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O CORPO COMO CONTINGÊNCIA FUNDAMENTAL EM SARTRE Resumo: O presente artigo pretende apresentar, em linhas gerais, alguns resultados da fenomenologia de JeanPaul Sartre (19051980) no que diz respeito à temática da corporeidade. Para tal, fazse mister discorrer sobre o corpo como estrutura da consciência, sobre o corpo tal como é vivido pelo sujeito, o corpo como objeto para a própria consciência e, finalmente, o corpo na relação com o Outro. Palavraschave: Sartre. Fenomenologia. Corpo. The Body As A Fundamental Contingency In Sartre Abstract: This paper presents some results of the phenomenology of JeanPaul Sartre (19051980) with regard to the issue of corporeality. For this, will be required presentation of body as structure of consciousness, as it is lived by the subject, as an object for consciousness itself and, finally, the body in relation with the Other. Keywords: Sartre. Phenomenology. Body. Um dos traços mais distintivos do existencialismo dentro da tradição do pensamento ocidental é aquilo que alguns estudiosos chamarão de “superação do preconceito epistemológico” , isto é, a superação da perspectiva – característica do período moderno – na qual a pessoa 1 humana é pensada, antes de tudo, como sujeito do conhecimento. No existencialismo, em especial na ontologia fenomenológica de JeanPaul Sartre, vemos uma vasta ampliação do espectro da consciência pela via da intencionalidade e pelo estabelecimento de uma dimensão préreflexiva da consciência. É nesta dimensão que se dá a maior parte das vivências, bem como é nela também que se assenta a reflexão como possibilidade. Outrossim, é pela via da consciência préreflexiva que encontramos a noção sartreana de corpo, tanto como estrutura da consciência préreflexiva quanto como elemento indispensável para o liame ontológico entre a condição humana e o mundo de sentido constituído na relação desta com o Ser. 1 Para mais sobre este assunto, ver o Sartre, de Katherine Morris, no qual a autora pensa a filosofia de Sartre como perspectiva terapêutica para dissolver certos preconceitos teóricos.

Corpo Sartre

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  • OCORPOCOMOCONTINGNCIAFUNDAMENTALEMSARTRE

    Resumo: O presente artigo pretende apresentar, em linhas gerais, alguns resultados da fenomenologia de JeanPaul Sartre (19051980) no que diz respeito temtica da corporeidade. Para tal, fazse mister discorrer sobre o corpo como estrutura da conscincia, sobre o corpo tal como vivido pelo sujeito, o corpo como objeto para a prpria conscincia e, finalmente, o corpo narelaocomoOutro.

    Palavraschave:Sartre.Fenomenologia.Corpo.

    TheBodyAsAFundamentalContingencyInSartre

    Abstract: This paper presents some results of the phenomenology of JeanPaul Sartre (19051980) with regard to the issue of corporeality. For this, will be required presentation of body as structure of consciousness, as it is lived by the subject, as an object for consciousness itselfand,finally,thebodyinrelationwiththeOther.Keywords:Sartre.Phenomenology.Body.

    Um dos traos mais distintivos do existencialismo dentro da tradio do pensamento

    ocidental aquilo que alguns estudiosos chamaro de superao do preconceito epistemolgico

    , isto , a superao da perspectiva caracterstica do perodo moderno na qual a pessoa 1

    humana pensada, antes de tudo, como sujeito do conhecimento. No existencialismo, em

    especial na ontologia fenomenolgica de JeanPaul Sartre, vemos uma vasta ampliao do

    espectro da conscincia pela via da intencionalidade e pelo estabelecimento de uma dimenso

    prreflexiva da conscincia. nesta dimenso que se d a maior parte das vivncias, bem como

    nela tambm que se assenta a reflexo como possibilidade. Outrossim, pela via da conscincia

    prreflexiva que encontramos a noo sartreana de corpo, tanto como estrutura da conscincia

    prreflexiva quanto como elemento indispensvel para o liame ontolgico entre a condio

    humanaeomundodesentidoconstitudonarelaodestacomoSer.

    1 Para mais sobre este assunto, ver o Sartre, de Katherine Morris, no qual a autora pensa a filosofia de Sartre como perspectivateraputicaparadissolvercertospreconceitostericos.

  • Tendo em vista estes dois aspectos o corpo como estrutura da conscincia prreflexiva

    e liame ontolgico entre homem e situao pretendemos apresentar, brevemente e sem

    pretensesdeesgotaroassunto,algunspontoscentraisdatemticanopensamentodeSartre.

    Finalmente, pontuaremos alguns aspectos da distino entre o corpo vivido e o corpo

    como objeto para outrem, na medida em que tais breves consideraes se fazem indispensveis

    para que o tema do corpo na ontologia fenomenolgica de Sartre seja tratado de maneira

    minimamenteadequada.

    Ocorpocomoestruturadaconscinciaprreflexiva

    Ao cindir a conscincia em duas dimenses, Sartre pretende estar superando uma certa

    leitura da subjetividade humana que, segundo o pensador, impregna as filosofias do sujeito de

    Descartes a Husserl passando por Kant, a saber, a idia de uma subjetividade substancialmenteou

    formalmente concebida. verdade que a distino entre reflexivo e prreflexivo da qual nos

    serviremos aqui no de autoria do pensador francs, mas de seu mestre Husserl. Contudo, Sartre

    pretende estar sendo mais fiel a Husserl que fora o prprio Husserl em suas intuies tericas: se

    Husserl conseguiu escapar substancializao da conscincia que desde Descartes contaminou o

    pensamento conduzindo a filosofia a aporias insolveis, por outro lado, a necessidade husserliana

    de um Ego Transcendental , para Sartre, um elemento desnecessrio e contraditrio idia de

    uma conscincia pensada como intencionalidade. Para o francs, a prpria intencionalidade j

    suficiente para garantir unidade e singularidade conscincia, e um Ego Transcendental que

    funcione como plo sintetizador de experincias no apenas intil como tambmimpossvel em

    uma conscincia que toda movimento e constituio de um mundo de sentido. Dessa forma, a

    distino entre reflexo e prreflexo ter, na pena de Sartre, a pretenso de dar conta da

    totalidade da experincia humana sem o compromisso com as aporias ontolgicas em que se

    enredouopensamentomoderno.

    Nessa esteira, encontramos a noo sartreana de corpo como uma estrutura da conscincia

    prreflexiva. Na medida em que a conscincia reflexiva se torna responsvel pelos atos

    cognitivos e pela constituio reflexiva de um eu, a dimenso prreflexiva ser o lugar onde se

  • daro todas as demais vivncias. Desde a simples percepo at experincias como sentimentos,

    emoes e desejos sero atividades do campo prreflexivo, ou seja, ainda sero atividades da

    conscincia (diferentemente da perspectiva moderna, onde tais fenmenos exigiam outras

    estruturas alm da conscincia que era sinnimo de sujeito do conhecimento para serem

    pensadas).

    Esta ampla gama de atividades da conscincia, por sua vez, s acontece e existe em

    funo de um j constitudo mundo de sentido, sem o qual a conscincia seria impossvel. Estas

    atividades da conscincia exigem e remetem a uma idia de corpo, ou seja, uma base sem a qual a

    experinciaseriaimpossvel.

    Pensar o corpo como estrutura da conscincia parece sugerir, em um primeiro momento,

    uma atmosfera de idealismo na qual o corpo no seria mais do que experincia de corpo, o que

    noabsolutamenteocaso,porpelomenosduasrazes.

    Em primeiro lugar, supor que o corpo pensado como estrutura da conscincia faria

    naufragar sua realidade em um idealismo gratuito s teria sentido se fosse ignorado o intento de

    Sartre em evitar a tentativa de explicar a aporia da relao entre uma mente insubstancial e um

    corpo material e fsico. Se corpo e mente so duas substncias distintas, se pertencem a reinos

    ontolgicos distintos, tornase virtualmente impossvel reunilos depois e explicar suas relaes.

    O corpo, como estrutura da conscincia, surge concomitantemente com ela. Se a conscincia

    exige a estrutura que o corpo para poder existir, a recproca verdadeira: o corpo, em sua

    materialidade, exige a conscincia para ser destacado do fundo indiferenciado de realidade do

    qualparticipa.

    Em segundo lugar, uma conscincia despida de sua corporeidade no seria espacializada

    e, portanto, no alcanaria jamais a singularidade. pela corporeidade estrutural que a

    conscincia se singulariza e se perspectiva. Uma conscincia sem corpo impensvel porque

    estaria em toda a parte e em lugar nenhum ao mesmo tempo, tornando impossveis as condies

    paraaexperincia.NaspalavrasdeSartre:

    [...] preciso evitar entender que o mundo existe frente conscincia como uma multiplicidade indefinida de relaes recprocas que a conscincia sobrevoaria sem perspectiva e contemplaria sem ponto de vista. [...] No seria sequer concebvel uma conscincia que pudesse sobrevoar o mundo de tal modo que o copo lhe fosse dado ao mesmo tempo a direita e a esquerda da garrafa, frente e atrs dela. No em decorrncia de

  • uma aplicao estrita do princpio de identidade, mas porque esta fuso de direita e esquerda, frente e atrs, motivaria o desvanecimento total dos istos no seio de uma indistinoprimitiva(SARTRE,2008,p.389).

    Entrevemos, investigando estes aspectos da noo sartreana de corpo, a constante

    referncia que sua fenomenologia faz a uma ontologia sem a qual essa fenomenologia no se

    sustentaria: a espacializao da conscincia exige o corpo por razes ontolgicas, pois a tomada

    de perspectiva sobre o Ser, tomada de perspectiva necessariamente corporal, identificase com o

    surgimento da dimenso fenomnica, a partir da qual se torna possvel a multiplicidade dos

    objetos.

    Ocorpocomocontingnciafundamental

    Se a fenomenologia de Sartre tributria daquela que seu mestre Husserl teceu, os

    tributos das suas intuies ontolgicas mais fundamentais parecem melhor referenciadas quando

    relacionadas a filosofia de Heidegger. Pois mesmo sem se desvencilhar de uma filosofia da

    conscincia, no se compreende nada de Sartre sem atentar para o imenso dbito que este tem

    paracomaontologiaheideggerianaeseusconceitodeseraesernomundo.

    Distante das preocupaes primordialmente epistemolgicas de Husserl, Heidegger

    constri uma ontologia na qual a regio privilegiada de acesso realidade humana a vivncia

    comum e cotidiana, e no mais a tematizao conceitual e terica. Desse quadro emerge uma

    noo de realidade humana drasticamente distinta daquela endossada no perodo moderno,

    onde o que caracteriza a condio humana , sobretudo, seu carter de sujeito do conhecimento

    possibilitada, verdade, pela fenomenologia de Husserl, mas devidamente desenvolvida na

    ontologia fundamental de Heidegger. Alm disso, Heidegger prope uma incontornvel

    interdependncia entre a realidade humana e o mundo. Interdependncia relacional, na qual a

    realidade humana no possui qualquer substrato prprio que guarde semelhanas quer com o

    Cogito, quer com o Ego Transcendental. As estruturas ontolgicas reveladas pelo pensamento

    heideggerianoremetemaumarealidadehumanaimpensvelsemomundo.

    Sartre se apropria dessa idia de interdependncia entre homem e mundo sem, porm,

    abandonar a perspectiva da conscincia. Como vimos, o corpo pensado fenomenologicamente

  • uma estrutura da conscincia prreflexiva. Dessa forma, a interdependncia ontolgica entre a

    realidade humana e o mundo faz com que a ontologia do corpo revele uma dimenso na qual o

    corpo ser pensado primeiro como estrutura da realidade humana e s depois como objeto no

    mundo.

    [...] o serparasi todo inteiro corpo e todo inteiro conscincia os chamados fenmenos psquicos no so reunidos em um segundo momento ou perifericamente ao corpo: muito mais, o corpo todo inteiro psquico. No se trata, pois, de entender o corpo como um emsi presente no parasi. Pelo corpo, temos acesso facticidade radical que caracteriza o parasi,facticidadequeresultademinhacontingncia.(BORNHEIM,2000,p.98)

    Tendo em mente que serparasi e seremsi sero as categorias cardeais atravs das quais

    Sartre caracterizar respectivamente conscincias e coisas, vemos que a inteno de Sartre

    enfatizar o aspecto do corpo vivido em detrimento do corpo conhecido. Em verdade, a

    problemtica da intersubjetividade na qual no nos aprofundaremos aqui revelar uma

    dimenso inescapvel na qual o corpo como objeto ser de fundamental importncia, tendo em

    vistaquecomoobjetoqueocorposurgeparaooutro.

    Na perspectiva ontolgica, o corpo estar intricado naquilo que Sartre chamar de

    situao: para que haja realidade humana, algumas condies precisam ser cumpridas. Uma

    delas que a realidade humana sempre seja singular, individual, isto , realidade de uma pessoa

    humana. Essa singularizao exige a dimenso da corporeidade na medida em que todas as

    estruturas da situao, como so elencadas por Sartre (meu lugar, meu passado, meus arredores,

    meu prximo e minha morte) referemse a um sujeito corporificado. Como estrutura mnima, o

    corpo surge como condio sem a qual no pode existir realidade humana e mundo. Como bem

    coloca Gary Cox, a existncia de todas as pessoas corporificadas contingente, mas,

    considerando que uma pessoa existe, absolutamente necessrio que ela esteja corporificada.

    (COX, 2009. p. 79). Ou seja, as propriedades desse corpo (gnero, etnia, etc.) so absolutamente

    contingentes, mas o corpo uma estrutura necessria sem a qual a pessoa no poderia estar

    situadae,portanto,existir.

    Ocorpovivido

  • A nfase sartreana sobre a existncia situada pe em relevo a dimenso do corpo

    vivido, aspecto quase sempre secundrio antes da fenomenologia. Pensado como coisa

    dissolvida no sistema da causalidade fsica da matria, o corpo sempre precisou ser reunido ao

    campo mental atravs de recursos tericos que, segundo o existencialismo sartreano, no

    escapavam a aporias insolveis. Se o corpo estava sujeito as mesmas leis deterministas do mundo

    dascoisas,aquestodaliberdadehumanaestavasempreemxeque.

    Enquanto estrutura da conscincia prreflexiva, o corpo no simplesmente um objeto

    dentro de um sistema determinista. Evidentemente, a possibilidade da tematizao biolgica,

    fsica, anatmica, fisiolgica, etc., est sempre aberta para a conscincia. Contudo, nenhuma

    dessas tematizaes d conta da ontologia do corpo. Para que esta seja possvel, preciso pensar

    a ambgua condio do corpo humano. Se por um lado parece intuitivo que o corpo um

    instrumento utilizado por uma alma, por outro, a reflexo fenomenolgica revela nuances de

    sentidodocorpoquenenhumaoutratematizaotericapoderiaoferecer.

    Um dos traos mais caractersticos do corpo pensado fenomenologicamente o fato de

    que possvel dizer que o sujeito tanto corpo quanto conscincia, pela interdependncia destes

    elementos, relao j brevemente examinada aqui. Outro trao caracterstico e que talvez seja o

    que melhor revele a relao entre corpo e conscincia (sobretudo prreflexiva) o fato de que

    o corpo, como condio da ao, no exige a reflexo para operar no mundo. o que Katherine

    Morrischamadeinvisibilidadedocorpo.Vejamos.

    Em uma perspectiva moderna, o corpo poderia ser pensado como instrumento da alma.

    Sartre no endossa essa perspectiva. Ainda que seja sempre possvel acessar o corpo pela via da

    reflexo e penslo como objeto, a ao humana cotidiana depende de um certo esquecimento

    docorpo.Ou,comodizKatherineMorris:

    [...] grande parte do viver requer que essa conscincia permanea noposicional. [...] Se fssemos posicionalmente conscientes de nossos membros, consideraramos impossveis aes que ordinariamente realizamos de maneira fluente e desinibida. (MORRIS, 2009, p. 128).

    Durante a ao, o sujeito est totalmente imerso em sua corporeidade, identificandose

    com seu corpo. Eventualmente a inaugurao de novas prticas e hbitos pode exigir a entrada

  • em cena da reflexo, mas somente at a apropriao das tcnicas relativas as realizaes dos fins.

    Assim se explica, por exemplo, o fenmeno da incorporao de objetos, fenmeno atravs dos

    quais certos objetos passam a atuar como extenses do corpo prprio: a bengala de um cego, o

    telescpio de um astrnomo, etc., so objetos que, embora permaneam fisicamente exteriores ao

    corpo, passam a fazer parte deste na medida em que a apropriao de sua tcnica de uso promove

    esseesquecimento.

    Ocorpocomoobjeto

    Para bem explicitar essa dimenso do corpo, seria necessrio introduzir uma srie de

    elementos acerca da filosofia sartreana da intersubjetividade. Elementos que, por razes de

    espao, no podero ser tratados de maneira satisfatria aqui. Contudo, nos cabe mencionar que a

    apario mais ntida do corpo como objeto, nas pginas de O Ser e o Nada , sem dvida, na

    relao intersubjetiva. Pois sobretudo para o outro que meu corpo aparece como objeto, bem

    comoocorpodooutroaparececomoobjetoparamim.

    O corpo o elemento que faz a mediao entre mim e o outro na relao intersubjetiva.

    Incapaz de acessar a interioridade de outrem, atravs de seu corpo e, evidentemente, da

    linguagem que se estabelece a relao intersubjetiva. Contudo, essa intersubjetividade

    pensada por Sartre como essencialmente conflituosa: se a dade sujeito/objeto no superada ou

    rejeitada, como seria possvel a intersubjetividade se tudo aquilo que aparece para um sujeito o

    faz sob o signo do objeto? Dessa forma, a intersubjetividade, em sentido estrito, parece

    impossvel.

    A despeito de uma impossibilidade terica de uma comunicao autntica entre sujeitos, a

    realidade mostra relaes entre pessoas, relaes que podem ser descritas fenomenologicamente.

    Nessa medida, o corpo possui um lugar especial na medida em que sobre ele que repousa o

    olhar do outro. Esse olhar, o olhar do outro, uma das experincias mais peculiares da

    condio humana na medida em que, se corretamente compreendida, entrega a chave para a

    corretacompreensodaintersubjetividadeetambmdocarterambguodocorpo.

  • O olhar do outro sempre um momento onde o corpo, imerso em sua prpria

    subjetividade, pode experimentar a si mesmo como objeto. O olhar de outrem tem o poder de me

    objetivar atravs de meu corpo: a lacuna ontolgica que a realidade humana

    momentaneamente preenchida pelo julgamento que o outro, enquanto sujeito, realiza ao me olhar.

    Meu corpo perde momentaneamente a espontaneidade e o esquecimento que caracterizam a ao

    corporificada. Sartre enfatiza o papel da experincia da vergonha como captao privilegiada de

    meu carter de objeto, mas outras experincias da mesma natureza parecem funcionar de maneira

    anlogaaoentregarocarterobjetivoquemeucorpocarrega.

    Por outro lado, o corpo do outro pode ser objetivado tambm pelo meu olhar, segundo a

    mesma lgica acima descrita. E em se tratando do corpo, no apenas o olhar que carrega em si a

    potencialidade de objetivar o corpo do outro. Um dos temas sobre os quais Sartre mais dispensa

    pginas de sua ontologia fenomenolgica o tema do desejo, sobretudo do desejo sexual. Longe

    de compreender o desejo atravs de mecanismos psicofsicos, Sartre pretende que a manifestao

    do desejo sexual no seno o desejo de possuir o ser do outro ou seja, sua liberdade atravs

    da apropriao de seu corpo. Em ltima instncia, Sartre afirma que a carcia o ato segundo o

    qual o corpo do outro ganha sua mais ntida objetividade: sob meu toque, o outro ganha forma e,

    sob o signo da coisa (enquanto corpo e objeto) representa a liberdade da qual me aproprio

    mediante o toque. Essa tentativa de apropriao da liberdade do outro, porm, jaz condenada ao

    malogro como quaisquer outras. O desejo de possuir algum como corpo e como liberdade ao

    mesmo tempo no um desejo ambguo, mas contraditrio: o surgimento do corpo como

    objetodaestruturadaintersubjetividadeenocomprometeminhaliberdade.

    Concluses

    guisa de concluso, mister pontuar que por mais que Sartre afirme o papel central da

    corporeidade enquanto estrutura existencial da condio humana, sua contemporaneidade com

    MerleauPonty (1908 1961) fazem com que, diante do tipo de fenomenologia empreendida por

    este, Sartre possa ser acusado de idealismo. De fato, em suaFenomenologia da Percepo (1945)

    MerleauPonty nos oferece uma filosofia fenomenolgica que enfatiza, talvez como nenhuma

  • outra, a dimenso corprea da condio humana. Embora no divirja to dramaticamente de

    MerleauPonty em sua fenomenologia do corpo, Sartre fala muito menos sobre a questo. Sua

    preocupaofilosficacomadimensodeliberdade,caracterizadapelaconscincia.

    No obstante, j a fenomenologia sartreana nos oferece elementos para tematizar

    filosoficamente a corporeidade e a existncia humana a partir de um mbito mais fundamental

    que aqueles oferecidos pelas descries cientficas. Nessa direo, o sentido e mesmo o valor

    existencial da corporeidade que posta em relevo. Quando nos oferece suas descries do corpo

    tal como vivido pela conscincia, Sartre pretende se referir no um objeto de uma cincia

    positiva e emprica, mas um trao fundamental da experincia da existncia, a saber, a de que

    existimos corporificados, com todas as conseqncias que isso nos implica. Se por um lado sua

    fenomenologia parece pecar por idealismo na medida em que virtualiza o corpo

    transformandoo em uma estrutura de uma existncia que antes e sobretudo conscincia, por

    outro lado temos na fenomenologia sartreana do corpo a possibilidade de visualizao da

    vivnciacorporaldaconscinciaapartirdeseumbitooriginrio.

    Referncias

    BORNHEIM,Gerd.Sartre,MetafsicaeExistencialismo.3.ed..SoPaulo:Perspectiva,2000.

    COX,Gary.CompreenderSartre.2.ed.Petrpolis:Vozes,2010.

    MORRIS,KatherineJ.Sartre.PortoAlegre:Artmed,2009.

    SARTRE, JeanPaul. O Ser e o Nada: ensaio de Ontologia Fenomenolgica. 16. ed. Petrpolis: Vozes,2008.