CORREIA, João Carlos - O Admirável Mundo Das Notícias

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    Joo Carlos Correia

    O admirvel Mundo das NotciasTeorias e Mtodos

    LabCom Books 2011

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    Livros LabComwww.livroslabcom.ubi.ptSrie: Estudos em ComunicaoDireco: Antnio FidalgoDesign da Capa: Madalena SenaPaginao: Filomena MatosCovilh, UBI, LabCom, Livros LabCom 2011

    ISBN: 978-989-654-068-5

    Ttulo: O admirvel Mundo das Notcias: Teorias e MtodosAutor: Joo Carlos CorreiaAno: 2011

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    ndice

    Introduo 1

    1 Conceitos fundamentais 131.1 As funes do jornalismo nas sociedades contemporneas . . . 131.2 A importncia dos estudos jornalsticos . . . . . . . . . . . . 15

    1.2.1 Algumas etapas dos estudos jornalsticos . . . . . . . 161.2.2 Tendncias dos estudos jornalsticos . . . . . . . . . . 27

    1.3 Delimitao do objecto da disciplina: a notcia em sentido amplo 281.4 Caractersticas do enunciado jornalstico . . . . . . . . . . . . 301.5 Objectivos da Teoria da Notcia . . . . . . . . . . . . . . . . . 39

    2 O discurso das notcias 432.1 Linguagem e jornalismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 432.2 A notcia como discurso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 442.3 Os estudos de enquadramento . . . . . . . . . . . . . . . . . 492.4 A funo mitolgica das notcias . . . . . . . . . . . . . . . . 552.5 A notcia como narrativa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 572.6 Jornalismo: entre saber cognitivo e saber narrativo . . . . . . . 632.7 Anlise de contedo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 642.8 As notcias: abordagem semiolgica. Do signo ao discurso . . 692.9 As linguagens do Webjornalismo: um novo corpo de anlise

    com novos desafios tericos e metodolgicos . . . . . . . . . 71

    3 A produo social das notcias 793.1 As variveis condicionantes da aco noticiosa . . . . . . . . 79

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    3.2 Factores relacionados com a aco pessoal: do gatekeeper cognio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81

    3.3 O factor organizacional . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 843.4 O newsmaking e as rotinas jornalsticas . . . . . . . . . . . . 87

    3.4.1 As tipificaes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 903.4.2 Riscos das rotinas e tipificaes . . . . . . . . . . . . 92

    3.5 As relaes com as fontes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 933.5.1 Profissionalizao das fontes . . . . . . . . . . . . . . 99

    3.6 Factores de natureza econmica . . . . . . . . . . . . . . . . 1003.7 Factores polticos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1043.8 Factores de natureza cultural . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1093.9 As teorias das notcias: uma sntese . . . . . . . . . . . . . . 110

    3.9.1 A produo social de notcias online: notas para umapesquisa futura . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 116

    4 O Profissionalismo Jornalstico 1334.1 A problemtica do profissionalismo jornalstico . . . . . . . . 1334.2 O estudo do jornalismo e a sociologia das profisses . . . . . . 1344.3 O jornalismo como comunidade interpretativa,

    campo ou sistema . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1364.4 Os valores jornalsticos e a norma da objectividade . . . . . . 139

    4.4.1 A Controvrsia da objectividade . . . . . . . . . . . . 1434.5 Os saberes comuns . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1474.6 Os critrios de noticiabilidade . . . . . . . . . . . . . . . . . 149

    4.6.1 Valores-notcia (2): tipologia de Ericson, Baranek, eChan, Mauro Wolf e Nelson Traquina . . . . . . . . . 151

    4.7 Novos problemas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 154

    5 Os Efeitos das notcias 1615.1 A importncia da Teoria dos Efeitos . . . . . . . . . . . . . . 1615.2 Abordagens clssicas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 163

    5.2.1 Teoria Crtica e cultura de massa . . . . . . . . . . . . 1645.2.2 Os estudos culturais . . . . . . . . . . . . . . . . . . 167

    5.3 A presena das teorias funcionalistas na mass communicationresearch . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1725.3.1 O Funcionalismo e os media . . . . . . . . . . . . . . 172

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    5.4 A eficcia dos efeitos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1735.4.1 Os efeitos totais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1735.4.2 Os efeitos limitados: Lazarsfeld e a emergncia do

    paradigma dominante . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1755.4.3 Os efeitos verificados: activao, reforo e converso . 1775.4.4 Os usos e gratificaes . . . . . . . . . . . . . . . . . 1805.4.5 Crtica do paradigma dominante e emergncia de no-

    vas tendncias da pesquisa . . . . . . . . . . . . . . . 1825.4.6 A evoluo da Pesquisa . . . . . . . . . . . . . . . . . 184

    Bibliografia 205

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    Introduo

    A disciplina de Teoria da Notcia no contexto dos cursosde Cincias da Comunicao

    Hoje, o jornalismo encontra-se em crise no sentido abrangente do termo: acrise pode ser entendida como dfice de legitimidade de um determinadocampo de especializao, mas tambm pode ser olhada como tempo de mu-dana e de reconfigurao de muitos dos seus padres estilsticos, discursivose organizacionais.

    Este Manual no pode ser imune a este contexto, at porque ele se tornaum elemento que estrutura muita da reflexo actualmente produzida. A Teoriada Notcia no pode alhear-se do ambiente em que os estudos sobre jornalismoevoluem tal a dimenso e natureza das interrogaes que se avolumam suavolta.

    A reflexo sobre o jornalismo conheceu nos finais de anos 70 e nos princ-pios dos anos 80, em Portugal, um primeiro passo no sentido da sua expansoe desenvolvimento. Este resultou da especial ateno que nesse perodo foiconferida por parte das Universidades ao fenmeno da comunicao.

    Neste contexto, sob a natural influncia de vrios contributos epistemo-lgicos, originou-se um laboratrio conceptual em que era ntida a neces-sidade de tactear percursos, processo este em que a democratizao do en-sino superior, o apelo terico que o fenmeno comunicacional despertava e oaparecimento de novas universidades claramente facilitavam. Isto , as con-dies institucionais e cientficas convergiram no sentido da formao de ummodelo novo, embora fortemente devedor de continentes epistemolgicos pr--existentes.

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    Numa fase posterior, comeam a emergir hoje algumas tendncias queapontam para a estabilizao de objectos de pesquisa na qual confluem, semrupturas dramticas, muitas das reflexes tericas ensaiadas no perodo an-terior. Este fenmeno de crescimento e implantao de estudos direcciona-dos para o jornalismo fez-se sentir no aparecimento de imprensa universitriae especializada, na formao de grupos de trabalho nas sociedades cientfi-cas nacionais e internacionais, na realizao de congressos e de reunies, nonmero de teses de Doutoramento e dissertaes de Mestrado, no apareci-mento de projectos de investigao nesta rea e, finalmente, no aparecimentode Cursos de 2 Ciclo especificamente dirigidos para o jornalismo.Decorremdestes contributos um surto editorial e uma ambio de pesquisa bastanteevidente ao nvel da produo cientfica, em reas como a histria do jor-nalismo, a representao de identidades, o profissionalismo jornalstico, o jor-nalismo como discurso, o jornalismo online ou webjornalismo1 e a anlisedas interfaces entre jornalismo e poltica (McNair, 2006). Mais recentemente,acompanhando um conjunto de alteraes no sistema comunicativo que adi-ante analisaremos, surgiram uma srie de novas reflexes respeitantes justa-mente s mutaes conhecidas no campo jornalstico. Destacam-se aqui asreflexes sobre o Jornalismo Cvico e sobre o chamado Jornalismo do Cida-do, as quais, em vertentes dspares, se interrogaram sobre a funo e a missodos jornalistas propondo mudanas substanciais em relao sua apreciao(Anderson, Dardenne e Killenberg, 1994; Charity, 1995; Rosen 1996; Black,1997; Eksterowicz e Roberts, 2000; Friedland, 2003, Gillmor, 2004; Hass,2007). A estes novos percursos de investigao somaram-se numerosas an-lises sobre o impacto das tecnologias na produo noticiosa. Estas anlisesdebruam-se, por sua vez, sobre as alteraes textuais e discursivas, as mu-danas organizacionais e a transformao das formas de relacionamento comas audincias ocorridas sob o impacto das novas tecnologias (Hall, 2000; DizNoci, 2001; Ward, 2002; Bruns, 2003; Diz Noci e Salaverria, 2003; Bocz-kowski, 2005; Filak e Quinn, 2005; McAdams, 2005; Salaverria, 2005; Allan,2006; Kolodzy, 2006; Friend e Singer, 2007; Canavilhas, 2008; Briggs, 2009).Decorreram daqui um conjunto de pesquisas que se repercutem no estudo do

    1Ambos os termos parecem ter aceitao na literatura, embora parea que o termo webjor-nalismo deva ser usado preferencialmente para um jornalismo que adoptou um discurso espe-cfico para a sua adaptao e integrao no universo digital, no se limitando transposio ecolocao de material pr-existente.

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    jornalismo. Tratam-se de alteraes de natureza cientfica e acadmica quemarcam os estudos jornalsticos. A estas alteraes tericas h a adicionar al-teraes sociais, alteraes no sistema poltico e alteraes de diversa ordemno sistema comunicativo.

    Ao lado das alteraes verificadas na reflexo desenvolvida no campo aca-dmico, h, com efeito, que recensear, ainda, um conjunto de alteraes soci-ais que, directa ou indirectamente, se repercutem nas condies de funciona-mento do campo jornalstico. Veja-se, a propsito, a mudana das fronteirastradicionais que delimitam o pblico do privado (com consequncias decisivaspara a apario de novos critrios de noticiabilidade ou valores-notcia) eo aumento do pluralismo e da fragmentao que se continua a verificar e at aaprofundar nas sociedades complexas as quais confrontam o jornalismo coma diversificao dos seus pblicos e audincias.

    Simultaneamente, tambm as interfaces entre a vida cvica e o campo jor-nalstico nunca conheceram um escrutnio to intenso. Hoje, constantementese invoca a legitimidade de decises em nome do apoio da opinio pblica edo consentimento dos governados. Essa legitimidade passa pelo desempenhode um conjunto de funes atribudas imprensa constantemente citadas, no-meadamente o controlo e a vigia sobre o ambiente sociopoltico, de modo adivulgar desenvolvimentos que se repercutam, positiva ou negativamente, so-bre o bem-estar dos cidados (Blumer e Gurevitch, 1995, pp. 97-98). O papelde watchdog baseado num ponto de vista que funda a relao entre polticose jornalistas num conflito de interesses e de legitimidades constantementerealado (Blumer e Gurevith, 1995, p. 27). Ao mesmo tempo, verifica-seuma cultura envolvente em que o incumprimento desse papel de vigilnciapor parte da imprensa denunciado.

    Simultaneamente, os discursos polticos necessitam de serem reproduzi-dos pelos media para obterem visibilidade, o que conduz a uma adequaocrescente s necessidades organizacionais s estratgias discursivas e narra-tivas dos mass media. Assim, a cientifizao da poltica implica o recursoa toda uma srie de agentes de comunicao com um especial conhecimentodas lgicas do campo jornalstico que insistentemente procuram utilizar emseu favor: o caso dos spin-doctors (Serrano, 2010, pp. 92-93). Este fen-meno insere-se num movimento mais geral de profissionalizao das fontes,que veio tornar mais complexos os processos sociais de recolha e seleco

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    (newsgathering e gakeeping) das notcias e, por conseguinte, os processos deconstruo da prpria realidade social (Pinto, 2000, p. 282).

    Neste ambiente de mutaes aceleradas, uma palavra deve ser dada sprofundas modificaes que se do no sistema comunicativo como um todo,as quais produzem inevitveis repercusses no jornalismo:

    A) Constata-se uma mutao acelerada e de contornos difceis de preverdas condies empresariais em que se desenvolve o mercado dos massmedia. Nos nossos dias, esta tendncia inclui globalmente a consti-tuio de grupos multimdia, nos quais as empresas procedem a inves-timentos simultneos na televiso, rdio, imprensa, internet, telemveise meios digitais em geral. A concentrao da propriedade dos mediapode induzir ameaas significativas ao pluralismo jornalstico e impor--se como um constrangimento diversidade e como uma compulsopara a uniformizao e reduo de contedos, alm de gerar fenmenosde auto-censura que produzem uma maior sujeio s directrizes ex-clusivamente empresariais em detrimento de opes editoriais (Sousa,2004, p. 2).

    As novas alteraes estruturais da indstria meditica conduziram aoaumento do custo de produo, devido necessidade de reconversotecnolgica, de grandes investimentos na rea do marketing, promo-o e publicidade, da segmentao da oferta e da instaurao de umaconcorrncia feroz (Correia, 1997, p. 70). Verificam-se, na rea da in-formao, necessidades crescentes de integrao multimdia em outrossectores das indstrias culturais para potenciar as possibilidades de pro-moo recproca e induzir retornos rpidos do investimento. Estas alte-raes traduziram-se numa orientao dirigida para a luta pelas audin-cias com o aumento das soft news, na reduo significativa de custose na concentrao de um nmero maior de tarefas num nmero menorde trabalhadores. A questo que se levanta na integrao em grandescadeias e conglomerados tem a ver com o efeito que a necessidade deretorno de investimento tem sobre o jornalismo praticado.

    B) Adicionalmente, observa-se a migrao de uma parte significativa de di-versas formas de comunicao pblica para os novos meios digitais, aomesmo tempo que se concretiza o aparecimento, algumas vezes expe-

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    rimental, outras vezes j consolidado, de novas formas de jornalismo.Assiste-se, assim, consolidao do webjornalismo e apario, porinfluncia das novas tecnologias, de actividades designadas por pa-rajornalsticas de que so exemplos os blogues, o jornalismo hiper-local ou o jornalismo do cidado ou participativo (Schudson, 2003).O recente protagonismo do site da organizao Wikileaks (http://wikileaks.org/) mostra como os media tradicionais no tm, demodo algum, o monoplio da circulao da informao no espao p-blico. Tambm a adeso de meios clssicos ao jornalismo hiper-localest-se transformar numa interpelante forma de reflectir sobre a natu-reza e evoluo do jornalismo, no que respeita a questes to impor-tantes como a misso, funes, estatuto dos profissionais e formato edistribuio dos enunciados.

    Consolida-se a segmentao de alguns media clssicos com a demo-cratizao do cabo e do satlite, a fragmentao do mercado com o payper view television e a alterao radical que se adivinha das plataformastradicionais de distribuio dos contedos.

    Simultaneamente, assiste-se previsvel modificao ou transformaode alguns formatos estabelecidos. Neste momento, fala-se bastante deconvergncia e aprofundam-se as possibilidades de as narrativas jorna-lsticas atravessarem cada vez mais um conjunto de media diversifica-dos com a televiso, a imprensa, a rdio, a internet e os telemveis ainteragirem entre si.

    Consequentemente, assiste-se multiplicao de novas plataformas e deformatos que influem decisivamente nas condies de exerccio da pro-fisso jornalstica, tocando, inclusive, elementos tidos por adquiridos dasua identidade profissional, ideolgica e discursiva. Para os prximosanos, h a previso de uma convergncia cada vez maior dos serviosde media e telecomunicaes e essas mudanas, alm de permitiremnovas formas de participao cvica e democrtica, tambm acarretamdesafios de regulao como sejam os que resultam da difuso de con-tedos nocivos e ilegais ou do acentuar da desigualdade no acesso informao.

    C) Quando se fala de uma crise de legitimidade do jornalista tradicional

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    h a assinalar, tambm, a multiplicao mecanismos de interveno quepugnam pelo cumprimento dessas funes: observatrios, onbudsman eoutras organizaes de vocao cvica. A acountabillity e a responsabi-lidade social dos media so conceitos que impulsionam um movimentode criticismo meditico (media criticism) e a multiplicao de experin-cias de media watching que dinamizam em simultneo funes de alfa-betizao meditica e de aperfeioamento da actividade jornalstica. Hvrios sistemas que contribuem para concretizao desses objectivos:

    1 Assim, podemos ter sistemas que partem de iniciativas internass instituies de comunicao: conselhos de tica, conselhos deredaco, espaos destinados correco de erros e cdigos detica entre outros.

    2 Outras iniciativas partem de instituies externas s instituiesde comunicao: a existncia de media alternativos, pesquisas deopinio, observatrios de imprensa e organizaes no governa-mentais direccionadas para a qualidade dos media, campanhas deliteracia e alfabetizao meditica, websites de discusso dos me-dia, movimentos de cidados e agncia de reguladoras indepen-dente. No caso portugus, a regulao assegurada, em larga me-dida pela Entidade Reguladora de Comunicao (ERC) que pre-tende assegurar nas instituies o respeito pelos direitos e deveresconstitucionalmente consagrados como a liberdade de imprensa,o direito informao, a independncia face aos poderes polticoe econmico e o confronto das diversas correntes de opinio.

    3 Verifica-se, ainda, a existncia de formas cooperativas: carta aoeditor, associaes de leitores e espectadores, espaos de opinioe comentrio online, provedor, consultas aos leitores, painis deutilizadores, projecto de pesquisa das universidades que envolvemjornalistas, leitores e acadmicos, entre outros2.

    D) Ao mesmo tempo, dentro sistema comunicativo, sente-se o fluir demltiplas correntes que contribuem para um crescente dfice de legi-timidade do jornalismo clssico.

    2cf. Paulino, 2007, 97

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    Por um lado, essas correntes decorrem de uma relativizao do papel dojornalista face influncia da tecnologia. A digitalizao do sector solicitaaos estudiosos do jornalismo e aos jornalistas um especial cuidado: uma certaperspectiva tecnocntrica tem servido para justificar a subordinao da for-mao jornalstica s transformaes tecnolgicas. Esta perspectiva traduz-senum centramento cada vez mais insistente na aquisio de competncias per-formativas em detrimento de competncias reflexivas. Esta nfase nas com-petncias performativas segue, muitas vezes, um percurso unilateral e redutorque, no caso do jornalismo, se pode reflectir num conceito de formao quese reduz aprendizagem do uso de ferramentas para produzir contedos.

    Este fenmeno de crise de legitimidade dos jornalistas est patente naspropostas que procuram atribuir produo noticiosa o carcter de um di-reito generalizvel a toda a cidadania. Um dos problemas que urge ter emconta a possibilidade de estas transformaes gerarem movimentos de des-profissionalizao do exerccio do jornalismo. O conceito de desprofissio-nalizao inclui um conjunto de factores: a evoluo tecnolgica que tornamais acessvel e difundido o exerccio das competncias profissionais j noapenas aos iniciados mas tambm aos leigos; a revalorizao progressiva dossaberes empricos, susceptveis de serem aprendidos por pessoas sem forma-o acadmica; a crtica crescente, por parte dos consumidores ao elitismoe impunidade de muitos profissionais e as reivindicaes progressivas dospblicos no sentido de uma maior participao nas decises dos prprios pro-fissionais (Fidalgo, 2008, p. 53).

    Neste sentido, uma das propostas de reforma do jornalismo que recente-mente tem adquirido adeptos o Jornalismo do Cidado, por exemplo ou, deuma forma geral, os movimentos de jornalismo colaborativo que apreendemo esprito wiky pode ser a expresso prtica e intelectual de tendnciasque reforam esta desprofissionalizao ao insistir numa espcie de dicotomiaentre os jornalistas e o publico como se esta fosse um confronto entre os cida-dos sensibilizados para a comunicao livre e sem restries e os jornalistasenquanto adversrios ou obstculos a essa liberdade (Moretzsohn, 2007, p.264). Sem dvida que o Jornalismo do Cidado ou participativo pode suscitarmuitas dvidas legtimas no que respeita s suas motivaes e qualidade,verificabilidade e fiabilidade do seu produto, mas um interpelante poderososobre o futuro do jornalismo e dos jornalistas.

    Em concluso, a disciplina de Teoria da Notcia deve tornar-se, tambm

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    ela, um diagnstico dos processos de mudana. Sem esquecer os conceitosbsicos, ela deve contribuir para uma pesquisa de nvel cientfico sobre astransformaes referidas. Neste sentido, pugna-se pela conciliao entre atransmisso dos saberes estabelecidos e a abertura aos problemas novos.

    O percurso de investigao pessoal

    Esta pesquisa insere-se num conjunto mais vasto de preocupaes do autor.No Mestrado, realizado em 1997 e publicado em livro com o ttulo Jorna-lismo e Espao Pblico, a reflexo ento produzida passou pela descriodo modo como a imprensa opinativa presente no espao pblico burgus deulugar ao jornalismo industrial da sociedade de massa, com o consequente apa-recimento de caractersticas radicalmente diferentes: gneros jornalsticos no-vos (nomeadamente, a notcia em sentido cannico), direccionamento destesgneros para novos pblicos (os pblicos menos letrados das grandes cidadesno lugar das elites iluminadas constitudas pelos publicistas e seus partid-rios), aparecimento de novas tcnicas de redaco (nomeadamente, a emer-gncia da pirmide invertida e de uma forma particular de escrita conhecidapelo estilo jornalstico), a comercializao das mensagens como mercado-rias, a introduo de novos temas em que a doutrinao poltico-partidria deulugar despolitizao dos contedo e ao aparecimento das notcias de rostohumano centradas no crime, na vida social, nas actividades ldicas e de lazere, finalmente, a introduo de novos conceitos estruturantes de uma culturaprofissional emergente como seja o conceito central de objectividade jorna-lstica. Foi observada a importncia da imprensa regional e a possibilidadede esta contribuir para uma discusso colectiva dos assuntos pblicos que con-tribusse para a eventual estruturao do espao pblico regional.

    Na tese de Doutoramento apresentada em 2001 na Universidade da BeiraInterior, intitulada Comunicao e Cidadania referiu-se ento:

    no interior do prprio processo de produo noticiosa, incluin-do as respectivas rotinas, normas orientadoras e prticas discursi-vas que advm uma certa forma de abordar a realidade social. Ojornalismo, desta forma, ao pretender dizer como o mundo , con-tribui para conformar o mundo social que diz limitar-se a relatar.

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    [O discurso jornalstico] surge-nos como uma prtica institucio-nal relacionada com uma certa configurao de sentido, pelo queconstitui atitude ingnua analisar as notcias como espelho da re-alidade e no enquanto configuraes narrativas, dotadas de umaintriga que confere inteligibilidade e unidade a acontecimentosdesligados entre si de acordo com a viso que prevalece na narra-o do quotidiano. (Correia, 2004-b, p. 35)

    Ao longo deste trabalho, fixaram-se algumas das preocupaes que viriama ser desenvolvidas em trabalhos posteriores. Referimo-nos, nomeadamente,ao papel do jornalismo na construo social da realidade, a capacidade deagendamento dos meios jornalsticos e o conceito de relevncia, a especifici-dade do discurso jornalstico e a sua relao com as formas de conhecimentoprprias do senso comum e da atitude natural, a dimenso narrativa do jorna-lismo, a anlise crtica do conceito de objectividade jornalstica, a orientaodo discurso para acontecimentos facilmente personalizveis, a problemticados efeitos e da recepo das mensagens jornalsticas (Correia, 2004-b, pp.184 189; 193-195; 206-207; 207-218). Quer o Mestrado e o Doutoramentoquer os livros que deles decorreram eram testemunhos de duas preocupaesque se acentuaram: a) a natureza das transformaes efectuadas no discursojornalstico, nomeadamente a importncia conferida s tipificaes e da im-portncia que as mesmas tinham para a noo de enquadramento (frame); b)as suas consequncias na representao dos fenmenos polticos e o conse-quente impacto deste discurso na vida cvica.

    Aps a realizao do Doutoramento, iniciou-se um percurso que passoupelo aprofundamento das questes associadas ao discurso jornalstico. A pri-meira fase passou por uma longa investigao em torno da Fenomenologiada Sociedade em que se procurou aprofundar a influncia que essa teoria ti-nha na reflexo sobre a notcia: essa influncia comeava nos trabalhos deAlfred Schutz (1967, 1975, 1976 1975-b, 1995), tinha conquistado uma vi-sibilidade notvel nas Cincias Sociais e Humanas com Peter Berger e Tho-mas Luckmann (1973), conhecera um significativo impacto na Sociologia daComunicao com Erving Goffman (1986) e, finalmente, produzira o seu im-pacto mais relevante na Teoria da Notcia atravs de David Atheyde (1976,1985), de Gaye Tuchman (1978) e de Eric Saperas (1993), mantendo umainfluncia indirecta nos trabalhos de Jane Singer (2001, 1998) e de David Do-

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    mingo (2006). Este percurso passou pela publicao em 2000 de um textona Revista Comunicao e Linguagens intitulado O Poder do Jornalismo e amediatizao do espao pblico. O texto abordava nomeadamente, o papeldesempenhado pelas construes pr-tericas do senso comum e pelas tipi-ficaes, termos cunhados pelo fenomenlogo Alfred Schutz, na construosocial da realidade pelos jornalistas.

    No ano de 2002, num texto publicado na obra Comunicao e Poder, edi-tada pela UBI nesse ano, analisou-se a importncia dos conceitos de relevn-cia e tipificao ao nvel da anlise dos efeitos dos media. Em Para umateoria da comunicao: Schutz, Luhmann e a construo social da reali-dade (2004, p. 30), publicado na obra colectiva Teorias da Comunicao,a tentativa de aplicar a Fenomenologia da Sociedade ao campo da Teoria daNotcia foi objecto de um tratamento mais explcito:

    Um dos registos em que possvel descrever as relaes entre osaber e o poder (. . . ) aquele que enfatiza o jornalismo comoconstruo social da realidade. Descortina-se na linguagem jor-nalstica a conformidade com o senso comum, com o saber parti-lhado por todos, tido por adquirido e socialmente aceite, fazendo-se um paralelo entre as atitudes imanentes discursividade prati-cada pela profisso jornalstica e a atitude natural.

    Em 2005 e 2006, os desenvolvimentos efectuados neste campo de investi-gao deram origem a vrios textos apresentados no Brasil, atravs de um tra-balho aplicado ao Jornalismo Televisivo levado a efeito no mbito do Grupode Trabalho de Telejornalismo em conjunto com Professores da UniversidadeFederal de Pernambuco, posteriormente publicados em livro (Correia, 2006;Correia e Vizeu, 2008). Neste sentido, a convergncia do jornalismo com osenso comum e a importncia conferida ao conceito de tipificao originoualguns estudos de caso em torno de representaes telejornalsticas de identi-dades.

    Em 2007-2008, sentiu-se a necessidade de procurar um estudo mais sis-temtico do discurso jornalstico. Este estudo teve lugar no decurso da in-vestigao levada a efeito nos Departamentos de Periodismo y de Comunica-cin Audiovisual e de Traduccin y Filologa da Universidade Pompeu Fabra,procurando-se explorar alguns contributos da Anlise do Discurso ao campo

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    da notcia. Da resultou o livro Teoria e Crtica do Discurso Jornalstico:sobre Jornalismo e Representao Social, que foi publicado em 2008. Estetexto aplica a anlise crtica do discurso ao discurso jornalstico, seguindo omodelo de estudos apresentado por Teun Van Dijk. Neste trabalho procura-sedesenvolver uma articulao com os estudos de frame, neste caso aplicadostambm ao discurso jornalstico, seguindo as intuies da autora americanaGaye Tuchman, mais uma vez com inspirao sociofenomenolgica.

    Alis, este percurso esteve, finalmente, na origem da lio de Agregaona Universidade da Beira Interior a qual incidiu precisamente sobre o temaO Jornalismo e a Construo do Real: elementos para uma abordagem sci-ofenomengica da Teoria da Notcia. Nessa lio (2009- b), a preocupaofundamental apresentada foi a seguinte:

    Tendo em conta que o jornalismo lida com o imprevisto comocritrio de noticiabilidade (newsworthiness) pelo que o aconte-cimento , por definio, tanto mais digno de relato quanto maiselevada a sua imprevisibilidade, como que os jornalistas ins-tauram ordem e significado num universo em constante mudana,em que a circunstncia da emergncia do que novo, contingentee aleatrio, uma possibilidade omnipresente? A pergunta re-mete, em ltima instncia, para um problema determinante daTeoria da Notcia: como que o jornalismo constri a realidadesocial?

    A resposta pergunta procurava, em larga medida, ser dada, mais umavez, atravs do aprofundamento do conceito de enquadramento e de tipifica-o.

    Presentemente, as preocupaes que se desenvolvem dizem respeito ar-ticulao entre as questes da representao jornalstica e a chamada delibe-rao pblica. Ser que o modo de dizer e de proceder prprio do jornalismo compatvel com o aprofundamento dos processos de deliberao democr-tica e com a representao da diversidade de vozes existentes? Esta questoserve de linha orientadora algumas investigaes recentes sobre o jornalismo,efectuadas, nomeadamente, no mbito da coordenao de projectos de Inves-tigao.

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    Conceitos fundamentais

    1.1 As funes do jornalismo nas sociedades contem-porneas

    Qual o papel do jornalismo na sociedade contempornea? Na anlise damodernidade, atribui-se uma importncia crescente ao desenvolvimento dosmedia, designadamente quanto sua funo noticiosa ou informativa.

    De um modo relativamente genrico podemos dizer que o jornalismo de-sempenha uma tarefa fundamental no estabelecimento da agenda, formandoa opinio pblica, impulsionando a formao de conhecimentos, reduzindoa complexidade social atravs da criao de temas comuns de conversao(Fontecuberta, 1993, pp. 35-36).

    Todavia, a misso do jornalismo varia em funo de diferentes teorias.Podemos aplicar ao jornalismo uma tipologia semelhante desenvolvida porDenis McQuail (2003, pp. 7-9) quanto s teorias da Comunicao de Massa.

    Segundo este autor podemos considerar a existncia de quatro tipos deteoria:

    1. Teorias cientfico-sociais Estas seriam uma afirmao geral sobre anatureza, trabalhos e efeitos do jornalismo, baseadas nas observaessistemticas e objectivas dos jornais e de outros factores relevantes. Oexemplo acima referido da caracterizao da funo do jornalismo em-preendida por Fontecuberta corresponde a este tipo de teoria. Todavia, a

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    diversidade das teorias cientficas sociais autoriza a dizer que encontra-ramos uma pluralidade de funes atribudas ao jornalismo em funodas vrias teorias disponveis. Por exemplo, na perspectiva do mar-xismo clssico, os jornais so propriedade da classe burguesa, agem nointeresse desta classe, promovem uma falsa conscincia da classe tra-balhadora e dificultam a produo de informao alternativa aquela que fornecida pelos grupo sociais (classes) dominantes. J numa pers-pectiva funcionalista, que d nfase ao equilbrio e coeso sociais,as funes dos jornais esto relacionadas com a) a busca da integra-o e cooperao; b) a manuteno da ordem, controlo e estabilidade;c) adaptao mudana; d) mobilizao em torno de objectivos soci-ais comuns; e) gesto da tenso e f) continuidade da cultura e valores(McQuail, 2003, p. 81; p. 83)

    2. Teorias normativas Este segundo tipo de teoria preocupar-se-ia emdeterminar ou prescrever como que os jornais devem actuar para quecertos valores sociais sejam respeitados ou atingidos (McQuail, 2003,p. 8). Um exemplo tpico de teoria normativa consiste naquela que formulado por alguns estudiosos e seguidores do jornalismo pblicosegundo a qual a primeira tarefa do jornalismo estimular o dilogocolectivo sobre assuntos que sejam objecto de uma preocupao comumno que diz respeito a um pblico democrtico (Pauly, 1994, p. xx).

    3. Um terceiro tipo de conhecimento diria respeito s teorias operacionaisque refere sobretudo s ideias prticas reunidas e aplicadas pelos pro-fissionais no desempenho do seu trabalho. Tais ideias ajudam a selec-cionar notcias, a relacionar-se com as fontes e a agradar s audincias.McQuail considera que este conhecimento merece o nome de teoria,porque padronizado e influente no que respeita ao comportamento.

    4. Por fim, admite-se a existncia de uma teoria do senso comum, baseadana experincia quotidiana com o jornalismo. Permite-nos compreendercomo que, por exemplo, um meio interage com o nosso dia-a-dia.

    No se pretende discutir o conceito de teoria aqui reproduzido, nem dis-cutir as dificuldades que esta tipologia apresenta. Para uma teoria social cr-tica, a diferena entre a teoria cientfica e a teoria normativa no evidente,

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    j que uma teoria cientfica social de natureza crtica pode incluir elementosnormativos. Todavia, considerando-se estar a trabalhar com uma espcie detipologia ideal, dir-se- que o que se encontra mais frequentemente na Teoriada Notcia sero os dois primeiros tipos de teoria apresentados por McQuail:teoria cientfica social e teoria normativa. Em volta de numerosos temas, veri-ficaremos que a funo ou funes do jornalismo variam consoante as teoriasapresentadas.

    1.2 A importncia dos estudos jornalsticos

    O estudo do jornalismo tornou-se uma empresa comum a acadmicos de todoo mundo, graas percepo de que as notcias (no sentido lato de enunciadosjornalsticos) ajudam a configurar o modo como nos vemos a ns prprios, aosoutros e ao mundo:

    A histria da pesquisa em comunicao to antiga quanto a cu-riosidade humana sobre as relaes sociais e a compreenso deque a linguagem e a comunidade so definidas pela linguagem. possvel identificar os interesses ocidentais na comunicao e namdia, em especial, com a propagao da imprensa, com a insti-tuio do jornal e com a ascenso do nacionalismo. Desse modo,o pensamento europeu sobre a comunicao social e a imprensainicia-se j no sculo XVII, nos debates sobre a liberdade de ex-presso e a imprensa. (Hanno Ardt, 2006, p. 17)1

    em larga medida graas ao trabalho noticioso que podemos falar emrealidades partilhadas e na existncia de comunidades imaginrias, tornadaspossveis atravs de significados partilhados. Atravs da prtica diria e deconsumo e discusso das prticas jornalsticas construmo-nos como sujeitosinseridos em contextos nacionais, locais e, cada vez mais, globais. No querespeita vida cvica, o jornalismo torna possvel a conversao entre os ci-dados e entre estes e os seus representantes, com vista realizao de algunsdos ideais democrticos modernos (Park, 2009; Anderson, 1983; Carey, 1989;Zelizer, 2004, p. 2; Wahl-Jorgensen e Hanitzsch 2009, p. 3).

    1Foi mantido a distino entre a grafia do portugus do Brasil e de Portugal.

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    No contexto das actuais democracias, os jornalistas intervm decidida-mente na configurao do agir poltico, propondo e impondo uma agenda dequestes, sobre as quais decorrem no poucos dos debates e das controvrsiaspoliticamente relevantes. No possvel esquecer o papel dos media informa-tivos na atraco da visibilidade sobre determinados temas, na definio e nofechamento da agenda de temas que polarizam a ateno dos receptores, noenquadramento dos temas de molde a confinar os limites dentro dos quais sedefinem as controvrsias consideradas legtimas, na disseminao dos debatesque permitem a natureza conversacional das sociedades democrticas.

    1.2.1 Algumas etapas dos estudos jornalsticos

    Wahl Jorgensen e Thomas Hanitzsch (2009, p. 5) consideram a existnciade quatro fases nos estudos jornalsticos.

    A primeira fase seria constituda por abordagens predominantemente nor-mativas que tm entre os autores alemes alguns dos seus representantes maissignificativos. Existe hoje um relativo consenso de que a pr-histria dos es-tudos jornalsticos teve a sua origem na Alemanha do Sculo XIX. Esta ideia partilhada por autores como James Carey (2002), Hanno Hardt (2002; 2006)e Lffelholz (2008).

    Assim, pode-se identificar uma pr-histria dos estudos jornalsticos quepode ser encontrada nos tericos sociais alemes, nomeadamente no trabalhode Karl Marx, Albert Schfle, Karl Knies, Karl Bucher, Ferdinand Tnnies eMax Weber (Hardt, 2002, p. 15).

    No que respeita aos estudos germnicos sobre jornalismo Hardt (2006,p. 19) enfatiza, em especial, o papel de Tnnies, Weber e Otto Groth comorepresentantes do interesse das cincias sociais numa cincia da imprensa emascenso constituda como rea de estudo independente (Zeitungwissnchaft).

    No que respeita a Max Weber, Murilo Kushik (2006, pp. 23-33) consideraque, na sua ptica, o fenmeno da imprensa deve ser entendido no mbito daconfigurao da empresa capitalista, acompanhando o crescimento do jorna-lismo como uma actividade comercial regida pela aco racional com relaoa fins. Simultaneamente, considera que os jornalistas escrevem ancorados porvalores e ideologias polticas, pelo que no seriam imunes ao mbito da acoracional valorativa e ao questionamento tico-moral. O prprio Weber (2006,

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    p. 38) no seu discurso efectuado no I Congresso da Sociedade Alem deSociologia coloca algumas questes que considera fundamentais:

    O que significa o desenvolvimento capitalista no interior da pr-pria imprensa para a posio sociolgica da imprensa em geral,para o papel que desempenha na formao da opinio pblica?

    E mais adiante, Weber (2006, p. 43) questiona-se:

    O que a Imprensa traz para a conformao do homem moderno?(. . . ) Que influncias exerce sobre os elementos culturais ob-jectivos supraindividuais? Que deslocamentos se produzem comeles? O que destri e o que novamente criado no mbito da f edas esperanas colectivas, da sensao de viver (Lebensgefhl) como se diz hoje em dia , que possveis atitudes so destrudaspara sempre, que novas atitudes so criadas?

    Esta segunda questo abrange uma srie de interpelaes de Weber sobrevrios temas entre os quais acerca da influncia da imprensa sobre a leitura.

    Quanto a Tnnies, o seu trabalho mais citado para o mbito dos estudosjornalsticos Kritik der offentlichen Meinung (Crtica da Opinio Pblica).Segundo Tnnies, a constituio da opinio do pblico influenciada pelacincia e pelas artes, elementos da vida mental que ele considera que passa-ram a ser mediados pela imprensa. Logo, a reforma e o futuro da opinio dopblico est associada reforma e ao futuro da imprensa o qual passa pelosseguintes elementos: a) fundao em todas as cidades de um jornal indepen-dente pelos homens mais escolarizados e educados; b) disponibilizao de umespao destinado aos partidos para publicitao dos seus eventos; c) indepen-dncia face aos anunciantes; d) publicao exclusiva de anncios de empresasfidedignas; e) acesso das vozes do povo ao jornal; f) excluso do sensacio-nalismo g) imparcialidade dos artigos principais; f) manuteno de uma redede correspondentes autnoma independente das agncias noticiosas conside-radas dependentes de interesses capitalistas e financeiros (Spichal, 2006, pp.57-58- 61; pp. 76-81).

    Em vrios trechos do seu livro, Kritik der offentlichen Meinung (2006;2006-b), Tnnies associa o aparecimento da escrita em geral e da imprensaem particular formao da sociedade por oposio comunidade (2006-b,

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    pp. 86-87), considera a Imprensa como o meio mais importante de fazer comque as pessoas sejam ouvidas, entendidas e respeitadas atravs da opiniopblica (2006-b, p. 100) e confere especial interesse ao papel da notcia nagerao das discusses pblicas (2006-b, p. 93). Simultaneamente, revela asua preocupao com a independncia do jornalismo (2006 b, p. 122) ecom a sua subordinao aos interesses comerciais dos anunciantes (2006-b, p.131).

    Um terceiro autor estudado Otto Groth, autor de Die Zeitung (O jornal),publicado em quatro volumes e de Die Geschichte der deuteschen Zeitungwis-senchaft (A Histria da Cincia Jornalstica Alemo), obra em sete volumes,dos quais o primeiro tinha o titulo de O Poder Cultural Impercebido2. Naobra, Groth prope-se desenhar os princpios de uma cincia jornalstica, dosquais a psicologia social, a sociologia e a cincia literria seriam auxiliares(Marenkhe, 2006, pp. 156-157; p. 159).

    Groth (2006, p. 189) afirma:

    Se quisermos uma cincia cultural prpria dos jornais e das revis-tas, precisamos perguntar primeiramente a partir da sua unidadeinterior e constatar os nossos problemas e conceitos de acordocom ela, mas no pesquisar, por exemplo, os contedos polticosou histricos ou os produtos literrios dos jornais e das revis-tas. Esses objectos j so perseguidos pelas outras cincias oupoderiam e deveriam ser perseguidos por elas, e para a cinciajornalstica, os resultados a serem assim obtidos s entram emcogitao secundariamente; neste sentido aquelas cincias serocincias auxiliares da cincia jornalstica autnoma e particular.A histria poltica constata os acontecimentos poltico-histricosacerca dos quais os jornais e as revistas tambm relatam e dosquais participam; a histria da literatura investiga, na perspec-tiva esttica que lhe prpria, os produtos literrios presentesnos jornais e nas revistas; a administrao de empresas se ocupadas formas empresariais gerais das quais tambm as editoras dejornais e de revistas tm de se servir; e a sociologia precisa depesquisar os fenmenos sociais em cujo surgimento e realizaotambm tem uma participao recproca, muitas vezes decisiva.

    2Ttulo da traduo brasileira.

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    Os resultados dessas cincias so, ento, avaliados para a cin-cia jornalstica (assim como esta tambm coloca seus resultados disposio de outras cincias, tornando-se sua indispensvel ci-ncia auxiliar). Mas, exclusivamente, a ideia, a essncia, anatureza da obra a igualdade de seu sentido, de seus ladospercebidos como essenciais, de suas propriedades e caracters-ticas constantes e da estrutura dessas unidades e o que estassociado a elas devem ser o essencial para a cincia jornals-tica, isto , devem ser o elemento importante que a fundamenta,e nessas coisas ela tem seu prprio objecto, seu prprio mtodo,e nelas se funda seu sistema. A pesquisa delas constitui a cinciada cultura: cincia jornalstica.3

    Nesta cincia, Groth desenha um verdadeiro programa de pesquisa:

    [a cincia jornalstica] no pergunta a respeito do contedo, doteor do jornal ou da revista, a respeito do aspecto qualitativodo contedo; no pergunta, principalmente, o que esse contedoconcreto quer dizer, se ele est de acordo com o que aconteceuefectivamente, que efeito teve sobre o acontecimento e coisas se-melhantes. No caso da matria de um jornal sobre o transcorrerde uma batalha, o pesquisador da cincia jornalstica no per-gunta que valor tem essa matria para o conhecimento dos dife-rentes factos da batalha, se ela acrescenta fatos novos aos j co-nhecidos ou obriga a revis-los essas so perguntas da pesquisahistrica , mas ele quer saber como a matria chega ao jornal,que tipo de pessoas devem ter participado directamente e indirec-tamente da sua publicao, que caminho a matria percorreu atchegar redaco do jornal, quanto tempo levou (Groth citadopor Marenkhe, 2006, p. 162).4

    Para alm da reflexo germnica sobre o jornalismo impossvel esquecero contributo da reflexo americana no perodo similar. Entre outros, podereferir-se quatro nomes essenciais: John Dewey, Walter Lippman, Robert Park

    3Manteve-se a grafia brasileira.4Manteve-se a grafia especfica do portugus do Brasil.

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    e Edward Ross. A obra de Robert Park inclui-se nos trabalhos da Escola deChicago constituda por pesquisadores que, entre os anos de 1915 e 1940, sededicaram uma investigao sociolgica sobre fenmenos caracteristicamenteurbanos e sobre as relaes interculturais emergentes no mbito da cidademoderna, nomeadamente as que decorrem do impacto da imprensa. RobertPark fundamentou grande parte do seu estudo sobre jornalismo na anlise dotipo de conhecimento que lhe prprio, baseando-se, para tal, na distino jformulada por William James entre conhecimento de familiaridade e co-nhecimento sobre.

    O conhecimento de familiaridade advm do uso e do costumee no de uma investigao formal e sistemtica. Nestas circuns-tncias, conseguimos conhecer as coisas no apenas atravs dossentidos, mas atravs da resposta do nosso organismo, como umtodo. Conhecemos as coisas, neste caso, como coisas a que es-tamos habituados, num mundo ao qual estamos ajustados (Park,2009, p. 38).

    Contrastando com este tipo de conhecimento, encontramos outro que Ja-mes designa por conhecimento sobre. Este um conhecimento formal,racional e sistemtico. (Park, 2009: 39). Estas duas formas de conhecimento,aos olhos de Park, no so rigidamente estanques e apresentam-se num cont-nuo onde todos os tipos de conhecimento tm o seu lugar. Neste contnuo, asnotcias tm o seu lugar prprio, afastando-se mais do conhecimento prpriodas cincias fsicas e aproximando-se mais da histria, na medida em que lidacom acontecimentos. Porm, distinguem-se tambm da histria porque lidam,em geral, com acontecimentos isolados, no procurando estabelecer relaescausais entre eles, apresentando-os sob a forma de incidentes independentes eno sob a forma de uma histria contnua (Park, 2009, pp. 41-42).

    Park estabelece uma relao entre a natureza do conhecimento jornalsticoe a formao da opinio pblica levantando uma hiptese que se contrapes concepes dos media como instrumento de manipulao do pblico. Anotcia s existe se atingir o interesse do pblico, relativizando o poder dosmeios de comunicao como promotores exclusivos da importncia dada aosacontecimentos: "a notcia deixa de ser notcia logo que a tenso suscitada de-saparece e assim que a ateno pblica tenha sido dirigida para outro aspecto

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    do meio, suficientemente novo ou excitante, capaz de captar a sua ateno(Park, 2009, p. 42). Esse interesse denominado por Park como uma espciede "tenso"que garante a permanncia ou no da notcia. Porm, esta rela-tivizao do poder manipulativo dos media no minimiza a sua capacidadede agendar os temas de controvrsia pblica: na base da interpretao deacontecimentos presentes, isto de notcias, que a opinio pblica se consti-tui (Park, 2009, p. 43). A notcia, como props Robert Park, tem para aqueleque a recebe um carcter eminentemente pragmtico. A notcia o materialque torna possvel a aco poltica, alm de desempenhar um papel muitoimportante na economia.

    As notcias aparecem sob a forma de pequenas comunicaes, in-dependentes entre si, que podem ser fcil e rapidamente compre-endidas. De facto, as notcias desempenham as mesmas funespara o pblico do que a percepo para o indivduo: o que querdizer que mais do que informar, orientam pblico, transmitindoem cada notcia e no conjunto das notcias o que se passa. Istoacontece sem qualquer esforo por parte dos jornalistas em inter-pretar os acontecimentos que relata, a no ser na medida em queos torna mais compreensveis e interessantes. (Park, 2009: 43)

    A funo das notcias orientar o mundo e o homem na sociedade actual.Se esta funo for cumprida, a sanidade dos indivduos e a permanncia dassociedades tende a ser preservada (Park, 2009: 49).

    Walter Lippmann foi um dos mais influentes intelectuais americanos dosculo XX, destacando-se como jornalista poltico, comentador influente econsultor de vrias administraes e tambm como um proeminente terico.Em Public Opinion (2004) Lippmann demonstra como as pessoas usam es-quemas cognitivos designados por esteretipos para formar as suas opinies: omundo demasiado complexo e necessrio conhecer mais pessoas mais ac-es, instituies e acontecimentos do que seria possvel abarcar com a nossaprpria experincia vivida Logo temos que recorrer a amostras e trat-lascomo tpicas (2004). A obra analisa como as pessoas constroem as suasrepresentaes da realidade social e de que forma essas representaes soafectadas tanto por factores internos como externos. Segundo Lippmann, taisrepresentaes que ele classifica como pictures inside the heads exer-cem uma funo de orientao, guiando o indivduo e ajudando-o a lidar com

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    a complexidade do ambiente externo. Simultaneamente, funcionam como bar-reiras ou defesas que ajudam o indivduo e o grupo a proteger os seus va-lores, os seus interesses, as suas ideologias, em suma, a sua posio numarede de relaes sociais. Trata-se de uma reflexo sobre os limites humanosno reconhecimento do ambiente exterior e no subsequente processamento deinformao. Nesse sentido, os esteretipos responderiam a uma economia deesforo na compreenso do ambiente, apesar de o autor reconhecer a naturezargida, generalizadora e exagerada destes esquemas cognitivos.

    complexidade crescente do mundo moderno soma-se a apatia das mas-sas no dotadas das competncias necessrias para participar directamente dasquestes do Estado e da formao do governo. A verdade acerca dos assuntosdistantes complexos no evidente em si prpria e as exigncias necessrias reunio e tratamento de informao so complexas e dispendiosas. Para seobviar a esta situao, apresenta-se um modelo realista democrtico base-ado na representao poltica e na competncia tcnica das elites, reservando-se Imprensa o papel de canal de comunicao entre as elites governantese o pblico. Em Public Opinion, diagnostica-se a importncia fundamentaldesempenhada pela imprensa, embora numa perspectiva crtica. Ao longo docaptulo IV, Lippman debrua-se sobre o tempo e ateno necessrios em cadadia para obterem a informao necessria sobre os assuntos pblicos. No ca-ptulo V analisam-se as limitaes da linguagem em geral e da linguagem jor-nalstica em particular para poder resumir, sumariar de uma forma adequada ecorrecta os assuntos do Estado. Na parte VII do livro intitulada The Newspa-pers, entre as limitaes da Imprensa refere-se a dependncia das audincias(ver em especial, todo o captulo XXI, The Buying People); a orientao dasrotinas jornalsticas para ngulos das questes que despertem o interesse dasmesmas audincias; a necessidade de espao e de tempo para um jornalistadesenvolver um ponto de vista menos convencional; a dependncia de con-venes e no de padres objectivos que orientam as escolhas do que serimpresso, aonde ser impresso, que espao e que nfase ser dada notcia.Deste diagnstico resulta a ideia segundo a qual as notcias no so a verdadee entre ambas tem que ser estabelecida uma distino clara (2004). Assim,enquanto a funo das notcias assinalar um acontecimento, a funo daverdade trazer luz os factos escondidos, relacion-los uns com os outros econstruir uma imagem da realidade que permita ao homem agir (2004).

    A exactido das notcias depende da preciso com que um acontecimento

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    possa ser registado. A no ser que o acontecimento seja de uma natureza quepossam ser medido, especificado, nomeado, qualquer relato jornalstico estsujeito aos acasos e preconceitos da observao. Verifica-se que apenas numapequena parte de todo o campo do interesse humano, o corpo da verdade edas notcias coincide. H apenas uma pequena parte de conhecimento exactoque no requer competncias ou formao especial para lidar com ele. O restofica discrio do jornalista. Logo, as notcias so encaradas como algo dedemasiado frgil para suportar o nus de serem o rgo de uma democraciaparticipada, uma tendncia que, aos seus olhos, era considerada impensvel.

    Nesse sentido, Lippmann propunha a formao de uma classe especia-lizada que seria composta por especialistas e servidores pblicos a quem com-petiria iludir o principal problema da democracia, o ideal impossvel do "cida-do omnicompetente": a fico intolervel e inoperacional de que cada umde ns tem de adquirir uma opinio competente acerca de todos os assuntospblicos (2004).

    John Dewey, outro importante pensador, respondeu a Lippmann com umarecenso crtica elogiosa onde considerava que o autor tocava nalguns dosproblemas mais importantes da teoria democrtica. Em The Public and itsProblems (1927/2004) reconhece as dificuldades de participao das pessoasno processo democrtico:

    O tamanho, a heterogeneidade e a mobilidade das populaes ur-banas, o imenso capital requerido e o carcter tcnico dos pro-blemas de engenharia que se colocam esgotam rapidamente adireco do votante mdio (. . . ) A ramificao dos temas faceao pblico to intricada, as questes tcnicas implicadas soto especializadas, os detalhes so to numerosos e variveis queo pblico no se pode identificar nem manter como tal durantemuito tempo. (Dewey, 2004, p. 131)

    Apesar deste diagnstico, Dewey considera que a democracia no deveser confinada ao esclarecimento de uma elite, e sublinha a importncia dadeliberao no processo de deciso poltica. Embora no ponha em causa apretenso de Lippman segundo a qual a pesquisa social e o planeamento depolticas possam ser levados a efeito por peritos, acrescenta que todos os fac-tos relevantes dessa pesquisa e das polticas propostas deve continuar a ser

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    um assunto pblico. No necessrio que a maioria tenha as competnciase o conhecimento para levar a efeito as investigaes no plano do social e dopoltico; o que requerido que a maioria seja capaz de julgar a aplicao dosconhecimentos detidos por outros em assuntos de interesse colectivo. A suaconcepo de publicidade (publicity) identifica-se com um processo de per-suaso, discusso, convico e intercmbio de ideias (Dewey, 2004, p. 30).A democracia funcionar, assim, apenas com base na revitalizao do espritocomunitrio e pblico, para a qual contribui de modo decisivo a existncia dacomunicao, a qual se afirma como ideia chave no no sentido unidireccio-nal de transmisso, mas antes no sentido de compartilhar, de tomar parte, departicipar num processo de intercmbio comum mtuo (Dewey, 2004, p. 15).

    John Dewey considera que os jornais ajudam a formar o pblico: ajudamas comunidades a debater, a moldar e a formar os seus valores e um horizontede significado em que os em que os actores cvicos tomam as suas decises.Assim, possvel um uso da Imprensa que ajude a produzir um autnticopblico organizado e articulado necessrio para a democracia, desde que omesmo uso esteja altura da necessidade de revitalizar o dilogo, envolver-sena conversao e no debate (Dewey, 2004, p. 173).

    Finalmente, comungando uma srie de problemas j aqui apresentados,Edward Ross apresenta um diagnstico crtico do sensacionalismo protago-nizado pela Yellow Press. Apesar de o jornalismo e a instituio jornalsticaganharem um papel cada vez mais relevante na vida publica, Ross consideraque a imprensa passa a sujeitar-se cada vez mais s exigncias de grandes em-presrios e polticos, tornando-se refm de um processo que se verifica, porexemplo, na supresso de notcias importantes para o pblico e na publi-cao de outras cujo contedo estivesse voltado para interesses das empre-sas e homens de poder. Este processo directamente relacionado com umdiagnstico da decadncia social analisada pelo autor (Wahl Jorgensen eHanitzsch, 2009, p. 5).

    Uma segunda fase de estudos que Wahl Jorgensen e Thomas Hanitzsch(2009, p. 5) classificam de empirical turn virada emprica surge nosEstados Unidos centrada nas estruturas e processos da produo noticiosa ena anlise dos agentes envolvidos. Numa primeira fase, esta pesquisa teve umperfil direccionado para uma orientao profissionalizante e concentrou-se mtorno da fundao da revista cientfica Journalism Quarterly em 1924. Umadas personalidades chave do perodo foi Willard Bleyer (Universidade de Wis-

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    consin) que, no primeiro nmero do jornal, esquematizou as directivas funda-mentais da futura pesquisa jornalstica. Blayer ter desempenhado um papeldecisivo iniciando uma era de pesquisas que encaravam o jornalismo comoobjecto de estudo acadmico e criando um minor doutoral em estudos jorna-lsticos em programas doutorais pr-existentes em cincia poltica e sociolo-gia. Na Europa (em Portugal, na Dinamarca ou no Reino Unido), a educaojornalstica decorreu fora da academia, dentro de organizaes noticiosas emque os jornalistas eram treinados atravs de cursos de curta durao, com umaorientao predominantemente pragmtica e direccionada para a aquisio decompetncias exclusivamente profissionais. A partir dos anos 50, o estudoemprico do jornalismo recebeu um mpeto renovado quando a pesquisa emMass Communication floresce nos Estados Unidos. Este impulso proveio dedisciplinas como a sociologia, a cincia poltica e a psicologia mas foi prota-gonizada por figuras de grande estatura cientfica como Paul Lazarsfeld, CarlHovland, Eliuh Katz, Kurt Lewin e Harold Lasswell. Esta influncia solidifi-cou os elementos empricos desta forma de abordagem e pesquisa, baseando-se em mtodos como sejam as sondagens destinadas a avaliar o impacto dosmedia. Este modelo de estudos dirigiu-se tambm para a anlise dos agentese prticas jornalsticas e seus valores profissionais. Surgiu assim o modelo dogatekeeper (White, 1993), a teoria organizacional (Warren Breed, 1993), asteorias dos valores-notcia (Galtung e Ruge, 1993), a teoria do agendamento(McCombs e Shaw, 2000). Esta fase consagra alguns dos mais importantesclssicos dos estudos jornalsticos.

    Uma terceira fase apontada como sendo decisivamente influenciada pordiversos percursos das cincias sociais e humanas. A abordagem centra-senum compromisso com a anlise crtica das convenes e rotinas jornalsti-cas, as ideologias e culturais ocupacionais e profissionais e ainda pelo uso deconceitos direccionados para o estudo do texto, como sejam os conceitos deframing e de narrativa, ao qual se adiciona uma anlise de crescente importn-cia do elemento popular das notcias. Esta ateno crescente aos assuntosculturais surgiu lado a lado com a adaptao de metodologias qualitativas,com realce para pesquisas etnogrficas e de anlise do discurso. Entre algunsdos investigadores identificveis com esta abordagem contam-se Gaye Tuch-man (1978), David Altheyde (1976, 1985), Herbert Gans (1979, 2003), PhilipSchlesinger (1993), Peter Golding (1979), James Carey (1989), Stuart Hall(1977, 1993, 2002), John Hartley (1991), Barbie Zelizer (2003, 2004), Eliza-

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    beth Bird e Robert Dardenne (1993), Michael Schudson (1978, 1988, 2003),entre outros.

    Uma quarta fase apontada como Global Comparative Turn, ou seja aemergncia de pesquisa internacional comparada motivada pelas mudanaspolticas e pelas novas tecnologias da comunicao. Assim, a pesquisa jorna-lstica torna-se cada vez mais um empreendimento internacional resultante dacolaborao entre vrios investigadores provenientes de vrias comunidadescientficas. Wahl Jorgensen e Hanitzsch (2009: 7) realam. a propsito,a importncia que os jornais de lngua inglesa, nomeadamente com um pesode acadmicos norte americanos (com destaque para o Journalism & MasCommunication Quartely) continuam a ter no campo dos estudos jornals-ticos. Destacam a importncia de associaes internacionais como sejam aInternational Association for Media and Communication Research (IAMCR)e a International Communication Association (ICA) na internacionalizao ediversificao dos estudos e referem as revistas cientficas Journalism: Theo-ry, Practice and Criticism, Journalism Studies e Journalism Practice comoexemplo de uma tentativa de introduzir uma maior diversidade internacionalnas Comisses Editoriais. s associaes citadas deve acrescentar-se a Eu-ropean Communication Research and Education Association (ECREA). Poroutro lado, se esta fase dos estudos de facto caracterizada por uma maiorinternacionalizao, importa destacar esforos desenvolvidos no espao lus-fono com a presena de acadmicos portugueses na Sociedade Brasileira dePesquisadores de Jornalismo e a publicao de textos seus na revista Brazi-lian Journalism Research, bem como a presena brasileira nos Congressosda Sociedade Portuguesa de Comunicao e em muitos centros portugueses(Centro de Investigao Media e Jornalismo, Centro de Estudos em Comuni-cao e Sociedade, Laboratrio de Comunicao e Contedos Online) e nasrespectivas revistas e coleces.

    Destaque-se ainda que a dcada de 50 j fora marcada por estudos sobre acirculao da informao ao nvel mundial (Fernsworth, 1954; Cutlip, 1954:McNelly, 1959), uma investigao comparativa dos jornais empreendida porJacques Kayser, estudos comparativos dos jornais efectuados pela UNESCOque culminariam no anos 70 com o debate acerca da dependncia do TerceiroMundo em relao ao fluxo informativo do Primeiro Mundo (Traquina,2000, p. 17).

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    1.2.2 Tendncias dos estudos jornalsticos

    Barbie Zelizer (2004), num estudo conhecido sobre as relaes entre os estu-dos jornalsticos e a academia, identificou cinco tipos de pesquisa acadmicaque incidem sobre o jornalismo: sociologia, histria, estudos lingusticos, ci-ncia poltica e anlise cultural. Quanto pesquisa sociolgica, destacou-sena existncia de importantes trabalhos etnogrficos sobre as salas de redaco(Tuchman, 1978; Gans, 1979; Fishman, 1980), enfatizando a importncia dasrotinas e das tipificaes bem como as interaces entre os membros da co-munidade jornalstica. Estes estudos descobriram a importncia de normas,prticas, rotinas e identificaram a existncia de padres institucionais e orga-nizacionais de funcionamento (Epstein, 1973; Breed, 1993). Algumas destasnormas so invocadas de uma forma similar a uma ideologia profissional (Tu-chman, 1978; Gitlin, 1980; Glasgow Media Group, 1976, 1980).

    A pesquisa histrica divide-se em trabalhos de importncia diversa; me-mrias, biografias e histrias de organizaes noticiosas; a histria de deter-minados perodos da imprensa centrados, por exemplo, na imprensa romnticade opinio, na imprensa popular ou penny press (ex. Schudson, 1978) ou emestudos de grande flego que se debruam sobre a constituio de um Estado Nao ou o surgimento do jornalismo.

    A pesquisa influenciada pelos estudos lingusticos deve uma considervelinfluncia Anlise Crtica do Discurso, sendo de destacar trabalhos espe-cialmente dirigidos imprensa como os de Allan Bell e Peter Garrett (Bell,2001; Bell e Garrett, 2001) Van Dijk (1988, 1991, 1998, 2005) e Roger Fo-wler (2005). Destaque-se tambm o considervel esforo efectuado em tornodos estudos sobre enquadramento (veja-se a propsito, Reese, Gandy e Grant,2001).

    A cincia poltica deteve-se largamente sobre as relaes entre os jorna-listas e os seus pblicos e as questes associadas cidadania. Verifica-se aexistncia de trabalho sobre o papel dos media nos diferentes sistemas (Sie-bert, Peterson e Schramm, 1956), a anlise sistmica das relaes entre pol-ticos e jornalistas (Blumer e Gurevitch, 1995), relaes entre fontes polticase jornalistas (Sigal, 1973). Mais recentemente, h toda a vasta bibliografiasobre jornalismo pblico como sejam as que resultam dos trabalhos de Rosen(1996) e de Eksterowicz e Roberts (2000).

    Finalmente, a anlise cultural do jornalismo influenciada pela corrente

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    dos Estudos Culturais britnicos e americanos, os primeiros interessados nainterseco dos estudos jornalsticos com os fenmenos de poder e dominaosocial (Hall, 1992, 2002; Hartley: 1991; 1992) e os segundos identificadoscom os fenmenos do poder e da hegemonia mas tambm com os problemasde significado, identidade de grupo e mudana social (Steiner, 1992; Kellner:2001). Nesta rea destaca-se a primeira incurso significativa dos estudosculturais no jornalismo online: Online News, de Stuart Allan (2006).

    A sistematizao efectuada por Barbie Zelizer identifica algumas tendn-cias mas, apesar da sua utilidade na legitimao dos estudos jornalsticoscomo campo acadmico, tem sido criticada pelo facto de se centrar na pesqui-sa anglo-saxnica e pelo facto de olhar o jornalismo atravs de perspectivastericas e metodolgicas exteriores ao campo jornalstico embora com contri-butos importantes para o mesmo. Designadamente, lhe imputada o des-conhecimento de contributos provenientes de vrios pases que compreendemo jornalismo como disciplina, com objecto prprio, metodologias especficase bibliografia especializada, como seja a linha inspiradora que orienta autorescomo Groth e Robert E. Park; a ausncia da reviso da literatura da quase tota-lidade dos autores de fora do mundo anglo-americano e, inclusive, de algumasobras de referncia de norte-americanos e ingleses; e, finalmente, a insistn-cia numa concepo de interdisciplinaridade que descura a possibilidade de oprprio estudo do jornalismo ser uma disciplina cientfica (Machado, 2006).Trata-se de uma controvrsia que estrutura muita da discusso actual sobreestudos jornalsticos e originou alguma produo que visa justamente afirmar,consolidar e autonomizar o jornalismo como campo de estudos.

    1.3 Delimitao do objecto da disciplina: a notcia emsentido amplo

    Os estudos jornalsticos referem-se normalmente ao termo notcia em sen-tido amplo, isto tudo aquilo que um jornal publica. J a notcia em sentidoestrito ou tcnico refere-se ao gnero cannico que designa um texto com asseguintes caractersticas: informativo e centrada nos factos; caracterizado pelaexistncia de um ttulo, de subttulos, de um pargrafo inicial chamado leadonde se procura responder a seis questes consideradas fundamentais (O qu?Quem? Quando? Onde? Como? Porqu?) das quais as duas ltimas podem

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    ser respondida no pargrafo seguinte; estruturado por um mtodo chamadopirmide invertida que apresenta os factos por uma ordem decrescente deimportncia e organizado em blocos, de tal modo que, idealmente, a subtrac-o de qualquer um destes a partir do fim do texto no dever perturbar aleitura do que restar. O termo notcia , pois, no sentido lato, aplicvel scomunicaes apresentadas periodicamente sobre aquilo que possa ser novo,actual e interessante para a comunidade humana. A notcia, no seu estritosentido, constitui um gnero especfico de entre o conjunto dos vrios gnerosjornalsticos.

    A forma cannica das notcias existe sobretudo nas agncias, nas chama-das notcias brevese o gnero que ganhar importncia nalgumas formasde jornalismo online, devido s necessidades impostas pela actualizao per-manente das notcias, pela necessidade de captar ateno e de poupar tempo.Porm, apenas uma parte da produo informativa ou noticiosa, mesmoquando nos referimos aos tradicionais gneros jornalsticos.

    Fazendo um breve levantamento do conceito de notcia, d-se conta que oque prevalece na disciplina de Teoria da Notcia a sua definio em sentidoamplo. Dovifat (1954, p. 51) define notcia (1954: 51) como uma comu-nicao sobre factos novos que ocorrem na luta do homem e da sociedadepela existncia. Martnez de Sousa (1992, p. 325) refere-se a notcia comopublicao e divulgao de um facto. Jos Ortega e Costales (1996, p. 48)considera que notcia todo o acontecimento actual, interessante e comuni-cvel.

    Jorge Pedro de Sousa (2000) afirma que uma notcia um artefacto lin-gustico que representa determinados aspectos da realidade, resulta de umprocesso de construo onde interagem factores de natureza pessoal, social,ideolgica, histrica e do meio fsico e tecnolgico, difundida por meiosjornalsticos e comporta informao com sentido compreensvel num deter-minado momento histrico e num determinado meio scio-cultural, embora aatribuio ltima de sentido dependa do consumidor da notcia.

    Martinez Albertos (1978) define notcia como um facto, verdadeiro, in-dito ou actual de interesse geral que se comunica a um pblico que se podeconsiderar massivo, uma vez que foi recolhido, avaliado e interpretado pelossujeitos promotores que controlam um meio utilizado para a sua definio.

    Rodrigo Alsina (1996, p. 195) define notcia como uma representao

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    social da realidade quotidiana produzida institucionalmente que se manifestana construo de um mundo possvel.

    Urabayen (1993, p. 20) conclui que notcia todo o facto da actualidadesusceptvel de interessar a um nmero amplo de pessoas e que chega ao p-blico de uma maneira regular e peridica, por meio de palavras e de imagens,ou seja da imprensa escrita ou audiovisual. Segundo Michael Schudson (2003,p. 6), notcia o que publicamente notvel dentro de um enquadramento denatureza social e cultural que inclui uma certa compreenso, varivel de co-munidade para comunidade, do que ser pblico e ser notrio. Ou seja, oproduto da actividade jornalstica de tornar pblico (2003, p. 12). Da mesmaforma, Molotch e Lester (1993), Schlesinger (1993), Tom Koch (1990) iden-tificam notcias como o produto da actividade noticiosa dos media, com vistaa fornecer informao aos interessados sobre factos inobservados.

    Concorda-se, pois, com Anabela Gradim (2000, p. 57) quando distin-gue entre notcia em sentido estrito e notcia em sentido amplo: Notcia ,pois, em princpio, tudo aquilo que um jornal publica; mas, em sentido tc-nico, enquanto gnero, a definio de notcia mais restritiva. Desde logo,a expresso Teoria da Notcia refere-se sobretudo a uma teoria do jornalismo.Quando falamos assim de notcia, englobamos diversos registos discursivosdo jornalismo: notcia, reportagem, entrevista, artigo de opinio e editorial(Ponte, 2004). Da mesma maneira, a dimenso estratgica do conceito de no-tcia encara a notcia como todo o enunciado jornalstico. Esta opo aquelaque interessa teoria do jornalismo enquanto teoria que procura explicar asformas e os contedos do produto jornalstico (Sousa, 2002).

    Em suma, a notcia enquanto gnero no sentido estritamente tcnico apenas uma das formas de relato jornalstico. Por isso, a Teoria da Notciaganhou sobretudo o seu estatuto de disciplina autnoma como uma anlise danatureza, produo, recepo e efeitos dos enunciados jornalsticos em sentidolato e no no sentido estritamente tcnico de um gnero com as caractersticasatrs referidas.

    1.4 Caractersticas do enunciado jornalstico

    No sentido geral, a notcia sinnimo de enunciado jornalstico. De acordocom esta perspectiva, assinalamos certas componentes do jornalismo notici-

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    oso que podem ser detectados como comuns aos enunciados que se reclamamcomo jornalismo:

    a) O enunciado jornalstico implica um compromisso com a busca rigorosae sistemtica da verdade. O jornalismo um sistema que atua no ramoda verdade. Os seus produtos se oferecem como verdadeiros, tendo asua verdade garantida por procedimentos bem codificados de veraci-dade e certificao. (Gomes, 2009, p. 12)

    Isto no significa que o acontecimento que deu origem notcia seja umarealidade objectiva. Marconi Oliveira da Silva diz a propsito:

    O relato jornalstico no um acto de descrever ou dizer de formadirecta, determinada e precisa um facto emprico acontecido nomundo exterior, mas um acto de apresentao de uma realidadeque se constitui inclusive com a participao activa do leitor (. . . )isso no equivale a dizer a que imprensa mente, inventa ou dizinverdades. Significa apenas que os nossos discursos so con-dicionados pelos limites de nossos modos de dizer, ou seja, soconstrues do mundo dentro de certos limites impostos pelosnossos jogos de linguagem. (Oliveira da Silva, 2006, p. 8)

    Na verdade, nunca h uma descrio completa da realidade seno mui-tas, todas diferentes, cada uma das quais diferente segundo os critrios emque o autor do enunciado se baseou para a seleco das suas informaes,que distines e valorizaes efectuou e a partir de que perspectiva, com queinteresses e com que objectivos abordou o tema (Simon citado por RodrigoAlsina, 1999, p. 44).

    O que se pretende, efectivamente, dizer que o enunciado jornalstico um acto de fala regido pelo princpio da veracidade, o qual se expressado seguinte modo: ningum fala com seriedade ou com pretenso de serlevado a srio se no assumir implicitamente o compromisso, diante dos seusinterlocutores, de que os argumentos que apresenta so, por eles, consideradosverdadeiros (Gomes, 2009, p. 10).

    Neste sentido, indiscutvel que o enunciado jornalstico tem que ser for-mulado por algum que possui uma pretenso de veracidade: O jornalismo uma actividade integralmente afectado pela norma da veracidade (. . . ) No

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    h notcia sobre o qual no se imponha legitimamente uma obrigao de ve-racidade; alis, s notcia um ato verbal que comporte uma pretenso de serverdadeiro (Gomes, 2009, p. 11).

    b) O enunciado jornalstico , tambm, actual, no sentido em que se referea acontecimentos que ocorreram normalmente h pouco tempo e trans-portam alguma espcie de urgncia no seu conhecimento: o que seacaba de produzir, anunciar ou descobrir (Fontecuberta, 1993, p. 16).Para que uma informao seja notcia preciso que seja recente e ime-diatamente transmitida, isto que decorra o mnimo prazo de tempopossvel entre o acontecimento e a sua difuso. Neste sentido, a ac-tualidade jornalstica constituda por uma srie de factos recentes ouimediatos que se difundem atravs dos meios de comunicao. Tal ac-tualidade no existe nos factos independente dos meios que os reportam. resultado de um processo que a constri e que instaura a sua vign-cia desde o perodo que comea com a publicao de uma informaonuma edio e a edio seguinte. Por isso, a actualidade de um diriono idntica de um semanrio nem a actualidade de um jornal ge-neralista idntica de um jornal desportivo (Fontecuberta, 1993, p.22).

    O enunciado jornalstico deve ser possuidor de novidade e o seu contedodeve constituir, na medida do possvel, um sobressalto na realidade quoti-diana. Porm, parte da actualidade e da urgncia atribuda necessidade deconhecimento do evento determinada pela acelerao introduzida pelos pr-prios media. Assim, a actualidade no resulta apenas de uma qualidade in-trnseca dos fenmenos mas da forma como as qualidades do acontecimentoso percebidas pelos media. Ser, pois, mais coerente falar de uma actua-lidade jornalstica. No se pode, porm, ser imune ao fetiche da velocidadeque marca o jornalismo. Se virmos numa dimenso mais vasta, a histria doseu surgimento a histria de uma poca em que a ideia de novo ganha umnovo estatuto. O jornalismo do perodo moderno inicia os seus passos com oalvor das cidades, da civilizao mercantil e da expanso monetria. Nas suasconfiguraes mais recentes, atingiu a sua maturidade na altura em que surgiauma mentalidade cultural favorvel velocidade: a era da reprodutibilidadetcnica. A imprensa trabalha sobre o signo da velocidade: narrativas breves

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    e um discurso que reproduz a urgncia. Nesse sentido, uma caracterstica es-sencial da informao a sua relao com o tempo: a informao perecveluma vez pronunciada. O tema j fora abordado por Park:

    As notcias, como forma de conhecimento, no esto primeira-mente focadas sobre o passado ou sobre o futuro, mas sim sobreo presente o que tem sido descrito pelos psiclogos como pre-sente ilusrio. O que se pretende aqui significar como presenteilusrio sugerido pelo facto de as notcias, como os editoresda imprensa comercial bem sabem, serem um bem extremamenteperecvel. As notcias mantm esse estatuto apenas at chegarems pessoas para quem tm interesse noticioso. Uma vez publi-cadas e o seu interesse reconhecido, as notcias passam histria.(Park, 2009: 42)

    Porm, actualidade no necessariamente novidade. Como explica Fi-dalgo (2004):

    Por actualidade entende-se a caracterstica de o jornal informarsobre o que actual, presente, momentneo, novo. Contudo,actual no o mesmo que novo. Actual significa que algo acon-tece no tempo presente. Trata-se de uma relao temporal domundo objectivo, de uma relao entre o momento do aconte-cimento e o momento presente do sujeito. A novidade, em con-trapartida, no propriamente um conceito temporal, mas apenassignifica que o sujeito no sabia disso. novo tudo o que o sujeitodesconhecia e que passa a conhecer.

    c) O enunciado jornalstico ainda marcado por outra caracterstica re-lacionada com a temporalidade. O enunciado jornalstico dotado deperiodicidade, no sentido no de regularidade (isto de um discurso quese formula atravs de edies que tendem a ser apresentadas com inter-valos idnticos entre si), mas no sentido de um discurso que se actualizaem edies. A periodicidade tem de ser entendida no como uma repe-tio mecnica, mas como uma estratgia para aproximar na medidado possvel a notcia ao acontecimento e essa estratgia comum svrias formas materiais que o jornal pode revestir. Esta actualizao

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    tende a ser cada vez mais rpida. A periodicidade tem como ideal atin-gir o objectivo da simultaneidade do acontecimento e da notcia. Maismarcante para a periodicidade jornalstica a simultaneidade e no aregularidade Neste sentido, periodicidade e actualidade so afins. Oideal de uma e outra seria a simultaneidade entre os dois momentos.(Fidalgo, 2004, p. 4; p. 7)

    Presentemente, as tendncias introduzidas pelas novas rotinas televisivas,pela introduo do digital, pelo jornalismo online do um novo significadoquer temporalidade quer actualidade. Com a proliferao de canais e desuportes gera-se uma busca de simultaneidade entre o momento do aconteci-mento e o momento do sujeito: a proliferao do modelo CNN com notcias24 sobre 24 horas, a possibilidade de actualizao permanente introduzidapelo jornalismo online e o uso dos telemveis para transmitirem individu-almente informao sobre o acontecimento to depressa este se produza, arelao do jornalista com a dimenso temporal ganha um significado cada vezmais relevante.

    d) A relevncia um problema central do jornalismo e a sua problemticaarticula-se e colide com a universalidade entendida como caractersticada realidade ideal do jornalismo concebida por Otto Groth e discutidapor Fidalgo (2004). Segundo Groth, o mundo objectivo no consistes de coisas, mas tambm, e sobretudo, de homens e da sua aco so-cial e cultural. Alm das coisas, fazem parte desse mundo objectivofactos, opinies, intenes, ideias, valores de outras pessoas e de gru-pos de pessoas. Saber destes factos, ideias e valores, indispensvel aohomem a fim de poder harmonizar a sua conduta com o mundo suavolta. Assim, a tendncia para a universalidade do enunciado jornals-tico pode expressar-se nesta ideia: tudo o que suscita a curiosidade, ointeresse do homem, tudo o que pode lev-lo a uma tomada de posio,est includo eo ipso num possvel contedo do jornal (Groth citadopor Fidalgo, 2004, p. 5). A necessidade de dirigir a nossa ateno paraum mundo complexo onde se verificam muitos acontecimentos numfluir constante constitui o reverso da ambio de universalidade quemotiva o jornalismo. Os estudos de Walter Lippman sobre a atenoe a necessidade de recorrer a imagens mentais para classificar a reali-dade; as teorias sobre o agendamento (McCombs e Shaw, 1972) e sobre

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    a tematizao (Luhmann, 2009), isto necessidade de definir temas so-bre os quais incide a nossa ateno para tornar a discusso possvel, asteorias sobre o enquadramento (frame) reflectem, afinal, a mesma pre-ocupao: a forma como a nossa ateno direccionada pelos mediasobre uma parte da realidade. Ou seja, jornais, revistas e rdios tmuma quantidade limitada de espao e de tempo, pelo que s uma frac-o das notcias do dia acaba por ser publicada. o processo de edioorientado pelos valores notcia que acaba por fazer com que a atenodo pblico seja orientada e convocada para certos assuntos considera-dos de maior importncia do dia. Logo, a notcia, apesar da sua vocaopara a universalidade, sempre uma escolha sobre o que importante:Potencialmente universal, o jornal acaba por se concretizar e particula-rizar consoante os interesses dos sujeitos que dele se servem como meiode lidar com os seus mundos objectivos. (Fidalgo, 2004, p. 5)

    As estruturas e sistemas de relevncias variam consoante as culturas, ascomunidades, os grupos e os indivduos pelo que a identificao dos proble-mas e dos interesses e, consequentemente, a relevncia dos assuntos, tambm, ela prpria, varivel. Por isso, cada sociedade, cada comunidade tm con-ceitos distintos de acontecimento, e, portanto, o contedo dos meios reflecteo conceito dominante de notcia vigente em cada sociedade em determinadoperodo da sua histria. O jornalismo no procede, pois, seleco dos fac-tos apenas em funo de uma qualidade a relevncia dos factos queseria evidente em si, independente das condies sociais e histricas e dosinteresses dos agentes sociais envolvidos. O jornalismo vai destacar aquelesfatos que mais relevam os valores e crenas da sociedade naquele momentohistrico (Oliveira da Silva, 2006, p. 94). Por exemplo, as notcias sobre asade parecem extraordinariamente relevantes sob o ponto de vista do nossobem-estar individual. Porm, a superabundncia de notcias sobre o tema notransforma estes enunciados como algo dotado em si de uma relevncia auto-evidente em funo de todos os tempos e de todos os lugares. A sua relevncia resultado de uma sociedade mais confortvel, mais receosa da morte, maisobcecada com o prolongamento de uma certa cultura juvenil. Isto , podehaver formaes culturais em que a relevncia destes temas seja menor. Averdade que a importncia destas notcias aumentou na medida em que aesperana de vida aumentou e, consequentemente, cresceu a necessidade de

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    atender necessidade de cuidados mdicos de sectores da populao cada vezmais envelhecidos.

    Assim, ter que se ter em conta que a relevncia um conceito til masresulta de processos conflituais e de contextos sociocognitivos. Depende deprocessos conflituais porque o jornalismo um dos protagonistas essenciaisem definir o que relevante em cada momento o agendamento, a tematiza-o e, de certo modo, o framing so, justamente, processos em que se fazemsobressair temas e quais os esquemas interpretativos que se podem aplicar aesses temas considerados relevantes. Assim, o reconhecimento da capacidadedos media em tornar relevantes os temas e em definir estes esquemas torna-seo mbil de uma luta insanvel por parte de vrios agentes interessados: as-sessorias de comunicao, Relaes Pblicas, movimentos sociais, partidospolticos.

    A relevncia depende tambm de contextos sociocognitivos porque h sis-temas de relevncia variveis em formaes culturais diversas, sendo que di-ferentes formaes culturais estruturam a percepo do que importante. Estareflexo no exclui os prprios fait-divers e as notcias sociais. Estas tornam-se relevantes no contexto do jornalismo, em determinadas formaes scio-culturais ou em determinadas especialidades do jornalismo. Assim faz sentidolembrar que a nossa maneira de ver as coisas uma combinao daquilo quese encontra e daquilo que se espera ver. Um bom exemplo deste facto o casoda manifestao de Londres contra a Guerra do Vietname, cuja cobertura foiestudada por Halloran, Elliott e Murdock citada por Gmis, onde a expecta-tiva da violncia fez a cobertura incidir sobre os poucos aspectos violentos doevento (Gmis, 1991, p. 70).

    O conceito de relevncia tambm ganha neste momento uma reconfigura-o substancial mediante os contributos desenvolvidos pelos novos media. Apersonalizao das notcias e a possibilidade de o utilizador introduzir filtrosque lhe permitem seleccionar quais as informaes a que deseja ter acesso temum significado fundamental para a evoluo do conceito no mbito da teoriada notcia.

    e) O enunciado jornalstico pblico num triplo sentido:

    1 Circula em espaos de acessibilidade geral e a todos abertos em

    www.livroslabcom.ubi.pt

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    relao aos quais no existe habilitao prvia para a sua frequn-cia.

    2 considerado como possuindo um interesse colectivo.3 Renega a ideia de segredo ou de sabedoria privada ou especia-

    lizada, no sentido em que baseia a sua actividade na divulgaodo saber e na simplicidade dos enunciados.

    Em relao ao primeiro ponto, parece haver uma certa evidncia: nascondies construdas pela modernidade, o discurso jornalstico acessvela todos. A identificao moderna entre o adjectivo pblico e o interessecolectivo, presente no segundo sentido, mais difcil de discernir. Para Bob-bio (2000), a melhor definio de democracia a que se refere ao poder empblico, isto , ao fato de que as decises de governantes devem ser torna-das pblicas aos governados. Essa uma das principais diferenas entre umgoverno democrtico e um governo autocrtico, elegendo-se a comunicaopblica como actividade essencial s sociedades democrticas. A relao en-tre democracia e jornalismo torna-se mais visvel quando lembramos que asociedade democrtica formada por cidados, e no sbditos, e que o di-reito informao inerente cidadania. A noo moderna de legitimidadee a aplicao do princpio da publicidade implicam que as decises do podersejam escrutinadas e legitimadas. O prprio af dos poderes em apresentarmotivos aceitveis para as suas decises significa que existe um ambiente co-lectivo que exige que as decises implicam o consentimento e a legitimidadedos pblicos. A legitimidade uma categoria que tem a ver com a aceitabili-dade e o consentimento de prticas ou decises pblicas mesmo que tomadaspor instncias privadas. Logo, esta definio de publico implica a refernciaexplcita a um elemento normativo que remete para as teorias da responsa-bilidade social da imprensa (Benito, 1995, p. 96). A premissa a de queo jornalismo uma actividade de forte vnculo social e que jamais se podedesligar do interesse e da vocao pblica.

    Porm, altamente duvidoso, por exemplo, que este conceito de interessepblico possa dizer respeito a todo o jornalismo, por exemplo, vida privadade celebridades. Neste sentido, o conceito de interesse pblico pode no tera ver necessariamente com a curiosidade das audincias. A a noo de p-blico deixa de ser articulada com a questo da legitimidade e com o principiodemocrtico da publicidade para passar a estar associada de entretenimento

    Livros LabCom

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    partilhado por todos, revelando sobrevivncias de conceitos pr-modernos depblico: por exemplo, a ideia de pblico como representao do poderhoje transferida para a representao do estatuto ou para noes que lhe soprximas como sejam celebridade e notoriedade. Neste sentido, um ele-mento que merece especial discusso o desenvolvimento de uma cultura decelebridades, largamente assente nos media e que proporcionou consider-veis progressos no avano da fuso entre informao e entretenimento.A proliferao de formatos que asseguram a fugacidade de alguns escassosminutos de fama, a multiplicao de concursos que do relevo pblico a ta-lentos desconhecidos, a alterao dos critrios de notoriedade clssicos (jno apenas o talento desportivo mas, tambm, a excentricidade e o escndalocomo factores de sucesso meditico) alimentam o jornalismo dirigido para omercado e contribuem para o nmero crescente de soft-news.

    J a ltima forma de classificar o discurso jornalstico como pblico estarticulado com a ideia de acessibilidade, embora referindo-se ao seu contedo.O jornalismo um saber exotrico que