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Comentários às obras de Kant: Crítica da Razão Pura. Joel Thiago

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  • Joel Thiago Klein (Organizador)

    Nefiponline Florianpolis

    2012

  • Ncleo de tica e Filosofia Poltica

    Campus Universitrio - Trindade - Florianpolis

    Caixa Postal 476 Departamento de Filosofia / UFSC

    CEP: 88040 900

    http:// www.nefipo.ufsc.br/

    Capa

    Foto: Alessandro Pinzani

    Design: Leon Farhi Neto Diagramao/editorao: Joel Thiago Klein

    C732 Comentrios s obras de Kant: Crtica da Razo Pura / Joel Thiago Klein (Organizador) - Florianpolis: NEFIPO, 2012.

    (Nefiponline) 824 p.

    ISBN: 978-85-99608-08-1

    1. Filosofia moderna ocidental. 2. Immanuel Kant. I. Klein, Joel Thiago . II. Ttulo

    CDU: 1KANT

    Licena de uso creative commons

    http://creativecommons.org/licenses/by-nc/3.0/deed.pt

    NEFIPO Coordenador:

    Prof. Dr. Denlson Werle Vice-Coordenador:

    Prof. Dr. Darlei DallAngnol

    Catalogao na fonte elaborada por: Dbora Maria Russiano Pereira, CRB-14/1125

  • A Valerio Rohden

  • Noch weniger darf man hier eine Kritik der Bcher und Systeme der

    reinen Vernunft erwarten, sondern die des reinen

    Vernunftvermgens selbst. Nur allein, wenn diese zum Grunde liegt,

    hat man einen sicheren Probierstein, den philosophischen Gehalt

    alter und neuer Werke in diesem Fache zu schtzen; widrigenfalls

    beurteilt der unbefugte Geschichtschreiber und Richter grundlose

    Behauptungen anderer durch seine eigene, die eben so grundlos

    sind.

    No se deve esperar aqui uma crtica de livros e sistemas da razo

    pura, mas sim a crtica da prpria faculdade pura da razo. Somen-

    te sobre a base desta crtica se possui uma pedra de toque segura

    para avaliar o contedo filosfico de obras antigas e novas neste

    ramo; caso contrrio, o historigrafo e juiz incompetente julga afir-

    maes infundadas de outros mediante suas prprias, que so igual-

    mente infundadas.

    KrV, B 27

  • SUMRIO

    Apresentao ........................................................................................... 3

    Lista de abreviaturas................................................................................ 5

    Os prefcios (KrV A e B) Christian Hamm ......................................................................... 11

    Sentido, sensibilidade e intuio: da Dissertao inaugural a Crtica Orlando Bruno Linhares ............................................................ 41

    O argumento da Esttica e o problema da aprioridade: ensaio de um comentrio preliminar

    Juan Adolfo Bonaccini ............................................................... 71

    A unidade da intuio e a unidade da sntese Paulo Roberto Licht dos Santos ............................................... 145

    Lgica geral e lgica transcendental Slvia Altmann .......................................................................... 179

    A funo da deduo metafsica na Crtica da razo pura de Kant Rolf-Peter Horstmann .............................................................. 227

    A verso definitiva da deduo transcendental das categorias na

    primeira edio da Crtica da razo pura Mario Caimi ............................................................................. 249

    A deduo transcendental B: objetivo e mtodo Pedro Costa Rego ..................................................................... 287

    Para que Kant precisa do captulo do Esquematismo? Marcele Ester Klein Hentz ....................................................... 319

    O problema da causalidade luz do naturalismo de Hume e do

    criticismo de Kant Andrea Luisa Bucchile Faggion ............................................... 343

  • A refutao do idealismo: problema, objetivo e resultado do argumento

    kantiano Hans Christian Klotz ................................................................ 415

    Kant e o problema do ceticismo na Crtica da razo pura Marco Antonio Franciotti ........................................................ 435

    Sujeitos capazes de representar, objetos que dependem da mente: Kant,

    Leibniz e a Anfibolia Antonio-Maria Nunziante e Alberto Vanzo .............................. 465

    A iluso transcendental Julio Esteves ............................................................................. 489

    Sobre a terceira antinomia Alessandro Pinzani ................................................................... 561

    Refutao do argumento ontolgico, ou filosofia crtica versus filosofia

    dogmtica Andrea Luisa Bucchile Faggion ............................................... 591

    A representao por analogia na Crtica da razo pura Joosinho Beckenkamp ............................................................ 613

    Do uso regulativo das ideias da razo pura Carlos Adriano Ferraz ............................................................. 627

    Por construo de conceitos Abel Lassalle Casanave ........................................................... 657

    Liberdade e moralidade segundo Kant Guido Antnio de Almeida ....................................................... 695

    O Cnon da razo pura Flvia Carvalho Chagas .......................................................... 721

    A arquitetnica da razo pura Ricardo Terra ........................................................................... 747

    A histria da razo pura: uma histria filosofante da filosofia Joel Thiago Klein ..................................................................... 779

  • APRESENTAO

    Poucos foram os livros que marcaram to profundamente a

    histria da filosofia quanto a Crtica da razo pura. Sua influncia

    vasta, evidente e incontestvel. Por isso, conhecer essa obra, to

    importante quanto difcil, uma tarefa necessria para quem quiser

    estudar filosofia, seja a partir do enfoque de sua histria, seja a partir do

    enfoque de seus problemas. Ela um divisor de guas a partir do qual se

    colocam, de um lado, uma diversidade de posies crticas, de outro,

    interpretaes que assumiram de um modo mais ou menos abrangente o

    esprito da revoluo copernicana do modo de pensar.

    A proposta deste livro no simples: conciliar uma rigorosa

    anlise do texto kantiano e a reviso de algumas das principais obras de

    literatura secundria, junto com a tentativa de tornar o texto mais claro e

    compreensvel. Esse objetivo foi buscado a seu modo por cada um dos

    colaboradores: reconhecidos professores e pesquisadores do tema. Este

    livro tambm conta com a traduo de alguns artigos j publicados em

    outras revistas e livros, os quais foram aqui acrescentados devido a sua

    temtica e relevncia.

    Ainda que este livro no trate de todos os temas da obra, ele

    abarca alguns dos principais e por isso se apresenta como uma excelente

    introduo e comentrio Crtica da razo pura. Alm disso, ao ser

    disponibilizado online e de forma livre, pretende continuar qualificando

    o debate filosfico e os estudos kantianos por todo Brasil, visto que os

    estudantes de graduao e ps-graduao em filosofia constituem o seu

    pblico alvo.

    Por fim, cabe dizer ainda que este o primeiro volume de um

    conjunto de comentrios a ser organizado pelo Centro de Investigaes

    Kantianas da Universidade Federal de Santa Catarina, o qual pretende abarcar todo o opus kantiano.

    Joel Thiago Klein

    Florianpolis, novembro de 2012

  • LISTA DE ABREVIATURAS

    As citaes das obras de Kant correspondem forma recomendada pela

    Akademie-Ausgabe e adotada pela Sociedade Kant Brasileira:

    Siglum, AA (Bd.-Nr.): Seite[n]. Ex: IaG, AA 08: 30.

    Apenas a Crtica da razo pura segue a paginao original A/B, tambm adotada pela edio da Akademie.

    Anth Anthropologie in pragmatischer Hinsicht (AA 07)

    Antropologia em sentido pragmtico

    Br Briefe (AA 10-13) Cartas

    EaD Das Ende aller Dinge (AA 08)

    O fim de todas as coisas

    FM Welches sind die wirklichen Fortschritte, die die Metaphysik seit Leibnizens und Wolff's Zeiten in

    Deutschland gemacht hat? (AA 20)

    Quais so os verdadeiros progressos que a metafsica

    realizou na Alemanha desde a poca de Leibniz e

    Wollf?

    GMS Grundlegung zur Metaphysik der Sitten (AA 04)

    Fundamentao da metafsica dos costumes

    GSK Gedanken von der wahren Schtzung der lebendigen Krfte (AA 01)

    Pensamentos sobre a verdadeira avaliao das foras

    vivas

    IaG Idee zu einer allgemeinen Geschichte in weltbrgerlicher Absicht (AA 08)

    Ideia de uma histria universal com uma inteno

    cosmopolita

  • 6 | Comentrios s obras de Kant: Crtica da razo pura

    KpV Kritik der praktischen Vernunft (AA 05)

    Crtica da razo prtica

    KrV Kritik der reinen Vernunft (Originalpaginierung A/B)

    Crtica da razo pura (Paginao original A/B)

    KU Kritik der Urteilskraft (AA 05) Crtica da faculdade do juzo

    Log

    Logik (Jsche) (AA 09)

    Lgica

    MAM Mutmalicher Anfang der Menschheitsgeschichte

    (AA 08)

    Incio conjectural da histria da humanidade

    MAN Metaphysische Anfangsgrnde der

    Naturwissenschaften (AA 04)

    Primeiros princpios metafsicos da cincia da

    natureza

    MSI De mundi sensibilis atque intelligibilis forma et

    principiis (AA 02)

    Forma e princpios do mundo sensvel e do mundo

    inteligvel

    MS Die Metaphysik der Sitten (AA 06)

    Metafsica dos costumes

    OP Opus Postumum (AA 21 u. 22)

  • Comentrios s obras de Kant: Crtica da razo pura | 7

    Pd Pdagogik (AA 09)

    Pedagogia

    Prol Prolegomena zu einer jeden knftigen Metaphysik

    (AA 04)

    Prolegmenos toda metafsica futura

    Refl Reflexion (AA 14-19) Reflexes

    RezHerder

    Recensionen von J. G. Herders Ideen zur Philosophie

    der Geschichte der Menscheit (AA 08)

    Recenses s Idias para uma filosofia da histria da

    humanidade de J.G. Herder

    RGV Die Religion innerhalb der Grenzen der bloen

    Vernunft (AA 06)

    Religio nos limites da simples razo

    SF Der Streit der Fakultten (AA 07) Conflito das faculdades

    TP

    ber den Gemeinspruch: Das mag in der Theorie

    richtig sein, taugt aber nicht fr die Praxis (AA 08)

    Sobre o dito comum: isso pode ser correto na teoria,

    mas no serve para a prtica

    UD Untersuchung ber die Deutlichkeit der Grundstze

    der natrlichen Theologie und der Moral (AA 02)

    Investigao sobre a clareza dos princpios da

    teologia natural e da moral

    E ber eine Entdeckung, nach der alle neue Kritik der

    reinen Vernunft durch eine ltere entbehrlich

    gemacht werden soll (AA 08)

    Sobre uma descoberta segundo a qual toda nova

    crtica da razo pura deveria ser tornada suprflua por

    uma anterior.

  • 8 | Comentrios s obras de Kant: Crtica da razo pura

    GTP ber den Gebrauch teleologischer Principien in der

    Philosophie (AA 08) Sobre o uso de princpios teleolgicos na filosofia

    V- Vorlesungen (AA 24 ff.)

    Prelees

    V-Lo/Wiener Wiener Logik (AA 24) Preleo de lgica anotada segundo Wiener

    V-Lo/Blomberg Logik Blomberg (AA 24)

    Preleo de lgica anotada segundo Blomberg

    V-MP/Dohna Kant Metaphysik Dohna (AA 28)

    Preleo de metafsica anotada segundo Dohna

    V-MP-

    K2/Heinze

    Kant Metaphysik K2 (Heinze, Schlapp) (AA 28)

    Preleo de Metafsica anotada segundo Heinze e

    Schlapp

    V-MP-L2/Plitz Kant Metaphysik L2 (Plitz, Original) (AA 28) Preleo de metafsica anotada segundo Plitz

    V-MP-L1/Plitz Kant Metaphysik L1 (Plitz) (AA 28)

    Preleo de metafsica anotada segundo Plitz

    V-MP/Volckmann

    Metaphysik Volckmann (AA 28)

    Preleo de metafsica anotada segundo Volckmann

    V-MP/Schn Metaphysik von Schn, Ontologie (AA 28)

    Preleo de metafsica anotada segundo Schn

  • Comentrios s obras de Kant: Crtica da razo pura | 9

    VT Von einem neuerdings erhobenen vornehmen Ton in

    der Philosophie (AA 08)

    Sobre um suposto novo tom elevado na filosofia

    WA Beantwortung der Frage: Was ist Aufklrung? (AA

    08)

    Resposta a pergunta: que esclarecimento?

    WDO Was heit sich im Denken orientiren? (AA 08) O que significa orientar-se no pensamento?

    ZeF Zum ewigen Frieden (AA 08)

    paz perptua

  • OS PREFCIOS (KRV A E B)

    Christian Hamm

    Universidade Federal de Santa Maria

    Nos dois Prefcios primeira Crtica, Kant expe, de forma

    sucinta, os motivos e as ideias centrais do seu empreendimento crtico.

    Como Kant, perante a inesperada perplexidade de grande parte dos

    leitores da Primeira Edio da obra, se sentia levado a explicitar mais

    detalhadamente o esprito revolucionrio da sua nova proposta

    filosfica, o prefcio Segunda Edio de 1787 acaba sendo quase trs

    vezes mais comprido que o anterior de 1781. O fato de ele ter redigido

    uma verso completamente nova do prefcio no significa, no entanto,

    que o primeiro se tornou, com isso, simplesmente obsoleto. Bem pelo

    contrrio, pode-se dizer que muitos dos elementos doutrinais abordados

    no contexto do segundo prefcio ganham sua plena plausibilidade e sua

    fora convincente s a luz da exposio feita no primeiro.

    Nos pargrafos iniciais do prefcio primeira edio da Crtica

    da razo pura1, Kant descreve a situao dramtica, ou at paradoxal,

    em que a razo humana se encontra. Ela, lemos, tem o destino

    singular de ser incomodada por questes a que no pode esquivar-se,

    pois elas lhe so impostas [aufgegeben] pela prpria natureza da

    razo; mas so questes que ela tambm no pode resolver, j que

    ultrapassam toda a capacidade da razo humana.2 Como a razo no

    pode mudar seu destino natural nem ampliar, por fora prpria, a sua

    capacidade, tambm natural, de conhecimento, , no entanto, sem

    culpa que ela cai neste impasse. O que ela faz, contudo, no intuito de

    sair deste impasse, adotar o mesmo procedimento de que se serve no

    uso da sua capacidade de conhecimento do mundo emprico: ela

    comea com princpios cujo uso inevitvel no curso da experincia e,

    ao mesmo tempo, suficientemente comprovado por esta, e se eleva, a

    partir destes princpios, a condies sempre mais remotas, tentando,

    1 KrV, A VII A XXII. A Crtica da razo pura citada segundo as edies A

    (1781) e B (1787); demais citaes das obras de Kant segundo a Akademie-

    Ausgabe (AA). - Os realces tipogrficos em negrito so meus, os em itlico (no

    original: grifo alemo) so de Kant. 2 KrV, A VII.

  • 12 | Christian Hamm

    assim, completar gradativamente todos os princpios j confirmados

    pelas cincias naturais, com o fim de alcanar o maior grau possvel de

    coeso e unidade nos seus conhecimentos.3 Mas, percebendo que desta

    forma o seu labor deve sempre permanecer incompleto, uma vez que s

    consegue subir a princpios sempre j condicionados por outros, mas

    nunca encontrar algo absolutamente incondicionado, ela v-se obrigada

    a lanar mo de princpios que transcendem todo uso possvel da

    experincia., envolvendo-se assim em trevas e contradies.4 E

    embora isso lhe permit[a] inferir que em qualquer ponto [...] deve haver

    erros latentes, ela incapaz de descobri-los, porque os princpios que

    emprega [...] transcendem o uso possvel da experincia.5 nisto que

    consiste toda a aporia da razo: motivada pela sua prpria natureza a

    procurar uma resposta definitiva pergunta pelos seus princpios

    ltimos, ela tenta ampliar o campo da sua investigao e encontrar o

    ltimo fundamento da experincia alm de toda a experincia, sem

    dispor de um instrumentrio que lhe permita a realizao adequada de

    tal procura com o resultado de ficar sem soluo, ou, pior ainda, com

    muitas solues, mas todas elas altamente discutveis. Como a procura

    dessas solues ocorre alm dos limites da experincia, ou seja,

    atrs (meta, em grego) da natureza, enquanto mundo fsico, a arena

    destas discusses sem fim chama-se Metafsica.6

    Antes de passar para as observaes de Kant sobre a histria, a

    situao atual e o possvel futuro de uma Metafsica que queira

    apresentar-se como cincia,7 faz-se mister olhar ainda um pouco mais

    de perto para esse pargrafo introdutrio, que contm alguns

    pressupostos implcitos cujo desdobramento ter lugar s em captulos

    posteriores da obra. Um destes pressupostos diz respeito expresso

    natureza da razo. O que significa que certas questes irrecusveis

    so impostas razo pela sua prpria natureza, ou que de sua

    natureza que ela continua se elevando a condies sempre mais

    remotas? J falar sobre um destino da razo s faz sentido

    pressupondo que existem, de fato, certas qualidades essenciais da sua

    natureza que so condicionantes deste destino, i.e., qualidades que

    fazem com que o incmodo da razo por questes a que no pode

    3 KrV, A VII s.

    4 Ibid.

    5 KrV, A VIII.

    6 Ibid.

    7 Prol, AA 04: 253.

  • Comentrios s obras de Kant: Crtica da razo pura | 13

    esquivar-se e que no pode resolver se torne um problema existencial

    para ela. Quais so essas qualidades naturais? Ora, o prprio fato de a

    razo sentir-se incomodada pelas ditas questes (em vez de, por

    exemplo, no dar ateno a elas ou de rejeit-las como questes

    simplesmente absurdas), aponta o momento crucial da sua natureza: a

    razo evidentemente concebida como faculdade que procede, igual a

    qualquer outro ser natural, de um modo orgnico, o que quer dizer,

    neste caso, como uma faculdade capaz de organizar sistematicamente

    a saber: conforme uma ideia que contm o fim e a forma do todo que

    congruente com o tal fim8 no s todos os objetos do seu possvel

    conhecimento e as regras e princpios que permitam esse conhecimento,

    mas tambm os princpios da sua prpria auto-organizao. este seu

    carter estritamente sistematizador a que se deve tanto o seu

    incmodo (enquanto preocupao com a possvel incompatibilidade

    sistemtica das suas respostas), como tambm e sobretudo, o impulso

    ou estmulo que a faz comear e continuar sua procura por uma soluo

    do problema, at sem saber como resolv-lo; e , primordialmente, nesta

    sua inabalvel perseverana em continuar perguntando at o final, em

    esforar-se para alcanar a maior completude e a maior ordem possvel

    dos seus conhecimentos, que se manifesta a sua autntica natureza.

    bvio que, sem esta pressuposio de um carter naturalmente

    sistematizante da razo, todo o seu trabalho crtico ficaria em vo e sem

    sentido. S uma razo assim concebida pode ser pensada como tendo a

    capacidade e como sentindo, ao mesmo tempo, a necessidade9 de

    8 KrV, B 860.

    9 Nesta necessidade (em alemo: Bedrfnis) que a razo sente, manifesta-

    se, por assim dizer, o lado subjetivo do seu destino peculiar de no poder

    esquivar-se de certas questes que lhe so impostas pela [sua] prpria

    natureza: enquanto faculdade orgnica, sempre orientada para a

    sistematizao mais completa possvel dos seus conhecimentos, ela obviamente

    deve ter, na medida em que aceita esse seu destino natural, tambm um forte

    interesse em cumprir sua tarefa e em satisfazer, assim, a sua necessidade de

    esforar-se neste sentido. - A distino kantiana entre o destino objetivo e

    uma necessidade subjetiva da razo (explicitada o mais claramente no seu

    opsculo Que significa orientar-se no pensamento?, AA 08:131-148) pode

    parecer, a primeira vista, um pouco artificial, mas constitui, na verdade, e no

    apenas neste contexto do prefcio, um elemento de argumentao muito

    importante. entre esses dois plos que se desenvolve toda a dinmica da

    procura dos ltimos fundamentos do nosso saber, e com base nesta dinmica

    que se mostra no s qual o curso que a razo pode e deve tomar, ou melhor:

  • 14 | Christian Hamm

    entrar naquela arena da Metafsica e de acabar, de vez, com todas as

    suas discusses sem fim.

    Na descrio desta arena e no esboo da trajetria problemtica

    da Metafsica, desde a poca em que ela foi tida pela rainha de todas as

    cincias e em que seu domnio, sob a administrao dos dogmticos,

    era desptico, at os tempos mais recentes em que ela, em conseqncia de guerras internas, acabou degenerando [...] na mais

    completa anarquia,10

    Kant caracteriza, em traos gerais, essas

    discusses sem fim como sendo motivadas, por um lado, pelos

    ataques permanentes da parte dos cticos, uma espcie de nmades

    avessos a todo cultivo estvel da terra,11

    os quais, convencidos da

    futilidade de qualquer especulao metafsica, nada mais queriam do

    que pr cobro a mesma; e, por outro, pela reao, no menos persistente,

    da parte dos racionalistas, os quais, animados pela parca repercusso s

    investidas radicais dos adversrios, continuavam, por sua vez, insistindo

    na afirmao das suas falsas pretenses e fazendo, assim, recai[r]

    tudo no velho dogmatismo carcomido e naquele descrdito do qual

    se tencionara arrancar a cincia: uma disputa que resultou, enfim, em

    fastio e num total indiferentismo12

    a respeito deste gnero de

    investigaes.

    Como, no entanto, a razo, em virtude da sua natureza singular,

    simplesmente no pode ficar indiferente com relao aos objetos da

    Metafsica a procura do incondicionado, as questes da existncia de

    Deus, da imortalidade da alma e da liberdade do homem no mundo ,

    ela tem de assumir, em vez de contentar-se com um saber deficiente e

    meramente aparente, a mais penosa de todas as suas incumbncias, a

    saber, a do conhecimento de si mesma, e de realizar, assim, o que

    constitui sua verdadeira tarefa: instituir e submeter-se a um tribunal

    capaz de assegurar suas reivindicaes justas, mas tambm de repelir

    todas as suas pretenses infundadas [...], de acordo com suas leis eternas

    qual o uso que ela tem que fazer da sua prpria faculdade; mas tambm e

    sobretudo, que ela continua permanentemente correndo risco de falhar na sua

    procura do absoluto, do incondicionado: seguindo cegamente, i.e., sem

    submeter-se a sua prpria crtica, seu impulso, sua nsia indomvel (KrV, B

    824), ela vai ultrapassar seus limites, sem perceb-los, e perder-se nas trevas

    do desconhecido. 10

    KrV, A IX. 11

    Ibid. 12

    KrV, A X.

  • Comentrios s obras de Kant: Crtica da razo pura | 15

    e imutveis.13

    Tal tribunal a prpria Crtica da razo pura um

    tribunal em que a razo tem que conduzir um processo em causa prpria

    contra si mesma, desempenhando, pois, ao mesmo tempo, o papel do

    ru, o do seu advogado e do seu prprio juiz; essa crtica, portanto, no

    pode ser meramente uma crtica de determinadas posies filosficas,

    dos livros e dos sistemas, mas uma crtica da

    faculdade da razo como tal, em relao a todos

    os conhecimentos a que ela possa aspirar

    independentemente de toda experincia e, por

    conseguinte, a deciso sobre a possibilidade ou

    impossibilidade de uma metafsica em geral, bem

    como a determinao tanto das fontes como da

    extenso e dos limites da mesma, e tudo isso a

    partir de princpios.14

    Esta caracterizao do tribunal enquanto crtica, ou autocrtica,

    rene todos os momentos cruciais do empreendimento kantiano: objeto

    da investigao crtica a faculdade da razo como tal, i.e., a razo

    pura, no determinada empiricamente, na sua capacidade de produzir

    conhecimentos independentemente de toda experincia;

    conhecimentos, portanto, que, por ter como base unicamente as leis

    eternas e imutveis da prpria razo, podero exigir validade

    objetiva e universal e permitir, justamente por isso, uma deciso

    definitiva quanto legitimidade de todas as reivindicaes e aspiraes

    de uma Metafsica em geral, bem como, tambm, uma determinao,

    a partir de princpios, das fontes, da extenso e dos limites, i.e., a

    marcao exata dos diferentes territrios e domnios da razo.

    Quanto a este ltimo momento da determinao dos limites, vale

    lembrar que o prprio termo crtica (do grego krnein: discernir,

    distinguir, separar, julgar) significa, em primeiro lugar, exatamente esta

    atividade limitativa, e, no caso do ttulo Crtica da razo pura, at em

    sentido duplo, a saber, tanto no de um mero desmembramento analtico,

    i.e., da separao dos diversos elementos da razo, uns dos outros

    (gen. subiectivus), e da sua respectiva especificao, como tambm no

    sentido de um exame da exequibilidade e da legitimidade de tal

    desmembramento ou separao (gen. obiectivus). Conforme a

    13

    KrV, A XI. 14

    KrV, A XII.

  • 16 | Christian Hamm

    ideia principal do projeto kantiano de edificar uma metafsica

    inteiramente pura, o mais importante dos limites que devem ser

    determinados pela razo , sem dvida, aquele entre o mundo emprico e

    o mundo inteligvel, entre fenmenos e noumenos, do condicionado e do

    incondicionado, e, correspondentemente, entre conhecimento e

    pensamento. Como, contudo, a nova Metafsica pretende ter carter de

    uma cincia, o trabalho crtico da razo tem que incluir tambm a

    determinao ou marcao de outros limites, como, p.ex., entre os

    diferentes tipos de cincia, entre diferentes formas e reas da

    experincia humana, em geral, e, mais importante ainda, entre as

    diferentes formas do uso (imanente ou transcendente, terico ou prtico)

    da razo.

    Kant tem a certeza de que, em vista do fracasso de todas as

    tentativas anteriores, no teve outra opo a no ser essa sua crtica

    radical: este o caminho pelo qual enveredei, o nico que restara. E

    no menos certo ele est de ter descoberto, neste mesmo caminho, o

    nico meio de eliminar todos os equvocos dos seus predecessores

    filosficos que at agora haviam dividido a razo contra si mesma no

    seu uso no-emprico,15

    de modo que ele se v com pleno direito a

    prometer que nada resta posterioridade seno a organizao de tudo

    em estilo didtico [...], mas sem poder fazer o mnimo aditamento ao contedo.

    16 A certeza de ter levado a cabo com sucesso a sua

    investigao crtica e de no ter deixado um s problema metafsico

    que no tenha sido solucionado [...] ou a cuja soluo no se tenha

    fornecido, pelo menos, a chave, deve-se a sua convico de, aps

    descobrir o mal-entendido [Missverstand] da razo consigo mesma,

    t-la examinado integralmente mo de princpios princpios que,

    em virtude da suposta unidade perfeita da razo, garantem a validade

    universal do seu uso em todos os seus quesitos particulares. essa sua

    unidade perfeita, sua arquitetnica inteiramente orgnica, que abona a

    integridade das suas partes e que faz com que a crtica no precise

    ultrapassar a esfera da mesma e, ao modo do racionalismo dogmtico,

    estender o conhecimento humano para alm dos limites da experincia

    possvel, com o fim de conseguir demonstrar, por essa via problemtica,

    a natureza simples da alma, a necessidade de um primeiro comeo do

    mundo ou a existncia de Deus.

    15

    KrV, A XII. 16

    KrV, A XX.

  • Comentrios s obras de Kant: Crtica da razo pura | 17

    O fato de ter apenas a prpria razo e seu pensar puro17

    como

    objeto da investigao crtica no significa, no entanto, que tal

    investigao seja, s por isso, menos laboriosa que essas outras de

    cunho dogmtico. Bem pelo contrrio: cumprir o que, para Kant,

    simplesmente o dever da filosofia,18

    a saber, desfazer, de uma vez

    por todas, as fantasmagorias [Blendwerk] nascida[s] de uma interpretao errada da razo, implica no s na necessidade de uma

    demonstrao criteriosa da falsidade dos preconceitos dos adversrios

    dogmticos, mas tambm, mais importante ainda, na demonstrao da

    viabilidade e, sobretudo, da irrefutabilidade da prpria alternativa

    crtica. Com respeito a sua inteno e obrigao de fazer tudo para que

    essas demonstraes saiam bem e sua prpria proposta se evidencie

    completa e coerente em todos seus detalhes, Kant menciona e comenta

    explicitamente os quatro princpios pelos quais ele se guiou no seu

    trabalho, a saber: integridade [Vollstndigkeit], minuciosidade

    [Ausfhrlichkeit], certeza [Gewissheit] e clareza [Deutlichkeit]. Quanto aos dois primeiros, sua validade e importncia derivam,

    conforme ao que j foi dito, do prprio objeto da crtica, i.e., da razo,

    enquanto razo pura, cujo conhecimento pormenorizado [...] eu

    encontro dentro de mim mesmo,19

    e das suas qualidades intrnsecas de

    (a) possuir limites fixos e claramente localizveis por qualquer portador

    de tal faculdade, e (b) de se apresentar, por natureza, de forma

    organizada segundo princpios sistemticos; o que permite a sua

    acessibilidade igualmente sistemtica, de modo que possvel

    enumerar a exemplo da lgica comum [gemeine Logik]

    completa e sistematicamente todas as suas operaes simples,20

    operaes estas que constituem, por sua vez, a base para a determinao

    e ramificao sistemtica de todas as demais operaes e tarefas da

    razo.

    Com respeito ao princpio da certeza, Kant antecipa o que vai

    afirmar muito enfaticamente seis anos mais tarde, na sua introduo

    segunda edio da Crtica,21

    relativamente diferena entre um

    procedimento dogmtico da razo, enquanto cincia, e o

    dogmatismo de uma razo que procede sem crtica prvia da sua

    17

    KrV, A XIV. 18

    KrV, A XIII. 19

    KrV, A XIV. 20

    Ibid. 21

    KrV, B XXXV s.

  • 18 | Christian Hamm

    prpria capacidade: todo conhecimento que, a partir de tal crtica

    prvia exigida, pretende ser vlido a priori, pode proclamar,

    justamente por isso e at de forma dogmtica, que deve ser tido como

    absolutamente necessrio; e, mais ainda, como se trata, no caso, de

    uma determinao de todos os conhecimentos a priori, ele pode e at

    deve servir de padro [Richtma e de exemplo a toda certeza filosfica (apodtica), em geral.

    22

    No que, enfim, diz respeito ao quarto princpio, o da clareza,

    Kant salienta, como primeiro direito do leitor, o direito dele de exigir a

    clareza discursiva (lgica), por conceitos, a qual, bvio, deve ser acompanhada, na medida do possvel, tambm por uma clareza

    intuitiva (esttica), por intuies, i.e., por meio de exemplos e outros esclarecimentos.

    23 Ora, correspondentemente essncia do seu

    projeto, Kant admite que ele importava-se mais com a ideia de

    22

    KrV, A XV. Tendo em vista que, segundo a sua prpria constatao rigorosa,

    nesta espcie de reflexes no se admite, em absoluto, o opinar e que

    qualquer procedimento ou soluo de carter meramente hipottico

    simplesmente mercadoria proibida (ibid.), Kant se v levado a fazer um

    pequeno comentrio com referncia a uma parte das suas investigaes [...]

    mais importantes, feitas no segundo captulo da Analtica Transcendental da

    Crtica, sob o ttulo de Deduo dos conceitos puros do entendimento, em

    que, como ele mesmo admite, pode parecer que ele prprio deixou de observar

    o suficiente o cumprimento dos seus preceitos crticos. Nesta reflexo [...] um

    tanto profunda, Kant distingue dois lados, dos quais um considerado o

    mais essencial se refere aos objetos do entendimento puro, visando a expor e

    tornar compreensvel a validade objetiva dos seus conceitos a priori, enquanto

    o outro se pe a refletir sobre o prprio entendimento, do ponto de vista da sua

    possibilidade e dos poderes cognoscitivos nos quais ele prprio assenta, ou

    seja, sobre a questo como possvel a prpria faculdade de pensar? (KrV, A

    XVI s.). com respeito a esta ltima deduo subjetiva que Kant reconhece

    ter adotado um procedimento que, por constituir, em certo sentido, uma busca

    da causa de um efeito dado, teria, de fato, certa semelhana com uma

    hiptese e que, visto por si s, at poderia ser entendido como um caso em que

    ele prprio se permiti[ria] opinar, e onde, por conseguinte, o leitor deveria ter

    igual direito a opinar diferentemente (KrV, A XVII) uma interpretao, no

    entanto, que Kant rejeita veementemente, apontando, a esse respeito, para suas

    respectivas explanaes posteriores, feitas em outra oportunidade (ibid.), que

    mostrariam de forma concludente que, na verdade, nem o seu procedimento na

    referida deduo pode ser chamado de hipottico, nem seu contedo ser visto

    como matria de um mero opinar. 23

    KrV, A XVIII.

  • Comentrios s obras de Kant: Crtica da razo pura | 19

    providenciar a clareza do primeiro tipo do que a do segundo e, mais, que

    foi exatamente isso sua preocupao com a clareza conceitual que

    fez com que, finalmente, no conseguisse satisfazer a segunda

    exigncia, a qual, como reconhece, por ser menos rigorosa no deixa,

    contudo, de ser justa. Mas, no obstante o reconhecimento da carncia

    de exemplos e outros esclarecimentos, i.e., da falta de uma clareza

    mais intuitiva, e a despeito de todas as dvidas que ele teve, no

    decurso de quase todo [seu] trabalho, sobre a maneira como deveria

    proceder neste ponto, Kant julga ter bons motivos para defender a sua

    deciso de optar por uma forma de exposio mais seca e meramente

    escolstica: alm do que ele chama de causa acidental24

    o fato de

    que algo que j se conseguiu esclarecer o suficiente mediante conceitos

    simplesmente no necessita de maiores explicitaes por outros meios

    ele alega a magnitude da sua tarefa e a grande quantidade dos

    assuntos abordados na obra que o teriam levado a fazer um uso

    bastante econmico dos referidos recursos. A incluso de mais

    exemplos e comentrios no s teria avolumado demasiadamente essa

    obra, j bastante volumosa, mas poderia ter resultado tambm em algo

    muito mais inoportuno, a saber, na dificultao ou at obstruo do

    acesso compreenso da argumentao crtica no seu todo. Pois, como

    reza o texto,25

    mesmo que os meios teis clareza [Hilfsmittel der Deutlichkeit] possam ajudar em partes, eles frequentemente distraem

    no conjunto, na medida em que, por um lado, no permitem ao leitor

    chegar com a suficiente presteza viso compreensiva do todo e, por

    outro, encobrem e desfiguram, com todas as suas cores vivas, a

    articulao do sistema, impossibilitando assim justamente o que mais

    importa, a saber: julgar da unidade e da consistncia desse mesmo

    sistema. Tendo em vista que a Crtica, conforme ao prprio autor, no

    orientada para o uso popular, dirigindo-se, portanto, no a amadores

    ou aprendizes,26

    mas a profissionais filosficos, aos conhecedores

    propriamente ditos das cincias,27

    Kant acredita poder contar com a

    disposio e a preparao necessrias dos seus leitores para que estes

    alie[m] seus esforos aos do autor,28

    no intuito de captar a ideia

    central do raciocnio crtico em sua singularidade e descobrir a lgica

    24

    Ibid. 25

    KrV, A XIX. 26

    Prol, AA 04:255. 27

    KrV, A XVIII. 28

    KrV, A XIX.

  • 20 | Christian Hamm

    interna do seu funcionamento. nesta perspectiva de uma recepo

    adequada e, se possvel, produtiva, da nova Metafsica a ser

    desenvolvida e fundamentada nesta obra, que Kant volta a apontar, mais

    uma vez, para o que constitui o caracterstico e, ao mesmo tempo, o

    radicalmente novo da sua proposta: Enquanto a nica entre todas as

    cincias que vai poder reclamar para si um acabamento completo e

    duradouro, ela representa nada mais do que o inventrio

    sistematicamente ordenado de todas as nossas posses adquiridas

    pela razo pura, cuja integralidade se baseia no simples fato de que

    tudo o que a razo tira inteiramente de si mesma no pode passar

    despercebido nem esconder-se a essa mesma razo, mas posto a

    luz por ela, tanto que se tenha descoberto o seu princpio comum. ,

    pois, a perfeita unidade dessa espcie de conhecimentos, obtidos

    exclusivamente a partir de conceitos puros e sem a menor influncia de

    algo oriundo da experincia, que torna aquela integralidade

    incondicional no s praticvel, mas tambm necessria.29

    No ltimo pargrafo, Kant anuncia seu plano de publicar um tal

    sistema da razo pura (especulativa), sob o ttulo de Metafsica da

    Natureza, uma obra que ser [...] incomparavelmente mais rica em contedo do que a presente Crtica e cuja tarefa principal deveria ser

    vista, correspondentemente a sua caracterizao inicial, apenas na

    exposio detalhada das fontes e das condies de possibilidade da

    razo pura, i.e., no tanto na construo e instaurao de algo j definido

    e elaborado em termos doutrinais, mas em aplanar e mondar o terreno

    totalmente invadido por ervas daninhas,30

    para possibilitar tal

    construo em data posterior. sabido que esse plano no foi realizado:

    o tratado Primeiros princpios metafsicos da cincia natural, do ano 1786, certamente no constitui a obra anunciada, uma vez que tambm

    no prefcio segunda edio da Crtica, publicada um ano depois, encontramos ainda a promessa de aprontar, o mais breve possvel,

    uma Metafsica da Natureza [...] como confirmao da correo da

    Crtica da razo especulativa.31

    Em vez desta obra projetada, Kant

    publicou, nos seis anos entre a primeira e a segunda edio da Crtica,

    uma srie de outras obras, entre elas os Prolegmenos (1783), a Fundamentao da metafsica dos costumes (1785), Ideia de uma

    histria universal de um ponto de vista cosmopolita (1784) e a j

    29

    KrV, A XX. 30

    KrV, A XXI. 31

    KrV, B XLIII.

  • Comentrios s obras de Kant: Crtica da razo pura | 21

    mencionada Primeiros princpios metafsicos, obras estas que

    exceo dos Prolegmenos, outra exposio, mais sucinta, da prpria

    primeira Crtica e elaborada em mtodo analtico,32

    com o fim de

    facilitar ao leitor a melhor compreenso desta ltima no esto

    diretamente relacionadas com a temtica tratada na Crtica, embora,

    quanto ao modo e a perspectiva do tratamento dos seus respectivos

    assuntos, claramente inspiradas pelo esprito e os resultados principais

    da mesma.

    O prefcio segunda edio da Crtica, mais longo e, em funo

    da recepo problemtica da primeira, escrito num tom mais didtico

    que o anterior, reflete no s o esforo renovado do autor no sentido de

    tornar compreensveis os princpios fundamentais da sua obra e de evitar

    o surgimento de outros mal-entendidos referentes aos objetivos crticos

    da sua nova Metafsica, mas tambm a sua segurana absoluta de esta

    proposta, no obstante a incompreenso inicial e as violentas

    controvrsias por ela causadas, continuar vlida sem restrio alguma.

    Os dois motivos centrais em volta dos quais gravita a

    argumentao no segundo prefcio so a necessidade de a Metafsica

    finalmente tomar o curso seguro de uma cincia e a de uma

    revoluo do modo de pensar a ser levada a cabo para alcanar tal

    fim. Com ambos os motivos, Kant retoma o teor daquela manifestao

    programtica de Francis Bacon que ele escolheu como lema para sua

    obra toda. Neste pequeno texto reproduzido na primeira pgina da

    Crtica trata-se da passagem inicial da Instauratio magna (cuja segunda parte constitui o famoso Novum Organon) Bacon se dirige ao

    pblico, pedindo que

    os homens considerem [nosso assunto] no uma

    opinio preconcebida, mas, de fato, uma obra

    sria; e que se convenam de que no se trata da

    fundao de uma seita ou de uma determinada

    doutrina, mas que procuro o benefcio para a

    grandeza da humanidade. Que, ento, cada um, no

    seu prprio interesse ... atenda ao bem comum ... e

    se empenhe por ele. Afinal, que cada um tenha

    boa f e no julgue nossa Instauratio algo infinito

    ou sobre-humano e a compreenda neste sentido:

    32

    Prol, AA 04:263.

  • 22 | Christian Hamm

    pois, em verdade, ela significa o fim e o devido

    trmino de imensos erros.33

    neste mesmo esprito iluminista de Bacon que Kant quer que

    tambm a sua obra seja entendida: como ruptura necessria de uma

    forma de pensamento que se tornou ultrapassada e obsoleta, e, ao

    mesmo tempo, como contra-projeto crtico o nico possvel34

    ao

    dogmatismo da Metafsica tradicional.

    Diferentemente do primeiro prefcio, Kant agora no parte da

    situao peculiar, do destino singular, da razo humana na procura de

    respostas a suas perguntas metafsicas, mas, bem na perspectiva da

    advertncia baconiana, da questo do progresso do conhecimento

    cientfico, em geral, e da sua possvel promoo na histria, para se

    dedicar s depois, num segundo passo e com base num conceito de

    cincia suficientemente clarificado, procura e a possvel determinao

    do lugar especfico da Metafsica, enquanto cincia. Na sua narrao da

    histria do progresso das cincias, Kant retoma alguns dos pontos

    centrais j expostos nos Prolegmenos, sem entrar, neste novo contexto, numa discusso pormenorizada dos argumentos usados naquele escrito

    de 1783. Resumidamente, a argumentao apresentada na primeira parte

    do prefcio a seguinte:

    Considerando a heterogeneidade e a indefinio de seus rumos, a

    falta de acordo quanto determinao das formas do seu procedimento

    e, em consequncia disso, os seus frequentes fracassos e retrocessos, a

    histria das cincias se apresenta, em grandes linhas, como um mero

    andar s palpadelas (essa, alis, tambm uma expresso predileta de

    Bacon), muito longe de tomar o caminho seguro de uma cincia.35

    A

    nica cincia que conseguiu descobrir este caminho e o tem trilhado

    desde os tempos mais antigos a Lgica, a qual, assim Kant, por no

    ter podido dar um passo atrs, desde Aristteles [...] e at hoje no

    conseguiu dar um passo adiante, parece estar concluda e acabada.36

    Concluda e acabada pode ser considerada a Lgica (clssico-

    aristotlica) pelo fato de que ela no s expe detalhadamente, mas

    tambm consegue prova[r] rigorosamente [...] as regras formais de

    33

    KrV, B II. 34

    KrV, A XII. 35

    KrV, B VII. 36

    KrV, B VIII.

  • Comentrios s obras de Kant: Crtica da razo pura | 23

    todo o pensar.37

    Mas como o grande xito dela se deve unicamente

    sua limitao, i.e., ao fato de que ela pode e at deve abstrair de todos

    os objetos do conhecimento e ocupar-se apenas do prprio entendimento

    e de sua forma, ela, enfim, no pode passar de uma mera propedutica,

    de uma espcie de vestbulo das cincias; no obstante sua inegvel

    necessidade para qualquer ajuizamento de conhecimentos, a

    aquisio deles deve ser procurada nas prprias e objetivamente

    assim chamadas cincias.38

    neste ponto que Kant comea a explanar seu conceito destas

    cincias, marcando o domnio e as formas do uso delas e traando, com

    base nisso, as linhas gerais do caminho a ser tomado na procura da

    aquisio daqueles conhecimentos por meio dos quais deve ser

    possvel uma fundamentao segura e definitivamente vlida das

    mesmas: Na medida em que deve haver razo nas cincias, algo tem

    que ser conhecido nelas a priori, e esse conhecimento da razo pode

    relacionar-se de dois modos ao seu objeto, a saber, de um modo terico

    e de um modo prtico, isto , ou meramente para determinar esse

    objeto e seu conceito [...], ou para, alm disso, torn-lo real.39

    Seguindo seu mtodo crtico, Kant aponta a necessidade de expor,

    primeiro, sozinha [...] a parte pura de cada um, i.e., aquela parte em

    que a razo determina o seu objeto inteiramente a priori [...], sem

    mistur-la ao que provm de outras fontes,40

    referindo, enfim, a

    Matemtica e a Fsica como aqueles dois conhecimentos tericos da

    razo que devem determinar seus objetos a priori, a primeira de modo inteiramente a priori, a segunda pelo menos em parte.

    41

    Quanto Matemtica, l-se que j foi na poca antiga, entre o

    admirvel povo dos gregos, que ela ingressou no caminho seguro de

    uma cincia, e que esse ingresso no se deu de forma gradual, mas

    deve ser atribudo, antes, a uma revoluo no modo de pensar,

    operada, provavelmente, pelo lampejo feliz de um nico homem:

    Ao primeiro a demonstrar o tringulo issceles

    (tenha-se chamado Thales ou como se queira)

    acendeu-se uma luz; pois entendeu que no

    37

    KrV, B IX. 38

    Ibid. 39

    KrV, B IX s. 40

    KrV, B X. 41

    Ibid.

  • 24 | Christian Hamm

    deveria indagar o que via na figura, nem ater-se ao

    simples conceito da mesma e como que apreender

    disso suas propriedades, mas produzir o que

    segundo conceitos ele mesmo nela introduziu

    pensando a priori e apresentou (por

    construo), e que, para saber de modo seguro

    algo a priori, no deveria acrescentar nada coisa

    a no ser o que resultava necessariamente daquilo

    que ele mesmo havia posto nele em

    conformidade com seu conceito.42

    atravs desse impor [hineinlegen], introduzir pensando

    [hineindenken] e apresentar por construo [durch Konstruktion

    darstellen] que aqui descrito o conceito metodolgico central da argumentao kantiana, o conceito de a priori: o que a razo impe

    ou introduz pensando na figura geomtrica exatamente aquela parte

    pura do conhecimento (terico) pela qual ela consegue determinar seu

    objeto independentemente de tudo o que provm de outras fontes. -

    Para o mesmo fim o de uma clarificao ou concretizao deste

    conceito e da sua funo metodologicamente crucial para a realizao da

    revoluo no modo de pensar servem tambm os exemplos clssicos

    da rea da Cincia da Natureza, nos pargrafos seguintes. Kant

    menciona os experimentos de Galilei, que deixou suas esferas rolar

    sobre o plano inclinado com um peso por ele mesmo escolhido, bem

    como os de outros grandes pesquisadores da natureza, como Torricelli

    ou Stahl: para todos eles, igualmente, acendeu-se uma luz, na medida

    em que eles

    perceberam [...] que a razo s compreende o que

    ela mesma produz segundo o seu projeto, que ela

    tem de ir frente com princpios dos seus juzos

    segundo leis constantes e obrigar a natureza a

    responder s suas perguntas [...], tendo numa das

    mos os princpios unicamente segundo os quais

    fenmenos concordantes entre si podem valer

    como leis, e na outra o experimento que ela

    imaginou segundo aqueles princpios,

    42

    KrV, B XI s.

  • Comentrios s obras de Kant: Crtica da razo pura | 25

    para, isso sim, ser instruda pela natureza, mas no na qualidade de

    um aluno que se deixa ditar tudo o que o professor quer, seno como

    um juiz nomeado que obriga as testemunhas a responder s perguntas

    que lhes prope;43

    concluindo que, assim, tambm a Fsica deve a to

    vantajosa revoluo no seu modo de pensar ideia de procurar na

    natureza [...], segundo o que a prpria razo coloca nela, aquilo que precisa aprender dela e sobre o que nada saberia por si prpria.

    diferena da Matemtica e da Cincia da Natureza que assim

    foram levadas, uma j muito cedo, outra mais tarde, ao caminho seguro

    de uma cincia, a Metafsica, embora mais antiga que estas, no teve

    ainda fortuna bastante para encetar tal caminho. Ela, enquanto um

    conhecimento da razo inteiramente isolado,44

    permaneceu envolvida,

    sem se importar com o ensinamento da experincia, naquelas

    discusses sem fim,45

    exercitando suas foras no combate simulado

    e fazendo com que seu mtodo no passasse de um mero tatear e, pior

    ainda, um tatear entre meros conceitos.46

    A pergunta de Kant, no

    entanto, se, depois de tantas iniciativas frustradas, ser, por ventura,

    impossvel Metafsica encontrar para si o caminho seguro de uma

    cincia, meramente retrica: obvio que tal possibilidade no pode ser

    negada, dado que isso simplesmente contrariaria a prpria natureza da

    nossa razo que, em virtude da sua aspirao natural procura da

    maior unidade e completude possvel, j por este motivo sistemtico-

    arquitetnico, no poder deix-la fora da sua construo. Faz, portanto,

    sentido meditar, a partir dos exemplos da Matemtica e da Cincia da

    Natureza e da revoluo levada a cabo nelas, sobre o elemento

    essencial da transformao da maneira de pensar das mesmas e, por

    analogia com elas, ao menos tentar [zum Versuche] imit-las nisso,

    47 quer dizer: tentar mostrar que, do mesmo modo que a histria

    daquelas cincias evidenciou a possibilidade e a necessidade do

    progresso de um tatear emprico at um curso seguro, tambm na

    Metafsica tal progresso deve ser pensado como possvel e necessrio

    o que significa, j com vista exposio posterior da doutrina kantiana:

    mostrar que o mtodo crtico-transcendental nela desenvolvido no tem

    nada de artificial ou forado, uma vez que ele se encontra j pr-

    43

    KrV, B XII s. 44

    KrV, B XIV. 45

    Cf. KrV, A IX. 46

    KrV, B XV. 47

    KrV, B XVI.

  • 26 | Christian Hamm

    formado substancialmente, e faz muito tempo, no carter lgico-

    construtivista da metodologia da matemtica e das cincias naturais.

    Kant v o elemento essencial sobre o qual deve ser meditado

    na determinao, ou melhor, na necessidade de uma nova determinao,

    da relao entre sujeito e objeto de conhecimento: At agora se sups

    que todo nosso conhecimento tinha que se regular pelos objetos;

    mas como todas as tentativas de mediante conceitos estabelecer algo a

    priori sobre os mesmos [...] fracassaram sob esta pressuposio, a sada

    s pode ser a inverso dessa relao, ou seja, admitir que os objetos

    tm que se regular pelo nosso conhecimento.48

    neste ponto que

    Kant faz uso do seu famoso exemplo da virada, ou revoluo, no

    pensamento de Coprnico que,

    ao perceber que pouco adiantava na explicao

    dos movimentos celestes, admitindo que todo o

    exrcito de astros girava em torno do expectador,

    tentou ver se no seria mais bem-sucedido se

    deixasse o expectador mover-se e, em

    contrapartida, os astros em repouso.49

    Aplicado Metafsica, isso significa que tambm ela ter que

    tratar seus objetos como este, Coprnico, tratou os astros, ou seja, deix-

    los em repouso, e enfocar, primeiro, o papel do espectador, i.e., no

    caso, a razo e suas condies de relacionar-se com tais objetos. Com

    isso, Kant est retomando sua ideia condutora, exposta atrs, de um

    impor ou introduzir a priori: o que introduzido a priori e,

    portanto, tem que preceder de certa forma a qualquer conhecimento

    concreto so as regras que fundamentam e, ao mesmo tempo, limitam

    a produo deste conhecimento; e mediante essas regras tratadas

    mais tarde, sob os ttulos de conceitos puros do entendimento e

    princpios transcendentais da faculdade de julgar, na Analtica

    transcendental da Crtica que a razo opera a acomodao dos

    objetos (Gegenstnde) s nossas faculdades de conhecimento.

    Relacionando os objetos da intuio, enquanto representaes, no a

    seus respectivos conceitos derivados deles mesmos, mas a conceitos

    produzidos somente na base daquelas regras que definem ou

    determinam o que esses objetos so e s podem ser para ns,

    48

    KrV, B XVI. 49

    Ibid.

  • Comentrios s obras de Kant: Crtica da razo pura | 27

    constitui-se uma forma de experincia que permite conhecer algo a

    respeito do seu objeto que, por ter sido posto nele unicamente segundo

    seus princpios prprios e conforme o seu prprio conceito, precede

    necessariamente esse conhecimento, enquanto meramente emprico-

    particular, garantindo, assim, o carter a priori do mesmo; pois

    a prpria experincia um modo de conhecimento

    que requer entendimento, cuja regra tenho que

    pressupor a priori em mim ainda antes de me

    serem dados objetos e que expressa em

    conceitos a priori, pelos quais portanto todos os

    objetos da experincia necessariamente tm que se

    regular e com eles concordar.50

    A ideia de que todos os objetos da experincia tm que se

    regular [...] pelos conceitos, pela imposio das suas formas puras,

    implica, assim, a correlao imediata entre o objeto e o conhecimento

    o que significa, por sua vez, que no pode haver nenhum objeto em si:

    somente o conhecimento que produz o objeto. Cabe notar que essa

    ideia de uma relao produtiva entre conhecimento e objeto no

    contraria a outra tese fundamental de Kant, segundo a qual todo o

    nosso conhecimento comea com a experincia e em que o termo

    experincia usado em sentido comum, i.e., no da coleo e do

    desenvolvimento de conhecimentos, a partir de objetos empiricamente

    dados que tocam nossos sentidos.51

    Aqui se trata, antes, no da

    marcao do ponto de partida de todo conhecimento, mas da

    fundamentao a priori do conceito de experincia em e como

    conhecimento. esse o sentido daquela constatao basilar de que, em

    todas as coisas, podemos conhecer a priori s aquilo que ns mesmos

    colocamos nelas; e com base nesta fundamentao apriorstica da

    experincia que Kant, enfim, pode afirmar que a anunciada tentativa

    de imitar as Cincias da Matemtica e da Fsica, no que tange a

    demonstrao do carter a priori dos seus princpios, alcanou o xito

    desejado e promete Metafsica o caminho seguro de uma cincia52

    se bem que, conforme a distino anterior entre uma perspectiva terica

    e outra prtica das cincias,53

    s na sua primeira parte, i.e., na parte

    50

    KrV, B XVII s. 51

    KrV, B 1. 52

    KrV, B XIX. 53

    KrV, B IX.

  • 28 | Christian Hamm

    em que ela se ocupa com conceitos a priori relacionados a objetos da

    experincia.

    A segunda parte da Metafsica (de que trata tambm a segunda

    parte deste prefcio) se dedica exclusivamente ao que constitui, na

    acepo tradicional, a matria mais prpria da mesma, a saber, tudo

    aquilo que ultrapassa a esfera da experincia, o suprassensvel ou

    incondicionado. Quanto reflexo terica sobre esta matria e seus

    temas centrais: Deus, liberdade e imortalidade da alma, fica claro que,

    para ela, a revoluo no pensamento e a mudana do mtodo

    resultante da mesma tm consequncias graves. O fato de essa mudana

    permitir explicar a possibilidade de um conhecimento a priori e

    demonstrar satisfatoriamente as leis que subjazem a priori natureza,

    enquanto conjunto dos objetos da experincia,54

    significa, ao

    mesmo tempo, que fora deste mbito da natureza no pode haver outra

    esfera referentemente a qual tal conhecimento possvel e para que tal

    demonstrao pode ser vlida. Foi exatamente este momento da

    excluso explcita de qualquer forma de conhecimento meta-fsico, i.e.,

    de qualquer possibilidade de fundamentar racionalmente algo que no

    for dado empiricamente, que tinha causado o mal-estar dos leitores da

    primeira edio da Crtica e que os levou a acusar Kant de querer

    aniquilar ou de esmagar (Mendelssohn) toda Metafsica. Ora, Kant

    admite que a deduo da nossa faculdade de conhecer a priori,

    realizada na primeira parte da Metafsica, e o que foi provado nela, a

    saber, que, com esta faculdade, jamais podemos transcender os limites

    da experincia possvel, conduz a um resultado estranho e [...] muito

    prejudicial ao inteiro fim da mesma55

    mas, como ele acrescenta, na

    mesma frase: prejudicial s aparentemente, porque, na verdade, a

    restrio de todo conhecimento especulativo da razo aos objetos da

    experincia no implica, de modo algum, na simples negao daqueles

    objetos transcendentes nem na contestao da legitimidade da

    pressuposio dos mesmos, mas apenas, isso sim, na reformulao

    radical da forma do uso que a razo pode fazer da sua prpria faculdade

    de conhecimento em relao a tais objetos. neste sentido que Kant

    lembra que o assunto da sua crtica apenas um tratado do mtodo

    (e ainda no um sistema da prpria cincia metafsica) que, enquanto

    tal, tem que se ocupar, primeiramente, com a fundamentao e a

    demarcao do terreno em que uma Metafsica que pretende ser

    54

    KrV, B XIX. 55

    Ibid.

  • Comentrios s obras de Kant: Crtica da razo pura | 29

    cincia deve ser localizada e, mais, com a integrao coerente das

    diversas partes dela na sua construo estrutural interna [innerer

    Gliederbau].56

    O problema primordial a ser resolvido , assim, o de

    encontrar e de definir exatamente o mtodo que permita operar a

    integrao, ou melhor: a harmonizao, da segunda parte da Metafsica,

    enquanto Metafsica do incondicionado, com a primeira, enquanto

    Metafsica da experincia, sem abrir mo de nenhum dos princpios j

    definitivamente consolidados da primeira, mas, tambm, sem cortar ou

    negar, por outro lado, o que constitui justamente a necessidade natural e

    o interesse mais essencial da segunda.

    O fato de que a exposio deste problema e da sua soluo ocupa

    quase todo o resto do prefcio mostra, por um lado, que Kant, no fundo,

    est dando razo queles crticos que tinham problemas com a

    compreenso do projeto crtico-transcendental, ou, no seu todo, ou, pelo

    menos, no que tange a questo reclamada do papel e do (novo) lugar

    sistemtico da segunda parte da Metafsica e da sua figura central do

    incondicionado; mas mostra, tambm, que ele agora, seis anos depois da

    primeira apresentao da sua proposta, est em condies de descrever

    de forma muito mais precisa e muito mais convincente que e porque as

    duas partes da Metafsica no podem ser pensadas e tratadas como

    elementos doutrinais separados, mas como sendo necessariamente

    relacionados um com o outro, ou seja, como unidade sistemtica.

    Retomando a ideia do carter experimental (zum Versuche)57

    da mudana da maneira de pensar na Metafsica, Kant considera o

    resultado da primeira avaliao do conhecimento a priori da razo

    aparentemente prejudicial ao interesse essencial de uma Metafsica

    do incondicionado plenamente confirmado pelo experimento [...]

    de uma contraprova da verdade, realizado na sua prpria

    fundamentao do incondicionado (na segunda parte da Crtica), segundo a qual todo conhecimento racional e aqui Kant introduz seu

    conhecido par de conceitos s atinge fenmenos, e no a coisa em si,

    a qual, embora real para si, continua desconhecida por ns.58

    A

    partir desta distino, ele formula os argumentos em que se baseia a

    referida contraprova, da seguinte maneira:

    56

    KrV, B XXII s. 57

    KrV, B XVI. 58

    KrV, B XX.

  • 30 | Christian Hamm

    (a) o que nos impele a ultrapassar os limites da experincia o

    incondicionado que a razo exige nas coisas em si [...] para todo

    condicionado, a fim de completar assim a srie das condies;

    (b) partindo do suposto que nosso conhecimento de experincia

    se guie pelos objetos como coisas em si, o incondicionado no pode

    ser pensado sem contradio; (c) supondo, contrariamente, que nossa representao das coisas,

    tais como elas nos so dadas, se guie no por estas como coisas em si,

    mas que estes objetos, como fenmenos, se guiem pelo nosso modo de

    representao, a contradio desaparece; do que resulta: que o

    incondicionado tem de ser encontrado no em coisas enquanto as

    conhecemos, (como nos so dadas), mas sim nas coisas enquanto no

    as conhecemos, como coisas em si mesmas.59

    Sendo assim e visto que a razo especulativa no tem como

    progredir neste campo do suprassensvel, resta ainda procurar mas

    agora s no conhecimento prtico da razo certos dados que

    permitam determinar aquele conceito racional transcendente do

    incondicionado, e ultrapassar deste modo, i.e., unicamente com

    propsito prtico, os limites de toda experincia possvel.60

    Com isso, se torna ainda mais claro porque, para Kant e na

    perspectiva da nova Metafsica purificada pela Crtica,61

    o prejuzo

    causado pela referida deduo apenas aparente. Aquilo que, a

    primeira vista, parece constituir, de fato, um efeito negativo desta

    operao, a saber, a rigorosa proibio de ultrapassar os limites da

    experincia, se torna positivo, na medida em que a razo especulativa,

    resistindo tentao de usar seus prprios princpios a priori para operar

    tal ultrapassagem e ampliar o domnio do seu conhecimento, consegue

    assim, por um lado, evitar a reduo do domnio e a desvalorizao, ou

    restrio, do uso puro (prtico) da razo62

    e, por outro, determinar, e

    justamente em virtude da sua prpria fora limitadora, no o prprio

    conceito do incondicionado, mas, ao menos, o espao em que a

    pretensa ampliao do conhecimento pode ou tem que ser levada a cabo,

    se bem que ela dev[a] deix-lo vazio.63

    A crtica continua, portanto,

    necessariamente

    59

    Ibid. 60

    KrV, B XXI. 61

    KrV, B XXIV. 62

    KrV, B XXV. 63

    KrV, B XXI.

  • Comentrios s obras de Kant: Crtica da razo pura | 31

    negativa na medida em que limita a razo

    especulativa; mas dado que, assim procedendo,

    ela remove ao mesmo tempo um bice que limita

    ou at ameaa aniquilar o uso da razo prtica, ela

    tem, de fato, uma utilidade positiva e muito

    importante, to logo se esteja convencido de que

    existe um uso prtico absolutamente necessrio da

    razo pura (o uso moral) no qual esta se estende

    inevitavelmente acima dos limites da

    sensibilidade.64

    O fato de Kant aqui, aps a sua abordagem geogrfica dos

    limites da razo65

    , dar tanta importncia, no s ao aspecto arquitetnico

    dessa limitao, mas tambm sua funo produtiva de remover um

    bice que poderia aniquilar [vernichten] o uso da razo prtica, se

    deve necessidade de ter que mostrar que a referida limitao e, junto

    com isso, o reconhecimento implcito da legitimidade dos interesses, de

    natureza diferente, da razo prtica, no podem ser entendidos como

    algo simplesmente dado, mas, antes, como resultado exatamente

    daquela autocrtica necessria a que a prpria razo especulativa tem

    que se submeter, ou seja, como ato crtico que esta, uma vez

    esclarecida, pode e deve realizar, para alcanar e, enfim, garantir a

    exigida unidade da razo consigo mesma. E , de fato, essa limitao

    (ou mais exato: aquele experimento exitoso da razo crtica do qual

    esta o resultado) com sua distino necessria, decorrente dela, entre

    64

    Ibid. 65

    Quanto ao carter geogrfico da abordagem, vale conferir a exposio

    detalhada do conceito de limite nos ltimos pargrafos dos Prolegmenos,

    onde Kant comenta esse conceito (Grenze, em alemo) em termos bem

    parecidos, contrapondo-o ao outro de barreira (Schranke). - L-se, neste

    contexto, que, diferena de barreiras, que so meras negaes que afetam

    uma grandeza, enquanto ela no possuir inteireza absoluta, limites

    pressupem sempre um espao que encontrado fora de um certo lugar

    determinado e o compreende [...]. Nas suas tentativas dialticas em que a

    Metafsica nos leva a tais limites, nossa razo v, por assim dizer, ao redor de

    si, um espao para o conhecimento das coisas em si mesmas, se bem que nunca

    possa ter delas conceitos determinados (Prol, AA 04:352); ou, um pouco mais

    tarde: O que [a razo terica] deve limitar tem que se encontrar fora dela, e

    este o campo dos puros entes de entendimentos [...], para ns, contudo, um

    espao vazio, no qual a razo pode conhecer formas de coisas, mas no as

    prprias coisas (Prol, AA 04:360s.).

  • 32 | Christian Hamm

    uma esfera fenomnica e a outra das coisas em si que permite pensar a

    ltima como domnio prprio e legtimo da razo prtica, em que esta,

    agora autorizada, mas no dominada pela razo especulativa e seguindo

    seus princpios prprios, pode ocupar-se do trabalho de determinar a

    priori os seus conceitos transcendentes. Na medida em que consegue

    orientar-se nesta esfera do puro pensamento66

    o que significa ,

    primeiramente: adotar, tambm neste mbito, aquele princpio

    revolucionrio segundo o qual os objetos, aqui: os objetos do

    pensamento, tm que se regular pelas nossas condies cognoscitivas

    e preencher aquele espao vazio com os dados prticos,67

    que ela

    mesma escolhe segundo sua prpria necessidade [Bedrfnis], sua forma de procedimento se torna homognea e sistematicamente coerente

    com o resultado to desejado de que, enfim, tambm a segunda parte

    da Metafsica, a Metafsica do incondicionado, poder tomar o curso

    seguro de uma cincia.

    Os dados com os quais a razo prtica tem que lidar e que, sob

    a nova perspectiva crtica, no figuram mais conceitos, mas ideias

    transcendentais (cujas qualidades e cujo uso legtimo so tratados em

    pormenor na Dialtica transcendental), as quais se apresentam agora,

    consequentemente, no mais como objetos de um possvel

    conhecimento, mas como problemas ou tarefas (Aufgaben) a serem resolvidas, so as ideias morais de Deus, liberdade e imortalidade.

    Como, segundo as ponderaes de Kant a esse respeito, a discusso das

    questes da existncia de Deus e da imortalidade da alma s faz sentido

    sob a condio da demonstrabilidade de uma vontade livre, quer dizer:

    da possibilidade da coexistncia da necessidade causal natural com a

    liberdade da vontade, essa questo da liberdade e de uma possvel

    legislao moral baseada nela que Kant pe em foco nos pargrafos

    seguintes.

    Quanto abordagem deste tema, Kant se encontra numa situao

    mais confortvel do que seis anos atrs, j que ele agora pode recorrer

    tambm aos resultados da sua argumentao na Fundamentao da metafsica dos costumes do ano de 1785. Nesta obra, ele j tinha

    mostrado que a exigida validade universal do principio supremo da

    moralidade e do imperativo categrico dele decorrente68

    no pode ser

    deduzida empiricamente nem determinada a priori pela razo

    66

    WDO, AA 08:136 ss. 67

    KrV, B XXII. 68

    GMS, AA 04:392 ss.

  • Comentrios s obras de Kant: Crtica da razo pura | 33

    especulativa, mas que ela depende necessariamente da pressuposio

    prtica de uma vontade livre, i.e., no condicionada por causas

    naturais, mas baseada na prpria autonomia da mesma; e que, para

    resolver esse problema, no h outra via seno a aplicao da distino

    sistemtica, fundamentada na Crtica, entre dois mundos de que ns,

    como seres racionais, fazemos parte, ou dois diferentes pontos de vista

    que podemos assumir, para poder nos pensar livres, enquanto

    membros do mundo inteligvel que reconhecem a autonomia da

    vontade juntamente com a sua consequncia, a moralidade, ou como

    obrigados e, enquanto tais, pertencentes ao mundo sensvel e contudo

    ao mesmo tempo tambm ao mundo inteligvel.69

    Nas respectivas passagens do prefcio, essas consideraes so

    retomadas (em parte, at nas mesmas palavras) e ainda completadas pela

    seguinte argumentao ex negativo: Suposto que a referida distino

    entre dois mundos e dois pontos de vista diferentes, ou, em geral,

    entre coisas como objetos da experincia e como coisas em si

    mesmas, no fosse feito, o princpio da causalidade natural teria que

    valer para todas as coisas em geral enquanto causas eficientes; o que

    significaria que, com respeito a um mesmo ente, como, por exemplo, a

    alma humana, no seria possvel dizer que sua vontade livre e que

    ela est, ao mesmo tempo, submetida necessidade natural, isto , que

    ela no livre, sem cair numa evidente contradio, j que, em ambas

    as proposies, o termo alma seria usado exatamente no mesmo

    sentido, ou seja, como coisa em geral.70

    Mas, conclui Kant, se a

    Crtica no errou ensinando a tomar o objeto em dois sentidos, a saber,

    como fenmeno ou como coisa em si mesma, e se, por conseguinte, o

    princpio da causalidade s incide sobre coisas tomadas no primeiro

    sentido, a saber, enquanto so objetos da experincia, ao passo que, no

    segundo sentido, estas mesmas coisas no lhe esto submetidas, ento

    exatamente a mesma vontade seria pensada no

    fenmeno (nas aes visveis) como

    necessariamente conforme lei natural e nessa

    medida no livre, e por outro lado ainda assim,

    enquanto pertencente a uma coisa em si mesma,

    pensada como no submetida lei natural e

    69

    GMS, AA 04:453. 70

    KrV, B XXVII.

  • 34 | Christian Hamm

    portanto como livre, sem que nisso ocorra uma

    contradio.71

    Pressuposto, ento, que (a) as formas de legislao interna em

    cada uma das duas esferas, da natureza e da liberdade, independem

    sistematicamente uma da outra, de modo que o reconhecimento mtuo

    da sua autonomia pode ser pensado como dado a priori, que (b) a

    liberdade no contraditria em si mesma, i.e., que ela, pelo menos,

    pode ser pensada72

    sem contradio, e que (c) ela, tomada em outra

    relao, no se ope ao mecanismo da natureza na mesma ao,

    evidencia-se que deve ser possvel conceber uma doutrina da

    moralidade que pode manter o seu lugar ao lado da doutrina da

    natureza o que, como Kant conclui, no ocorreria se a crtica no

    tivesse nos instrudo previamente sobre a nossa inevitvel ignorncia

    acerca das coisas em si mesmas e limitado a meros fenmenos tudo o

    que podemos conhecer teoricamente.73

    O mesmo vale,

    evidentemente, tambm com respeito aos outros conceitos prticos

    centrais, como Deus e imortalidade, que Kant, para ser breve,74

    s

    menciona, mas no discute no prefcio: tambm eles podem tornar-se

    objeto da nossa reflexo crtica somente depois do seu deslocamento da

    rea do conhecimento, ocupada por eles ilegitimamente, segundo a

    Crtica desde sempre, e depois de uma redefinio radical da via de

    71

    KrV, B XXVII s. Seja lembrado que sem contradio significa aqui, i.e.,

    numa esfera em que, segundo a doutrina crtica, no h conhecimento, sempre

    apenas sem contradio no pensamento o que, perante a importncia do

    assunto em questo, pode parecer muito pouco, tanto aos olhos dos adversrios

    conservadores das Escolas da poca, como tambm na perspectiva do prprio

    projeto da fundamentao de uma tica de carter universal. Mas visto que

    qualquer outra afirmao substancial sobre o carter da relao entre fenmeno

    e coisa em si e suas respectivas reas s seria possvel na base da contraposio

    de certas caractersticas relacionadas ao prprio contedo de cada uma deles,

    a qualidade de no se contradizer resulta a nica forma de caracterizao

    possvel - que, conforme a argumentao seguinte, tambm suficiente. 72

    Vale anotar que, neste contexto (KrV, B XXIX), Kant diz explicitamente que

    a liberdade deve ser apenas pensvel, sem necessidade de compreend-la

    mais a fundo [ohne ntig zu haben, sie weiter einzusehen], pelo que

    ressaltada, mais uma vez, a exclusividade do mencionado critrio da no

    contradio. 73

    KrV, B XXIX. 74

    Ibid.

  • Comentrios s obras de Kant: Crtica da razo pura | 35

    acesso aos mesmos; sendo que, tambm neste caso, a restrio, disso

    decorrente, do uso especulativo da razo implicaria, na realidade, uma

    ampliao, mas, conforme ao anterior, somente no seu uso prtico, o

    nico legtimo e, como vale enfatizar com relao s mencionadas

    tarefas que a razo prtica tem que resolver, o nico que permite

    orientar-se [...] no incomensurvel espao do supra-sensvel75

    e que

    promete xito na sua procura de uma sada daquelas contradies76

    em

    que ela se envolveu justamente por no ter visto ou no ter usado

    adequadamente os instrumentos que lhe teriam permitido encontrar, j

    mais cedo, o lugar a ela destinado na construo estrutural interna da

    Metafsica.77

    exatamente com este fim, de tornar mensurvel aquele

    espao supra-sensvel e de fornecer o instrumentrio adequado para

    efetuar a necessria medio, que Kant t[e]ve que suprimir [aufheben]

    o saber para obter lugar para a f.78

    Saber quer dizer aqui, claro, o falso saber, o saber das coisas em si, como pretenso objeto do

    conhecimento especulativo; e f, aquele outro conhecimento, de carter prtico-moral, que deve sua validade, diferentemente do

    terico, no fundamentao por conceitos do entendimento, mas

    determinao por princpios da razo (prtica), julgados necessrios

    por ela mesma, como exposto e defendido por Kant, sob o ttulo de

    uma f racional [Vernunftglaube], na Doutrina transcendental do mtodo desta Crtica e, sobretudo, na Crtica da razo prtica e, mais

    tarde, no seu escrito sobre Religio.

    A insistncia de Kant no carter racional de tal f, isto , na sua

    legitimidade e at necessidade por motivos racionais, mostra, bem

    como a nova critica, feita no mesmo contexto,79

    ao dogmatismo da

    Metafsica como a verdadeira fonte de toda [...] incredulidade, hostil

    moralidade, que, para aqueles que acusaram Kant de querer destruir

    toda Metafsica, h bons motivos de repensar suas objees a respeito. O

    que Kant realmente quer destruir, no a Metafsica, mas so apenas

    as pretenses dogmticas da filosofia das Escolas e seu preconceito

    de poder progredir nela sem crtica da razo.80

    neste sentido que,

    75

    WDO, AA 08:137. 76

    KrV, A VII. 77

    KrV, B XXIII. 78

    KrV, B XXX. 79

    KrV, B XXX. 80

    Ibid.

  • 36 | Christian Hamm

    tambm noutra parte,81

    ele volta a ressaltar que a perda que a razo

    especulativa tem que sofrer na posse que at agora se arrogou atinge

    somente o monoplio das escolas, mas de modo algum o interesse dos homens,

    82 os quais, uma vez que se trata de um interesse natural

    deles, devem, bem pelo contrrio, ser tambm naturalmente

    interessados na adoo de um mtodo que, como este crtico, promete

    fazer progredi-los na busca de uma soluo para as suas questes

    existenciais.

    Na ltima parte do prefcio, Kant volta a falar, de forma sumria,

    sobre a finalidade, a necessidade e o mrito do seu empreendimento

    crtico todo, retomando tambm alguns dos pontos j comentados no

    primeiro prefcio. Como ele tem a conscincia de ter criado uma

    cincia totalmente nova, da qual ningum antes havia pensado, da qual

    at a simples ideia era desconhecida e para a qual nada do que foi dado

    at agora pde ser de utilidade,83

    e como ele sabe tambm que foi

    precisamente essa novidade total dos seus pensamentos crticos que

    causou tantos mal-entendidos e tantas controvrsias, no s na

    comunidade filosfica, mas no inteiro mundo letrado da poca, ele

    ressalta, mais uma vez, o problema da compreenso adequada do seu

    projeto crtico.84

    A esse respeito, Kant aponta no s a inegvel

    complexidade da matria abordada na Crtica e a portanto, inevitvel densidade da sua prpria argumentao a respeito, mas tambm certo

    comodismo, da parte do seu pblico, que, acostumado com o

    dogmatismo em voga85

    ou em virtude da mudana da linguagem de

    escola para o popular,86

    parece tender, pelo menos em parte, para

    continuar a especular comodamente sobre coisas de que nada entende e

    de que [...] ningum no mundo jamais entender coisa alguma, em vez

    de se carregar com o rduo trabalho de submeter seu prprio modo de

    pensar a uma crtica radical e contribuir assim para a necessria

    consolidao da Metafsica. Que tal atitude de indiferena, ou at

    rejeio, pode ter sido favorecida, alm disso, pela opacidade do assunto

    tratado e pela forma complicada da sua apresentao, muito provvel e

    at admitido, ao menos indiretamente, pelo prprio Kant que, num

    81

    KrV, B XXXII. 82

    KrV, B XXXII. 83

    Prol, AA 04:261 s. 84

    KrV, B XXX ss. 85

    KrV, B XXXI. 86

    Cf. KrV, A X.

  • Comentrios s obras de Kant: Crtica da razo pura | 37

    comentrio final referente a esta segunda edio, se dirige aos seus

    leitores no caso, entretanto, no tanto aos indiferentes, mas queles

    homens perspicazes que realmente se esforaram por entender suas

    exposies crticas afirmando ter corrigi[do], na medida do possvel,

    as dificuldades e obscuridades que talvez tenham dado origem a vrias

    interpretaes errneas em que [estes ltimos], talvez no sem culpa

    minha, incidiram ao julgarem este livro,87

    e concluindo que, quanto

    exposio da sua teoria, at resta ainda muito a fazer. esta

    mesma inteno de remediar [...] a m [ou] falsa interpretao da

    obra, a que se devem tambm vrias explicitaes e correes

    aplicadas ainda a diversas partes doutrinais,88

    que, no entanto, como

    Kant faz questo de ressaltar, devem todas servir unicamente para

    facilitar ao leitor a compreenso das mesmas, sem, contudo, muda[r]

    absolutamente nada no tocante s proposies e mesmo aos seus

    argumentos.89

    convico de no mais precisar mudar nada nas proposies

    e nos argumentos da sua teoria corresponde, enfim, o que j foi

    realado enfaticamente no quadro do primeiro prefcio90

    e o que Kant

    87

    KrV, B XXXVII. 88

    KrV, B XXXVIII. 89

    KrV, B XLII. Com respeito a essas correes e acrscimos Kant

    menciona s cinco, que se referem m interpretao [...] do conceito do

    tempo na Esttica, obscuridade da deduo dos conceitos do

    entendimento, suposta falta de evidncia suficiente nas provas dos

    princpios do entendimento puro, falsa interpretao dos paralogismos

    antepostos Psicologia racional e, como nico acrscimo propriamente dito,

    nova refutao do idealismo psicolgico e uma prova rigorosa [...] da

    realidade objetiva da intuio externa seja apenas anotado que a questo da

    quantidade e, sobretudo, da qualidade das alteraes e das complementaes

    aplicadas na edio B sempre foi e continua ainda objeto de muita discusso.

    Sem entrar no debate, cabe ao menos mencionar que, neste caso, a grande

    maioria dos comentadores de opinio que (a) o nmero das intervenes no

    texto maior do que indicado por Kant e que (b) boa parte das correes

    aplicadas se refere, tambm ao contrrio das afirmaes no texto, no s a

    aspectos de carter meramente retrico-estilstico da apresentao, mas afeta,

    em muitos casos (como, p.ex., na nova Introduo Crtica, no cap. III da

    Analtica dos princpios que trata da Distino de todos os objetos em geral

    em phaenomena e noumena, ou em vrias passagens do cap. II do 2 livro da

    Dialtica sobre a Antinomia da razo, entre outros), tambm o contedo das

    prprias proposies e seus argumentos. 90

    KrV, A XIII ss.

  • 38 | Christian Hamm

    volta a declarar agora, nas ltimas pginas do segundo: que toda a

    crtica levada a efeito neste livro segue, desde o princpio, a ideia da

    completude do [seu] plano, quer dizer, que esta crtica, no fundo, nada

    mais representa do que a execuo completa e definitiva de um plano

    cuja dimenso determinada e cuja exequibilidade garantida pela

    prpria natureza da razo pura especulativa na sua qualidade particular

    de cont[er] uma verdadeira estrutura articulada [Gliederbau] em que

    tudo rgo, ou seja, onde tudo existe para cada parte e cada parte

    para todas as outras e em que, portanto, a menor fragilidade, seja uma

    falha (erro) ou uma deficincia, ter que se trair inevitavelmente no

    uso.91

    essa ideia da completude do plano, possibilitada e motivada

    pela prpria razo, e, na base desta,

    a evidncia que a experimentao da igualdade do

    resultado produz, quer se proceda dos mnimos

    elementos at o todo da razo pura, quer se

    retorne desde o todo [...] at cada parte, enquanto

    que a tentativa de modificar o mnimo detalhe

    ocasiona logo contradies na s do sistema, mas

    tambm da razo humana geral,92

    de que Kant tira a certeza de que sua empresa crtica no podia falhar

    justamente por ter conseguido, de forma completa, localizar, identificar

    e unir coerentemente os vrios elementos no todo daquela estrutura

    articulada que a prpria razo representa. E essa completude

    reivindicada tanto para o plano como para a execuo dele (na

    Crtica), baseada na suposio de uma estrutura articulada da razo

    tambm completa, que implica no s que Kant, de fato, no pode se

    permitir fazer grandes alteraes no interior da mesma (nem admitir

    que algumas das suas correes so substanciais), sem por em risco a

    efetividade e a homogeneidade dos seus princpios constitutivos de

    funcionamento, mas tambm, e mais importante, que ele pode

    considerar como plenamente justificada sua confiana na validade

    universal do seu sistema e, portanto, esperar que ele afirmar-se-,

    na sua imutabilidade, tambm no futuro.93

    91

    KrV, B XXXVII s. 92

    KrV, B XXXVIII. 93

    Ibid.

  • Comentrios s obras de Kant: Crtica da razo pura | 39

    Referncia bibliogrfica:

    BLUMENBERG, H. Die Genesis der kopernikanischen Welt.

    Frankfurt/M.: Suhrkamp, 1996.

    COHEN, H. Kommentar zu Immanulel Kants Kritik der Reinen

    Vernunft. Leipzig 1907.

    FRSTER, E. Die Vorreden. In: MOHR, Georg/ WILLASCHEK, Marcus (Orgs.): Kritik der reinen Vernunft. Berlin: Akademie

    Verlag, 1998 (= Klassiker Auslegen Band 17/18), 37-55.

    HFFE, O. Kants Kritik der reinen Vernunft. Die Grundlegung der

    modernen Philosophie. Mnchen: C.H. Beck, 2004.

    IRRLITZ, G. Kant Handbuch. Leben und Werk. Stuttgart: Metzler, 2010.

    NATTERER, P. Systematischer Kommentar zur Kritik der reinen

    Vernunft. Berlin/New York: De Gruyter, 2003.

    SCHNDELBACH, H. Kant. Leipzig: Reclam, 2005.

    VAIHINGER, H. Commentar zu Kants Kritik der reinen Vernunft. New York: Garland Pub., 1976 (Reimpresso da edio alem

    Stuttgart1881).

  • SENTIDO, SENSIBILIDADE E INTUIO: DA

    DISSERTAO INAUGURAL A CRTICA

    Orlando Bruno Linhares

    Universidade Presbiteriana Mackenzie

    Introduo

    Redigida s pressas em 1770, a Dissertao inaugural 1 antecipa

    importantes distines conceituais da esttica transcendental da Crtica

    da razo pura2 (sensibilidade e entendimento, receptividade e

    espontaneidade, matria e forma do conhecimento, intuio pura e

    intuio emprica,3 sentido externo e sentido interno, e fenmeno e coisa

    em si) e desenvolve o aspecto crtico da teoria da sensibilidade, mas

    esto ausentes os conceitos de esttica,4 de transcendental

    5 e de esttica

    1 Tambm conhecida por Dissertao de 1770, o ttulo da obra Acerca da

    forma e dos princpios do mundo sensvel e do mundo inteligvel. 2 De agora em diante ao me referir a Crtica da razo pura empregarei apenas o

    termo Crtica. 3 A intuio emprica est presente na Dissertao inaugural, mas no com

    estas palavras. Por exemplo, na 5 seo, 23, Kant distingue a intuio

    emprica da pura da seguinte maneira. Em todas as cincias cujos princpios

    so dados intuitivamente, seja mediante uma intuio sensvel (experincia),

    seja mediante uma intuio que, sendo na verdade sensitiva, , contudo, pura

    (conceito de espao, de tempo e de nmero), isto , na cincia natural e na

    matemtica, o uso que d o mtodo (MSI, AA 02: 411). 4 Em sua fase crtica, Kant atribui ao termo esttica dois significados distintos:

    na primeira Crtica refere-se sensibilidade a priori na perspectiva do

    conhecimento terico e na Crtica da faculdade de julgar crtica do gosto ou

    filosofia da arte. O termo esttica, compreendido como teoria do belo, aparece

    pela primeira vez, em 1735, nas Reflexes sobre poesia de Baumgarten, no

    contexto de uma potica, mas ele tambm o compreende no domnio terico. Na

    Metafsica, no captulo sobre a psicologia emprica, Baumgarten trata da

    exposio sistemtica do conjunto dos princpios da faculdade de conhecer

    inferior. Mas o aspecto mais significativo do conceito de esttica para

    Baumgarten o relacionado s belas artes. Neste sentido, a esttica como

  • 42 | Orlando Bruno Linhares

    transcendental.6 Apesar de Kant negar as representaes inatas

    7 e

    conceber as intuies puras do espao e do tempo como a priori, ainda