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Observatório da Jurisdição Constitucional Ano 2 - Setembro 2008 - Brasília - Brasil - ISSN 1982-4564 CRIME DE RACISMO CONTRA JUDEUS: UMA BREVE ANÁLISE DO HC 82.424-2/RS Carlos Odon Lopes da Rocha 1 RESUMO: O presente artigo visa comentar o acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal nos autos do HC 82.424-2/RS, trazendo à baila os argumentos contrários e favoráveis à configuração da discriminação contra os judeus como crime de racismo. Conclui-se pelo acerto do entendimento trilhado pela Suprema Corte, em observância ao princípio constitucional da tolerância. 1. INTRODUÇÃO Em 17 de setembro de 2003, nas vésperas de completar 175 anos, o Supremo Tribunal Federal proferiu um julgamento histórico, ao denegar o habeas corpus impetrado em favor de Siegfried Ellwanger contra decisão do Superior Tribunal de Justiça. O Tribunal de Cidadania condenara o paciente como incurso nas penas do art. 20 da Lei 7.716/89, com a redação dada pela Lei 8.081/90, pois praticara o crime de racismo contra a comunidade judaica. O Superior Tribunal de Justiça afirmou que “todo aquele que pratica uma destas condutas discriminatórias ou preconceituosas (incitação ou induzimento), é autor do delito de racismo, inserindo-se, em princípio, no 1 Procurador do Distrito Federal. Advogado. Pós-graduado em Direito Público pelo IDP (Convênio com a PGDF).

Crime de Racismo Contra Judeus (Carlos Odon Lopes Da Rocha)

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Análise jurídica sobre o caso Ellwagner e sua repercussão no STF.

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  • Observatrio da Jurisdio Constitucional

    Ano 2 - Setembro 2008 - Braslia - Brasil - ISSN 1982-4564

    CRIME DE RACISMO CONTRA JUDEUS:

    UMA BREVE ANLISE DO HC 82.424-2/RS

    Carlos Odon Lopes da Rocha1

    RESUMO: O presente artigo visa comentar o acrdo proferido pelo Supremo

    Tribunal Federal nos autos do HC 82.424-2/RS, trazendo baila os argumentos

    contrrios e favorveis configurao da discriminao contra os judeus como crime

    de racismo. Conclui-se pelo acerto do entendimento trilhado pela Suprema Corte, em

    observncia ao princpio constitucional da tolerncia.

    1. INTRODUO

    Em 17 de setembro de 2003, nas vsperas de completar 175 anos, o Supremo

    Tribunal Federal proferiu um julgamento histrico, ao denegar o habeas corpus

    impetrado em favor de Siegfried Ellwanger contra deciso do Superior Tribunal de

    Justia.

    O Tribunal de Cidadania condenara o paciente como incurso nas penas do art.

    20 da Lei 7.716/89, com a redao dada pela Lei 8.081/90, pois praticara o crime de

    racismo contra a comunidade judaica. O Superior Tribunal de Justia afirmou que

    todo aquele que pratica uma destas condutas discriminatrias ou preconceituosas

    (incitao ou induzimento), autor do delito de racismo, inserindo-se, em princpio, no 1 P roc u rado r do D i s t r i t o Fede ra l . Ad vo gado . P s -g radu ado em D i re i t o Pb l i c o p e lo I DP (Con vn io c om a P GD F ) .

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    mbito da tipicidade direta. Destarte, uma vez reconhecida a subsuno da conduta

    delituosa ao injusto de racismo, a imprescritibilidade era medida que se impunha.

    Houve, em seguida, a impetrao da ao constitucional do habeas corpus

    perante o Supremo Tribunal Federal, sob a alegao de que o delito de discriminao

    contra os judeus no teria conotao racial para se lhe atribuir a imprescritibilidade.

    Em sntese, afirmaram os impetrantes que judeus no deveriam ser vistos como uma

    raa.

    Logo, a vexata questio se resumia a determinar o exato sentido e alcance da

    expresso racismo, conforme disposto no art. 5, XLII, da Carta Poltica de 1988.

    Em seu voto, o Ministro Relator Moreira Alves asseverou que a interpretao

    da Constituio h de levar em conta o elemento histrico. E, segundo a Emenda

    Aditiva 2P00654-0, de autoria Constituinte Carlos Alberto Ca, a qual deu origem ao

    referido dispositivo constitucional, a expresso racismo consistia to-somente no

    preconceito ou discriminao contra a raa negra. Ao concluir o seu voto, o Relator se

    fundamentou em diversos estudiosos judeus para afirmar que os judeus no so raa.

    Em desfecho, o Ministro Moreira Alves, reconhecendo, pois, no se tratar de crime de

    racismo a apologia de idias preconceituosas e discriminatrias contra a comunidade

    judaica, declarou a extino da punibilidade pela ocorrncia da prescrio da pretenso

    punitiva.

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    Todavia, ato contnuo, o Ministro Maurcio Corra abriu a divergncia, ao

    lembrar a histrica perseguio sofrida pelos judeus desde os primrdios da

    humanidade. Para ele, os judeus foram e continuam sendo estigmatizados, por terem

    supostamente renegado e crucificado Jesus. Asseverou, ainda, em seu voto divergente,

    que no mais procede, sob a tica cientfica, a clssica subdiviso da raa humana a

    partir de suas caractersticas fsicas. A gentica baniu definitivamente a diferenciao

    entre raas humanas. Em suma, no haveria raa branca, negra, amarela ou judia, mas

    apenas e exclusivamente a raa humana.

    Por outro lado, no se pode olvidar que a diferenciao entre raas surgiu a

    partir de um processo scio-cultural originado na intolerncia humana, nascendo,

    ento, o odioso preconceito racial. Em certa passagem, o Ministro Maurcio Corra

    afirma:

    Com efeito, limitar o racismo a simples discriminao de raas, considerado apenas o sentido lxico ou comum do termo, implica a prpria negao do princpio da igualdade, abrindo-se a possibilidade de discusso sobre a limitao de direitos e determinada parcela da sociedade, o que pe em xeque a prpria natureza e prevalncia dos direitos humanos. Condicionar a discriminao como crime imprescritvel apenas aos negros e no aos judeus aceitar como desiguais aqueles que na essncia so iguais (...).

    Com tais argumentos, o Ministro Maurcio Corra denegou a ordem. Seu voto

    foi acompanhado pelos Ministros Celso de Mello, Gilmar Mendes, Carlos Velloso,

    Ellen Gracie, Nelson Jobim e Cezar Peluso. O Ministro Marco Aurlio acompanhou o

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    relator, reconhecendo a prescrio da pretenso punitiva. E o Ministro Carlos Britto

    concedia ex officio a ordem para absolver o acusado, vez que a sua conduta era atpica,

    dado o direito fundamental de liberdade de expresso.

    2. O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A MXIMA EFETIVIDADE DO

    PRINCPIO DA TOLERNCIA

    H de se notar que o entendimento final do Supremo Tribunal Federal,

    acompanhando o voto condutor do Ministro Maurcio Corra, primou pela prevalncia,

    em ltima anlise, do princpio da tolerncia (religiosa), consectrio lgico do

    princpio do pluralismo e da democracia.

    Com o devido respeito, o Ministro Moreira Alves, em seu voto, conferiu

    demasiada importncia mens legislatoris (interpretao histrica), em detrimento

    mens legis. Buscou o sentido da norma constitucional a partir dos trabalhos

    preparatrios da Constituinte de 1988, em especial da Emenda Aditiva 2P00654-0, de

    autoria de Carlos Alberto Ca. Com isso, revelou apenas a vontade histrica e a

    inteno do legislador constituinte quando da elaborao do art. 5, XLII, da Carta

    Magna.

    Apesar da importncia de se conhecer a vontade histrica do legislador, tal

    elemento histrico no deve prevalecer sobre o direito posto. J dizia Geraldo Ataliba,

    citado por Lus Roberto Barroso, que:

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    (...) o jurista sabe que a eventual inteno do legislador nada vale (ou no vale nada) para a interpretao jurdica. A Constituio no o que os constituintes quiseram fazer, muito mais que isso: o que eles fizeram. O jurista trabalha com o direito positivo (posto). A lei mais sbia que o legislador. (...) Os juristas no perdem mais tempo em expor os argumentos tendentes a expressar o postulado hermenutico elementar segundo o qual o desejo do legislador, sua vontade e seus processos subjetivos motivacionais no tm valor para a exegese jurdica.2

    Ademais, a fundamentao do Ministro Carlos Britto no sentido de que o

    paciente deveria ser absolvido, vez que se tratava de resguardar o direito fundamental

    liberdade de expresso, tambm no haveria como prosperar.

    Nenhum direito absoluto. O pretexto do exerccio de um direito fundamental

    no pode servir de salvaguarda para a prtica de ilcitos penais. Na espcie, o direito

    liberdade de expresso no pode abrigar manifestaes de ilicitude penal, pois o

    discurso do dio racial no est inserido no mbito de proteo da liberdade de

    expresso.

    Com tais contra-argumentos, certo que o melhor caminho foi percorrido

    pela Suprema Corte, ao acompanhar o voto divergente do Ministro Maurcio Corra.

    Abriram-se as portas para se reconhecer, definitivamente, no mundo jurdico, o

    princpio constitucional da tolerncia.

    2 BAR R OS O, Lu s R ob e r to . I n te rp re ta o e Ap l i c a o da Co ns t i t u i o . So Pau lo : Sa ra i va , 1996 , p . 125 .

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    Com efeito, a tolerncia, como marca de evoluo (espiritual e moral) da

    humanidade, fruto tanto do Iluminismo quanto do Cristianismo. Nos grandes

    embates ideolgicos, como ocorreu entre o Iluminismo e a Igreja no sculo XVII e

    XVIII, comum estereotipar os adversrios. Porm, cabe investigao histrica fugir

    de tais esteretipos.3

    Sendo assim, no tenhamos uma viso idealizada da fase iluminista ou

    preconceituosa do Cristianismo. No raras vezes encontramos afirmaes pejorativas

    no universo jurdico de que determinado intrprete utilizou argumentos religiosos em

    sua manifestao.

    certo que no se deve tomar partido a favor desta ou daquela religio, mas

    no podemos olvidar a inegvel influncia crist na nossa sociedade. Conceitos

    fundamentais da Constituio Federal de 1988, como, por exemplo, a dignidade da

    pessoa humana ou a idia de justia social so impensveis sem as concepes

    modernas do Cristianismo.4 Voltaire, inclusive, deita as razes do princpio da

    tolerncia no Direito Natural, consubstanciado na seguinte mxima: No faa aos

    outros aquilo que no desejas que faam a ti.

    3 DA R OC HA , W as h ing ton A l ves . No Co ra o de An t gona . J o o Pes s oa : A CE P inhe i ro e A l ves Ed i t o ra , 20 02 , p . 36 . 4 H OR N, No rb e r t . I n t rod u o C inc ia do D i re i t o e F i l os o f i a J u r d i c a . T rad . E l i s e te An ton iuk . Po r to A leg re : S rg i o An tn io Fab r i s Ed i t o r . 2005 , p . 116 .

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    3. CONCLUSO

    Embora Voltaire tenha sido extremamente intolerante com os judeus, ao ponto

    de afirmar que nisto (monotesmo) os judeus no foram seno plagirios, como de

    resto o foram em tudo5 ou que nunca o povo judaico transmitiu o mais insignificante

    dos seus usos e costumes a outro povo qualquer, ele nos deixou um inestimvel legado

    sobre o princpio da tolerncia, inclusive uma prece, que peo licena para transcrever:

    No mais aos homens que eu me dirijo, a ti, Deus de todos os seres, de todos os mundos e de todos os tempos: se permitido a fracas criaturas perdidas na imensido e imperceptveis ao resto do universo ousar te pedir qualquer coisa; a ti que tudo tens dado, a ti cujos decretos so imutveis e eternos, digna-te olhar com piedade os erros inerentes nossa natureza. Que estes erros no sejam causadores de nossas calamidades. Tu no nos deste, de forma alguma, um corao para que nos odiemos nem mos para que nos massacremos. Faze com que ns nos ajudemos mutuamente a fim de suportarmos o fardo de uma vida penosa e passageira; que as pequenas diferenas entre as vestes que cobrem nossos corpos dbeis, em meio a todas nossas linguagens insuficientes, todos nossos costumes ridculos, todas nossas leis imperfeitas, todas as nossas opinies insensatas, em meio a todas nossas condies to desproporcionais aos nossos olhos e to iguais diante de ti; que todas essas pequenas nuanas que distinguem os tomos chamados homens no sejam sinais de dio e de perseguio; (...) Possam todos os homens se lembrar que so irmos! (...) Se as calamidades da guerra so inevitveis, no nos odiemos, nem nos destruamos no seio da paz (...).6

    5 DA R OC H A, W as h ing ton A l ves . Op . c i t . , p . 10 8 . 6 I b i d . p . 43 /44 .

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    Portanto, ao decidir que a discriminao ou perseguio contra os judeus pode

    configurar crime de racismo, o Supremo Tribunal Federal conferiu imprescindvel

    normatividade ao princpio constitucional da tolerncia, atualmente to esquecido no

    universo jurdico.