações dos diversos segmentos e do

movimento negro organizado e a sensibili-

dade de alguns gestores para a situação das

desigualdades raciais4 indicam a necessidade

4 a preparação para a III conferência mundial contra o racismo, a Discriminação racial, Xenofobia e Intolerâncias correlatas realizada em Durban, África do sul, no período entre 31 de agosto a 7 de setembro de 2001 deflagrou, no brasil, diversos encontros, em todo território nacional, com o objetivo de desenhar propostas de ações afirmativas para superar os problemas pautados pelos grupos representantes dos movimentos dos negros, dos povos indígenas, das mulheres, dos gays, lésbicas, bissexuais e transexuais . ao final do encontro em Durban foram redigidos uma Declaração e um Programa de ação, com o controle social, pela sociedade civil para que os resultados sejam respeitados e as medidas reparatórias sejam implementadas.

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de implementação de políticas de ações afir-

mativas5 educacionais de forma prioritária.

a legislação educacional brasileira permite

que educadoras e educadores atuem para

minimizar as desigualdades étnico-raciais

nos espaços educacionais. Inicialmente com

os temas transversais e um exercício de boa

vontade e de consciência política, alguns

educadores já abordavam as desigualdades

étnico-raciais presentes na sociedade brasi-

leira a partir dos pressupostos do tema da

“Pluralidade cultural”. Desde 2003, a lei n.

10.639/2003, que altera a lDb estabelecen-

do a obrigatoriedade do ensino de História

e cultura afro-brasileira na educação bá-

sica, permite uma ação mais contundente

para valorização da cultura negra brasileira

e africana. Para subsidiar esse exercício de

promoção de cidadania plena de todos e to-

das, é preciso compreender

(...) a cidadania como participação so-

cial e política, assim como exercício de

direitos e deveres políticos, civis e so-

ciais, adotando, no dia-a-dia, atitudes

de solidariedade, cooperação e repúdio

às injustiças, respeitando o outro e exi-

gindo para si o mesmo respeito (Brasil,

Secretaria de Educação Fundamental,

1998, p.7).

É importante lembrar que ações afirmativas

são importantes para a garantia de uma so-

ciedade democrática. contudo, muitas são

as resistências às políticas públicas educa-

cionais dirigidas para a população afro-bra-

sileira. É preciso superar o baixo preparo de

gestores e gestoras no trato dos problemas

sociais brasileiros e, em especial, aqueles

relacionados com os chamados excluídos

sociais – negros, quilombolas, mulheres,

indígenas, deficientes físicos, pessoas com

orientações sexuais diferenciadas e outros

– para que a equidade racial e de gênero es-

tejam de fato corporificadas na nossa socie-

dade.

REFERênCiAS

botelHo, D. m. Aya nini (coragem). educa-

dores e educadoras no enfrentamento de

práticas racistas em espaços escolares. são

Paulo e Havana. Dissertação (mestrado) –

Programa de Pós-graduação em Integração

da américa latina da universidade de são

Paulo, 2000.

5 no brasil, principalmente nos três últimos anos, com o sistema de acesso diferenciado para negros e indígenas, adotado em algumas instituições de ensino superior, aumentou a discussão sobre ações afirmativas. as cotas têm sido o cerne da questão e a discussão mais ampliada sobre ações afirmativas fica delegada a um plano de muitas opiniões e de poucas reflexões críticas. grupos historicamente desfavorecidos precisam de políticas afirmativas pontuais para modificar o contexto social vigente. ações afirmativas são bem aceitas nos partidos políticos por meio da ampliação da participação das mulheres nas legendas partidárias e nos concursos públicos, com reservas de vagas para deficientes físicos. Infelizmente, quando se trata de discriminação positiva para negros(as) e indígenas, a população recusa tais ações e não percebe os mecanismos racistas, presentes no brasil, que têm alijado sistematicamente indígenas e negros da ascensão social.

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brasIl. secretaria de educação Fundamen-

tal. Parâmetros curriculares nacionais:

terceiro e quarto ciclos. apresentação dos

temas transversais/ secretaria de educação

Fundamental. brasília: mec/seF, 1998.

______. mec. Diretrizes Curriculares Nacio-

nais para a Educação das Relações Étnico-

-Raciais e para o Ensino de História e Cultura

Afro-Brasileira e Africana (2007). www.mec.

gov.br/secad/diversidade/ci

______. resolução cne n. 01/2004 (2007).

www.mec.gov.br/secad/diversidade/ci

Hasenbalg, c. a.; sIlva, n. do v. Estrutura

social, mobilidade e raça. são Paulo: vértice.

rio de Janeiro: IuPerJ, 1988.

moura, clóvis. Dialética radical do Brasil ne-

gro. são Paulo, anita, 1994.

rosemberg, F. (1987). relações raciais e

rendimento escolar. In: Cadernos de Pesquisa

da Fundação Carlos Chagas. são Paulo, n. 63,

1987.

sIlva, ana célia da. A discriminação do negro

no livro didático. salvador: ceD, 1995.

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D. AFRICANIDADES BRASILEIRAS

DOCUmENTáRIO: AFRICANIDADES BRASILEIRAS

E EDUCAÇÃO1

Azoilda Loretto da Trindade2

“(...) o que aconteceu, no Brasil, é que os africanos [e as africanas] foram tão

fundo na construção desse país, que hoje eles [elas] já não são eles [elas] eles

[elas] somos nós, os brasileiros [as brasileiras]”3

construir um documento que dialogue com

outro/outros, no caso, com um documentá-

rio e, ainda, com outras séries do programa

Salto para o Futuro, sobre a temática das

africanidades, é um grande desafio. um de-

safio que se desdobra em outros:

• Desafio diante da riqueza histórica e cul-

tural (no sentido mais pungente, visceral

e amplo do termo) do patrimônio legado

pelos africanos e pelas africanas a toda a

humanidade.

• Desafio de não reproduzir preconceitos e

estereótipos que nos foram transmitidos

por uma educação racista, elitista e ex-

cludente, que todas nós, pessoas que edu-

cam, certamente, recebemos, de maneira

tão subliminar, às vezes, que são quase

imperceptíveis.

• Desafio de conseguir tocar os corações e

as mentes dos professores e professoras

brasileiras que tecem, re-tecem, constro-

em cotidianamente a nossa escola, no

que se refere à importância e à urgência

de se consolidar uma escola que respeite,

sem hierarquizar, os diversos saberes e fa-

zeres das diferentes matrizes culturais e

étnicas que constituem nossa brasilidade,

e, no caso mais específico deste material,

as africanidades.

• o desafio de convidar todos os educado-

res que demonstram indignação diante

das injustiças a ampliar a rede dos que

1 ano XvIII – boletim 20 – outubro de 2008.

2 Doutora em comunicação pela eco/ uFrJ. mestre em educação pelo Iesae/Fgv-rJ. organizadora desta coletânea e consultora do Documentário Africanidades brasileiras e educação.

3 retirado do documentário “Povo brasileiro” (baseado na obra de Darcy ribeiro).

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sabem do convite que a vida, neste mo-

mento histórico da nossa existência, nos

apresenta: uma escola De QualIDaDe,

InclusIva, DemocrÁtIca, Do e Para o

Povo brasIleIro.

• Desafio que é alimentado por nossa indig-

nação e inquietação diante do racismo e

de qualquer expressão de injustiça social

e, consequentemente, que se desdobra

na não submissão, na não sujeição a cir-

cunstâncias e situações racistas e injustas

presentes no nosso cotidiano, inclusive,

escolar. somos, também, alimentadas por

um imenso amor e fé na vida.

o documentário Africanidades brasileiras e

educação tem como objetivo principal ser

um instrumento que possa ser utilizado na

formação de docentes, gerando estudos, re-

flexões e debates acerca das africanidades

brasileiras em ambientes formais e não-

-formais de aprendizagem, na perspectiva

de potencializar positivamente a presença

negra na sociedade brasileira.

como historicamente percebemos uma mi-

nimização das temáticas das africanidades,

muitas vezes vistas como secundárias em

relação às temáticas “universais” ou outras,

achamos importante destacar a nossa com-

preensão acerca da amplitude da vida hu-

mana e suas diversas expressões: de etnia,

de gênero, de inserção social e cultural, de

condição econômica, de aparência física, das

chamadas deficiências... nossa compreensão

é de que as discriminações e os preconceitos

aos quais os seres humanos são submetidos

são vários e de tipos os mais diversos. contu-

do, abordaremos as africanidades brasileiras4

em função dessas premissas: um cronificado

quadro de desigualdades aos quais os negros

são submetidos; historicamente, estarmos

aos 120 anos da abolição da escravatura; ter-

mos uma lei que institui a obrigatoriedade

do ensino da história e culturas africanas

e afro-brasileiras nos currículos escolares,

ampliada para as questões indígenas. tudo

isto nos leva a pensar o que sabemos sobre a

nossa afro-ascendência e a nossa ascendên-

cia indígena, além de estereótipos.

compreendemos que os preconceitos, os ra-

cismos e as discriminações não se circuns-

crevem aos negros e às negras, contudo,

enfocaremos as africanidades brasileiras,

como uma contribuição ao longo processo

de construção de uma pedagogia voltada

para a compreensão, a valorização e o res-

peito à nossa brasilidade.

áFRiCA nÃO é uM PAíS

Parece brincadeira, mas muitas vezes ouvi-

mos pessoas se referirem à África como sen-

4 o salto para o Futuro, ao longo da sua história, já tem uma tradição de documentários temáticos, inclusive,sobre questão indígena, cultura popular, dentre outros.

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do um país ou um continente homogêneo,

ou como “o local onde tarzan viveu”... enfim,

várias situações que denotam um desconhe-

cimento do patrimônio geopolítico, cultural

e histórico que é o continente africano.

lembro-me de que, com 17 anos, numa aula

de pré-vestibular, escutei uma revelação de

um jovem professor negro, de História, que

foi emblemática na minha vida. ele revelou,

para a turma, que atentamente o ouvia, que

cleópatra não era como elizabeth taylor,

mas era uma mulher negra, inteligente e es-

trategista, e que o egito, das pirâmides, dos

hieróglifos, da esfinge, das técnicas de irri-

gação... era negro, situava-se na África.

outro episódio emblemático aconteceu, uns

quatro anos depois do relatado acima, já nos

anos 80, quando eu lecionava numa escola

pública municipal, na Zona oeste carioca.

contava uma história sobre um dia no zo-

ológico e uma menina negra, de oito anos,

levanta-se e sai do fundo da sala de aula para

olhar de perto a imagem exibida durante a

leitura da história. era uma imagem com vá-

rias pessoas no zoológico fazendo coisas di-

ferentes. a imagem era panorâmica, logo as

pessoas apareciam bem pequeninas. a meni-

na vem à minha frente, olha, olha outra vez

a gravura, como se não acreditasse no que

via e diz: “Ih! uma pretinha!”

Depois, retornou, com um aspecto de satis-

fação, ao local onde estava sentada. até hoje

fico impressionada com o que pode ter sig-

nificado para ela aquela ilustração.

compartilho estes episódios, pois acredito

que você, leitor(a), ao parar para pensar, cer-

tamente terá pelo menos uma situação ilus-

trativa da invisibilização ou minimização da

presença negra na sociedade e na escola, ou

em diferentes contextos educativos. creio

que essas situações, episódicas ou não, pre-

cisam ser lembradas, refletidas, recordadas,

criticadas, compartilhadas, para serem li-

bertadoras, para romperem com o silêncio

que a escola e a sociedade têm produzido

em relação às desigualdades étnico-raciais

brasileiras. situações sugerem questões e

questões não nos faltam! você já se pergun-

tou por que conhecemos tão pouco sobre a

África? o que aprendemos na escola, o que

lemos a respeito, o que vimos no cinema ou

na tv sobre o continente que é o berço da

humanidade?

Desconhecemos o passado remoto e recente

da África e pouco sabemos sobre o seu pre-

sente.

no entanto, essa é uma história que influen-

cia definitivamente nosso modo brasileiro

de ser e de estar no mundo. o que estuda-

mos sobre africanos e africanas que foram

trazidos para o brasil na condição de escra-

vizados? será que temos nos perguntado por

que condições históricas os afrodescenden-

tes, assim como os povos indígenas e outros

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grupos sociais, têm tido seus direitos mais

básicos desrespeitados ou mesmo negados?

a desigualdade que marca profundamente a

sociedade brasileira tem raízes no colonia-

lismo e no escravismo. alterar positivamen-

te esse cenário injusto tem sido bandeira

de luta dos movimentos organizados. algu-

mas conquistas já podem ser vislumbradas,

inclusive no campo das políticas públicas.

no caso da educação, destacam-se a lei n.

10.639/03 e a lei n. 11.645/08 que preconi-

zam, respectivamente, o ensino da história

e da cultura africana e afrobrasileira nas

escolas e, no caso da lei mais recente, que

substitui a anterior, a também inclusão das

temáticas indígenas na educação.

áFRiCA (RE)COnHECiDA

se a África é o berço da humanidade, no mí-

nimo, o continente africano produziu e pro-

duz um imenso patrimônio sócio-histórico

e cultural, entendendo cultura no seu mais

amplo sentido, no qual estão envolvidas ar-

quitetura, ciência, engenharia, medicina...

no entanto, lamentavelmente para todos os

seres humanos, a escravatura e o racismo

nas suas nuances e atualizações, vem colo-

cando a riqueza deste continente na subal-

ternidade, na invisibilidade:

“É importante que a gente lute contra

essa ideia de uma África fixa e homogê-

nea que durante três séculos forneceu

escravos para o Brasil e procurar pensar,

procurar estudar que sociedades eram

essas, que culturas eram essas, em que

dinâmica eram inseridos esses africanos

que vieram para o Brasil e que trouxe-

ram tantas coisas importantes! Que

trouxeram para o Brasil sua força de tra-

balho, suas técnicas, suas competências,

suas religiões, suas cosmologias, suas

formas de entender o mundo, formas es-

sas que ficaram gravadas no modo como

o Brasil, como os brasileiros são ainda

hoje. Outro ponto importante que a gen-

te deve ressaltar na história africana na

sala de aula é a própria historia africana

em si mesma. Essa África milenar, essas

culturas que são múltiplas e interessan-

tes, a gente se deter na história das re-

lações dos africanos com o mundo, nas

criações, na emergência de reinos na

África ocidental, entender o Egito como

uma civilização que está inserida no

contexto africano, que é tributário das

cidades africanas, ele próprio um marco

importante. Então, entender o Egito no

contexto africano é interessante, enten-

der a própria história da África em suas

próprias dinâmicas. Existe material para

isso, para pensar a própria história afri-

cana em si mesma. Eu acho importan-

te o estudo da África contemporânea,

dos seus dilemas, das suas questões que

não são tão diferentes assim das ques-

tões pelas quais a América Latina vem

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vivendo. Acho que as lutas africanas

são importantes, as tomadas de cons-

ciência, o processo colonial, o processo

pré-colonial, o mundo contemporâneo,

então a geografia tem muito o que ex-

plorar. Eu acho que existe uma riqueza

enorme nas culturas africanas hoje, nos

países africanos, em termos de uma li-

teratura muito interessante, disponível

em Português, para o caso de literatu-

ras africanas em língua portuguesa, é

preciso investir nesses estudos. Investir

nesse diálogo que a África faz entre sua

própria história e o mundo, juntando

tradição e modernidade, acho que são

formas específicas de aliar a sua própria

tradição, seu próprio legado com o pre-

sente, a música africana é riquíssima,

a arte africana é lindíssima, tanto essa

arte tradicional como a arte contempo-

rânea, que você encontra nas bienais,

que você encontra enfim numa série de

exposições. É preciso pesquisar essa Áfri-

ca urbana, essa África vibrante, das mú-

sicas, das cores, da arte, da literatura,

ela está aí, ela está disponível para ser

trazida para a sala de aula como uma

maneira, como mais um diálogo conosco

mesmo. Acho que ela faz parte do mun-

do contemporâneo, então, esse interesse

pela África como parte do nosso mundo,

do nosso mundo globalizado, do nosso

mundo que se aproxima cada vez mais

pela Internet, pelos fluxos, a África está

nesse fluxo e está esperando ser desco-

berta pela Brasil” (Luena Nascimento –

antropóloga/UNICAMP/Bolsista).

África diversa, África plural, África de on-

tem e hoje com riquezas, contradições e

conflitos,que precisa ser apresentada, re-

apresentada às educadoras e aos educa-

dores do brasil por brasileiras(os) e por

africanos(as) de variados países africanos.

vOZES D’áFRiCA: tRECHOS DE

EntREviStAS

Chimamanda5 - escritora (nigéria):

“(...) é muito importante que as pessoas

contem suas próprias histórias. E a Áfri-

ca é uma região do mundo que por mui-

to tempo teve suas histórias contadas

por outras pessoas. Muitos dos textos

africanos foram na verdade escritos por

europeus, se voltarmos duzentos anos

atrás. Eu acho que é uma coisa boa ou-

virmos histórias de África contadas por

africanos”.

“África não é uma coisa única. Poucos

pensam sobre África de forma diferente.

Pensam na África das girafas, ou pen-

sam em AIDS, ou pensam em guerras, ou

pensam na pobreza. Uma das perguntas

5 tradução Kátia santos.

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que me foi feita por um dos jornalistas

brasileiros, antes que eu chegasse aqui,

foi ‘como você pode ajudar ao seu país?’

E eu pensei, meu país não é apenas um

lugar para eu ajudar. Há muita coisa

acontecendo na Nigéria. Há nigerianos

que estão ajudando a nigerianos. Há ni-

gerianos que são pobres; nigerianos que

são ricos. Há muita coisa acontecendo.

Acho que a única coisa que posso dizer

é que há muitas Áfricas. Não há apenas

uma. Há várias histórias em África. As

histórias de ricos e pobres; as histórias

felizes e tristes; e todas elas são histórias

africanas, e é importante que nos lem-

bremos disso.”

“Não temos como apagar o colonialismo

da nossa experiência. É parte da nossa

experiência. Parte da experiência de ni-

gerianos, de quenianos, de senegaleses...

A África foi colonizada. E é tudo muito

recente. Tornamo-nos independentes em

1960. Há pouco tempo atrás. E a forma

como vivemos hoje é ainda uma reação

ao colonialismo. O colonialismo é ain-

da parte de nossa existência. O sistema

educacional da Nigéria, por exemplo,

não mudou muito desde os anos 1950. As

pessoas aprendem muito sobre a Ingla-

terra e muito pouco sobre África, porque

foi assim que eles organizaram o siste-

ma educacional. Então, é difícil respon-

der ‘o que você tem a dizer sobre o fim

do colonialismo na sua obra?’ Acho que

estou apenas escrevendo histórias sobre

pessoas que vivem em um tempo em que

o colonialismo é parte integral de nossas

vidas. Mas isto não significa que as pes-

soas não tenham [iniciativa]. Os africa-

nos são pessoas que têm iniciativa.”

Pepetela – escritor (Angola)

“A literatura acaba por mostrar que

também no continente africano já há

pessoas que pensam, começa por aí. E

um dos estigmas que haviam passado

pela Europa é que em África praticamen-

te só havia macacos em cima das árvo-

res. Portanto, a literatura é uma forma

boa para dar a conhecer a realidade, cer-

ta realidade e, sobretudo, para chamar a

atenção para problemas, quaisquer que

sejam. Não para resolver problemas,

não porque não é trabalho que se possa

exigir do escritor. É para isso há outras

instituições e pessoas, mas levantar os

problemas, chamar a atenção, é obrigar

as pessoas a pensar sobre esses proble-

mas.”

“(...) Mas o fato de ser a língua materna

[a portuguesa] a língua na qual eu me

expresso, não me impede nunca de dei-

xar de escutar essas outras línguas que

eu não falo. E há em mim uma busca

incessante da necessidade, da harmonia

de todas essas línguas e que foram tra-

zidas em primeira mão pelas ‘mulheres’,

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primeiro na família, depois na sociedade,

depois no mundo inteiro que também

tem outras vozes que eu também escu-

to. É curioso porque eu vou dizer mais

uma vez: foi em português que eu falei

dessas mesmas línguas, mas há todo um

patrimônio da tradição oral e mesmo fi-

xado em português que foi importante

para eu chegar ao conhecimento dos lo-

cais, das regiões, do meu país, em suma.

Eu penso que toda a gente é de um lugar,

como é de uma infância, com é de uma

determinada região e aí, essas mesmas

línguas silenciadas durante todo o pro-

cesso colonial, elas foram só aparente-

mente silenciadas, porque elas estavam

lá, o meu trabalho nem sequer foi muito

grande, foi apenas ouvir, ficar atento.”

Ana Paula tavares - escritora (Angola)

“Se eu tivesse que escolher um tema para

as minhas coisas, desde logo a palavra

‘mulher’ seria muito importante. Desde

cedo eu me habituei a olhar a volta e no-

tar que o país, a região local dependia

dessa força enorme, dessa energia enor-

me das mulheres. São elas que inventam

a água, são elas que fazem as comidas,

são elas que sustentaram um país que,

como vocês sabem, durante tantos anos,

esteve na guerra. Os homens estavam a

fazer a guerra, eram as mulheres que

faziam com que o país funcionasse com

que o país se reproduzisse. Eram elas que

cuidavam dos vivos e dos mortos. Então,

se há alguma coisa que possa ser recor-

rente numa obra que tenta tocar todos

os temas, a palavra ‘mulher’ é talvez a

mais forte e eu sou muito tributária des-

sas vozes que eu ouvi, dessas mulheres

que falavam outras línguas que não a

língua portuguesa que é a minha língua

materna.”

“São Tomé e Príncipe é um país insular, é

um arquipélago com menos de mil km2,

160 mil habitantes, eu acho que cabemos

algumas vezes no estádio do Maracanã,

e a origem da sociedade creola santo-

mense é escravagista, o povoamento se

fez com povos levados de diversas par-

tes do continente africano e essa mescla

de culturas, esse cadinho de cultura, faz

com que a questão da identidade tam-

bém atravesse a poética santomense.

Em mim, a questão da identidade está

muito presente e é um dos aspectos cen-

trais da minha poesia. O desejo de tentar

iluminar trechos obscuros ou apagados

ou rasurados da história do meu povo.

A presença do escravo, o sofrimento do

escravo, dos nossos antepassados, o si-

lenciamento das suas vozes, contudo

não morreram porque eu degluti essas

vozes e elas estão hoje na minha poesia.

Por outro lado, a firme vontade de atra-

vés da palavra poética como que fazer

justiça histórica a esse segmento funda-

mental do meu país e do meu passado,

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porque há uma grande preocupação

com o meu passado. A memória, portan-

to, escreve-se aí, a memória familiar, a

memória pessoal, a memória histórica.

Outra preocupação central tem a ver

com o social presente e mesmo quando

eu me inspiro no passado e vou ao pas-

sado e vou à história, esse tratamento

não é meramente revitalista. Há uma

relação entre o silenciamento e a injus-

tiça, um presente marcado por fortes es-

tratificações, por uma classe dominante

que tem muito e uma maioria que tem

muito pouco.”

Conceição lima – escritora (São tomé)

“Há um provérbio guinense que diz as-

sim: quando alguém insiste em dizer

que conhece fulano muito bem, que ele

não seria capaz de tal coisa ou que ele é

capaz de fato de fazer ou cometer esse

erro! Há a voz de um velho que pergun-

ta: Há quantos anos vocês moram jun-

tos? Quando você diz: há cinco, há três,

há sete... ele diz: não, você não conhece,

porque nós vivemos uma vida inteira e

não nos conhecemos a nós mesmos, por-

que às vezes nos surpreendemos com ati-

tudes, com palavras que saem da nossa

boca. Eu parto desse provérbio guinen-

se para dizer que não é fácil conhecer

o outro, mas é possível criar condições,

criar um patamar de partilha de experi-

ências, então eu acho que falta qualquer

coisa para essa partilha. Há como que

um preconceito de parte a parte, nós

mesmos muitas vezes nos olhamos com

preconceito e nós olhamos o outro com

preconceito e temos medo de admitir

esse preconceito que nós temos e todo o

mundo tem um pouco desse preconceito

lá no canto. Então, eu acho que cada vez

que nós damos um passo para nos desi-

nibirmos um pouco mais, para limpar-

mos este preconceito que às vezes nós

temos do outro, porque o outro é aquele

que nós mal conhecemos e que, muitas

vezes, porque não conhecemos, porque é

algo que se parece, em nossa vista, como

misterioso, nós não conhecemos e ali

há algo de que temos medo também e

é esse medo que está a constituir a bar-

reira desta partilha, desse mau conheci-

mento do outro, de nós a nós mesmos,

do Brasil a si próprio, para depois nós

partilharmos esse conhecimento que vai

passar pelo reconhecimento da cultura

do outro, das nossas culturas, nós afri-

canos, as vossas culturas, vós, brasilei-

ros, para conhecerem que o Brasil é um

continente. O Brasil é uma imensidão e a

África é outro continente, então é preci-

so que cada um de nós saiba se conhecer

a si próprio, saiba tolerar-se a si próprio,

saiba conhecer a sua história e, como di-

ria Paulo Freire: Cada vez que nós ensi-

namos a ler e a escrever a um homem e

a uma mulher, nós estamos a dar a este

homem e a esta mulher instrumentos

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para que ela e ele próprios consigam es-

crever e reescrever a sua própria história

e rever-se nela, sem complexo e com a

responsabilidade própria.”

Odete Semedo – escritora (guiné-Bissau)

“Quando eu tive conhecimento dessa lei,

eu disse: bom, eu acho que o Brasil pôs

na mesa o assunto para ser discutido,

um assunto que me parece que é um as-

sunto tabu. As pessoas não querem falar

de racismo, em discriminação, no negro

e de várias coisas, parece que a histó-

ria nos envergonha. Então, essa lei vai

permitir um olhar para trás, um olhar

para a história do Brasil, um olhar sem

complexos, eu espero. E mesmo que seja

um olhar com complexos, mas desde

que permita a abordagem do problema

já está a pôr à mesa uma questão que

é uma questão não só brasileira, mas

africana e universal, porque o racismo,

a discriminação, não é só no Brasil, não

é só em África. Há um pouco em cada

canto dos países da Europa ou da Améri-

ca do Norte. O meu olhar sobre essa lei é

que ela vai permitir um olhar para trás,

um olhar o presente e, em perspectiva, o

futuro sem receio, sem complexos, isso é

o que eu vejo. Eu acho também que essa

lei vai permitir um olhar sobre a África

com outros olhos, não o olhar de uma

África folclórica, não a África de guerras,

de fome, mas uma África que é como um

continente com vários países, com vá-

rias culturas, várias línguas, várias ma-

neiras de estar, de viver, de olhar o mun-

do. Portanto, eu acho que essa lei é mais

uma porta que se abre, não vai mudar o

mundo, mas é um passo, é uma pedra no

meu entender.”

PEnSAR A DiáSPORA AFRiCAnA

Pensar a Diáspora africana é pensar na Áfri-

ca como um continente que se expandiu,

de onde seus filhos e filhas se espalharam

pelo mundo, antes, durante e depois do cha-

mado período da escravização negra. e isto

é importante, uma vez que aqui, no brasil,

constituiu-se uma parcela desta diáspora

africana.

esta presença africana no brasil, marcada

por histórias, memórias, culturas e valores

civilizatórios, estabelece aqui referenciais

que se constituem como valores civilizató-

rios afrobrasileiros, valores tecidos no diá-

logo, nos confrontos, nos encontros dias-

póricos dos africanos, afro-brasileiros entre

si e com os demais grupos aqui existentes.

Que valores seriam estes? Ilustrativamente,

podemos citar o da circularidade como um

valor que nos permitiu, enquanto afrodes-

cendentes e afro-brasileiros, ressignificar a

dor do processo cruel da escravização negra,

do racismo, e positivizá-la, produzindo vida

afrodescendente fora da África.

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o principio do axé, da energia vital, outro

valor que acena para esta presença no coti-

diano brasileiro, o comunitarismo, a coope-

ração, a memória inscrita no corpo, a corpo-

reidade, a ludicidade imbricada no processo

de transformar a dor em potência...

“(...) os africanos chegaram pratica-

mente com o seu corpo, foram muito

poucos os objetos trazidos, eles eram na

verdade desnudados, vinham quase que

nus nos navios. O patrimônio maior cul-

tural era o corpo. O corpo passou ser a

caixinha de segredo. Então, o corpo tra-

zia não só as marcas do mundo perdido,

das culturas a que, na verdade, esses

africanos que para cá foram transla-

dados pertenciam. As marcas culturais

vinham com o corpo nos gestos, nos

hábitos, nos comportamentos das con-

dutas corporais e também nas escari-

ficações, das cicatrizes, das marcas do

corpo. O corpo era na verdade o grande

arquivo que continha a memória das

experiências que agora eram violenta-

mente abandonadas, agora, se podemos

falar de patrimônio histórico e cultural

das populações africanas transladadas,

o primeiro território, o primeiro objeto,

o primeiro elemento fundamental dessa

memória é o corpo. É com o corpo que o

africano vai reconstruir a sua experiên-

cia perdida, é através desse corpo, atra-

vés da gesticulação, através da dança,

através do modo de andar, através da

oração, através da culinária quer dizer

com o corpo, pelo corpo é que a expe-

riência patrimonial, civilizatória vai ser

reconstituída” (Julio césar de tavares –

Professor de antropologia da univer-

sidade Federal Fluminense).

“(...) em comunidades remanescentes

se festeja tudo, se festeja a vida, e jun-

tamente com a questão do festejo vem

a questão do canto, vem a questão da

música, vem a questão da dança, que

constitui momentos que, se formos ana-

lisar na comunidade o que se significa a

festa, são movimentos reivindicatórios,

são movimentos revolucionários, onde

se revitaliza a potência de se tentar co-

locar frente ao mundo branco, frente a

tantas expropriações a que os quilom-

bolas estão sujeitos” (georgina Helena

lima nunes – professora da universi-

dade de Pelotas – rs).

Pensar a Diáspora africana não apenas nas

bases culturalistas, mas também políticas,

pois os valores trazidos e vivenciados po-

dem ser fatores de transformação social.

Em toda cultura nacional

Na arte e até mesmo na ciência

O modo africano de viver

Exerceu grande influência

E o negro brasileiro

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Apesar de tempos infelizes

Lutou, viveu, morreu e se integrou

Sem abandonar suas raízes

(nei lopes e Wilson moreira).

AFRiCAniDADES BRASilEiRAS E

EDuCAÇÃO

“(...) estudar Africanidades Brasileiras

significa estudar um jeito de ver a vida,

o mundo, o trabalho, de conviver e lutar

por sua dignidade, próprio dos descen-

dentes de africanos que, ao participar

da construção da nação brasileira, vão

deixando nos outros grupos étnicos com

quem convivem suas influências e, ao

mesmo tempo, recebem e incorporam as

daqueles” (Petronilha gonçalves e silva

– Professora da universidade Federal

de são carlos - uFscar).

Pensar as africanidades brasileiras na atuali-

dade nos remete ao fato de que é impossível

negar a presença negra em todos os setores

da sociedade brasileira. contudo, em alguns

espaços, essa presença está aquém do que

é desejado e necessário, e ainda é marcada

pelo racismo, pela exclusão, pela subalter-

nização. no entanto, é importante ressaltar

que:

“Uma sociedade pautada em qualquer

tipo de discriminação é uma sociedade

que vai deixar, sem dúvida, à margem

da participação, digo participação pro-

dutiva, produtiva intelectual e produtiva

econômica, uma grande parcela da sua

população. E nesse sentido, quando nós

pensamos em racismo, nós estamos pen-

sando em mais de 50% da população ne-

gra ou pelo menos quase 50%, se formos

seguir as cifras oficiais apresentadas

pelo IBGE. Então, nós estamos dizendo

que numa sociedade que exclui e exclui

pelo racismo, que é a nossa discussão

aqui, nós vamos ter metade da popula-

ção do Brasil fora dos regimes de direitos

de todas as áreas e isso traz no mínimo

subdesenvolvimento para o país” (Joseli-

na da silva - Professora da universida-

de Federal do ceará).

“É preciso que os educadores brasileiros

entendam o seguinte. Que eles se per-

guntem: o que eu sei de Ásia? Estou ven-

do um japonês aqui, este aqui é uma des-

sas populações. O que eu sei da história

do português, da história de Portugal,

será que eu sei alguma coisa? O que eu

sei da história da Itália? Então, eles têm

que perguntar a eles mesmos, ao invés

de partir do que já sabem” (Yedo Ferrei-

ra - militante movimento negro).

a despeito do racismo, das desigualdades

étnico-raciais, talvez alimentados pelos seus

valores civilizatórios, ainda que inconscien-

temente, o povo negro, ou afro-brasileiro,

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afirma cotidianamente sua energia vital, seu

axé, sua presença, sua existência:

“(...) a escola deve ser impregnada pela

diversidade das culturas que compõem

a nação brasileira. Então, temos que ad-

mitir que existem várias culturas e não

só as culturas oriundas da Europa. O

tempo todo se fala nessa mítica das três

raças compondo a nação brasileira, mas,

entretanto, os valores ocidentais não são

somente os hegemônicos, são os que de-

têm a supremacia na produção desses

valores na escola. Então, uma escola

democrática é uma escola que aposta

na diversidade, mas não só diversidade

congelada, coloca ali uma estátua do be-

rimbau, ou uma estátua do orixá dentro

da escola e falar que isso é diversidade.

São esses valores que compõem a força

das diferentes culturas, em especial da

cultura afro-brasileira, eles devem não

só estar presentes, como também asse-

gurar que a sua dinâmica se entrelaça

no cotidiano da escola, eles devem estar

presentes na culinária, na merenda esco-

lar, eles devem estar presentes natural-

mente nas atitudes cotidianas desses jo-

vens na escola, devem estar presentes no

esporte, devem estar presentes na pró-

pria discussão religiosa, devem estar pre-

sentes na matemática, as formas de pen-

sar a matemática, o número dentro da

África deve aparecer no ensino da mate-

mática, valorizar as diferentes etno-ma-

temáticas, as diferentes matemáticas

culturais. A matemática não é somente

a matemática ocidental, a matemática

como forma de pensar geometricamen-

te, aritmeticamente a natureza, isso

existe em várias culturas, então existe

uma forma de pensar matematicamente

na África, que deve aparecer. Essa diver-

sidade deve se entrelaçar no cotidiano

da escola, esse entrelaçar e o impregnar,

a gente tem que produzir essa impreg-

nação, essa interculturalidade, mais que

a multiplicação das culturas, temos que

fazer com que haja o encontro e o inter-

curso dessas culturas. A impregnação

da cultura afro-brasileira seria talvez

o maior desafio, porque é muito fácil,

por conveniência, os diretores da escola

fazerem lá o dia do negro, como fazem

o do índio. Isso não é transformar essa

cultura como presente, congelando num

único dia, dos 365 dias do ano, é preciso

fazê-la presente diariamente conforme

a cultura ocidental do europeu está pre-

sente nos 365 dias, você não tem o dia

da cultura alemã, você tem ela presente

o tempo todo, a cultura italiana, a cul-

tura portuguesa ou a cultura espanhola,

como cultura ocidental, elas estão pre-

sentes os 365 dias do ano. Então, quere-

mos que também durante os 365 dias do

ano a cultura africana e a cultura indí-

gena estejam presentes e as demais cul-

turas, a cultura cigana, todas as outras

culturas. É importante que haja um local

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de manifestação dessa multiplicidade,

desses universos múltiplos das diferentes

culturas. A cultura afro-brasileira tem

uma riqueza gigantesca para oferecer a

essa moldagem da nação brasileira num

universo intercultural, precisamos estar

convictos, nós, professores, diretores da

escola, que é importante para produção

de um novo brasileiro, essa impregnação

e a convicção significa na adesão genero-

sa, na adesão amorosa, na adesão afeti-

va a essa cultura.”

Digamos, abrir o coração a essas culturas,

abandonarmos a força colonial que nos co-

loca quase que de joelhos diante daquilo que

é europeu super, hiper valorizando o que é

europeu e desvalorizando, desqualificando o

que é africano, o que é indígena na cultura

brasileira.

Isso é que precisa ser superado e essa su-

peração só poderá se dar com amor se não

houver convicção da necessidade de afeto no

tratamento com afeição, com generosidade,

com gentileza dessas culturas, compreen-

dendo a presença delas já existente dentro

de nós mesmos, dentro da cultura que nós

temos. Imagine você que o brasil tem a feijo-

ada como seu prato nacional e ainda discute

se deve ou não garantir a impregnação da

cultura afrobrasileira no nosso cotidiano. É

tamanha a hipocrisia, a ignorância e o grau

de colonialismo em que vivemos que preci-

samos superar isso com uma certa dose de

amor, não é violência, é amor, vamos abrir o

coração e compreender que a cultura brasi-

leira está presente o tempo todo ao lado da

cultura afro-brasileira, ela é um dos princi-

pais modeladores da nação brasileira (...) (Ju-

lio césar de tavares – Professor de antropolo-

gia da universidade Federal Fluminense).

estamos na capilaridade da sociedade brasi-

leira, somos, nesse sentido ampliado, todos

afrobrasileiros.

“Essa presença está no cotidiano do bra-

sileiro, está no ar que o brasileiro respira

está no ritmo do corpo do brasileiro, está

na comida do brasileiro. Só que o brasi-

leiro também não percebe isso e gosta-

ria de ser considerado como europeu.

Isso está claro no sistema de educação.

Nosso modelo de educação é uma edu-

cação eurocêntrica. A escola é o lugar

onde se forma o cidadão, onde se ensina

uma profissão. Escolas que sabem lidar

com os dois lados da educação ensinam

a cidadania e a profissão. Uma história

que é ensinada, a história da Europa, dos

gregos e dos romanos, portanto, brasi-

leiros não só descendentes de gregos e

romanos, de anglo-saxões... São descen-

dentes de africanos também, de índios e

descendentes de árabes, de judeus e até

de ciganos. E se a gente olhar o nosso

sistema de educação, onde estão esses

outros povos que formaram o Brasil?

Então, há um problema no Brasil, além

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dessas pessoas serem as maiores vítimas

da discriminação social, do sistema de

educação formal, elas são simplesmente

ocidentalizadas, elas são simplesmente

embranquecidas. Então, há um proble-

ma na educação do brasileiro. Se a gen-

te colocar as questões: quem somos, de

onde viemos e por onde vamos, vamos

ver que o Brasil nasceu do encontro da

culturas das civilizações, dos povos in-

dígenas, africanos que foram deporta-

dos os próprios imigrantes europeus de

várias origens. Até estamos agora co-

memorando os cem anos da imigração

japonesa, se fala mais dos cem anos da

imigração japonesa do que 600 anos da

abolição. Não tenho nada contra isso,

mas fala-se muito pouco da abolição.

Se a gente quer saber quem somos, de-

vemos conhecer todas as nossas raízes,

aqueles povos que formaram o Brasil, al-

guns dizem que somos um país mestiço,

mas essa mestiçagem não caiu do céu. Já

que a gente não quer reconhecer a diver-

sidade das coisas, suponhamos que seja-

mos todos mestiços, vamos pelo menos

estudar as raízes da nossa mestiçagem,

faz parte da nossa cultura” (Kabengele

munanga – Professor de antropologia

/ usP – Diretor centro de estudos afri-

canos).

Diante da nossa diversidade étnico-racial,

cultural, creio que fomos colocadas(os) no

desafiante território da construção, enquan-

to educadoras e educadores brasileiros, de

uma pedagogia brasilis, uma pedagogia

com/da e para a real e diversa população

brasileira.

Um sorriso negro, um abraço negro

Traz.... felicidade

Negro sem emprego, fica sem sossego

DOCUMENTÁRIO: AFRICANIDADES BRA-

SILEIRAS E EDUCAÇÃO 15 .

Negro é a raiz da liberdade

Negro é uma cor de respeito

Negro é inspiração

Negro é silêncio, é luto

negro é... a solução

Negro que já foi escravo

Negro é a voz da verdade

Negro é destino é amor

Negro também é saudade.. (um sorriso

negro!)

(Dona Ivone lara)

REFERênCiAS

brasIl. Ações Afirmativas e Combate ao Ra-

cismo nas Américas. brasília: mec, secaD,

2005.

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198

______. Educação anti-racista: caminhos

abertos pela lei Federal nº 10.639/03. brasí-

lia: mec, secaD, 2005.

______. Histórias da Educação do Negro e

outras histórias. brasília: mec, secaD,

2005.

______. Orientações e Ações para a Educação

das Relações Étnicos-Raciais. brasília: secaD,

2006.

garcIa, Januario. 25 anos 1980 – 2005: movi-

mento negro no brasil. brasília, DF: Funda-

ção cultural Palmares, 2006

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CAPÍTULO 3

ENTRECRUzAmENTOS TEmáTICOS: mULTICULTURALIDADES,DISCIPLINARIDADES E AFRICANIDADES

a ideia que orienta este terceiro capítulo

insere-se no campo das redes de conheci-

mento, das tessituras de ideias, das inven-

tividades, dos diálogos, das aventuras hu-

manas na construção do novo, do novo que

aproxima, une e se mescla... ao ler os textos,

observamos uma infinidade de caminhos,

possibilidades, escolhas...

acreditamos que a implementação da lei ou

a construção de uma educação inclusiva e

emancipatória não deve ignorar conheci-

mentos produzidos, mas criticá-los e ajustá-

-los, se possível, a uma perspectiva a favor

da vida na sua plenitude.

selecionamos, no panorama das publicações

do Salto para o Futuro, textos que, mesmo

que não se refiram especificamente à lei n.

10.639/03 ou à lei n. 11.645/08, podem ser sub-

sídios para pedagogias que não excluam, que

não sejam racistas, machistas... as articula-

ções que podem e devem ser feitas incluem-

-se no campo da pedagogia diaspórica, onde

novas significações e apropriações podem ser

elaboradas.

os textos devem ser vistos criticamente, pois

todos estão inseridos no campo ideológico e

de visões de mundo, classe, formação, etnia...

i. Ciência multicultural, de ubiratan

D’ambrosio. optamos em iniciar este capí-

tulo da coletânea com este texto, pela fun-

damental relevância deste tema - a ciência

- no campo da multiculturalidade e das afri-

canidades. Pensar a ciência numa aborda-

gem multicultural é uma demanda para não

só implementar as leis, como mudar menta-

lidades colonizadas e excludentes.

ii. Afroetnomatemática, áfrica e afrodes-

cendência, de Henrique cunha Junior. este

texto desconstrói as naturalizações acerca

do continente africano e o conhecimento

matemático. são tantas as descobertas e re-

descobertas, as novas possibilidades de ver,

sentir, conhecer, que o estudo para os e as

docentes é um caminho imprescindível.

iii. A multiculturalidade na educação esté-

tica, de ana mae barbosa. como dissemos

anteriormente, embora alguns textos não

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foquem diretamente as africanidades, eles

nos ajudam a fundamentar nossa visão in-

clusiva, nossa prática, que pode ser rotulada

de multiculturalista crítica, emancipatória

e, também, que tem como meta implemen-

tar a lei n. 10.639 e a lei n. 11.645. arte e

estética são palavras-chave e campos de ex-

tremada relevância para o trato das africa-

nidades e para a desmontagem de precon-

ceitos. e este texto cumpre esta função.

iv. Construção estético-cultural de um es-

paço, de laura maria coutinho. ao ler e re-

ler os textos desta coletânea, sempre tive a

preocupação de promover diálogos entre di-

versos temas e autorias. Dessa forma, desta-

camos este texto como um alerta no que se

refere às africanidades. atentem que, fron-

talmente, ele não aborda as relações étnico-

-raciais, mas suas pontuações com relação à

imagem nos referendam.

v. O espaço dos vídeos na sala de aula: a di-

fusão de mensagens sobre afro-brasileiros,

de Heloisa Pires lima. em diálogo com os

dois textos anteriores, este texto foca as

africanidades e os preconceitos e estereóti-

pos alimentados por alguns produtores de

imagens móveis ou fixas (fotografias, fil-

mes...) alertando-nos para o cuidado com o

racismo que embaça nossas visões e percep-

ções acerca do nosso povo preto e mestiço.

vi. O significado da oralidade em uma so-

ciedade multicultural, de maria elisa ladei-

ra. talvez, numa primeira leitura, o foco do

texto pareça ser unicamente os povos in-

dígenas e a escrita, mas ao observarmos a

formação e a ocupação da autora, o nome

do texto e da série na qual ele está inseri-

do, podemos perfeitamente observar a sua

abrangência. sim, temos, além dos povos

indígenas, populações como os ciganos e al-

gumas comunidades quilombolas em que a

oralidade é um valor.

vii. no tempo em que os seres humanos

conversavam com as árvores..., de narci-

mária correia do Patrocínio luz. Da mesma

série da qual faz parte o anterior, este tex-

to é uma ode à nossa ancestralidade e, ao

mesmo tempo, um ensinamento de outras

possibilidades não eurocentradas de ensino-

-aprendizagem.

viii. Os versos sagrados de ifá: base da tra-

dição civilizatória iorubá, de Juarez tadeu

de Paula Xavier. temos, aqui, um texto aces-

sível e consistente que afirma a importância

da oralidade e revela sua pujança como um

valor civilizatório dos povos iorubanos.

iX. Cantos e re-encantos: vozes africanas e

afro-brasileiras, de andréia lisboa de sou-

sa e ana lúcia silva souza. aqui temos um

cardápio de possibilidades de trabalho nas

“águas” da oralidade e da literatura. É um

texto afirmativo, propositivo e informativo,

inclusive dos dispositivos legais.

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X. Conto popular, literatura e formação de

leitores, de ricardo azevedo. como aqui se

trata de um livro para professores e profes-

soras, educadoras, este texto assume um

caráter de compreensão acerca do conto

popular em interação com a literatura e a

formação de leitores. cremos que o trinômio

anunciado no título pode ser visto como um

dos recursos propícios à implementação das

leis de que fala esta coletânea, bem como

favorecer o fortalecimento da autoestima

de crianças e jovens estudantes.

Xi. literatura e pluralidade cultural, de ma-

risa borba. embora seja um texto publicado

antes das referidas leis, sua atualidade nos

revela a necessidade de que a abordagem da

autora seja levada em consideração.

Xii. novas bases para o ensino da história

da áfrica no Brasil, de carlos moore. o texto

apresenta bases que nos desestabilizam em

relação ao nosso conhecimento e docência

em face do ensino da história da África no

brasil, colocando-nos diante da imperativa

necessidade de pesquisa, estudo, crítica e

autocrítica, de modo a não reproduzirmos

equívocos e estereótipos já naturalizados no

nosso imaginário social brasileiro.

Xiii. Enfrentando os desafios: a história da

áfrica e dos africanos no Brasil na nossa sala

de aula, de mônica lima. com cautela, res-

peito e compromisso político, o texto aponta

repertórios da História da África e dos africa-

nos no brasil, passíveis de serem trabalhados

pedagogicamente nas salas de aula.

Xiv. Sons de tambores na nossa memória

– o ensino de história africana e afro-bra-

sileira, de mônica lima. entre cuidados, si-

nalizações, fascínios e atenções, o texto bus-

ca recuperar, com os sons dos tambores da

nossa memória, a África viva em nós.

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202

I. CIêNCIA mULTICULTURAL1

Ubiratan D’Ambrosio2

estamos passando por grandes transforma-

ções na sociedade e, em particular, na edu-

cação. Hoje falamos em educação bilíngue,

em medicinas alternativas, no diálogo inter-

-religioso. Inúmeras outras formas de multi-

culturalismo são notadas nos sistemas edu-

cacionais e na sociedade em geral.

as profundas transformações nos sistemas

de comunicação, de informatização, de

produção e de emprego surgem como um

resultado da mundialização e, consequen-

temente, dão origem à globalização e ao

multiculturalismo. os reflexos na geração e

aquisição de conhecimento são evidentes.

um resultado esperado dos sistemas educa-

cionais é a aquisição e produção de conhe-

cimento. Isso ocorre, fundamentalmente, a

partir da maneira como um indivíduo perce-

be a realidade nas suas várias manifestações:

• uma realidade individual, nas dimensões

sensorial, intuitiva, emocional, racional;

• uma realidade social, que é o reconheci-

mento da essencialidade do outro;

• uma realidade planetária, o que mostra

sua dependência do patrimônio natural

e cultural e sua responsabilidade na sua

preservação;

• uma realidade cósmica, levando-o a trans-

cender espaço e tempo e a própria existên-

cia, buscando explicações e historicidade.

as práticas ad hoc para lidar com situações

problemáticas surgidas da realidade são o

resultado da ação de conhecer. Isto é, o co-

nhecimento é deflagrado a partir da realida-

de. conhecer é saber e fazer.

a geração e o acúmulo de conhecimento

em uma cultura obedecem a uma forma de

coerência. Há, como dizia J. Kepler no Har-

monia Mundi, em 1618, uma comunalidade

de ações, na qual se manifesta o “zeitgeist”,

que viria a se tornar fundamental na propos

ta historiográfica de F. Hegel (l770-l83l).

1 Debate: multiculturalismo e educação – 2002 / Pgm 4.

2 Professor emérito da unicamp.

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essa comunalidade de ações caracteriza

uma cultura. ela é identificada pelos seus

sistemas de explicação, filosofias, teorias, e

ações e pelos comportamentos cotidianos.

tudo isso se apoia em processos de comu-

nicação, de quantificação, de classificação,

de comparação, de representações, de con-

tagem, de medição, de inferências. esses

processos se dão de maneiras diferentes nas

diversas culturas e se transformam ao longo

do tempo. eles sempre revelam as influên-

cias do meio, organizam-se com uma lógica

interna, codificam-se e se formalizam. as-

sim nasce o conhecimento.

Procuramos entender o conhecimento e o

comportamento humanos nas várias regi-

ões do planeta ao longo da evolução da hu-

manidade, naturalmente reconhecendo que

o conhecimento se dá de maneira diferente

em culturas diferentes e em épocas diferen-

tes.

EtnOCiênCiA E

EtnOMAtEMátiCA

em meados da década de 70, propus um

programa educacional que denominei Pro-

grama etnomatemática. embora o Progra-

ma etnomatemática possa sugerir uma ên-

fase na matemática, esse programa é um

estudo da evolução cultural da humanidade

no seu sentido amplo, a partir da dinâmica

cultural que se nota nas manifestações ma-

temáticas. mas que não se confunda com a

matemática no sentido acadêmico, estrutu-

rada como uma disciplina. sem dúvida essa

matemática é importante, mas de acordo

com o eminente matemático roger Penro-

se, ela representa uma área muito pequena

da atividade consciente que é praticada por

uma pequena minoria de seres conscientes,

para uma fração muito limitada de sua vida

consciente. o mesmo pode-se dizer sobre a

ciência acadêmica em geral.

em essência, o Programa etnomatemática

é uma proposta de teoria do conhecimen-

to, cujo nome foi escolhido por razões que

serão explicadas mais adiante. na verdade,

poderia igualmente ser denominado Progra-

ma etnociência. ao lembrar a etimologia,

ciência vem do latim scio, que significa sa-

ber, conhecer, e matemática vem do grego

máthema, que significa ensinamento – por-

tanto, está claro que os Programas etnoma-

temática e etnociência se complementam.

na verdade, na acepção que proponho, eles

se confundem3.

a ideia nasceu da análise de práticas mate-

máticas em diversos ambientes culturais,

porém foi ampliada para analisar diversas

formas de conhecimento, não apenas as

teorias e práticas matemáticas. embora o

3 ver ubiratan D’ambrosio: Etnomatemática. arte ou técnica de conhecer e aprender. editora Ática, são Paulo, 1990; e Etnomatemática. elo entre as tradições e a modernidade. editora autêntica, belo Horizonte, 2001.

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nome sugira ênfase na matemática, esse é

um estudo da evolução cultural da humani-

dade no seu sentido amplo, a partir da dinâ-

mica cultural que se nota nas manifestações

matemáticas.

o ponto de partida é o exame da história das

ciências, das artes e das religiões em várias

culturas. adotamos um enfoque externalista,

o que significa procurar as relações entre o

desenvolvimento das disciplinas científicas,

das escolas artísticas ou das doutrinas religio-

sas e o contexto sociocultural em que tal de-

senvolvimento se deu. o programa vai além

desse externalismo, pois aborda também as

relações íntimas entre cognição e cultura.

ao reconhecer que o momento social está

na origem do conhecimento, o programa,

que é de natureza holística, procura compa-

tibilizar cognição, História e sociologia do

conhecimento e a epistemologia social num

enfoque multicultural.

A QuEStÃO DO COnHECiMEntO

o enfoque holístico à história do conheci-

mento consiste essencialmente de uma aná-

lise crítica da geração e produção de conhe-

cimento, da sua organização intelectual e

social e da sua difusão. no enfoque discipli-

nar, essas análises se fazem desvinculadas,

subordinadas a áreas de conhecimento mui-

tas vezes estanques: ciências da cognição,

epistemologia, ciências e artes, história, po-

lítica, educação, comunicações.

considerando que a percepção de fatos é

influenciada pelo conhecimento, ao se fa-

lar em história do conhecimento estamos

falando da própria história do homem e do

seu habitat no sentido amplo, isto é, da ter-

ra, e mesmo do cosmos. mas não há como

falar da terra e do cosmos, desligados da

visão que o próprio homem criou e tem da

terra e do cosmos. a ciência moderna, ao

propor “teorias finais”, isto é, explicações

que se pretendem definitivas sobre a origem

e a evolução das coisas naturais, esbarra

numa postura de arrogância.

a proposta é o enfoque transdisciplinar, que

substitui a arrogância do pretenso saber ab-

soluto, que tem como consequências inevi-

táveis os comportamentos incontestados e

as soluções finais, pela humildade da busca

incessante, cujas consequências são respei-

to, solidariedade e cooperação4.

a transdisciplinaridade é, então, um enfo-

que holístico ao conhecimento que procura

levar a essas consequências e se apoia na re-

cuperação das várias dimensões do ser hu-

mano para a compreensão do mundo na sua

integralidade.

4 ubiratan D’ambrosio: transdisciplinaridade. editora Palas athena, são Paulo, 1997.

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lembremos que variantes da postura dis-

ciplinar têm sido propostas. as disciplinas

dão origem a métodos específicos para co-

nhecer objetos de estudo bem definidos. a

multidisciplinaridade procura reunir resul-

tados obtidos mediante o enfoque discipli-

nar. como se pratica nos programas de um

curso escolar.

a interdisciplinaridade, muito procurada e

praticada hoje em dia, sobretudo nas esco-

las, transfere métodos de algumas discipli-

nas para outras, identificando assim novos

objetos de estudo. Já havia sido antecipada

em 1699 por Fontenelle, secretária da acade-

mia de ciências de Paris, quando dizia que

“até agora a academia considera a natureza

só por parcelas... talvez chegará o momento

em que todos esses membros dispersos [as

disciplinas] se unirão em um corpo regular;

e se são como se deseja, se juntarão por si

mesmas de certa forma”5.

a transdisciplinaridade vai além das limita-

ções impostas pelos métodos e objetos de

estudos das disciplinas e das interdiscipli-

nas.

o processo psico-emocional de geração de

conhecimentos, que é a essência da criati-

vidade, pode ser considerado em si um pro-

grama de pesquisa, e pode ser categorizado

através de questionamentos como:

1. como passar de práticas ad hoc a mo-

dos de lidar com situações e proble-

mas novos e a métodos?

2. como passar de métodos a teorias?

3. como proceder da teoria à invenção?

explicitando o que já foi dito acima, essas

perguntas envolvem os processos de:

• geração e produção de conhecimento;

• sua organização intelectual;

• sua organização social;

• sua difusão.

tais processos são normalmente tratados de

forma isolada, como disciplinas específicas:

ciências da cognição (geração de conheci-

mento), epistemologia (organização intelec-

tual do conhecimento), história, política e

educação (organização social, instituciona-

lização e difusão do conhecimento).

o método chamado moderno para se conhe-

cer algo, explicar um fato e um fenômeno

baseia-se no estudo de disciplinas específi-

cas, o que inclui métodos específicos e ob-

jetos de estudo próprios. esse método pode

ser traçado a Descartes. Isso caracteriza o

reducionismo. logo esse método se mos-

trou insuficiente e já no século XvII surgi-

ram tentativas de se reunir conhecimentos

5 b. de Fontenelle: , 1699; p.xix.

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e resultados de várias disciplinas para o

ataque a um problema. o indivíduo deve

procurar conhecer mais coisas para poder

conhecer melhor. as escolas praticam essa

multidisciplinaridade, que hoje está pre-

sente em praticamente todos os programas

escolares.

metaforicamente, as disciplinas funcionam

como canais de televisão ou programas de

processamento em computadores. É neces-

sário sair de um canal ou fechar um aplicati-

vo para poder abrir outro. Isso é a multidisci-

plinaridade. mas quando se utiliza Windows

95, a grande inovação é poder trabalhar com

vários aplicativos, criando novas possibilida-

des de criação e utilização de recursos. a in-

terdisciplinaridade corresponde a isso. não

só justapõe resultados, mas mescla métodos

e, consequentemente, identifica novos obje-

tos de estudo.

a interdisciplinaridade teve um bom desen-

volvimento no século passado e deu origem

a novos campos de estudo. surgiram a neu-

rofisiologia, a físico-química e a mecâni-

ca quântica. Inevitavelmente, essas áreas

interdisciplinares foram criando métodos

próprios e definindo objetos próprios de

estudo. Depois, se tornaram disciplinas em

si e passaram a mostrar as mesmas limita-

ções das disciplinas tradicionais. surgiram

então os especialistas em áreas interdisci-

plinares.

É oportuno falarmos de cultura. Há muitos

escritos e teorias fortemente ideológicos so-

bre o que é cultura. conceituo cultura como

o conjunto de mitos, valores, normas de

comportamento e estilos de conhecimen-

to compartilhados por indivíduos, vivendo

num determinado tempo e espaço.

ao longo da história, tempo e espaço foram

se transformando. a comunicação entre ge-

rações e o encontro de grupos com culturas

diferentes cria uma dinâmica cultural e não

podemos pensar numa cultura estática, con-

gelada em tempo e espaço. essa dinâmica é

lenta e o que percebemos na exposição mú-

tua de culturas é uma subordinação cultural

e algumas vezes até mesmo destruição de

uma das culturas em confronto, ou em al-

guns casos dá-se a convivência multicultural.

naturalmente, a convivência multicultural

representa um progresso no comportamen-

to das sociedades, conseguido após violentos

conflitos. agora, não sem problemas, ganha

espaço na educação o multiculturalismo.

enquanto os instrumentos de observação

(aparelhos – artefatos) e de análise (concei-

tos e teorias – mentefatos) eram mais limita-

dos, o enfoque interdisciplinar se mostrava

satisfatório. mas com a sofisticação dos no-

vos instrumentos de observação e de análi-

se, que se intensificou em meados do século

XX, vê-se que o enfoque interdisciplinar se

tornou insuficiente. a ânsia por um conheci-

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mento total, por uma cultura planetária, não

poderá ser satisfeita com as práticas interdis-

ciplinares. Da mesma maneira, o ideal de res-

peito, solidariedade e cooperação entre todos

os indivíduos e todas as nações não será rea-

lizado somente com a interdisciplinaridade.

não nego que o conhecimento disciplinar,

consequentemente o multidisciplinar e o

interdisciplinar, são úteis e importantes, e

continuarão a ser ampliados e cultivados,

mas somente poderão conduzir a uma visão

plena da realidade se forem subordinados ao

conhecimento transdisciplinar.

a educação está caminhando, rapidamente,

em direção a uma educação transdiscipli-

nar6.

6 ubiratan D’ambrosio: Educação para uma Sociedade em Transição, Papirus editora, campinas, 1999.

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II. AFROETNOmATEmáTICA, áFRICA E AFRODESCENDêNCIA1

Henrique Cunha Junior2

AFROEtnOMAtEMátiCA

afroetnomatemática é a área da pesquisa que

estuda os aportes de africanos e afrodescen-

dentes à matemática e à Informática, como

também desenvolve conhecimento sobre o

ensino e o aprendizado da matemática, da Fí-

sica e da Informática nos territórios da maio-

ria dos afrodescendentes. os usos culturais

que facilitam os aprendizados e os ensinos

da matemática nestas áreas de população,

de maioria afrodescendente, é a principal

preocupação desta área do conhecimento.

a afroetnomatemática se inicia no brasil pela

elaboração de práticas pedagógicas do movi-

mento negro, em tentativas de melhoria do

ensino e do aprendizado da matemática nas

comunidades de remanescentes de quilom-

bos e nas áreas urbanas, cuja população de

descendentes de africanos é majoritária, de-

nominadas de populações negras. esta afro-

etnomatemática tem uma ampliação pelo

estudo da História africana e pela elabora-

ção de repertórios de evidência matemática

encontrados nas diversas culturas africanas.

este estudo da História da matemática no

continente africano trabalha com evidên-

cias de conhecimento matemático contidas

nos conhecimentos religiosos africanos, nos

mitos populares, nas construções, nas artes,

nas danças, nos jogos, na astronomia e na

matemática propriamente dita realizada no

continente africano. o que é realizado para

o continente africano tem sua extensão para

as áreas de diáspora africana. a complexida-

de da racionalidade lógica africana é a maté-

ria por detrás destas pesquisas.

a preocupação com o ensino e o aprendiza-

do da matemática em territórios de maioria

afrodescendente nasce da constatação das

precariedades da educação formal matemá-

tica nestas áreas. constatamos que, em mui-

tas das áreas de maioria afrodescendente,

praticamente inexiste ensino competente

1 valores afro-brasileiros na educação – 2005 / Pgm4

2 Professor titular na universidade Federal do ceará.

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e adequado da matemática, existindo, em

decorrência disso, um grande fracasso no

aprendizado nos cursos de matemática, nas

escolas, o que fica imputado à população e

não à ineficiência do sistema educacional.

encontramos, em muitas destas áreas de

maioria afrodescendente, o credo esdrúxulo

e racista de que “negro não dá para a mate-

mática”. este credo esdrúxulo cria sua pró-

pria cultura de naturalização social e passa

a exercer a sua força de reprodução, servin-

do como justificativa ideológica da ausência

de políticas públicas do estado para o ensi-

no e aprendizado da matemática nestes ter-

ritórios. o dito “negro não dá mesmo para a

matemática” inferioriza os afrodescenden-

tes e cria um medo interior, uma rejeição a

essa área do conhecimento. Fica no ar um

pensamento, como se os testes escolares de

matemática pudessem revelar a verdade do

credo esdrúxulo, mostrando uma confirma-

ção da suposta inferioridade cognitiva des-

tes afrodescendentes para a matemática. o

credo serve para justificar a falta de ação e

de adequação do sistema educativo às ne-

cessidades de aprendizado matemático dos

afrodescendentes. a persistência de uma

abordagem universalista produz discursos

antipedagógicos de que os educadores en-

sinam “igualzinho a todos”, e se deduz que

“uns” aprendem, ou seja, os eurodescenden-

tes, sobretudo, e “outros” não aprendem. os

outros têm designação social de pretos, po-

bres e pardos.

nós, pesquisadores interessados no desem-

penho matemático de afrodescendentes, te-

mos observado que nos territórios de maio-

ria afrodescendente, por vezes, não existe

o ensino de matemática. trata-se apenas

de um simulacro de ensino de matemática.

as aulas de matemática são descontínuas,

dadas por professores improvisados e de

treinamento precário para desempenho das

suas funções. onde este ensino existe, ele é

deficiente e desprovido dos meios e méto-

dos adequados. no entanto, o ônus da defi-

ciência de um sistema educacional, que leva

sempre à submissão e à inferiorização dos

afrodescendentes, recai justamente sobre

os afrodescendentes, dando a impressão de

que temos uma dificuldade genética para o

aprendizado da matemática. assim, uma das

tarefas importantes da afroetnomatemática

é o uso da História de africanos e afrodes-

cendentes para mostrar o sucesso passado

nas áreas da matemática e dos conhecimen-

tos relacionados com esta área do conheci-

mento, como a arquitetura e a engenharia.

tendo em mente esta finalidade da afro-

etnomatemática é que organizamos este

texto, em quatro direções. abrimos nosso

caminho de exposição pela apresentação

biográfica resumida de quatro expoentes

afrodescendentes da arquitetura e da enge-

nharia na cultura brasileira. seguimos pela

exemplificação da matemática nas práticas

culturais africanas. reforçamos nosso argu-

mento pelas realizações da afroetnomate-

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mática pelas práticas culturais das religiões

do candomblé no brasil. terminamos pela

introdução de um jogo antigo africano, mui-

to útil para a educação matemática brasilei-

ra atual. a função deste texto é dar motiva-

ção ao leitor educador para ir consultar uma

literatura mais ampla, apresentada no final

do texto.

AFRODESCEnDEntES EXPOEntES nA EngEnHARiA E nA ARQuitE-tuRA

na década de 1970, eu estudei engenharia

na escola de engenharia de são carlos, da

universidade de são Paulo e, logo no início

do curso, encontrei nesta escola a presença

de dois destacados professores negros. um

já falecido, mestre da área de topografia e

aerofotometria, Professor sergio sampaio, o

outro, um dos engenheiros de renome na-

cional da área do Planejamento de transpor-

te, o Professor Doutor Felix bernardes.

comentando com meu pai sobre a presen-

ça destes professores ilustres, meu pai fez-

-me ver que a engenharia brasileira começa

com grandes expoentes negros. Dentre eles

mestre valentim, theodoro sampaio, an-

dré rebouças, antonio rebouças, manoel

Quirino. a história dos afrodescendentes na

engenharia brasileira é muito rica, mas um

pouco difícil de ser recuperada, pois muitos

dos participantes eram autodidatas, cons-

truíam sem terem diploma das escolas de

arquitetura. meu pai mesmo sempre traba-

lhou em engenharia na secretaria de obras

Públicas do estado de são Paulo, como dese-

nhista. no entanto, era autodidata e apren-

deu arquitetura e fez muitos projetos, cuja

assinatura foi de outro profissional diploma-

do. outra dificuldade é que o país sempre

desprezou o conhecimento de africanos e

afrodescendentes, devido aos racismos ou

à falta de conhecimento dos responsáveis

pela elaboração da cultura oficial.

mestre valentim é um gênio afrodescenden-

te, que inaugura o urbanismo no brasil. seu

mais importante projeto, o “Passeio Público

do rio de Janeiro”, construído em 1783, é o

primeiro conjunto arquitetônico urbano do

brasil e das américas com ajardinamento e

obras de arte ao estilo francês. trata-se de

um gênio do urbanismo, da arquitetura e

da escultura, cuja importância nacional é

quase que incomparável. a obra do mestre

valentin é única pela perfeição alcançada,

afirmam os especialistas (santos, 1978),

(batIsta, 1940). nasceu no serro, em minas

gerais, em 1745, filho de uma brasileira ne-

gra e de um português. viajando a Portugal,

aprendeu o ofício de escultor e entalhador

e aprendeu sobre edificações. retornou ao

brasil em 1770, passando a residir e traba-

lhar no rio de Janeiro. Durante a gestão do

vice-rei Dom luís de vasconcelos, de 1779

a 1790, foi o principal construtor de obras

públicas, atuando em saneamento, abaste-

cimento de Água e Praças Públicas. morreu

em 1813.

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theodoro sampaio (1855-1937). Dentre os

mestres dos mestres, a minha maior admi-

ração é pelo engenheiro theodoro sampaio,

devido à riqueza da sua história de vida. era

filho de escrava, nascido em santo amaro

da Purificação, na bahia, e, depois de for-

mado, reuniu dinheiro para comprar a liber-

dade da sua própria mãe. Foi um expoente

em diversas áreas do conhecimento, sendo

pesquisador na geografia, no saneamento

e na Filosofia. mesmo com a sua genialida-

de e cultura, foi vítima das diversas facetas

do racismo brasileiro, o que prejudicou em

muito a sua carreira profissional e acadê-

mica, sem, no entanto, impedi-lo de deixar

exemplar legado para as gerações que o su-

cederam. viveu e estudou em pleno escra-

vismo criminoso. estudou na escola Politéc-

nica do rio de Janeiro e se formou em 1877.

Foi engenheiro responsável pelos planos de

água e de saneamento das cidades de santos

e de salvador. Foi professor da Faculdade de

Filosofia e fundador da escola Politécnica da

universidade de são Paulo. Dedicou-se tam-

bém à política, sendo deputado federal pela

bahia, em 1927. a rua theodoro sampaio, no

bairro de Pinheiros, em são Paulo, é uma

homenagem de reconhecimento da socieda-

de paulistana a este ilustríssimo engenheiro

negro baiano (costa, 2001).

no período do Império, que também faz

parte do período do escravismo crimino-

so que foi mantido pelo Império brasilei-

ro, um negro baiano teve grande destaque

como advogado e estadista na corte. Ficou

conhecido com o nome de conselheiro an-

tonio rebouças. era autodidata e, devido a

seus conhecimentos, obteve licença para

exercer a advocacia em todo o país. ganhou

notoriedade nas lutas pela independência

do brasil na bahia. este estadista teve dois

filhos engenheiros que, pelas suas obras, fi-

zeram nome na engenharia brasileira. eles

são andré rebouças (1833 – 1898) e antonio

rebouças (1838 – 1991) (carvalho, 1998). o

túnel rebouças, existente na cidade do rio

de Janeiro, tem este nome em homenagem

ao engenheiro antonio rebouças. os dois

engenheiros são nascidos na cidade de ca-

choeira, no interior da bahia. estudaram

na escola Politécnica do rio de Janeiro, que

antes tinha o nome de escola militar, for-

maram-se em 1860 em engenharia, tendo

antes bacharelado em ciências Físicas e ma-

temáticas, em 1859, depois fizeram estudos

complementares de engenharia em grandes

estruturas na França. antonio rebouças se

dedicou à construção de estradas de ferro

e foi responsável pela construção da antiga

estrada de ferro de Paranaguá, no estado do

Paraná, uma das maiores e mais belas obras

da engenharia brasileira. andré rebouças

projetou obras de abastecimento de água do

rio de Janeiro e as Docas da alfândega, des-

ta mesma cidade. Foi engenheiro do exérci-

to brasileiro durante a guerra do Paraguai.

os irmãos rebouças foram abolicionistas e

lutaram em defesa dos direitos sociais dos

africanos e afrodescendentes.

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manoel Quirino foi artista plástico, arquite-

to, professor de desenho, artesão, jornalis-

ta, pesquisador da cultura de base africana,

político e sindicalista. torna-se difícil falar

de pessoa com tão amplo campo de conhe-

cimento e com uma vida tão intensa. se não

tivesse sofrido as injustiças da cor da pele,

seria sempre citado e aplaudido como um

grande intelectual brasileiro. o seu pensa-

mento abre um ciclo de uma nova forma de

pensar os africanos e as culturas africanas

no brasil. somente em tempos recentes foi

dada a importância que a sua obra merece

(leal, 2004), (soDrÉ, 2001). nasceu em ple-

no tempo de escravismo criminoso na bahia,

em 1851, e foi criado sobre as marcas deste

sistema injusto. Ficou órfão e foi criado por

uma família que logo percebe seus talentos

artísticos e o envia para os cursos de artes.

Foi convocado quando jovem para a guerra

do Paraguai, indo para o rio de Janeiro, mas

devido aos seus estudos consegue ficar livre

do recrutamento. voltando à bahia, inicia

ampla atividade sindical. Funda, em 1874, a

liga operária de artesões da bahia. Foi no-

meado vereador de salvador, sendo reeleito

pelo Partido operário. Paralelo às atividades

político-sindicais, completa os estudos em

artes e torna-se professor de Desenho. Dos

estudos em artes do Desenho, evolui para a

arquitetura. Foi intelectual ligado ao Institu-

to Histórico e geográfico da bahia. escreveu

no jornal A Província e O Trabalho. morreu

em 1923, deixando vários livros sobre a cul-

tura africana no brasil.

a nossa ancestralidade é a nossa história,

ela é base da nossa identidade étnica. e nos-

sa ancestralidade na arquitetura e na enge-

nharia brasileira é muito boa, por isto de-

veríamos cultuá-la e cuidá-la, para que nos

inspire no presente para formarmos grandes

engenheiros afrodescendentes. na ancestra-

lidade mais antiga africana, a religião tam-

bém registra feitos importantes nas áreas

de tecnologia, matemática, arquitetura e

engenharia, dados nos mitos sobre Inquises,

ou de orixás, como ogum e oya (gleason,

1999).

AFRiCAnOS nO uSO DA

MAtEMátiCA

Pequeno conto: O fazedor de fumaça branca

(Henrique cunha Jr.)

Parece ser costume de certas tribos euro-

peias realizar um estranho ritual. todas as

vezes, quando vão falar de África, o fazem

em ambientes fechados e acendem grandes

fogueiras. a fumaça branca logo toma o am-

biente e tolda os olhos e, mesmo olhando

para as coisas da África, eles não veem nada.

o hábito das fogueiras foi por muito tem-

po praticado pelas comunidades de cientis-

tas. um dia, alguns aboliram este método

e se surpreenderam com o que viram. Qual

a surpresa quando viram, na África, todas a

origens dos conhecimentos europeus. a vai-

dade era talvez a maior destas fogueiras.

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a prepotência europeia fez com que as teo-

rias racistas tivessem espaço na ciência do

ocidental, atrasando significativamente os

conhecimentos sobre o continente africano.

os povos africanos foram denominados de

tribais, incultos, meio irracionais e despro-

vidos de civilização. a onda de racismo nas

ciências se proliferou nos séculos 19 e 20.

Infelizmente, até hoje faz parte do conhe-

cimento difundido por muitos educadores

sem informações consistentes sobre o con-

tinente africano. esta ausência de informa-

ção e a prática da desinformação faz desses

educadores uns racistas inconscientes das

suas formas de ação.

Deste fato resulta que muitos não se con-

sideram racistas, mas executam práticas

educacionais e sociais racistas. as práticas

sociais inadequadas impediram a ciência

e os educadores de verem o esplendor das

culturas de base africana e a contribuição

destas para o conhecimento da humanida-

de. muitos dos feitos no campo do conhe-

cimento matemático foram considerados

como restritos ao egito e não viam que estes

conhecimentos se expandiram por extensas

regiões do continente africano. não conse-

guiam nem mesmo estabelecer que muitos

dos conhecimentos foram transmitidos de

outros povos africanos para o egito. Quan-

do eu leciono história africana (cunHa Jr.,

1999), começo dividindo a África em ma-

crorregiões em torno das grandes bacias

fluviais, e daí desenvolvo um mapa das rela-

ções comerciais e culturais entre as diversas

regiões africanas. Deste modo, mostro que

os conhecimentos, sobretudo os científicos

e tecnológicos, se propagam por todo o con-

tinente. outros caminhos poderiam ser to-

mados para este ensino, um deles é tomar

as construções africanas, relacioná-las com

a matemática e com a História da tecnolo-

gia no continente africano (costa; cunHa,

2004).

no continente africano, as bases numéricas

e as geometrias são diversas, mas existem

em todos os povos, elaboradas em lógicas

e formas de exposição que são, às vezes, de

difícil interpretação para quem foi formado

na cultura brasileira ocidental. esta dificul-

dade de interpretação e de compreensão da

forma de exposição levou, por muito tempo,

à conclusão errônea sobre a inexistência de

conhecimentos matemáticos importantes

nestas culturas.

as bases numéricas utilizadas são variadas

nas sociedades africanas (ZaslovsKY, clau-

dia, 1973). todas as sociedades africanas apre-

sentam formas de contar. as bases utilizadas

são as bases 4, 6, 8, 10, 12, 14, 16, 20 e 24.

os conhecimentos de geometria, no con-

tinente africano, não se restringem ao que

nós chamamos de geometria euclidiana.

outras lógicas de composição geométrica

são encontradas. uma delas, bastante di-

fundida em diversas aplicações praticas, é

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a geometria Fractal. a geometria Fractal é

constituída de um elemento geométrico de

base, que sofre replicamentos por operações

de rotação e ampliação. na geometria Frac-

tal, cada elemento é constituído de um con-

junto de elementos com o mesmo formato,

mas em tamanho e disposição diferentes.

os exemplos da geometria Fractal apare-

cem na construção de vilas de casas numa

cidade, em formas de penteados de cabelos,

em padronagem de tecidos ou em paredes

acústicas em cabanas (cunHa JunIor/me-

neZes, 2002). aqui no brasil, as geometrias

fractais aparecem na arte das culturas afro-

descendentes, sendo um excelente exemplo

alguns trabalhos de emanoel araújo, como

também de aluisio carvão. no campo da

matemática ocidental, o conhecimento da

geometria Fractal é muito recente e tem

tido grande utilidade nas áreas de produção

de circuitos semicondutores, nos campos da

Informática para representação e reconstru-

ção de formas complexas. as aplicações de

geometria Fractal estão relacionadas com

as tecnologias da Informática.

Para exemplificar a realização de uma figura

de geometria Fractal, foi tomado o fractal

de quadrados do Zaire, que aparece no livro

de mubumbila sobre ciências e tradições

africanas no grande Zimbábue (mubumbI-

la, 1992). o grande Zimbábue é uma região

na África austral. neste fractal, as figuras

de base são os quadrados e suas rotações,

com ampliações dos lados dos quadrados

nas mesmas proporções. esta figura geomé-

trica de base da esquerda aparece, na cultu-

ra da região, de diversas formas estilizadas.

ela está gravada em tecidos, leques de fibra

vegetal e desenhos corporais. entretanto,

este fractal tem uma importância maior

para a matemática. ele permite termos uma

demonstração original do teorema de Pitá-

goras pelas áreas das figuras geométricas

inscritas. trata-se de uma demonstração

importante de geometria, bem difundida em

uma grande região africana.

Para quem quiser ver a demonstração, te-

mos que a área do quadrado mais externo é

igual à do quadrado interno mais os quatro

triângulos retângulos complementares. o

lado do quadrado interno é a hipotenusa do

triângulo retângulo. o lado do quadrado ex-

terno é igual à soma dos lados do triângulo

retângulo. a área do triangulo retângulo é a

área do retângulo, dividida por dois. escre-

vendo a igualdade das áreas, sai o quadrado

da hipotenusa, que é igual à soma do qua-

drado dos catetos.

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215

MAtEMátiCA nOS tERREiROS

a minha formação em engenharia me levou

a uma especialização em sistemas Dinâmi-

cos. esta é uma área da matemática que

lida com sistemas que têm movimento e

que fazem, deste movimento armazenado,

energia. eu também tinha conhecimentos

em História africana e estava, em 1987, pre-

ocupado com as questões das tecnologias

africanas transportadas e modificadas por

africanos e afrodescendentes na História do

brasil e das américas. Por esta razão, eu vim

a conhecer duas historiadoras que trabalha-

vam com História das tecnologias na África,

as Dras. adelina apena, da nigéria; e gloria

emengale, de trinidad e tobago. ambas ti-

nham se doutorado na nigéria. elas foram

as pessoas que apresentaram os trabalhos

de Judith gleason (gleason, 1999), Paulus

gerdes (gerDes, 1993, 1990) e claudia Zaslo-

vsky (ZaslousvY, 1973), sobre matemática

nas sociedades africanas.

nos anos de 1980, as ciências da matemá-

tica de sistemas Dinâmicos complexos es-

tavam impactadas pelo que era considerado

um dos maiores avanços na ciência, que a

teoria do caos. esta teoria mudou muita a

nossa visão de cientistas sobre a organiza-

ção das ciências e sobre a nossa capacidade

em prever fatos da natureza através das ci-

ências. a teoria do caos explica a organiza-

ção interna de grandes distúrbios que pare-

ciam ser totalmente desorganizados e sem

uma explicação matemática. Foi uma teoria

revolucionária, que mostrou a importância

de pequenos efeitos físicos na produção de

gigantescos efeitos no futuro distante. a di-

vulgação da teoria do caos foi feita dizendo

que ela demonstrava que as batidas das asas

de uma borboleta na Ásia poderiam ser o iní-

cio de uma imensa turbulência atmosférica,

como um tufão no caribe, alguns meses ou

anos mais tarde. a exposição desta teoria

do caos se realizou por uma representação

matemática específica em diagramas circu-

Figura 1 - os quadrados fractais e suas variantes iconográficas.

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lares, mostrando as trajetórias caóticas das

variáveis observadas (cunHa Jr.; costa;

HolanDa; meneses, 2004).

o que tinha de impressionante em tudo

isto? estas representações da teoria do caos

já existiam há séculos nas representações da

Deusa oya, nas religiões africanas. esta re-

presentação está relacionada, na cultura do

terreiro, com os fenômenos de turbulência

atmosférica de grandes ventos. o trabalho

de Judith gleason (gleason, 1999) era mais

surpreendente, pois mostrava a existência

de uma combinação turbulenta atmosférica

de dimensão continental e de formação caó-

tica justamente sobre o continente africano

e muito bem representada no conhecimen-

to religioso do candomblé. Deduzimos, daí,

que o conhecimento da teoria do caos, que

é recente para a ciência ocidental, já estava

registrado e exemplificado como conheci-

mento religioso africano de diversas formas.

esta impressionante constatação mexeu

demais com a minha emoção e com o meu

respeito em relação aos conhecimentos do

terreiro. o meu respeito pelo conhecimento

ancestral triplicou, não se tratava apenas da

minha história, mas de histórias significati-

vas para o conhecimento da humanidade.

Desde então, a procura se ampliou, e não

tinha como não me inquietar pela organi-

zação dos chamados jogos de adivinhação

africanos (bascom, 1980), cujo exemplo bas-

tante conhecido é o jogo de búzios, no brasil.

a Informática trabalha com zeros e uns,

constituindo uma base de estrutura do cál-

culo binária, desenvolvida pela Álgebra de

boole. neste sistema, os números 2, 4 e 16

são de grande significado. os computado-

res eletrônicos evoluíram nas combinações

resultantes de 16 elementos, bits, para 32,

64, 256, 1.024 e 4.096 e assim por diante. o

interesse científico com relação à cultura do

terreiro aparece quando observamos que os

jogos africanos seguem esta mesma lógica.

os elementos de partida, no jogo de búzios,

são 16, e se procura a informação pela com-

binação desta probabilidade de ocorrência

do búzio aberto (hum) e do búzio fechado,

(zero), numa estrutura de 16 combinados

dois a dois. o jogo de búzios é realizado por

um especialista, depois de um longo perí-

odo de formação. Pois, ao movimento das

peças do jogo, que são os búzios, está asso-

ciada uma interpretativa filosófica, que são

os odus, e cuja complexidade implica uma

ampla reflexão sobre o destino possível dos

seres individuais e da sociedade na sua to-

talidade.

nas sociedades africanas tradicionais, esta

formação de especialista no jogo dura perío-

dos de até 20 anos.

mas a existência de uma estrutura numérica

2, 4, e 16 nos terreiros poderia ser tida como

simples coincidência. assim seria, mas não

é. não é, dado o conhecimento, pelos afri-

canos, de jogos de tabuleiros com esta es-

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trutura de 16 casas e jogados com dois ele-

mentos, nos quais se pode fazer cálculos em

diversas bases numéricas, em particular na

base binária. o conhecimento do equivalen-

te à Álgebra de boole, ocidental, nas socieda-

des africanas, é possível que date de mais de

3.000 anos. o professor Dr. africano muleka,

radicado no brasil e trabalhando em Jequié,

na bahia, apresentou tese na universidade

de são Paulo, mostrando estas evidências

dos jogos de búzios e da ligação destes com

o cálculo de estruturas computacionais.

estes são dois dos muitos exemplos signifi-

cativos de conhecimentos em matemática

e Informática que podemos encontrar nas

culturas de comunidades de terreiros.

AwARE, uM jOgO MilEnAR

AFRiCAnO

aware ou oware é um jogo que era joga-

do especialmente pelos povos ashanti, de

gana, e foi devido ao estudo deste povo que

tomei o primeiro conhecimento deste jogo

em 1982. mas, depois, vim a saber que este

jogo é encontrado em muitas regiões africa-

nas, com diferentes nomes. adi no Daomé,

andot no sudão, Wari ou ouri, no senegal e

mali. o jogo também chegou a diversas re-

giões das américas, inclusive ao brasil, com

os nomes de oulu, Walu, adji e ti. estas de-

nominações fazem parte de um conjunto

de jogos e formas de cálculo em tabuleiros

encontradas nas diversas partes da África e

da diáspora africana, que podem ser gene-

ralizados sob o nome de mancala. algumas

mancalas são ábacos usados para cálculo

aritmético, como se fosse um computador

de madeira.

as mancalas são jogos executados em tabu-

leiros de madeira, geralmente muito orna-

mentados. têm duas filas de casas côncavas

para cada lado de cada jogador. nas bases

das sequências de casas, temos duas cavida-

des maiores para servirem de depósito das

peças capturadas durante o jogo por cada

jogador. as mancalas mais conhecidas têm

duas fileiras paralelas de seis casas e são

atribuídas, a cada casa, quatro peças ou

quatro sementes para o funcionamento do

jogo. temos mancalas como o Yolé, com 30

casas, organizadas em 5 colunas, e jogado

com 12 peças de cores diferentes em cada

casa.

na versão mais simples da mancala, temos

o tabuleiro de 12 casas e o jogo começan-

do com 4 peças em cada casa. o objetivo do

jogo é recolher o maior número possível de

peças do jogador oponente. Para realizar o

jogo, um dos jogadores vai tomar as peças

de uma das suas casas e distribuí-las nas ca-

sas do outro jogador, sendo uma por cada

casa, no sentido anti-horário. neste sentido,

os depósitos das extremidades do tabuleiro

têm a função de casa. Quando se passa pelo

próprio depósito, deixa-se aí uma das peças,

quando na distribuição se passa pelo depósi-

to do oponente, se pula a distribuição.

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Quando, na distribuição das peças de uma

casa para as outras, a última peça cai no seu

depósito, então você joga de novo. mantém-

-se o mando do jogo. ou seja, escolhe-se

uma casa e se distribuem as peças aí conti-

das, uma a uma, em sequência anti-horária.

agora, na distribuição das peças, se a última

cair numa casa do seu lado, você leva para

o seu depósito todas as peças aí contidas.

se o buraco estiver vazio, leva-se esta peça

e todas da casa do lado oposto. o jogo ter-

mina quando toda uma fileira de casas de

um jogador estiver vazia. aí, são contadas as

peças contidas em cada depósito, vencendo

quem tiver maior número de peças. o jogo

implica uma constante observação de qual

casa se começa a tirar as peças e qual o nú-

mero de peças contidas para se manter a

continuidade de mando de jogo.

em algumas regiões da África, o jogo é re-

alizado na área, cavando-se pequenos bu-

racos em linha e utilizando pedregulhos ou

conchas como peças para os movimentos. o

mesmo pode ser realizado sobre uma mesa

com pires de xícaras de café ou chá e um

prato de sobremesa como depósito.

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III. A mULTICULTURALIDADE NA EDUCAÇÃO ESTéTICA1

Ana Mae Barbosa2

APRESEntAÇÃO

a necessidade de uma educação democrá-

tica está sendo reivindicada internacional-

mente, nos dias de hoje. contudo, somente

uma educação que fortalece a diversidade

cultural pode ser entendida como democrá-

tica.

a multiculturalidade é o denominador co-

mum dos movimentos atuais em direção

à democratização da educação em todo o

mundo. os códigos elaborados pelos euro-

peus e pelos norte-americanos brancos não

são os únicos válidos, apesar de serem os

mais valorizados na escola, por razões fun-

dadas na dependência econômica, que se

intensifica com a dependência cultural. a

preocupação com o pluralismo cultural, a

multiculturalidade e o interculturalismo nos

leva necessariamente a considerar e respei-

tar as diferenças, evitando uma pasteuriza-

ção homogeneizante na escola.

ser um professor multiculturalista é ser um

professor que procura questionar os valores

e os preconceitos.

sabemos que, no brasil, há preconceito con-

tra a própria ideia de multiculturalismo.

Para os mais preconceituosos, é coisa de

feminista histérica ou de “crioulo”; para ou-

tros, é invenção de americano, que não tem

nada que ver conosco porque, dizem, vive-

mos numa democracia racial e as mulheres

aqui têm acesso ao poder e os negros não

são discriminados.

o crítico de cinema norte-americano ro-

bert stam, em entrevista à Folha de S. Paulo

(04/07/95), lembra que o multiculturalismo

tem tudo a ver com o brasil. o modernis-

mo de mário de andrade, a antropofagia de

oswald de andrade e a “tropicália” de cae-

tano e gil são exemplos de um conceito de

multiculturalidade mais amplo até do que o

que os americanos estão manejando.

1 Debates: multiculturalismo e educação – 2002 / Pgm 3.

2 Professora da eca-usP (Pós-graduação, linha de pesquisa em arte educação).

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DESEnvOlviMEntO

o ideal mesmo será começar indagando por-

que o professor de arte precisa trazer para

sua sala de aula a preocupação com as dife-

renças culturais.

a resposta, embora pareça óbvia, foi até ago-

ra pouco considerada pelos educadores: em

uma sala de aula, especialmente na escola

pública, se inter-relacionam indivíduos de

diferentes grupos culturais, que terão sem-

pre que lidar com outros indivíduos também

de diferentes culturas e subculturas.

os grupos culturais que se imbricam podem

ser identificados pela raça, gênero, orienta-

ção sexual, idade, locação geográfica, renda,

idade, classe social, ocupação, educação, re-

ligião.

as principais questões que norteiam a atitu-

de multiculturalista no ensino da arte são:

1. como diferentes grupos culturais po-

dem encontrar um lugar para a arte

em suas vidas?

2. entender que grupos culturais diferen-

tes têm também necessidade da arte,

mas que o próprio conceito de arte

pode diferir de um grupo cultural para

outro.

a consciência de que estas questões são bá-

sicas, embora pareçam simples, ajudaria a:

1. compreender que a arte pode conferir

identidade às pessoas através de sím-

bolos. um exemplo: a arte Haida e a

arte contemporânea, no canadá, e a

arte marajoara, no brasil. Por que a

arte marajoara perdeu sua força para

conferir identidade e a arte Haida,

também indígena da mesma américa,

tornou-se dignificadora para os seus

descendentes e respeitada pelos in-

divíduos de outras culturas, inclusive

dominantes? atitudes pós-colonialis-

tas podem ser alimentadas pela atitu-

de pluralista em relação à cultura.

uma criança negra que visite um museu

que exiba arte ou “artefato” africano pode-

rá de lá sair com seu ego cultural reforçado

pelo conhecimento, apreciação e identifi-

cação com os valores vivenciais e estéticos

da arte africana, ou completamente des-

possuído culturalmente e desidentificado

com a gênese de sua cultura, dependendo

da orientação que o profissional do museu

que o receba der a sua visita. Já vi orientado-

res de museu ao falarem de arte africana se

referirem apenas à escravidão e aos fazeres

manuais dos escravos para contextualizar

os objetos e em nenhum momento se re-

ferirem às suas qualidades estéticas. entre-

tanto, quando se confrontavam com a arte

de código europeu e norte-americano bran-

co, a contextualização era institucional e a

apreciação transcendental, apelando para a

sensibilidade estética, a valoração econômi-

ca e a identificação com status social. além

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disso, a consciência relativa a estas questões

também contribui para:

2. sensibilizar para problemas de deficiên-

cia física e diferença de raças, nacio-

nalidade, naturalidade, classe social,

religião.

3. libertar-se de atitudes discriminatórias

em relação a pessoas de origem étnica

e ou cultural diferente.

4. ser capaz de responder à diversidade

racial, cultural e de gênero de maneira

positiva e socialmente responsável.

É através da contextualização de produtos e

valores estéticos que a atitude multicultura-

lista é desenvolvida.

Para uma experiência cognoscente que im-

pulsione a percepção da cultura do outro

e relativize as normas e valores da cultura

de cada um teríamos que considerar o fazer

(ação), a leitura das obras de arte (aprecia-

ção) e a contextualização, quer seja históri-

ca, cultural, social, ecológica, etc.

os Pcns preferiram designar a decodifica-

ção da obra de arte como apreciação. cos-

tumo usar a expressão “leitura” da obra de

arte em lugar de apreciação, por temer que

o termo apreciação seja interpretado como

um mero deslumbramento, que vai do arre-

pio ao suspiro romântico. a palavra leitura

sugere uma interpretação para a qual co-

laboram uma gramática, uma sintaxe, um

campo de sentido decodificável, a decodifi-

cação do mundo e a poética pessoal do de-

codificador.

a ênfase na contextualização é essencial em

todas as vertentes da educação contempo-

rânea, quer seja ela baseada em Paulo Freire,

vygotski, apple, ou genericamente constru-

tivista. sem o exercício da contextualização,

corremos o risco de que, do ponto de vis-

ta da arte, a pluralidade cultural se limite a

uma abordagem meramente aditiva.

a multiculturalidade aditiva vem sendo ve-

ementemente criticada por sociólogos, an-

tropólogos, educadores e arte educadores.

Por abordagem aditiva entendemos a atitu-

de de apenas adicionar à cultura dominante

alguns tópicos relativos a outras culturas.

multiculturalidade não é apenas fazer cocar

no “Dia do Índio”, nem tampouco fazer ovos

de Páscoa ucranianos ou dobraduras japo-

nesas ou qualquer outra atividade clichê de

outra cultura.

o que precisamos é manter uma atmosfe-

ra investigadora na sala de aula acerca das

culturas compartilhadas pelos alunos, tendo

em vista que cada um de nós participa no

exercício da vida cotidiana de mais de um

grupo cultural.

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Por exemplo, eu me defino, ao mesmo tem-

po, como mulher, do ponto de vista de gêne-

ro; nordestina, do ponto de vista da locação

cultural; arte educadora, do ponto de vista

da ocupação; branca, do ponto de vista da

etnia; heterossexual, do ponto de vista da

orientação sexual; classe média, do ponto de

vista da renda. Portanto, pertenço a alguns

grupos de cultura dominante, mas também

pertenço a grupos culturais discriminados,

como o de mulheres e de nordestinos em

são Paulo. além disso, como arte educado-

ra, sou discriminada por artistas, historiado-

res e críticos, os grupos dominantes na área

de arte.

Diria que, para termos uma educação mul-

ticulturalista, crítica em arte, é necessário:

1. Promover o entendimento de cruza-

mentos culturais através da identifica-

ção de similaridades, particularmente

nos papéis e funções da arte, dentro e

entre grupos culturais.

2. reconhecer e celebrar diversidade ra-

cial e cultural em arte em nossa socie-

dade, enquanto também se potenciali-

za o orgulho pela herança cultural em

cada indivíduo.

3. Incluir em todos os aspectos do ensino

da arte (produção, apreciação e con-

textualização) problematizações acer-

ca de etnocentrismo, estereótipos cul-

turais, preconceitos, discriminação,

racismo.

4. enfatizar o estudo de grupos particula-

res e/ou minoritários do ponto de vis-

ta do poder como mulheres, índios e

negros.

5. Possibilitar a confrontação de proble-

mas tais como racismo, sexismo, defi-

ciência física ou mental, participação

democrática, paridade de poder.

6. examinar a dinâmica de diferentes cul-

turas.

7. Desenvolver a consciência acerca dos

mecanismos de manutenção da cultu-

ra dentro de grupos sociais.

8. Incluir o estudo acerca da transmissão

de valores.

9. Questionar a cultura dominante, laten-

te ou manifesta, e todo tipo de opres-

são.

10. Destacar a relevância da informação

para a flexibilização do gosto e do juí-

zo acerca de outras culturas.

embora isto esteja com cara de 10 manda-

mentos da multiculturalidade em arte, ar-

riscaria dizer que não são um regulamento,

mas lembretes críticos que, se postos em

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prática, desmentiriam muitos preconceitos

culturais,como, por exemplo, a ideia de que

a melhor arte é a produzida pelos europeus

e a ideia de que a pintura a óleo e a escultura

em mármore são as mais importantes for-

mas de arte. estas ideias só reforçam o códi-

go hegemônico. outra ideia preconceituosa

de que a melhor arte tem sido produzida

por homens também seria desmentida se

a contextualizássemos em relação ao papel

secundário que as sociedades têm determi-

nado para as mulheres. a diferença hierár-

quica entre artesanato e arte, que é também

preconceituosa, seria contestada se anali-

sássemos o valor dos saberes dos pobres e

dos ricos auferido pela cultura dominante.

Para chegarmos à desmistificação de muitos

preconceitos é necessário discutir:

1. a função da arte em diferentes culturas;

2. o papel do artista em diferentes cultu-

ras;

3. o papel de quem decide o que é arte e

o que é arte de boa qualidade em dife-

rentes culturas;

estas discussões contribuiriam para:

1. o respeito às diferenças;

2. o reconhecimento de manifestações

culturais que não se encaixam no sis-

tema de valores que subscrevemos;

3. a relativização de valores em relação ao

tempo.

Propor atividades, como identificar as for-

mas de arte que importam em uma varie-

dade de culturas e subculturas, seria uma

estratégia que poderia levar a uma atitude

multiculturalista.

educação multiculturalista permite ao alu-

no lidar com a diferença de modo positivo

na arte e na vida.

não adianta nada fugir do uso de palavras

como branco, negro, raça, etc. a chamada

linguagem politicamente correta, como diz

gloria steinem, foi criada pelas feministas

para ironizar o comportamento masculino

que buscava escamotear a discriminação.

o engraçado é que todos levaram a sério,

quando a luta antidiscriminatória consiste

em falar a verdade abertamente, dar o ver-

dadeiro nome que designa o preconceito e

não se adaptar aos novos tempos através

de designações científicas ou supostamen-

te respeitosas, como etnia em vez de raça,

afro-brasileiro em vez de negro.

ao substituirmos raça por etnicidade, um

princípio de organização socioeconômico e

de coesão, inadvertidamente negamos a his-

toria do racismo (Jan JagoDZInsKI, 1997).

Isto significa que a responsabilidade dos

brancos pela exploração e opressão dos ne-

gros e índios é suavizada pela demissão da

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história. continuaremos a mostrar a nossos

alunos o monumento às bandeiras, de bre-

cheret, como uma magnífica obra de arte,

sem analisar o fato de que ela comemora um

episódio colonialista de nossa história, no

qual a matança e a escravização dos nativos

– os índios – atingiu proporções dizimadoras?

o politicamente correto é um clichê.

o que acontece em geral é que mudou a lin-

guagem, mas o preconceito permanece ago-

ra disfarçado.

militância multiculturalista é compromisso

com o desmonte de preconceitos e não com

linguagem atenuante.

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Iv. A CONSTRUÇÃO ESTéTICO-CULTURAL DE Um ESPAÇO1

Laura Maria Coutinho2

“As primeiras lembranças da vida são lembranças visuais. A vida, na lembrança,

torna-se um filme mudo. Todos nós temos na mente a imagem que é a primeira,

ou uma das primeiras, da nossa vida. Essa imagem é um signo, e, para sermos

mais exatos, um signo linguístico, comunica ou expressa alguma coisa3”.

assim como a primeira imagem da vida, a

que se refere Pasolini na epígrafe acima, cada

um de nós traz consigo a imagem da sua pri-

meira escola ou ainda a primeira imagem de

uma escola, ainda que esta nem tenha sido

a sua.o primeiro professor, ou professora

- geralmente as mulheres atuam mais nes-

ses anos iniciais de escolarização -, também

compõem nosso banco pessoal de imagens,

escolares ou não. os primeiros colegas... a

turma, a fotografia da turma - quando isso

fosse possível. todas essas imagens ensinam

e conformam a ideia que vamos ter dos lu-

gares sociais por onde transitamos. É assim

com a escola, a família, o trabalho, a cidade,

os hospitais, os hospícios, as prisões...

o que faz o cinema, então? cria imagens que

são, ao mesmo tempo que as vemos como

reais, expressão de coisas e pessoas com as

quais convivemos em nossas lembranças. e

as lembranças têm origem em muitos luga-

res e situações: nas histórias que ouvimos

em casa, nas experiências pessoais de cada

um, na televisão, nos filmes. também por

isso gosto da ideia de que o cinema é uma

arte da memória4. as cenas que vemos es-

tampadas nas telas não dizem somente da-

quelas personagens cuja história se desen-

volve à nossa frente, no tempo que durar a

projeção, mas remetem a todas as outras

histórias e personagens que habitam as nos-

sas lembranças. o cinema, com alguns dos

2 Professora da Faculdade de educação da unb. consultora desta série. Participaram de uma discussão na disciplina “Imagem e educação”, de onde se originou este texto, os professores maria madalena torres, cristiane terraza, neusa Deconto, Paula miranda, mário maciel-marel.

3 Pasolini, Pier Paolo. “gennariello: a linguagem pedagógica das coisas” em: Os jovens infelizes: antologia de ensaios corsários. são Paulo: brasiliense, 1990, p. 125.

4 ver almeida, milton José de. Cinema - arte da memória. campinas: autores associados, 1999.

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seus filmes, nos faz até mesmo sentir sau-

dade de lugares aonde nunca pisamos e de

pessoas com as quais jamais estivemos. e o

faz em realidade e ficção.

no cinema, são os ambientes que (re)-conhe-

cemos claramente que sugerem ações, com-

portamentos, atitudes que podem, além de

nos fazer olhar para o filme, olhar também

para os lugares onde vivemos e, igualmente,

para a vida que levamos em casa, na cidade,

na escola. Disse (re)-conhecemos, porque

embora possamos estar vendo os lugares fic-

cionados que o cinema apresenta, pela pri-

meira vez, os mecanismos de construção da

linguagem cinematográfica ativam as lem-

branças e assim, vemos as imagens na tela

não somente com o que objetivamente nos

mostram, mas também em reminiscências.

Por meio da linguagem do cinema, é possí-

vel ver tudo o que as imagens nos sugerem.

no momento da projeção, acontece sempre

um jogo entre a objetividade das imagens e

a subjetividade das lembranças de cada um

dos espectadores.

Por isso, o cinema na escola pode ser tão

rico. mais do que os conteúdos que cada fil-

me possa trazer, a presença do cinema na

escola pode se constituir em momentos de

reflexão que transcendam os próprios filmes

e incluam o olhar de cada um à narrativa que

o diretor propôs e nos ofereceu, em imagens

e sons. Quando vamos ao cinema, às salas

escuras de projeção, ao final, as imagens, as

histórias, os personagens nos acompanham,

solitárias, para além do filme, às vezes para

sempre. na escola, quando o filme termina,

é possível conversar sobre ele e construir

uma ou quantas outras histórias cada pes-

soa que viu quiser acrescentar.

são muitas as razões que justificam o cine-

ma na escola. a sala de aula não é uma sala

de cinema. talvez por isso mesmo possa se

constituir em um outro ambiente, que não

é nem um nem outro, nem a simples soma

dos dois. Pode se transformar em algo novo,

tão ou mais rico em possibilidades expres-

sivas e reflexivas: os filmes, na escola, são

projetados em telas de tevê e o videocassete

proporciona outras formas de ver. Pode-se

parar o filme, voltar a fita, ver novamente.

acontece uma outra relação com os filmes

que, no cinema, uma vez iniciados, seguem

certo percurso espaço-temporal sem ser in-

terrompido. ainda que o espectador possa

levantar e sair da sala, o filme prossegue, a

menos que falte luz. É bom lembrar, portan-

to, que estamos falando de linguagens que

dependem de energia elétrica.

Professores e alunos podem utilizar filmes

por muitos motivos: para enriquecer o con-

teúdo das matérias, para introduzir novas

linguagens à experiência escolar, para mo-

tivar os alunos para certo tipo de aprendi-

zagem, para o desempenho de determinada

função, para entretenimento. não que o ci-

nema chegue na escola sem conflitos. talvez

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o cinema na escola deva mesmo se consti-

tuir em oportunidades para a explicitação

dos conflitos com os quais a escola e a edu-

cação têm de lidar.

milton José de almeida diz que “o filme é

produzido dentro de um projeto artístico,

cultural e de mercado - um objeto da cul-

tura para ser consumido dentro da liber-

dade maior ou menor do mercado. Porém,

quando é apresentado na escola, a primeira

pergunta que se faz é: ‘adequado para que

série, que disciplina, que idade etc.?’ Às ve-

zes ouvimos dizer que um filme não pode

ser passado para a 6ª série, por exemplo,

e no entanto ele é assistido em casa pelo

alunos, juntamente com seus pais.(...) [a

escola] está presa àquela pergunta sobre a

adequação, à ideia de fases, ao currículo,

ao programa. Parece que a escola está em

constante desatualização, que é sublinhada

pela separação entre a cultura e a educação.

a cultura localizada num saber-fazer e a es-

cola num saber-usar, e nesse saber-usar res-

trito desqualifica-se o educador, que vai ser

sempre um instrumentista desatualizado”5.

entendo a provocação proposta por milton

almeida como um desafio a todos os edu-

cadores que estão nas escolas e encontram

nos filmes e na linguagem cinematográfica

uma forma de ver o mundo em seus múlti-

plos cenários.

um dos múltiplos cenários que o cinema

contempla é a própria escola. Inúmeros

filmes tratam dela. assim, direta ou indire-

tamente, os filmes nos ajudam a construir

nossa imagem de escola, de professores,

de alunos e, até mesmo, da forma como a

educação escolarizada se insere ou deve se

inserir na sociedade. convido, então, a uma

breve reflexão sobre como a escola é vista

pelo cinema, ou como alguns filmes tratam

as relações que ocorrem nesse espaço so-

cial. os personagens que por ali transitam,

os papéis que desempenham, as tramas, os

desafios, os conflitos. Penso que a filmogra-

fia que tem a escola como cenário principal

da narrativa não é tão extensa quanto a que

tem como cenário as prisões, por exemplo.

talvez porque para haver um filme é preci-

so algum tipo de conflito e os conflitos, nas

prisões, são mais evidentes do que nas esco-

las, têm mais impacto visual. É bom lembrar

que estamos falando de filmes de ficção e

não de documentários.

os campeões de audiência, ou os sucessos de

bilheteria, nas escolas, são os filmes que tra-

tam de situações escolares-educacionais, ou

de outras que acontecem dentro delas, ou,

ainda, que têm as escolas como referência,

pano de fundo. Penso que o que professores

e alunos buscam, ao levar esses filmes para

a escola, são as situações exemplares que o

5 almeida, milton José de. Imagens e sons: a nova cultura oral. são Paulo: cortez, 1994, p.8.

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cinema tão bem retrata. não quero aqui res-

tringir o que chamo de exemplar, a simples

exemplo a ser seguido. talvez fosse melhor

dizer modelar, como alguma coisa que pode

conformar a nossa imaginação e a nossa

memória e, até mesmo, a nossa maneira

de perceber o mundo e a sociedade que nos

cerca. encontrei em muitos escritos, filmes,

programas de tevê, uma ideia sobre isso e

que pode ser traduzida mais ou menos as-

sim: toda imaginação é uma espécie de me-

mória6.

assim retorno ao que já expus no início do

texto: a linguagem cinematográfica, os fil-

mes que vemos - na escola ou fora dela -,

as situações que imaginamos depois dos

filmes, irão compor, em estética e magia, a

memória de cada um. a ideia que cada um

de nós tem de escola transita, em realida-

de e ficção, pelas imagens reais das escolas

onde estivemos e imagens ficcionais que co-

nhecemos através do cinema, da televisão.

recorremos às nossas lembranças, sejam

elas boas ou ruins, sempre que queremos

imaginar, projetar, criar alguma coisa nova.

ensinar e aprender são atos de criação; re-

correr aos filmes pode ser apenas parte des-

se esforço criativo.

o mundo visto pelo cinema tem matizes

próprios, embora os filmes retratem a vida

como ela é, cheia de contradições, as histó-

rias apontam para a transformação, para a

mudança. talvez porque a escola seja mes-

mo um ambiente propício às mudanças ou

porque o filme não se concretizaria sem

que cumprisse a sua estrutura narrativa:

apresentação, desenvolvimento, conflito,

clímax, desenlace. “a narrativa parece ser o

modo mais simples e eficaz de nosso conhe-

cimento, o modo pelo qual apresentamos o

mundo e os homens de forma que, por um

momento, sejam inteligíveis para nós mes-

mos. conhecer pode ser apenas isto: contar

uma história onde o espaço e o tempo do

mundo se conjugam na sucessão linear dos

acontecimentos”7.

muitas das escolas que conhecemos nos

filmes trazem a marca da sociedade ameri-

cana. somos alfabetizados audiovisualmen-

te pelo cinema feito nos estados unidos.

gosto da ideia de que o cinema americano

é o maior do mundo porque retrata uma so-

ciedade que acredita no milagre. talvez por

isso mesmo tenha se apropriado, como ne-

nhuma outra, da linguagem cinematográfi-

ca, e feito dela uma de suas mais poderosas

6 esta frase encontrei no livro de shirley maclaine, (Dançando na luz, rio de Janeiro: record, 1987, p. 37.) que, talvez não por acaso, é atriz e roteirista, embora esse livro não trate de cinema.

7 lázaro, andré. cultura e emoção: sentimento, sonho e realidade. In: rocha, everardo. (org.) cultura & Imaginário. rio de Janeiro: maud, 1998, p.151.

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indústrias. Pequenos milagres se realizam a

cada filme. como a redenção da escola po-

bre, de bairro mais pobre ainda, no filme

“meu mestre, minha vida” do diretor John

g. avildsen. lá os alunos estavam reféns de

traficantes, vândalos e toda sorte de bandi-

dos e, pela intervenção de um novo diretor

com métodos nada convencionais de ensi-

nar e administrar uma instituição escolar,

conseguem vencer o exame estadual em

tempo recorde.

lembro que este filme deixa claro o fato de

basear-se em uma história real. uma vez

mais realidade e ficção se fundem para rea-

lizar o milagre de uma sociedade estratifica-

da, hierarquizada, legalista, centrada no es-

forço individual e na vida comunitária, qual

seja, formar vencedores. e o que é ser um

vencedor? a resposta a essa pergunta pode-

mos encontrar em quase todas a imagens do

filme, mas sobretudo num dos discursos do

diretor a seus alunos: precisamos mudar esta

escola, pois vocês estão muito longe do sonho

americano que vemos na tevê. mas uma vez

vemos as narrativas audiovisuais - do cine-

ma e da televisão - constituindo a vida de

uma nação, ou pelo menos o seu imaginário.

são muitas as histórias que envolvem a es-

cola que o cinema retrata, posso citar algu-

mas: A corrente do bem; Mr. Holland, adorá-

vel professor; Conrak; Sociedade dos poetas

mortos, Perfume de mulher (EUA), Adeus, me-

ninos (França). assistimos a histórias com-

pletamente possíveis, não há nelas nenhum

efeito especial de linguagem. os professo-

res sobretudo, os diretores, os alunos, pais

cumprem a sua função e seu papel. ora es-

tão mais próximos do herói redentor, ora do

bandido mais prosaico. a magia do cinema

ali, é o próprio cinema, com a sua lingua-

gem que se expressa por meio da realidade,

mesmo sendo ficção. Procurando os filmes

brasileiros que passam em escola, encontrei

poucos. É bom lembrar que a nossa filmo-

grafia não é mesmo muito extensa por mui-

tos motivos que não cabem neste escrito. e

escrevendo este texto fiquei pensando que,

talvez, diferente dos americanos, sejamos

um povo que não acredita no milagre, mas

na vida como ela é. talvez por isso não este-

jamos cuidando o bastante do nosso ensino

público e tenhamos deixado o cinema para

os americanos e para alguns poucos obsti-

nados conterrâneos que, além de acreditar

no milagre do cinema, acreditam também

neste país.

Para encerrar esta nossa reflexão, recorro a

Jean-claude carrière8 quando diz que a na-

ção que não produzir suas próprias imagens

está fadada a desaparecer. Por isso penso

no cinema que vem de países que se dão a

8 roteirista e escritor. Presidente da FemIs, escola francesa de cinema, autor do livro A linguagem secreta do cinema. rio de Janeiro: nova Fronteira, 1995.

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conhecer por seus filmes de forma comple-

tamente diversa da que vemos nos noticiá-

rios da tevê. a tevê nos revela imagens cons-

truídas por um olhar estrangeiro. os filmes

por um olhar próprio. são assim os filmes

os filhos do paraíso e gabet; ambos tratam

com delicadeza e poesia situações escolares.

muito diferentes do que vemos no cinema

americano, embora a educação para todos

os povos se constitua em um processo de

transformação. talvez não seja exagero di-

zer, e se o for, deixo como forma de provo-

car o debate, que a nação que não recorrer

às suas próprias imagens para educar suas

crianças e seus jovens estará fadada a de-

saparecer duplamente. mas como lembra

manoel de barros, “o mundo não foi feito

em alfabeto” e também não em linguagens

audiovisuais. talvez possamos reunir todas

as linguagens e construir, como ainda diz o

poeta “uma didática da invenção”9.

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v. O ESPAÇO DOS vÍDEOS NA SALA DE AULA: A DIFUSÃO DE mENSAgENS SOBRE AFRO-BRASILEIROS1

Heloisa Pires Lima2

se “é de pequenino que se torce o pepino”,

o velho dito popular não deixa de nos aler-

tar sobre o fato de que é mais fácil deixar

de introduzir um preconceito do que retirá-

-lo depois. a percepção dos afro-brasileiros

também atravessa o ambiente escolar, onde

estudantes são informados e formados no

que devem acreditar e valorizar a respeito

destes. outro alerta está em não nos esque-

cermos de que o processo de construção de

identidades sempre necessita de referen-

ciais. no entanto, se centralizarmos, para

análise, o repertório sobre afro-brasileiros

que entra através dos vídeos em sala de

aula, há de se concluir que ele, como motivo

de reflexão, é restrito e raro. esta é uma das

formas cúmplices na reprodução das estere-

otipias que sobrevivem no cotidiano escolar,

base para percepções.

Por outro lado, a demanda social por uma

cidadania plena para essa população tem no

espaço educacional um grande potencial

para a superação de desigualdades históri-

cas. É preciso, sobretudo, superar o silêncio

oficial, que consiste na ausência de um ma-

terial de apoio bem cuidado, para referên-

cia, o que resulta numa deficiente prepara-

ção dos educadores.

como pressuposto primeiro, há para consi-

derar o circuito dos meios de comunicação

eficazes, com suas representações da rea-

lidade, sendo o videográfico uma poderosa

linguagem transmissora de mensagens. se

há críticas, que em sua maioria não são po-

sitivas, por que não potencializar esse ins-

trumental a favor de uma educação baseada

nos valores inspirados nas perspectivas da

lei n. 10. 639? antes, porém, o exercício de

leitura dos conteúdos sempre se torna re-

levante. tomemos, para exemplo, a repre-

sentação de um personagem escravizado

bastante recorrente como referência para

a identidade sobre afro-brasileiros. a chave

emocional do sofrimento como associação

1 repertório afro-brasileiro – 2004 / Pgm 3

2 consultora para a série repertório afro-brasileiro. antropóloga, mestre e doutoranda pela usP, escritora de livros infanto-juvenis como Histórias da Preta (1998).

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pode ser uma armadilha para a correspon-

dência. um telespectador, se afrodescen-

dente, tem que lidar com a dor exposta na

tela e reviver constrangimentos históricos.

não sendo, esta memória pode ainda levar a

concluir ser a população escravizada tão so-

mente um grupo de perdedores sociais. re-

tomar a escravização, geralmente com rela-

ções de poder unilaterais, reifica uma marca

social. o caso de reavivar um passado é mais

complicado ainda, visto serem os modelos

de referência sobre afro-brasileiros muito

restritos como leque de representações. o

problema não é ser escravizado, mas ser tão

somente e apenas escravizado. Isto sem fa-

larmos no histórico dessas abordagens que

idiotizaram, tornaram paisagem, perpetu-

ando a ideia de objetos posta na escraviza-

ção, sem problematizar essa ideia. ou, en-

tão, quando esses personagens se tornam

protagonistas, passam por um processo de

branqueamento infalível.

É importante acompanharmos o debate pro-

posto por uma inédita geração de cineastas

negros, como a fala de Jeferson De, um dos

idealizadores do Dogma Feijoada. ao comen-

tar sobre uma presença de protagonistas ne-

gros nos filmes nacionais, chama a atenção

para o fato de que em todos foi colocada

uma arma na mão. Diferentemente, os ne-

gros que ele procura retratar nos seus filmes

não estão nem com um pandeiro na mão,

nem como uma bola no pé e nem com uma

arma ar-15 na mão. a maioria negra, na opi-

nião de Jéferson De, não mexe com pandei-

ro, não mexe com uma ar-15 e não trabalha

com bola de futebol3.

Dá para perceber, então, que acompanhan-

do a questão dos livros que circulam na sala

de aula, o acervo ficcional de vídeos disponí-

veis deve ser selecionado de modo a ampliar

o repertório de associações sobre afro-brasi-

leiros. soma-se a isto o problema da aborda-

gem nesses clichês, mais agravada quando o

público dessa produção é o infanto-juvenil.

cabe atribuir aos meios de comunicação

uma alta cota de responsabilidade na oferta

de materiais que garantam o bem-estar so-

cial, moral, espiritual e mental da criança, o

que não pode ser deixado por conta da boa

vontade profissional e ética dos realizado-

res. É fundamental trabalhar a capacitação

dos telespectadores, incentivar o debate,

aprimorar formas seletivas que visem pre-

miar roteiros inovadores e cuidadosos. De-

ve-se ressaltar o fenômeno do filme Kiriku e

a Feiticeira, que tem inspirado inúmeras ini-

ciativas de educadores atentos à qualidade

da construção da figura humana africana. a

afetividade que acompanha o personagem

demonstra um caminho para a inversão cul-

tural necessária como representação. outro

3 entrevista realizada em 17/12/2002 - Por thiago P. ribeiro no site: htpp://www.cinemando.com.br

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exemplo é O menino, a favela e a tampa de pa-

nela, do diretor cao Hamburguer, que retra-

ta uma favela, referência como repertório

associado aos afro-brasileiros. no entanto,

o que de fato é roteirizado é a história da

afetividade nas relações entre o herói real,

no ambiente real, mas que não é desvalori-

zado por ser espaço de pobreza. tem uma

mãe que tem um abração do tamanho do

mundo, um guri que cumpre uma tarefa,

enfim um enredo que emociona e que valo-

riza positivamente, dignamente, e é preciso

ainda apontar, que humaniza o imaginário

sobre a vida na favela.

outro aspecto, ao pensarmos no potencial

da videoteca, está em promover o diálogo

entre pesquisadores e cineastas, o que seria

tão salutar quanto incentivar o registro por

educadores de suas atividades nessa lingua-

gem. a desconstrução da teia de ideias pos-

ta numa película se aperfeiçoa no domínio

dessa tecnologia particular. o exercício pode

se estender aos alunos, que serão mais crí-

ticos e compreenderão melhor o processo,

se também se posicionarem como produto-

res, seguidos pela avaliação da comunidade.

assim, eles estarão mais bem preparados

quando expostos a violências simbólicas na

difusão de mensagens que possam cons-

tranger, oprimir, hierarquizar. a forma de

ver o filme em sala de aula, seguida de ativi-

dades participativas a ele relacionadas ou à

linguagem audiovisual do deleite, influencia

no entendimento das leis próprias desse có-

digo visual. essa alfabetização também ne-

cessita ser iniciada.

uma variedade de possibilidades pode ser

observada na construção da África como

material cinematográfico, depois circulan-

do como vídeo. se sempre existe um ponto

de vista, uma abordagem na arquitetura da

representação, vale alertar que os africanos

foram retratados por décadas a partir de

representações caricaturais, de onde ema-

naram canibais, ingênuos, boçais, infantis,

macaqueadores do branco, travestis dos

europeus e incapazes de se governarem por

si mesmos. eles não tinham inteligência e

não realizavam feitos pessoais. carregados

de faltas, circularam nas telas com o reforço

de não terem a boa pele, o bom cabelo, a

boa língua, a boa religião. essa foi uma Áfri-

ca produzida por europeus e americanos,

num elaborado sistema de ideias-imagens,

que montou um esquema de referências que

dá legitimidade à ordem vigente. Historica-

mente, a África e os africanos são apresen-

tados sob a viscosidade do paternalismo, em

filmes onde geralmente apareceram estúpi-

dos, subevoluídos, ridículos, selvagens, no

patamar da animalidade, articulados num

universo de desigualdade e troça.

e é exatamente por isso que as autoridades

não podem permanecer indiferentes em re-

lação à garantia da qualidade do que é vei-

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culado para as jovens idades. Quanto mais

tenras, menor a defesa para internalizar

crenças e valores que circulam vinculadas

a estratégias de poder, à mediocridade pro-

gramada, ao consumo, etc.

a lei Federal n. 10.639, vinda de encontro a

antigas reivindicações dos movimentos so-

ciais negros, atinge o sistema de produção

de material de apoio quando focaliza a vi-

deoteca pendente, ora para sua avaliação,

ora para o seu potencial para as mudanças

necessárias. nesse contexto, vale salientar

ainda o espaço estratégico para programas

que discutam, atualizem, sejam vitrine das

produções, como é o caso dos programas

educativos, programas documentais com

matérias que problematizem percepções de

mundo.

o encanto produzido por uma obra pode vir a

ser um instrumento de valorização positiva e

construtiva dos referenciais afro-brasileiros.

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236

vovele, michel. Imagens e imaginário na

História. são Paulo, Ática.

vIDeograFIa - cInematograFIa

A Revolta do Video Tape - rogério moura (bra-

sil)

Abolição - Zózimo bulbul (brasil)

Aruanda - linduarte noronha (brasil)

Assalto ao Trem Pagador - roberto Farias

(brasil)

Cafundó - Joel Yamaji (brasil)

Candombe - rafael Deugênio (uruguai)

Carolina- Jéferson De

Cecília - Humberto solás (cuba)

Chico Rei - andré reis martins (brasil)

Faça a Coisa Certa - spike lee (eua)

Família Alcântara - Daniel santiago (brasil)

Filhas do Vento - Joel Zito araújo (brasil)

Ganga Zumba - carlos Diegues (brasil)

Gênesis - Jefferson De (brasil)

Geraldo Filme - carlos cortiz (brasil)

Kirikou e a Feiticeira - michel ocelot (França)

La ultima Cena - tomás gutiérrez (cuba)

Little Senegal - rachid bouchareb (alg./Fr./

al.)

Minoria Absoluta - arthur autran (brasil)

O menino, a favela e as tampas de panela- cao

Hamburger (brasil)

O Rito de Ismael Ivo - ari candido (brasil)

Redenção de Ogun - moira toledo (brasil)

Um reino Xingu - Helena tassara (brasil)

Rio 40 Graus - nelson Pereira s. (brasil)

Rio Zona Norte - nelson Pereira s. (brasil)

Ritmo N´Angola - antônio ole (angola)

Vista Minha Pele - Joel Zito araújo (brasil)

Wild Style - Fab 5 Freddy (eua)

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vI. O SIgNIFICADO DA ORALIDADE Em UmA SOCIEDADE mUL-TICULTURAL1

Maria Elisa Ladeira2

o problema teórico implícito nas propostas

educacionais relativas à aquisição da escri-

ta pelos povos indígenas esteve reduzido a

uma perspectiva metodológica (o processo

de alfabetização deve ser iniciado na língua

portuguesa ou na língua materna/indígena?)

e consumiu, durante décadas, educadores,

linguistas e antropólogos. os argumentos e

ações envolvendo esta questão estavam vol-

tados para o atendimento de uma demanda

muito concreta dos povos indígenas: o falar,

ler e escrever em língua portuguesa.

como um subtexto sempre latente, este

impasse teórico – que na realidade trata os

povos indígenas apenas e tão somente ou

como povos ágrafos ou como cidadãos anal-

fabetos – teve a sua discussão reduzida a

esta escolha: em qual língua a alfabetização

deveria ser efetivada3?

a opção pela “alfabetização em português”

tem tido como subtexto o fornecer ferra-

mentas para esta decodificação (leitura)4 e

codificação (escrita), atendendo às exigên-

cias dos índios em se apropriarem desta

língua estrangeira, justificada em seus dis-

cursos como um instrumento de controle

da chamada “sociedade dominante”. assim,

“(la) escritura aunque es ajena en una lengua

ajena sirve para ayudar en la lucha, evitar el

engano, es vista como una herramienta de pro-

téccion e de defensa.” (túlio r. curieux. In:

Reflexiones sobre el paso de la oralidad a la es-

critura ). o momento em que esta ferramen-

ta será significada (politicamente), quando a

1 oralidade, memória e formação – 2006 / Pgm 1.

2 coordenadora do centro de trabalho Indígena – ctI. Professora Dra. em sociolinguística/ semiótica pela usP.

3 “uma das justificativas técnicas de que a alfabetização na língua deve preceder a alfabetização em português é a de que o indivíduo é alfabetizado uma única vez, e que o ler e escrever numa segunda língua envolve somente uma transposição do código aprendido. Portanto, seria mais fácil e mais rápido ser alfabetizado em sua língua materna” (ladeira, 1981).

4 tendo em conta que ler é decodificar signos, quaisquer que sejam estes, aí poderíamos ampliar para as várias leituras possíveis de um mesmo texto/contexto, o que esvazia a concepção de leitores passivos. não existe passividade na leitura, tanto quanto na escritura: quem lê/escreve o faz de uma determinada posição/lugar com seus olhos, olhar dado pelo lugar que ocupa no mundo, pela interação que estabelece com esse mundo, por sua história de vida e pela relação social construída por um dado povo com este estrangeiro em cuja língua se fala e se escreve.

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leitura/escrita passa a ser algo culturalmen-

te significativo para a comunidade indígena

ou para a própria vida pessoal, independe, no

entanto, da ação e prática alfabetizadoras.

ou seja, este tipo de domínio instrumental

da escrita não acarreta em si mudança al-

guma nos códigos internos de comunicação

e expressão da comunidade indígena. a es-

crita/leitura em português apresenta aí um

caráter puramente utilitário e de alcance

limitado e, por isso, podemos considerá-las

(porque se reproduzem culturalmente deste

modo) como “culturas ágrafas”.

É neste contexto que ganha corpo a concep-

ção segundo a qual “a língua indígena con-

tinua sendo um sistema de conhecimento e

categorização cultural do mundo, em que a

transmissão de conhecimentos, isto é, a rela-

ção única do indivíduo com seu mundo cultu-

ral, só é possível através da língua do grupo”

e da sua forma oral de transmissão (laDeIra,

2001, p. 170). neste caso, o português (falado

e escrito) é empregado tão somente como

língua-de-contato e em um contexto no qual

os dois mundos, o indígena e o não-indígena,

se concebem como excludentes – e no qual

também a estabilidade das relações no inte-

rior do sistema linguístico é decorrente da

clara delimitação dos âmbitos de uso da lín-

gua. Podemos considerar tal atitude como

uma estratégia cultural da sociedade indígena

na manutenção da língua original, na medida

em que possibilita a criação de neologismos

e alterações linguísticas em função da situa-

ção de contato, indicando um vigor linguís-

tico surpreendente (idem, ib., p. 170). o que

pressupõe considerar estas sociedades tanto

como resultado de uma história (seu “obje-

to”) como sujeitos dela, na medida em que

são capazes de construir estratégias de convi-

vência (ou sobrevivência, no sentido de resis-

tência e adaptação). e estas estratégias estão

inscritas na continuidade das práticas sociais

e representações das sociedades indígenas –

que são, por sua vez, recriadas cotidianamen-

te, seja como marcadores identitários “para

fora”, ou como marcadores diferenciais inter-

nos ao mundo pan-indígena mais genérico.

o outro lado da questão, aquele da alfa-

betização se dar primeiramente na língua

materna, tem como subtexto o argumento

segundo o qual os povos indígenas apre-

sentam uma falta, uma ausência do “letra-

mento”, que precisa ser sanada. considera

ainda que esta ausência fragilizaria não só a

manutenção e uso da língua indígena, mas

o próprio povo em sua reprodução cultural.

logo, para suprir tal ausência, busca-se, en-

tão, criar no seio de sociedades ágrafas o

lugar da escrita, independentemente da in-

tenção originária e que concretamente leva

ou tem levado os povos indígenas a buscar

na escola o saber “estrangeiro”5. o que está

por detrás desta concepção, portanto, é que

5 escola, o principal dos lugares em que impomos como imprescindível para poderem se apropriar desses estrangeiros, nós.

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os povos ágrafos não passariam de cidadãos

analfabetos. e para que esta necessidade da

escrita se faça mais rápida, independente-

mente da situação e do contexto histórico

de um determinado povo, se impõe a neces-

sidade de uma escrita “na língua” indígena.

tal posição teórica determina, equivocada-

mente penso, a escrita como o lugar/espaço

indispensável para a manutenção da cultura

de um povo, pelas seguintes razões:

1) exalta a língua independentemente do

povo que a fala e de sua situação de uso; 2)

esquece que não existe língua sem a atuali-

zação concreta da fala; 3) que esta atualiza-

ção é dada pelo contexto histórico e social

daquela comunidade de falantes e 4) que

como todo processo sociocultural, a língua

se altera/é alterada ao longo do tempo.

a partir desses pressupostos iniciais, é possí-

vel delinear duas teorias que embasariam es-

tas duas concepções sobre o lugar/papel da

escrita para os povos indígenas. uma, que

concebe um continuum entre a oralidade e

a escrita, considerando-as como meios lin-

guísticos essencialmente equivalentes para

o desempenho de funções semelhantes.

outra, que estabelece um “divisor” entre a

oralidade e a cultura escrita, embora reco-

nhecendo a importância interativa de am-

bas, permitindo que antigas funções sejam

desempenhadas de maneira nova e que, as-

sim, novas funções possam ser propostas ou

emergirem6. entre estas duas concepções é

que as propostas “educativas” para os povos

indígenas se alicerçam, sendo que grande

parte delas não problematiza o alcance de

suas propostas. Para aquelas que concebem

um continuum entre oralidade e escrita, há

como uma “naturalização” (uma evolução

latente) na passagem das sociedades ágrafas

para o mundo letrado. e, assim, a questão se

reduz a uma falsa eficiência, na qual basta a

elaboração de materiais didáticos adaptados

ao universo de interesses do povo em ques-

tão, de formação/letramento de professores

indígenas, e principalmente da criação de

uma grafia para a língua indígena para que

estes povos possam ter o mesmo estatuto

que a sociedade nacional.

apesar do etnocentrismo subjacente, que vê

a escrita como a passagem para o esclareci-

mento e a modernidade, já ter sido denun-

ciado pelas mais diversas correntes teóricas,

as preocupações de muitos pesquisadores

com o possível desaparecimento da diversi-

dade linguística existente no brasil têm re-

sultado em ações que encontram respaldo

na postura “continuísta” e parecem ter se

esquecido da asserção etnocêntrica mencio-

nada.

6 “escrever nunca foi e nunca vai ser a mesma coisa que falar: é uma operação que influi necessariamente nas formas escolhidas e nos conteúdos referenciais” (gnerre, m. p.8).

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De fato, dados históricos do desaparecimen-

to das línguas indígenas no brasil induzem

o temor do linguista em relação à perda do

seu objeto de estudo em curto prazo. e este

medo subsidia a proposta em voga dos “cur-

sos de formação de professores indígenas”,

centrados no estudo da sua própria língua

(catalogação, organização de verbetes/dicio-

nário) objetivando-a deste modo, sob o ar-

gumento de que a sua documentação con-

tribuiria para diminuir o risco de sua perda.

não discuto a procedência de se formarem

linguistas (ou antropólogos, ou médicos, ou

advogados) indígenas; o que estou tentan-

do apontar é que este tipo de pesquisa não

basta para afugentar o temor dos linguistas

pelo “desaparecimento das línguas indíge-

nas”. o fato de um povo abandonar o uso de

sua própria língua tem a ver com as condi-

ções históricas impostas pelo contato com

a sociedade nacional e as estratégias encon-

tradas por este povo para sua reprodução

física nestas condições.

a história das línguas, como muitos já de-

monstraram, é nada mais, nada menos

que a série dos contatos/intercâmbios en-

tre povos. Portanto, querer transformar as

mudanças que ocorrem nas línguas, suas

inovações, em ameaças ou em “comprome-

timento linguístico”, o que afetaria o desti-

no e a identidade dos povos indígenas, pare-

ce-me deslocar equivocadamente o eixo da

questão. bakthin ilustra e complementa o

que estamos procurando apontar com uma

frase lapidar: “a reflexão linguística de caráter

formal sistemático foi inevitavelmente coagida

a adotar em relação às línguas vivas uma posi-

ção conservadora e acadêmica, isto é, a tratar

a língua viva como se fosse algo acabado, o que

implica uma atitude hostil em relação a todas

as inovações linguísticas” (baKtHIn, 1979, p.

89 apud gnerre, op. cit., p. 16).

É no contexto do contato com a sociedade

nacional que a escrita na língua portugue-

sa é exigida pelos índios, e aos quais tem-se

respondido com a imposição de que, para

dominar a língua portuguesa escrita, pre-

cisam primeiro aprender a escrever na sua

própria língua – argumento embasado no

pressuposto teórico, do qual não comparti-

lho, do continuum entre as formas da orali-

dade e da escrita.

Pretendo agora realçar alguns argumentos

em relação à justificativa para a necessidade

da escrita da língua indígena, que me pare-

cem extremamente perigosos do ponto de

vista político:

1. o de que a criação de uma língua indí-

gena escrita passa a ser uma propos-

ta elaborada pelo linguista (ainda que

com a participação dos falantes dessa

língua como informantes) para dar

conta de um dilema posto etnocentri-

camente por nós, o “comprometimen-

to linguístico”.

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2. o de que, para diminuir o impacto des-

se “comprometimento linguístico”, a

escrita a ser criada o será tendo por

parâmetro sua fonetização, isto é, a es-

crita deverá ser transparente, em grau

máximo, à palavra falada; com isso se

crê estar “guardando” ou “reforçan-

do” a língua indígena falada por meio

da sua escrita, já que responderia à

sua voz – o que é, penso, um equívoco

perigoso, já que desvaloriza o funda-

mental na manutenção de qualquer

língua: a oralidade.

3. e, por último, que essa “transparência

pura” da escrita e da fala (que quali-

fica como primordial para a primeira

a correspondência unívoca entre fo-

nemas e grafemas) impõe um limite

físico para essa “língua” (fonetizada),

dado que atinge os falantes que vivem

geograficamente em um mesmo espa-

ço, em uma determinada terra indíge-

na; com tal postura, alguns linguistas

reforçam a imposição de fronteiras

fictícias entre povos indígenas, erigin-

do uma fronteira social e cultural en-

tre eles, já que cada diferença dialetal

passa a se constituir em uma “língua”

diferente, fragmentando os povos in-

dígenas em “comunidades linguísti-

cas” estanques.

e de qual “língua” estão, pois, falando os lin-

guistas? Qual “língua” eles pretendem guar-

dar ou resgatar, pensando estar garantindo

a sua permanência através da escrita?

Primeiramente, tenho a dizer que os segre-

dos da oralidade não estão no comporta-

mento da língua usada na conversação, mas

na língua empregada para o armazenamen-

to de informações. a língua oral (a oralidade)

tem dois requisitos básicos: o ritmo e a nar-

rativa. sua sintaxe, por outro lado, sempre

descreve uma ação ou paixão e raramente

princípios ou conceitos. as epopeias gregas

(e depois homerizadas) são hoje entendidas

por muitos pesquisadores como imensos re-

positórios de informação oral para fixação

e para transmissão da cultura helenística. a

chamada “tradição” só pode ser armazena-

da pela língua, a qual é memorizada e trans-

mitida de geração em geração.

as artes das tradições orais têm como um

dos seus objetivos na transmissão de conhe-

cimentos a memorização (armazenamento)

destes. um dos objetivos tanto do épico na

grécia clássica quanto do repertório de can-

tos timbira é o armazenamento de material

(informações) na memória oral. e são imen-

sos repositórios de informação cultural. mas

para isso há todo um conjunto de regras que

governam a composição oral, como marca-

dores que conduzem a narrativa, à medida

que esta se desenvolve. estas regras são

fundamentais porque ficam armazenadas

na memória do narrador, do cantador, do

chamador, dos mestres que dominam estas

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artes para entrarem em ação sempre que

necessário. e, porque este corpus de conhe-

cimento faz parte de um patrimônio social

compartilhado com os demais membros da

sociedade, estes marcadores estão armaze-

nados na memória apenas como instrumen-

tos de ajuda para facilitar a retórica. Por

isso, a importância da memorização nestas

sociedades. e, por isso deve-se refletir quan-

do a “liturgia da escolaridade” (para empre-

gar um termo de Ivan Illich), levada pelos

programas de educação indígena, valoriza a

aprendizagem por meio da “improvisação”,

da “criatividade” (em seu sentido mais lite-

ral), em descompasso total em relação aos

métodos tradicionais de aprendizagem dos

povos indígenas que repousam na recitação,

na cópia, na observação, na imitação, técni-

cas fundamentais para a noção de memori-

zação.

a questão da distância entre fala e escrita,

que aponta que as normas da escrita não

se aplicam à fala, que há uma distância en-

tre a língua codificada na gramática/escri-

ta e a realidade das variações da fala, tudo

isto já foi tratado por especialistas. Porém,

suas consequências têm passado ao largo

das propostas de letramento para os po-

vos indígenas que vemos entre linguistas e

educadores. Quais seriam, por exemplo, as

alterações que a aquisição da escrita pode

trazer ao processo cognitivo? luria (1976)

estudou os principais desvios que ocorrem

na atividade mental na medida em que as

pessoas adquirem a cultura escrita “cleri-

cal”. seus processos cognitivos deixam de

ser principalmente concretos e situacio-

nais. começam a estabelecer inferências

não apenas na base de sua experiência pes-

soal, mas também nos conceitos formula-

dos pela língua.

Parece que os povos ágrafos contemporâne-

os, na situação de desigualdade que carac-

teriza as relações entre povos indígenas e

sociedade nacional, percebem com clareza

que, na nossa sociedade, a oralidade e a cul-

tura escrita podem ser vistas como interli-

gadas. a relação entre elas tem o caráter de

uma tensão mútua e criativa, na qual estes

povos encontram referências para definir

as suas políticas linguísticas. Para nós, para

que uma língua continue viva, isto é, fala-

da, é necessário que sejam incrementados

os contextos de uso da língua indígena em

questão, ou seja, que sejam valorizados e

multiplicados os momentos/espaços em

que um determinado povo usa privilegiada-

mente a sua língua7. Para isso, o linguista

e o antropólogo deveriam estar juntos, na-

quilo que o sociolinguista delimita como

seu campo de ação. esta estratégia política

está de acordo, assim, com a teoria do “divi-

7 uma política pública que estivesse preocupada com essa questão estaria muito além do apoio à elaboração de materiais didáticos escritos, estaria apoiando a realização dos rituais, lócus privilegiado da expressão cultural plena.

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sor” apontada inicialmente, que afirma que

a oralidade e a cultura escrita possuem for-

mas distintas de expressão e de reprodução,

embora reconhecendo a importância interati-

va de ambas, permitindo que antigas funções

sejam desempenhadas de maneira nova (como

o exemplo timbira nos mostra) e que assim

novas funções possam ser propostas ou emer-

girem.

Há atualmente uma avaliação, por justifi-

cativas um pouco diversas das apontadas

acima, que considera que a escrita de uma

língua indígena é fundamental para o seu

não desaparecimento. Propõe que a questão

central seria a da necessidade de se dotar

uma determinada língua indígena de leito-

res, e por consequência, a necessidade de

formar escritores indígenas como forma de

fortalecê-la. assim,

“A única forma de se opor, concretamen-

te, ao desaparecimento de uma língua

indígena é fazer frente, deliberadamen-

te, à perda de espaços para a língua por-

tuguesa, garantindo (ou criando), para

a língua indígena, funções e usos sociais

relevantes e prestigiados. Desenvolver

a escrita em língua indígena é uma das

formas importantes e, possivelmente,

das mais eficazes, para uma política de

resistência da língua indígena às pres-

sões da língua majoritária. E é também

um dos instrumentos mais eficazes de

uma política linguística de fortalecimen-

to e modernização da língua indígena,

indispensável para sua sobrevivência

futura.” (In: Letramento e educação in-

dígena: línguas indígenas e a fabricação

de seus leitores e escritores. Wilmar da

rocha d’angelis).

este talvez possa ser um dos futuros das lín-

guas indígenas. em todo o caso, essa forma

somente será eficaz se validada politicamen-

te pelos usuários de cada língua e muito

além dos processos educativos que lhes são

impostos pela sociedade dominante. Mas

estaremos então nos referindo não somente a

uma possível solução para o comprometimen-

to linguístico como uma tendência subordina-

da de resistência linguística, mas a uma redefi-

nição do lugar e da relação destes povos com a

sua língua originária.

mas pensar por meio da escrita – pois só

assim se cria internamente, creio eu, a ne-

cessidade da escrita – não seria também jus-

tificar a necessidade da invenção de um pas-

sado histórico para as sociedades indígenas?

como pensar sociedades cujo passado como

referência não faz sentido? o estado presente

é contínuo, criado pelo movimento eterno e

constante da repetição. Repetição da repeti-

ção da repetição, num movimento infinito,

cuja fissura da mudança é anulada porque

não tem referência no passado. sem dúvida

que a mudança existe, no sentido de que a

repetição da repetição da repetição não recria

o mesmo, mas uma outra coisa que será re-

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petida; nesse gesto de se buscar criar, sem-

pre o mesmo, as “mudanças simplesmente

ocorrem”, mas não são consideradas como

objeto de uma reflexão, como algo que deva

ser analisado criticamente. na prática da

existência cotidiana, estão incorporadas no

eterno presente. tais mudanças são anula-

das enquanto história. este distanciamento

e a sua marcação entre tempos – isto que

entendemos como história – são instaura-

dos pela escrita, como já amplamente de-

monstrado há décadas.

os programas de educação Indígena correm

o risco de estarem se transformando em

programas acelerados de mudança, ao com-

partimentarem o tempo nestas três estações

(passado, presente, futuro). os nossos livros

de “história” ou “etno-história” procuram re-

fazer, pela escrita, esta trajetória, muitos sem

estarem atentos a este dilema. e deste modo

reificam, eternizam ou desmitificam, em seu

sentido mais concreto, uma duração de tem-

po, desprendendo-o do movimento cíclico,

instaurando uma duração sequencial e linear

do tempo, abrindo fissuras na forma canôni-

ca dos povos ágrafos resistirem à mudança.

ou, em outras palavras, de trabalharem com

as mudanças que lhes são impostas.

o campo da nossa reflexão tem se movimen-

tado assim em uma dicotomia estanque: de

um lado, a reificação da permanência de

uma tradição imemorial, concebida como

o horizonte de resistência destas socieda-

des ao nosso mundo e, de outro, a assimi-

lação passiva de novos saberes e técnicas,

tendo como horizonte a sua aculturação a

este mundo novo. a história assim prevista

condena as sociedades indígenas a desapa-

recerem paulatinamente ou as encerra em

um “primitivismo” eterno (bocarra, 2001).

somente podemos escapar desse etnocen-

trismo, que caracteriza nosso modo de en-

focar as possibilidades de futuro desses po-

vos, se pensarmos a história e as relações

de contato destes povos com a sociedade

nacional a partir das estratégias políticas (e

linguísticas) desenvolvidas por eles, na qual

o dilema da escrita, imposto por nós, se re-

faz pelo uso e sentido que dão a ela em fun-

ção de uma redefinição da noção de frontei-

ra. e não mais concebida como um espaço

marcando um limite real entre mundo “pri-

mitivo” e mundo “civilizado”, mas como um

campo social em que as práticas e represen-

tações relativas à construção destes limites

são estratégias constitutivas destes povos.

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vII. NO TEmPO Em qUE OS SERES HUmANOS CONvERSA-vAm COm AS áRvORES...1

Narcimária Correia do Patrocínio Luz2

intRODuÇÃO

abrimos este texto com um alerta:

[...] A vida não é só isso que se vê, é um

pouco mais... Que os olhos não conse-

guem perceber, e as mãos não ousam to-

car, que os pés recusam pisar. Sei lá não

sei, sei lá não sei não. Não sei se toda be-

leza de que lhes falo sai, tão-somente do

meu coração. Em Mangueira a poesia,

num sobe e desce constante, anda des-

calço ensinando um modo novo da gente

viver, de cantar, de sonhar, de vencer. Sei

lá não sei, sei lá não sei não, a Manguei-

ra é tão grande que nem tem explicação.

(Hermínio Belo de Carvalho e Paulinho

da Viola).

esse alerta é um exercício e/ou um desafio

que se impõe todos os dias aos professores e

professoras que atuam nas escolas brasilei-

ras. não é fácil, sabemos! ou seja, aprender

a lidar com a riqueza de vida que nos cerca,

para além dos muros, ou melhor, a arquite-

tura dos currículos submetidos ao monopó-

lio da fala3 sobre educação, que se restringe

a reproduzir teorias e metodologias fixadas

ao modo de existir característico dos valores

e linguagens europocêntricos, que passam a

ser referência absoluta para as políticas de

educação. o que vemos circular, no cotidia-

no dos currículos das nossas escolas, são

repertórios sobre crianças, jovens e adultos

completamente afastados das dinâmicas

existenciais que caracterizam suas comuni-

dades, principalmente aquelas que se des-

dobram a partir das civilizações indígena e

africana.

essa vida plena de poesia que transborda na

mangueira no rio de Janeiro é uma pequena

1 oralidade, memória e formação – 2006 / Pgm 2.

2 Professora titular do Departamento de educação I da universidade do estado da bahia-uneb; Doutora em educação; pesquisadora no campo da Diversidade cultural e educação; coordenadora do ProDese - Programa Descolonização e educação; autora dos livros: abebe - a criação de novos valores na educação, salvador: edições secneb/2000; (org.) Pluralidade cultural e educação .salvador: edições secneb: secretaria da educação do estado da bahia, 1996.

3 categoria elaborada por muniz sodré tendo, como referência o sistema midiático de comunicação.

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e bela ilustração da pulsão de vida e modos

de existir que caracterizam diversas comu-

nidades no brasil que (re)criam, de modo

extraordinário, os valores e linguagens mile-

nares, um legado dos seus ancestrais.

nas américas, o brasil representa um dos

principais pólos irradiadores das civilizações

africana e indígena, e, apesar das caracterís-

ticas dessa realidade que constitui o patri-

mônio histórico-cultural da nação, o estado

brasileiro, até hoje, não conseguiu absorver

e integrar a sua diversidade cultural, numa

proposta de política educacional.

o desafio, portanto, é implementar políticas

de educação que aproximem os/as professo-

res/as de referências teóricas e metodológi-

cas que os façam identificar e assumir, com

sabedoria, a riqueza da diversidade cultural

que caracteriza o brasil contemporâneo.

a série Oralidade, memória e formação apre-

senta a indagação: quais transformações se-

riam necessárias para afirmar que a “escola

tem futuro”4?

a contribuição que trazemos para enrique-

cer esse debate enfatiza a importância da

ancestralidade como princípio fundamental

para prover o cotidiano escolar de lingua-

gens e valores que estabeleçam uma ética

do futuro para as atuais e futuras gerações.

vamos nos dedicar a abordar aspectos do

universo simbólico da ancestralidade africa-

na, e deles extrair perspectivas teórico-me-

todológicas que contribuam para fortalecer

a autoestima das nossas crianças, jovens e

adultos.

AnCEStRAliDADE, MEMóRiA E

COntinuiDADE

Para entendermos o princípio de ancestra-

lidade, uma pergunta se torna fundamen-

tal: como preservar e expandir os valores da

diversidade da vida para que esse mundo não

se acabe?

as sociedades contemporâneas vivem essa

angústia, o que tem estimulado iniciativas

coletivas de educadores, em todo o mundo,

que buscam uma nova e urgente abordagem

sobre educação, que valorize e respeite a di-

versidade civilizatória dos povos e toda a di-

nâmica da vida que os envolve. É importan-

te estabelecer canais, no cotidiano escolar,

atentos à angustiante procura da compre-

ensão sobre o estar no mundo, no univer-

so, as histórias que inauguram o patrimônio

ético-estético que caracteriza as culturas,

os princípios milenares que atravessam os

tempos influenciando as gerações sucesso-

ras, enfim, o processo dinâmico da existên-

cia.

4 cf. Indagação apresentada na proposta pedagógica elaborada por Pedro garcia para o programa salto para o Futuro, série oralidade, memória e formação. rio de Janeiro: tv escola, março de 2006.

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a ancestralidade, portanto, constitui a cor-

rente sucessiva de gerações que mantêm,

com dignidade, o legado dos seus antepas-

sados, repõem e expandem o universo mí-

tico-simbólico que sustenta as tradições de

um povo, suas instituições, organizações

territoriais e políticas, valores, linguagens,

formas de comunicação através de narrati-

vas míticas, modos de afirmação existencial

e sociabilidades.

estamos diante de uma concepção sobre

educação capaz de acolher linguagens cuja

matriz seja “[...] a criação emocional e poética

dos povos que mobiliza e abre caminhos, pon-

tes de aproximação entre comunidades diver-

sas” (santos, 2002, p. 26).

É ao sabor desse universo mítico-simbólico,

que caracteriza o discurso e as linguagens

da elaboração de mundo africano, que nasce

o título deste texto “no tempo em que os seres

humanos conversavam com as árvores...”.

É assim que os/as mais antigos/as costu-

mam transmitir saberes aos/às mais novos/

as nas comunidades de matriz africana.

cada história, conto, cantiga, parábola, pro-

vérbio anunciado/a com essa introdução era

carregado/a de poesia mítica, demonstrando

que o conhecimento a ser transmitido vem

de tempos imemoriais, isto é, desde que o

mundo é mundo.

os/as mais antigos/as nos contam que quan-

do oxalá, orixá que representa o ar, veio a

esse mundo, criou os seres humanos, e para

cada ser humano criou uma árvore. as árvo-

res carregam o princípio da ancestralidade,

representam, portanto, os ancestrais e são

elas que estabelecem a dinâmica da relação

entre os seres humanos e a natureza.

oxalá está relacionado à cor branca, “[...] o

axé, sangue branco... caracterizado por subs-

tâncias minerais como o giz, metais brancos,

como prata e chumbo, pela seiva da palmeira

igi-ope, pelo algodão, pelo sêmen, pelos ossos e

pela chuva. Pela chuva-sêmen que fertiliza e fe-

cunda a terra regenerando-a e proporcionando

o brotar das sementes. [...] Apresenta represen-

tações simbólicas de progenitura, capacidade

de gerar filhos, de expandir a descendência,

multiplicação dos seres tanto no aiyê como

no orun” (luZ, 1995, p. 89)5 (grifos nossos).

oxalá possui poderes que garantem a exis-

tência e, pela sua importância no panteão

nagô, merece respeito e atenção. se for con-

5 cf. santos,1985, p.39. o axé expressa a força que assegura a existência, permite o acontecer e o devir, e as possibilidade do ciclo vital. como toda força o àsé é transmitido e conduzido por meios materiais simbólicos e acumulável, portanto, só pode ser adquirido por introjeção ou contato aos seres humanos ou aos objetos. axé em nagô significa força invisível, mágico-sagrada de toda divindade, de todo ser animado, de toda coisa. nas comunidades-terreiro nagô, a existência é elaborada em dois planos: o àiyé o mundo, e o òrun , que representa o além. o àiyé é o universo físico concreto, e a vida de todos os seres naturais que o habitam, portanto, mais precisamente, os ará-àiyé ou aráyé, habitantes do mundo, a humanidade. Já o orun corresponde ao espaço sobrenatural, o outro mundo, o além, algo imenso e infinito. nele habitam os ara-òrun , que são os seres ou entidades sobrenaturais.

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trariado ou desrespeitado, ele pode causar

grandes danos, tal o seu poder.

Das árvores criadas, algumas se destacam

nessa relação simbólica, a exemplo do den-

dezeiro com seus frutos, folhas e taliscas. os

frutos do dendezeiro compõem os instru-

mentos de Ifá, ou seja, a forma tradicional

que o povo nagô/iorubá utiliza para consul-

tar sobre os destinos dos seres humanos.

as folhas estão relacionadas ao culto dos

ancestrais masculinos, os mariô, represen-

tando filhos, descendência ininterrupta. as

taliscas de onde as folhas se desprendem re-

presentam os ancestrais. nesta estética do

sagrado, as árvores são as responsáveis pela

purificação do ar para que os seres huma-

nos tenham plenitude de vida.

Para aprendermos mais sobre o princípio de

ancestralidade, nada mais oportuno do que

apelar para um conto mítico que se desdo-

bra do universo existencial característico da

ancestralidade e visão de mundo africanas.

nele, tradição e contemporaneidade se in-

tercambiam, estruturando linguagens e va-

lores do patrimônio simbólico.

os contos míticos reúnem sabedorias mile-

nares, cujos princípios éticos conduzem, in-

fluenciam e atualizam o viver cotidiano das

comunidades de base africana.

“Os contos, em sua originalidade, se

constituem também em formas especí-

ficas de transmissão de valores religio-

sos, éticos e sociais da tradição dos mais

velhos aos mais jovens. Eles se caracte-

rizam como um aspecto da pedagogia

negra iniciática, transmitidos numa si-

tuação, aqui e agora, a qual faz alusão,

constituindo a experiência vivida em

sabedoria acumulada. A comunicação

se processa de maneira direta, pessoal

ou intergrupal, dinâmica, muitas vezes

acompanhada por cânticos, danças e

dramatizações” (luZ, 1977, p. 60).

Deoscóredes maximiliano dos santos, o

mestre Didi asipá, como é conhecido um

dos mais expressivos sacerdotes da tradi-

ção nagô, possui um riquíssimo acervo de

contos, cujas narrativas expressam modos

de sociabilidades singulares. as narrativas

dos contos de mestre Didi caracterizam-se

pelas analogias, plasticidade das imagens,

dramatizações, recriações, que ilustram a

dinâmica dos textos e o complexo contexto

simbólico nagô.

adaptamos especialmente para a série Orali-

dade, memória e formação, o conto “o Filho

de oxalá que se chamava Dinheiro”, extraí-

do do acervo literário de mestre Didi, ilus-

trando de modo extraordinário o modo afri-

cano de educar. nossos filhos costumam ser

educados com os valores éticos transmiti-

dos pelos contos, e a partir deles, aprendem

a lidar com a dinâmica da vida exigida pelo

mundo contemporâneo.

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O FilHO DE OXAlá QuE SE

CHAMAvA DinHEiRO

No tempo em que os seres humanos

conversavam com as árvores, Oxalá ti-

nha um filho conhecido por Dinheiro,

que era um homem muito metido, ego-

ísta, arrogante e muito prepotente. Um

dia, Dinheiro, querendo aparecer como

muito poderoso na frente de várias pes-

soas, desafiou seu pai, o rei Oxalá, di-

zendo que conseguia andar com Iku, a

Morte, e levá-la para qualquer lugar que

se possa imaginar.

Para mostrar que era capaz de dominar

Iku, Dinheiro resolveu ir buscar a Morte

e trazê-la à presença de Oxalá. Para isso,

ele resolveu deitar numa encruzilhada,

ficar quieto por um tempo, esperando a

oportunidade para pegar Iku.

As pessoas passavam pela estrada, fica-

vam chocadas com a situação e comen-

tavam:

– Oxente! Que absurdo é esse! Como

pode esse homem ficar deitado aqui

nessa encruzilhada com a cabeça vira-

da na direção da casa de Iku e os pés

virados um para o lado da moléstia e o

outro para o lado da desavença. É de-

mais! O que ele está querendo mostrar

com isso?

Depois que Dinheiro ouviu vários comen-

tários sobre a atitude dele, levantou-se e

comentou ironicamente:

– Ah! Agora eu já sei tudo o que precisa-

va saber e já sei como agir.

Saiu com uma rede em direção à casa de

Iku, foi entrando e tocando os tambores,

instrumento que a dona da casa utiliza-

va para realizar o seu trabalho de levar

as pessoas para o outro mundo, o orun.

Dinheiro ficou na espreita aguardando a

Morte aparecer reclamando dos toques

dos tambores.

Não demorou muito, Iku aparece cha-

teada, querendo saber quem era o atre-

vido que tocava seus tambores. Despre-

venida, foi capturada por Dinheiro, que

jogou a rede, prendendo-a.

Dinheiro, com toda a sua arrogância, ar-

rastou a Morte até o palácio de Oxalá e

foi entrando e dizendo:

– Não disse que traria Iku a vossa pre-

sença?

Oxalá, na mesma hora, repreendeu-o e

disse-lhe:

– Saia daqui agora mesmo com Iku! Você

é o causador de todas as coisas de bem e

mal que existem no mundo. Leve a Morte!

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Por este motivo é que, por causa do di-

nheiro, todas as qualidades de crimes

têm sido e continuam a ser praticadas.

o dinheiro no mundo africano tem uma ou-

tra conotação e representação, diferente do

mundo europeu. o “dinheiro”, como modo de

troca, está ligado à fertilidade e à restituição.

nos antigos reinos iorubá, a moeda eram os

búzios, os quais tinham um valor inestimá-

vel, pois representam ancestralidade.

os ornamentos de determinados orixás

apresentam constelações de búzios, carac-

terizando expansão de famílias, comunida-

des e sucessão de ancestralidade.

na concepção de fertilidade, está presente

a ideia implícita de restituição e de morte.

assim, o poder da fertilidade e o de restitui-

ção andam juntos. no conto, o desafio do

mais novo ao mais velho, inclusive conside-

rando o poder ancestral contido em oxalá,

é uma quebra de valores significativos da

tradição e compromete a harmonia e a coe-

são da comunidade. neste relato, o desafio

do filho ao pai é motivado pelo grande po-

der de representação do Dinheiro ao qual

nos referimos.

o poder, no contexto do mundo contempo-

râneo, é caracterizado pelo dinheiro e toda

a onipotência que ele pode exprimir. a arro-

gância, o egoísmo, o poder de destruição, a

desarmonia, a banalização da morte, as ten-

tativas de obtenção de um poder absoluto, o

desrespeito à ancestralidade, tudo isso está

contido na mensagem do conto.

“A ética para o futuro, no contexto des-

te mito africano, apresenta-se como

valores, linguagens, modos e formas de

sociabilidade que contemplam a trans-

cendência do Ancestral - esse pai que,

mesmo morto, determina. O culto aos

ancestrais responde pelo poder do pai

morto. A ética, enquanto discurso da

autoridade ancestral, é holística, comu-

nitária, consubstanciando a força do

grupo.” (soDrÉ, 1992, p.11).

a ética do futuro, dentro dessa dinâmica

ancestral, elabora e faz expandir o direito

à existência, às condutas individuais e co-

letivas. este princípio ético tem vigor nas

formas tradicionais das comunidades de

origem africana, onde o ato de educar é con-

cebido como uma dinâmica capaz de fazer

irradiar os mistérios transcendentes da vida

e da morte.

na tradição nagô/ioruba, a educação realiza

o “[...] poder de tornar presente a linguagem

abstrato-conceitual e emocional elaborada

desde as origens[...]. Poder de tornar presen-

tes os fatos passados, de restaurar e renovar a

vida. Reconduzir e recriar todo o sistema cog-

nitivo emocional, tanto em relação ao cosmos

como em relação ‘a realidade humana’.” (san-

tos, 1997, p. 4).

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a perspectiva que destacamos nos inspira

a perseguir iniciativas em prol das Diver-

sidades culturais, produzindo possibilida-

des didático-pedagógicas que afirmem que

eDucar é repor os valores e princípios her-

dados e reelaborados – legado ancestral. É

expansão socioexistencial da diversidade

humana, fruto de civilizações milenares

que inauguraram diversos territórios em

todos os cantos do planeta, e que lutam há

séculos, tenazmente, para mantê-lo viável

à vida.

Por fim, gostaríamos de reverenciar os nos-

sos ancestrais que, nas suas trajetórias de

vida, lutaram com afinco para assegurar o

direito às condições existenciais necessárias

para que as gerações sucessoras expandis-

sem seu legado civilizatório.

“Mo juba.

Gbogbo asse tinu ara

Saúdo e venero

A todos os asese, nossas origens,

Contidos em nosso corpo comunitário.

As origens e sua permanente recriação

permitem o existir da comunidade.

Bibi bibi lo bi wa

Nascimento do nascimento que nos traz

o existir.” (santos, Deoscóredes; san-

tos, Juana, 1993, p.29).

REFERênCiAS:

sobre a presença da civilização africana nas

américas e suas contribuições para elabo-

rarmos perspectivas educacionais promisso-

ras, recomendamos:

luZ, marco aurélio. Agadá dinâmica da civi-

lização africano-brasileira. salvador: eDuFba,

2001.

______. Do tronco ao Opa Exin . rio de Janeiro:

Pallas, 2002.

______. Cultura negra em tempos pós-moder-

nos. salvador: eDuFba, 2002.

______. alguns aspectos da comunicação na

cultura negra. In: Revista Vozes, Petrópolis,

n. 9, p. 60-72, 1977.

luZ, narcimária (org.) Pluralidade cultural e

educação. salvador: secretaria da educação

do estado da bahia: secneb, 1996.

______. abebe: a criação de novos valores na

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santos, Juana elbein. Os nagô e a morte. Pe-

trópolis: vozes, 1985.

santos, Deoscóredes m.; santos, Juana el-

bein. a cultura nagô no brasil. In: Revista da

USP, n. 18., p. 29-40, 1993.

santos, Juana elbein (org.). O emocional lú-

cido. salvador: secneb, 2002.

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252

soDrÉ, muniz . O monopólio da fala. Petró-

polis: vozes, 1977.

______. Claros e escuros. Petrópolis: vozes,

1999.

SEMENTES CADERNO DE PESQUISA. salvador:

Departamento de educação campus I, uni-

versidade do estado da bahia-uneb, 2000-

2003.

Para conhecer o repertório dos contos de

mestre Didi, desdobramentos da ancestrali-

dade africana:

santos, Deoscóredes. Contos crioulos da

Bahia. Petrópolis: vozes, 1996.

______. Contos Crioulos da Bahia, Creole Tales

of Bahia, Àkójopó Ìtan Àtenu’denu Iran Omo

Oùduwà ni Ilè Bahia. salvador: núcleo cultu-

ral níger Ikàn, 2004.

______. Contos crioulos da Bahia e contos ne-

gros da Bahia. salvador: corrupio, 2003.

______. Contos negros da Bahia. rio de Janei-

ro: grD, 1961.

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vIII. OS vERSOS SAgRADOS DE IFá: BASE DA TRADIÇÃO CIvILIzATóRIA IORUBá1

Juarez Tadeu de Paula Xavier2

Oxum, graciosa mãe, plena de sabedoria!/

Que enfeita seus filhos com bronze,/

Que fica muito tempo no funda das águas gerando riquezas,/

Que se recolhe ao rio para cuidar das crianças/

Que cava e cava e nela enterra dinheiro/

Mulher poderosa que não pode ser atacada

os versos sagrados de Ifá guardam o mul-

tiverso de conhecimento da tradição ioru-

bá. essas grandes narrativas contêm infor-

mações com categorias universais – dados

científicos sobre a natureza e os seus fenô-

menos e manifestações – singulares – do

dia a dia da vivência tradicional dos povos

iorubanos – e particulares – os valores cultu-

rais dessa milenar tradição africana. É esse

reservatório de preservação, transformação

e produção de conhecimento social do real

deu base para a reinvenção da arquitetura

civilizatória desse importante povo da África

ocidental.

os mitos sagrados trazem os conhecimen-

tos das cartografias cosmológica e geográ-

fica iorubanas. as crianças desse universo

cultural têm acesso aos conhecimentos das

forças místicas e cósmicas que comandam

o universo, seus destinos, as relações terre-

nas, históricas e culturais. a exemplo de ou-

tros povos africanos, os iorubás têm na ora-

lidade os arquivos de sua civilização. Para

esse povo africano, conhecido como nagô

no brasil, a palavra enunciada carrega a for-

ça da realização. eles consideram a mentira

como um câncer, pois ele corrói a constru-

ção de cenários favorecedores da suas reali-

zações primordiais na vida: viver muito, vi-

ver com condições de sacralizar o universo,

amar, ter filhos e vencer as adversidades do

mundo. Dessa forma, a oralidade assume a

função de meio condutor dos conhecimen-

tos ancestrais e civilizatórios que ordenam a

trajetória dos seus descendentes.

1 valores afro-brasileiros na educação – 2005 / Pgm 5.

2 Jornalista. Doutor em comunicação e cultura-Programa de Pós-graduação em Integração da américa latina da universidade de são Paulo (Prolam – usP).

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Ile asÉ: esses conhecimentos permitiram

aos iorubás reorganizarem, pelo mundo afo-

ra, suas estruturas culturais. as grandes nar-

rativas, as pequenas histórias do cotidiano

e as canções rituais preservaram a moral, a

ética e a deontologia de suas relações huma-

nas. a moral iorubana permitiu a reconsti-

tuição da cartografia original no ile ase (ter-

ra sacralizada pela força ancestral). na linha

histórica das principais casas e terreiros or-

ganizados no país, tem-se o registro da ação

de homens e mulheres africanos que per-

sistiram na reconstrução de seu universo,

destruído pelas forças da escravidão. a força

moral e o tirocínio desses primeiros africa-

nos escravizados nas américas foi o motor

propulsor dessa reorganização. no início,

esses espaços de reconstrução tradicional

criaram uma linha de força que preservou a

originalidade dessa civilização, ante a força

destrutiva da sociedade global. nesses espa-

ços de rearticulação tradicional, os africanos

reconstituíam, paulatinamente, seus valores

morais civilizatórios. tais valores formaram

o chassi da reconstrução negra fora da Áfri-

ca. as linhas-mestras dessa reconstrução fo-

ram os versos sagrados de Ifá, vivos na me-

mória coletiva dessa população. a palavra é

uma força fundamental que emana do ser

supremo iorubá: olodumaré. Por isso, ela

possui um caráter sagrado e divino.

a cada novo desafio, a cada nova situação,

os velhos e velhas africanos reinventavam

novas soluções e respostas. uma nova folha,

uma nova forma de transmissão, um novo

modelo de organização. o xirê orixá, cantado

no início dos atos litúrgicos públicos, é uma

prova dessa sagacidade e inteligência ances-

tral. nele, as novas gerações conheciam as

formas místicas que comandam o universo

sagrado iorubá, em especial a relação dinâ-

mica entre o orun (dimensão imaterial da

existência) e o aiyê (dimensão material e

histórica da existência), e entravam em con-

tato com as energias cósmicas desse povo

– representações das forças do universo, dos

pontos energéticos da terra, das polaridades

de gênero, das cores e suas funções –, com

o universo social e sua ordenação tradicio-

nal – cargos, funções e responsabilidades so-

ciais de sacerdotisas e sacerdotes –, e ainda,

aprendiam as canções tradicionais, as dan-

ças e toques rituais e a relação pedagógica

entre as gerações: o aprendizado da boca

dos mais velhos para os ouvidos e olhos dos

mais novos. cada uma dessas opções feitas

pelas velhas gerações implicava opções éti-

cas, filosóficas, culturais e civilizatórias.

ante a divinação e a iniciação nos segredos

sagrados desse universo, as novas gerações

entravam em contato com as suas poten-

cialidades e limitações sacerdotais: o que

comer, vestir, como se comportar ante o

sagrado, ante a comunidade, ante o corpo

sacerdotal da comunidade e ante a força da

sociedade global.

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ÉtIca, moral e DeontologIa: assim, no

universo da educação civilizatória, articula-

vam-se dimensões morais, condutoras dos

comportamentos coletivos e sociais dessa

civilização; éticas, condutoras das opções e

reflexões cotidianas, que implicavam ações

filosóficas e culturais; e deontológicas, con-

dutoras do comportamento ante a comuni-

dade de iniciados e a social global.

todo esse universo conceitual era trans-

mitido pelas equivalências universais que

caracterizam a civilização iorubá em qual-

quer parte do mundo: a divinação sagrada

aos pés de Ifá, para a revelação dos desíg-

nios humanos; a iniciação, marco de or-

denação da transição entre o profano e o

sagrado; e pelo conhecimento mitológico

do panteão: deidades e forças que organi-

zam o cosmo iorubá. Durante muito tem-

po, o conhecimento da magnitude desse

universo cultural ficou restrito às pessoas

que se iniciavam nesse universo religioso,

excetuando-se os trabalhos acadêmicos e

as publicações.

Porém, algumas experiências foram reali-

zadas na transmissão desses valores via es-

colarização. alguns terreiros de candomblé

organizaram escolas nos seus espaços co-

munitários. essas escolas, além das discipli-

nas formais do currículo escolar, acrescen-

tam elementos do conhecimento ancestral

iorubá.

ensinam-se canções rituais, mitos cosmoló-

gicos vinculados às deidades iorubanas, à na-

tureza terapêutica e ritualística das plantas

e à presença dos elementos dessa cultura no

universo simbólico do brasileiro, na música,

dança, literatura, artes plásticas e ciência.

os núcleos que enfeixam os conhecimentos

iorubás são ricos em fornecer informações

em todas as áreas do conhecimento: univer-

sos da divinação; dos processos iniciáticos e

da relação com os orixás; do contato com as

energias ancestrais, e com o conhecimento

litúrgico das folhas.

Dessa forma, universalizam-se as possibili-

dades de transmissão dos conhecimentos

civilizatórios do universo iorubá, dos conhe-

cimentos dos seus valores, e do aprendizado

em duas dimensões: o da escolarização e o

da educação dos valores universais, presen-

tes nos versos sagrados de Ifá, infraestrutura

conceitual sobre a qual repousam os conhe-

cimentos ancestrais iorubá. o percurso des-

sa experiência evidencia a presença de fortes

e profundos elementos africanos e afrodes-

cendentes no universo imaginário brasileiro,

no seu dia a dia, na sua visão de mundo e no

modo de se relacionar com o universo.

REFERênCiAS

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Sources of Yorùbá history. Ì bàdàn. universiry

Press, 1987.

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no Novo mundo. bahia: corrupio, 1981.

XavIer, J.t.P Exu, ikin e egan: as equivalên-

cias universais no bosque das identidades

afrodescendentes nagô lucumi – estudo

comparativo da religião tradicional ioruba

no brasil e em cuba. Dissertação de mestra-

do defendida do programa de pós-graduação

em Integração da américa latina da univer-

sidade de s. Paulo (Prolam/usP), 2000.

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Ix. CANTOS E RE-ENCANTOS: vOzES AFRICANAS

E AFRO-BRASILEIRAS1

Andréia Lisboa de Sousa2

Ana Lúcia Silva Souza3

Os mitos são, realmente, as histórias sociais que curam. Isso porque nos são

mais do que o desfecho moral que aprendemos associar, há muito tempo, às

quadrinhas infantis e aos contos de fada. Lidos apropriadamente, os mitos nos

deixam harmonizados com os eternos mistérios do ser, nos ajudam a lidar com

as inevitáveis transições da vida e fornecem modelos para o nosso

relacionamento com as sociedades em que vivemos e para o relacionamento

dessas sociedades com o mundo que partilhamos com todas as formas de vida

(ForD, clyde W. o herói com rosto africano. mitos da África).

o objetivo deste texto é ressaltar a impor-

tância dos contos, orais e escritos, africanos

e afro-brasileiros, destacando-os como mar-

cas das experiências humanas de um povo

ao longo dos tempos. são narrativas com

rosto africano.

a história e a memória de vários povos afri-

canos adentram e permanecem como parte

de nossa cultura. cultura essa materializa-

da, em especial, na literatura oral expressa

pelos mitos, lendas, provérbios, contos etc.,

ou, ainda, servindo como base da literatura

escrita desta natureza.

no brasil, uma das matrizes que informam a

tradição oral diz respeito às influências dos

africanos aqui escravizados que para cá vie-

ram, guardiões e guardiãs responsáveis por

recriar a memória dos fatos e feitos de seus

1 conto e reconto: literatura e (re)criação – 2006 / Pgm 3.

2 Doutoranda em educação pela Faculdade de educação da universidade de são Paulo (FeusP). mestre em educação pela FeusP. I ntegra a associação brasileira dos Pesquisadores negros - abPn. Fellow do Fundo riochi sasakaua/usP. consultora na área de educação e relações Étnico-raciais. atualmente, é pesquisadora sobre cultura afro-brasileira em materiais didático-pedagógicos e subcoordenadora de Políticas educacionais da cgDIe/secaD/mec.

3 Doutoranda em linguística aplicada - unicamp/Iel. estuda as interfaces entre práticas de letramento, relações raciais e juventude. I ntegra a associação brasileira dos Pesquisadores negros - abPn - sP. organiza e assessora projetos relacionados à leitura e à dinamização de acervos de literatura. coordenadora do vI concurso negro e educação pela ação educativa/anPeD.

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antepassados, ressignificando a vida nos no-

vos lugares de morada. Foram também po-

etas, músicos, dançarinos, estudiosos, mes-

tres, conselheiros, denominados, de modo

geral, como contadores de histórias.

trouxeram para cá o significado da pala-

vra na cultura africana – o uso da palavra

se constitui no diálogo, no argumento e no

conselho, que se mostraram como práticas

essenciais do dia a dia nas comunidades

Para a cultura africana, as palavras têm um

poder de ação, e ignorar aquilo que é pro-

nunciado e verdadeiro é cometer uma falha

grave, que pode ser comparada ao ato de ti-

rar uma parte dos elementos essenciais do

nosso corpo, o que nos faria perder a vida ou

uma parte de nós.

recorremos a amadou Hampâté bâ, filó-

sofo, escritor e intelectual africano, para

exemplificar a relação entre a palavra, o co-

nhecimento e o saber vivenciados na escola

dos mestres da palavra:

Um mestre contador de histórias afri-

cano não se limitava a narrá-las, mas

podia também ensinar sobre numero-

sos outros assuntos (...) porque um ‘co-

nhecedor’ nunca era um especialista no

sentido moderno da palavra mas, mais

precisamente, uma espécie de generalis-

ta. O conhecimento não era comparti-

mentado. O mesmo ancião (...) podia ter

conhecimentos profundos sobre religião

ou história, como também ciências na-

turais ou humanas de todo tipo. Era um

conhecimento (...) segundo a competên-

cia de cada um, uma espécie de ‘ciência

da vida’; vida, considerada aqui como

uma unidade em que tudo é interligado,

interdependente e interativo; em que o

material e o espiritual nunca estão dis-

sociados. E o ensinamento nunca era

sistemático, mas deixado ao sabor das

circunstâncias, segundo os momentos

favoráveis ou a atenção do auditório

(bâ, 2003, p. 174-175).

como aponta bâ, o poder da palavra garante

e preserva ensinamentos, uma vez que pos-

sui uma energia vital, com capacidade cria-

dora e transformadora do mundo. energia

que possui diferentes denominações para as

diversas civilizações, por exemplo, para os

bantus essa energia é hamba, já para o povo

iorubá a energia é o axé.

tal é a importância da palavra na África que

existe um papel específico desempenha-

do pelos profissionais da tradição oral – os

griots – pessoas que têm o ofício de guardar

e ensinar a memória cultural na comunida-

de. eles armazenam séculos e mais séculos

de segredos, crenças, costumes, lendas e

lições de vida, recorrendo à memorização.

existem também mulheres que exercem es-

sas funções, conhecidas como griotes. Ham-

pâté bâ comenta sobre uma célebre canto-

ra, Flateni, antiga griote do rei aguibou tall,

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cujos “cantos arrancavam lágrimas até dos

mais empedernidos” (2003, p. 255). Há ainda

outras categorias de contadores de histórias

na África, como os Doma4, tidos como os

mais nobres contadores, porque desempe-

nham o papel de criar harmonia, de organi-

zar o ambiente e as reuniões da comunida-

de. eles jamais podem usar a mentira, pois

isso faria com que perdessem sua energia

vital, provocando um desequilíbrio no gru-

po ao qual pertencem (Caderno de Educação

– ÁFrIca IlÊ aIYÊ, 2001).

a tradição oral pode ser vista como uma ca-

cimba de ensinamentos, saberes que veicu-

lam e auxiliam homens e mulheres, crian-

ças, adultos/as velhos/as a se integrarem no

tempo e no espaço e nas tradições. sem po-

der ser esquecida ou desconsiderada, a ora-

lidade é uma forma encarnada de registro,

tão complexa quanto a escrita, que se utiliza

de gestos, da retórica, de improvisações, de

canções épicas e líricas e de danças como

modos de expressão.

mais uma vez recorrendo a bâ: “A escrita é

uma coisa, e o saber, outra. A escrita é a fo-

tografia do saber, mas não o saber em si. O

saber é uma luz que existe no homem. É a he-

rança de tudo que nossos ancestrais puderam

conhecer e que se encontra latente em tudo o

que nos transmitiram, assim como o baobá já

existe em potencial em sua semente (tIerno

boKar, apud bâ, 2003, p. 175).

É interessante salientar que hoje nós temos

a escrita como forma de apontamento de

nossas memórias, mas que ela não é a única

forma de registrarmos os conhecimentos, a

oralidade serviu e serve para preservar a cul-

tura africana no brasil.

nAS tRilHAS DAS HiStóRiAS

AFRO-BRASilEiRAS

De acordo com nelly novaes coelho, não te-

mos mais os contadores “descendentes dos

narradores primordiais, isto é, aqueles que

não inventavam: contavam o que tinham ou-

vido e ou conhecido” e que “representavam

a memória dos tempos a ser preservada pela

palavra e transmitida de povo para povo ou

de geração para geração” (coelHo, 2000, p.

109). contudo, podemos afirmar que a tra-

dição de narrar mantém a sua força. como

escreve celso sisto, “O homem já nasce pra-

ticamente contando histórias. Está inserido

numa história que o antecede e com certeza

irá sucedê-lo” (sIsto, 2001, p. 91).

4 conforme mencionado no caderno de educação – África Ilê aiyê (2001, p. 25) “os profissionais da tradição mais reconhecidos na África tradicional e contemporânea são os griots e os Domas. os griot é um nome de origem bambará, para personagens africanos denominados contadores de histórias, que eles sabem de memória e acumulam, reunindo séculos e mais séculos de crenças, costumes, lendas, contos, lições de sabedoria. o Doma é a categoria mais nobre de contadores de história, aquele que tem o papel de criar harmonia, de colocar ordem em volta do ambiente, da audiência nas reuniões da comunidade”.

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todos nós temos histórias para contar, imer-

sos que estamos, ainda que por vezes sem

perceber, no patrimônio cultural informado

por mitos, lendas, provérbios, contos, can-

ções, sátiras de todas as matrizes.

as narrativas orais expressam hábitos e va-

lores cujo compartilhamento se dá no am-

biente familiar, religioso, comunitário, es-

colar. todo este patrimônio está no corpo e

na mente das pessoas, onde quer que elas

estejam.

essas histórias, que também estão nos livros,

nos jornais, na rede informatizada, sugerem

troca, intimidade e proximidade e, conforme

Ford “nos ajudam a lidar com as inevitáveis

transições da vida e fornecem modelos para o

nosso relacionamento com as sociedades em

que vivemos e para o relacionamento dessas

sociedades com o mundo que partilhamos com

todas as formas de vida” (ForD, 1999, p. 9).

as culturas africanas e afro-brasileiras pre-

servam, também na escrita, narrativas que

podem ser associadas ao que a crítica literá-

ria ocidental classifica como contos, lendas,

fábulas, provérbios, canções, etc. É funda-

mental compreender que a base de todas as

histórias guarda reminiscências na tradição

oral.

as narrativas literárias são textos estéticos,

lúdicos, que suscitam a criatividade, o imagi-

nário da/o leitora/or. nesse tipo de texto pre-

dominou uma referência a se seguir, em que

as personagens brancas reinavam como pa-

drão de representação literária e, por muito

tempo, esse modelo ocidental eurocêntrico

foi quase que exclusivo. esse contexto vem

sendo alterado pelas ações dos movimentos

sociais negros, pelas influências de novas

visões e concepções de educação, além dos

dispositivos legais que atualmente orientam

os currículos das escolas.

Há, atualmente, vários livros publicados que

se propõem a desvendar o universo de algu-

mas culturas africanas e da afro-brasileira.

só para citar alguns temos: Bichos da África,

volumes I, II, III e Iv, Contos ao redor da fo-

gueira e Histórias africanas para contar e re-

contar, de rogério barbosa; Que mundo Ma-

ravilhoso, de Julius lester; Bruna e a galinha

d’Angola, de gercilga de almeida; A cor da

vida, de semíramis Paterno; Tanto, Tanto, de

trish cooke; Chica da Silva, de lia vieira e As

tranças de Bintou, de sylviane Diouf. existem

outros dentro do mercado editorial, o qual

tem se interessado pelo tema, apresentando

novas opções.

encontramos também livros que retomam

traços e símbolos da cultura negra, tais

como: a capoeira, a dança, os mecanismos

de resistência diante das discriminações

e outros que fazem alusão direta às religi-

ões de matriz africana ou que remetem às

divindades afro-brasileiras: Pai Adão era

Nagô, de Inaldete andrade; Rainha Quixim-

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bi; o presente de ossanha; Gosto de África e

Dudu Calunga, de Joel rufino; Na terra dos

Orixás, de ganymedes José; Lenda dos orixás

para crianças, de maurício Pestana; Ifá, o adi-

vinho, Xangô, o rei do trovão, Os príncipes do

destino: histórias da mitologia afro-brasileira,

de reginaldo Prandi.

Júlio emilio braz, por exemplo, nos estimu-

la a imergir no universo de algumas lendas

africanas, a fim de aguçar nossa curiosida-

de, durante a leitura. afinal, indaga ele:

Quantas histórias sobre os tuaregues, o

lendário povo nômade do norte da Áfri-

ca, já ouviram?

Qualquer um deles conhece a história de

reinos tão poderosos quanto desconhe-

cidos como de Ghana e Achanti? E sobre

um império Mali? O que ouviram? Son-

gai? Kanem-bornu? Bambara?

Pouco ou nada se falou sobre a África

para os jovens de hoje, afrodescenden-

tes ou não. E quando se falou, buscou-se

mais a discussão sobre as religiões ou o

folclore, quando não o estereótipo. Para

muitos a África ainda é um mistério ou,

pior ainda, quando aparece nos notici-

ários, é como palco de terríveis guerras

civis, epidemias pavorosas ou de países

muito próximos de barbárie, onde a civi-

lização parece não existir (2002, p. 4-5).

ao ampliar nossos conhecimentos, bem

como desenvolver com os alunos e alunas

projetos e aulas significativos, percebere-

mos que o universo afro-brasileiro é múlti-

plo e que existem várias Áfricas que infor-

mam nossa cultura. nas palavras de braz:

Na verdade, não existe apenas uma Áfri-

ca, mas incontáveis, ricas em histórias

e tradições. Do norte islamizado até o

sul dividido em incontáveis crenças e

religiões, muitas delas fruto dos anos

de colonização europeia, passando por

uma surpreendente diversidade ecológi-

ca e geográfica que vai dos desertos es-

caldantes como o Saara e o Kalahari às

maravilhas florestais como Okavango e

às extensas savanas em países como o

Quênia (2001, p. 4).

ainda como nos alerta o autor, é importan-

te estarmos atentos e re-vermos o quanto

a cultura africana impregnou-se na cultura

brasileira:

A riqueza étnica é impressionante, res-

ponsável por uma herança cultural e ar-

tística e precisamos conhecê-la, uma vez

que ainda a conhecemos pouco, apesar

de a África ter uma influência decisiva

nos hábitos e nos costumes mesmo da-

queles brasileiros que não são afrodes-

cendentes (braZ, 2001, p. 4 e 5).

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tECEnDO OS POntOS PARA

COntAR OS COntOS

o aqui e agora dos espaços das narrativas,

com seus personagens intrigantes, enredos

carregados de metáforas e desfechos sur-

preendentes, falam de valores importantes

para descortinar as múltiplas dimensões da

vida na sociedade atual. conhecer este uni-

verso significa poder contribuir, em sentido

amplo, para a promoção da igualdade das

relações étnico-raciais na escola e fora dela.

talvez uma das maiores riquezas do traba-

lho com os contos seja o exercício da bus-

ca coletiva, da pesquisa, das trocas e das

descobertas. os contos, sejam eles orais ou

escritos, estão por toda a parte para serem

recolhidos e oferecidos para nosso deleite,

num tecido poético bordado de símbolos e

ensinamentos.

Para clarissa estes, nas histórias estão in-

crustadas orientações que nos guiam a res-

peito da complexidade da vida. elas se apre-

sentam, muitas vezes, como ingredientes

medicinais, que aliviam, que curam:

As histórias são bálsamos medicinais.

(...). Elas têm uma força! Não exigem que

se faça nada, que se seja nada, que se aja

de nenhum modo – basta que prestemos

atenção. A cura para qualquer dano ou

para resgatar algum impulso psíquico

perdido nas histórias. Elas suscitam in-

teresse, tristeza, perguntas, anseios e

compreensões que fazem aflorar [ima-

gens do nosso inconsciente](...). No en-

tanto, (...) em cada fragmento de histó-

ria está a estrutura do todo (clarIssa

estes, 1999, p. 30).

começar a busca em nosso acervo de memó-

ria pode ser significativo, considerando que

estes conhecimentos, de alguma maneira,

fazem parte de nossa formação identitária.

Quais contos já ouvimos ou lemos? Quan-

do foi? Quem nos apresentou as narrativas?

Quais foram os sentimentos e emoções mo-

bilizados?

este pode ser um primeiro passo. olhar para

nós e para nossa história de vida, para saber

que lugar ocupam os contos, os mitos, os

provérbios, e nos prepararmos para, no am-

biente escolar, lançar mão de ações simples

e organizadas e contribuir para as artes de

falar e de escutar, destacando as fundamen-

tais para a convivência e o exercício da cida-

dania na atual sociedade.

como destaca rogério barbosa sobre a arte

de contar histórias:

Seja bem-vindo ao mundo da literatura

oral. (...) Não se limite apenas a ler ou

a ouvir. Vibre intensamente com as his-

tórias como se fizesse parte da atenta

plateia.

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Aprecie os contos que explicam a origem

do comportamento de determinados

habitantes da floresta. Depois, leia as

histórias em voz alta e tente reproduzir

o andar e os diálogos travados pelos in-

críveis personagens. Afinal, as histórias,

principalmente na África, foram feitas

para serem contadas e recontadas. (...)

Uma das tradições africanas são os con-

tos etiológicos, que procuram explicar

as origens das coisas e o comportamen-

to de determinados animais. Histórias

africanas para contar e recontar sur-

giu de uma seleção e adaptação desses

contos... (barbosa, 2004 – introdução e

biografia).

AMPliAnDO HORiZOntES: O

OFíCiO DE FAZER

a seguir, apontamos algumas possibilidades.

É com a mão na massa que podemos pensar

as nossas posturas investigativas, repensar

atividades escolares como espaços de um di-

álogo emocionado:

• convidar nossos/as colegas professores

para o exercício de rememorar as narrati-

vas que fazem parte das histórias pessoais,

o que pode ser bastante instigante. traba-

lhar em grupo, nas reuniões pedagógicas,

é também excelente oportunidade para

analisar o projeto político-pedagógico da

escola, verificando quais são os compro-

missos firmados no sentido de conhecer a

história, valorizar a memória e a herança

cultural dos diferentes povos. Quais são

as atividades e projetos que a escola, ou

parte dela, já realiza ou realizou? como

têm sido desenvolvidas e divulgadas?

• Incentivar a prática da pesquisa junto aos

alunos e alunas. Discuta e elabore com

eles a coleta de depoimento oral de pes-

soas da família ou da comunidade. o que

importa neste momento é valorizar as

histórias e investir na construção de um

mapa cultural e social, que pode ajudar na

construção de uma rede de sociabilidade,

fortalecendo a autoestima dos envolvidos

neste processo. É importante também

pensar na sistematização e comunicação

do material coletado;

• Dinamizar as reuniões de responsáveis,

pais e mães, fazendo também desta opor-

tunidade um espaço de valorização de sa-

beres, de trocas e descobertas, por meio

da coleta e ressignificação das memórias

dos contos. as reuniões também são boas

oportunidade para que as pessoas presen-

tes conheçam os projetos que estão sendo

desenvolvidos na escola e tenham conta-

to com os livros e outros materiais traba-

lhados no espaço escolar;

• realizar buscas na internet, para conhe-

cer sites de países africanos e conhecer

contos que estão disponíveis na rede, tais

como:

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264

www.casadasfricas.com.br;

www.mestredidi.org;

www.mundonegro.com.br;

www.portalafro.com.br;

www.navedapalavra.com.br

www.docedeletra.com.br .

• buscar outras fontes, tais como filmes, um

deles Kiriku e a feiticeira, narrativa africana

encantadora traduzida para a linguagem

fílmica. acessar séries educativas, como

os programas de vídeo do projeto A Cor

da Cultura5 (www.acordacultura.org.br), a

série Repertórios Afro-Brasileiros, veiculada

pela tv escola/Programa salto para o Futu-

ro, em 2004, dentre outras (www.tvebrasil.

com.br/salto). conhecer as experiências de

professores, voltadas para a promoção da

igualdade racial/étnica no ambiente esco-

lar, as quais foram selecionadas e divul-

gadas pelo Prêmio Educar para a Igualdade

Racial do CEERT (www.ceert.org.br).

• visitar, em feiras e congressos, os estandes

de editoras e ongs, buscando materiais

especificamente relacionados à temática.

o mercado editorial tem investido na pro-

dução de materiais sobre diversidade. são

dezenas de livros que, analisados com cri-

térios, enriquecem o trabalho;

• estabelecer contato com grupos do movi-

mento social negro e outras entidades para

conjuntamente organizar eventos – ativida-

des, cursos, palestras – que valorizem a cul-

tura e a história africana e afro-brasileira

e sejam incorporados ao projeto político-

-pedagógico e ao currículo da escola.

mantendo a tradição africana, de trabalhar

coletivamente, mostra-se fundamental pen-

sar com a comunidade escolar outras possi-

bilidades de tessitura de relações com com-

promisso. Desta forma, salientamos que o

trabalho com os contos é interdisciplinar

e pode tomar um dos lugares centrais no

projeto político-pedagógico e nos currículos

das escolas, de forma a disseminar e valo-

rizar o uso da palavra oral, como uma das

mais importantes modalidades da lingua-

gem. afinal, somos contadores e contadoras

de histórias.

o ato de contar, de ouvir histórias parece

ainda manter um sentido universal que re-

side na sustentação do espaço de sociabili-

dade. contar história é trocar, compartilhar

vivências e saberes. trata-se de escutar a voz

do outro que, ao contar, exerce O direito de

ler em voz alta, como aponta Pennac em Di-

reitos Imprescritíveis do leitor6.

5 a cor da cultura é um projeto educativo de valorização da cultura afro-brasileira, realizado por uma parceria entre o canal Futura, a Petrobras, o cidan – centro de Informação e Documentação do artista negro, a tv globo, mec/ e a seppir – secretaria especial de Políticas de Promoção da Igualdade racial.

6 Daniel Pennac, no livro Como um romance (p. 139), aponta os 10 direitos imprescritíveis do leitor: o direito de não ler; de pular páginas, de não terminar de ler um livro; de reler; de ler qualquer coisa; ao bovarismo (doença textualmente transmissível); o direito de ler em qualquer lugar, de ler uma frase aqui e outra ali, de ler em voz alta, de calar.

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a possibilidade de escolher determinada his-

tória nos permite ocupar o lugar de um griot

e o próprio poder de usar a fala pode ser to-

mado como um espaço de autoafirmação.

trata-se de escutar a voz do outro. e quem

escuta aprende a respeitar e deleitar-se na

voz da outra pessoa.

COntinuAnDO A COnvERSA:

liBERtAnDO vOZES

Quando nos referimos à cultura afro-brasi-

leira, sempre fazemos uso dos incontáveis

conhecimentos e saberes trazidos por ou-

tros povos e pelos africanos escravizados em

suas estratégias de resistência e construção

de suas identidades – o canto, as rezas, os

gestos corporais, o som dos instrumentos,

os usos da palavra cantada ou versada. to-

dos esses elementos se entrelaçam e comu-

nicam e nos comunicam algo sobre nosso

território, nossa cultura, nossa língua, en-

fim, nossa história.

Podemos ser os novos guardiões e guardiãs,

responsáveis por construir novas histórias,

re- criar enredos éticos e dignos, valorizar

culturas e sermos portadores das vozes es-

quecidas de um passado mais longínquo

(dos mitos, dos ancestrais), assim como de

um passado mais próximo, de séculos de

ocultamento da história da África como ma-

triz da trajetória da humanidade. basta abrir

as portas e deixar as histórias aflorarem:

Espero que vocês saiam e deixem que as

histórias lhes aconteçam, que vocês as

elaborem, que as reguem com seu san-

gue, suas lágrimas e seu riso até que

elas floresçam, até que você mesma es-

teja em flor. Então, você será capaz de

ver os bálsamos que elas criam, bem

como onde e quando aplicá-los. É essa a

missão. A única missão (estes, 1999, p.

570).

a missão do poder da palavra está conos-

co. basta sabermos usá-la, como os sábios

contadores de outrora, e mergulharmos nos

mistérios desconhecidos, que nos revelam

como lidar com os conflitos, com as mudan-

ças, com as diferenças, com a convivência

em sociedade nas singularidades das formas

de ser e viver.

novos conceitos são construídos por meio

da disseminação de outras ideias e con-

cepções, capazes de promover e sustentar

comportamentos favoráveis à convivência e

ao respeito, à igualdade nas relações entre

crianças e jovens, homens e mulheres para

além do aspecto jurídico, constituído pelo

princípio de que todos os homens são iguais

perante a lei.

Fica o convite ao compromisso para desfiar a

trama cultural, nos seus múltiplos sentidos

e tessituras, recuperar, produzir histórias e

– na própria voz dos sujeitos – buscar for-

mas de alterar as condições atuais, contar

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ou retomar outras novas histórias, coletiva-

mente, como rezam as tradições das Áfricas.

AS lEiS COntAM E AuMEntAM

POntOS

atualmente, a cultura africana e afro-brasi-

leira está na agenda educacional de nosso

País. É importante ressaltar que o movi-

mento social negro brasileiro – incluímos

também o movimento de mulheres negras

– nas últimas décadas do século XX e início

do XXI – tem desempenhado papel prepon-

derante nessa tendência de valorização da

cultura negra, por meio de suas denúncias e

reivindicações. todo esse contexto permite,

gradativamente, vislumbrar livros de lite-

ratura Infanto-Juvenil com novas propostas

(lIsboa De sousa, 2005).

vale chamar a atenção em relação à altera-

ção da lei de Diretrizes e bases da educação

nacional de n°. 9.394/96 (lDben), trazida

pela lei Federal de n°. 10.639/03, que torna

obrigatório o ensino de História e cultura

afro-brasileira no currículo oficial de en-

sino e da regulamentação da lei 10.639/03

pelo Parecer cne/cP 003/2004 e pela reso-

lução cne/cP 1/2004, que dispõem sobre as

Diretrizes curriculares para a educação das

relações Étnico-raciais e para o ensino de

História e cultura afro-brasileira e africa-

na.

De acordo com o Parecer, é fundamental a:

Edição de livros e de materiais didáticos,

para diferentes níveis e modalidades de

ensino, que atendam ao disposto neste

parecer, em cumprimento ao disposto

no Art. 26A da LDB, e, para tanto, abor-

dem a pluralidade cultural e a diversida-

de étnico-racial da nação brasileira, cor-

rijam distorções e equívocos em obras já

publicadas sobre a história, a cultura, a

identidade dos afrodescendentes, sob o

incentivo e supervisão dos programas de

difusão de livros educacionais do MEC –

Programa Nacional do Livro Didático e

Programa Nacional de Bibliotecas Esco-

lares (Pnbe).

a resolução retoma esse assunto quando in-

forma no art. 7º que “Os sistemas de ensino

orientarão e supervisionarão a elaboração e

edição de livros e outros materiais didáticos,

em atendimento ao disposto no Parecer CNE/

CP 003/2004”. esses dispositivos legais são

fundamentais para as mudanças atuais na

história da educação no país, pois contri-

buem para que educadores, gestores, edito-

res, leitores etc., possam redimensionar as

práticas de leitura e a concepção de livros

de literatura.

em 2005, a secretaria de educação continu-

ada, alfabetização e Diversidade (secaD),

por intermédio da coordenação geral de

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Diversidade e Inclusão educacional, enviou

ofícios para várias editoras, informando so-

bre os dispositivos legais acima citados, com

o intuito de que as editoras inscrevessem li-

vros sobre o tema no Programa nacional de

biblioteca da escola (Pnbe). as Diretrizes do

referido Programa apontavam o tema da di-

versidade como enfoque. o resultado foi po-

sitivo, na medida em que livros importantes

sobre o tema foram selecionados em 2005,

aos quais os/as educadores/as e estudantes

terão acesso via Pnbe.

Por um lado, algumas secretarias de edu-

cação organizaram materiais específicos

para contemplar a cultura afro-brasileira. À

guisa de exemplo, temos a Bibliografia Afro-

-Brasileira na Rede Municipal de São Paulo /

SP, distribuída em 2003; o Kit de Literatura

Afro-Brasileira, da secretaria municipal de

educação de belo Horizonte/mg, distribuído

em 2004; o material orientador sobre rela-

ções raciais e cultura afro-brasileira da se-

cretaria municipal de educação de salvador/

ba e o material de formação de professores

da secretaria estadual de educação do mato

grosso do sul.

as leis estão saindo fora do papel e ganhan-

do corpo, uma vez que educadores de norte

a sul do brasil, cada vez mais, realizam diver-

sas atividades em sala de aula. e ao apresen-

tarem, lerem, interpretarem, narrarem con-

tos, aumentam pontos. Da mesma forma,

ao partilharem conhecimentos, valorizam e

estimulam o respeito à diversidade. salien-

tamos que tais ações precisam integrar os

currículos das escolas e serem incorporadas

ao cotidiano escolar.

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x. CONTO POPULAR, LITERATURA E FORmAÇÃO

DE LEITORES1

Ricardo Azevedo2

Parte considerável dos contos populares pare-

ce ser originária de mitos arcaicos. os mitos

são, em princípio, narrativas sagradas, rela-

tando fatos que teriam ocorrido num tempo

ou mundo anterior ao nosso e que, em geral,

tentam explicar a origem e a existência das

coisas: como e porque surgiram o mundo, os

homens, os costumes, as leis, os animais, os

vegetais, os fenômenos da natureza etc.3 em

outras palavras, através de histórias, as cul-

turas criaram (e criam) mitos com o objetivo

de tornar compreensíveis e interpretáveis a

existência humana e tudo o que existe.

vejamos trechos de dois relatos míticos

recolhidos pelo antropólogo claude lévi-

-strauss em sua passagem pelo brasil, na dé-

cada de 40. ambos tentam explicar porque o

pássaro engole-vento é como é. o primeiro

corresponde a um mito guarani:

“Uma filha de chefe e um rapaz se apai-

xonaram, mas os pais da jovem não

aprovavam a união da filha (...). Um dia,

a moça desapareceu. Descobriu-se que

tinha fugido para as colinas refugiando-

-se entre animais e pássaros. Enviaram

embaixadas e mais embaixadas até ela,

para convencê-la a voltar, mas em vão: o

desgosto a tinha tornado surda e insen-

sível. Um feiticeiro declarou que só um

grande choque poderia tirá-la daquela

letargia. Anunciou-se então à heroína a

falsa morte de seu amado. Ela deu um

pulo e desapareceu, transformada em

Engole-vento”4.

sobre o mesmo pássaro, cujo canto é mui-

to triste, o ilustre pesquisador apresentou o

mito karajá. eis um trecho:

1 conto e reconto: literatura e (re)criação – 2006 / Pgm 1.

2 escritor e desenhista, doutor em letras pela universidade de são Paulo, autor de Lúcio vira bicho, cia. das letras, contos de espanto e alumbramento, scipione e a hora do cachorro louco, Ática, entre outros.

3 o assunto ultrapassa os limites desse artigo. Há, naturalmente, mitos modernos e contemporâneos. o termo costuma ser utilizado de forma imprecisa, seja meramente como “relatos fantásticos” ou “seres fabulosos” seja como “crenças inverídicas” ou mesmo simples mentiras. a noção de mito é bem mais complexa que isso. Para mais informações c.f. por exemplo elIaDe, mircea. mito e realidade. trad. Pola civelli. são Paulo, Perspectiva, 1972.

4 lÉvI-strauss, claude. A oleira ciumenta. trad. beatriz Perrone-moisés. são Paulo, brasiliense, 1986, p. 55.

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“(...) certa noite, a mais velha entre duas

irmãs, admirando a beleza da estrela

vespertina, desejou-a. No dia seguinte, a

estrela entrou em sua casa sob a forma

de um velho curvado, enrugado e de ca-

belos brancos, e declarou estar disposto

a se casar com ela. A mulher, horroriza-

da, rejeitou-o. Sua irmã mais nova ficou

com pena e aceitou o velho como ma-

rido. No dia seguinte, descobriram que

aquele corpo não passava de um invólu-

cro, sob o qual havia um belo rapaz, ri-

camente paramentado, que sabia fazer

crescer as plantas alimentares que os

índios ainda não conheciam. A mais ve-

lha sentiu ciúme da irmã por sua sorte,

e sentiu vergonha de sua própria estu-

pidez. Transformou-se então no Engole-

-vento, de grito desconsolado”5.

como se vê, a associação entre narrativas

míticas e contos populares pode ser bastan-

te nítida.

ressalto que o que chamo aqui de “conto

popular” é sinônimo de “conto de fadas”,

“conto maravilhoso” ou “conto de encanta-

mento”, narrativas que no nordeste brasi-

leiro também são conhecidas como “histó-

rias de trancoso”.

em grandes linhas, é possível colocar a

questão nos seguintes termos: acredita-se

que muitas narrativas míticas, oriundas das

mais diversas culturas, teriam sofrido um

processo de dessacralização, ou seja, com

o passar do tempo, deixaram de ser inter-

pretadas com fé religiosa. algumas delas,

por serem muito bonitas, continuaram a ser

contadas e, de boca em boca, sofrendo natu-

ralmente todo tipo de alteração e influência

– “quem conta um conto aumenta um pon-

to” – transformaram-se no que conhecemos

hoje como contos populares.

esses contos, é bom lembrar, são típicas ex-

pressões de culturas orais (sem escrita), ou

seja, culturas que não contam com recur-

sos para fixar informações. De narrador em

narrador, guardados, através dos séculos,

na plasticidade da memória e da voz, viaja-

ram para todos os lados sendo disseminados

pela transmissão boca a boca. nesse pro-

cesso, sofreram todo tipo de modificação:

fusões, acréscimos, cortes, substituições e

influências. em tese, numa simplificação, de

um mesmo mito (narrativa sagrada arcaica)

europeu, por exemplo, podem ter surgido

infindáveis e variadas histórias, marcadas

pelas diversas culturas por onde passaram

e recriadas por um sem número de contado-

res (cada um com seu estilo).

eis porque os contos populares são tão ri-

cos, multifacetados e complexos e também

porque costuma ser perda de tempo preten-

der identificar sua “verdadeira origem”.

5 Idem,ibidem, p. 58. 8 Idem, ibidem, p. 179.

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o tema é amplo. Para abordá-lo no curto es-

paço desse texto, será preciso dividi-lo em

tópicos.

o primeiro deles diz respeito a algumas ca-

racterísticas, entre outras, dos contos po-

pulares: 1) são sempre assumidamente de

ficção, ou seja, não pretendem ter aconte-

cido de fato (ao contrário, por exemplo, do

“causo” ou da “lenda”); 2) trazem, muitas

vezes, a possibilidade do elemento maravi-

lhoso: a existência de forças desconhecidas,

feitiços, monstros, encantos, instrumentos

mágicos, vozes do além, viagens extraordi-

nárias e amigos ou inimigos sobrenaturais;

3) não costumam ocorrer num tempo deter-

minado (ou histórico), mas – como os mitos

– num passado ou numa dimensão anterio-

res e desconhecidos. note-se que seu desen-

volvimento acontece “certa vez”, “há muito

tempo...”, “no tempo em que os animais fa-

lavam”, “há milhares de anos quando nada

existia do que hoje existe” etc.; 4) com suas

personagens acontece algo semelhante. Por

vezes, nem nome têm: são “o pai e seus três

filhos, o mais velho, o do meio e o caçula”,

ou “a bela adormecida no bosque”, ou “cer-

to rei muito poderoso pai de uma princesa

mais linda do que as flores do campo” e, por

último, 5) neles, em geral, a passagem do

tempo inexiste. o herói despede-se do pai,

viaja pelo mundo, enfrenta perigos e um

sem número de aventuras, desobedece uma

recomendação, é castigado, foge, liberta a

princesa das garras do monstro, retorna,

é traído, luta, vence, casa-se com ela e em

termos temporais, aparentemente, nada

mudou. crianças, jovens e velhos começam

e terminam a história mantendo, em geral,

suas respectivas idades.

não são poucas as exceções, mas que surgem

para confirmar a recorrência dos pontos ali-

nhavados acima de forma esquemática.

um segundo tópico merece ser destacado.

na maioria das vezes, os contos populares,

ou de encantamento, não obedecem a uma

moral de princípios. em tese, a moral corres-

ponde a um conjunto de normas de compor-

tamento destinadas a regular as relações en-

tre os indivíduos6. estamos acostumados e

condicionados a pensar na moral como um

acervo de princípios abstratos, gerais e uni-

versais de comportamento que deve ser res-

peitado por todos, seja qual for a situação:

não mentir, não roubar, não matar, valorizar

a busca da justiça, da imparcialidade, da im-

pessoalidade, da isonomia, da isenção e da

neutralidade. Pois bem, a moral dos contos

de encantamento, chamada por alguns de

moral ingênua, costuma seguir outros para-

6 a ética, vale lembrar, é a teoria ou a ciência do comportamento moral dos homens em sociedade. ou seja, ela representa um “conjunto sistemático de conhecimentos racionais e objetivos a respeito do comportamento humano moral” (vazquez). enquanto a moral é inseparável da atividade prática, a ética constitui-se na avaliação, reflexão e crítica sobre esta atividade. sobre o assunto, c.f. vaZQueZ, adolfo sanchez. Ética . civilização brasileira, 1999 e arIstÓteles. Ética a nicômacos. universidade de brasília, 1992.

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digmas. segundo ela, tudo o que favorece

o herói é o bem e tudo o que prejudica o

herói é o mal. trata-se, em outras palavras,

de uma moral relativa, flexível e pragmática,

ligada não a princípios abstratos e univer-

sais mas a atuações e situações concretas

do aqui-agora. É ela que, por exemplo, pode

fazer com que certa mãe diga: “meu filho

cometeu um crime, mas errar é humano.

nossa senhora da Penha vai perdoá-lo e fa-

zer com que a polícia jamais o encontre.”

note-se que, de acordo com a moral ingê-

nua, errar costuma ser bem mais humano

quando a gente gosta de quem errou.

a questão também pode ser vista por outro

viés: o do livre-arbítrio. a lei, um princípio

geral e abstrato, nos obriga a não ultrapas-

sar a velocidade de 60 km por hora nos pe-

rímetros urbanos. estamos, por exemplo,

com uma pessoa gravemente ferida dentro

do carro. Devemos cumprir a lei ou não?

tento demonstrar que a questão da moral

ingênua implica dissenso e contradição e

que boa parte dos contos populares obede-

ce a uma moral que, embora eventualmen-

te condenável em termos da sociabilidade,

pode trazer à baila situações e conflitos hu-

manos de grande interesse.

ainda neste tópico, um último exemplo

(que, por sinal, vincula a moral ingênua à

cultura popular): como exigir que a moral de

uma sociedade civilizada e justa, onde todos

os cidadãos pagam impostos e recebem em

troca os benefícios do estado – segurança,

moradia, educação, transporte, saúde e tra-

balho –, seja igual à moral de uma socieda-

de desequilibrada, onde cada um luta por si

para poder sobreviver? são questionamen-

tos que mereceriam uma discussão urgente,

principalmente se levarmos em conta a so-

ciedade brasileira.

Passo para um terceiro aspecto dos contos

populares: seu caráter eminentemente nar-

rativo.

Para compreender esse ponto, é preciso

abordar, mesmo que de passagem, um tema

relevante e muito amplo, embora nem sem-

pre levado em conta: a oralidade, suas ca-

racterísticas e implicações.

sabemos que os contos populares, em prin-

cípio, nascem em culturas orais, ou seja, são

histórias criadas, recriadas e preservadas ao

longo do tempo – sempre com modificações

– através da narração e da memória, recur-

sos típicos das culturas que não dispõem de

instrumentos de fixação como a escrita.

mesmo em versões contemporâneas feitas

por escrito, o conto popular continua mar-

cado pela narrativa oral, pois tende a man-

ter certas características do discurso falado

e pressupõe sempre uma voz que narra e um

ouvinte.

refiro-me a um escritor que, de certo modo,

escreve como quem fala e a um leitor que lê

como quem ouve.

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Podemos, claro, escrever solitariamente

sem nos preocuparmos com o eventual lei-

tor mas, convenhamos, quem narra em voz

alta, sozinho, para ninguém, corre o risco

de ser internado à força em alguma clínica

psiquiátrica.

a narrativa, portanto, é, em princípio, essen-

cialmente dialógica e tem como substrato,

paradigma e pressuposto básico, sempre e

sempre, a comunicação entre pessoas feita

face a face, em suma, de um eu que se dirige

a um outro situado.

explico-me melhor: há textos marcados prin-

cipalmente pela cultura escrita. Isso signifi-

ca, em resumo, que são fixados e conserva-

dos por texto, o que garante sua perenidade

e a possibilidade de serem lidos e interpre-

tados em qualquer lugar, época ou contex-

to histórico. um escritor sabe que, mesmo

depois de morto, sua obra poderá ser lida.

sabe que seu livro poderá ser distribuído

pelo mundo afora e que ele jamais verá o

rosto nem saberá a opinião da maioria de

seus leitores. sabe que pode se dar ao luxo

de escrever de forma fragmentada, recorrer

a vocabulário e sintaxes incomuns, de uti-

lizar metáforas obscuras, fazer citações ou

de ser experimental (pois o leitor pode ler,

reler e analisar o texto com calma). Pode ser

indiferente ao fato de ser ou não compreen-

dido. se quiser, pode até ser agressivo com

o leitor. em tese, e considerando o meio de

expressão que utiliza – a escrita – um escri-

tor, na verdade, independe completamente

do seu leitor.

Já um orador – seja ele um contador de his-

tórias, um professor, um político, ou um

padre durante o sermão – quando se dirige

a uma plateia face a face, “ao vivo”, vê-se

diante de uma situação bastante diferente

da vivida pelo escritor.

sabe que suas palavras, seu tom de voz, seus

gestos, seus olhos, o ambiente, a reação da

plateia e a energia estabelecida entre ele e a

plateia fazem parte de seu discurso e jamais

poderão ser completamente reproduzidos,

mesmo que seu discurso seja gravado, fil-

mado ou fixado por texto, pois a diferença

entre uma aula e o filme dessa aula é tão

grande quanto a diferença entre um discur-

so ao vivo e sua transcrição numa folha de

papel. sabe que seu discurso tem um alto

grau de efemeridade. sabe que precisa ser

necessariamente compreendido, ou seja,

evita falar para ser “interpretado” pois isso

demandaria tempo, distanciamento, análise

e reflexão por parte do ouvinte. sabe que se

alguém da plateia não compreender seu dis-

curso poderá perguntar, portanto, sabe que,

se for o caso, pode improvisar e utilizar pa-

lavras não previstas – ou seja, modificar seu

discurso – para transmitir uma ideia. sabe

que não poderia fazer seu discurso se esti-

vesse morto. sabe que sua plateia se resume

às pessoas que estão à sua frente e precisa

estar atento à reação dessas pessoas. não

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pode, portanto, se dar ao luxo de falar de

forma fragmentada, recorrer a vocabulá-

rio e sintaxes incomuns, utilizar metáforas

obscuras, fazer citações ou ser experimen-

tal, pois correrá o risco de não ser compre-

endido. sabe que se for agressivo e ofender

as pessoas da plateia pode até tomar uma

surra. em tese, e considerando o meio de

expressão que utiliza – a voz – um orador

depende completamente do seu ouvinte.

Dei tantos exemplos para defender a seguin-

te ideia: há textos escritos marcados pela

cultura escrita e textos escritos marcados

pela cultura oral. esses últimos tentam sem-

pre recuperar a situação do orador diante

de uma plateia, o discurso falado no conta-

to face a face. textos assim, claros, diretos,

concisos e dependentes da plateia (do lei-

tor), são exatamente aqueles utilizados pelo

escritor de contos populares. além da busca

da comunicação imediata, da linguagem pú-

blica e direta, da concisão e dos temas pas-

síveis de identificação e compartilhamento,

um de seus vários recursos é a narratividade.

naturalmente, o termo “narrativa” é am-

plo e pressupõe a possibilidade de diversas

abordagens. refiro-me a uma narrativa que

se pretenda popular, que seja linear, cons-

truída acumulativamente, com começo,

meio e fim, que tenha continuidade, que te-

nha como objetivo contar uma história de

interesse geral, abordando temas que per-

mitam identificação imediata, um discurso

compartilhável construído através de uma

linguagem familiar e acessível.

abro parênteses para lembrar que a narrati-

va é um recurso humano vital e fundamen-

tal. sem ela, a sociabilidade, e mesmo a vi-

são que temos de nós mesmos, não poderia

ser construída. narramos nossas experiên-

cias cotidianas, nosso dia no trabalho, fatos

acontecidos, lembranças, sonhos, projetos

e desejos. narramos, mesmo de forma so-

litária, em pensamento, para nós mesmos,

episódios acontecidos que de alguma forma

não ficaram claros. Para além de um recur-

so literário, a narrativa pode ser considera-

da um dos procedimentos através dos quais

tornamos a vida e o mundo interpretáveis.

na verdade, a narrativa sempre foi:

(...) uma tendência definidora do ser

humano: da escrita rupestre entreme-

ada de sons guturais à elaboração da

linguagem narrativa, observamos que o

homem conta a história de si mesmo e

do mundo. A necessidade dos ancestrais

de reunirem-se à volta do fogo para se

guarnecerem do frio e das feras está

acompanhada do pressentimento de

que algo poderia ser revelado na fala do

sacerdote. E, na atualidade, não é com

outro pressentimento que o homem ro-

deia o aparelho de televisão, à espera de

um sacerdote dessacralizado da mídia:

todos aguardamos notícias, revelações,

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reconstruções de eventos, através das

narrativas7.

ainda sobre o tema, vejamos as palavras de

clóvis barbosa, um homem do povo, pesca-

dor e contador de histórias em são romão,

minas gerais:

Gosto de contá história (...). Qualqué

história eu gosto de contá. Se é um caso

alegre, de brincá com os otro, eu vô con-

tano e vô rino. Se é história de sofrimen-

to, eu vô falano, o coração vai doeno e

tem vez que dá choro. Aí nós chora junto

e lembra tudo de difici que nós passô. É

um choro manso, uma chuva fininha8.

a construção narrativa, em suma, é um pro-

cedimento que, sem dúvida, ajuda a estrutu-

rar e tornar compreensível a experiência de

vida, não de forma solitária, mas sim, note-

-se, por meio da sociabilidade e do contato

dialógico com o outro. como disse o conta-

dor de histórias mineiro “aí nós chora junto

e lembra tudo de difíci que nós passô”.

não por acaso, a narratividade é uma carac-

terística central do conto popular.

Perceber que há textos narrativos e textos

não-narrativos, assim como perceber que há

textos marcados pela cultura escrita e tex-

tos marcados pela cultura oral, podem ser

experiências interessantes para o leitor jo-

vem, em fase de compreender a literatura e

situar-se diante dela.

Falei em “tornar compreensível a experiên-

cia de vida” e isso nos remete a meu último

tópico: os temas e imagens recorrentes nos

contos populares.

ao contrário do que se poderia pensar, o fato

de serem de ficção e poderem conter aspec-

tos mágicos e de encantamento, nem de lon-

ge tira dos contos populares sua extraordi-

nária capacidade de abordar a vida concreta

e, mais ainda, de especular sobre ela. tanto

assim que neles nos deparamos com prince-

sas que nascem mudas e recuperam sua voz

quando encontram o homem por quem se

apaixonam. Pessoas que se deitam na cama e

ficam “adormecidas” até serem despertadas

por um sentimento forte. mães ou madras-

tas que, ao notarem que suas filhas cresce-

ram e tornaram-se mulheres, mandam matá-

-las. Injustiças e transgressões. gigantes que

aprisionam moças em castelos. Irmãos que

mentem e traem. Pais que tentam desposar

suas próprias filhas. Heróis tolos que fazem

tudo errado mas mesmo assim se dão bem.

moças ou moços que não conseguem rir e

se dispõem a se casar com alguém que saiba

alegrá-los. traições, ciúmes, orgulhos, men-

7 gomes, núbia P.m. & PereIra, edimilson P. mundo encaixado – significação da cultura popular. belo Horizonte, mazza edições, 1992. p. 112.

8 Idem, ibidem, p. 179.

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tiras, vaidades, vinganças, invejas e ódios.

Heróis malandros. enigmas e adivinhações.

Heróis que arriscam a vida e colocam os in-

teresses da coletividade acima dos seus inte-

resses pessoais. lutas de fracos contra fortes.

animais que falam e se comportam como

gente. seduções de todo o tipo. Heróis que

tentam enganar a morte. Pactos com o dia-

bo e seus preços. Homens sábios. Príncipes e

princesas que lutam para escapar de castelos

no fundo do mar. Pessoas e cidades transi-

toriamente transformadas em pedra. sinas e

manias. moços que precisam aprender a lin-

guagem dos pássaros para conquistar suas

amadas. truques e ardis. Heróis transforma-

dos em animais ou monstros em busca de

sua identidade perdida. não é pouco!

através dos contos populares, chamados

também de contos de encantamento, de

fadas etc., temos a oportunidade de entrar

em contato com temas que dizem respeito

à condição humana vital e concreta, suas

buscas, seus conflitos, seus paradoxos, suas

transgressões e suas ambiguidades.

na minha visão, os contos populares, in-

dependentemente de rótulos como “cultu-

ra popular”, “folclore” e outros, podem ser

considerados uma excelente introdução à

literatura, pois nada mais fazem do que tra-

zer ao leitor, de forma acessível e comparti-

lhável, enredos, imagens e temas recorren-

tes na ficção e na poesia.

É muito bom quando alguém – principalmen-

te se for um jovem – descobre que, além de

regras, informações e lições, um livro pode

abordar os temas da vida humana concreta.

terá, creio, uma boa chance de tornar-se um

leitor e, mais, cheio de entusiasmo diante

do que leu, indicará o texto a seus amigos,

contribuindo assim para a formação de ou-

tros leitores.

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xI. LITERATURA E PLURALIDADE CULTURAL1

Marisa Borba2

“A literatura é a escola da complexidade humana, do entendimento da vida”.

(edgar morin)

no território brasileiro convivem diferentes

grupos sociais, com características étnicas e

culturais distintas, permeadas por grandes

desigualdades socioeconômicas. vivemos

num país que se apresenta cheio de contra-

dições, no qual ainda encontramos relações

sociais discriminatórias, aliadas a práticas

excludentes, gerando injustiça social e vio-

lência. País que também se apresenta com

grande riqueza cultural. País complexo,

país plural, necessitando de pluralidade de

alternativas. Para solidificar esta sociedade

brasileira plural, será preciso ampliar o plu-

ral que potencialmente está em cada indi-

víduo. a escola pública terá neste momen-

to uma função muito importante, primeiro

porque é o espaço em que podem conviver

crianças e jovens de origens e níveis socio-

econômicos diferentes, com costumes e vi-

sões de mundo diferentes; é também o es-

paço público para a vivência democrática

com a diferença e, finalmente, porque é a

escola a instituição criada para apresentar

às crianças e aos jovens os conhecimentos

acumulados e sistematizados da história do

país e da humanidade (democratizando as-

sim o acesso ao saber produzido pela classe

dominante). neste sentido o ethos (a identi-

dade de um povo, grupo ou comunidade, a

marca de suas manifestações e realizações

culturais) precisa ser discutido amplamente

pelos educadores, para que se aproximem e

se apropriem de um conhecimento que se

torna cada dia mais universal.

se queremos construir uma sociedade mais

justa e democrática, na qual todos tenham

acesso à educação, à cultura, ao esporte, ao

emprego, à moradia, ao saneamento básico,

à saúde; se queremos uma sociedade em que

haja efetivamente participação democrática

(inclusive nas discussões sobre elaboração

de políticas públicas e nas decisões sobre o

uso das verbas públicas), em que haja quali-

1 literatura e temas transversais – 2000 / Pgm 2.

2 marisa borba é pedagoga, com experiência em alfabetização, bibliotecas escolares da rede pública e particular do município do rio de Janeiro. membro do Proler e júri da FnlIJ.

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dade social na prestação dos serviços; se que-

remos a plenitude da cidadania para todos,

teremos, como pressuposto básico que dis-

cutir a diversidade cultural, reconhecê-la e

valorizá-la. Precisamos também buscar a su-

peração das discriminações, atuando concre-

tamente sobre os mecanismos de exclusão.

ressaltamos a importância da lei de Diretri-

zes e bases da educação, desdobrada nos Pa-

râmetros curriculares nacionais, que vem

trazer o tema pluralidade cultural para ser

pensado e vivido por professores e alunos,

uma vez que, historicamente, temos tido

dificuldade em lidar com a temática do pre-

conceito e da discriminação étnica.

O PRECOnCEitO nO livRO

DiDátiCO

Pesquisas acadêmicas há muito denunciam

livros didáticos com conteúdos indevidos,

até mesmo errados, favorecendo assim a

disseminação de preconceitos de diversas

formas como, por exemplo, o privilégio da

cultura da classe dominante, única aceita

como correta, bem como a hierarquização

das culturas entre si.

livros didáticos nos mostram o homem e

a mulher de forma estereotipada, sem ne-

nhuma relativização; predominam deter-

minados modelos de homem e mulher, en-

quadrando-os em comportamentos rígidos,

não considerando nenhum tipo de variável

no desempenho de seus papéis sexuais. os

livros didáticos apresentam homens e mu-

lheres segregados em mundos diferentes.

mulher é modelo do lar e homem represen-

ta trabalho e sustento, levando à discrimi-

nação filhos de homens e mulheres que não

se enquadrem nestes modelos. muitos livros

não refletem nossa realidade, uma vez que

não atentam para nossa pluralidade cultu-

ral, nem levam em conta as novas situações

de desempenho de papéis sexuais, criados

pela transformação social. se não refletem

nossa realidade, muito menos a questio-

nam. apresentam a realidade como algo

pronto, acabado, inquestionável e sem pos-

sibilidade de interferência humana. assim a

escola contribui para a reificação do status

quo, o que não deve ser o seu papel.

estudiosos e críticos da ilustração de livros

didáticos ou de literatura infantil e juvenil

também há algum tempo têm apontado

para esta questão: preconceitos também são

passados sutilmente através de imagens que

são mostradas a crianças e jovens. exemplo

clássico é a ilustração da mulher de avental

e lenço na cabeça, enquanto o homem apa-

rece sentado numa cadeira lendo o jornal

(ilustração recorrente em livros didáticos

quando se quer representar uma família de

médio poder aquisitivo).

embora saibamos que a educação sozinha

não irá resolver o problema da discrimina-

ção em suas manifestações mais perver-

sas, se queremos uma sociedade mais justa

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devemos atuar para promover processos,

conhecimentos e atitudes que colaborem

com a transformação social. Por exemplo,

podemos promover práticas de respeito e

solidariedade para com os portadores de

necessidades especiais, através de esclareci-

mentos, uma vez que muitas situações dis-

criminatórias ocorrem por desconhecimen-

to das causas ou das formas como é possível

encaminhar pedagogicamente tais casos.

nas questões de gênero, deparamo-nos com

histórias de injustiças para com as mulheres

em seus cotidianos na vida privada, em situ-

ações familiares ou situações profissionais.

estas injustiças de gênero podem e frequen-

temente são agravadas quando acrescidas

de injustiça por motivo de etnia, cultura ou

exclusão socioeconômica . vale lembrar que

a maior parte do magistério é constituída

por mulheres (de quem se espera que repro-

duzam o discurso masculino do poder). con-

flitos, contradições, preconceitos, discrimi-

nações que hoje percebemos no universo

escolar são resultados do lento e doloroso

processo de libertação da mulher, principal-

mente no nosso século.

e na medida em que os alunos, na maioria

das vezes, pertencem a grupos sociais eco-

nomicamente desfavorecidos, estes confli-

tos estarão sempre presentes e são de gê-

nero, etnia e classe (preconceitos oriundos

de nossa formação histórica). Para que a

escola promova um processo transforma-

dor em relação à pluralidade cultural, será

preciso que o agente deste processo - o(a)

professor(a) - também se liberte, através de

autoconhecimento e do desenvolvimento de

sua consciência profissional e crítica. o(a)

professor(a) deve saber porque está ali, por-

que ensinar e o que ensinar, uma vez que só

um sujeito crítico e consciente politicamen-

te tem condições de modificar o real.

no nosso modelo de sociedade, os precon-

ceitos e estereótipos foram desenvolvidos

em função de antagonismos do tipo ho-

mem/mulher, negro/branco, senhor/escra-

vo, e minoria dominante/maioria explorada

e, ainda, reforçados pelas agências socializa-

doras como a família e a escola, que refor-

çam e reproduzem nas gerações mais jovens

a visão de mundo que justificou e garantiu

a continuidade no poder do grupo dominan-

te, através da educação diferenciada. mas o

ideal de democracia que permeia nosso sis-

tema, independente da condição de classe,

gênero ou etnia fez com que se instalassem

contradições. a partir daí recorremos a refle-

xões teóricas, ao pensamento acadêmico, à

investigação sistemática para explicar estas

mesmas contradições, respondendo sempre

que possível ao desafio proposto, como for-

ma de resolução do conflito.

A ESCOlA E A PluRAliDADE

CultuRAl

a história da sociedade brasileira é marcada

pela diversidade cultural: encontramos dife-

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rentes características regionais, diferentes

manifestações de cosmologias que ordenam

de maneiras diferenciadas a apreensão do

mundo, formas diferentes de organização

social nos diferentes grupos e regiões, mul-

tiplicidade de relações com a natureza, de

vivência do sagrado e de sua relação com o

profano. o espaço rural e o espaço urbano

propiciam às suas populações vivências e

respostas culturais muito diferenciadas que

implicam ritmos de vida, ensinamentos de

valores e formas de solidariedade distintas.

a migração interna faz com que grupos so-

ciais com diferenças de fala, de costumes,

de valores, de projetos de vida se inter-re-

lacionem, principalmente na escola em que

esta diversidade cultural está presente e tem

sido ignorada, silenciada ou minimizada.

assim, quando pomos em discussão a plura-

lidade cultural, podemos também acoplar o

tema da educação diferenciada, começando

por reconhecer a existência de padrões de

socialização baseados em estereótipos sexu-

ais que determinam, a priori, o lugar da me-

nina e do menino na escola, e por extensão,

mais tarde, na sociedade. estes estereótipos

são tão bem urdidos, que são absorvidos, na

maioria dos casos, como algo “natural” e

“normal” através da escola.

a escola pública, já citada como espaço

privilegiado da vivência democrática e de

desenvolvimento do potencial criador de

seus alunos, contribuirá para a discussão e

vivência da pluralidade cultural, na medida

em que, entre outras estratégias e metodo-

logias, consegue democratizar o acesso ao

livro de literatura de qualidade, formando

professores e alunos leitores críticos.

a literatura, enquanto arte da palavra, nos

põe diante da complexidade da vida, nos

apresenta possibilidades de repensarmos o

real, o cotidiano, de reinventarmos a própria

vida ou até mesmo entender sua multiplici-

dade.

QuE livROS OFERECER à

CRiAnÇA E AO jOvEM?

Precisamos ter alguns cuidados ao sele-

cionarmos os livros que vamos oferecer às

crianças e jovens, pois não existe obra cultu-

ral inocente; todas estão carregadas de uma

determinada visão de mundo, a do autor.

Para não ficarmos enredados na concepção

de mundo dos outros e por ela não sermos

manipulados, precisamos desenvolver uma

leitura crítica.

escolhendo bons livros e oferecendo ao mes-

mo tempo uma grande variedade e diversi-

dade deles faremos com que um texto dis-

corde do outro, o conteste e sugira outras

alternativas. É importante a leitura de livros

variados, de culturas e opiniões diversas,

com visões de mundo diferentes umas das

outras, de modo que a leitura de um texto

dialogue permanentemente com a dos ou-

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tros. assim, cada leitor irá se enriquecendo

e a sociedade irá tecendo sua pluralidade. se

concordamos com estes pressupostos e que-

remos montar ou revigorar uma biblioteca,

teremos como subsídios para este acervo:

livros de imagens; clássicos da literatura in-

fanto-juvenil - grimm , andersen, Perrault,

entre outros; a obra de monteiro lobato,

além de poesias, livros informativos, dicio-

nários, enciclopédias e, principalmente, au-

tores que façam parte da moderna literatura

infantil e juvenil, assim como jornais e re-

vistas. a variedade de autores e materiais de

leitura fará da biblioteca um lugar destinado

à leitura de textos literários e um pólo de

discussão da pluralidade cultural, através de

atividades como debates de textos e livros

lidos, entrevistas, conversas com autores e

outros profissionais.

ressaltamos, assim, autores da moderna

literatura infantil e juvenil que trabalham

com a desconstrução de modelos clássi-

cos, tradicionais, ou que fazem denúncias

de algum tipo de opressão, que promovem

rupturas com o discurso dominante, de for-

ma radical ou não. Dentro desta perspecti-

va podemos citar A fada que tinha ideias, de

Fernanda lopes de almeida, em que aparece

uma proposta de reforma de estrutura fa-

miliar. A curiosidade premiada, também de

Fernanda lopes de almeida, apresenta uma

personagem feminina curiosa, questionado-

ra, que tenta obter respostas para todas as

suas perguntas. Maria-vai-com-as-outras, de

sylvia orthof, mostra a ovelha maria que só

ia aonde as outras iam e que sofria as con-

sequências de não pensar por si mesma, de

ter criticidade, de refletir e tirar conclusões.

Era uma vez duas avós, de naumim aizem e

Patrícia gwinner, apresenta diferenças en-

tre duas avós, com modos distintos de en-

carar a vida e como se pode tirar proveito

da convivência com pessoas que pensam e

agem diferente de nós (temos aí uma das fa-

cetas da riqueza da complexidade humana).

Mudanças no galinheiro mudam as coisas por

inteiro, de sylvia orthof, relata a história de

uma galinha que resolveu cantar de galo e,

dessa forma, promove grandes mudanças

em seu núcleo familiar. Faca sem ponta, ga-

linha sem pé, de ruth rocha: nessa obra a

autora conta a história de dois irmãos (um

menino e uma menina), que recebiam uma

educação diferenciada, o que leva a sérios

atritos entre eles. em O Soldado que não era,

Joel rufino dos santos nos traz a saga de ma-

ria Quitéria, de forma muito rica e interes-

sante, proporcionando uma boa discussão

sobre preconceitos. neste sentido, vários

textos de ana maria machado e lygia bojun-

ga são revolucionários. em Angélica e A Bolsa

Amarela, lygia coloca a menina no interior

do grupo familiar, questionando, refletindo,

buscando reverter situações incômodas. an-

gélica nega a mentira sobre a qual se apoia

a celebridade da família das cegonhas. ra-

quel, dona da bolsa amarela, sente o peso

de ser criança e menina e suas vontades de

ser menino, adulto e escritora crescem den-

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tro da bolsa amarela. maria, personagem

de A Corda Bamba, apresenta uma autêntica

emancipação. em Tchau! encontramos a co-

ragem enorme da mãe que larga a família

para viver uma grande e maravilhosa paixão

e para realizar seus desejos. a filha ques-

tiona a desagregação da família, e se sente

dividida entre o pai e a mãe. lygia faz uma

ruptura com o modelo de mulher adulta de

comportamentos tradicionais e também faz

uma crítica à filha que não entende a reação

da mãe. lygia consegue assim, com esta plu-

ralidade de pontos de vista, dialogar com as

múltiplas linguagens sociais.

ana maria machado, em muitas de suas

obras, nos presenteia com protagonistas que

assumem atitudes de rebeldia ante a passivi-

dade reinante, que buscam mudanças e al-

cançam seus objetivos, juntando-se a outros,

agindo com solidariedade e cooperação, so-

bressaindo o espírito coletivo em detrimento

do individualismo. sua recente obra intitula-

da mas que festa! nos mostra um pouco de

nossa diversidade cultural, assim como o já

“clássico” Menina bonita do laço de fita.

no conto “a moça tecelã”, de marina cola-

santi, do livro Doze reis e a moça do labirinto

do vento, há o questionamento do mito de

que o casamento resolve o problema da so-

lidão da mulher e a submissão aos padrões

comportamentais estabelecidos pela socie-

dade. ao tecer o tapete, a moça constrói e

reconstrói a sua vida...

ruth rocha, em Procurando firme apresenta

situações que também podem ser discutidas

sobre a questão da educação diferenciada

homem/mulher.

alguns autores tratam com muita sensibili-

dade e visão crítica os excluídos pela socie-

dade. Paula saldanha, em O Praça Quinze,

mostra a realidade de meninos que vivem

nas ruas, mesclando realidade e fantasia.

roseana murray apresenta os direitos da

criança e do adolescente num texto bastan-

te poético.

Entrevidas, também de Paula saldanha, Coi-

sas de Menino, de eliane ganen, Rosarito ro-

sa-choque, Zé Beleza e Nus, como no Pontal,

de terezinha Éboli, nos mostram um brasil

geralmente ocultado pela escrita literária

mais tradicional.

trazendo nossa pesquisa para um período

mais recente (década de 90) encontramos

diversos títulos por meio dos quais os pro-

fessores podem abordar a questão da plura-

lidade cultural. são exemplos:

Uma história só para mim, de moacyr scliar;

Mulher que bicho é esse, de lia Zatz; Meus

vários quinze anos, de sylvia orthof; Felicida-

de não tem cor, de Júlio emílio brás; Preto e

branco, de milton camargo; Nó na gargan-

ta, de mirna Pisky; Uma vitória diferente, de

marcos bagno; O povo Pataxó e suas histórias,

de angthichay Pataxó e outros; Meu livro de

folclore, de ricardo azevedo.

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estes e muitos outros títulos de literatura

para crianças e jovens abordam questões de

gênero, falam sobre as diferentes etnias, dis-

cutem questões sociais, falam de preconcei-

tos, enfim, apresentam a múltiplas expres-

sões culturais do povo brasileiro.

AlguMAS COnSiDERAÇõES

a pluralidade cultural presente em nossa

moderna literatura infantil e juvenil poderá

chegar ao nosso aluno através do texto lite-

rário de qualidade, do texto que leve a for-

mulações de perguntas e a indagações, que

não apresente estereótipos como ponto de

partida, que não fira a ética e a estética. esta

literatura não será ponto de chegada e sim

ponto de partida para outras leituras, outras

indagações, e também outras descobertas

de situações cada vez mais inesperadas. esta

literatura deverá fazer pensar, questionar,

decifrar e interrogar e, depois de nos exigir

algum esforço, nos fará sair dela diferentes,

transformados de alguma forma. e para nos

transformar, deverá nos atrair, viver dentro

de nós.

gianni rodari, no belíssimo a gramática da

Fantasia, assinala:

“Todos os usos da palavra a todos, pa-

rece um bom lema, sonoramente demo-

crático. Não exatamente porque todos

sejam artistas, mas porque ninguém é

escravo.” O que vem corroborar nossa

tese da necessidade da leitura de bons

livros, pois esta é a leitura que nos dá

argumentos para que não nos intimide-

mos, uma vez que a palavra é um instru-

mento de libertação.

assim, acreditamos que através da leitura

dos livros de literatura de autores brasilei-

ros, como este citados, atingiremos um

desenvolvimento mais pleno e plural dos

indivíduos, com mais consciência da im-

portância de sua participação nas decisões

coletivas, contemplando assim os diferentes

grupos sociais, étnicos e culturais

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xII. NOvAS BASES PARA O ENSINO DA HISTóRIA

DA áFRICA NO BRASIL1

Carlos Moore2

intRODuÇÃO3

a obrigatoriedade4 do ensino da história da

África nas redes de ensino no brasil con-

fronta o universo docente brasileiro com o

desafio de disseminar, para o conjunto da

sua população, num curto espaço de tempo,

uma gama de conhecimentos multidiscipli-

nares sobre o mundo africano.

a generalização do ensino da história da

África apresenta problemas específicos. nes-

te texto assinalamos, de maneira sumária e

a título indicativo, alguns dentre os quais

deverão ser levados em conta na formação

inicial e continuada das/os professoras/es

das redes de ensino, incumbidos/as dessa

missão.

(...)

1. SingulARiDADES AFRiCAnAS

no contexto da história geral da humanida-

de, a África apresenta, em planos diversos,

um conjunto impressionante de singularida-

des que remetem a interpretações conflitu-

osas e, muitas vezes, contraditórias. É pro-

vável que nenhuma das regiões habitadas

do planeta apresente uma problemática de

abordagem histórica tão complexa quanto a

África, e isto se deve a muitos fatores, den-

tre os quais podemos destacar:

• a sua extensão territorial (30.343.551 km2,

o que corresponde a 22% da superfície só-

lida da terra), que vai desde a região do

Pólo sul até o mediterrâneo e do oceano

atlântico ao oceano Índico, apresentando

uma grande variedade climática5;

1 sinopse retirada ao artigo publicado no livro educação anti-racista - caminhos abertos pela lei Federal nº 10.639/03. mec/secaD, valores afro-brasileiros na educação – 2005 / Pgm 1.

2 etnólogo e historiador. Doutor em etnologia e doutor em ciências Humanas pela universidade de Paris-vII (França). especialista em relações raciais (África, américa latina, caribe, Pacífico).

3 nota da edição do boletim do salto para o Futuro: a partir da sinopse do artigo citado, fizemos uma edição do texto focalizando alguns pontos essenciais para o debate. o texto pode ser conhecido na íntegra em educação anti-racista: caminhos abertos pela lei Federal n. 10. 639/03. secretaria de educação continuada, alfabetização e Diversidade. brasília, ministério da educação, 2005. (coleção educação para todos)

4 a lei nº 10.639, de 09 de janeiro de 2003, altera a lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, das Diretrizes e bases da educação nacional, estabelecendo a obrigatoriedade do ensino de História e cultura afro-brasileira e africana. o Parecer

5 no interior do continente as distâncias são imensas – os 7.000 quilômetros que separam o cabo da boa esperança, ao sul, do cairo, ao norte, são aproximadamente a mesma distância entre Dacar, a oeste, e a extremidade do chifre da África, a leste.

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• uma topografia extremamente variada:

grandes savanas, vastas regiões desérti-

cas ou semidesérticas (sahel), altiplanos,

planícies, regiões montanhosas e imensas

florestas;

• a existência e interação de mais de 2.000

povos com diferentes modos de organiza-

ção socioeconômica e de expressão tecno-

lógica;

• a mais longa ocupação humana de que

se tem conhecimento (2 a 3 milhões de

anos até o presente) e, consequentemen-

te, uma maior complexidade dos fluxos e

refluxos migratórios populacionais.

1.1. Berço da humanidade

a mais marcante das singularidades africa-

nas é o fato de seus povos autóctones terem

sido os progenitores de todas as populações

humanas do planeta, o que faz do continente

africano o berço único da espécie humana.

os dados científicos que corroboram tanto

as análises do Dna mitocondrial6 quanto

os achados paleoantropológicos apontam

constantemente nesse sentido.

o continente africano, palco exclusivo dos

processos interligados de hominização e

de sapienização, é o único lugar do mundo

onde se encontram, em perfeita sequência

geológica, e acompanhados pelas indústrias

líticas ou metalúrgicas correspondentes,

todos os indícios da evolução da nossa es-

pécie a partir dos primeiros ancestrais ho-

minídeos. a humanidade, antiga e moderna,

desenvolveu-se primeiro na África e logo,

progressivamente e por levas sucessivas, foi

povoando o planeta inteiro7.

Portanto, as atuais diferenças morfofenotí-

picas entre populações humanas – as cha-

madas “raças” – são um fenômeno recente

na história da humanidade (presumivelmen-

te do final do paleolítico superior, 25.000-

10.000). e a ciência já descartou como an-

ticientífica a ideia de que o morfofenótipo

possa incidir de algum modo nos processos

intelectuais de socialização ou de aquisição/

aprimoramento de conhecimentos8.

esta tradição, eurocêntrica e hegemônica,

costuma alinhar o fato histórico com a apa-

rição, recente, da expressão escrita, criando

6 Dna mitocondrial humano é um pequeno Dna circular presente nas mitocôndrias (as usinas energéticas da célula) no citoplasma. este Dna tem uma série de características genéticas peculiares, destacando-se o fato de ter herança puramente materna. em outras palavras, todo o Dna mitocondrial de um indivíduo vem de sua mãe apenas, sem nenhuma contribuição paterna.

7 grupos de humanos anatomicamente modernos deixaram o continente africano pela primeira vez há aproximadamente 100.000 anos. essa população humana ancestral, que tinha apenas dois mil indivíduos, migrou progressivamente para os outros continentes, atingindo a Ásia e a austrália há 40 mil anos, a europa há 30-35 mil anos, e, finalmente chegando ao continente americano há pelo menos 18 mil anos.

8 convém esclarecer um ponto: o fato de que a noção de “raça” não traduz uma realidade biológica não quer dizer que “raça” não exista como construção histórica. neste caso, ela corresponde não a uma realidade genotípica (biológica), mas sim a um fato sócio-histórico baseado numa realidade morfofenotípica concreta à qual se deu uma interpretação ideológica e política. a ficção é a de se pretender que “raça” seja unicamente um fato que deve ser enquadrado na biologia. Infelizmente, raça não é uma ficção. ela é uma realidade sociológica e política bem ancorada na história e que regula as interações entre os povos desde a antiguidade. Desde há séculos, os povos africanos e afrodescendentes têm de se defrontar no cotidiano com essa concretude da raça.

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os infelizes conceitos de povos “com histó-

ria” e de povos “sem história” que, eventu-

almente, o etnólogo lucien levY-bruHl iria

transformar em “povos lógicos” e “povos

pré-lógicos”9. mas a história propriamente

dita é a interação consciente entre a huma-

nidade e a natureza, por uma parte, e dos

seres humanos entre si, por outra. Por con-

seguinte, a aparição da humanidade como

espécie diferenciada no reino animal, abre

o período histórico. o termo “pré-história”,

tão abusivamente utilizado pelos especialis-

tas das disciplinas humanas, é uma dessas

criações que doravante deverá ser utilizada

com maior circunspeção.

1.2. Berço das primeiras

civilizações mundiais

uma das singularidades da África decorre do

fato de esse continente ter sido o precursor

mundial das sociedades agrossedentárias e

dos primeiros estados burocráticos, particu-

larmente ao longo do rio nilo (egito, Kerma

e Kush). ao longo dos séculos, as riquezas

destes estados, assim como as riquezas do

império de axum, na parte oriental do con-

tinente, e do império de cartago, situado

na porção setentrional, aguçaram a cobiça

de inúmeros povos vizinhos, desde o me-

diterrâneo europeu (gregos e romanos) e o

oriente médio semita (hicsos, assírios, per-

sas, turcos, árabes), até o sudeste asiático

(indonésios).

1.3. Alvo da escravidão racial

e dos tráficos negreiros

transoceânicos

a singularidade do continente africano, que

teve a maior repercussão negativa sobre o

seu destino, determinando o que é a África

de hoje, foi a de ter sido o primeiro e único

lugar do planeta onde seres humanos foram

submetidos às experiências sistemáticas de

escravidão racial e de tráfico humano tran-

soceânico em grande escala. o chamado

“continente negro” – como é designado o

continente africano, ainda que nenhum his-

toriador tenha se referido à europa como

continente “branco” ou à Ásia como o conti-

nente “amarelo” – foi transformado, durante

um período de um milênio, num verdadeiro

terreno de caça humana e de carnificina. o

impacto negativo cumulativo dessa reali-

dade sobre o desenvolvimento econômico,

tecnológico, político, demográfico, cultural

e psicológico dos povos africanos está ain-

da por ser determinado. mas as complexas

interconexões existentes entre as singulari-

dades apresentadas e a visão depreciativa

que permeia tudo o que se refere à herança

histórica e cultural dos povos africanos já

começam a aparecer.

9 ver: levY-bruHl, lucien, la mentalité primitive. Paris: Presses universitaires de France, 1947.

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1.4. Alvo dos mitos raciológicos

Às singularidades próprias do continente se

agrega outra, de construção totalmente ex-

terna: uma mitologia preconceituosa erigida

por seus sucessivos conquistadores (hicsos,

assírios, gregos, romanos, persas, turcos,

árabes, indonésios e europeus), que sobrevi-

ve atualmente na maioria das obras eruditas

produzidas pelos africanistas de todos os con-

tinentes, e pelos historiadores em particular.

o ensino da história da África apresenta,

pois, problemas específicos de interpretação

com os quais o pesquisador nunca se defron-

tará ao percorrer a história dos outros povos

do planeta; povos cuja inteligência, dinamis-

mo, capacidade de empreender, aprender e

de adaptar-se às condições e meios diversos

jamais foram questionadas.

no caso da África, chegou-se a afirmar que

a civilização do egito faraônico tivesse sido

“trazida de fora” por misteriosos povos

“de pele branca”, supostamente vindos do

oriente médio. numídia e cartago sofreram

desde então a mesma sorte, e a África foi

ideologicamente dividida entre uma “África

negra” e uma “África branca”, para marcar

a coincidência entre o conceito de raça e o

conceito de civilização.

os povos africanos ao sul do saara foram

apresentados, durante longo tempo, como

gente “sem história”, “sem escrita”, “sem es-

tados”, e “sem moeda”, ou seja, sociedades

desprovidas de coerência orgânica. sabe-se

que na ótica materialista, hegemônica e line-

ar do ocidente e do oriente médio, a expres-

são “escrita”, a organização em “estados” e

a utilização de “moeda” são sinônimos de

inteligência, superioridade e civilização.

a racialização de tudo tocante à África é

uma prática tão universalmente insidiosa,

que os próprios historiados nem a perce-

bem mais como um elemento de violenta

desumanização do ser humano africano.

ainda hoje, a visão raciológica continua a

afetar boa parte das obras consagradas ao

continente africano, tanto na europa e nos

estados unidos, como também no oriente

médio e na américa latina onde, de modo

geral, os incipientes estudos africanistas

são meras prolongações dos conceitos e

preconceitos urdidos pela academia euro-

peia e norte-americana.

(...)

2. PARA uMA nOvA

PERiODiZAÇÃO AFRiCAnA

(AntigA E MODERnA)

a periodização é um padrão conceitual que

facilita a apreensão de uma longínqua trama

histórica ou pré-histórica, tornando-a inteli-

gível para nós. se descartarmos definitiva-

mente o conceito de “pré-história” no que

diz respeito à África posterior há 2,5 milhões

de anos, o ciclo histórico de qualquer perio-

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dização se iniciaria nesse continente com a

aparição da primeira humanidade arcaica

como espécie diferenciada dentro da famí-

lia dos hominídeos. no estado atual de nos-

sos conhecimentos, esse evento aconteceu

efetivamente pelo menos há 2,5 milhões de

anos. somente uma periodização de longa

duração poderia refletir esses fatos históri-

cos, que a ciência moderna legitima, e refle-

tir aquelas singularidades que são próprias à

historiografia africana.

Por conseguinte, há várias formas de abor-

dagem para potencializar a inteligibilidade

desses grandes períodos de uma história de

tal extensão. aquela que propomos consiste

num padrão de periodização que levaria em

conta tanto a produção das ideias filosófi-

cas, religiosas e morais, como a produção

do conhecimento científico e tecnológico

pelas distintas sociedades:

• o processo de hominização;

• o povoamento do continente africano

pela humanidade arcaica;

• os êxodos do continente e o subsequente

povoamento do planeta;

• os processos de migração intra-africana,

sedentarização e assentamento agrícola;

• o processo da construção dos primeiros

estados agroburocráticos da história;

• as lutas e rivalidades políticas entre povos

e nações africanas, os expansionismos in-

tra-africanos desde a antiguidade nubio-

-egípcia até a contemporaneidade;

• as invasões do exterior;

• a conquista e colonização árabe da África

setentrional;

• os tráficos negreiros intracontinentais e

transoceânicos;

• rocessos de desintegração de espaços só-

cio-históricos constituídos;

• a conquista e colonização europeia de

todo o continente africano;

• as lutas de libertação e a descolonização

da África;

• as lutas da pós-independência.

essa abordagem apresenta a vantagem de

um enfoque panorâmico que, sem desnatu-

rar ou desfigurar a experiência histórica dos

povos africanos, coloca-os numa posição de

maior inteligibilidade para o estudo por par-

te daqueles que inclusive não possuem, de

início, uma grande familiaridade com essas

questões.

2.1. O marco referencial antigo

antiguidade Pré-histórica (7.000.000 –

2.500.000 anos) - o processo de hominização e

a aparição de várias espécies de Hominídeos.

antiguidade remota I (2.500.000 – 1.000.000

de anos) - surgimento, sucessivamente, de

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dois troncos prototípicos da família huma-

na arcaica (Homo Habilis, Homo erectus) e

primeiras migrações fora da África (oriente

médio, Ásia).

antiguidade remota II (1.000.000 – 200.000

anos) - surgimento da família humana proto-

moderna (Homo sapiens neandertalensis) e

migrações para o oriente médio e a europa.

antiguidade remota III (200.000 – 10.000

anos) - surgimento da família humana

anatomicamente moderna (Homo Sapiens

Sapiens); povoamento definitivo do plane-

ta por levas sucessivas a partir da África;

aparição de novos “troncos fenotípicos” na

eurásia (protoeuropoides e proto-sino-nipô-

nico-mongóis); migrações dos povos leuco-

dermes europoides; migrações dos povos

leucodermes sino-nipônico-mongóis.

2.2. O marco referencial

formador

o neolítico se apresenta como o momento

em que os ancestrais imediatos das famílias

linguísticas correspondentes aos povos e so-

ciedades que conhecemos atualmente che-

garam ao habitat que ocupam hoje. embora

ainda não tenhamos um desenho geral con-

creto sobre esse período, com a abrangência

e a meticulosidade que se requer, sabe-se

que “os ecossistemas atuais do continente

africano se constituíram entre 12.000 e 3.000

anos a.c., dando ao continente essa confi-

guração ambiental que explica o desenvol-

vimento das práticas agrícolas” (m’boKolo,

2003, p. 51). Por isso, privilegiamos o neolí-

tico como o ponto de referência para deter-

minar aquelas configurações histórico-de-

mográfico-culturais que designamos como

“espaços civilizatórios”.

atentos ao fenômeno de longa continuidade

na ocupação do solo e das complexas dinâ-

micas migratórias intracontinentais, pare-

ce-nos apropriado utilizar o período que vai

desde o início do neolítico (10.000 a.c.)10 até

meados do século XIX, como o grande marco

histórico referencial para uma periodização

suficientemente flexível. atendendo a essas

considerações, a historiografia africana dos

últimos dez milênios pode conceber-se no

interior de cinco grandes períodos, respec-

tivamente denominados como “clássico”,

“neoclássico”, “ressurgente”, “colonial” e

“contemporâneo”.

antiguidade Próxima (10.000 a.c. – 5.000

a.c.) - aparição das primeiras sociedades se-

dentárias agrícolas nos diferentes espaços

civilizatórios.

antiguidade clássica (5.000 a.c.- 200 d.c.) -

aparição, apogeu e declínio das primeiras

10 convencionalmente, o período entre 10.000 e 4.000 a.c. está dividido em mesolítico (de 10.000 a 8.000 a.c.) e neolítico (de 8.000 à 4.000 a.c.). Privilegiamos a unificação destes, para constituir um só período abrangente: neolítico (de 10.000 à 4.000 a.c.).

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civilizações agroburocráticas clássicas: egi-

to, Kerma, Kush, cartago, axum (primeiras

potências africanas), atendendo:

• à organização social; à extensão imperial;

às rivalidades políticas interafricanas; às

invasões pelos povos europeus-mediterrâ-

neos (“povos do mar”); às invasões pelos

povos semitas (hicsos); à rivalidade com

o mundo semita emergente (hititas, as-

sírios, persas); e às confrontações com o

mundo greco-romano.

antiguidade neoclássica (200 d.c. - 1.500

d.c.) - aparição, apogeu e declínio dos es-

tados agroburocráticos neoclássicos nos

diferentes espaços civilizatórios (ghana, Ka-

nem-bornu, mali, mwenemotapa, songoi...).

o império árabe e os tráficos escravistas

pelo saara, pelo oceano Índico e pelo mar

vermelho (séculos vIII-XvI).

2.3. O marco referencial moderno

Período ressurgente (1500 – 1870) - aparição,

apogeu e declínio dos estados agroburocrá-

ticos ressurgentes nos diferentes espaços

civilizatórios (Kongo, oyo, Walo, tekrur, ma-

cina, segu, Kayor, Diolof, KwaZulu, buganda,

bunyoro...).

a dominação imperial europeia e o tráfico

escravista transoceânico pelo atlântico (sé-

culos Xv-XIX).

Período colonial (1870 – 1960) - a destruição

pela europa dos estados agroburocráticos

ressurgentes e a colonização do continente

africano.

o processo de subdesenvolvimento do con-

tinente africano pela europa e o surgimento

da supremacia planetária do mundo ociden-

tal.

as lutas dos povos africanos pela descoloni-

zação do continente e o surgimento da ideo-

logia panafricanista11 na África e nas diáspo-

ras africanas12.

Período contemporâneo (a partir de 1960) -

do sonho libertacionista ao pesadelo neoco-

lonialista.

as independências políticas africanas: a de-

capitação política da África e a implantação

do neocolonialismo ocidental.

a África em crise I: as elites vassalas.

a África em crise II: os conflitos entre na-

ções.

11 Pan-africanismo: ideologia política elaborada no século XIX, logo após a abolição da escravatura, por pensadores afrodescendentes nas américas, dos quais os mais proeminentes são, edward Wilmot blyden, sylvester Williams, W. e. b. Dubois, marcus garvey, caseley Hayford, george Padmore, c. l. r. James. centra-se na ação política e econômica sustentada, em prol da descolonização do continente africano e ao estabelecimento de nações soberanas.

12 Diáspora africana: conjunto de comunidades de afrodescendentes em diferentes continentes.

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o futuro da África: globalização neoliberal,

ou invenção de uma via alternativa africana?

3. COMO CAtAlOgAR AS

EStRutuRAS SOCiAiS AFRiCAnAS

3.1. As formações sociais, ou

modos de produção

Diversas e complexas estruturas socioeco-

nômicas, chamadas de “modos de produ-

ção” ou “formações sociais”, marcaram a

vida social dos diferentes povos africanos

através dos tempos. Por diversas razões, as

quais nem todas nos são conhecidas, essas

sociedades se encontram hoje em diferentes

situações de adaptação socioeconômica e

tecnológica.

um momento único de desenvolvimento

humano, em que mais de 2.000 povos esti-

vessem no mesmo patamar socioeconômico

e tecnológico nunca existiu na África, como

não se deu também nas outras regiões do

mundo. Portanto, a maneira mais racional

e dinâmica de se abordar o problema pare-

ce-nos ser a de considerar cada povo e as

instituições por ele produzidas ao longo do

tempo no contexto da sua própria inscrição

histórica.

o primeiro pressuposto a descartar é, sem

dúvida, uma ótica unilinear e universal,

como a que surgiu do dogmatismo marxista,

a partir dos desacertos da própria metodolo-

gia de Karl marx13. nem dentro nem fora da

África houve um modo de desenvolvimento

histórico universalmente linear. a história

da humanidade, felizmente, é bem mais

complexa do que isso, como o demonstrou

o cientista senegalês cheikh anta Diop14.

3.2. As categoriais servis

apesar da enorme produção analítica so-

bre a escravidão no mundo inteiro15, não se

chegou até hoje a uma teoria geral sobre a

escravidão que seja suficientemente abran-

gente e flexível para permitir o desmembra-

mento tipológico desse sistema particular

de trabalho opressor atendendo às especifi-

cidades de épocas e de sociedades.

13 ver: baecHler, Jean, les origines du capitalisme. Paris: gallimard, 1971.

14 DIoP, cheikh anta, l’unité culturelle de l’afrique noire. Paris: Présence africaine, 1959.

15 com relação à escravidão em geral, ver: verlInDen, charles, l’esclavage dans l’europe médiévale. bruges: De tempel, 1955. ver também: DavIs, David brion, o Problema da escravidão na cultura ocidental. rio de Janeiro: civilização brasileira, 2001; FInleY, moses I., escravidão antiga e Ideologia moderna. rio de Janeiro: graal editora, 1991; baKIr, abd el-mohsen, slavery in Pharaonic egypt. cairo, 1952; cHanana, Dev raj, slavery in ancient Índia: as Depicted in Pali and sanskrit texts. new Delhi, 1960; menDelsoHn, Isaac, slavery in the ancient near east: a comparative study of slavery in babylonia, assyria, and Palestine, from the middle of the third millennium to the end of the First millennium. new York: oxford university Press, 1949; Westermann, William l., the slave. systems of greek and roman antiquity. Philadelphia: american Philosophical society, 1974. sobre a Ásia, ver: WIlbur, c. martin, slavery in china during the Former han Dynasty, 206b.c.-a.D. 25. chicago: Field museum of natural History, 1943; Watson, James (org.), asian and african systems of slavery, new York: oxford Press, 1980.

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296

a África, no seu percurso de estruturação

de diferentes formas de relações sociais, co-

nheceu diversos modelos de relações de tra-

balho e de produção baseados no trabalho

servil escravo16. a questão que continua sen-

do o problema é: de que tipo de escravatura

se trata? como conceber uma tipologização

de formas especificamente africanas de tra-

balho servil à base de escravos?

a escravatura existente na África, princi-

palmente no período pré-islâmico e pré-

-colonial, continua a desafiar as tentativas

de tipologização, sendo motivo das mais

divergentes e contraditórias análises17. todo

o assunto gira em torno da questão: houve

escravatura sem sistema escravista que en-

globasse a totalidade da sociedade na Áfri-

ca? com base nas pesquisas cada vez mais

precisas que estão sendo realizadas pelos

especialistas africanos, começa a emergir

uma visão que remete a uma complexidade

maior do que se pensava.

as formas de regime de trabalho escravo na

África foram tão variadas quanto complexas

envolvendo, na sua maioria, o trabalho es-

cravo serviçal, sem se chegar nunca a uma

situação de escravidão econômica generali-

zada e, muito menos, de escravidão-racial

como aquela que predominou nas planta-

tion do oriente médio e, mais tarde, das

américas. não parece haver surgido em par-

te alguma do continente, em qualquer épo-

ca que se considere, um modo de produção

dominante – sobre o qual tivesse repousado

o conjunto da sociedade, como foi o caso na

europa greco-romana, no oriente médio, e

nas américas – baseado no trabalho escravo.

4. A QuEStÃO DiDátiCA

4.1. As fontes de ensino

É possível antecipar que a implantação do

ensino da história da África no brasil apre-

sentará problemas que também tiveram que

ser enfrentados e resolvidos no continente

africano. considerando a visão negativa so-

bre a África que predominou na sociedade

brasileira durante tanto tempo, o primeiro

desses problemas e, talvez, o de maior sig-

nificado, tem a ver com o pesado legado de

fontes bibliográficas eruditas “poluídas”.

trata-se aqui do problema de “retroalimen-

tação”, ou seja, da reintrodução no ensino

contemporâneo de teorias desacreditadas

pelos estudos científicos. ora legitimadas

por novos argumentos, ora envoltas nestas

latitudes numa nova roupagem acadêmica,

não é inconcebível que a maioria das obras

sobre a África estejam sutilmente imbuídas

16 sobre a escravatura africana, ver o excelente trabalho: meIllassouX, claude, antropologia da escravidão: o ventre de ferro e dinheiro. rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1995

17 ver: meIllassouX, claude, l´esclavage en afrique précoloniale. Paris: maspéro, 1975; barrY, boubakar, le royaume du Wallo, Paris: Karthala, 1985; le senegal avant la conquête. Paris: Karthala, 1985; e cIssoKo, sekene mody, tombouctou et l´Émpire songhay. Dakar: nouvelles editions africaines (nea), 1975.

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297

de tenazes e profundos preconceitos contra

os povos e as civilizações africanas.

4.2. A avaliação das fontes de

ensino

Há em toda a américa latina uma carência

de material didático sobre a África, em lín-

guas portuguesa e espanhola. esta questão

não será resolvida tão cedo, considerando

que a tradução e publicação das obras estão

submetidas a considerações de mercado e

da política das grandes editoras. corre-se o

grande risco de que se privilegiem para a tra-

dução em língua portuguesa, precisamente,

obras preconceituosas ou desatualizadas,

situação com a qual haverá que coexistir du-

rante um longo tempo.

4.3. Obras dos cientistas africanos

até os anos sessenta do século XX, a pro-

dução sobre a história da África esteve in-

questionavelmente monopolizada por afri-

canistas europeus, americanos e árabes,

majoritariamente imbuídos de uma visão

fundamentalmente essencialista e raciológi-

ca. essa tendência tem diminuído em parte,

mas não desaparecido, com o crescimen-

to exponencial de especialistas e cientistas

africanos dedicados ao estudo do passado

de seu próprio continente. trata-se de espe-

cialistas que conhecem a África a partir de

dentro, através das mentalidades, cosmo-

gonias, línguas e estruturas que moldaram

aquelas sociedades ao longo da mais exten-

sa história do planeta.

COnCluSÃO

(...)

o avanço constante do conhecimento cien-

tífico sobre a África, em especial nos cam-

pos da paleontologia e da antropobiologia,

não cessam de confirmar que esse conti-

nente foi o lugar privilegiado onde surgiu a

consciência humana e onde se elaboraram

as experimentações que conduziram à vida

em sociedade. contudo, a lentidão da as-

similação/integração desses dados revolu-

cionários, pelo meio acadêmico, continua

sendo um problema, razão pela qual a reatu-

alização dos conhecimentos deverá consti-

tuir peça importante do processo didático. À

primeira vista, uma das formas eficientes de

alcançar esses objetivos seria a organização

de oficinas de formação para agentes multi-

plicadores selecionados, preferencialmente,

entre os docentes das disciplinas humanas,

e não somente na disciplina histórica.

a sensibilidade do docente determinará, em

muitos casos, a predisposição à aceitação, ou

à rejeição, das teses raciológicas e das mani-

pulações legitimadoras que, inevitavelmente,

vestirão a roupagem “acadêmica”. o docente

incumbido do ensino da matéria africana de-

verá cultivar sua sensibilidade em relação aos

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povos e culturas oriundos deste continente.

num país como o brasil, onde as tradições

e culturas africanas nutrem de maneira tão

vigorosa a personalidade do povo brasileiro,

a empatia para com a África apareceria como

algo natural, mas ela não é, apesar de todos

os brasileiros serem herdeiros das tradições e

cosmovisões desse continente.

OS nOvOS DESAFiOS

a/o professor/a incumbido/a da missão do

ensino da matéria africana se verá obrigado/a

durante longo tempo a demolir os estereó-

tipos e preconceitos que povoam as aborda-

gens sobre essa matéria18. estamos diante de

novas tentativas de banalização dos efeitos

do racismo e das agressões imperialistas por

parte de verdadeiros soldados ideológicos

da visão e das estruturas hegemônicas que

tomaram conta do planeta.

os estudos sobre a historia da África, espe-

cificamente no brasil, deverão ser conduzi-

dos na conjunção de três fatores essenciais:

uma alta sensibilidade empática para com

a experiência histórica dos povos africanos;

uma constante preocupação pela atualiza-

ção e renovação do conhecimento baseado

nas novas descobertas científicas; e uma in-

terdisciplinaridade capaz de entrecruzar os

dados mais variados dos diferentes horizon-

tes do conhecimento atual para se chegar a

conclusões que sejam rigorosamente com-

patíveis com a verdade.

esses três pré-requisitos estão vinculados

ao problema mais geral que se radica na ne-

cessidade de chegar-se a um maior grau de

compreensão das diferenças e da alteridade,

como fatores estruturantes da convivência

humana. o conhecimento do outro, de sua

identidade étnica, cultural, sexual ou racial,

do seu percurso humano, de sua verdadeira

inscrição histórica, possibilita a convivência

confortável, se não feliz, com as diferenças

fundamentais.

a/o professor/a incumbida/o da missão do

ensino da historia dos povos e das civiliza-

ções da África – que, como já vimos não é

uma história qualquer – dificilmente poderá

permanecer insensível a todas essas consi-

derações. Pensamos que, pelo contrário, a

sua eficácia pedagógica terá uma maior re-

percussão e abrangência na medida em que

a sua sensibilidade empática para a matéria

e para o seu entorno social seja elevado.

18 ver, a esse respeito: obenga, theophile, le sens de la lutte contre l´africanisme eurocentriste. Paris: l´Harmattan e Khepera, 2001; temu, a., sWaI, b., Historians and africanist History: a critique. Post-colonial Historiography examined. londres: Zed Press, 1981.

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299

BiBliOgRAFiA19

DavIs, David brion. O Problema da Escravidão

na Cultura Ocidental. rio de Janeiro: civiliza-

ção brasileira, 2001.

FInleY, moses I. Escravidão Antiga e Ideolo-

gia Moderna. rio de Janeiro: graal editora,

1991.

Hubbe, m.o.r, atuI, J.P.v, aZeveDo, e.t.&

neves, W.a. A Primeira Descoberta da Amé-

rica. Evolução Humana. sociedade brasilei-

ra de genética. ribeirão Preto: atheneu,

2003.

KI-Zerbo, Joseph. Historie de l’Áfrique Noire.

Paris: Hatier, 1978.

loveJoY, Paul e. A escravidão na África. Uma

historia de suas transformações. rio de Janei-

ro: civilização brasileira, 2002.

m’ boKolo, elikia. África Negra. História e

civilizações, tomo I (até o século XvIII). lis-

boa: vulgata, 2003.20

meIllassouX, claude. Antropologia da es-

cravidão: o ventre de ferro e dinheiro. rio de

Janeiro: Jorge Zahar, 1995.

Bibliografia mínima norteadora

de obras básicas sobre a áfrica

barrY, boubakar. Le royaume du Wallo. le

senegal avant la conquête. Paris: Karthala,

1985.

cIssoKo, sekene mody. Histoire de l´Afrique

occidentale. moyen age et temps modernes

(vIIè siècle-1850). Paris: Présence africaine,

1966.

______. Tombouctou et l´Émpire Songhay.

Dakar: nouvelles editions africaines (nea),

1975.

DIagne, Pathé. Pouvoir politique en Afrique

occidentale. Paris: Présence africaine, 1967;

Histoire générale de l´afrique noire, vol. 2.

Paris: unesco, 1978.

DIoP, cheikh anta. L’Uni té Culturelle de

l’Afrique Noire. Paris: Présence africaine,

1959, 1982.

______. Nations nègres et Culture. Paris: Pré-

sence africaine, 1954, 1964, 1979.

______. L´Afrique Noire pré-coloniale. Paris:

Présence africaine, 1960, 1987.

19 nota da edição do boletim: o autor relaciona uma extensa bibliografia, da qual selecionamos as obras editadas em Português. Para conhecer a bibliografia completa, consultar a obra citada (ver nota de rodapé n. 3).

20 o volume 1 foi publicado em português: m’boKolo, elikia, África negra. História e civilizações, tomo I até o século XvIII. lisboa: editora vulgata, 2003.

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300

______. Civilisation ou Barbárie. Paris: Présen-

ce africaine, 1981, 1988.

KI-Zerbo, Joseph. História Geral da África ne-

gra, volumes I e II (3a. ed.). Portugal: Publi-

cações europa-américa, 2002.

m’boKolo, elikia. Afrique noire histoire et ci-

vilisations, jusqu’au XVIII ème siècle, tomos I

et II. Paris: Hatier-aupelf, 1995(20).

obenga, theophile. L´Afrique dans

l´Antiquiré. Égypte ancienne-afrique noire.

Paris: Présence africaine, 1973.

______. Afrique centrale précoloniale. Docu-

ments d’histoire vivante. Paris: Présence

africaine, 1974.

______. La Cuvette Congolaise. Les hommes et

les structures. contribuition à l’histoire tra-

ditionnelle de l’afrique centrale. Paris: Pré-

sence africaine, 1976.

______. Les Bantu, Langues-Peuples-Civilisa-

tions. Paris: Présence africaine, 1985.

______. La Philosophie africaine de la période

pharaonique – 2780-330 avant notre ère. Pa-

ris: l´Harmattan, 1990.

______. Origine comune de l´égyptien ancien,

du copte et des langues negro-africaines

modernes. Introduction à la linguistique

historique africaine. Paris: l´Harmattan,

1993.

______. Cheikh Anta Diop, Volney et le Sphinx.

contribuition de cheikh anta Diop à

l’Historiographie mondiale. Paris: Présence

africaine e Khepera, 1996.

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301

xIII. ENFRENTANDO OS DESAFIOS: A HISTóRIA DA áFRICA E DOS AFRICANOS NO BRASIL NA NOSSA SALA DE AULA1

Mônica Lima

no dia 9 de janeiro de 2003 foi aprovada a

lei n. 10.639, que tornou obrigatório o ensi-

no sobre História e cultura afro-brasileira,

bem como de História da África e dos afri-

canos em todos os estabelecimentos de en-

sino, públicos e privados, no brasil. nestes

conteúdos estariam incluídos, ainda segun-

do o texto da lei, a luta dos negros no nosso

país, a cultura negra brasileira e a contribui-

ção dos negros na formação da sociedade

nacional - como subtemas que passariam a

ser necessários nos estudos de História do

brasil. o conselho nacional de educação já

emitiu parecer detalhado, de autoria da Pro-

fessora Petronilha beatriz gonçalves e silva,

regulamentando a alteração da lei de Dire-

trizes e bases da educação nacional3.

esta lei tem uma história. grupos ligados

ao movimento negro e representantes da

comunidade acadêmica, desde há muito,

reivindicam esta inclusão. Para falar apenas

da história mais recente, houve um período,

na década de 90, em que os estudantes de

História organizavam, no ano intermediário

aos seus encontros nacionais4, um encon-

tro nacional de História da África. em par-

tes diferentes do brasil, distantes em geral

dos grandes centros5, nunca menos de qui-

nhentos estudantes passavam uma semana

às voltas com cursos, mesas-redondas e ati-

vidades ligadas ao tema. Paralelamente, a

anPuH (associação nacional de Professores

universitários de História) não poucas vezes

se pronunciou favorável à inserção de disci-

plinas de História da África nos cursos uni-

versitários de História. e outras entidades e

grupos, bem como intelectuais e ativistas do

movimento docente, apresentaram a mes-

ma reivindicação.

1 repertório afro-brasileiro – 2004 / Pgm 1. as ideias deste texto encontram-se desenvolvidas mais extensamente nos artigos da autora citados na bibliografia.

2 Professora de História do colégio de aplicação da uFrJ (ensino Fundamental e médio) , de História da África nos cursos de Pós-graduação do Penesb/uFF e na universidade cândido mendes(ucam) , doutoranda em História na universidade Federal Fluminense(uFF).

3 Parecer cne/cP 003/2004.

4 os eneH - encontros nacionais de estudantes de História, que se faziam a cada dois anos.

5 o III encontro nacional de História da África, por exemplo, foi na cidade de aquidauana - mato grosso do sul.

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ou seja: não se pode em nenhum momen-

to dizer que esta lei foi uma criação de um

governo sem um movimento prévio que a

apoiasse e a pusesse na pauta da educação

brasileira. ela resulta de um processo no

qual diferentesagentes sociais atuaram para

que se tornasse realidade, e por acreditarem

na importância da medida. claro que a lei

não basta. nenhuma medida legal é sufi-

ciente, se não nos debruçarmos sobre ela

para refletir e se não nos engajarmos na sua

execução. e neste caso, em especial, estes

dois movimentos se fazem necessários.

se quisermos olhar com um certo distan-

ciamento, podemos perguntar-nos: por que

a necessidade de uma lei para fazer valer a

presença de um conteúdo tão evidentemen-

te fundamental na História geral e em es-

pecial na História de grupos humanos que

participaram diretamente da formação do

nosso país?

a raiz deste ocultamento estava no precon-

ceito e na ignorância sobre a vida social e a

história destes grupos humanos e, sobretu-

do, na necessidade de domínio sobre eles,

com objetivos de escravizá-los ou colonizá-

-los. esta raiz, portanto, se situava na própria

história das relações com os povos africanos

por parte daqueles grupos dominantes das

sociedades nas quais nossos primeiros his-

toriadores se espelharam para construírem

os saberes oficiais sobre o brasil.

a negação desta história esteve sempre as-

sociada nitidamente a formas de controle

social e dominação ideológica, além do inte-

resse na construção de uma identidade bra-

sileira despida de seu conteúdo racial, den-

tro do chamado desejo de branqueamento

de nossa sociedade. característico da segun-

da metade do século XIX, este desejo ainda

vigora dentro de alguns setores sociais mais

retrógrados, embora a luta por mudanças

no campo do ensino da História tenha cria-

do embates ao longo do século XX.

Podemos observar que até hoje existem nos

currículos dos cursos de História das univer-

sidades brasileiras poucas disciplinas especí-

ficas sobre África, assim como praticamente

se ignora o tema nos estudos de História

geral do ensino Fundamental e médio. ao

tornar obrigatória sua inclusão na educação

básica, estaremos frente a uma imensa di-

ficuldade: que História será esta a ser apre-

sentada, se a maioria dos professores em

sala não teve contato com ela?

Isto não tira a importância da medida. É cer-

to, muitos fomos e somos aqueles que recla-

maram espaços para estes temas. mas fren-

te a este espaço oferecido, temos que definir

objetivos, discutir as abordagens - ou seja,

aonde chegar, e como chegar? responder

a estas perguntas nos coloca frente a ques-

tões muito profundas. ora, se resgatar esta

memória é elaborar nova matéria-prima da

nossa identidade como povo, estamos em

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face de um desafio: quem somos? e ainda:

quem desejamos ser?

não há receitas prontas, não existe um

‘como fazer’, e por isso a necessidade de

muitos espaços de discussão e troca inte-

lectual - e não apenas entre os reconheci-

dos como “intelectuais” mas com os movi-

mentos sociais. não podemos, a despeito da

exigência da lei, sair repassando nas nossas

salas de aula informações equivocadas, ou

tratar o tema de uma maneira folclorizadae

idealizada. este é um grande temor: repetir

modelos para fazer com que estes conteúdos

curriculares fiquem parecidos com os que já

trabalhávamos ao tratarmos da História e

das contribuições culturais comumente es-

tudadas é um caminho fácil e perigosíssimo.

são temas diferentes e sua abordagem ne-

cessariamente deve ser diferenciada.

nossos alunos certamente terão muito a

dizer, mas devemos ter um imenso cuidado

com o senso comum, que pode surgir tan-

to para desvalorizar como para criar mitos

- os quais, ao se desfazerem, redobrarão o

peso da desilusão e do desgaste da autoesti-

ma. trata-se de um equilíbrio delicado entre

o resgate de uma História que deverá servir

para elevar o orgulho de pertencer a ela e a

valorização de posturas estreitas que tendem

a criar esquemas explicativos maniqueístas.

em primeiro lugar é fundamental formar-

-se, atualizar-se nos temas, e não partir do

pouco que se sabe para ocupar um lugar que

nunca esteve ocupado. temos a responsabi-

lidade de tratar com muito profissionalismo

estes conteúdos. Por isto, devemos estu-

dar, procurar leituras específicas e, sempre

que possível, capacitar-nos em cursos e em

discussões acadêmicas. nossas precárias

condições de trabalho e de vida não podem

justificar uma ausência de esforço neste

sentido. estamos falando da re-escritura de

uma História que nos foi negada, estamos

lidando com a base de uma identidade que

está para ser reconstruída. o que está em

jogo é mais do que nossa competência - é o

nosso compromisso.

É essencial cobrar das autoridades, em espe-

cial dos gestores de instituições de ensino, o

apoio para fazer da iniciativa da lei uma re-

alidade. Foi estabelecida a obrigatoriedade,

mas ela não basta, para que o obrigatório

se torne viável e produtivo tem que haver

investimento na formação. estudantes uni-

versitários: militem pela inclusão destes as-

suntos nas disciplinas dos currículos de suas

faculdades, institutos, departamentos. Isto

é possível, e já vem sendo feito. Professores:

solicitem da rede de ensino a realização de

cursos - isto é possível, e também já é reali-

dade em alguns lugares6. busquem e criem

6 a rede pública de ensino do estado do rio de Janeiro, na gestão benedita da silva em 2002, promoveu curso de especialização em História da África para professores de História em campos e no rio de Janeiro, organizado pelo centro de estudos afro-asiáticos da universidade candido mendes, instituição com tradição neste ramo.

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espaços (seminários, mesas-redondas, deba-

tes, simpósios) e cursos onde se estimule o

aprofundamento no estudo destes temas e

as reflexões sobre práticas pedagógicas ade-

quadas7. Pode não ser fácil, mas é um bom

caminho.

temos também que aprender a ouvir e a in-

teragir com setores dos movimentos sociais

organizados, que vêm criando, com esforço

próprio, materiais pedagógicos e de divulga-

ção sobre temas da História dos africanos

no brasil e da História da África. com estes

grupos também devemos buscar discutir e

refletir sobre as concepções e conceitos des-

te campo do conhecimento. não devemos

nos acreditar os únicos donos deste saber.

Para os professores de educação básica,

apresentamos aqui algumas sugestões de

caráter geral. nas séries iniciais do ensino

Fundamental, pode-se introduzir temas da

cultura africana e afro-brasileira através de

lendas, contos, cantigas, brincadeiras. Já

existe produção (livros, sobretudo) para se

tomar como referência. nas aulas de Inte-

gração social, falar da presença dos africa-

nos na História do brasil para além da rea-

ção à escravidão: levá-los a ver marcas desta

presença viva, nas músicas, nas festas, no

vocabulário, nos hábitos alimentares. os

africanos, além de mão-de-obra, eram pes-

soas que produziam cultura - mas não bas-

ta dizer, isto tem que ser algo vivido para

começar a abalar as velhas estruturas dos

preconceitos, as quais se alimentam da ig-

norância.

no segundo segmento do ensino Fundamen-

tal, já podemos trabalhar com conteúdos

mais precisos, falar da Pré-História - ques-

tionando o termo, pois não é a escrita que

cria a história - como o tempo do processo

de hominização, que se deu na África, an-

tes que em outros lugares do planeta. expli-

car os porquês, falar dos primeiros homo

sapiens africanos que saíram a povoar o

mundo... não deixar de comentar todo o es-

plendor e a pompa do antigo egito - tema

que fascina nesta idade - lembrando sempre

que este fica na África, algo que parece tão

óbvio, mas que acaba sendo esquecido. cer-

tamente, o egito era também lugar de desi-

gualdades - quem disse que os africanos não

as viveram em sua terra? Procurar lembrar

os grandes reinos do sudão ocidental, que

durante a Idade média ergueram cidades,

com universidades, mercados de livros, con-

tatos com o oriente e europa - e encanta-

ram tantos viajantes e despertaram a cobiça

de outros povos com suas minas de ouro8.

e, certamente, ao estudar o tráfico de escra-

7 como os cursos de extensão e especialização oferecidos pelo Programa de estudos sobre o negro na sociedade brasileira / Penesb da Faculdade de educação da universidade Federal Fluminense.

8 no dizer de um importante historiador francês, Pierre vilar, falar em ouro na europa medieval era falar da África ( em seu livro oro y moneda en la História, 1450-1920. barcelona, 1974. p.61)

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305

vos, não se limitar a falar do intercâmbio

de pessoas por riquezas, mas também das

riquezas transportadas por estas pessoas

dentro de si, no maior processo de migração

forçada da História da humanidade, que le-

vou a uma verdadeira diáspora africana pelo

novo mundo.

no ensino médio, ao retomar alguns conte-

údos, debater as grandes visões, situar o sur-

gimento do racismo como projeto científico

e político - utilizando estratégias que per-

mitam aos alunos construir e desestruturar

ideias através de pesquisas, júris simulados,

dramatizações. e sempre assinalar a fratu-

ra exposta da desigualdade racial brasileira.

nunca é demais repetir: nossa pobreza tem

cor, nossa exclusão tem cor. estes dados,

porém, não devem ser naturalizados. assim

como foram fruto de uma História, fazer

uma outra História pode mudar o quadro.

outro ponto fundamental de caráter geral

no ensino de História da África e dos africa-

nos para estudantes brasileiros é pensar for-

mas de ampliar sua dimensão, dando des-

taque aos aspectos da afro-americanidade

e introduzindo elementos que aproximam

e diferenciam esta parte da nossa história

da história dos afrodescendentes em todo o

continente. sabemos que temos uma histó-

ria comum não apenas entre África e brasil,

como entre os africanos e seus descenden-

tes nascidos no novo mundo.

sabemos que nossa memória constrói nos-

sas percepções sobre nós mesmos e sobre

os outros - voltando a dizer: constrói nossa

identidade. cabe a nós multiplicar iniciati-

vas como esta e fazer com que haja desdo-

bramentos concretos, e que se estimule a

pesquisa, a formação, a produção sobre es-

tes temas. trata-se de resgatar a História da

África e, de uma certa maneira, africanizar a

História do brasil.

SugEStõES BiBliOgRáFiCAS

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xIv. SONS DE TAmBORES NA NOSSA mEmóRIA – O ENSI-NO DE HISTóRIA AFRICANA E AFRO-BRASILEIRA1

Mônica Lima2

“À volta da fogueira,

os mais velhos disseram

vão então caçar nuvens

que já fogem de nossos olhos.

Nós pedimos um guia

armas, munições

e farnel para a longa jornada.

Mas eles sorriram

terão de levar apenas

estes sons de tambores

na memória.”

(caçadores de nuvens , do poeta angolano João melo)

1 espaços educativos e ensino de história – 2006 / Pgm 4.

2 Professora de História do caP- uFrJ, de História da África nos cursos de Pós-graduação do Programa de estudos sobre o negro na sociedade brasileira da universidade Federal Fluminense (Penesb/uFF) e do centro de estudos afro-asiáticos da universidade cândido mendes(ucam/rJ). Doutoranda em História na universidade Federal Fluminense(uFF).

a aprovação da lei n. 10.639 de 9 de janeiro

de 2003, que tornou obrigatório o ensino de

História da África e da História dos africanos

nas escolas de todo o país, além de atender

a uma antiga e justa reivindicação, trouxe

uma série de consequências para o ensino

desta área/disciplina em sua totalidade e

para a formação dos profissionais que atu-

am no magistério, em especial aqueles des-

ta área específica – a História. as mudanças

ocasionadas pela citada lei ainda estão em

processo. e não influenciarão apenas os edu-

cadores. elas podem trazer resultados para o

amplo grupo que pretendem atingir. crian-

ças e adolescentes, jovens e adultos entra-

rão em contato com o tema. o alcance das

transformações pode ser grande – e muito

positivo. e elas poderão ser aceleradas ou

adquirirem um ritmo mais lento, conforme

a capacidade de setores interessados intervi-

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rem no processo. o impacto da medida me-

recerá certamente estudos aprofundados,

preferencialmente tendo como base dados

vindos de diferentes partes do país, com

suas diversas experiências.

o ensino-aprendizagem destes conteúdos

abre muitas perspectivas para o trabalho

com espaços educativos não-formais. mu-

seus, centros culturais, sítios históricos

(tombados ou não) são lugares de memória

e objetos de estudo e de sensibilização para

a aprendizagem por excelência. os exem-

plos são os mais diversos, se pensarmos em

termos de brasil: igrejas, casas de cultura,

terreiros, espaços públicos de reunião e fes-

tejos também são locais para se aprender e

ensinar a história afro-brasileira.

e, se pensarmos no nosso patrimônio ima-

terial, este universo se amplia ainda mais:

histórias, contos populares, contos infantis

de matriz africana e/ou afro-brasileira, can-

tigas, canções de festas religiosas populares

(assim como a congada, por exemplo) po-

dem tornar-se um mote e o próprio objeto

de estudo, trazendo viva a africanidade da

cultura brasileira. além destes de caráter

mais geral, estão presentes, em diversas de

nossas comunidades, os mais velhos que po-

dem relembrar e trazer para nossos alunos

muito deste patrimônio em momentos de

congraçamento e aprendizagem.

só para lembrar: não importa nossa origem

familiar: todos nós, brasileiros, carregamos

‘áfricas’ dentro de nós. essas ‘áfricas’ (no

plural, pois são múltiplas) são e foram per-

manentemente reinventadas aqui no brasil,

mas revelam sua profunda origem a cada

momento: no vocabulário (moleque, qui-

tanda, cafuné, cocada, entre tantas palavras

– vale uma pesquisa!), nos costumes, na ex-

pressão de fé, na comida.

todos estes aspectos convergem para a

abertura de muitas possibilidades de traba-

lhar com o ensino de História em espaços

não-formais e em situações não-formais.

estes lugares e momentos certamente enri-

quecerão nossos estudos e a aprendizagem

que com eles se viabiliza.

estaremos lidando com uma matéria-prima

fascinante e delicada: os diversos matizes

da nossa formação cultural, a memória dos

nossos ancestrais e, especialmente, suas he-

ranças, tão longamente invisibilizadas. todo

o cuidado será sempre pouco para não res-

valarmos pelas trilhas aparentemente fáceis

do maniqueísmo, da simplificação e da fol-

clorização. vamos pensar, então, na preven-

ção destes perigosos males que podem en-

fraquecer nossa percepção e nos distanciar

dos nossos objetivos. alguns destes cuidados

podem parecer óbvios, mas muitas vezes o

aparentemente óbvio merece ser re-visto e

re-visitado, para refletirmos sobre ele.

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vamos lá...

• os africanos e seus descendentes nascidos

da diáspora no novo mundo (as américas,

incluindo o brasil) eram seres humanos,

dotados de personalidade, desejos, ímpe-

tos, valores. eram também seres contra-

ditórios, dentro da sua humanidade. ti-

nham seus interesses, seu olhar sobre si

mesmos e sobre os outros. tinham suas

experiências de vida – vinham muitas ve-

zes de sociedades não-igualitárias nem

equânimes na África ou nasciam aqui

em plena escravidão. não há como uni-

formizar atitudes, condutas e posturas e

idealizarmos um negro sempre ao lado da

justiça e da solidariedade. o que podemos

e devemos ressaltar são os exemplos des-

tes valores de humanidade, presentes em

muitos, e injustamente negados e torna-

dos invisíveis pela sociedade dominante,

durante tanto tempo. mas sugerimos, ve-

ementemente, evitar dividir o mundo em

‘brancos maus’ e ‘negros bons’, o que não

ajuda a percebermos o caráter complexo

dos grupos humanos. a ideia é valorizar o

positivo, mas sem idealizar.

• o nosso desconhecimento sobre a história

e a cultura dos africanos e dos seus des-

cendentes no brasil e nas américas pode

fazer muitas vezes com que optemos por

utilizar esquemas simplificados de expli-

cação para um fenômeno tão multiface-

tado quanto a construção do racismo en-

tre nós. o racismo é um fenômeno que

influiu e influi nas mentalidades, num

modo de agir e de ver o mundo. e as di-

ferentes sociedades interagiram com ele

de diversas maneiras – o brasil não tem

a mesma história de relações raciais que

os estados unidos, para usar um exem-

plo clássico. no entanto, durante muito

tempo se defendeu a ideia de que aqui

não havia discriminação e, ainda, que o

que separava as pessoas era ‘apenas’ sua

condição social. Hoje, não só vemos pelos

dados da demografia da pobreza brasilei-

ra que ela tem uma inequívoca marca de

cor, como sabemos que um olhar mais

atento à História e à vida dos afrodescen-

dentes no país revela a nossa convivência

permanente com o preconceito e seus

efeitos perversos. mas, para podermos

enxergar isso, tivemos que ouvir relatos,

ver dados e entender como foi esta Histó-

ria. só assim pudemos desnaturalizar as

desigualdades e ver a face hostil do nosso

‘racismo envergonhado’. o que isto quer

dizer? Que devemos nos dedicar ao tema:

estudar, ler, nos informar, sempre e mais.

afinal, o que está em jogo é bem mais

que a nossa competência profissional, é

o nosso compromisso com um país mais

justo e com um mundo melhor para todos

e todas.

• nós nos acostumamos a ver as manifesta-

ções culturais de origem africana confina-

das ao reduto do chamado ‘folclore’. este

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conceito de folclore, que remete às tradi-

ções e práticas culturais populares, não

tem em si nenhum aspecto que o desqua-

lifique, mas o olhar que foi estabelecido

sobre o que chamamos de ‘manifestações

folclóricas’, sim. e, sobretudo no mundo

contemporâneo, em que a modernida-

de está repleta de significados positivos,

o folclore e o popular se identificam não

poucas vezes com o atraso – algo curioso,

exótico, porém de menos valor. logo, se

não problematizarmos a inserção da cul-

tura africana neste registro, correremos o

risco de não criar a identidade nem esti-

mular o orgulho de a ela pertencermos.

Podemos desmistificar a ideia de folclore

presente no senso comum e, também,

mostrar o quão complexa e sofisticada é

a nossa cultura negra brasileira. envolve

saberes, técnicas e toda uma elaboração

mental para ser construída e se expressar.

e, assim como nós, está em permanente

mudança e não é nada óbvia.

além destes três cuidados básicos de caráter

geral, há outros dados sobre os quais deve-

mos refletir e estar sempre atentos:

• a África é um amplo continente, em que

vivem e viveram desde os princípios da

humanidade (afinal, segundo pesquisas,

foi na região onde atualmente se localiza

o continente africano que a humanidade

surgiu), grupos humanos diferentes, com

línguas, costumes, tradições, crenças e

maneiras de ser próprias, construídas ao

longo de sua História. referir-se a “o afri-

cano” ou “a africana”, como uma ideia

no singular é um equívoco. Podemos até

utilizar estes termos quando tratarmos de

processos históricos vividos por diversos

nativos da África, mas sempre sabendo

que não se trata de um todo homogêneo

e sim de uma ideia genérica que inclui al-

guns indivíduos, em situações muito es-

pecíficas. Por exemplo: podemos dizer “o

tráfico de escravos africanos” – ou seja,

estamos nos referindo à atividade econô-

mica cujas mercadorias eram indivídu-

os nativos da África, conhecido nos seus

anos de declínio como “o infame comér-

cio”. nestes tipos de caso, vale dizer, de

um modo geral, ‘africanos’ ou ‘negros

africanos’. mas, devemos evitar atribuir a

estas pessoas qualidades comuns, como

se fossem tipos característicos.

• um dos preconceitos mais comuns, quan-

to aos africanos e afrodescendentes, é

com relação às suas práticas religiosas e

um suposto caráter maligno contido nes-

tas. este tipo de afirmação não resiste ao

confronto com nenhum dado mais consis-

tente de pesquisa sobre as religiões africa-

nas e sobre a maioria das religiões afro-

-brasileiras. Por exemplo: não há a figura

do diabo nas religiões da África tradicio-

nal nem de nenhum ser ou entidade que

personifique todo o mal. as divindades

africanas e suas derivadas no brasil, em

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geral, se encolerizam se não forem cultu-

adas e consideradas, e podem vingar-se;

mas jamais agem para o mal de forma

independente dos agentes humanos que

a elas demandam. o grande adversário

das “forças do bem” não existe, não há

este poder em nenhum ente do sagrado

africano, a não ser naquelas religiões in-

fluenciadas pelo monoteísmo cristão, ou

pelo monoteísmo islâmico. não é certo

considerar elegbará, elegbá, exu, como

um demônio ou seu representante. exu

é o mensageiro, o embaixador dos pedi-

dos humanos aos orixás, e exige seu pa-

gamento pelo serviço e se aborrece se

não for atendido. mas não tem nenhuma

maldade congênita, como nenhuma ou-

tra divindade do panteão africano.

como vimos, toda a atenção é necessária e

o exercício permanente que fazemos de ou-

vir pessoas e valorizar saberes não nos deve

eximir de estarmos atentos às armadilhas

do senso comum. e no mais, deixemo-nos

encantar pela história africana e afro-brasi-

leira, porque, como bem sabemos, a apren-

dizagem se dá pela rota da sensibilidade, e

nada melhor que a via do afeto para (re)ver

preconceitos. esta é a perspectiva amorosa

de trabalho que valorizamos: que inclui res-

peito à diferença, que convoca e se propõe

à participação, e que atua cooperativa e so-

lidariamente.

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