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2013 Dia Municipal do Migrante 02-05-2013 V Tertúlia, Cruzamentos «O outro é uma necessidade inegável. A importância de não considerar o outro já revela a sua importância. O outro é também um eu ele é apenas um eu fora de mim que me influencia, e vice-versa. Calar outrosnada mais é que aniquilar o eu de vários indivíduos; e é por causa deste fenómeno cruel que os movimentos de minorias ainda são necessários.» Camila Melo

Corpus da V Tertúlia Literária da ESA com Fotos

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Corpus textual da V Tertúlia Literária da ESA, com fotos dos diseurs. Os textos são de autores de expressão portuguesa. Contém texto do Diretor, prof. Simão Cadete e os agradecimentos.

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2013

Dia Municipal do Migrante

02-05-2013

V Tertúlia, Cruzamentos

«O outro é uma necessidade inegável. A

importância de não considerar o outro já revela a

sua importância. O outro é também um eu ele é

apenas um eu fora de mim que me influencia, e

vice-versa. Calar outrosnada mais é que aniquilar

o eu de vários indivíduos; e é por causa deste

fenómeno cruel que os movimentos de minorias

ainda são necessários.»

Camila Melo

Cruzamentos

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Caros tertulianos

O tema que hoje nos é proposto, “Cruzamentos”, associado às

celebrações do Dia Mundial do Migrante é, por si mesmo, um

cruzamento feliz de duas ideias que atravessaram a história da

Humanidade, desde a sua génese aos nossos dias.

O nomadismo que caracterizava as primeiras comunidades, mais tarde

reforçado pelas diásporas, provocou um inevitável encontro de culturas

e mentalidades, elas sim, geradoras de novas culturas-síntese.

Nabucodonosor, sem se dar conta, e ao provocar, com a destruição de

Jerusalém, a primeira diáspora judaica, com as consequências que não

deixaram, desde então, ninguém indiferente, obrigou a uma

disseminação cultural que perdurou durante séculos.

A diáspora africana, com causas não menos violentas, que pesarão para

sempre na memória da Humanidade, tem hoje um peso inegável e uma

presença evidente na atualidade, ao falarmos de cultura ou desporto,

por exemplo.

A diáspora portuguesa, e não me refiro a esta que os nossos políticos

querem hoje forçar, nascida de uma alma maior que o país, deu origem

à grande pátria a que hoje todos nos orgulhamos de pertencer: a pátria

da lusofonia.

Tudo isto levou José Eduardo Agualusa a afirmar que "não há mais um

lugar de origem", existem, sim, "outras fronteiras"; se já os iluministas

valorizavam as virtudes libertadoras da viagem, foram, pois, as

migrações que promoveram a alteração do conceito: as fronteiras

deixaram de ser meramente físicas, geográficas ou políticas, para

assumirem a dimensão cultural.

Neste sentido, as fronteiras de Luanda, por exemplo, atravessam o

Atlântico, até Macedo de Cavaleiros ou Rio de Janeiro, e navegam pelo

Índico até à Índia, ou pelo mar de Timor até Timor Lorossae.

Estes novos mundos dados ao mundo foram, então, o ensejo para o

entrecruzar de culturas, para a troca de experiências ou de afetos; numa

palavra, foram criadas as condições para a “transculturação”, segundo

Ortiz, ou para a “miscigenação”, no dizer de Mendonça freire.

Para estes dois estudiosos, este encontro de “raças, conjuntos sociais,

culturais e linguísticos” deu origem a um fenómeno (…) "heterogéneo"

que marca o advento da pluralidade, da multiculturalidade.

Cruzamentos

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Como alguém salientou, o desafio que se coloca à escola de hoje,

sobretudo àquelas onde a interculturalidade é imagem de marca, é

promover “ uma unidade dialética” que favoreça a transição “das

estruturas de pensamento para as ações que se desenvolvem no âmbito

escolar, relacionando teoria e prática, objetividade e subjetividade, o

local e o global”.

Em meados do século XV, com a descoberta de Gutemberg, a imprensa

agilizou o cruzamento de saberes, naquilo que mais tarde seria o

conceito da “galáxia de Gutemberg”, um espaço de comunicação que

ajudou à partilha e divulgação cultural.

Ao mesmo tempo que criava este conceito de “galáxia”, Marshall

Mcluhan criava igualmente o conceito ainda hoje em voga, a noção de

“aldeia global”, salientando que as novas tecnologias da informação e

comunicação transformaram o planeta numa aldeola onde todos se

conhecem e a comunicação está à distância de um clic.

Eis, pois, o mundo mediatizado em que vivemos, um espaço onde os

“media” fabricam ou destroem carreiras políticas, um lugar onde as TIC

promovem encontros, desencontros e dependências, seja para os

ansiosos adolescentes, seja para alguns adultos que, a todo o momento

pretendem fazer despertar o ou a “teenager” que há dentro de si.

No mesmo instante, podemos cruzar ideias, culturas ou afetos; esta é a

grande conquista da globalização, ultimamente bastante diabolizada.

Por razões que são óbvias para todos, as tecnologias dos tempos

modernos vieram contrariar o aforismo que clamava que “ na vida há

mais encontrões do que encontros”; sejamos optimistas e acreditemos

que, se o encontrão pode estar ao virar da esquina, não será menos

verdade dizermos que o encontro está apenas à distância de um

pequeno toque de telemóvel.

Muito obrigado a todos

Desejos de uma boa tertúlia

Simão Cadete

Cruzamentos

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O GATO BOI

Dito por Ana Guerra

Quero que conheçam

este gato. Chama-se Felini e,

acreditem, não se parece com

nenhum outro. Falo-vos de um

gato, digamos assim, muito

ambicioso. Felini era ainda

adolescente, mal se viam os

bigodes, quando se apaixonou.

Coisa séria. Muito séria.

Deixou de comer, deixou de

lamber o pêlo, e passou a

andar pelos telhados como um

vagabundo – sujo, magro,

desgrenhado -, gemendo

tristemente o seu amor. A mãe ficou preocupada:

- Meu filho- perguntou-lhe-, quem é essa gata?

Gata? Felini olhou-a desesperado. Não, não era uma gata. Era

uma vaca! Graciosa, a vaca, pastava os seus dias, isto é, passava os

seus dias, no terreiro em frente à aldeia, com as outras vacas. A mãe

de Felini riu-se, pasmada, e foi contar às amigas: o seu filho – o

pobrezinho! – estava apaixonado por uma vaca. A novidade

espalhou-se pela vizinhança. Os gatos grandes davam-lhe palmadas

nas costas: “ Tens mais boca que barriga”, diziam. Os colegas

troçavam dele. O pior, porém não era isso. O pior, para Felini, aquilo

que realmente o incomodava era a indiferença de Graciosa.

Felini sentava-se à noite em frente do estábulo onde dormia

Graciosa e compunha canções para a lua, canções tristíssimas, que

Cruzamentos

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falavam dos olhos mansos do seu amor, e do seu pêlo macio, e do

seu caminhar pelo pasto húmido ao amanhecer. Graciosa nem olhava

para ele. A mãe de Felini, cada vez mais preocupada com tamanha

persistência, foi procurá-lo:

-Meu filho - explicou-lhe -, como queres que uma vaca se

interesse por ti? As vacas gostam de animais grandes, como elas, de

bois. Os gatos gostam de gatas.

Era esse o problema? Então – decidiu Felini -, então seria um

boi. A partir desse dia começou a pastar, como as vacas, e com tal

apetite que cresceu, e cresceu, e cresceu, até alcançar o tamanho de

um boi. Só nessa altura voltou a procurar Graciosa. A vaquinha

porém, olhou-o com susto:

-Meu Deus, um gato boi!

O grito dela atraiu os outros animais. Todos o olhavam com

horror. Os gatos já não o aceitavam – ele deixara de ser um gato. As

vacas fugiam ao vê-lo. Felini, tristíssimo, decidiu então partir para

outro país. O mundo era imenso. Em algum lado encontraria quem o

aceitasse sem estranheza.

José Euardo Agualusa, Estranhões &Bizarrocos

Cruzamentos

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POEMA DO MEU PAÍS

Dito por Miguel Assis

És o longe e o perto e a viagem

nas mãos feitas de medo e aventura

és o mar e a terra e a mensagem

do amor em versos de amargura

e de todos os navios

por dentro dos teus braços prisioneiros

são de sol e sal e vento sul

é a tristeza do meu povo azul

um cheiro de amoras e pinheiros.

És a voz que se levanta

a dor de ser contente

e de não ser

a palavra proibida na garganta

a água

e a sede de a beber.

És esta coragem de escrever

as palavras com o sangue das palavras

como quem inventa

a própria fome

e a sustenta.

És o meu nome por dentro do teu nome

és mais do que esta dor aberta em gomos

daquilo que já fomos e não somos

mais do que este sumo amargo que bebemos.

Cruzamentos

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E os versos que dizemos?

e as dores que guardamos?

e as armas que empunhamos?

e os filhos que não temos?

e os mares que cruzamos?

e o sangue que perdemos?

quem ri como nós rimos?

dos males que sofremos?

Amo-te

e no entanto eu sei que amar-te

não é trazer teu nome sobre o peito

é mais que o teu saber é esta dor

que o meu povo passeia pelas ruas

é esta luta a sós esta saudade

de um nome fuzilado liberdade.

Joaquim Pessoa, in O Pássaro no Espelho

Cruzamentos

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O TOMBO DA LUA

Dito por Bruno Páscoa

Uma ocasião, quando

desapareceu a Lua, eu

estava lá e sei contar

tudo. Não me lembro da

idade que então tinha e já

na altura me não

lembrava. Certo é que a

noite estava muito quente

e repassada de azul, assim

de tinta soé dizer-se e a

Lua tinha-se quieta,

redonda e branca,

brilhante como lhe

competia. Provavelmente

o Zé Metade cantava o

fado, postado à soleira da

porta, enquanto acabava

um saquitel de tremoços.

O Zé Metade é assim

chamado desde que lhe

aconteceu uma infelicidade: quis separar o Manecas Canteiro do Mota

Cavaleiro quando eles se envolveram à facada na Esquina dos

Eléctricos, por causa de uma questão, segundo uns política, segundo

outros de saias. Ambos usavam grandes navalhas sevilhanas e o Zé

caiu-lhes mesmo a meio dos volteios. Ali ficou cortado em dois, sem

conserto, busto para um lado, o resto para outro. Daí para diante

ficou conhecido por Zé Metade, arrasta-se num caixote de madeira

com rodinhas e deu-lhe para cantar todas as noites um fado

Cruzamentos

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melancólico e muito sentido: Ai a profunda desgraça / Em que me

viste ó `nhamãiiii…

Pois foi nesta altura, com tudo assim quieto e a fazer olho para

dormir, que o Andrade da Mula se chegou à janela e disse: “Lá a

calari…” e depois remirou em volta a ver se alguém lhe ligava, o que

não aconteceu.

Após olhou para o Céu e bocejou um destes bocejos do tamanho

duma casa, escancarando muito a bocarra que era considerada uma

das mais competitivas da zona oriental. E então aconteceu aquilo da

Lua.

Deslocou-se um bocadinho assim como quem se desequilibrou,

entrou a descer devagar, ressaltou numa ponta de nuvem que por ali

pairava feita parva, e foi enfiar-se inteirinha na boca do Andrade que

só fez “gulp” e esbugalhou os olhos muito. No sítio da Lua, lá no

astro, ficou um vinco esbranquiçado como dobra em papel de seda

que logo se apagou e o céu tornou-se bem liso e escorreito. O Beco

ficou um tudo nada mais escuro e um gato passou a correr, pardo, da

cor dos outros.

Diz o Zé Metade, no fim duma estrofe: “Ina cum caraças!”

Vai o Andrade lá de cima e atira o maior arroto que jamais se ouviu

naquele Beco.

Era o Zé Metade a berrar para dentro: “`nha mãe, venha cá,

senhora, co Andrade engoliu a Lua!” e o Andrade a olhar para nós,

limpando a boca com as costas da mão, um ar azamboado.

Seguiu-se o alvoroço costumeiro sempre que havia novidade. Ia um

corrupio de pessoal na rua a falar alto e um ror de gente em casa do

Andrade que estava sentado numa cadeira, pernas muito afastadas,

pedindo muita água e queixando-se de que sentia a barriga um

bocado pesada.

Ele não teve culpa, tadinho, que ela é que se lhe veio enfiar pela boca

dentro comentava a mulher do Andrade, torcendo a ponta do avental.

Cruzamentos

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Mas se foi ele que a desafiou gritava a mãe do Zé dando punhadas

de uma mão na palma da outra mão. Pôr-se ali na janela aos

bocejos, olha a farronca! Agora vem esta a querer baralhar género

humano com Manuel Germano. O meu Zé viu tudo, óvistes?

Não tardou, estava o presidente da Junta, muito hirto, no seu casaco

de pijama com flores:

Istoo meu amigo o que fazia melhor era regurgitar a Lua, ou o Beco

ainda fica mal visto observou com gravidade e voz de papo.

E o Andrade, moita, ali embasbacado, com os olhos no vago.

Deram-lhe azeite para o homem vomitar, mas nada. Limitou-se a

produzir uns sons equívocos e a esboçar um ar de enjoada

repugnância.

O pior é que se ela sai pelo outro lado nos parte a sanita nova

abespinhava-se a filha do Andrade, toda de mão na anca. Que coisa

mais escanifobética…

É levarem-no já para o hospital gritava o Zé Metade da rua, ansioso

por se ver acompanhado na sua desgraça de vítima do escalpelo

cirúrgico.

Mas o presidente da Junta considerou: Então e depois a Lua onde é

que a punham? Quem lhes garantia que ela voltava ao sítio? E se os

médicos quisessem ficar com ela lá no hospital e a prantassem dentro

dum frasco com álcool? Que é que aquela gente ganhava com isso?

Hã? E em faltando a Lua, quais eram os inconvenientes? Hã?

Acabam-se as marés disse o Paulino Marujo.

Coisa de pouca monta afirmou uma mulher. As marés nunca deram

de comer a ninguém. E quanto à luz, depois da electricidade…

Então como é que o amigo se sente? Perguntou o presidente ao

Andrade.

Menos mal, muito obrigado. Vai um pedacinho melhor…

Então é melhor ficarmos assim recomendou o Presidente. Vossemecê

agora toma um bicarbonatozinho, um leitinho, e ala para a cama que

Cruzamentos

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amanhã é dia de trabalho. E vocês todos, andor, para casa, em

ordem e não se pensa mais em tal semelhante!

E assim foram fazendo, aos poucos e poucos.

No dia seguinte, a Humanidade toda estranhou muito o

desaparecimento da Lua e deu-se a grandes especulações.

Era com algum orgulho que a população do Beco via passar o

Andrade. Sempre gaiteiro, apenas um pouco mais gordo.

Mário de Carvalho, Casos do Beco das Sardinheiras

Cruzamentos

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ANTES QUE SEJA TARDE

Dito por

Adelaide Simões, Gisela Batista, Sara Brito

Amigo,

tu que choras uma angústia qualquer

e falas de coisas mansas como o luar

e paradas

como as águas de um lago adormecido,

acorda!

Deixa de vez

as margens do regato solitário

onde te miras

como se fosses a tua namorada.

Abandona o jardim sem flores

desse país inventado

onde tu és o único habitante.

Deixa os desejos sem rumo

de barco ao deus-dará

e esse ar de renúncia

às coisas do mundo.

Acorda, amigo,

liberta-te dessa paz podre de milagre

que existe

apenas na tua imaginação.

Abre os olhos e olha

abre os braços e luta!

Amigo,

antes da morte vir

nasce de vez para a vida.

Manuel da Fonseca, Poemas Completos

Cruzamentos

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A QUEDA DE UM ANJO

Dito por Paula Teixeira (e Adelaide Simões)

A luz é intensa aqui no sétimo

círculo. Ponho o chapéu de

palhinha com abas, com uma

fita preta, que me foi fornecido à

entrada. Agora vejo melhor a

paisagem, as espreguiçadeiras,

os anjos, Deus, os outros

habitantes da Eternidade. Nunca

pensei que houvesse

espreguiçadeiras no Paraíso, um

móvel tão amigo de um dos

pecados mortais. Tapo os olhos

por causa da luz. É demais, é

muita luz, e deveria haver um

botão para baixar, para dar

penumbra, como quando baixo

os estores nas tardes de agosto.

Imaginava o Paraíso com

estores. Espero que haja uma

noite para aliviar este dia tão

luminoso.

As grades parecem seguras,

pintadas de azul, que vai bem

com o céu. Mas tenho de

reclamar. Onde é que está o

meu marido? À minha frente surge um anjo, todo vestido de branco.

Quase que ergo a mão para lhe tocar a face, tão jovem, tão bonita,

tão cheia de luz. Em vez disso, sai-me uma pergunta seca: onde é

que está o meu marido? O anjo fica sem saber o que dizer. Digo-lhe

que não me interessa que possam ter achado que o meu marido não

era uma boa pessoa, que ele não era pessoa de vir para o Céu. A

verdade é que se eu vou para o Paraíso, se o mereço, tenho de ter o

meu marido comigo. Que raio de coisa é esta em que passamos a

Cruzamentos

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eternidade separados das pessoas que amamos? O anjo diz para me

acalmar, mas eu não posso aceitar uma coisa destas. Têm muita luz,

mas esquecem-se de quem amamos! O meu marido podia ser mau,

mas se amamos pessoas assim o que é que devemos fazer? Viver

eternamente sem elas? Que porcaria de paraíso é este? O anjo

encolhe os ombros. Nunca pensei que os anjos os encolhessem, aliás,

nunca pensei que tivessem ombros.

As camas brancas sucedem-se. A brancura agrada-me, é sinal de

higiene. Há um homem a olhar para mim e tem bigode. Esta é outra

coisa que eu não esperava encontrar. Para quê estes pelos? Será que

temos de os cortar ou ficam sempre do mesmo tamanho? É difícil

dizer. Acho que ainda não passou um dia, mas quem é que pode

garantir tal coisa? O tempo deve passar de maneira diferente por

aqui. Se calhar passou uma eternidade. O tempo é muito relativo e

eu sei muito bem o que isso é. Tive um tio que quando abria a boca

para falar, parecia que nunca mais se iria calar, parecia uma

eternidade. Há uma jarra em cima da mesa e vários anjos. Digo-lhes

que se o meu marido não está aqui, que se não é bom o suficiente

para estar aqui, então eu prefiro ir para o Inferno. Pelo menos

estaremos juntos. Tentam dissuadir-me, mas eu não vou desistir.

Agarram em mim e levam-me para um quarto. Sentam-me na cama

e falam-me com voz doce. Fazem com que me deite, trazem-me um

copo de água e eu, passados minutos, sinto vontade de dormir.

Acordo de noite (afinal há noites no Paraíso) e tento acender um

candeeiro, mas só dá escuro. Tenho de chegar ao Inferno, penso,

tenho de chegar ao Inferno.

Estou no sexto círculo e iniciei a minha viagem para o Inferno.

Começo a lembrar-me de coisas, recordações, idas à praia. Como eu

gostava de ir à praia, da areia, do sol a derreter-me o corpo. O meu

marido não gostava. Ficava deitado na toalha a beber cerveja e a ler

o jornal desportivo, enquanto eu caminhava até à beira de água. (…)

Sempre fui muito infantil. Não é fácil ser-se uma criança tão velha

como eu sou. Muitas vezes quero dançar e as minhas pernas apenas

tremem, não concordam com o que eu quero e isso deixa-me triste.

Insulto as minhas pernas e digo-lhes que ficaram velhas e já não

sabem viver a vida, por isso, para lhes mostrar como se pode ser

feliz, danço realmente, mas sem mexer as pernas, só balançando os

braços. E quando estes se cansam, danço só com a imaginação e

Cruzamentos

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então dou pulos muito grandes e, nessa altura, ninguém me

repreende, nem sequer o meu marido que continua a ler o jornal

desportivo.

Tenho comichão nas costas. Que coisa estranha, pois como é que se

coça as costas? No Paraíso não deveria haver costas se não

chegamos lá com as mãos. Começo a ter demasiadas reclamações a

fazer. Que o mundo não fosse perfeito, compreende-se, mas um

paraíso assim é inaceitável. Talvez deva pedir aos anjos que me

cocem as costas, mas não vejo nenhum. Dizem que os anjos não têm

costas, o que faz todo o sentido. Se calhar eu também não tenho e a

comichão que sinto é como a daqueles sujeitos amputados, soldados

e isso, que continuam a sentir dor na perna que lhes foi serrada para

impedir que a gangrena alastrasse. É um inferno muito grande ter

comichão numa zona do corpo que já não possuímos. É o mesmo que

ir às compras sem levar a carteira.

Sim, a cabeça funciona bem. Passo por lugares do meu passado com

muita rapidez, como se corresse num campo verde. Vejo o meu gato

Van Gogh, que é muito peludo, e eu sou alérgica aos animais, não é

só aos pólenes, por isso, não lhe mexo, mas passo os olhos por cima

dele, que tem o mesmo efeito que passar as mãos, e ele ronrona e

sente o meu olhar como se fossem os meus dedos. (…)

A primeira vez que eu e o meu marido fizemos amor foi numa

caravana que ele tinha comprado em segunda mão, toda branca com

gaivotas azuis. Não eram gaivotas verdadeiras, eram autocolantes e

não voavam, apesar de terem as asas abertas. A caravana tinha uma

mesa que fazia de sala e tecidos azuis e vermelhos. O meu marido —

que na altura em que tinha comprado a caravana com gaivotas azuis

ainda não era meu marido — deu-me um estalo porque eu não queria

fazer umas coisas com a boca. Foi bem feito, eu era muito burra, era

como uma criança e ele era uma pessoa muito sábia e experimentada

que tinha andado embarcada e tinha visto o mundo. Fiquei muito

mais mulher depois daquela tarde. (…)

Uma vez vesti-me de branco, como a caravana, e acabei por sujar o

vestido, pois o branco atrai muitas nódoas. Foi no dia em que me

casei. O branco também atrai maridos e as nódoas são como os

pássaros, andam a voar à nossa volta e poisam em roupas lavadas.

Cruzamentos

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Estou a descer rapidamente para o Inferno. Consigo sentir o calor a

encher-me as bochechas, a cara toda. Dantes sabia ver as horas sem

olhar para o relógio e nunca falhava por mais de um ou dois minutos.

O meu marido foi um homem que, a certa altura da vida, começou a

juntar anos. Em vez de os viver, juntava-os. Viveu muito tempo, mas

sem noção disso. O meu marido já estava tão velho que já não

envelhecia, apenas apodrecia. Eu gostava muito dele e não sou capaz

de viver eternamente sem o ter a meu lado eternamente. Os

desenhos recortam-se com tesouras. A alma recorta-se com palavras.

Eu sempre fiz isso muito bem, é como cortar as unhas. Sempre fui

muito boa nisso.

O cabelo não cai só aos homens, e às árvores no outono, também cai

às mulheres, e eu já não tenho muito. Ultimamente, sempre que me

vejo ao espelho consigo ver a curva da cabeça.

Quando esfrego os olhos são muitos séculos de olhar que estou a

esfregar. Porque uma pessoa não tem só o seu passado, tem também

os passados de todos os seus familiares, dos seus amigos, das

histórias que leu ou que ouviu. Não é? Quando esfregamos os olhos,

esfregamos muitos séculos.

(…)

Estou toda nua e sinto-me mais nova. A proximidade ao Inferno tem

efeitos benéficos na pele. Ouço barulho de automóveis e isso diz-nos

alguma coisa sobre...

Nota final — ou R/C.

A minha prima, Ema de Jesus, atirou-se da

janela do lar Paraíso — que ocupava o

sétimo andar de um prédio do centro —,

para onde se havia mudado recentemente,

logo a seguir à morte do marido. Todos

sentimos algum alívio quando ele morreu

após doença prolongada. É um sentimento

triste, mas não há que ser hipócrita a

respeito disso.

Sempre ouvi dizer que o tempo é muito

relativo. Lembro-me de um tio que, quando

abria a boca, parecia que nunca mais se

Cruzamentos

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iria calar, eram discursos que pareciam durar eternidades. Espero

que a queda da minha prima lhe tenha permitido, tal como tenho

ouvido dizer que acontece nestas ocasiões, rever a sua vida toda em

segundos como se a estivesse a viver de novo. Ou pelo menos

relembrar algumas das coisas que lhe foram mais queridas. Acho que

oitenta e dois anos cabem perfeitamente dentro de uma queda de

sete andares.

O lar Paraíso foi alvo de um processo judicial.

Afonso Cruz, A queda de um anjo

Cruzamentos

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UM SENTÍ SODADE

Dito por Carmindo Lopes

Adias, um senti sodade de terra.

Um bá paaeropôrt de Lisboa sem kônd nada.

Um nada na mei d´aquelpoóv,

k´tava ta viajá pa terra!

Na boa e sem kônd nada um dá kúm vizinha ta embarcá.

Vizinha é d´la de cômpBitim, um

dal um pedacím de mim.

El tava ma sêfilhinha,el ca cris sabê

d´mim.

Um dzélquêra mim, Cá di Cá um ca ta embarcá.

El tava embarcá naquel voo diréct

pa sãocente

Um fcá contente. Um críisencostá na sê mala.

Um dzelk´mi é Cá di Cá, um cris

sentísãocente!

Mi lá na aeropôrt, um viajá, um

matá sodade!

Um falá de nha família, um falá de nhasamiíg.

Um bá paaerpôrt sem kôndnada.Um ca embarcá.

Um enviá um recôd d´sodadepal levam nhasamiíg.

Vizinha tava ma sê filhinha, ma um contaltúdsodade.

És ta dzék´táexistímisteêr;

Cruzamentos

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Kel avião cabá de levantávoô, um rancá.

Um saltá rio tejo pam beijá nha cretcheu!

És ta dzék´táexistímisteêr; um saltal um beijal!

Um saltá rio tejo, pam bá panhá combói na Miratejo!

Um entrá na combói, ma el ca rancá.

Um embarcá na nhapensamente, um falásentimente!

Um fcá ta esperápam ca rancá.

Um ta lí ta esperá

Um ta lí ta sonhá…

Carmindo Lopes

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O BIGODE DO PROFESSOR DE

GEOGRAFIA

Dito por Ladislau Albuquerque

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Ondjaki, Os da minha rua

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FADO FALADO

Dito por João Pedro Costa

Fado Triste

Fado negro das vielas

Onde a noite quando passa

Leva mais tempo a passar

Ouve-se a voz

Voz inspirada de uma raça

Que mundo em fora nos levou

Pelo azul do mar

Se o fado se canta e chora

Também se pode falar

Mãos doloridas na guitarra

que desgarra dor bizarra

Mãos insofridas, mãos

plangentes

Mãos frementes e impacientes

Mãos desoladas e sombrias

Desgraçadas, doentias

Quando à traição, ciume e morte

E um coração a bater forte

Cruzamentos

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Uma história bem singela

Bairro antigo, uma viela

Um marinheiro gingão

E a Emília cigarreira

Que ainda tinha mais virtude

Que a própria Rosa Maria

Em dia de procissão

Da Senhora da Saúde

Os beijos que ele lhe dava

Trazia-os ele de longe

Trazia-os ele do mar

Eram bravios e salgados

E ao regressar à tardinha

O mulherio tagarela

De todo o bairro de Alfama

Cochichava em segredinho

Que os sapatos dele e dela

Dormiam muito juntinhos

Debaixo da mesma cama

Pela janela da Emília

Entrava a lua

E a guitarra

À esquina de uma rua gemia,

Dolente a soluçar.

Cruzamentos

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E lá em casa:

Mãos amorosas na guitarra

Que desgarra dor bizarra

Mãos frementes de desejo

Impacientes como um beijo

Mãos de fado, de pecado

A guitarra a afagar

Como um corpo de mulher

Para o despir e para o beijar

Mas um dia,

Mas um dia santo Deus, ele não veio

Ela espera olhando a lua, meu Deus

Que sofrer aquele

O luar bate nas casas

O luar bate na rua

Mas não marca a sombra dele

Procurou como doida

E ao voltar da esquina

Viu ele acompanhado

Com outra ao lado, de braço dado

Gingão, feliz, levião

Um ar fadista e bizarro

Um cravo atrás da orelha

E preso à boca vermelha

Cruzamentos

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O que resta de um cigarro

Lume e cinza na viela,

Ela vê, que homem aquele

O lume no peito dela

A cinza no olhar dele

E o ciúme chegou como lume

Queimou, o seu peito a sangrar

Foi como vento que veio

Labareda atear, a fogueira aumentar

Foi a visão infernal

A imagem do mal que no bairro surgiu

Foi o amor que jurou

Que jurou e mentiu

Correm vertigens num grito

Direito ou maldito que há-de perder

Puxa a navalha, canalha

Não há quem te valha

Tu tens de morrer

Há alarido na viela

Que mulher aquela

Que paixão a sua

E cai um corpo sangrando

Nas pedras da rua

Mãos carinhosas, generosas

Cruzamentos

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Que não conhecem o rancor

Mãos que o fado compreendem

e entendem sua dor

Mãos que não mentem

Quando sentem

Outras mãos para acarinhar

Mãos que brigam, que castigam

Mas que sabem perdoar

E pouco a pouco o amor regressou

Como lume queimou

Essas bocas febris

Foi um amor que voltou

E a desgraça trocou

Para ser mais feliz

Foi uma luz renascida

Um sonho, uma vida

De novo a surgir

Foi um amor que voltou

Que voltou a sorrir

Há gargalhadas no ar

E o sol a vibrar

Tem gritos de cor

Há alegria na viela

E em cada janela

Cruzamentos

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Renasce uma flor

Veio o perdão e depois

Felizes os dois

Lá vão lado a lado

E digam lá se pode ou não

Falar-se o fado.

João Villaret

Guitarras: António Rodrigues e Bartolomeu Dutra

Cruzamentos

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SEMBA

Dito por José Jacinto

O Semba é Único.

Há tanto tempo...

Há tantas gerações.

Tá aí discreto,

mas foi no seu embalo

que tantas músicas

se derivaram puras.

Plantaram depois

sons na Geórgia,

Nova Orleães,

Rio de Janeiro,

Baía, Jamaica,

Lisboa... e mais e mais...

Sons alimentados pela

seiva ´

da árvore musical de

Angola.

Semba é fonte boa.

Semba é mais.

José jacinto

Cruzamentos

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POÇO DOS NEGROS

Dito por Miguel Assis

A história que gente vos quer contar

Aconteceu um dia em lisboa

Aonde o tempo corre devagar

Chegamos era cedo à ribeira

Ainda todo o peixe respirava

E a outra carne aos poucos definhava

O gemido do cordame das amarras

Juntava-se ao lamento dos porões

E o que nos chega fora são canções

A gente viu sair muita gente que dançava

Um estranho bailado em tom dolente

Marcado pelo bater das corrente

Anda linda

Vamos p´ra ver se é verdade

Que lá se pode ouvir cantar

Anda linda

Vamos ao poço dos negros

P´ra ver quem pode lá morar

Cruzamentos

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Mais tarde fomos ter àquela parte da cidade

Que é mais profunda do que maré baixa

E a lua só visita por vaidade

De novo a estranha moda se dançava

Agora com suspiros de saudade

Agora com bater de corações

Batiam-se com barriga e roçavam-se nas coxas

Os corpos já dourados de suor

E as bocas já vermelhas dos amores

Quisemos nós saber qual é o nome desta moda

Respondeu-nos um velho já mirrado

Lundum mas se quiserem chamem-lhe fado

Trovante

Cruzamentos

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MICROFONE ESCONDIDO

Dito por Paula Teixeira

Leonor achou a ideia péssima,

mas Ataíde insistiu: botar um

microfone escondido no elevador do prédio seria muito divertido.

Não queria ouvir o que os vizinhos diziam, subindo ou

descendo pelo elevador. Os vizinhos não interessavam.

Divertido mesmo seria ouvir o que os amigos do casal diziam,

chegando ou saindo do apartamento.

- Vai dar galho, Ataíde... - Vai nada.

E Ataíde instalou um microfone no elevador.

O primeiro teste foi quando

convidaram o Júlio e a Rosa para jantar.

Ataíde ouviu Júlio dizer para Rosa dentro do elevador, na

subida: - Às onze horas a gente dá o

fora. - Acho que às onze ainda não

serviram o jantar. Se eu conheço a Leonor...

- Não importa. Às onze nos mandamos. Amanhã eu tenho

academia. E Ataíde ouviu Júlio dizer para Rosa dentro do elevador, na descida:

- Saco, Rosa. Uma hora da manhã. Não viu eu fazer sinais prà gente

ir embora? - Aquilo era um sinal? Pensei que você estivesse limpando o ouvido.

Outro jantar. Aniversário do Ataíde. Os dois últimos casais saem juntos. Ataíde corre para ouvir o que vão dizer no elevador.

- O Ataíde está meio acabadão, tá não? - Acho não. Prà idade dele...

- Também, ter de aguentar a Leonor... No apartamento, Leonor se revolta:

- Quem disse isso? De quem é a voz? - Parece a da Soninha - diz Ataíde.

Cruzamentos

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- Cachorra! Outro jantar. Ligam da portaria para anunciar que o Sr. Marcos e a

Dona Lia estão subindo. No elevador, Lia diz:

- Se a Leonor servir salmão outra vez, eu me mato. Depois, Lia não entende a frieza da Leonor com ela durante todo o

jantar. Não sabe que Leonor teve de suspender o salmão que serviria. Que substituiu o salmão por um resto de pernil que, graças a

Deus, ainda tinha na geladeira. Descendo no elevador, Lia comenta com Marcos:

- A Leonor enlouqueceu. Você viu? Serviu pernil com molho remolado pra peixe.

Leonor anuncia que nunca mais convidará Lia para nada. Depois de um jantar para os amigos que ainda restavam, os melhores amigos

do casal foram os últimos a sair. Marjori e Adão. Amigos chegadíssimos. Amigos de muito tempo. Depois das despedidas,

depois de fechada a porta do elevador e de o elevador começar a descer com Marjori e Adão, Ataíde hesitou. Talvez fosse melhor não

ouvir o que os amigos iam dizer a respeito deles e do jantar no

elevador. - Você acha? - perguntou Leonor.

- Melhor não. Você tinha razão. Não foi uma boa ideia botar esse microfone.

- Mas agora está posto. Vamos ouvir. - Leonor... Nós vamos acabar brigando com todos os nossos amigos.

- Eu quero ouvir, Ataíde. Preciso ouvir o que a Marjori e o Adão estão dizendo!

O que ouviram foi o fim de uma frase dita pelo Adão: - ...cada vez mais chato.

- Viu só, Ataíde? - disse Leonor. - É sobre você. - Porquê eu? Tinha mais gente no jantar!

- Sei não... Sei não... E nunca saberiam mesmo. No dia seguinte, Ataíde tirou o microfone

escondido no elevador.

Luís Fernando Veríssimo, Crónicas

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A ETERNIDADE E O DESEJO

Dito por Ilda Neves

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Cruzamentos

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Inês Pedrosa, A eternidade e o desejo

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OS DOIS IRMÃOS

Dito por Ladislau Albuquerque

O juiz acabaria por

considerar como provado

que André Pascoal matou

o irmão em circunstâncias

não de todo perfeitamente

esclarecidas mas que no

entanto apontaram a sua

convicção para a prática

de um crime de homicídio

voluntário.

Enquanto

esperavam que se viesse

comunicar ao advogado

estar servido o famoso almoço, o Tribunal continuou ouvindo André a

contar como tinha parado um momento junto à porta do quarto

contemplando sobre a cómoda a fotografia do seu casamento.

Figurava-lhe como se estivesse a voltar para casa depois de um único

dia de ausência, disse, porque todas as coisas se encontravam nos

lugares em que ele se lembrava que sempre tinham estado: a cama

no mesmo canto à esquerda de quem entra, o guarda-fato ao fundo

virado para a porta com o espelho de corpo inteiro onde ele agora se

via reflectido, a pesada cadeira forrada e o primeiro espelho de corpo

inteiro a chegar na sua povoação. Tinha-os conhecido numa das suas

primeiras idas à cidade e nessa altura tinha decidido que quando

Cruzamentos

37

estivesse a casar-se haveria de comprar umas iguais. No entanto,

não tinha sido fácil transportá-los nos lombos de uma mula durante

cerca de quinze quilómetros, especialmente porque a cada topada da

besta ele via as suas jóias em fanicos pelo chão. Tinha mesmo

acabado por carregar o espelho debaixo do braço por quase todo o

caminho, mas depois de instalado no seu quarto toda a aldeia se

tinha deslocado à sua casa para se admirar em corpo inteiro diante

do orgulhoso sorriso de André. A cómoda continuava à direita, com a

fotografia do seu casamento mais pendida sobre o lado esquerdo

para melhor poder ser vista logo da porta de quarto. André reviu-se

de fato preto e gravata e luvas brancas passando o seu braço pelo

braço da Maria Joana toda vestida de branco, o longo véu tapando-

lhe a cara. Sorriu ao pensar que aquela maneira de se casar já de há

muito que estava fora de moda e se fosse agora não teria ido à igreja

de luvas, talvez nem mesmo de fato, mas certamente que nunca

seria de fato preto. Atrás dos noivos viam-se o pai, a mãe, João, o tio

Doménico, João e Doménico sorrindo, os seus pais de rosto fechado e

sério. Tinha sido há quatro anos atrás, mas são daquelas coisas que a

gente nunca mais esquece na vida, embora seja verdade que

praticamente nem tinha sido consultado sobre se era ou não o que

queria fazer. Quando o pai de Maria Joana tinha aparecido certa noite

solicitando o pai de André para uma conversa particular, ele tinha

ficado demasiado atemorizado para tentar surpreender do que

estariam falando, embora soubesse de certeza absoluta que aquele

assunto lhe dizia respeito. Foi João quem, escondendo-se no sobrado,

tinha escutado todo o longo monólogo. De princípio João não tinha

entendido onde o homem queria chegar porque ele tinha começado

por falar de mais um ano de crise que se avizinhava por falta das

chuvas que nunca mais chegavam, do filho que já estava na

emigração, pelo que era a filha que todos os dias se esfalfava nos

campos em busca de alguma palha para os animais que tinham no

curral. Embora ainda apenas com 16 anos, a filha tinha sido até

Cruzamentos

38

pouco tempo antes uma rapariga ajuizada e trabalhadeira e

respeitadora dos conselhos dos seus maiores. Mas infelizmente era

certo estar o mundo cheio das mais diversas tentações e nem sempre

era possível a um pai, como tinha sido seu desejo, afastar uma filha

dos caminhos da perdição e conservá-la na dignidade das tradições

familiares até ao dia em que honradamente pudesse ser levada ao

altar por um rapaz de respeito. A seguir o velho tinha falado dos

rapazes que voltavam da emigração com as novas ideias que

chamavam de modernidade, mas que no fundo não eram senão de

malandragem porque apenas tinham em vista desinquietar e

desgraçar as famílias honradas. O pai de André ouvia tudo em

silêncio, ao João parecia que ele concordava com a cabeça porque o

pai de Maria Joana começou então a falar da filha e do André.

Considerava André um bom rapaz, sossegado, trabalhador,

respeitador dos mais velhos. Esta aliás a razão por que não tinha

metido qualquer impedimento quando por diversas vezes tinha visto

André acompanhando a Maria Joana. Mas infelizmente, e sem de

forma alguma estar a querer desfazer do rapaz por quem continuava

a ter consideração, parecia que André também participava dessas

ideias de modernice porque tinha sido informado pela sua mulher que

os dois jovens tinham ido mais longe do que seria de esperar num

rapaz da sua qualidade, e tudo isso sem ter dado aos pais qualquer

satisfação. Estava pois ali para que eles, os dois velhos, decidissem

como resolver aquela triste questão porque, que destino poderia

agora esperar uma pobre rapariga, desgraçada e lançada no mundo?

Um longo silêncio tinha seguido a estas palavras. Mais que ouvir João

adivinhou que seu pai se preparava para enrolar um cigarro e de

facto pouco depois ouviu-o riscar um fósforo e sentiu chegar até onde

estava o cheiro do seu tabaco. Depois o pai suspirou e disse com ar

cansado que fosse o que fosse que o seu filho tinha feito, sabia ser

ele honrado e digno o suficiente para não fugir a uma

responsabilidade capaz de envergonhar os seus maiores. E, assim, se

Cruzamentos

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André de facto tinha feito alguma coisa de contrário à moça, ficaria

desde aquela hora garantido que André estaria na disposição de

imediatamente reparar todo e qualquer mal que tivesse feito pela

forma que a família considerasse satisfatória. O pai de Maria Joana

agradeceu com comedimento, disse que nunca tinha esperado outra

atitude de um homem honrado e cumpridor como era o pai de André.

E partiu levando com ele a promessa de breve casamento. João tinha

conseguido escapulir-se do sobrado sem ser visto e correu a avisar

André. Ainda ofegante pela corrida e com o coração aos saltos,

resumiu-lhe a conversa dizendo que o homem tinha dito que André

tinha tirado os três vinténs a Maria Joana e por isso tinham que se

casar depressa. E foi logo opinando que André não devia casar-se à

força. João era quatro anos mais novo que o irmão, mas a firmeza

das suas convicções impressionavam André. Ela ainda é menor, disse

este, poderei ir parar à cadeia, mas João respondeu desabrido que

cadeia era feia para gente, os bichos eram fechados em currais.

Porém, o pai de André não tinha chegado propriamente a pedir-lhe a

sua opinião sobre o casamento, limitando-se a perguntar-lhe se era

verdade que ele se tinha servido da Maria Joana. Eternamente tímido

diante do pai, André conservou-se calado e de cabeça baixa e então o

velho lembrou-lhe que quando um homem de bem se deita com uma

mulher donzela, está diante de Deus a tomá-la por sua legítima

esposa. Este é um dever sagrado que deve continuar a ser respeitado

e que espero estejas na disposição de honrar, ajuntou. E foi assim

que André se viu a casar-se quando tinha apenas 20 anos de idade.

Germano Almeida, Os dois irmãos

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Agradecimentos especiais:

A todos aqueles que no passado ou no presente fizeram ou fazem

parte da ESA.

São eles:

Os alunos, Bruno Páscoa, Gisela Batista e Sara Brito.

Os ex-alunos Carmindo Lopes, Paulo Teixeira (responsável pelas

luzes e som, voluntário da BE), Ana Paula Teixeira, nossa assistente

operacional, e o ator Miguel Assis – encenador do nosso grupo de

teatro «Contra a Regra».

Os professores Adelaide Simões, Ana Guerra, António Rodrigues,

Bartolomeu Dutra, Ilda Neves, João Pedro Costa, José Jacinto e, por

último, ao nosso ex-colega, prof. Ladislau Albuquerque.

E um agradecimento muito especial à voluntária da BE, profª Isabel

Tavares e ao músico cantor Juary Livramento.

Um agradecimento particular às nossos parceiras:

Da Câmara Municipal do Seixal, do Gabinte de Migrações e Cidadania,

dra. Helena Palacino e dra. Sílvia Pereira.

Da Associação cabo-verdiana do Seixal, na pessoa da nossa também

ex-aluna, Lídia Duarte.

Custódia Rebocho

(PB)