Crítica da razão dualista_Francisco de Oliveira_Cebrap

  • Upload
    jsfaro

  • View
    224

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

  • 8/2/2019 Crtica da razo dualista_Francisco de Oliveira_Cebrap

    1/79

    1F R A N C I S C O D E O L I V E I R A

    A ECONOMIA BRASILEIRA:CRITICA A RAZO DUALISTA

    (*) Este ensaio foi escrito como uma tentativa de resposta sindagaes de carter interdisciplinar que se formulamao CEBRAP, acercado pro ces so de expa nso scio-econmica do capitalismo no Brasil. Bene-fici a-se, dessa manei ra, do pec ulia r clima de discusso int ele ctu al que apangio do CEBRAP, a cujo corpo de pesquisadores pertence o autor. Oautor agradece as crticas e sugestes dos seus colegas, particularmente a

    Jos Ar th ur Giano tti Fe rna ndo Henri que Cardoso Octv io Iann i Paul

  • 8/2/2019 Crtica da razo dualista_Francisco de Oliveira_Cebrap

    2/79

    1. UMA BREVECOLOCAO

    DO PROBLEMA

    A perspectiva deste trabalho a de contribuir para areviso do modo de pensar a economia brasileira, na etapaem que a industrializao passa a ser o setor-chave para adinmica do sistema, isto , para efeitos prticos, aps aRevoluo de 1930. O exame que se tentar vai centrar

    sua ateno nas transformaes estruturais, entendidas estasno sentido rigoroso da reposio e recriao das condies deexpanso do sistema enquanto modo capitalista de produo.No se trata, portanto, nem de avaliar a "performance" dosistema numa perspectiva tico-finalista de satisfao dasnecessidades da populao, nem de discutir magnitudes detaxas de crescimento: a perspectiva tico-finalista muito asso-ciada ao dualismo cepalino parece desconhecer que a pri-

    meira finalidade do sistema a prpria produo, enquantoa segunda, muito do gosto dos economistas conservadores doBrasil, enreda-se numa dialtica vulgar como se a sorte das"partes" pudesse ser reduzida ao comportamento do "todo",a verso comumda "teoria do crescimento do bolo".

    Deve ser acrescentado que a perspectiva deste trabalhoincorpora, como variveis endgenas, o nvel poltico ou ascondies polticas do sistema: conforme o andamento daanlise tratar de demonstrar, as "passagens" de um moduloa outro, de um ciclo a outro ciclo, no so inteligveiseconomicamente "em si", em qualquer sistema que revistacaractersticas de dominao social. O "economicismo" dasanlises que isolam as condies econmicas das polticas um vcio metodolgico que anda de par com a recusa emreconhecer-se como ideologia.

    Este trabalho se inscreve ao lado de outros(1)

    surgidosrecentemente, que buscam renovar a discusso sobre aeconomia brasileira; neste sentido, o trabalho de Maria daConceio Tavares e Jos Serra, Ms all del estancamiento:una discusin sobre el estilo del desarrollo reciente deBrasil retoma um estilo e um mtodo de interpretao queestiveram ausentes da literatura econmica latinoamericana

    (1) Ver, po r exempl o, o tr ab al ho de Rol and o Cord era e Adolfo Oriv esobre a Industr ia l izao Mexicana, publicado pelo Tase-Boletin del Taller de

    Analis is Socioeconmico , vol . 1, n. 4, Mxico. No me ra me nt o cas uala coincidncia de reinterpretaes, na mesma linha terica, de economiascomo a mexicana e a brasileira marcadas por configuraes scio-econmicasbas tan te similares no que se refere a Indicadores de est ru tu ra , s qua ischega ram por processos polticos ba st an te diss emel hant es. A coincidncia nocasual resida no fato de que ambas sociedades chegaram a situaes estruturaissemelhantes "latu sensu" mediante processos cujo denominador comum foia ampla explorao de sua fora de trabalho, fenmeno que est na base daconsti tuio de um seleto mercado para as indstr ias dinmicas ao mesmotempo que d distr ibuio desiguali tar iamente crescente da renda.

    5

  • 8/2/2019 Crtica da razo dualista_Francisco de Oliveira_Cebrap

    3/79

    durante muito tempo, sepultados sob a avalanche cepalina,e inscreve-se como ummarco e umroteiro para novasindagaes. Convmassinalar que, por todos os lados, opensamento scio-econmico latinoamericano d mostras deinsatisfao e de ruptura com o estilo cepalino de anlise,

    procurando recapturar o entendimento da problemticalatinoamericana mediante a utilizao de um arsenal te-rico e metodolgico que esteve encoberto por uma espciede "respeito humano" que deu largas utilizao do arsenalmarginalista e keynesiano, estes conferindo honorabilidadee reconhecimento cientfico junto ao "establishment" tcnicoe acadmico. Assim boa parte da intelectualidade latino-americana nas ltimas dcadas dilacerou-se nas pontas do

    dilema: enquanto denunciavam as miserveis condies devida da grande parte da populao latinoamericana, seusesquemas tericos e analticos prendiam-nos s discussesem torno da relao produto-capital, propenso para pou-par ou investir, eficincia marginal do capital, economiasde escala, tamanho do mercado, levando-os, sem se daremconta, a construir o estranho mundo da dualidade e adesembocarem, a contra-gosto, na ideologia do circulo vi-

    cioso da pobreza (2). A dualidade reconciliava o supostorigor cientfico das anlises com a conscincia moral, le-vando a proposies reformistas. A bem da verdade, deve-se reconhecer que o fenmeno assinalado foi muito maisfreqente e mais intenso entre economistas que entre outroscientistas sociais: socilogos, cientistas polticos e tambmfilsofos conseguiram escapar, ainda que parcialmente, tentao dualista, mantendo, como eixos centrais da inter-pretao, categorias como "sistema econmico", "modo deproduo", "classes sociais", "explorao", "dominao". Masainda assim o prestgio dos economistas penetrou largamenteas outras cincias sociais, que se tornaram quase cauda-trias: "sociedade moderna"-"sociedade tradicional", porexemplo, um binmio que, deitando razes no modelodualista, conduziu boa parte dos esforos na Sociologia e

    (2 ) Um cas o t pi co o da den n cia da Prebi sch sob re os mecanismo sdo com rci o in te rn ac io na l que leva m deterlorao dos ter mos de inter-cm bio em de sf av or dos pases latinoamericanos. A estaria a base pa rauma reelabora o da teo ria do Imper ialism o; aborta da sua profun diza oem direo a essa reelaborao, a proposio que sul nitidamente refor-mista e nega-se a si mesma: Prebisch espera que os pases Industrializados"re form em" seu comport amento , elevando seus paga mentos pelos pro duto sag ro pe cu r io s que compr am da Amr ica Latina o reb aix and o o preo dosben s i nd us tr i ai s qua vendem, que em essencia, o es p rit o das confe rncia s"UNCTAD". A proposio altamente tica e igualmente ingnua.

    6

  • 8/2/2019 Crtica da razo dualista_Francisco de Oliveira_Cebrap

    4/79

    na Cincia Poltica a uma espcie de "beco sem sada"rostowiano.

    O esforo reintepretativo que se tenta neste trabalhosuporta-se terica e metodologicamente em terreno comple-

    tamente oposto ao do dual-estruturalismo; neste ponto,bom que se esclarea onde se quer chegar: no se trata,em absoluto, de negar o imenso aporte de conhecimentosbebido diretamente ou inspirado no "modelo Cepal", masexatamente de reconhecer nele o nico interlocutor vlido,que ao longo dos ltimos decnios contribuiu para o debatee a criao intelectual sobre a economia e a sociedadebrasileira e a latinoamericana. Mesmo porque a oposio

    ao "modelo Cepal", durante o perodo assinalado, no sefez nem se deu em nome de uma postura terica maisadequada: os conhecidos opositores da Cepal no Brasil ena Amrica Latina tinham, quase sempre, a mesma filia-o terica marginalista, neoclssica e keynesiana, des-vestidos apenas da paixo reformista e comprometidos como "status quo" econmico, poltico e social da misria edo atraso seculares latinoamericanos. Como pobres papa-

    gaios, limitaram-se durante dcadas a repetir os esquemasaprendidos nas universidades anglo-saxnicas sem nenhumaperspectiva crtica, sendo rigorosamente nulos seus aportes teoria da sociedade latinoamericana (3). Assim, ao ten-tar-se uma "crtica razo dualista", reconhece-se a im-possibilidade de uma crtica semelhante aos "sem-razo".

    O anterior no deve ser lido como uma tentativa decontemporizao: a ruptura com o que se poderia chamar

    o conceito do "modo de produo subdesenvolvido" ou completa ou apenas se lhe acrescentaro detalhes. Noplano terico, o conceito do subdesenvolvimento como umaformao histrico-econmica singular, constituda polar-mente em torno da oposio formal de um setor "atrasado"e umsetor "moderno", no se sustenta como singularida-de: esse tipo de dualidade encontrvel no apenas emquase todos os sistemas, como em quase todos os perodos.Por outro lado, a oposio na maioria dos casos tosomente formal: de fato, o processo real mostra uma sim-biose e uma organicidade, uma unidade de contrrios, em

    (3) Nenhum dos econ omista s cons ervado res anti-Cepal, na Amrica

    La ti na e no Bras il, conseguiu pro duzir obra te ri ca ; seus escrit os so

    apenas ocasionais, ora de um, ora de "o ut ro lado da c rc a" .

    7

  • 8/2/2019 Crtica da razo dualista_Francisco de Oliveira_Cebrap

    5/79

    que o chamado "moderno" cresce e se alimenta da exis-tncia do "atrasado", se se quer manter a terminologia.

    O "subdesenvolvimento" pareceria a forma prpria deser das economias pr-industriais penetradas pelo capita-lismo, em "trnsito", portanto, para formas mais avana-das e sedimentadas deste; sem embargo, uma tal postula-o esquece que o "subdesenvolvimento" precisamenteuma "produo" da expanso do capitalismo. Em rarssi-mos casos dos quais os mais conspcuos so Mxico e Perutrata-se da penetrao de modos de produo anterio-res, de carter "asitico", pelo capitalismo; na grandemaioria dos casos, as economias pr-industriais da AmricaLatina foram criadas pela expanso do capitalismo mun-dial, como uma reserva de acumulao primitiva do sis-tema global; em resumo, o "subdesenvolvimento" umaformao capitalista e no simplesmente histrica. Ao en-fatizar o aspecto da dependncia a conhecida relaocentro-periferia os tericos do "modo de produo sub-desenvolvido" quase deixaram de tratar os aspectos inter-nos das estruturas de dominao que conformam as estru-turas de acumulao prprias de pases como o Brasil: todaa questo do desenvolvimento foi vista sob o ngulo dasrelaes externas, e o problema transformou-se assim emuma oposio entre naes, passando despercebido o fatode que, antes de oposio entre naes, o desenvolvimentoou o crescimento um problema que diz respeito oposioentre classes sociais internas. O conjunto da teorizaosobre o "modo de produo subdesenvolvido" continua ano responder quemtem a predominncia: se so as leisinternas de articulao que geram o "todo" ou se so asleis de ligao com o resto do sistema que comandamaestrutura de relaes (4). Penetrado de ambigidade, o "sub-

    (4) Ferna ndo Henrique Cardoso e Enzo Fale t t o elaboram um ateoria da dependncia cuja postulao essencial reside no reconhecimentode que a prpria ambigidade confere especificidade ao subdesenvolvimento,sendo a "dependncia" a forma em que os interesses internos se articulamcum o res to do siste ma cap ita lis ta. Afast am-s e, assim, do esquem a cepal ino,que v nas relaes externas apenas oposio a supostos interesses nacionaisglobais, para reconhecerem que, antes de uma oposio global, a "dependncia"

    art icula os interesses de determinadas classes e grupos sociais da Amricalat ina com os interesses de determinadas classes e grupos sociais fora daAmri ca Lat ina . A hegemonia apar ece como o res ult ado da linha comumde interesses determinada pela diviso internacional do trabalho, na escaladu mund o cap it ali sta . Ess a formu lao , a meu ver, mult o mai s cor ret aque a da tradio cepalina, embora ainda no d o devido peso possibilidadeterica e emprica de que se expan da o capi tal ism o em pas es como o Br asi lainda quando seja desfavor vel a diviso Int erna cion al do tr ab alh o dosistema capitalista como um todo. A meu ver, a ex pan so do ca pi ta li sm onu Bra sil depois de 30 il us tr a preci same nte esse caso. Ver, dos au to re sc i tados , Dependncia e Desenvolvimento na Amrica Latina, Zahar Editores,1970, Rio de Janeiro.

    8

  • 8/2/2019 Crtica da razo dualista_Francisco de Oliveira_Cebrap

    6/79

    2. O DESENVOL-VIMENTO

    CAPITALISTAPS-ANOS 30 EO PROCESSO

    DEACUMULAO

    desenvolvimento" pareceria ser um sistema que se moveentre sua capacidade de produzir um excedente que apro-priado parcialmente pelo exterior e sua incapacidade deabsorver internamente de modo produtivo a outra partedo excedente que gera.

    No plano da prtica a ruptura com a teoria do sub-desenvolvimento tambm no pode deixar de ser radical.Curiosa mas no paradoxalmente, foi sua preeminncia nosltimos decnios quem contribuiu para a no-formao deuma teoria sobre o capitalismo no Brasil, cumprindo umaimportante funo ideolgica para marginalizar perguntasdo tipo "a quemserve o desenvolvimento econmico capi-

    talista no Brasil?". Com seus esteretipos de "desenvol-vimento auto-sustentado", "internalizao do centro de de-cises", "integrao nacional", "planejamento", "interessenacional", a teoria do subdesenvolvimento sentou as basesdo "desenvolvimentismo", que desviou a ateno tericae a ao poltica do problema da luta de classes, justa-mente no perodo em que, com a transformao da econo-mia de base agrria para industrial-urbana, as condiesobjetivas daquela se agravavam. A teoria do subdesen-volvimento, foi, assim, a ideologia prpria do chamadoperodo populista; se ela hoje no cumpre esse papel porque a hegemonia de uma classe se afirmou de tal modoque a face j no precisa de mscara.

    A Revoluo de 1930 marca o fim de um ciclo e oincio de outro na economia brasileira: o fim da hege-

    monia agrrio-exportadora e o incio da predominncia daestrutura produtiva de base urbano-industrial. Ainda queessa predominncia no se concretize em termos da par-ticipao da indstria na renda interna seno em 1956,quando pela primeira vez a renda do setor industrialsuperar a da agricultura, o processo mediante o qual aposio hegemnica se concretizaria crucial: a nova cor-relao de foras sociais, a reformulao do aparelho e da

    ao estatal, a regulamentao dos fatores, entre os quaiso trabalho ou o preo do trabalho, tm o significado, deum lado, de destruio das regras do jogo segundo asquais a economia se inclinava para as atividades agrrio-exportadoras e, de outro, de criao das condies insti-tucionais para a expanso das atividades ligadas ao mercadointerno. Trata-se, emsuma, de introduzir umnovo modo

    9

  • 8/2/2019 Crtica da razo dualista_Francisco de Oliveira_Cebrap

    7/79

    de acumulao, qualitativa e quantitativamente distinto,que depender substantivamente de uma realizao parcialinterna crescente. A destruio das regras do Jogo daeconomia agrrio-exportadora significava penalizar o custoe a rentabilidade dos fatores que eram tradicionalmentealocados para a produo com destino externo, seja con-fiscando lucros parciais (o caso do caf, por exemplo), sejaaumentando o custo relativo do dinheiro emprestado aagricultura (bastando simplesmente que o custo do dinheiroemprestado indstria fosse mais baixo).

    Nesse contexto, alguns aspectos passam a desempenharum papel de enorme significao. O primeiro deles faz

    parte da chamada [regulamentao dos fatores, isto , daoferta e demanda dos fatores no conjunto da economia.A esse respeito, a regulamentao das leis de relao entreo trabalho e o capital um dos mais importantes, se noo mais importante. A chamada legislao trabalhista temsido estudada apenas do ponto de vista de sua estruturaformal corporativista, da organizao dos trabalhadores eda sua possvel tutela pelo Estado, e tem sido arriscada

    a hiptese de que a fixao do salrio-mnimo, por exemplo,teria sido uma medida artificial, semrelao comas con-dies concretas da oferta e demanda de trabalho: os nveisdo salrio mnimo, para Igncio Rangel, por exemplo, se-riam nveis institucionais (5), acima daquilo que se obteriacom a pura barganha entre trabalhadores e capitalistas nomercado. Uma argumentao de tal tipo endossa e alimentaas interpretaes dos cientistas polticos sobre o carter

    redistributivista dos regimes polticos populistas entre 1930e 1964 (6) e, em sua verso econmica, ela faz parte dabase sobre a qual se pensa a inflao no Brasil e contribuipara a manuteno, no modelo dual-estruturalista cepalino,

    (5) ". . . graas a isso ( legislao trabalhista) o padro salarialtornou-se relativamente independente das condies criadas pela presenade um enorme exrci to indus tr ia l de r e s e r v a . . . " RANGEL, Igncio,A inf lao brasi leira , Rio, Tempo Bras ilei ro, 1963 , p. 44-4 5.

    (6) No fugiu percepo dos cientistas polticos que escreveram

    sobre o ass unto , o aspec to de "do mina o" par a os fins da expan so cap i-tal ist a que a legislao trabalhista reveste , quan do os ampl os setores dasmassas urbanas passam a desempenhar um papel chave na estruturaopolt ica que perm iti u a indust rial iza o. Sem embar go, frequ ente ment e essapercepo cor ret a leva no bojo a pre mis sa de qu e a "doao" getulista dasleis do tr ab al ho dava, em tro ca do apoio das massas pop ula res , algumaparticipao crescente nos ganhos de produtividade do sistema, o que noencontra apoio nos fatos. O que se discute neste ponto o carter"redistributivista", do pon to de vis ta ex at am en te dos referidos ga nh os ; soboutros aspectos, principalme nte pol t icos, pode-se fa la r em "red istr ibut ivis mo"dos regimes popul ista s, mas em ter mos econmicos t al post ula o in te i ramente insus ten tve l .

    10

  • 8/2/2019 Crtica da razo dualista_Francisco de Oliveira_Cebrap

    8/79

    do distanciamento cumulativo entre os setores "moderno"e "atrasado" (7).

    As interpretaes assinaladas minimizam o papel dalegislao trabalhista no processo de acumulao que se

    instaura ou se acelera a partir de 30. Em primeiro lugar, estranha a abstrao que se faz do papel do Estado naprpria criao do mercado: a que mercado se referem,quando dizem que os nveis do salrio mnimo foram ouso fixados acima do que se poderia esperar num "mercadolivre"? Este "mercado livre", abstrato, em que o Estadono interfere, tomado de emprstimo da ideologia do libe-ralismo econmico, certamente no um mercado capita-

    lista, pois precisamente o papel do Estado "instituciona-lizar" as regras do jogo; em segundo lugar, uma hiptesenunca provada que tais nveis estivessem acima do custode reproduo da fora de trabalho, que o parmetro dereferncia mais correto, para avaliar-se a "artificialidade"ou a "realidade" dos nveis do salrio mnimo. Importano esquecer que a legislao interpretou o salrio mnimorigorosamente como "salrio de subsistncia", isto , dereproduo; os critrios de fixao do primeiro salriomnimo levavam em conta as necessidades alimentares (emtermos de calorias, protenas, etc.) para um padro detrabalhador que devia enfrentar um certo tipo de produo,com um certo tipo de uso de fora mecnica, comprometi-mento psquico, etc. Est-se, pensando rigorosamente, emtermos de salrio mnimo, como a quantidade de fora de

    trabalho que o trabalhador poderia vender. No h nenhumoutro parmetro para o clculo das necessidades do tra-balhador; no existe na legislao, nem nos critrios,nenhuma incorporao dos ganhos de produtividade do tra-balho.

    (7) Segundo o ponto de vista cepalino, os nveis " a r t i f i c i a i s " defi xa o do salri o-mnim o induziram uma precoce eleva o do capital fixona composio orgnica do cap ita l, estimul ando inverses "capita l-int ensiv es",a qual tem por efeito no referido modelo diminuir o multiplicador deempregos das novas inv ers es , bai xar a relao pr oduto -capi tal, conduzindoao es tr ei ta me nt o progre ssivo do mer cado e, a longo prazo, queda data xa do lucro e, conseqenteme nte, da taxa de crescimento, refo ran do omodelo de dua lid ade da economia. Empiricamen te, no tem sido provadau m a p e c u l i a r e s t r u t u r a d e i n v e r s e s " c a p i t a l - i n t e n s i v e s " n a e s t r u t u r a g l o b a ldas in ve rs e s; teor icam ente , uma das fon tes do err o do modelo est nac o n s i d e r a o e s t r i t a da s i n v e r s e s apenas no s etor in du st ri al da economia,alm da no-cons iderao do ef eit o das r ela es internacionais sobre afuno de produo, que potencializa, atravs da absoro de tecnologia(trabalho acumulado ou trabalho-morto do exterior) uma base de acumulaorazoavelmente pobre.

    11

  • 8/2/2019 Crtica da razo dualista_Francisco de Oliveira_Cebrap

    9/79

    Sem embargo, esses aspectos ainda no so os decisivos.O decisivo que as leis trabalhistas fazem parte de umconjunto de medidas destinadas a instaurar umnovo modo deacumulao. Para tanto, a populao em geral, e especial-mente a populao que aflua s cidades, necessitava ser trans-formada em "exrcito de reserva". Essa converso de enor-mes contingentes populacionais em "exrcito de reserva",adequado reproduo do capital, era pertinente e necessriado ponto de vista do modo de acumulao que se iniciavaou que se buscava reforar, por duas razes principais: de umlado, propiciava o horizonte mdio para o clculo econmicoempresarial, liberto do pesadelo de um mercado de concorrn-

    cia perfeita, no qual ele devesse competir pelo uso dos fatores;de outro lado, a legislao trabalhista igualava reduzindo antes que incrementando o preo da fora de trabalho.Essa operao de igualar pela base reconvertia inclusive tra-balhadores especializados situao de no-qualificados, eimpedia ao contrrio do que pensam muitos aformao precoce de um mercado dual de fora de tra-balho (8). Em outras palavras, se o salrio fosse determinado

    por qualquer espcie de "mercado livre", na acepo dateoria da concorrncia perfeita, provvel que ele subissepara algumas categorias operrias especializadas; a regula-mentao das leis do trabalho operou a reconverso a umdenominador comumde todas as categorias, com o que,antes de prejudicar a acumulao, beneficiou-a.

    Uma objeo que pode ser levantada contra a teseanterior emprica: no existem provas de que a legislaotrabalhista tenha tido tal efeito, rebaixando salrios. Essetipo de objeo de uma fragilidade incrvel: para os efeitosda acumulao, no era necessrio que houvesse rebaixa-mento de salrios anteriormente pagos, mas apenas equa-lizao dos salrios dos contingentes obreiros incrementais;

    isto , da mdia dos salrios. Como, no caso da industria-lizao brasileira ps-anos 30 os incrementos no contingente

    (8) Uma indagao pertinente sobre o tema da legislao traba-lhista a de por que ela se inspira nas formas jurdicas do direito corpo-rativista ital iano. Esse proble ma tem sido abor dado ap en as do ngulo docarter do Estado brasi leiro na poca: autori trio mas ao mesmo tempode transio entre a hegemonia de uma classe a dos proprietrios rurais e a de outra a da burgu esia ind ust ria l. Um as pec to no est uda do o de sua adequao como uma ponte, uma juno entre as formas pr-capita-listas de certos setores da economia particularmente a agricultura e o setor emerge nte da ind stri a. Nes ta hiptese, o dire ito co rpo rat ivi sta a forma adequada para promover a complementaridade entre os dois setores,desfazendo ao unificar a possvel dualidade que se poderia formar noencontro do "arcaico" com o "novo"; essa dualidade, no que respeita formao dos salrios urbanos , part icula rment e na ind str ia, poderia realmentepr em risco a viabilidade da empresa nascente.

  • 8/2/2019 Crtica da razo dualista_Francisco de Oliveira_Cebrap

    10/79

    obreiro so muitas vezes maiores que o "stock" operrioanterior, a legislao alcanava seu objetivo no declarado, verdade, mas isto corresponde verbalizao ideolgica dasclasses dominantes de propiciar a formao de um enorme"exrcito de reserva" propcio acumulao. Alm disso,

    pode-se aduzir, em favor da tese, um argumento que dalgica do sistema: se fosse verdade que os nveis do salriomnimo estivessem "por cima" de nveis de pura barganhanum "mercado livre", o que aumentaria demasiadamente aparte de remunerao do trabalho na distribuio funcionalda renda, o sistema entraria em crise por impossibilidade deacumular; o que se viu aps a implantao da legislaotrabalhista foi exatamente o contrrio: a partir da que

    um tremendo impulso transmitido acumulao, caracte-rizando toda uma nova etapa de crescimento da economiabrasileira. Uma segunda objeo retira seu argumento dofato de que comparado ao rendimento auferido no campo(sob qualquer forma, salrio, renda da terra, produto das"roas" familiares, etc.) o salrio mnimo das cidades erasem dvida superior, o que, dada a extrao rural dos novoscontingentes que afluam s cidades, tornou-se um elemento

    favorvel aos anseios de integrao das novas populaesoperrias e trabalhadoras em geral, debilitando a formaode conscincias de classe entre elas. No se desconhece oefeito que esse fenmeno pode ter tido social e politica-mente embora exista certo exagero nas concluses mas,do ponto de vista da acumulao, esse fenmeno no tevenem tem nenhuma importncia, j que se as atividadesurbanas, particularmente a indstria, paga salrios maisaltos que os rendimentos auferidos no campo, o parmetroque esclarece a relao favorvel acumulao a produ-tividade das atividades urbanas; em outras palavras, a re-lao significativa a que se estabelece entre salriosurbanos e produtividade das atividades urbanas (no caso,indstria), isto , a taxa de explorao que explica o incre-mento da acumulao determinada em funo dos salriose dos lucros ou ganhos de produtividade das atividadesurbanas.

    13

    O segundo aspecto refere-se interveno do Estadona esfera econmica, operando na regulamentao dos de-mais fatores, alm do trabalho: operando na fixao depreos, na distribuio dos ganhos e perdas entre os diversosestratos ou grupos das classes capitalistas, no gasto fiscal

  • 8/2/2019 Crtica da razo dualista_Francisco de Oliveira_Cebrap

    11/79

    com fins direta ou indiretamente reprodutivos, na esferada produo com fins de subsidio a outras atividades pro-dutivas. Aqui o seu papel o de criar as bases para quea acumulao capitalista industrial, ao nvel das em-presas, possa se reproduzir. Essa interveno tem um

    carter "planificador", ao modo do estado ingls que editavatanto a "poor law" como o "cereais act", isto , no "trnsito",o Estado intervm para destruir o modo de acumulaopara o qual a economia se inclinava naturalmente, criandoe recriando as condies do novo modo de acumulao.Neste sentido, substituam-se os preos do "velho mercado"por "preos sociais", cuja funo permitir a consolidaodo "novo mercado", isto , at que o processo de acumulao

    se oriente, com certo grau de automaticidade, pelos novosparmetros, que sero o novo leito do rio. Os "preossociais" podem ter financiamento pblico ou podem sersimplesmente a imposio de uma distribuio de ganhosdiferente entre os grupos sociais, e a direo em que elesatuam no sentido de fazer a empresa capitalista industriala unidade mais rentvel do conjunto da economia. Assim,assiste-se emergncia e ampliao das funes do Estado,

    num perodo que perdura at os anos Kubitschek. Regu-lando o preo do trabalho, j discutido anteriormente, inves-tindo em infra-estrutura, impondo o confisco cambial ao cafpara redistribuir os ganhos entre grupos das classes capi-talistas, rebaixando o custo de capital na forma do subsdiocambial para as importaes de equipamentos para as em-presas industriais e na forma da expanso do crdito ataxas de juros negativas reais, investindo na produo

    (Volta Redonda e Petrobrs, para exemplificar), o Estadoopera continuamente transferindo recursos e ganhos para aempresa industrial, fazendo dela o centro do sistema. Aessa "destruio" e "criao" vo ser superpostas as versesde um "socialismo dos tolos" tanto da esquerda como daultradireita, que viam na ao do Estado, "estatismo", semse fazer nunca, uns e outros, a velha pergunta dos advogados:a quem serve tudo isso?

    O processo guarda alguma analogia formal com a pas-sagem de uma economia de base capitalista para uma econo-mia socialista. No perodo de "transio", no apenas nofuncionam os automatismos econmicos da base anteriorcomo, mais que isso, no devemfuncionar, sob pena de nose implementar a nova base. Por isso, os mecanismos de

    14

  • 8/2/2019 Crtica da razo dualista_Francisco de Oliveira_Cebrap

    12/79

    mercado devem ser substitudos por controles administra-tivos cuja misso fazer funcionar a economia de formano-automtica. Durante a transio, proliferam todos ostipos de controle, no somente na formao dos preos dosfatores como tambm no controle do gasto dos consumidores.

    A tese perfeitamente ilustrada com o caso do caf: deixadaentregue s leis automticas do mercado, a produo decaf no Brasil, aps a crise de 29, entraria num regimeanrquico, ora sendo estimulada, ora sendo violentamentecontrada. Os estmulos e contraes poderiam representarimportantes desperdcios sociais. Foi preciso o controlegovernamental para faz-la crescer ou diminuir guardandocerta distncia das flutuaes do mercado, para o que teve-sede recorrer ao controle direto (IBC) e aos preos sociais emlugar dos preos de mercado (o confisco cambial era umpreo social). Ainda quando as perdas do caf fossem"socializadas", transferidas para o contribuinte, conformeFurtado, essa "socializao" consistia numa operao de no-automaticidade: sob quaisquer circunstncias, boas ou ms,isolava-se o produtor de caf da oferta e procura de fatores,

    de modo a reorientar a alocao de recursos emoutrossetores da atividade econmica. neste sentido que sefala de destruio da inclinao natural para certo tipo doacumulao(9).

    O terceiro aspecto a ganhar relevo dentro do processoda nova articulao refere-se ao papel da agricultura. Estatem uma nova e importante funo, no to importante

    por nova mas por ser qualitativamente distinta. De umlado, por seu sub-setor dos produtos de exportao, eladeve suprir as necessidades de bens de capital e interme-dirios de produo externa, antes de simplesmente servirpara o pagamento dos bens de consumo; desse modo, anecessidade de mant-la ativa evidente por si mesma. Ocompromisso entre mant-la ativa o no estimul-la comosetor e unidade central do sistema, a fim de destruir o

    "velho mercado", ser um dos pontos nevrlgicos de todo o

    (9) O crescimento das fun es do Est ado impli ca necessariame nteno crescimento da mquina estatal, portanto, da burocracia e da tecnocracia.No perodo da "transio", o crescimento desses dois agentes do aparelhoes ta ta l uma funo m ais es tr it a da difere nciao da diviso social dotrabalho ao nvel da economia o da sociedade co mo um todo, ao passo queem perodos mais rec ente s princip alme nte aps os ano s ini cia is da dcadade 60 o crescimento da burocracia e da tecnocracia funo mais estritada diferenciao da diviso social do trabalho ao nvel do prprio Estado,j que na economia como um todo, completada a formao do "novo mer-cado", "novas leis" restauravam em parte sua automaticidade.

    15

  • 8/2/2019 Crtica da razo dualista_Francisco de Oliveira_Cebrap

    13/79

    perodo: ao longo dos anos assiste-se aos "booms" e sdepresses, os quais afetaro sensivelmente o ritmo daacumulao global, mas possvel dizer que o compromisso logrado, ainda que instavelmente. De outro lado, por

    seu sub-setor de produtos destinados ao consumo interno, aagricultura deve suprir as necessidades das massas urbanas,de forma a no elevar o custo da alimentao principal-mente e secundariamente o custo das matrias-primas, e noobstaculizar, portanto, o processo de acumulao urbano-industrial. Em torno desse ponto girar a estabilidadesocial do sistema e de sua realizao depender a viabi-lidade do processo de acumulao pela empresa capitalistaindustrial, fundada numa ampla expanso do "exrcitoindustrial de reserva".

    A soluo do chamado "problema agrrio" nos anosda "passagem" da economia de base agrrio-exportadora paraurbano-industrial um ponto fundamental para a repro-duo das condies da expanso capitalista. Ela umcomplexo de solues, cujas vertentes se apiam no enormecontingente de mo-de-obra, na oferta elstica de ter ras e

    na viabilizao do encontro desses dois fatores pela aodo Estado construindo a infraestrutura, principalmente arede rodoviria. Ela um complexo de solues cujo deno-minador comumreside na permanente expanso horizontalda ocupao com baixssimos coeficientes de capitalizaoe at semnenhuma capitalizao prvia; numa palavra,opera como uma sorte de "acumulao primitiva". O con-ceito, tomado de Marx, ao descrever o processo de expro-

    priao do campesinato como uma das condies prviaspara a acumulao capitalista, deve ser, paru nossos fins,redefinido: em primeiro lugar, trata-se de um processoem que no se expropria a propriedade isso tambm sedeu em larga escala na passagem da agricultura chamadade subsistncia para a agricultura comercial de exportao mas se expropria o excedente que se forma pela posse transi-tria da terra. Em segundo lugar, a acumulao primi-tiva no se d apenas na gnese do capitalismo: sob certascondies especificas, principalmente quando esse capitalismocresce por elaborao de periferias, a acumulao primitiva estrutural e no apenas gentica. Assim, tanto na aber-tu ra de fronteiras "externas" como "internas", o processo idntico: o trabalhador rural ou o morador ocupa a terra,desmata, destoca, e cultiva as lavouras temporrias chama-16

  • 8/2/2019 Crtica da razo dualista_Francisco de Oliveira_Cebrap

    14/79

    das de "subsistncia"; nesse processo, ele prepara a terrapara as lavouras permanentes ou para a formao de pasta-gens, que no so dele, mas do proprietrio. H, portanto,uma transferncia de "trabalho morto", de acumulao,

    para o valor das culturas ou atividades do proprietrio,ao passo que a subtrao de valor que se opera para o pro-dutor direto reflete-se no preo dos produtos de sua lavoura,rebaixando-os. Esse mecanismo o responsvel tanto pelofato de que a maioria dos gneros alimentcios vegetais(tais como arroz, feijo, milho) que abastecemos grandesmercados urbanos provenham de zonas de ocupao recente,como pelo fato de que a permanente baixa cotao deles

    tenha contribudo para o processo da acumulao nas cida-des; os dois fenmenos so, no fundo, uma unidade. Nocaso das fronteiras "externas" o processo se d medianteo avano da fronteira agrcola que se expande com arodovia: Norte do Paran, com o surto do caf nas dcadasde quarenta e cinquenta; Gois e Mato Grosso, na dcadade sessenta, com a penetrao da pecuria; Maranho, nadcada de cinquenta, com a penetrao do arroz e dapecuria; Belm-Braslia, na dcada de sessenta; Oeste doParan e Sul de Mato Grosso nos ltimos quinze anos,com a produo de milho, feijo, sunos. No caso dasfronteiras "internas", a rotao de terras e no de culturas,dentro do latifndio, tem o mesmo papel: o processo secularque se desenvolve no Nordeste, por exemplo, tpico destasimbiose. O morador, ao plantar sua "roa", planta tam-bm o algodo, e o custo de reproduo da fora de tra-balho a varivel que torna comercializveis ambas asmercadorias.

    Chega a parecer paradoxal que a agricultura "primitiva"possa concorrer com uma agricultura que incorporasse autilizao de novos insumos, como adubos, fungicidas, pesti-cidas, prticas distintas de cultivo, e, sobretudo, com meca-nizao. Duvida-se teoricamente de que os custos daquelasejam competitivos e at mais baixos que os possveis

    custos desta. No entanto, no estado de So Paulo, em 1964,no municpio de Itapeva, a cultura do milho era economica-mente mais rentvel para os agricultores que praticavamuma tcnica composta de trao animal com uso de poucoadubo em relao aos que praticavam uma tcnica agrcolade trao motorizada e uso de muito adubo. Enquanto aprimeira era utilizada nas lavouras de 1-4 e 5-8 alqueires,

  • 8/2/2019 Crtica da razo dualista_Francisco de Oliveira_Cebrap

    15/79

    a segunda era praticada pelas lavouras de 40-80 alqueires:a renda lquida por alqueire era de Cr? 89.742 para aslavouras de tcnica mais "atrasada", enquanto para as lavou-ras de tcnica mais "adiantada" era de Cr$ 79.654, tudoem cruzeiros de 1964, ainda quando o rendimento poralqueire (economias de escala da grande plantao) datcnica "adiantada" fosse quase 60% mais elevado que oda tcnica "atrasada" (10). O exemplo, ainda que possaparecer isolado, referente a um s municpio, vlido paraa maior parte da agricultura brasileira de milho, e maiseloquente por localizar-se em So Paulo, onde presumivel-mente vrias condies deveriam favorecer o uso de tcnicas

    "adiantadas". Uma combinao, pois, de oferta elstica demo-de-obra e oferta elstica de terras, reproduz inces-santemente uma acumulao primitiva na agricultura, dandoorigem ao que Ruy Miller Paiva chamou de "mecanismode autocontrole no processo de expanso da melhoria tcnicana agricultura" (11).

    O modelo descrito anteriormente, ainda que simplifi-cado, tem importantes repercusses, tanto no mbito das

    relaes agricultura-indstria, como ao nvel das atividadesagrcolas em si mesmas. Em primeiro lugar, ao impedirque crescessem os custos da produo agrcola em relao industrial, ele tem um importante papel no custo dereproduo da fora de trabalho urbana; em segundo lugar,e pela mesma razo de rebaixamento do custo real daalimentao, ele possibilitou a formao de um proleta-riado rural que serve s culturas comerciais de mercadointerno e externo. No conjunto, o modelo permitiu que osistema deixasse intocadas as bases agrrias da produo,contornando os problemas de distribuio da propriedade que pareciam crticos no fim dos anos cinquenta aomesmo tempo que o proletariado rural que se formou noganhou estatuto de proletariado: tanto a legislao do tra-balho praticamente no existe no campo como a previdncia

    social no passa de uma utopia; isto , do ponto de vistadas relaes internas agricultura, o modelo permite adiferenciao produtiva e de produtividade, viabilizadas pela

    (10 ) Dad os do est udo rea li zad o por Ettori, O. T., "As pec tos Eco-nmicos da Produo do Milho em So Paulo", recalculados por Paiva,Ruy Mill er, "O Mecanismo de Autoc ontro le no Proc esso de Ex pan so daMelhoria Tcnica da Agr icu ltu ra" , Revista Brasileira de Economia, AnoXXII, n. 3, Setembro, 1968.

    (11) Pai va, Ruy Miller, op. cit.

    18

  • 8/2/2019 Crtica da razo dualista_Francisco de Oliveira_Cebrap

    16/79

    manuteno de baixssimos padres do custo de reproduoda fora de trabalho e portanto do nvel de vida da massatrabalhadora rural. Esta a natureza da conciliao exis-tente entre o crescimento industrial e o crescimento agr-

    cola : se verdade que a criao do "novo mercado" urbano-industrial exigiu um tratamento discriminatrio e at con-fiscatrio sobre a agricultura, de outro lado tambmver-dade que isso foi compensado at certo ponto pelo fato deque esse crescimento industrial permitiu s atividades agro-pecurias manteremseu padro "primitivo", baseado numaalta taxa de explorao da fora de trabalho. Ainda mais, somente a partir da constituio de uma fora de tra-

    balho urbana operria que passou a existir tambm umoperariado rural em maior escala, o que, do ponto de vistadas culturas comerciais de mercado interno e externo, signi-ficou, sem nenhuma dvida, reforo acumulao.

    A manuteno, ampliao e combinao do padro "pri-mitivo" com novas relaes de produo no setor agro-pecurio tem, do ponto de vista das repercusses sobre os

    setores urbanos, provavelmente maior importncia. Elapermitiu um extraordinrio crescimento industrial e dosservios, para o qual contribuiu de duas formas: em pri-meiro lugar, fornecendo os macios contingentes populacio-nais que iriam formar o "exrcito de reserva" das cidades,permitindo uma redefinio das relaes capital-trabalho,que ampliou as possibilidades da acumulao industrial, naforma j descrita. Em segundo lugar, fornecendo os exce-

    dentes alimentcios cujo preo era determinado pelo custode reproduo da fora de trabalho rural, combinou esseelemento com o prprio volume da oferta de fora de tra-balho urbana, para rebaixar o preo desta. Em outraspalavras, o preo de oferta da fora de trabalho urbanase compunha basicamente de dois elementos: custo daalimentao (12) determinado este pelo custo de repro-duo da fora de trabalho rural e custo dos bens e

    servios propriamente urbanos; nestes, ponderava fortemen-

    (12 ) E nt r e 1944 e 1965, os pregos de at ac ad o dos gner os alimen -tcios em ge ra l sobem do n di ce 22 ao n di ce 3.198, en qua nto os pregoscorr espo ndent es dos prod utos in du st ri ai s sobem do ndice 52 ao nd ice 5.163,do que se depree nde o arg ume nto uti liz ado acima, rejei tando -se o argu ment ocon tra rio , mul to da tes e cepali na, de que os cus tos da produo agrcol aobstac ulizav am a formao do mercado ind us tr ial . Dados da ConjunturaEconmica, ci tad os por Paiva, Ruy Miller, "Reflex es sobre as tendn-cias da produo, da produtividade e dos preos do setor agrcola doBr as il ", Re vis ta Brasileira de Economia, Ano XX, ns. 2 e 3, Junho /Sete mbrode 1966.

    19

  • 8/2/2019 Crtica da razo dualista_Francisco de Oliveira_Cebrap

    17/79

    te uma estranha forma de "economia de subsistncia" urbana,que se descrever mais adiante, tudo forando para baixoo prego de oferta da fora de trabalho urbana e, conse-quentemente, os salrios reais. Do outro lado, a produti-vidade industrial crescia enormemente, o que, contrapostoao quadro da fora de trabalho e ajudado pelo tipo deinterveno estatal descrito, deu margem enorme acumu-lao industrial das trs ltimas dcadas. Nessa combi-nao que est a raiz da tendncia concentrao darenda na economia brasileira.

    O quadro descrito nada tem a ver com a oposioformal de quaisquer setores "atrasado" e "moderno", assim

    como est longe de existir a difundida tese da inelasti-cidade da oferta agrcola, modelo construdo a partir darealidade chilena e generalizado para toda a Amrica La-tina pela CEPAL, aplicado ao Brasil, repetida e especial-mente por Celso Furtado. A indstria, como tal, nuncaprecisou do mercado rural como consumidor, ou melhordizendo, nunca precisou de incrementos substantivos domercado rural para viabilizar-se. No sem razo que,

    instalada e promovida ao mesmo tempo que a produo deautomveis, a produo de tratores engatinhou at agora,no chegando a uma vigsima parte daquela co-irm; a pro-duo e o consumo de fertilizantes, que tmexperimentadoincrementos importantes no ltimo qinqnio, o tipo deinsumo que no altera a relao homem/terra que abase do modelo "primitivo" da agricultura ou, melhor ainda,intensifica o uso do trabalho. Assim, a orientao da inds-

    tria foi sempre e principalmente voltada para os mercadosurbanos no apenas por razes de consumo mas, primor-dialmente, porque o modelo de crescimento industrial se-guido que possibilita adequar o estilo desse desenvolvi-mento com as necessidades da acumulao e da realizaoda mais-valia: um crescimento que se d por concentrao,possibilitando o surgimento dos chamados setores de "ponta".Assim, no simplesmente o fato de que, em termos de

    produtividade, os dois setores agricultura e indstria estejam distanciando-se, que autoriza a construo do mo-delo dual; por detrs dessa aparente dualidade, existe umaintegrao dialtica. A agricultura, nesse modelo, cumpreum papel vital para as virtualidades de expanso do sis-tema : seja fornecendo os contingentes de fora de trabalho,seja fornecendo os alimentos no esquema j descrito, ela

    20

  • 8/2/2019 Crtica da razo dualista_Francisco de Oliveira_Cebrap

    18/79

    tem uma contribuio importante na compatibllizao do

    processo de acumulao global da economia. De outraparte, ainda que pouco represente como mercado para aindstria, esta, no seu crescimento, redefine as condiesestruturais daquela, introduzindo novas relaes de pro-

    duo no campo, que torna vivel a agricultura comercialde consumo interno e externo pela formao de um pro-letariado rural. Longe de um crescente e cumulativo isola-mento, h relaes estruturais entre os dois setores queesto na lgica do tipo de expanso capitalista dos ltimostrinta anos no Brasil. A tenso entre agricultura e inds-tria no Brasil no se d ao nvel das relaes das foras

    produtivas, mas se d ou se transfere para o nvel internodas relaes de produo tanto na indstria como na agri-cultura.

    A formao do setor industrial outro dos pontos

    crticos do processo. Trata-se, como j se salientou par-grafos atrs, de tornar a empresa industrial a unidade-chavedo sistema e de criar ou consolidar novos parmetros,novos preos de mercado, que canalizem e orientem o esforode acumulao sobre a empresa industrial. Para tanto, oEstado deliberadamente intervir, nos pontos e nas formassimplificadamente enunciadas anteriormente. A interpre-tao do arranque industrial que se d ps-anos 30 temsido exageradamente reduzida chamada "substituio deimportaes": a crise cambial encarece os bens at entoimportados e, no limite, a no-disponibilidade de divisas e

    a II Guerra Mundial impedem, at do ponto de vista fsico,o acesso aos bens importados; isso d lugar a uma demandacontida ou insatisfeita, que ser o horizonte de mercadoestvel e seguro para os empresrios industriais que, semameaa de competio, podem produzir e vender pro-dutos de qualidade mais baixa que os importados e a preosmais elevados. Posteriormente, a adoo de uma clarapoltica alfandegria protecionista ampliar as margens depreferncia para os produtos de fabricao interna. Noh dvida de que a descrio corresponde, sinteticamente, forma do processo.

    Segundo o modelo dualista cepalino, nessa forma estariaa raiz da formao dos dois polos, o "atrasado" e o "mo-

    21

  • 8/2/2019 Crtica da razo dualista_Francisco de Oliveira_Cebrap

    19/79

    derno", e a imposio de formas de consumo sofisticadas (13)

    que debilitariam a propenso para poupar de um lado, ede outro, por serem demandas quantitativamente pouco volu-mosas, obrigariam a indstria a superdimensionar suas

    Unidades, adotar tcnicas "capital-intensive" diminuindo omultiplicador do emprego, trabalhar com capacidade ociosae deprimir a relao produto/capital: a longo prazo issoredundaria numa deteriorao da taxa de lucro e da taxade inverso e, consequentemente, da taxa de crescimento (14).J Maria da Conceio Tavares e Jos Serra (15) demons-traram convincentemente que os supostos dessa construono se sustentam tanto terica como empiricamente, ainda

    quando se permanea no marco conceitual do modelo cepa-lino. A verdade que do modelo cepalino tanto estoausentes conceitos como "mais-valia", que so suficientespara explicar como, ainda no caso de serem corretosos supostos cepalinos, sua concluso unidirecional equi-vocada, pois podem aumentar a mais-valia relativa eainda a mais-valia absoluta (decrscimo absoluto dos sal-rios reais e no apenas decrscimo relativo). Por outrolado, a rentabilidade ou a taxa de lucro podem aumentarainda quando fisicamente o capital no seja utilizado inte-gralmente: no somente a varivel "mais-valia" joga umpapel fundamental nessa possibilidade, como as posiesmonopolsticas das empresas, elevando os preos dos pro-dutos.

    O estilo de interpretao ao qual se acostumou associar

    a industrializao, tanto na Amrica Latina quanto noBrasil, e que fornece as bases para uma tmida teoria daintegrao latinoamericana (16) privilegia de um lado asrelaes externas das economias capitalistas da AmricaLatina e, nesse diapaso, transforma a teoria do subdesen-volvimento numa teoria da dependncia (17). Parece, assim,que a industrializao substitutiva de importaes funda-senuma necessidade do consumo e no numa necessidade da

    (13) Est e tipo de argume ntao ra ti fi ca do por Celso Fu rt ad o em"Dependencia Externa e Teoria Econmica", El Trimestre Econmico, Vol.XX XV II I (2) , n. 150, 1971, Mxico.

    (1 4) A fo rma mais compl eta des te modelo e sua con clu so maisradical acham-se formuladas por Celso Furtado em Subdesenvolvimento eestagnao na Amrica Latina, Civilizao Bra sil eir a, Rio de Jan eir o, 1966.

    (15) Op. cit.(16) Ver ILPES , La brecha comercial y la integracin latinoamericana,

    Siglo XXI , Mxico, 1967.(17) Celso Furtado, "Dependencia Externa y Teoria Econmica",

    op. cit.

    22

  • 8/2/2019 Crtica da razo dualista_Francisco de Oliveira_Cebrap

    20/79

    produo, verbi gratiae, da acumulao; alm disso, as for-mas de consumo impostas de fora para dentro parecemno ter nada que ver com a estrutura de classes, com aforma da distribuio da renda, e so impostas em abstrato:

    comea-se a produzir bens sofisticados de consumo, e essaproduo que cria as novas classes, que conforma opadro de distribuio da renda, que "perverte" a orien-tao do processo produtivo, levando no seu paroxismo recriao do "atrasado" e do "moderno". No entanto, aexperincia histrica muito prxima de ns encarrega-sede demonstrar exatamente o contrrio do que afirma essaverso da teoria do subdesenvolvimento: a Argentina indus-

    trializou-se, no perodo 1870-1930, em plena fase de cres-cente integraocom a economia capitalista internacional,em regime preponderantemente livre-cambista, em perodosnos quais dispunha de ampla capacidade de importao.A que se deve isto? Simplesmente razo que no difcil reconhecer se no se quer complicar o que sim-ples de que a industrializao sempre se d visando,em primeiro lugar, atender s necessidades da acumulao,

    e no s do consumo. Concretamente, se existe uma impor-tante massa urbana, fora de trabalho industrial e dosservios, e se importante manter baixo o custo de repro-duo dessa fora de trabalho a fim de no ameaar ainverso, torna-se inevitvel e necessrio produzir bensinternos que fazem parte do custo de reproduo da forade trabalho; o custo de oportunidade entre gastar divisaspara manter a fora de trabalho e produzir internamentefavorece sempre a segunda alternativa e no a primeira.No Brasil tambmfoi assim: comeou-se a produzir inter-namente emprimeiro lugaros bens de consumo no-durveisdestinados, primordialmente, ao consumo das chamadasclasses populares (possibilidade respaldada, alm de tudo,pelo elenco de recursos naturais do pais) e no o inverso,como comumente se pensa. O fato de que o processo tenhadesembocado num modelo concentracionista, que numa se-gunda etapa de expanso vai deslocar o eixo produtivo paraa fabricao de bens de consumo durveis, no se deve anenhumfetiche ou natureza dos bens, a nenhum"efeito-demonstrao", mas redefinio das relaes trabalho-capital, enorme ampliao do "exrcito industrial de re-

    serva", ao aumento da taxa de explorao, s velocidadesdiferenciais de crescimento de salrios e produtividade que

    23

  • 8/2/2019 Crtica da razo dualista_Francisco de Oliveira_Cebrap

    21/79

    reforaram a acumulao. Assim, foram as necessidadesda acumulao e no as do consumo que orientaram o pro-cesso de industrializao: a "substituio de importaes" apenas a forma dada pela crise cambial, a condio neces-sria porm no suficiente.

    Numa segunda etapa, o processo dirigiu-se produodos bens de consumo durveis, intermedirios e de capital. possvel perceber-se, tambm, que a orientao decorreumais das necessidades da produo/acumulao que do con-sumo: este privilegiado sempre ao nvel da ideologia"desenvolvimentista" (anlise do Grupo CEPAL-BNDE queforneceu as bases para o Plano de Metas do perodo

    Kubitschek), mas duvidoso que o melhor atendimento aoconsumo fosse mais racionalmente logrado com produtosde qualidade inferior e de preos mais altos. Ainda nonvel do discurso dos planos de desenvolvimento fcilperceber-se que realmente a varivel privilegiada a dosefeitos interindustriais das novas produes, isto , a pro-duo e a acumulao. Pouco importa, para a "rationale"da acumulao, que os preos nacionais sejam mais altos

    que os dos produtos importados: ou melhor, preciso exata-mente que os preos nacionais sejam mais altos, pois aindaquando eles se transmitam interindustrialmente a outrasprodues e exatamente por isso elevem tambm a mdiados preos dos demais ramos chamados "dinmicos", doponto de vista da acumulao essa produo pode reali-zar-se porque a redefinio das relaes trabalho-capitaldeu lugar concentrao de renda que torna consumveis

    os produtos e por sua vez refora a acumulao, dado quea alta produtividade dos novos ramos em comparao como crescimento dos salrios d um "salto de qualidade",reforando a tendncia concentrao da renda. O que absolutamente necessrio que os altos preos no setransmitam aos bens que formam parte do custo de re-produo da fora de trabalho, o que ameaaria a acumu-lao. J os preos dos produtos dos ramos chamados

    "dinmicos" podeme at devemser mais altos comparati-vamente aos importados, porque a realizao da acumu-lao que depende deles se realiza interna e no externa-mente. Em outras palavras, somente tem sentido falarem preos competitivos quando se trata de produtos quevo ao mercado externo: para o processo capitalista noBrasil importante que o custo de produo de caf

    24

  • 8/2/2019 Crtica da razo dualista_Francisco de Oliveira_Cebrap

    22/79

    soja competitivo internacionalmente, mas nenhuma impor-tncia tem o fato de que os automveis nacionais sejamduas a trs vezes mais caros que seus similares estran-geiros (18). Tendo como demanda as classes altas em uma

    distribuio de renda extremamente desigualitria, a pro-duo nacional de bons de consumo durveis, dos quaiso automvel o arqutipo, encontra mercado e realizasua funo na acumulao tornando as unidades e osramos fabris a ela dedicados as unidades-chave do sistema:essas no apenas esto entre as mais rentveis e maispromissoras do setor industrial, como orientam o perfilda estrutura produtiva. Um raciocnio neoclssico-margi-

    nalista aconselharia baixa do preo dos automveis, porexemplo, baseado no suposto de uma alta elasticidade-rendadaquela demanda: porm, como para o sistema e as em-presas no o consumo o objetivo, esta manobra apenassignificaria vender mais carros sem repercusso favorvelnos lucros, que poderiam at baixar (19),

    O outro termo da equao urbano-industrial so oschamados "servios", um conjunto heterogneo de ativi-

    dades, cuja nica homogeneidade consiste na caracters-tica de no produzirem bens materiais. O papel e a funodos servios numa economia no tm sido matria muitoatraente para os economistas, a julgar pela literaturaexistente. A obra clssica de Colin Clark, The conditionsof economic progress, sentou as bases do modelo empricode desagregao do conjunto das atividades econmicasnos trs setores, Primrio, Secundrio e Tercirio. Anali-

    (18) Out ra a sit ua o quando se ten ta expo rt -lo s: ent o necessrio que eles sejam competitivos; dai a razo pela qual o subsdioque o Governo d, hoje, s exportaes de manufaturados situa-se emtorno de 4 0 % do preo FOB. Mas essa exp ort a o ma rgi na l pura aacu mul a o e, na mai ori a dos cubos, rep res en ta, pa ra a economia global,"queima" da excedente, embora possa ser timo negocio para as empresas.

    (19) No Brasi l, recent emente, assis te-se a uma evoluo pa rado xaldo ponto de vi st a da teo ria tra dic ion al, na produo de automveis. AVolkswagen a nica produtora nacional de veculos de passeio que,pelo volume do vendas de um nico modelo o conhecido "Fusca" poderia beneficiar-se de economias do escala, reduzindo, portanto, o custode produo do seu modelo popular e, segundo a teoria convencional, am-

    pli and o o mercado. A pol ti ca da Volkswag en tem sido comp let amen te opostaa esse modelo: nos ltimos anos, a empresa diversificou sua linha deproduo, passando da produo de um carro popular para mais do eismodelos diferentes, todos cm linha ascensional de preos, buscando, justa-mente, com peti r pelo merc ado das cl as se s de al ta s renda s. O modelo maissofisticado da Volkswagen se iguala com os automveis da linha Opala, daGeneral Motors, carros evidentemente destinados a uma faixa de mercadoque no pode ser cham ada de popul ar. No lim ite , a Volkswagen te r se qui ser con tin uar competin do pelo merca do de a lt as re nda s que muda rtotalmente a concepo dos seus veculos, que encontra uma limitao muitosria na pequen a pot nci a do motor, ao c on tr r io dos seus concor rent es nomercado brasileiro, que tendera todos a motores de potncia similar aos domercado americano.

    25

  • 8/2/2019 Crtica da razo dualista_Francisco de Oliveira_Cebrap

    23/79

    ticamente, o modelo de Clark tem servido de paradigmapara a observao das participaes dos trs setores noproduto interno bruto, tomando-se a elevao relativa doproduto Secundrio (industrial) e do produto Tercirio(dos servios) como sinal de diversificao e desenvolvi-mento econmico. Sem embargo, tambm tem sido usadoo modelo de Clark num sentido equivocado, qual seja ode confundir as relaes formais entre os trs setorescom suas relaes estruturais, isto , com o papel quecada um desempenha no conjunto da economia e com opapel interdependente que jogam entre si. O modelo deClark , repita-se, emprico-formal; ele assinala apenas as

    formas da diviso social do trabalho e sua apario se-qencial. Quando se o utiliza para descrever uma for-mao econmico-social concreta ou um modo de produo,necessrio se faz indagar das relaes estruturais entreos setores e do papel que cada um cumpre na estru-turao global do modo de produo concreto.

    A utilizao, em abstrato, do modelo de Clark tem

    levado, nos modelos analticos da teoria do subdesenvolvi-mento, a uma interpretao equivocada que forma partedo que se chamou linhas atrs o "modo de produosubdesenvolvido": neste, o setor Tercirio ou de serviosestaria representado em termos de participao no pro-duto e no emprego, num "quantum" desproporcional. Emoutras palavras, segundo os tericos do subdesenvolvimen-to, o setor Tercirio temparticipaes nos agregados refe-ridos que ainda no deveria ter: "inchado". Uma dascaractersticas, assim, do "modo de produo subdesen-volvido" ter um Tercirio "inchado", que consome exce-dente e comparece como um peso morto na formao doproduto. Deve-se convir que um certo mecanicismo de inspi-rao marxista tambm contribuiu para essa formulao:os servios, nessa vertente terica, de um modo geral,so "improdutivos", nada agregando de valor ao produtosocial. Essa interpretao distingue os servios de trans-porte" e comunicaes, por exemplo, dos de intermediao:os primeiros ainda seriam produtivos, enquanto os segun-dos, no. Conviria perguntar se a produo de serviosde intermediao ou de publicidade, por exemplo, norepresentam, tambm, trabalho socialmente necessrio paraa reproduo das condies do sistema capitalista, entreas quais a dimenso da dominao se coloca como das

    26

  • 8/2/2019 Crtica da razo dualista_Francisco de Oliveira_Cebrap

    24/79

    mais importantes: dificilmente se poderia contestar queno; ela faz parte, inclusive,, da reproduo da merca-doria que distingue o capitalismo de outros modos deproduo: da mercadoria trabalho.

    A discusso anterior serve para introduzir a seguintequesto: como se explica a dimenso do Tercirio numaeconomia como a brasileira? Entre 1939 e 1969, a par-ticipao do Tercirio no produto interno lquido man-teve-se entre 55% e 53%, enquanto a porcentagem dapopulao economicamente ativa, isto , da fora de tra-balho, saltava de 24% para 38%; o Tercirio configura-se,assim, como o setor que mais absorveu os incrementos da

    fora de trabalho. Tal absoro pode, simplesmente, sercreditada incapacidade de q setor Primrio reter a po-pulao e, por oposio, impossibilidade dos incrementosserem absorvidos pelo Secundrio (indstria) ? (20) A hip-tese que se assume aqui radicalmente distinta: o cresci-mento do Tercirio, na forma em que se d, absorvendocrescentemente a fora de trabalho, tanto em termosabsolutos como relativos, faz partedo modo deacumulao

    urbano adequado expanso do sistema capitalista noBrasil; no se est em presena de nenhuma "inchao",nem de nenhum segmento "marginal" da economia. Expli-cita-se o que funda esta interpretao.

    Nas condies concretas da expanso do capitalismono Brasil, o crescimento industrial teve que se produzirsobre uma base de acumulao capitalstica razoavelmentepobre, j que a agricultura fundava-se, em sua maior

    parte, sobre uma "acumulao primitiva". Isso quer dizerque o crescimento anterior expanso industrial dos ps-anos 30 no somente no acumulava em termos adequa-dos empresa industrial, como no sentou as bases dainfraestrutura urbana sobre a qual a expanso industrialrepousasse: antes da dcada de vinte, com exceo doRio de Janeiro, as demais cidades brasileiras, incluindo-senelas So Paulo, no passavam de acanhados burgos, sem

    (20 ) Mul ta da teorizao so br e o Te rci r io "inc hado" meramenteconj untu ral. Foi a rel ati va desacelera o do inc rem ent o da ocupao naindstria, no intervalo 1950-1960, que forneceu a base emprica da teorizao.No ent anto , os result ados preli mina res do cen to demogrfico de 1970 i ndi camque, no in te r v al o 1960-1970, a tax a de cresc imen to da ocupao no setorin du st ri al quase dobrou em relao dcada i med iat ame nte ant eri or. Eisto num pero do em que, evident ement e, a destruio do artesanato peloestabelecimento f abr il caracters tico j irre leva nte, tornando mais prximas,portanto, a criao bruta de empregos da criao liquida. Nes te caso,como fica a teorizao do "inchado"?

    27

  • 8/2/2019 Crtica da razo dualista_Francisco de Oliveira_Cebrap

    25/79

    nenhuma preparao para uma industrializao rpida eintensa. Ora, entre os anos 1939 e 1969, a participaodo produto do Secundrio no produto lquido passa de19 para quase 30%, enquanto a fora de trabalho no setorvai de 10 a 18%. Esses dados sintticos ajudam a dar

    conta da intensidade do crescimento industrial. No pro-cesso de sua expanso, sem contar com magnitudes prviasde acumulao capitalstica, o crescimento industrial foro-samente teria que centrar sobre a empresa industrial todaa virtualidade da acumulao propriamente capitalista; semembargo, ela no poderia dar-se sem o apoio de serviospropriamente urbanos, diferenciados e desligados da uni-

    dade fabril propriamente dita, as chamadas "economiasexternas". Era tal a carncia desses servios, que a pri-meira onda de industrializao assistiu tentativa deautarquizao das unidades fabris, processo que logo seriasubstitudo por uma diviso do trabalho para alm dosmuros da fbrica. Logo em seguida, com a continui-dade da expanso industrial, esta vai compatibilizar-se com

    a ausncia de acumulao capitalstica prvia, que finan-ciasse a implantao dos servios, lanando mo dos re-cursos de mo-de-obra, reproduzindo nas cidades um tipode crescimento horizontal, extensivo, de baixssimos coefi-cientes de capitalizao, em que a funo de produosustenta-se basicamente na abundncia de mo-de-obra.Assiste-se, inclusive, a revivescncia de formas de pro-

    duo artesanais, principalmente nos chamados servios dereparao (oficinas, de todos os tipos). Entre 1940 e 1950,os Servios de Produo passam de uma participao de9,2% para 10,4%, no emprego total, enquanto os Serviosdo Consumo Individual mantm-se praticamente em tornode 6,3%; j os Servios de Consumo Coletivo tambmexperimentam elevao no emprego total: de 4,2% passama 5,1%. Entre 1950 e 1960, s se dispe de dados desa-gregados para os Servios de Produo, que continuam aelevar sua participao no emprego total, desta vez para11,5% e, embora no existam informaes desagregadaspara os outros tipos de servios, possvel pensar questes no aumentaram sua participao no emprego total,j que o total para o agregado Tercirio mantm-se esta-cionrio, quando no declinante (21). Isso quer dizer que,

  • 8/2/2019 Crtica da razo dualista_Francisco de Oliveira_Cebrap

    26/79

    provavelmente, o crescimento dos Servios de Produoo maior responsvel, nas dcadas sob anlise, pelo cresci-mento do emprego nos servios ou no Tercirio em geral,crescimento diretamente ligado expanso das atividadesindustriais.

    Em poucas palavras, o fenmeno que existe no ode uma "inchao" do Tercirio. O tamanho deste, numaeconomia como a brasileira, do ponto de vista de suaparticipao no emprego total, uma questo estreita-mente ligada acumulao urbano-industrial. A acele-rao do crescimento, cujo epicentro passa a ser a inds-tria, exige, das cidades brasileiras sedes por excelnciado novo ciclo de expanso infraestrutura e requeri-mentos em servios para os quais elas no estavam previa-mente dotadas. A intensidade do crescimento industrial,que em 30 anos passa de 19 para 30% de participao noProduto Bruto, no permitir uma intensa e simultneacapitalizao nos servios, sob pena de esses concorreremcom a indstria propriamente dita pelos escassos fundosdisponveis para a acumulao propriamente capitalstica.

    Tal contradio resolvida mediante o crescimento no-capitalstico do setor Tercirio. Este modelo nada temde parecido com o do Tercirio "inchado", embora suadescrio possa coincidir: aqui, trata-se de um tipo' decrescimento para esse setor o dos servios em geral que no contraditrio com a forma de acumulao, queno obstculo expanso global da economia, que no consumidor de excedente. A razo bsica pela qual pode

    ser negada a negatividade do crescimento dos servios sempre do ponto de vista da acumulao global quea aparncia de "inchao" esconde um mecanismo funda-mental da acumulao: os servios realizados base depura fora de trabalho, que remunerada a nveis baixs-simos, transferem, permanentemente, para as atividadeseconmicas de corte capitalista, uma frao do seu valor,"mais-valia" em sntese (22). No estranha a simbiose

    entre a "moderna" agricultura de frutas, hortalias e outros

    atingiro 1 5 , 3 % enquanto os segundos estaro em 1 8 % (dados do PNAD,3. tr im es tr e de 1969). Is to , o ext ra ord in rio crescimento dos Serviosde Consumo Individual, tradicionalmente considerados como "depsito" demo-de-obra, se d exatamente quando o Secundrio como um todo e parti-cularmente a indstria recuperam o dinamismo na criao de emprego.

    (22) As ortodoxias de todos os tipos certamente experimentaroengulhos com esta afirmao: a ortodoxia do "inchado", a ortodoxia do"lumpenproletariat", a ortodoxia neomaltusiana, a ortodoxia neoclssica-mar-ginalista; pois uma proposio desse tipo no 6e coaduna com preconceitos

    29

  • 8/2/2019 Crtica da razo dualista_Francisco de Oliveira_Cebrap

    27/79

    produtos de granja com o comrcio ambulante? (23) Qual o volume de comrcio de certos produtos industrializardos o grifo proposital tais como lminas de barbear,pentes, produtos de limpeza, instrumentos de corte, e umsem nmero de pequenos objetos, que realizado pelo

    comrcio ambulante das ruas centrais de nossas cidades?Qual a relao que existe entre o aumento da frotade veculos particulares em circulao e os servios delavagem de automveis realizados braalmente? Existealguma incompatibilidade entre o volume crescente da pro-duo automobilstica e a multiplicao de pequenas ofici-nas destinadas re-produo dos veculos? Como explicarque todos os tipos de servios de consumo pessoal cresam

    mais exatamente quando a indstria recupera seu dina-mismo na criao de empregos e quando todo um pro-cesso se cristaliza conforme os resultados do censodemogrfico de 70 numa distribuio da renda maisdesigual? Esses tipos de servios, longe de serem excres-cncias e apenas depsito do "exrcito industrial de reserva"

    so adequados para o processo da acumulao global eda expanso capitalista, e, por seu lado, reforam a ten-

    dncia concentrao da renda(24)

    .

    Ideolgicos, nem tampouco com a pobre aritmtica que prope reduo dapopulao para aumentar a renda "per capita", nem ainda com a teoriadoa "desvios" na alocao tima de fatores, que v o "preto" da situaoa t u a l como um prenncio das m a n h s douradas do amanh, quando osistema poder " di st ri bu ir " o que hoje tem necessidade de concentrar.

    (28) Uma declar ao do pre sid ent e do Sin dicat o Ru ra l doa Agri-cul to re s de So Roque, Esta do de So Pau lo, a o "O Estad o de So Pau lo ",edio de domingo, 19 de mar o de 1972, expli ca bem a rela o ex is te nt e:falando a respeito da crise surtida na fruticultura, decorrente de umaexce lent e s af ra e de um fr ac o movi mento de ven das, ele diz: "... foi umgolpe inesperado para o comrcio de frutas (a proibio do comrcio ambulantepela Pr ef ei tu ra de So Paul o) pois os ambulan tes so impresoindveis par aa colocao das f r u t a s j un t o aos consu midor es. Sem eles existem cerc ade 60 0 houve um colapso no sistema de distribuio e os produtorestiveram que arcar com os prejuzos, en qua nt o o povo fico u sem condie sde comprar fr ut as , ape sar do preo "bsico". Grifos nossos. Essa lioelementar nos diz que: os produtores arcaram com os prejuzos, que nodecorreramdos preos "bsicos", mas da ausncia fsica do comrcio ambu-lan te. Ora, os ambul ant es no poderiam aume nta r os preos, o quesig nif ica dizer que os pr ej u zo s f ra o da ren da dos produ tor es que no foirealizada, depende, par a sua real iza o, do tr aba lho dos ambul ante s. Por ase v o mecanismo de transferncia posto em ao.

    (24) Mesmo c e r t o s t i p o s de servios es tr it am en te pessoais, pr est ado sdi re ta me nt e ao consumidor e at e de ntr o das fami lia s, podem re ve la r umafor ma dis far ad a de explor ao que ref or a a acumulao. Servios que,

    pa ra serem prestados fora das famili as, exigiria m uma in fr ae st ru tu ra deque as cidades no dispem e, evidentemente, uma base de acumulaocapitalstica que no exis te. A lavagem de roupas em casa somentepode ser substituda em termos de custos por lavagem in du st ri al quecompita com os baixos salrios patos s empregadas domsticas; o moto-rista pa rt ic ul ar que leva as criana s escola somente pode ser subs tit ud opor um efi cie nte siste ma de tr an sp or te s coleti vos que n o exi ste . Comparadocom um americano mdio, um br as ile ir o da class e mdia, com rend imen tosmone tri os equi vale ntes , desf ruta de um padr o de vid a re al ma is alto,incl uind o-se neste todo o tipo de servio s pess oai s ao nv el da faml ia,bas ica ment e sustentado na explorao da mo-de-obra, sobre tudo feminina.

    30

  • 8/2/2019 Crtica da razo dualista_Francisco de Oliveira_Cebrap

    28/79

    s cidades so, por definio, a sede da economiaindustrial e de servios. O crescimento urbano , portanto,a contrapartida da desruralizao do Produto, e, nestesentido, quanto menor a ponderao das atividades agr-colas no Produto, tanto maior a taxa de urbanizao.

    Portanto, em primeiro lugar, o incremento da urbanizaono Brasil obedece lei do decrscimo da participao daagricultura no produto total. Sem embargo, apenas ocrescimento da participao da indstria ou do setorSecundrio como um todo, no seria o responsvel pelosaltssimos incrementos da urbanizao no Brasil. Esse fatolevou uma boa parcela dos socilogos no Brasil e na

    Amrica Latina a falar de uma urbanizao sem indus-trializao e do seu xipfago, uma urbanizao com mar-ginalizao. Ora, o processo de crescimento das cidadesbrasileiras para falar apenas do nosso universo nopode ser entendido seno dentro de um marco terico ondeas necessidades da acumulao impem um crescimentodos servios horizontalizado, cuja forma aparente o caosdas cidades. Aqui, uma vez mais preciso no confundir

    "anarquia" com caos; o "anrquico" do crescimento urbanono "catico" em relao s necessidades da acumulao:mesmo uma certa frao da acumulao urbana, duranteo longo perodo de liquidao da economia pr-anos 30,revela formas do que se poderia chamar, audazmente, de"acumulao primitiva". Uma no-insignificante porcenta-gem das residncias das classes trabalhadoras foi cons-truda pelos prprios proprietrios, utilizando dias de folga,

    fins de semana e formas de cooperao como o "mutiro".Ora, a habitao, bem resultante dessa operao, se produzpor trabalho no-pago, isto , supertrabalho. Emboraaparentemente esse bem no seja desapropriado pelo setorprivado da produo, ele contribui para aumentar a taxade explorao da fora de trabalho, pois o seu resultado a casa reflete-se numa baixa aparente do custo dereproduo da fora de trabalho de que os gastos comhabitao so um componente importante e para depri-mir os salrios reais pagos pelas empresas. Assim, umaoperao que , na aparncia, uma sobrevivncia de prticasde "economia natural" dentro das cidades, casa-se admiravel-mente bem com um processo de expanso capitalista, quetem uma de suas bases e seu dinamismo na intensa explo-rao da fora de trabalho.

    31

  • 8/2/2019 Crtica da razo dualista_Francisco de Oliveira_Cebrap

    29/79

    O processo descrito, em seus vrios nveis e formas,constitui o modo de acumulao global prprio da expansodo capitalismo no Brasil no ps-anos 30. A evidente desi-gualdade de que se reveste que, para usar a expresso

    famosa de Trotsky, no somente desigual mas combi-nada, produto antes de uma base capitalstica de acumu-lao razoavelmente pobre para sustentar a expansoindustrial e a converso da economia ps-anos 30, que daexistncia de setores "atrasado" e "moderno". Essa com-binao de desigualdades no original; em qualquercmbio de sistemas ou de ciclos, ela antes uma presenaconstante. A originalidade consistiria talvez em dizer-se

    que sem abusar do gosto pelo paradoxo a expansodo capitalismo no Brasil se d introduzindo relaes novasno arcaico reproduzindo relaes arcaicas no novo, ummodo de compatibilizar a acumulao global, emque a intro-duo das relaes novas no arcaico libera fora de trabalhoque suporta a acumulao industrial-urbana e em que a re-produo de relaes arcaicas no novo preserva o potencial deacumulao liberado exclusivamente para os fins de expanso

    do prprio novo. Essa forma parece absolutamente necessriaao sistema em sua expresso concreta no Brasil, quando seopera uma transio to radical de uma situao em que arealizao da acumulao dependia quase que integralmentedo setor externo, para uma situao em que ser a gravitaodo setor interno o ponto crtico da realizao, da permann-cia e da expanso dele mesmo. Nas condies concretasdescritas, o sistema caminhou inexoravelmente para uma

    concentrao da renda, da propriedade e do poder, em queas prprias medidas de inteno corretiva ou redistributi-vista como queremalguns transformaram-se no pesa-delo prometeico da recriao ampliada das tendncias quese queria corrigir.

    Ao longo das pginas anteriores, algumas questespermaneceramobscuras. Ainda que se rejeite a demandade "especificidade global" que est implcita na tese do "modo

    de produo subdesenvolvido", evidente que a histriae o processo da economia brasileira nos ps-anos 30, contmalguma "especificidade particular"; isto , a histria e oprocesso da economia brasileira podemser entendidos, demodo geral, como a da expanso de uma economia capi-talista que a tese deste ensaio , mas esta expansono repete nemreproduz "ipsis literis" o modelo clssico

    32

    3. UM"INTERMEZZO"PARA

    REFLEXOPOLTICA:REVOLUOBURGUESA

    ACUMULAOINDUSTRIALNOBRASIL

    A

    E

  • 8/2/2019 Crtica da razo dualista_Francisco de Oliveira_Cebrap

    30/79

    do capitalismo nos paises mais desenvolvidos, nem a estru-tura que o seu resultado. Incorpora-se aqui, desde logo,a advertncia contida em numerosos trabalhos, de notomar-se o "classicismo" do modelo ocidental como "regraestrutural".

    A aceitao de que se trata da expanso de uma econo-mia capitalista decorre do reconhecimento de que o ps-anos 30 no mudou as relaes bsicas do sistema doponto de vista de proprietrios e no-proprictrios dosmeios de produo, isto , do ponto de vista de compra-dores e vendedores de fora de trabalho; o sistema continuatendo por base e norte a realizao do lucro. Aqui per-

    fila-se umponto essencial da tese: a de que, tomando comoum dado a insero e a filiao da economia brasileira aosistema capitalista, sua transformao estrutural, nos mol-des do processo ps-anos 30, passa a ser, predominante-mente, uma possibilidade definida dentro dela mesma;isto , as relaes de produo vigentes continham em sia possibilidade de reestruturao global do sistema, apro-fundando a estruturao capitalista, ainda quando o esquema

    da diviso internacional do trabalho no prprio sistemacapitalista mundial fosse adverso. Nisso reside uma dife-renciao da tese bsica da dependncia, que somente vessa possibilidade quando h sincronia entre os movimentosinterno e externo.

    Do ponto de vista da articulao interna das forassociais interessadas na reproduo do capital, h somente umaquesto a ser resolvida: a da substituio das classes pro-

    prietrias rurais na cpula da pirmide do poder pelasnovas classes burguesas empresrias industriais. As classes

    trabalhadoras em geral no tm nenhuma possibilidadenesta encruzilhada: inclusive a tentativa de revoluo, em1935, refletir mais um momento da indeciso entre asvelhas e novas classes dominantes que uma possibilidadedeterminada pela fora das classes trabalhadoras. Mas,do ponto de vista das relaes externas com o resto dosistema capitalista, a situao era completamente oposta.A crise dos anos trinta, em todo o sistema capitalista, criao vazio, mas no a alternativa de rearticulao; em se-guida, a Segunda Guerra Mundial continuar obstaculi-zando essa rearticulao e, no paradoxalmente, reativaro papel de fornecedor de matrias-primas de economias

    33

  • 8/2/2019 Crtica da razo dualista_Francisco de Oliveira_Cebrap

    31/79

    como a do Brasil. O mundo emerge da guerra com umproblema crucial, qual seja o de reconstruir as economiasdos pases ex-inimigos, a fim de, entre outras coisas, evitaruma expanso do socialismo nos pases j desenvolvidos

    (este sistema se expandir exatamente na periferia). Eessa reconstruo no apenas desvia os recursos que, alter-nativamente, numa perspectiva prebischiana, poderiam seraplicados nos pases no-industriais do sistema capitalista,como restaura algo da diviso internacional do trabalhodo pr-guerra: a reconstruo das economias devastadaster a indstria como estratgia central e o comrcio demanufaturas entre as naes industriais (25) do sistema

    ser a condio de viabilidade da estratgia; aos pasesno-industriais do sistema continuar cabendo, por muitotempo, dentro dessa diviso do trabalho, o papel de pro-dutor de matrias-primas e produtos agrcolas.

    Nessas circunstncias, a expanso do capitalismo noBrasil repousar, essencialmente, na dialtica interna dasforas sociais em pugna; sero as possibilidades de mudanano modo de acumulao, na estrutura do poder e no estilode dominao, as determinantes do processo. No limite,a impossibilidade significar estagnao e reverso eco-nomia primrio-exportadora. Entre essas duas tenses,emerge a revoluo burguesa no Brasil. O populismo sersua forma poltica, e essa uma das "especificidades par-ticulares" da expanso do sistema.

    Ao contrrio da revoluo burguesa "clssica", a mu-

    dana das classes proprietrias rurais pelas novas classesburguesas empresrias industriais no exigir, no Brasil,uma ruptura total do sistema, no apenas por razesgenticas, mas por razes estruturais. Aqui, passa-se umacrise nas relaes externas com o resto do sistema, enquantono modelo "clssico" a crise na totalidade da economiae da sociedade. No modelo europeu, a hegemonia das

    (25) O Japo tem sido utilizado, extensamente , na lit er at ur a tcnica,como um exemplo de pas "subdesenvolvido" que u l t r a p a s s o u e s s a b a r r e i r a ,no ps-guerra, at rav s de uma ind ust ria liz a o dedicada s exportaes.N e s t e sentido, ele s e r r e como p a r a d i g m a t a n t o p a r a d e m o n s t r a r a possi-bilidade de Industrializao e desenvolvimento que o sistema capitalistaoferece para os que tm "competncia", como para demonstrar um caso"sadio" de crescimento "para fora", expandindo capacidade para importar,et c. A li te ra tu ra apologtica do caso Japons esquece que o Ja p o pr-guer rano poderia , sob qualq uer cr it rio , ser consid erado "subdesenvolv ido", poisat Hiroshima e N a g a s a k i ele se e n f r e n t a , no mesmo nvel tecnolgico,cora os Estados Unidos, numa guerra convencional (diferentemente da guerrado V i e t n a m ) . Alm disso, a reconstruo japonesa e e a g r e s s i v a polticade exportaes foram permitidas como o preo que o c a p i t a l i s m o teria quepag ar para a t o perder um im po rt an te membro do sistema.

    34

  • 8/2/2019 Crtica da razo dualista_Francisco de Oliveira_Cebrap

    32/79

    classes proprietrias rurais total e paralisa qualquerdesenvolvimento das foras produtivas, pelo fato mesmode que as economias "clssicas" no entravam em nenhumsistema que lhes fornecesse os bens de capital que neces-sitavam para sua expanso: ou elas produziriam tais bens

    de capital ou no haveria expanso do capitalismo, enquantosistema produtor de mercadorias. A ruptura tem que sedar, em todos os nveis e em todos os planos. Aqui, asclasses proprietrias rurais so parcialmente hegemnicas,no sentido de manter o controle das relaes externas daeconomia, que lhes propiciava a manuteno do padro dereproduo do capital adequado para o tipo de economiaprimrio-exportadora. Com o colapso das relaes exter-

    nas, essa hegemonia desemboca no vcuo; mas, nem porisso, "ipso facto" entram em ao mecanismos automticosque produzissem a industrializao por "substituio deimportaes". Estavam dadas as condies necessrias,mas no suficientes. A condio suficiente ser encontrarumnovo modo de acumulao que substitua o acessoexterno da economia primrio-exportadora. E, para tanto, preciso adequar antes as relaes de produo. O popu-

    lismo a larga operao dessa adequao, que comeapor estabelecer a forma da juno do "arcaico" e do"novo", corporativista como se temassinalado, cujo epicen-tro ser a fundao de novas formas de relacionamentoentre o capital e o trabalho, a fim de criar as fontes inter-nas da acumulao. A legislao trabalhista criar ascondies para isso.

    Ao mesmo tempo que cria as condies para a acumu-lao necessria para a industrializao, a legislao tra-balhista, no sentido dado por Weffort (26) a cumieira deum pacto de classes, no qual a nascente burguesia indus-trial usar o apoio das classes trabalhadoras urbanas paraliquidar politicamente as antigas classes proprietriasrurais; e essa aliana no somente uma derivao dapresso das massas, mas uma necessidade para a burguesiaindustrial evitar que a economia, aps os anos de guerrae com o "boom" dos preos do caf e de outras matrias-primas de origem agre-pecuria e extrativa, reverta situao pr-anos 30. Assim, inaugura-se um longo pe-

    (26) Ver Weffor t, Fra nci sco , "E sta do e Massas no Br as il ", RevistaCivilizao Brasileira, Ano I, n. 7, Mai o de 1966. Ed it . Civiliza oBr as il ei ra , Elo, 1966. No se concorda, na in te rp re ta o de Weffort, comnenhum "distributivismo" econmico imputado ao populismo.

    35

  • 8/2/2019 Crtica da razo dualista_Francisco de Oliveira_Cebrap

    33/79

    rodo de convivncia entre polticas aparentemente con-traditrias, que de um lado penalizam a produo paraexportao mas procuram manter a capacidade de impor-tao do sistema dado que so as produes agro-pecurias as nicas que geram divisas e de outro

    dirigem-se inquestionavelmente no sentido de beneficiar aempresa industrial motora da nova expanso. Seu sentidopoltico mais profundo o de mudar definitivamente aestrutura do poder, passando as novas classes burguesasempresrias industriais posio de hegemonia. No entan-to, o processo se d sob condies externas geralmenteadversas mesmo quando os preos de exportao estoem alta e, portanto, um dos seus requisitos estrutu-

    rais o de manter as condies de reproduo das ativi-dades agrcolas, no excluindo, portanto, totalmente, asclasses proprietrias rurais nem da estrutura do podernem dos ganhos da expanso do sistema. Como contra-partida, a legislao trabalhista no afetar as relaesde produo agrria, preservando um modo de "acumulaoprimitiva" extremamente adequado para a expanso global.

    Esse "pacto estrutural" preservar modos de acumu-

    lao distintos entre os setores da economia, mas denenhummodo antagnicos, como pensa o modelo cepalino.Nesta base que continuar a crescer a populao ruralainda que tenha participao declinante no conjunto dapopulao total, e por essa "preservao" que as formasnitidamente capitalistas de produo no penetram total-mente na rea rural, mas, bem ao, contrrio, contribuempara a reproduo tipicamente no-capitalista. Assim, d-se

    uma primeira "especificidade particular" do modelo bra-sileiro, pois, ao contrrio do "clssico", sua progresso norequer a destruio completa do antigo modo de acumu-lao. Uma segunda "especificidade particular" a quese reflete na estruturao da economia industrial-urbana,particularmente nas propores da participao do Secun-drio e do Tercirio na estrutura do emprego, a questoj discutida da incapacidade ou no do Secundrio criar

    empregos para a absoro da nova fora de trabalho ea consequente "inchao" ou adequao do tamanho doTercirio. Em primeiro lugar, conforme j se demonstrou,as variaes do incremento do emprego no Secundrio so,em boa medida, conjunturais; em segundo lugar, as maio-res taxas de incremento do emprego nos servios de Con-

    36

  • 8/2/2019 Crtica da razo dualista_Francisco de Oliveira_Cebrap

    34/79

    sumo Pessoal a "inchao" se d exatamente quandoo incremento do emprego no Secundrio se acelera. Pre-tende-se haver demonstrado que os crescimentos dos doissetores, nas formas em que se deu no perodo ps-anos 30,revelam condicionamentos estruturais da expanso do capi-talismo no Brasil. Pretende-se aduzir algo em torno da

    "especificidade particular" em relao ao modelo "clssico".Convmrecuar umpouco na histria brasileira para

    apanhar umelemento estrutural do modo de produo: oescravismo. Sem pretender refazer toda a interpretao, possvel reconhecer que o escravismo constitua-se embice industrializao na medida em que o custo de

    reproduo do escravo era um custo interno da produo;a industrializao significar, desde ento, a tentativa de"expulsar" o custo de reproduo do escravo do custo deproduo. Em outras palavras, ao contrrio do modelo"clssico", que necessitava absorver sua "periferia" de re-laes de produo, o esquema numpas como o Brasilnecessitava criar sua "periferia"; neste ponto, o tipo de

    insero da economia do pas no conjunto da diviso inter-nacional do trabalho do mundo capitalista decisivo e, por-tanto, faz-se justia a todas as interpretaes parti-cularmente as de Celso Furtado que destacaram esseponto. O longo perodo dessa "expulso" e dessa "criao",desde a Abolio da Escravatura at os anos 30, decorredo fato de que essa insero favorecia a manuteno dospadres "escravocratas" de relaes de produo; sersomente uma crise ao nvel das foras produtivas queobrigar mudana do padro.

    As instituies do perodo ps-anos 30, entre as quaisa legislao do trabalho destaca-se como pea-chave, des-tinam-se a "expulsar" o custo de reproduo da fora detrabalho de dentro das empresas industriais (recorde-se

    todo o padro da industrializao anterior, quando as em-presas tinham suas prprias vilas operrias: o caso de cida-des como Paulista, emPernambuco, dependentes por inteiroda fbrica de tecidos) para fora: o salrio-mnimo ser aobrigao mxima da empresa, que dedicar toda suapotencialidade de acumulao s tarefas do crescimentoda produo propriamente dita. Por outro lado, a indus-

    trializao d t di d t i i i

  • 8/2/2019 Crtica da razo dualista_Francisco de Oliveira_Cebrap

    35/79

    nvel do sistema mundial como um todo, de uma imensareserva de "trabalho morto" que, sob a forma de tecno-logia, transferida aos paises que recm se esto indus-trializando. Assim, na verdade o processo de reproduodo capital "queima" vrias etapas, entre as quais a mais

    importante no precisar esperar que o preo da forade trabalho se torne suficientemente alto para induzir astransformaes tecnolgicas que economizam trabalho.Este fator, somado s leis trabalhistas, multiplica a pro-dutividade das inverses; por essa forma, o problema no que o crescimento industrial no crie empregos questoat certo ponto conjuntural mas que, ao acelerar-se, eleps emmovimento uma espiral que distanciou de modo

    irrecupervel os rendimentos do capital em relao aos dotrabalho. Seria necessrio, para que o preo da fora detrabalho crescesse de forma a diminuir a brecha entre osdois tipos de rendimento, uma demanda de fora de trabalhovrias vezes superior ao crescimento da oferta. Por outrolado, se verdade que a compra de equipamentos, v. g., detecnologia acumulada, "queima" etapas da acumulao, elatambmreduz o circuito de realizao interna do capital,o que tem, entre outras, a consequncia de tornar o efeitomultiplicador real da inverso mais baixo que o efeito po-tencial que seria gerado no caso de uma realizao internatotal do capital. bvio que um dos multiplicadores afeta-dos neste caso o do emprego direto e indireto. A razohistrica da industrializao tardia converte-se numa razoestrutural, dando ao setor Secundrio e indstria parti-

    cipaes desequilibradas no Produto e na estrutura doemprego.

    No que se refere s dimenses do Tercirio, pos-svel reconhecer tambm razes histricas e outras es-truturais, que explicariam uma "especificidade particular"da expanso capitalista no Brasil. Historicamente, uma in-dustrializao tardia tende a requerer, por oposio, umadiviso social do trabalho tanto mais diferenciada quanto

    maior for a contemporaneidade das indstrias, isto , quan-to mais avanada for a tecnologia incorporada. Assim,todos os tipos de servios contemporneos da indstria no nvel em que ela se encontra no