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TRADUÇÃO LAYMERT GARCIA DOS SANTOS REVISÃO TÉCNICA LUIZ B. L.
ORLANDI
DAVID LAPOUJADE
OS MOVIMENTOS ABERRANTES Movimentos aberrantes e lógicas
irracionais ∞ O problema como combate ∞ As três questões: quid
facti? quid juris? quid vitae?
25 CAPÍTULO 1
A QUESTÃO DA TERRA A importância da questão quid juris? ∞ A questão
do fundamento e quid juris? ∞ A questão do fundamento e quid juris?
de sua crítica ∞ O sem-fundo e as novas superfícies ∞ A
distribuição da terra e a “grande política”
47 CAPÍTULO 2
OS CÍRCULOS DO FUNDAMENTO Identidade e circularidade do fundamento:
o mundo da representação ∞ O que há “sob” a representação? A
Diferença e as diferenciais ∞ Crítica do fundamento e crítica do
juízo ∞ Os dois modos de povoa- mento da terra: logos e nomos.
Espaço estriado e espaço liso
65 CAPÍTULO 3
TRÊS SÍNTESES (OU “O QUE FOI QUE ACONTECEU?”) A repetição como
prova do fundamento. O que é um acontecimento? ∞ Primeira síntese
do tempo. A fundação do hábito e as pretensões territoriais ∞
Segunda síntese do tempo. O fundamento da memória e os círculos de
Eros. Platonismo dos objetos virtuais. O “natal” ∞ Terceira síntese
do tempo. O tempo vazio do acontecimento. Tânatos, novo princípio
transcendental e o eterno retorno deleuziano. A nova justiça e o
caosmos
99 CAPÍTULO 4
CONSEQUÊNCIAS: O EMPIRISMO TRANSCENDENTAL Uma Crítica da razão pura
sem analítica: estética e dialética ∞ Teoria da Ideia e morte de
Deus. A síntese disjuntiva ∞ A ideia como lógica da matéria
intensiva ∞ A individuação
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121 CAPÍTULO 5
O PERVERSO E O ESQUIZOFRÊNICO Sentido e não sentido. O
acontecimento. O fora da linguagem ∞ A luta do esquizofrênico
contra todo princípio de articulação ∞ O herói deleuziano de Lógica
do sentido: o perverso. A dobradura como ope- ração perversa ∞ O
conflito entre o perverso e o esquizofrênico ∞ Importância de
Guattari. Do estruturalismo ao maquinismo
147 CAPÍTULO 6
SCHIZO SIVE NATURA Renovação da questão quid juris? ∞ O corpo
libidinal e oquid juris? ∞ O corpo libidinal e oquid juris? homo
natura ∞ Os corpos sociais ou o desejo ligado ∞ O corpo social dos
selvagens: as marcas territoriais e a fundação ∞ O corpo social dos
bárbaros e a transcendência. Fundar o inconsciente: a implantação
de uma memória ∞ O capitalismo e a axiomática ∞ O grande movimen-
to pendular: paranoia e esquizofrenia ∞ Teoria das sínteses (Kant/
Marx) e teoria das multiplicidades (Espinosa/Bergson). Naturalismo
de O anti-Édipo
191 CAPÍTULO 7
AS TRÍADES DA TERRA Mil platôs ou o povoamento da terra. Plano e
perspectivismo ∞ O plano (1) ∞ A máquina abstrata (2) ∞ O
agenciamento concre- to (3) ∞ Os três estratos (geológico,
biológico, antropomórfico). A dupla articulação: ordem e
organização. Conteúdo e expressão ∞ O agenciamento contra a
estrutura ∞ Um exemplo: a linguística. Três concepções da máquina
abstrata
227 CAPÍTULO 8
POVOS E DESPOVOADORES Populações humanas e coexistência das
diversas formações sociais ∞ A transversalidade de Mil platôs ∞ Os
círculos do aparelho de Estado: terra, trabalho, dinheiro ∞ A
questão da soberania política: potência e direito ∞ Fundar é
englobar. As formas de interioridade ∞ A máquina de guerra e as
potências de destruição. As transformações da morte e a terra
englobada ∞ A axiomática: submissão e sujeição
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261 CAPÍTULO 9
FENDER A MÔNADA Monadismo contra imperialismo. O problema da ação
política ∞ As sociedades de controle: um mundo sem fora. As novas
mônadas. Ver e falar ∞ As minorias e o porvir ∞ Do impossível ao
intolerável. Os novos corpos sociais ∞ Problematização da
axiomática. Minorias de fato e minoritário de direito. As duas
formas da luta política. Dis- juntar ver e falar. O Aberto e o
Fora
291 CAPÍTULO 10
DO DELÍRIO A imagem deleuziana: o deserto não humano ∞ Sombras e
luzes ∞ Como repovoar o deserto. A “dedução” dos corpos ∞ Crer
neste mundo: os delírios
307 CONCLUSÃO
FILOSOFIA-LIMITE Os dois sentidos do limite. Limite exterior e
limite imanente ∞ Não mais reverter o platonismo, mas revirar os
imperialismos ∞ Entre duas mortes. A afirmação da alegria
317 LISTA DE EDIÇÕES UTILIZADAS
8 Deleuze, os movimentos aberrantes
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INTRODUÇÃO OS MOVIMENTOS ABERRANTES
Qual é o problema mais geral para a filosofia de Deleuze? O pensa-
mento de Deleuze não é uma filosofia do acontecimento, nem uma
filosofia da imanência, tampouco uma ontologia dos fluxos ou do
vir- tual. Eruditas demais, boa parte dessas definições supõe ou
prejulga o que está em questão. Seria melhor partir, assim, de uma
impressão de conjunto, mesmo que seja preciso corrigi-la
posteriormente. Qual é o traço distintivo de sua filosofia? Antes
de mais nada, o que inte- ressa a Deleuze são os movimentos
aberrantes. A filosofia de Deleuze se apresenta como uma filosofia
dos movimentos aberrantes ou dos movimentos “forçados”. Ela
constitui a tentativa mais rigorosa, mais desmedida e também mais
sistemática de inventariar os movimentos aberrantes que atravessam
a matéria, a vida, o pensamento, a natureza, a história das
sociedades. Em Deleuze, o ato de classificar é essencial, não só
como atividade de distinção, mas também como atividade a um só
tempo pedagógica e sistemática. Deleuze está sempre distinguindo e
classificando movimentos aberrantes. Sua obra, assim como aquela
criada em comum com Guattari, é como que a enciclopédia
disso.
É possível invocar, indiscriminadamente, os movimentos aberran- tes
da Diferença ou da Repetição, a conduta perversa do masoquista e
seus contratos “tortuosos”, a perversão de Robinson de Tournier, a
fenda que atravessa o naturalismo de Zola e precipita seus persona-
gens na loucura e na morte, os paradoxos lógicos de Lewis Carroll e
os gritos-sopros de Artaud em Lógica do sentido, a figura positiva
do
“esquizo” em O anti-Édipo com suas “linhas de fuga”, seu “corpo sem
órgãos” e seu baralhamento dos códigos sociais. A noção de processo
perde sua naturalidade descritiva para se tornar “uma ruptura, uma
brecha que quebra a continuidade de uma personalidade,
forçando-a
10 Deleuze, os movimentos aberrantes
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a uma espécie de viagem através de um ‘a mais de realidade’ intenso
e assustador, seguindo linhas de fuga nas quais se precipitam
natureza e história, organismo e espírito”.1 Ou ainda Mil Platôs,
que se apresenta como um grande afresco de movimentos aberrantes,
com seus devires, seus atos de feitiçaria e suas participações
contra natureza, sua lógi- ca rizomática e suas multiplicidades
nômades, seu ritornelo cósmico e suas máquinas de guerra, até a
potente linha abstrata inorgânica,
“linha frenética de variação, em fita, em espiral, em ziguezague,
em S…”,2 a mesma que surge já em Diferença e repetição.3 Até mesmo
a Terra é sacudida por movimentos aberrantes que a
desterritorializam.4
Também é uma série de movimentos aberrantes que explica a torsão
intensa das figuras em Bacon; são todas as dramatizações de
espaços-tempos repertoriados em Cinema 1 e Cinema 2, como uma
tentativa de classificação naturalista dos movimentos aberrantes
que escapam das construções narrativas impostas pela
industrialização do cinema. É ainda o movimento barroco de levar a
dobra e a desdobra ao infinito em Leibniz e nos neoleibnizianos.
Isso desemboca na pró- pria definição da filosofia, concebida como
o movimento aberrante de criar conceitos: “tanto quanto só há
pensamento involuntário, susci- tado, coagido no pensamento, com
mais forte razão é absolutamente necessário que ele nasça, por
arrombamento, do fortuito no mundo.”5
Mas já não seria esse o sentido dos estudos monográficos sobre
Hume, Bergson, Lucrécio ou Platão? Em cada caso, Deleuze buscou
produzir nas costas do pensador os movimentos aberrantes imanen-
tes à sua obra. Com efeito, cada monografia atesta o desejo de
chegar
“pelas costas de um autor e lhe fazendo um filho, que seria seu, e
no entanto seria monstruoso. Que fosse seu era muito importante,
por- que o autor precisava efetivamente ter dito tudo aquilo que eu
lhe fazia
1. Deux Régimes de fous et autres textes, p. 26. Para consultar as
edições das obras de Gilles Deleuze utilizadas como referência
neste livro, bem como suas versões em portu- guês, dadas entre
colchetes sempre que possível, ver “Lista de edições utilizadas”,
p. 317. 2. Mille plateaux, p. 623 [v. 5, p. 212]. 3. Différence et
répétition, p. 40 [p. 56]: “Renunciando ao modelado, isto é, ao
símbolo plástico da forma, a linha abstrata adquire toda a sua
força e participa do fundo, tanto mais violentamente quanto dele se
distingue sem que ele se distinga dela.” 4. Pourparlers, p. 201 [p.
183]: “A Terra […] é inseparável de um processo de desterrito-
rialização que é seu movimento aberrante.” 5. Différence et
répétition, p. 181 [pp. 202-203].
11
Introdução
dizer. Mas que o filho fosse monstruoso também representava uma
necessidade, porque era preciso passar por toda espécie de
descentra- mentos, deslizes, quebras, emissões secretas”.6
É preciso extrair a intuição que “faz o sistema cindir”, como dizia
Bergson, às vezes ao ponto do sistema voltar-se contra si mesmo, ao
ponto em que Platão indica a direção de uma “reversão do platonis-
mo”, ao ponto em que Kant descobre, na terceira Crítica, um uso
des- regrado de todas as faculdades.7 Não há autor que não seja
pervertido por essa constante busca das aberrações a animar
secretamente seu pensamento. Perverter é uma operação essencial em
Deleuze e o per- verso é um personagem central de sua filosofia
tanto quanto o célebre
“esquizo” de O anti-Édipo. Tais movimentos aberrantes não têm nada
de arbitrário; são ano-
malias só de um ponto de vista exterior. Pelo contrário, é preciso
esta- belecer as condições que os tornam os únicos verdadeiramente
cons- titutivos e os únicos verdadeiramente reais. Isso é visível
nos livros sobre o cinema: se aparecem primeiro como uma anomalia
ou uma exceção que o regime narrativo da imagem-movimento tenta
escon- jurar, com a imagem-tempo aparecem por si mesmos,
constitutivos de novas sintaxes: falsos raccords, profundidade de
campo, plano-se- quência, desenquadramento, cortes irracionais.8
Eles também não têm nada de contingente, embora não possam
explicitar a necessidade que os atravessa por si mesmos. Tal
necessidade vem de alhures. É preci- samente esse o problema: a que
lógica os movimentos aberrantes obe- decem? Problema que assombra
Deleuze. É preciso, a cada vez, esta- belecer a lógica desses
movimentos. Problema de pensamento puro. Pois o que interessa a
Deleuze, acima de tudo, é a lógica, produzir lógi- cas. Talvez esse
seja o traço pelo qual ele é mais espinosista.9 Se há um traço que
o distingue de Foucault, Sartre ou Bergson, é essa paixão
6. Pourparlers, p. 17 [p. 14]; e Dialogues, p. 2 [p. 9]: “O
movimento acontece sempre nas costas do pensador […]” 7. Cf.
Critique et clinique, pp. 47-48 [pp. 42-44]. 8. Cinéma 2 –
L’image-temps, p. 186 [p. 174]: “É o que tentamos dizer desde o
início deste estudo: uma mutação cinematográfica se produz quando
as aberrações de movi- mento ganham independência, quer dizer,
quando os móveis e os movimentos perdem suas invariantes.” 9. Cf.
Spinoza et le problème de l’expression, p. 114: “A filosofia de
Espinosa é uma ‘lógica.’”
12 Deleuze, os movimentos aberrantes
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pela lógica e pelos conceitos que ela exige. Deleuze é, antes de
tudo, um lógico, e todos os seus livros são “Lógicas”. Seu primeiro
livro sobre Hume poderia se chamar “Lógica da natureza humana”,
assim como seu livro sobre Proust poderia se chamar “Lógica dos
signos”. Ele não busca estabelecer nem a estrutura narrativa da
Recherche, nem uma profundidade qualquer de análise psicológica,
mas quer produ- zir a lógica que ela envolve como numa crisálida. E
quanto mais ele a estuda, mais essa lógica acaba se confundindo
justamente com os movimentos aberrantes da loucura, não de Proust,
mas de seu narra- dor. “Esse universo de caixas fechadas que tentei
descrever, com suas comunicações aberrantes, é um universo
fundamentalmente esqui- zoide.”10 A questão é a mesma para cada
autor, para cada campo: qual é a lógica? Esse é, evidentemente, o
caso dos livros sobre Espinosa, que estabelecem a “nova lógica” do
autômato espiritual espinosista.11
É também o caso do livro sobre Foucault, que vê nas mutações de seu
pensamento o signo de uma lógica profunda.12 Quando, com Guattari,
critica a psicanálise, é ainda em nome da lógica. Édipo é primeiro
uma sucessão de paralogismos, uma série de contrassensos sobre a
lógica do desejo, concebida e descrita como produção de movimentos
aber- rantes.13 O anti-Édipo poderia ter se chamado “Lógica do
desejo”, assim como Mil platôs poderia ter se chamado “Lógica das
multiplicidades”.14
E esses dois livros multiplicam as lógicas até conceber o
capitalismo como uma axiomática, com teoremas e postulados. Do
mesmo modo,
10. Cf. Deux Régimes de fous et autres textes, p. 47. 11. Cf.
Spinoza et le problème de l’expression, p. 300; sobre a “nova
lógica da distinção formal, cf. p. 51 e p. 57; sobre a “nova
lógica” do absoluto, p. 69. 12. Pourparlers, p. 129 [p. 118]: “Mas
agora procuro a lógica deste pensamento, que me parece uma das
maiores filosofias modernas. A lógica de um pensamento não é um
sis- tema racional em equilíbrio […] A lógica de um pensamento é
como um vento que nos impele, uma série de rajadas e de abalos.”
13. L’Anti-Œdipe, p. 32/34 [p. 41]: “De uma certa maneira, a lógica
do desejo não acerta o seu objeto desde o primeiro passo” e pp.
54-56 [pp. 66-68]: “Édipo se torna, assim, a pedra de toque da
lógica”. 14. A propósito de Mille plateaux, cf. Deux Régimes de
fous et autres textes, p. 163: “a análise dos agenciamentos,
tomados em seus diversos componentes, nos propicia uma lógica
geral: limitamo-nos a esboçá-la, e fazer essa lógica será sem
dúvida a continuação do nosso trabalho, o que Guattari denomina
‘diagramatismo’”. Cf. também Pourparlers, p. 201 [p. 183]: “Concebo
a filosofia como uma lógica das multiplicidades (sinto-me pró- ximo
de Michel Serres sob esse aspecto).”
13
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ainda, os livros sobre o cinema poderiam ter se chamado “Lógica das
imagens”, assim como existem uma Lógica do sentido e uma Lógica da
sensação.15 E quando Deleuze e Guattari dizem que a filosofia con-
siste na criação de conceitos, o que é que dizem senão que se trata
de produzir lógicas — tanto que um conceito nunca se cria sozinho,
mas sempre encadeado a outros? Criar um conceito é criar a lógica
que o vincula a outros conceitos.
Lógico não quer dizer racional. Pode-se até dizer que, para
Deleuze, um movimento é tanto mais lógico quanto mais escapa a toda
racio- nalidade. Quanto mais irracional, mais aberrante — e,
portanto, mais lógico. Como os personagens de Dostoiévski ou de
Melville: eles não podem apresentar razão alguma, embora obedeçam a
uma lógica imperiosa.16 Como mostrou Zourabichvili, em Deleuze,
irracional não é sinônimo de ilógico, muito pelo contrário. Por
isso, do início ao fim, as lógicas que lhe interessam são as que
escapam de qualquer razão, lógica do masoquismo, lógica do sentido
e do não sentido em Lewis Carroll, lógica do processo
esquizofrênico ou, ainda, a lógica de determinados filósofos que,
ao abrigo da razão, na verdade inven- taram lógicas bem pouco
racionais (Hume, Bergson, Espinosa, e até mesmo Leibniz). Em
Deleuze, a lógica sempre tem algo de esquizofrê- nico. Isso
constitui um outro traço distintivo: uma profunda perver- são no
próprio âmago da filosofia. Assim se estabelece uma primeira
definição da filosofia de Deleuze: ela se apresenta como uma lógica
irracional dos movimentos aberrantes. Veremos que, em determinadas
condições, os movimentos aberrantes constituem a mais alta potência
de existir, enquanto que as lógicas irracionais constituem a mais
alta potência de pensar.
15. A propósito de Cinéma 1 e Cinéma 2, cf. Pourparlers, p. 68 [p.
63]: “tentei fazer um livro de lógica, uma lógica do cinema.” 16.
Critique et Clinique, p. 105 [pp. 94-95]: “O ato fundador do
romance americano, o mesmo que o do romance russo, consistiu em
levar o romance para longe da via das razões e dar nascimento a
esses personagens que estão suspensos no nada, que só sobre- vivem
no vazio, que conservam seu mistério até o fim e desafiam a lógica
e a psicologia […]. o que conta para um grande romancista,
Melville, Dostoiévski, Kafka ou Musil, é que as coisas permaneçam
enigmáticas e, contudo, não arbitrárias: em suma, uma nova lógica,
plenamente uma lógica, mas que não nos reconduza à razão e que
capte a inti- midade da vida e da morte.” Cf. também L’Anti-Œdipe,
p. 455/459 [p. 503]: “Acreditamos no desejo como no irracional de
toda racionalidade.”
Introdução
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Se foi possível definir o empirismo como uma filosofia do homem
comum que se constitui através da regularidade das associações de
ideias, da regulação das paixões — um homem de hábitos e de nor-
mas, em suma —, então a filosofia de Deleuze não é um empirismo, ou
pelo menos não um empirismo desse tipo. Não se trata de mostrar
como o espírito, inicialmente condenado ao caos, acaba constituindo
regras, contraindo hábitos, para finalmente dar provas de bom
senso, sobretudo se se define o bom senso como o que vai “do
singular ao regular, do notável ao ordinário”.17 Para Deleuze, não
há, não pode haver filosofia do ordinário, do regular ou do legal.
A filosofia do ordinário é a morte da filosofia. É preciso
encontrar um outro nome, empirismo superior, empirismo radical ou
“empirismo transcenden- tal”, que ateste a necessidade de invocar
outros tipos de movimentos, demoníacos ou excessivos.
Como lógico implacável, Deleuze é indiferente à descrição do vivido
(do mais originário ao mais ordinário). Por isso nele não se
encontra nenhum exemplo tirado da vida comum. Em Deleuze, não há
garçom de café, nem açúcar que se desmancha, nem mesa sobre a qual
escrevo, nenhum apelo à experiência vivida. A seus olhos, as
filosofias do originário e do ordinário são ternas demais,
sentimentais demais. Só conta a lógica, mas porque, como veremos,
ela tem uma curiosa maneira de se confundir, para além do vivido,
com as pró- prias potências da vida. Em decorrência disso, outro
traço distintivo, um vitalismo rigoroso. Não é que a vida insufla,
à lógica, um vento de irracionalidade que, ausente, faz falta a
ela; ao contrário, é que as potências da vida produzem
incessantemente novas lógicas que nos submetem à irracionalidade
delas.
Dizíamos que é sempre difícil resumir uma filosofia através de uma
proposição geral ou de um traço essencial — por exemplo, definir a
filosofia de Deleuze como uma filosofia do Uno (tanto quanto do
Múltiplo), uma ontologia dos fluxos ou um pensamento da imanência.
Há uma razão para tanto: é que se propõe explicar Deleuze a partir
de determinadas teses gerais, sem recuperar o problema efetivo de
onde tais teses procedem. É estranho que as exigências fixadas por
Deleuze
17. Logique du sens, p. 94 [p. 79].
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sobre esse ponto tenham sido tão pouco consideradas. Claro que se
pode reivindicar as declarações em que Deleuze se explica sobre o
que quis fazer.18 Mas por aí nos afastamos precisamente do problema
de que dependem tais declarações. A advertência, porém, é muito
clara:
“Desde que ‘esquecemos’ o problema, só temos diante de nós uma
solução geral abstrata”19 e um conjunto de teses independentes —
por- tanto discutíveis — supostamente válidas para o pensamento do
autor: Deleuze, filósofo do acontecimento, pensador da imanência,
filósofo vitalista… Uma filosofia consiste primeiro na posição e
determinação de um problema, e não nas noções ou conceitos que dele
dependem ou que permitem resolvê-lo. Nenhuma das noções que
acabamos de enumerar constitui um problema por si mesmo; pelo
contrário, cada uma é o objeto de definições explícitas.
Os movimentos aberrantes constituem os signos do problema geral da
filosofia de Deleuze. Mas qual é, precisamente, a natureza do pro-
blema? Qual é, portanto, o problema que os faz surgir, os faz serem
buscados em toda parte? Antes de poder responder, talvez seja
preci- so distinguir dois tipos de problemas ou de combates. Pois
frequen- temente um problema depende de uma prova físico-mental que
faz do filósofo um lutador, um dialético, e confere aparências
épicas ao pensamento. Este estudo poderia chamar-se: Deleuze,
filosofia épica. Em Deleuze há sempre um combate em curso. Mas tal
combate é de várias ordens. É preciso distinguir entre o combate
como consequên- cia de uma tese — um sistema de ataque/defesa que
implica posições e argumentos — e aquele dos aliados, com os quais
se abraça uma causa (é o caso de Hume, Bergson, Espinosa ou
Nietzsche). A filosofia tem muitos desses combates, “grandes
batalhas para rir”, diz Deleuze: materialismo contra
espiritualismo, nominalismo contra realismo etc.
18. Pourparlers, p. 194 [p. 177]: “Em todos os meus livros busquei
a natureza do aconte- cimento”; e p. 196 [p. 179]: “Tudo que
escrevi era vitalista, ao menos assim o espero, e constituía uma
teoria dos signos e do acontecimento”. Ou ainda, Deux Régimes des
fous et autres textes, p. 339: “Vejam bem a importância, para mim,
da noção de multiplicidade: é o essencial […] Creio que, além das
multiplicidades, o mais importante para mim foi a imagem do
pensamento tal como tentei analisá-la em Diferença e repetição,
depois em Proust, e em toda parte.” 19. Différence et répétition,
p. 211 [p. 233]: Tal exigência é constante em Deleuze. Está pre-
sente desde Empirisme et subjectivité, pp. 118-119 [pp. 119-120]; e
se encontra em Qu’est-ce que la philosophie?, p. 32/33 [pp.
40-41].
Introdução
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A propósito, a maioria das monografias de Deleuze sempre abraça a
causa do autor estudado: pensa-se com ele, ao lado dele,
defendendo-o contra as interpretações errôneas, os estiolamentos ou
as pacificações convencionais, restituindo-lhe a força
combativa.
Assim, Deleuze evidentemente reivindica seu pertencimento a uma
linhagem cujas filosofias sempre constituíram linhas de frente
ativas, empirismo contra racionalismo, Lucrécio contra a supers-
tição, Leibniz e Espinosa contra o cartesianismo, Nietzsche contra
Hegel. É possível fazer uma longa lista de figuras de combate, nas
quais encontraríamos tanto filósofos como escritores — Kleist
contra Goethe, Artaud contra Rivière, os Dadá contra os
Surrealistas — geô- metras, matemáticos, ciência “nômade” contra
ciência “real”. E, com Guattari, a linha de frente se estende ainda
com a declaração de guerra contra a psicanálise, a defesa do
inconsciente-fábrica contra o incons- ciente-teatro, da máquina
contra a estrutura, das máquinas de guerra nômades contra os
aparelhos de captura dos aparelhos de Estado e contra a potência de
axiomatização do capitalismo, sem esquecer o combate geral da
filosofia a um só tempo contra o caos e a opinião.20
Em toda parte, o tempo todo, descrições de batalhas, de combates
com inúmeros focos — tanto que Deleuze e Guattari parecem passar de
uma posição a outra, de uma estratégia a outra, de acordo com
os
“platôs”, os inimigos e os perigos. Mas há um combate de outra
natureza, que não é mais consequên-
cia, mas princípio, e no qual o próprio pensador é a consequência;
não é mais ele quem distribui as linhas de frente, as posições, o
mapa geral dos confrontos. É sobretudo seu pensamento que se
distribui, desdobra sua topologia própria e original em função do
combate que nele se desenrola e do qual ele procede, sendo exemplar
o caso de Nietzsche. Com efeito, Nietzsche se expõe como lugar de
um combate incessante no sentido em que as posições por ele
ocupadas atestam sucessivamente uma luta que nele se desenrola —,
da qual ele é o paciente, o instrumento ou o “cúmplice” — e que,
aliás, se distingue de todos os problemas por ele postos. É claro
que tal problema não pode ser enunciado por alguém que está às
voltas com ele. Ele atua como um impensado no âmago do pensamento,
e o trabalho filosófico
20. Qu’est-ce que la philosophie?, p. 191/203 [pp. 260-261].
17
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se torna a exposição do deslocamento do problema ou da
questão.21
É um aspecto que encontramos em Foucault quando este retoma os
diversos períodos de seu trabalho para dizer, a cada vez: no fundo,
meu problema sempre foi…, formulando sempre um novo problema, sem
relação direta com o precedente, como um derradeiro estado da
questão. Pouco importa que se trate de reconstruções a posteriori;
tais deslocamentos atestam, a cada vez, um combate que se desenrola
nele e o faz ocupar uma posição sempre nova.
Como diz Deleuze, não se trata mais de um combate contra os outros,
mas de um combate contra si, em que é “o próprio combatente [que] é
o combate, entre suas próprias partes, entre as forças que subju-
gam ou são subjugadas, entre as potências que exprimem essas
relações de forças”,22 no qual não se luta contra os outros sem
também lutar con- tra si mesmo. O ponto de vista não é mais o
mesmo. O pensador é então condenado a uma necessária solidão, como
foi o caso para Nietzsche. Não há aí nenhum pathos, mas um efeito
do problema, uma consequên- cia do combate, pois é o que faz com
que não se possa mais abraçar uma causa num combate preexistente
(exceto de solidão para solidão
— donde, talvez, a proximidade de todos os solitários com
Nietzsche). Não se trata mais de opor empirismo e racionalismo,
imanência e trans- cendência enquanto problemas exteriores a si e
para os quais sempre se encontra aliados. Será isso que Deleuze
quer dizer quando invoca o solipsismo necessário do pensador?23 Há
sempre um momento em que os predecessores e os intercessores não
têm mais serventia, não podem mais ajudar. Enfrenta-se o problema
sozinho, não por heroísmo, mas porque não se dispõe de nenhuma
solução preexistente a que se repor- tar para avançar em sua
resolução. Os aliados não preexistem mais, é preciso criá-los você
mesmo, à medida que se combate.
21. Différence et répétition, p. 143 [p. 160]: “Os problemas e as
questões pertencem, pois, ao inconsciente, mas este, do mesmo modo,
é, por natureza, diferencial e iterativo, serial, problemático e
questionante.” 22. Critique et clinique, p. 165 [p. 149]. 23. Cf.
Différence et répétition, p. 361 [p. 389]: “É bem verdade, neste
sentido, que o pen- sador é necessariamente solitário e
solipsista”; e Dialogues, p. 13 [p. 14]: “Quando se tra- balha, a
solidão é, inevitavelmente, absoluta. Não se pode fazer escola, nem
fazer parte de uma escola. Só há trabalho clandestino. Só que é uma
solidão extremamente povoada. Não povoada de sonhos, fantasias ou
projetos, mas de encontros […] É do fundo dessa solidão que se pode
fazer qualquer encontro”.
Introdução
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Qual é, então, o problema através do qual Deleuze está enfim só,
sem Guattari nem Espinosa, Nietzsche ou Bergson, muito embora
continue passando por eles e por tantos outros? Haveria algo que
pode portar o nome de Deleuze para além dos empréstimos, dos
desvios e das colagens? A questão se coloca sobretudo porque
Deleuze nunca deixou de pensar com os outros, numa “solidão
extremamente povoa- da”. Que se considere o exemplo de Diferença e
repetição. A respei- to do projeto geral do livro, já se disse que
consistia em conferir ao estruturalismo sua “filosofia
transcendental”. Não foi Deleuze, aliás, quem atribuiu tal tarefa à
filosofia?24 Desse ponto de vista, Diferença e repetição não
colocaria o problema dialético de uma totalização dos saberes no
interior do estruturalismo? Pode-se supor, com razão, que a
estrutura designa um novo modo de unificação dos saberes, e que ela
corresponde a essa totalização — ambição sempre reivindicada por
Deleuze — na medida em que permite juntar desordenadamente
matemática e biologia, literatura e ciência física, sexualidade e
polí- tica segundo uma espécie de mathesis universalis;25 pois é
isso que vemos em Diferença e repetição, uma totalização
enciclopédica dos saberes e dos campos, cujo conceito de estrutura
é o agente de pas- sagem, de circulação e de tradução. Ocorre que
ficaria então incom- preensível por que o projeto se ordena em
torno dos novos conceitos de diferença e de repetição. Pode-se
insistir sobre o estruturalismo de Deleuze e, mais tarde, em seu
“trabalho a dois” com Guattari, sobre seu maquinismo — e tudo com
razão; mas o que há de propriamente deleuziano é, antes de tudo,
esse gosto pelos movimentos aberrantes que constitui seu problema
específico, e talvez até mesmo a razão de sua colaboração com
Guattari. O estruturalismo e, posteriormente, o maquinismo servem,
antes de tudo, para formar as lógicas que dão razão a tais
movimentos aberrantes.
24. L’Île déserte et autres textes, p. 244 [p. 240]: “O
estruturalismo não é separável de uma nova filosofia
transcendental…” 25. Ibid., p. 111 [p. 109]: “Mas o que falta hoje,
o que Sartre soube reunir e encarnar para a geração precedente, são
as condições de uma totalização: aquela em que a política, o
imaginário, a sexualidade, o inconsciente, a vontade se reúnem nos
direitos da totalidade humana. Hoje nós subsistimos com os membros
esparsos”. Sobre a mathesis universalis, cf. Différence et
répétition, pp. 246, 257 e 285 [pp. 270, 281 e 310-311].
19
cópia para Orlandi
Determinar o problema consiste, primeiro, em estabelecer o próprio
fato dos movimentos aberrantes. Quid facti? Tal questão se coloca
tanto mais se admitirmos, com Deleuze, que esses movimentos aber-
rantes ultrapassam qualquer vivência, superam qualquer experiência
empírica. Com efeito, acaso Deleuze não afirma que os movimentos
aberrantes nos transportam para o que há de impensável no pensa-
mento, de invivível na vida, de imemorial na memória, constituindo
o limite ou o “objeto transcendental” de cada faculdade?26 É isso
que eles têm de propriamente aberrante: excedem o exercício
empírico de cada faculdade e forçam cada uma delas a se superar
rumo a um obje- to que a concerne exclusivamente, mas o qual ela só
atinge no limite de si mesma. Pois então, o que atesta o invivível
na vida, o imemorial na memória ou o impensável no pensamento se
eles permanecem ina- cessíveis, se as faculdades, em seu uso
empírico, não podem atingi-los? Será que pelo menos eles têm uma
existência verificável? Ou será que corroboram a mais antiga
metafísica, até uma espécie de esoterismo — o mesmo esoterismo que
às vezes foi atribuído à experiência do eterno retorno em Nietzsche
ou à experimentação da eternidade em Espino- sa? Essa é a suspeita
que pesa sobre as experiências-limite. A questão se coloca da mesma
maneira para os processos esquizofrênicos descri- tos em O
anti-Édipo, para a experimentação dos devires ou do “corpo sem
órgãos” descritos nos Mil platôs, sobre o qual Deleuze e Guattari
dizem justamente: “Ao corpo sem órgãos não se chega, não se pode
chegar, nunca se acaba de chegar a ele, é um limite.”27 Se não
chega- mos lá, se jamais o atingimos, então como postular sua
existência e, simultaneamente, dizer: “De todo modo você tem um (ou
vários), não porque ele preexista ou seja dado inteiramente feito —
se bem que sob certos aspectos ele preexista — mas de todo modo
você faz um, não pode desejar sem fazê-lo — e ele espera por você,
é um exercício, uma experimentação inevitável…”?28 Como o corpo sem
órgãos pode ser, ao mesmo tempo, uma experimentação inevitável e um
limite ina- cessível? Em todos os casos, uma única questão se
coloca: quid facti?
26. Différence et répétition, p. 250 [p. 274]. 27. Mille plateaux,
p. 186 [v. 3, p. 9]. 28. Ibid., p. 185 [Ibid.].
Introdução
cópia para Orlandi
Essa primeira dificuldade implica evidentemente outra, segun- do a
ordem das tarefas kantianas. Como determinar a legitimidade
filosófica de tais movimentos, não apenas na medida em que teriam
seu lugar num sistema qualquer, mas na medida em que nele devem
desempenhar um papel constitutivo? Como podem tais movimentos
pretender exercer tal função? Com que direito? Sobre o que se fun-
da sua legitimidade? Pode-se, é claro, afirmar que tudo procede dos
movimentos aberrantes, que só eles atestam uma potência genética
autêntica. Pode-se invocar Leibniz, Nietzsche ou Bergson, que já
res- saltavam tais movimentos; Deleuze via neles a assinatura dos
filósofos (a dobra levada ao infinito, o eterno retorno e os fluxos
coexistentes da Duração) e se esforçava para estabelecer a cada vez
sua lógica singular. Pode-se também dizer que esses movimentos não
têm nada de arbitrá- rio ou acidental; que, pelo contrário, são
necessários, “forçados”, e, por isso mesmo, são absolutamente os
primeiros, absolutamente consti- tutivos. Pode-se até afirmar que
todos os movimentos regulares estão em segundo lugar, são
derivados, inclusive aqueles que obedecem às leis da natureza.
Pode-se ainda dizer que a Natureza, em seu fundo, é pura aberração
e que “As participações, as núpcias antinatureza, são a verdadeira
Natureza que atravessa os reinos”.29 Mas com que direito? Sobre o
que se fundam tais afirmações? Como elas são possíveis? Ou melhor:
o que as torna necessárias? Quid juris? De onde tiram sua Quid
juris? De onde tiram sua Quid juris? legitimidade, se é que têm
alguma?
Daí decorre um terceiro tipo de problema relativo aos movimentos
aberrantes, que concerne diretamente a seu vínculo com a vida, de
um ponto de vista tanto ético quanto político. Não mais quid facti?
[ques- tão de fato] nem quid juris? [questão de direito] mas sim
quid vitae? [questão de vida]. Com efeito, não existiria um perigo
real inerente aos movimentos aberrantes? Se a cada vez é preciso
conduzir-se aos limites do que podemos, não corremos o risco de
sermos levados para
29. Ibid., p. 295 [v. 4, p. 23]; e Différence et répétition, pp.
292-293 [p. 320]: “É o mesmo que dizer que o real não é o resultado
das leis que o regem e que um Deus saturnino devora por um lado o
que ele faz do outro, legislando contra sua criação, pois ele cria
contra sua legislação. Eis-nos forçados a sentir e pensar a
diferença. Sentimos alguma coisa que é contrária às leis da
natureza, pensamos alguma coisa que é contrária aos princípios do
pensamento”. Cf. também, ibid., pp. 312-313 [pp. 341-342].
21
cópia para Orlandi
além dos limites e de sucumbirmos? Como os movimentos aberran- tes
não se confundiriam com um processo de autodestruição? Acaso o
excesso que exprimem não corre o risco de nos destruir, corpo e
alma? “A experimentação vital é quando uma tentativa qualquer lhe
apanha, toma conta de você, instaurando cada vez mais conexões, lhe
abrindo a conexões: tal experimentação pode comportar uma espécie
de autodestruição, pode passar por produtos que a acompanham ou
aguçam, fumo, álcool, drogas. Ela não é suicida, desde que o fluxo
des- truidor não se assente sobre si mesmo, mas sirva para a
conjugação de outros fluxos, sejam quais forem os riscos. Em
contrapartida, ocorre a empresa suicida quando tudo está assentado
sobre um único fluxo:
‘meu’ trago, ‘minha’ sessão, ‘meu’ copo. É o contrário das
conexões, é a desconexão organizada.”30 Ao lado dos “combates
contra os outros” e do “combate entre si”, não haveria ainda uma
outra guerra, salvo se ela for o estranho efeito de tais combates,
uma forma de autodestrui- ção imanente aos movimentos aberrantes?
“E o que foi que aconteceu exatamente? Eles não tentaram nada de
especial que estivesse acima de suas forças; no entanto, despertam
como se saíssem de uma batalha grande demais para eles, o corpo
quebrado, os músculos pisados, a alma morta […].” Combate duvidoso
no qual as forças vitais fraque- jam, se esgotam, voltam-se contra
elas próprias, no qual não se é capaz de fazer mais nada, desolado,
desesperado, “um fuzil vazio na mão e os alvos abatidos”, segundo a
formulação de Fitzgerald.31
Parece que tudo está estranhamente imbricado. Ao lado da repeti-
ção que salva há a repetição que mata ou destrói, como as pulsões
que arrastam para uma irreversível engrenagem mortífera os
personagens de Zola ou os personagens “naturalistas” de Von
Stroheim, Buñuel e Nicholas Ray.32 É um perigo análogo ao que
ressurge quando Deleu- ze e Guattari descrevem o movimento
aberrante das “linhas de fuga”.
“Elas próprias desprendem um estranho desespero, como que um odor
de morte e de imolação, como que um estado de guerra do qual se sai
destroçado”. Mais adiante, eles esclarecem: “Por que a linha de
fuga é uma guerra na qual há tanto risco de se sair desfeito,
destruído, depois
30. Deux Régimes de fous et autres textes, p. 140. 31. Logique du
sens, p. 180 [p. 157]. 32. Cinéma 1 — L’image-mouvement, pp. 173 e
ss. [pp. 157 e ss.].
Introdução
cópia para Orlandi
de se ter destruído tudo o que se podia?”33 Os movimentos
aberrantes ameaçam a vida tanto quanto liberam suas potências. O
vitalismo de Deleuze é mais perturbador, mais indeciso do que às
vezes se afirma a seu respeito.
Encontramos a confirmação disso no fato de que seus textos mais
“vitalistas” são ao mesmo tempo sempre textos dedicados à morte, ao
que a vida faz morrer em nós para liberar suas potências (e aos
perigos que essa morte faz correr). Tudo se passa como se o que
houvesse de mais intensamente vital fosse insuportável ou, pelo
menos, se desse em condições tais que, de todo modo, seria preciso
passar por mortes que nos desorganizam, que de fato nos
“desorganicizam”. É que, em Deleuze, a vida não se limita a
produzir organismos, nem assume invariavelmente uma forma orgânica.
Pelo contrário, os movimentos aberrantes atestam uma “vida
inorgânica” que atravessa os organis- mos e ameaça sua integridade;
uma vida tão indiferente aos corpos que atravessa quanto aos
sujeitos que transtorna. Chega-se ao ponto em que a vida se torna
“grande demais para mim, jogando por toda parte suas
singularidades, sem relação comigo”,34 em que ela leva o sujeito a
experimentações no limite do insuportável.
Deleuze via no pensamento de Foucault “um vitalismo sobre fun- do
de mortalismo”.35 Mas talvez a fórmula convenha inicialmente a
Deleuze, de tanto que a morte está presente nele como aquilo que
confere ao movimento seu caráter aberrante: com efeito, é o
instinto de morte que define o movimento forçado que percorre
Diferença e repetição. Trata-se de um movimento de grande amplitude
que faz morrer tudo o que não é necessário para as potências da
vida, ao mes- mo tempo em que essas mortes interiores sempre correm
o risco de
33. Mille plateaux, p. 280 [v. 3, pp. 111-112]. Ou, ainda, por
exemplo, em Foucault, p. 130 [p. 130]: “É uma terrível linha que
mescla todos os diagramas, em cima até dos furacões, a linha de
Melville, de duas extremidades livres, que envolve toda a
embarcação em seus meandros complicados, que passa, quando chega o
momento, por horríveis contorções e arrisca-se sempre a arrastar um
homem quando corre solta; ou mesmo a linha de Michaux, ‘de mil
aberrações’, de velocidade molecular crescente, ‘correia do chicote
de um carroceiro em fúria’. Mas, por mais terrível que seja essa
linha, é uma linha de vida…” 34. Logique du sens, p. 177 [p. 154].
35. Pourparlers, p. 125 [p. 114]. A fórmula aparece em Foucault em
Naissance de la Cli- nique. Paris: puf, 1963, p. 148 [O nascimento
da clínica, trad. bras. de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1977, p. 166].
23
cópia para Orlandi
nos levar a um projeto mortífero ou suicida. É preciso se desfazer
da ideia segundo a qual Deleuze teria sempre cantado a afirmação
alegre das potências da vida. Não é ele quem escreve que os
filósofos sen- tem estranhas afinidades com a morte, “que passaram
pela morte; e acreditam também que, embora mortos, continuam a
viver, mas com muito frio, cansaço e precaução […]. O filósofo é
alguém que pensa ter retornado dos mortos, com razão ou sem ela, e
que retorna aos mortos, com toda a razão”?36 Isso não supõe nenhum
gosto, nenhum fascínio pela morte, mas sim a percepção da vida como
coextensiva à morte e aos mortos pelos quais ela nos faz passar. Se
é preciso tornar a morte aberrante, “esquizofrenizar a morte” como
diz O anti-Édipo, é porque ela é a instância silenciosa que, por
sua vez, torna a vida aber- rante, esquizofreniza-a, daí seu
caráter coextensivo. Os movimentos aberrantes nos arrancam de nós
mesmos, segundo um termo que retorna com frequência em Deleuze. Há
algo “forte demais” na vida, intenso demais, que só podemos viver
no limite de nós mesmos. É como um risco que faz com que já não nos
atenhamos mais à nossa vida no que ela tem de pessoal, mas ao
impessoal que ela permite atingir, ver, criar, sentir através dela.
A vida só passa a valer na ponta dela própria. Quid vitae?
Tal combate que se trava em nós é inseparável de um combate travado
contra as potências externas que nos atravessam e nos sub- metem.37
Ele faz parte de uma máquina de guerra positiva, ativa, na qual
somos capturados. Pensar, para Deleuze, sempre foi concebido como
um ato guerreiro.38 Politicamente, historicamente, socialmen- te,
os movimentos aberrantes sempre são máquinas de guerra, agen-
ciamentos guerreiros — como atestam os nômades, os trabalhadores
itinerantes, os sábios e os artistas ao longo da história
universal, em virtude dos novos tipos de espaço-tempo que criam. De
uma manei- ra muito geral, os movimentos aberrantes são
inseparáveis de uma força crítica destruidora. Desse ponto de
vista, a questão quid juris? não implica apenas determinar o
direito próprio a este ou aquele fato, mas a combater, a lutar em
prol do que tais movimentos aberrantes
36. Cinéma 2, p. 271 [p. 249]. Cf. também Qu’est-ce que la
philosophie?, p. 67/71 [p. 92]. 37. Pourparlers, p. 7 [p. 15]. 38.
Mille plateaux, p. 467 [v. 5, p. 46]: “fazer do pensamento uma
máquina de guerra.”
Introdução
24 Deleuze, os movimentos aberrantes
exprimem. A expressão é como um grito — e há numerosos gritos em
Deleuze. É como que um derradeiro estado da pergunta: que direi-
tos esses movimentos aberrantes reivindicam? Em prol de que novas
existências testemunham? “Talvez esteja aí o segredo: fazer
existir, não julgar.”39 Por que então passar pelos nômades, os
metalúrgicos, os índios, os trabalhadores itinerantes, a geometria
arquimediana ou a música? Não há uma luta contra a morte, não mais
a morte positiva da autodestruição, mas uma morte inteiramente
outra, aquela através da qual o capitalismo nos faz passar e que
nos transforma em mortos vivos, em zumbis sem futuro? É nesse
sentido que Deleuze e Guattari descrevem a estranha “paz mundial”
em que vivemos, e contra a qual certos movimentos aberrantes estão
sempre lutando, molecularmente, minoritariamente.
39. Critique et clinique, p. 169 [p. 153].
AGRADECIMENTOS DA EDIÇÃO
A presente edição tornou-se possível graças ao apoio do Institut
Français, do cnl, do Coletivo Figuras da Subjetividade e de
diversas pessoas que a apoiaram das mais variadas formas. A cada um
de vocês, nossos sinceros agradecimentos.
campanha de financiamento coletivo
Ana Amelia Corazza Genioli, Carolina Calmon Ramalho, Digão
Teixeira, Elisandro Rodrigues, Jô Gondar, Karê Tygres, Roberto
Bastos, Katia Regina Chigres, Veronica Miranda Damasceno e equipe
Benfeitoria.com
coletivo figuras da subjetividade
Arnaldo Pappalardo, Cleusa Maria Gomes de Abreu, Cristina Valéria
Flau sino, Diana Capdeville, Éricka Gouveia, Fabiana Aguiar,
Hiram-Abif da Silva Almeida, Natalie Salazar, Natasha Barricelli,
Paulina Ghertman, Sergio Alves
leilão de arte
Ana Lucia Mitre, Arnaldo Battaglini, Arnaldo Pappalardo, Beatriz
Sztutman, Contra filé, Carol Seiler, Eva Castiel, Fanny Feigenson,
Fernando Vilela, Helena Kavaliunas, Hernando Rosa, Isaac Sztutman,
Lucimar Bello Frange, Malvina Sammarone, Miriam Pappalardo, Natasha
Barricelli, Nair Kramer, Reinaldo Marques, Sérgio Fingermann,
Sheila Coelho Reis, Stela Barbiere, Thais Costa e equipe
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