1. Retrato de lmmanuel Kant (1724-1804), pintado em 1768 por J.
W. Beker (1744-1782) por encomenda do livreiro de Kant em
Knigsberg.
2. CRTICA DA RAZO PURA Immanuel Kant Traduo de MANUELA PINTO
DOS SANTOS e ALEXANDRE FRADIQUE MORUJO Introduo e notas de
ALEXANDRE FRADIQUE MORUJO 5 E D I O SERVIO DE EDUCAO E BOLSAS
FUNDAO CALOUSTE GULBENKIAN
3. Traduo do original alemo intitulado KRITIK DER REINEN
VERNUNFT de IMMANUEL KANT, baseada na edio crtica de Raymund
Schmidt, confrontada com a edio da Academia de Berlim e com a edio
de Ernst Cassirer. Reservados todos os direitos de harmonia com a
lei Edio da Fundao Calouste Gulbenkian Av. de Berna I Lisboa
2001
4. PREFCIO DA TRADUO PORTUGUESA A Crtica da Razo Pura, de que
apresentamos esta traduo em lngua portuguesa, um monumento nico na
histria da filosofia, traduzindo uma verdadeira revoluo no
pensamento ocidental, e resultado de uma longa e profunda meditao.
Tradicionalmente, divide-se a atividade filosfica de Immanuel Kant
(1724-1804) em duas fases. Na fase inicial, designada por
pr-crtica, as reflexes incidem predominantemente sobre problemas da
fsica e, naturalmente, tambm sobre questes estritamente metafsicas
dentro dos cnones racionalistas de Leibniz-Wolff, embora j se note,
para o final do perodo, a influncia da leitura de Hume e, com ela,
aflorarem aspectos de uma nova atitude filosfica, por exemplo, em
Os sonhos de um visionrio explicados pelos sonhos da metafsica
(1764) e no artigo Sobre os primeiros princpios das diferenas das
regies no espao (1768). Mas na pequena dissertao latina, De mundi
sensibilis arque intelligibilis forma et principiis (1770),
expressamente elaborada para concorrer ctedra de lgica e metafsica,
que se apresentam nitidamente pontos de vista anunciadores da
segunda fase, a poca de maturidade, que se inicia com o 'opus
magnum' da Crtica da Razo Pura. Logo aps a defesa da dissertao,
empenha-se Kant em meditar e redigir a obra que abrangia todas as
suas novas concepes. Em carta a Marcus Herz (7 de junho de 1771),
amigo com quem disputou, nas provas pblicas, segundo o uso acadmico
de ento, a tese latina De mundi sensibilis... e seu confidente
intelectual, d notcia de que trabalha num estudo sobre os limites
da sensibilidade e da razo, em que dever
5. estudar no s os conceitos fundamentais e as leis relativas
ao mundo sensvel, como ainda dar "um esboo do que constitui a
natureza do gosto, da metafsica e da mora . Em resumo, nesse estudo
rene-se o que mais tarde constituir a matria das trs Crticas. Mas a
prioridade dos problemas tericos em breve se far anunciar. Assim,
em. carta ao mesmo Marcus Herz (21 de Fevereiro de 1772), procura
Kant, antes de mais, encontrar o segredo da metafsica at hoje no
revelado; "pergunto-me: em que bases se funda a relao com o objeto
daquilo que designamos por representao? . E esclarece o seu
correspondente: `encontro-me agora a ponto de formar uma critica da
razo pura, atinente natureza da conscincia, tanto terica como
prtica, na medida em que simplesmente intelectual; elaborarei
primeiro uma parte sobre as fontes da metafsica, seus mtodos e
limites; e public-la-ei talvez dentro de trs meses . Nesta carta
anuncia-se, pela primeira vez, o ttulo da primeira critica, Crtica
da Razo Pura, embora concebida como um todo, englobando a segunda
das crticas, a Crtica da Razo Prtica. Mas tambm surge j delineada a
independncia da primeira critica, ao afirmar que o estudo
compreender "uma crtica, uma disciplina, um cnone e uma
arquitetnica da razo pura." A meditao kantiana no vai demorar trs
meses, mas dez longos anos e a obra que a condensa, a Crtica da
Razo Pura, redigida apressadamente em quatro ou cinco meses, foi
editada em Riga, por Hartknoch, no ano de 1781. Em carta a
Mendelssohn (16 de Agosto de 1783) afirma Kant ter posto "grande
ateno no contedo, mas pouco cuidado na forma e em tudo o que
respeita fcil inteleco do leitor." 4 Pressentia, por isso, o
filsofo de Knigsberg e comunicao ao seu amigo Marcus Herz (11 de
Maio de 1781) que, dada a novidade e a dificuldade dos seus pontos
de vista, com poucos leitores poderia contar ao princpio 5 .
Efetivamente, os espritos formados no racionalismo das luzes
consideraram a obra obscura e imprpria para principiantes. Outros
(por exemplo, ________________ Kant's gesammelte Schriften,
herausgegeben von der Kniglich Preussischen Akademie der
Wissenchaften, Band X, Zweite Abtei1ung: Brietwechsel, erster Band,
zweite Auflage, 1922, p. 123. 2 Ibidem, p. 130. 3 Ibidem, p, 132. 4
Ibidem, p. 345. 5 Ibidem, p. 269.
6. Hamann) apontaram-no como o "Hume prussiano e, depois das
recenses de Garve e de Feder, foi a doutrina exposta na Crtica da
Razo Pura identificada com o idealismo subjetivo de Berkeley. Kant
no ficou satisfeito com a recepo do seu livro. Se nos Prolegmenos a
toda a metafsica futura que se queira apresentar como cincia
(1783), vasados nos moldes da Popularphilosophie da poca, pretende
apresentar uma iniciao ao seu pensamento, na segunda edio da
Crtica, hin und wieder verbesserte (1787), suprime, acrescenta,
encurta, altera, com a finalidade de melhor esclarecer a sua
doutrina. So ampliadas a introduo e algumas passagens da "esttica
transcendental". Refunde-se totalmente a deduo dos conceitos puros
do entendimento e, parcialmente, o captulo "Da distino de todos os
objectos em geral em fenmenos e nmenos". Na "Analtica dos
princpios" acrescenta-se a "Refutao do idealismo" e a "Observao
geral sobre o sistema dos princpios". refundido e encurtado o
captulo relativo aos "Paralogismos da razo pura". Este novo texto,
que pretende escapar crtica de idealista com as correes
introduzidas, foi da em diante o nico a ser reproduzido na terceira
edio (1790), na quarta edio (1794), na quinta (1799) e nas duas
edies pstumas de 1818 e 1828. Mas j em 1815 lamentava Jacobi que na
segunda edio faltassem algumas passagens da primeira, a seu ver
imprescindveis para uma suficiente inteligncia do idealismo
kantiano. E Schopenhauer, por seu turno, apoiando a impugnao
kantiana da coisa em si, considerava uma concesso ao realismo a
crtica a Berkeley que se desenvolve na segunda edio, concluindo
pela importncia da primeira e considerando a segunda "um texto
mutilado, corrompido e, de certo modo, no autntico". Estas opinies
opostas levaram os futuros editores a apresentar as duas edies da
Crtica. Assim, Rosenkranz (1838) vai reproduzir a primeira edio
como fundamental e apresentar em suplemento as variantes mais
importantes da segunda edio. Uma edio das obras completas, devida a
Hartenstein e do mesmo ano de 1838, toma como base o texto de 1787,
acrescentando em notas as variantes menores de 1781 e em apndice os
trechos respeitantes deduo dos conceitos puros do entendimento e
aos paralogismos da razo pura. A Kantphilologie, florescente na
segunda metade do sculo passado, ajudou a fixar o texto do filsofo
e, assim, Benno Erdmann, na sua quinta edio da Crtica da Razo
7. Pura, integrada nas obras completas editadas pela Academia.
Real das Cincias da Prssia (posteriormente Academia Real das
Cincias de Berlim) como vol. II, refazendo parcialmente a histria
do texto kantiano, demonstrou a exigncia de nos aproximarmos do
texto genuno de Kant, que o de 1787; mas tambm sublinhou a
necessidade de se apresentar um texto que torne possvel o estudo
das diferenas entre as duas edies consideradas fundamentais. Por
isso, nessa mesma edio da Academia das Cincias, consagra o terceiro
volume primeira edio da Critica, at ao fim dos paralogismos da razo
pura ("Reflexo sobre o conjunto da psicologia pura em conseqncia
destes paralogismos"), parte onde residem as grandes discrepncias
atuais. 'A partir desta edio ficou estabelecido o cnone da Crtica
da Razo Pura: texto de base o da segunda edio, apresentando as
variantes da primeira. * * * Tem sido afirmado, e com razo, que o
modelo da cincia da natureza que se encontra na base da filosofia
de Kant. Esta no seria mais do que a filosofia considerada possvel
para o mestre de Knigsberg em poca impregnada de fervor cientfico.
Na verdade, todo o pensamento kantiano tem presente essa cincia
exata, emergente na Idade Moderna e que se vai impondo,
progressivamente, a todos os domnios do real. A matemtica e a
lgica, como afirmado no prefcio da segunda edio da Crtica da Razo
Pura, j entre os gregos tinham iniciado o caminho seguro da cincia
e no sculo XVII a fsica comeara a trilhar a mesma via, alcanando a
perfeio nos Principia Philosophiae Naturahs de Newton. A filosofia
necessitaria tambm, imperiosamente, de se esquivar multiplicidade
de opinies antagnicas e de se elevar, por sua vez, a um estatuto
cientfico que lhe conferisse um rigor indesmentvel. Com - Descartes
j se pretendera construir a filosofia sobre a base de um minimum
quid firmum et inconcussum, o cogito, a partir do qual se.
deduziriam, por um discurso maneira dos matemticos, todas as outras
verdades do sistema. Esse minimum quid, ainda no propriamente um
princpio, um proton, pois em Descartes h um recurso a Deus para
fundamentar a sua verdade. A experincia ontolgica da causalidade
alheia ao cogito e da o recurso omnipotente causalidade e
8. infinita perfeio divina . Mas, pondo de lado toda a
conceitualizao tradicional, o discurso cartesiano transforma-se
numa mathesis universalis, cincia da proporo, que inclui, como caso
particular, as relaes algbricas. Esta posio, passando por Leibniz,
vai amadurecendo e com Wolff atingimos a perfeio racionalista. A
filosofia transforma-se numa cincia, cujo mtodo no difere do
matemtico. Processa-se em anlise que repousa nos princpios de
identidade e da contradio. este mtodo matemticocartesiano de Wolff
que vai ser abordado pela crtica empirista que culmina no
cepticismo de Hume. A noo de substncia afastada em benefcio de um
sujeito meramente "psicolgico", simples agente de associaes de
representaes sensveis. E mesmo que essas associaes expliquem, de
certo modo, o mecanismo do conhecimento, no podero fundar--lhe o
valor objetivo. As criticas s idias do eu, da substancia e da
existncia em Hume conduzem noo de fenmeno como objeto formal do
conhecimento 2 . Fenmeno que puro contedo de conscincia, desprovido
de qualquer propriedade ontolgica; representao pura e simples. Os
racionalistas tinham transformado a causa em necessidade analtica e
identificavam-na com a razo suficiente (Grund). Agora com Hume a
relao de causalidade, longe de se nos impor por um princpio a
priori, tem por base um "hbito" criado em ns pela repetio do mesmo
processo psicolgico. Deve fazer-nos concluir de um termo existente
a existncia objetiva de um segundo termo. Por outras palavras,
"estende o carcter existencial de percepes atuais s percepes
evocadas; percepes atuais e percepes evocadas so ou foram elementos
de experincia imediata, externa ou interna" 3 . H uma crena na
legitimidade dessa extenso. Assim, o fundamento da causalidade
passa a residir no sujeito psicolgico, puramente subjetivo. Kant
afirma que a filosofia passa por trs fases: a dogmtica, de que
modelo o sistema wolffiano, a cptica representada em grau eminente
por Hume e a critica, que ele prprio inaugura. No perodo dogmtico
cada _______________ Cf. o excelente estudo de J. ENES, Dois
discursos ontolgicos, in "Arquiplago", Revista da Universidade dos
Aores, Srie de Cincias Humanas, n. VI, Janeiro de 1984, pp. 91-126.
JOSEPH MARECHAL S. J., Le point de dpart de la mtaphysique, cahier
III. Le conflit du racionalisme et de l'empirisme dans la
philosophie moderne avant Kant. Paris, 1944, pp. 248-249. Ibidem,
p. 238.
9. metafsica apresenta as suas teses como algo que no pode ser
objeto de dvida. Ora, a uma filosofia dogmtica opem-se outras
filosofias, cujas teses tambm so dogmticas e da a luta entre
sistemas, degenerando na anarquia correspondente fase cptica. Alas
ningum se pode desinteressar da metafsica, que se encontra radicada
na natureza humana e da procurar Kant princpios adequados ao
pensamento metafsico. Por isso classifica a sua filosofia conto
crtica, cuja tarefa fundamental vai consistir na crtica da prpria
razo: averiguar, como em tribunal, quais as exigncias desta que so
justificadas e eliminar as pretenses sem fundamento. Previamente
constituio de um sistema metafsico, conhecimento pela razo pura das
coisas em si, dever-se- investigaro que ser tarefa da Crtica da
Razo Pura o que pode conhecer o entendimento e a razo,
independentemente de toda a experincia. Trata-se de criticar, de
encontrar os limites de todo o conhecimento puro, a priori, isto ,
independentemente de qualquer experincia. Deste modo se abrir um
caminho certo para a metafsica que lhe obtenha o consenso dos que
se ocupam de filosofia, pois se encontram garantidas a necessidade
e universalidade desse saber; estaremos em face de uma cincia. A
revoluo operada no campo do saber, graas qual foi possvel a
constituio da nova cincia da natureza, consiste, para Kant, em que
a natureza no se encontra dada como um livro aberto onde apenas
bastar ler. A cincia constitui-se e desenvolve-se por um projeto
adequado, que nos torne possvel interrogar a natureza e for-la a
uma resposta. Algo de semelhante tem que se operar em filosofia
para esta se colocar no caminho seguro da cincia, para obter no seu
domnio resultados to certos como os obtidos nas diferentes
disciplinas cientficas. E esse rigor nos processos corresponde a
uma misso fundamentadora da cincia, isto , a de revelar o que torna
possvel este saber, "o projeto fundamental que d a possibilidade de
interrogar a natureza de maneira sistemtica e de for-la a
responder" 4 . Se a filosofia quer realizar essa misso, cumpre
desviar-se da idia de verdade, prpria da onto-gnoseologia clssica.
A verdade como adaequatio rei et intellectus pe em jogo dois
sentidos de intellectus e, assim, duas interpretaes de adaequatio:
adequao da coisa ao intelecto, significando que a coisa se h-de
conformar ________________________ 4 Walter BIEMEL, De Kant a
Hegel, in ''Convivium Filosofia, Psicologia, Humanidades",
Barcelona, 1962, n. 1314, pp. 88.
10. idia do intelecto divino; a coisa foi criada por Deus
conforme a uma idia. Pelo contrrio, falar da adequao do intelecto
coisa supe o intelecto humano e, se possvel esta segunda adequao,
graas ordenao da coisa e do intelecto humano segundo o plano divino
da criao. Simplesmente, embora continue a manter-se esta definio de
verdade, deixa de ter vigncia a considerao do intelecto divino. Mas
desde que a metafsica um saber a priori, isto , independente da
experincia, e se o conhecimento se deve orientar pelas coisas, qual
o objeto (ou objectos) da metafsica? impossvel dizer o que quer que
seja que no tenha a experincia por fonte. Kant vai imprimir uma
viragem essencial ao saber metafsico. Tinha mostrado Coprnico que,
afastada a hiptese geocntrica e admitindo que os corpos celestes
giram em torno do Sol ou se, em vez dos corpos celestes (e com eles
o Sol) gravitarem em volta do observador, considerarmos que este
ltimo se desloca em torno do Sol, os movimentos dos corpos celestes
poderiam ser melhor explicados. Agora Kant realiza algo de
semelhante que designa por revoluo copernicana. Assim, afirma na
introduo Crtica da Razo Pura 5 : "Se a intuio tiver que se guiar
pela natureza dos objectos, no vejo como deles se poderia conhecer
algo a priori; se, pelo contrrio, o objeto (como objeto dos
sentidos) se guiar pela natureza da nossa faculdade de intuio,
posso perfeitamente representar essa possibilidade." Para alm do
saber a posteriori, extrado da experincia, haver um saber de outra
ordem, saber a priori, que precede a experincia e cujo objeto no
nos pode ser dado pela experincia. Um objeto desta ordem ser o
prprio sujeito, a estrutura do sujeito, e esta estrutura que torna
possvel a experincia. Embora todo o nosso conhecimento tenha incio
na experincia, no significa que todo ele provenha da. Certamente
que h conhecimentos hauridos na experincia, que se traduzem em
juzos sintticos, em que o predicado se acrescenta ao sujeito,
enriquecendo-o, tendo como base desse enriquecimento a experincia;
juzos vlidos, portanto, unicamente nos domnios desta e apenas
particulares e contingentes. Ao lado destes, ao jeito tradicional,
apresenta Kant os juzos analticos, em que o predicado no mais do
que uma nota extrada por anlise da prpria noo do _________________
5 p. 20 da presente traduo. A paginao utilizada ser sempre relativa
a esta traduo.
11. sujeito e deste modo explicitada. Grande parte da atividade
da nossa razo consiste precisamente nesse trabalho de anlise de
conceitos que j possumos das coisas. Com estes juzos explicita-se o
j implicitamente sabido, mas no se criam conhecimentos novos. So
contudo a priori. Mas um saber autntico no se pode procurar neste
tipo de juzos. O a priori que se busca diz respeito estrutura do
sujeito, a qual torna possvel a experincia. Esta contribui para o
conhecimento atravs dos sentidos, que nos fornecem impresses.
Faltando estas, a faculdade de conhecer no tem matria.
Ordinariamente o conhecimento assim constitudo pela matria e pela
elaborao que esta sofre graas estrutura do sujeito. Encontramo-nos,
de um modo espontneo, voltados para as coisas. A viragem
copernicana obriga-nos a orientar no sentido oposto e a
voltarmo-nos para o sujeito, procurando neste as faculdades que
tornam possvel o conhecimento. A filosofia deixa de ser uma
ontologia, ultrapassa o cepticismo empirista e transforma-se em
filosofia transcendental, transmuda-se num conhecimento que,
citando as palavras do prprio Kant, "se preocupa menos dos objectos
do que do modo de os conhecer, na medida em que este deve ser
possvel a priori" 6 . Este conhecimento especial no pode repousar
na experincia, nem redutvel anlise. Ser o que Kant designa por
conhecimento sinttico a priori. Ora, como pensar o mesmo que
julgar, o problema central, a tarefa geral da Critica resumir-se-
em averiguar como so possveis os juzos sintticos a priori. A
sntese, em tais juzos, obra da faculdade do entendimento e
fundamenta-se na espontaneidade desta. O entendimento humano no ,
pois, intuitivo e, ao lado dele, Kant coloca uma outra faculdade,
esta sim, intuitiva, que permite o acesso imediato aos dados: a
sensibilidade. Designa-se por fenmeno o objeto indeterminado da
intuio. Nele se distingue a matria (correspondente sensao, aos
mltiplos dados sensoriais) e a forma, que ordena a matria segundo
diferentes modos e perspectivas. Se a matria de todo o fenmeno dada
a posteriori, a forma ordenadora processa-se a dois nveis
diferentes; a um nvel inferior opera a forma a priori da
sensibilidade (o espao e o tempo), puramente receptiva e espontnea,
que nos fornece uma representao; esta, ________________ 6 Critica
da Razo Pura, p. 53.
12. por sua vez, matria para a sntese a priori do entendimento,
unifica-dom de representaes sob a forma de objeto. Saber o que so
as coisas obriga, pois, ao concurso da sensibilidade e do
entendimento. Mas a coisa, tal como a conhecemos, no simples imagem
de algo real. A coisa, tal como se pode compreender graas s
faculdades que o homem possui, a coisa na medida em que me aparece;
i. , dada pelas formas da sensibilidade o espao e o tempo ou seja,
o fenmeno. Igualmente o mundo em que vivemos e nos acessvel o que
aparece graas s nossas faculdades do conhecimento. Do mesmo modo o
mundo cientfico, que surge pela contribuio do sujeito, fenomnico.
Ao lado de fenmeno utiliza Kant o conceito de nmeno que significa a
coisa no conhecida, pois s se conhece na medida em que nos aparece,
mas pensada. A coisa que no est submetida s condies do conhecimento
a coisa em si 7 . Uma anlise mais atenta da forma do conhecimento
mostra-nos que as formas a priori da sensibilidadeo espao e o tempo
no so conceitos, mas intuies, isto representaes singulares, e
quando falamos em espaos ou tempos no plural, no queremos
significar espaos gerentes, mas partes de um espao ou de um tempo
nicos. Ambos so intuies necessrias e, por isso, s podemos
conhec-las como as formas originrias da experincia externa e da
experincia interna. So formas cognitivas, formas a priori, com as
quais se constri a geometria (o espao) e a aritmtica (o tempo). So
elas o fundamento dos juzos sintticos a priori, garantia da
universalidade e necessidade destas disciplinas. Kant fala da
idealidade transcendental do espao ligada sua realidade emprica.
Significa isto que as coisas apenas se podem dar como extensas
(realidade emprica do espao), mas se abstrairmos das condies da
experincia, o espao j no nada. Quando pensamos "coisas em si" no
podemos fazer apelo ao espao. Este pertence, pois, ao sujeito.
Todas _________________ 7 Sobre uma caracterizao mais precisa das
diferenas entre os conceitos de nmeno e de coisa em si ver, do
tradutor, Fenmeno, nmeno, coisa em si. Notas sobre trs conceitos
kantianos, in "Revista Portuguesa de Filosofia", XXXVII (1981), pp
225-248.
13. as representaes das coisas exteriores esto naturalmente em
ns e o que est em ns subordina-se ao nosso sentido interno e, por
conseguinte, sua forma ou condio, o tempo. Estas consideraes sobre
o espao e o tempo encontram-se englobadas na pane da "Crtica da
Razo Pura" designada por "Esttica Transcendental". Temos pois que a
critica funda a aritmtica e a geometria, a cincia matemtica
portanto. Esta matemtica aplica-se experincia, conforme o prova a
fsica de Newton. Agora aparece a justificao: estas disciplinas tm
por objeto construes de conceitos a partir do espao e do tempo,
formas a priori da sensibilidade. A experincia sensvel no escapa,
assim, s leis da matemtica, que determinam o quadro da experincia.
No podem essas leis, contudo, determinar as qualidades sensveis; s
as sensaes as podem fornecer. Ao lado da sensibilidade, que nos d a
intuio, temos o entendimento que nos fornece o conceito. Por isso,
"Esttica" se segue a "Lgica Transcendental, que vai esclarecer a
possibilidade do conhecimento a priori e o alcance da sua validade.
Limita-se esta lgica, na sua primeira parte (Analtica
transcendental), aos conceitos, no natural-mente aos conceitos
empricos, que podemos extrair da experincia. mas aos conceitos e
aos princpios que possumos de um modo a priori no entendimento.
Este uma funo unificadora, que se traduz no ato de julgar. Kant
estabelece uma tbua de classificao dos juzos e deste modo possui o
inventrio de todas as formas lgicas possveis, de todos os pontos de
vista segundo os quais se unem sujeito e predicado num juzo, por
outras palavras, a tbua das categorias. Estas deixam de ser, como
em Aristteles, as propriedades mais gerais das coisas para se
transformarem em funes do entendimento que reduzem de diferentes
maneiras as percepes unidade de um objeto. As categorias so assim
para Kant os diferentes pontos de vista, segundo os quais o
entendimento executa a sntese dos dados mltiplos da intuio,
formando o objeto. E num dos captulos mais difceis e centrais da
Crtica da Razo Pura (a deduo transcendental das categorias) vai
explicar o modo como estes conceitos a priori se aplicam
experincia. Porque que o entendimento humano possui estas
categorias em vez de outras? Kant apenas sabe responder que se
trata de um fato primeiro: impossibilidade de deduo de um princpio
superior. A crtica no pode ir mais alm.
14. Um problema se pe: se as categorias e os fenmenos so
heterogneos, de natureza diferente, as primeiras de ordem
intelectual e os segundos de ordem sensvel, como podem aplicar-se
as categorias aos fenmenos? Aqui recorre Kant noo de esquema,
produto da imaginao, intermedirio entre os planos do sensvel e do
entendimento. O esquema, ao contrrio do que se poderia supor, no
uma imagem, mas um mtodo de construir uma imagem em conformidade
com um conceito. Teremos assim que o esquema ser uma determinao do
tempo segundo as exigncias de cada categoria. Obter-se-o assim
tantos esquemas quanto o nmero de categorias. O esquema da
causalidade consistir na sucesso irreversvel dos fenmenos no tempo;
o da substancia, pelo contrrio, a permanncia de um fenmeno num
certo intervalo de tempo, etc. Resultado importante da "Analtica
transcendental" o de mostrar que as categorias fundam os juzos
sintticos a priori da fsica. A natureza constituda pela aplicao das
categorias aos fenmenos. Na base de todo o saber da natureza devem
aparecer regras que no fim de contas traduzem que todo o
conhecimento do real sinttico, ou seja, que todo o objeto deve
estar subordinado s "condies necessrias da unidade sinttica do
diverso da intuio numa experincia possvel". As categorias permitem
pr a priori as leis gerais da natureza. Mas, sem os dados da intuio
sensvel, no passariam de formas vazias e nada permitiriam conhecer.
O entendimento nada mais pode fazer do que antecipar a forma de uma
experincia possvel; logo, tem os seus limites estabelecidos na
sensibilidade. O uso das categorias, para empregar a expresso
kantiana, s pode ser imanente e no transcendente. A coisa em si, a
que acima j nos referimos e que a sensibilidade supe como fonte das
suas impresses, no pode ser conhecida; o entendimento pode
unicamente pens-la; e a coisa em si pensada o que se designa por
nmeno. certo que seria objeto de uma intuio intelectual se
realmente a possussemos. Assim, desprovidos de uma tal intuio,
permanece-nos inteiramente incognoscvel. O entendimento humano
capaz de conhecimento, de cincia, mas limitado ao domnio da
sensibilidade, da experincia possvel. certo, tambm, que a coisa em
si est sempre suposta como fonte de impresses sensveis, mas nada
mais; a intuio apenas enquadra essas impresses graas s formas a
priori do espao e do tempo, criando-se o fenmeno. A
inteligibilidade do fenmeno devida unicamente s categorias, formas
a priori do entendimento. So elas que tornam o objeto possvel,
podemos dizer que concedem
15. a objetividade ao fenmeno, que o tomam objeto. Com Hume a
substncia tinha-se despido da sua necessidade analtica, o princpio
de causalidade reduzido a simples "belief" baseado no hbito;
radicavam pois no sujeito psicolgico. Kant continua a considerar a
substncia, a causalidade, como algo que enraza no sujeito, mas num
sujeito agora transcendental, condio a priori da possibilidade do
conhecimento radicado na experincia, com validade objetiva, mas
limitada a uma experincia possvel. Assim fica esclarecido como so
possveis as matemticas e a fsica newtoniana. Mas, se a filosofia
deve dar a fundamentao da cincia, tambm a limitou ao campo
fenomnico. E que acontece metafsica Poder-se- constituir como
cincia graas a uma crtica da razo? na segunda parte da "Lgica
transcendental", a Dialtica, que Kant vai demonstrar em pormenor a
impossibilidade de uma metafsica dogmtica. At agora temos falado em
sensibilidade e em entendimento. Na "Dialtica" pe Kant em evidncia
uma nova faculdade, a razo. esta que confere aos conhecimentos do
entendimento a maior unidade possvel: "Todo o nosso conhecimento
comea pelos sentidos, da passa para o entendimento e termina na
razo, acima da qual nada se encontra em ns mais elevado que elabore
a matria da intuio e a traga mais alta unidade do pensamento" 8 .
Como o ato prprio da razo o raciocnio, e este consiste em ligar
juzos uns aos outros, segundo relao de princpio a conseqncia, temos
que a razo no tem que ver diretamente com a experincia, diferena do
que acontece ao entendimento, mas com os juzos a que este ltimo se
reduz. Desempenha assim o papel de instrumento que, subindo de
condio em condio, alcana um primeiro termo, o qual, por sua vez,
incondicionado ou absoluto. E este movimento traduz uma necessidade
do esprito humano: a de unificar os conhecimentos dispersos. A
razo, dirigida para o incondicionado, busca essa unidade total, tem
por funo dar ao entendimento uma unidade mais completa. Os
conhecimentos do entendimento so sempre conhecimentos
condicionados. Se o entendimento possui conceitos prprios (as
categorias) pergunta-se: e a razo? tambm possuir conceitos prprios?
Kant responde afirmativamente ________________ 8 Crtica da Razo
Pura, p. 289.
16. e designa-os por idias, definindo a idia como "um conceito
necessrio da razo ao qual no pode ser dado nos sentidos um objeto
que lhe corresponda" 9 . Como sabemos que s h trs tipos de
raciocnio, o categrico, o hipottico e o disjuntivo, tambm s haver
trs idias da razo: a unidade absoluta do sujeito pensante (a idia
de alma), a unidade absoluta da experincia externa (a idia de
mundo) e, finalmente, a unidade absoluta de todos os objectos do
pensamento, "a condio suprema da possibilidade do todo" (a idia de
Deus). Destas idias no podemos ter um conhecimento. Para que este
se realize necessria a conjugao da sensibilidade e do entendimento,
e as idias so como conceitos hiperblicos, que no podem encontrar na
experincia contedo adequado. Delas no pode haver conhecimento
objetivo equivalente ao conhecimento cientfico. So pois
"transcendentes" e, para Kant, uma "iluso transcendental" atribuir
a essas idias uma existncia red ou "em si". Fora precisamente o
vcio da metafsica dogmtica deixar-se enganar por esta iluso natural
e inevitvel, "que repousa sobre princpios subjetivos considerados
objetivos"; por isso, a alma era, para a metafsica wolffiana,
objeto da psicologia racional, o mundo, objeto da cosmologia
racional e Deus, da teologia racional. Kant vai precisamente
criticar estas trs disciplinas. Todas elas tm de se construir
exclusivamente a priori. A psicologia racional, partindo do cogito,
necessariamente comete "paralogismos". Ao afirmar a alma como
substncia, passa do mero fenmeno do pensamento para a res cogitans;
ora a alma, como coisa em si, no pode ser objeto de intuio; houve
um ., abuso ao aplicar a categoria da substncia, s vlida na esfera
da experincia, neste caso da experincia interna, cuja forma a
priori o tempo. O cogito s poder significar urna conscincia emprica
ou uma conscincia pura, um sujeito transcendental, garante da
unidade do conhecimento dos objectos, mas nada revelando acerca da
natureza do sujeito real. A cosmologia, por sua vez, culmina na
idia do mundo. Ora o raciocnio, que est no cerne dos argumentos
utilizados nesta disciplina, considera como premissa maior que,
quando algo posto condicionalmente, a soma das condies deve ser
posta ao mesmo tempo e incondicionada. Kant vai evidenci-lo nos
quatro argumentos a ter em conta relativamente ao mundo, conforme o
considerarmos do ponto de vista da qualidade, da __________________
9 Ibidem, p. 317.
17. quantidade, da relao e da modalidade. Encontramo-nos aqui
com as famosas antinomias: podemos em qualquer caso demonstrar, com
igual evidncia, propriedades diametralmente opostas, sem podermos
distinguir quais as verdadeiras e quais as falsas. Temos de
confrontar duas proposies contraditrias a tese e a antteseambas
demonstradas por argumentos igualmente vlidos: o mundo tem um comeo
no tempo e limitado no espao o mundo no tem comeo no tempo e no
limitado no espao; tudo o que existe formado por elementos
simplesno existe nada de simples no mundo; h no mundo uma
causalidade livre no existe uma causalidade livre, tudo acontece no
mundo segundo leis necessrias; ao mundo pertence, ou como parte, ou
como sua causa, um ser que necessriono existe ser necessrio algum
nem no interior do mundo nem fora dele. Estas antinomias, estas
contradies da razo consigo mesma quando especula sobre o mundo em
si, parecem convidar ao cepticismo, visto o esprito ficar em
suspenso perante duas teses opostas. Kant resolve o problema,
substituindo a atitude metafsica, dogmtica, pela atitude crtica e
revelando assim a aparncia ou iluso transcendental. Se o
condicionado , tambm o incondicionado afirma o raciocnio basilar da
cosmologiadeve ser. Ora como o ser do condicionado no pode ser
negado, deve afirmar-se tambm o ser do incondicionado. Mas o ser do
condicionado encontra-se no plano do fenomnico e a condio, essa
como coisa em si. E nesta base pode Kant afirmar que nas duas
primeiras antinomias so falsas tanto a tese como a anttese. No
podemos ter uma intuio do mundo na sua totalidade, pois todas as
intuies decorrem no espao e no tempo. Quanto s duas ltimas, so
verdadeiras tanto a tese como a anttese: pode admitirse a liberdade
no mundo das coisas em si e a necessidade no mundo dos fenmenos e,
pela mesma razo, admitir que, embora o mundo dos fenmenos no exija
um ser necessrio, esse ser necessrio exista fora desse mundo.
Finalmente, defronta-se Kant com a teologia racional. Revela-se
esta to sofistica como as disciplinas anteriores. Os argumentos que
aduz para demonstrar a existncia de Deus no tm valor. O filsofo de
Knigsberg reduzi-los a trs: a prova ontolgica, que procede a
priori; a prova cosmolgica, que se funda no princpio da causalidade
e a prova psico-teolgica, que tem como. base a ordem do mundo.
Procurando o raciocnio subjacente a estas trs provas, reduzi-lo aos
esquemas seguintes: mostrar a existncia de
18. um ser necessrio como incondicional e depois mostrar que
esse ser necessrio deve ser perfeito, que implica hic et nunc a
existncia. Este raciocnio seria sofistico. Do ser necessrio no se
pode deduzir a sua existncia necessria, e isto porque o ser
necessrio uma idia, um plo de atrao de todo o nosso conhecimento no
sentido de uma unidade total. E no h razo suficiente, pensa Kant,
para interpretar uma regra do pensamento como uma realidade
existente em si. No vamos deter-nos na anlise pormenorizada destes
argumentos kantianos. Basta dizer que todos eles pretendem concluir
que Deus a razo de ser de todas as coisas. Ora uma tal entidade
transcende os limites da experincia possvel, pois as categorias que
aplicamos, os princpios de que lanamos mo, so utilizados fora das
condies do seu uso objetivo e assim uma demonstrao da existncia de
Deus de excluir. A razo no pode provar a existncia de Deus, mas
tambm no pode provar a sua no-existncia. Fica assim vedada a via da
metafsica dogmtica, que a priori no pode conhecer o ser em si. Da
afirmar Kant: "o Ser supremo mantm-se, pois, para o uso
especulativo da razo, como um simples ideal, embora sem defeitos,
um conceito que remata e coroa todo o conhecimento humano; a
realidade objetiva desse conceito no pode, contudo, ser provada por
esse meio, embora tambm no possa ser refutada" 10 . Mostrou a
Crtica como so possveis os conhecimentos a priori em matemtica e em
fsica e porque no podem ser possveis em metafsica. Impugnada essa
metafsica "dogmtica", que pretende um conhecimento a priori do ser,
no significa que seja posta de lado qualquer espcie de metafsica.
Ao nvel da razo pura admissvel uma outra metafsica, a imanente, e
que consistiria em fazer a anlise do esprito e o inventrio das suas
categorias. Na "Analtica transcendental", ao estabelecer a tbua dos
princpios puros do entendimento, esboa Kant j os fundamentos
metafsicos do conhecimento cientfico fsicomatemtico. Esta metafsica
imanente, idealista, temperada com um realismo das "coisas em si",
fundando Kant o idealismo transcendental com a
_____________________________ 10 Crtica da Razo Pura, p. 531.
19. distino entre fenmeno e "coisa em si". Os fenmenos, sejam
da experincia interna, sejam da experincia externa, no passam de
representaes, pois os dados da percepo nelas so transmudados, graas
ao espao e ao tempo, e no pem diante de ns um mundo de coisas em
si. Estas, no entanto, existem para Kant; simplesmente, so condies
dos fenmenos, doadoras de dados hilticos, que o espao e o tempo
ordenam em fenmeno, isto , numa representao unificada. Mas no so
causa do fenmeno. Aplicar a categoria da causalidade relao
fenmeno-coisa em si seria consider-la para alm da experincia,
caindo-se na atitude sofstica que Kant denuncia na metafsica
dogmtica. Por isso, separa cuidadosa-mente o plano do fenmeno do
plano da coisa em si. Mas esta admitida como condio da idealizao do
fenmeno. No causa do fenmeno, mas o mundo da coisa em si algo
correlativo do mundo fenomnico; sem ele, este seria ininteligvel.
Mas o que ser uma coisa em si? S poderia saberse se fosse dada numa
intuio no-sensvel, numa intuio intelectual, fora dos quadros
espao-temporais. Ao homem no foi concedida tal intuio, embora esta,
em si mesma, no fosse impossvel. Nada se pode afirmar, portanto,
relativamente ao mundo das coisas em si. Permanecem para ns
incognoscveis. Para alm desta metafsica imanente no haver acesso ao
mundo da transcendncia? Esse acesso, como saber objetivo, isto ,
como cincia estrita, impossvel. No corresponder essa metafsica
transcendente a "um tipo de apreenso do real, que difere por
natureza do conhecimento cientfico?" 11 . A razo, graas s idias,
esfora-se por elevar os conhecimentos do entendimento mais perfeita
unidade e se a extenso dos conhecimentos se impe ao nosso esprito,
no corresponde "aos interesses supremos da razo" 12 . Interessa-se
esta mais ainda pela sua unificao sistemtica. "O conhecimento
sistemtico, a cincia dos objetos da experincia, fornece-nos um
modelo de certeza; a filosofia crtica marca os limites do que
podemos saber e a estimar razoavelmente o que nos permitido
esperar"13. Deste modo, a tarefa da razo abre-se metafsica "o
propsito final a que visa, em ltima anlise, a especulao da razo no
_________________ 11 Jean LACROIX, Kant et le kantisme, Paris,
1967, p. 15. Critica da Razo Pura, Metodologia transcendental, 1
Seco: Do fim ltimo do uso puro da nossa razo, p. 634 e segs. 13
Ibidem, p. 635. 12
20. uso transcendental, diz respeito a trs objetos: a liberdade
da vontade, a imortalidade da alma e a existncia de Deus." 14 . Se
a coisa, como fenmeno, s nos acessvel mediante a experincia,
sujeita por conseguinte causalidade da natureza, tambm pode, se a
pensarmos como coisa em si, considerar-se independente da
causalidade natural. E, neste caso, estar subordinada a um outro
tipo de causalidade, a causalidade inteligvel, que seria a
liberdade. Com isto no se alargou o domnio do conhecimento, que
continua circunscrito aos limites da experincia possvel. Apenas se
alcanou a simples possibilidade de uma causalidade livre. Poderemos
ter a experincia de uma tal causalidade? Kant afirma que
encontramos uma causalidade livre em ns mesmos; desenvolvemos uma
atividade e somos a causa dessa atividade. Isto porque o homem um
ser de exceo, pois se, por um lado, est submetido lei natural,
tambm pode dar-se a si mesmo a sua prpria lei. Esta razo, que se
determina como razo livre, experimenta-se como livre. Porm, esta
liberdade no cognoscvel pela razo terica, limitada esfera da
experincia sensvel. A partir da realidade da idia da liberdade vai
Kant demonstrar a realidade das outras idias: a realidade das idias
da alma, e de Deus. A imortalidade da alma e a existncia de Deus so
para Kant necessrias, exigidas pela lei moral, seus postulados. A
passagem da razo terica para a razo prtica que faz aparecer o
fundamento da metafsica, metafsica moral que no cabe neste prefcio
analisar. A Crtica da Razo Pura mostrou que o esprito humano nada
pode saber das realidades transcendentes aos fenmenos, pois no h
uma intuio intelectual. Agora, no domnio prtico, a Critica mostra
que essas realidades devem ser afirmadas. Assim se impe de novo a
metafsica segundo uma forma, a nica, segundo Kant, a ser possvel
numa idade dominada pelo ideal da cincia positiva, capaz de salvar
os temas que a metafsica dogmtica wolffiana e com ela toda a
metafsica considerava seu autntico patrimnio. certo pretender Kant
salvar as matemticas e a cincia da natureza, mas no deixa tambm de
ser verdadeiro que pretendeu tambm salvar o tesmo e assim
integrar-se na linha tradicional. J em tempo de Kant afirmava
Jacobi (1743-1819) que "sem a coisa em si no se podia entrar no
recinto da Critica da Razo Pura, mas _______________ 14 Ibidem. p.
635.
21. com a coisa em si no se poderia nele permanecer". De fato,
a reflexo kantiana encontra-se em equilbrio instvel entre o
idealismo absoluto e um realismo que admite coisas em si, embora
incognoscveis. E no sentido do desaparecimento da coisa em si que
vai evoluir a herana do pensador de Knigsberg. No idealismo alemo a
viragem copernicana levada derradeira conseqncia, sem quaisquer
reservas criticistas. A intuio intelectual, conceito-limite para
Kant, significando qualquer coisa concebvel, mas no acessvel,
adquire foros de cidadania; a experincia sensvel, necessria para o
conhecimento do real, transforma-se em criao do eu, uma certa forma
de conscincia. Em qualquer dos grandes nomes deste movimento
idealista, com todas as suas diferenas, sempre no sujeito que
reside o centro de gravidade da filosofia, h sempre a eliminao da
coisa em si. O saber no consiste na recepo de dados, mas numa
construo no pleno sentido da palavra. O eu no , portanto, tabula
rasa, mas atividade. O saber no atribudo ao esprito humano finito,
como tal, mas ao pensamento absoluto ou razo e, assim, o mundo
converte-se em automanfestao do pensamento. Toda esta ousada
especulao idealista no seria possvel sem Kant e no traduz um
regresso s vias tradicionais da metafsica. As entusisticas e, por
vezes, extravagantes construes do idealismo germnico entram no
descrdito, contrapostas aos resultados de uma cincia positiva,
avassaladora de todos os domnios do real. Impe-se agora uma reflexo
filosfica que vai ser elaborada sob a gide de um zurck zu Kant,
pondo em evidncia, fundamentalmente, a dimenso gnoseolgica da
critica kantiana e reduzindo a Crtica da Razo Pura Analtica
transcendental, compreendida como uma teoria da cincia. Nisso
consistiu, fundamentalmente, a limitao neokantiana. A Critica da
Razo Pura continua hoje ainda um texto vivo, referncia obrigatria
nas correntes filosficas mais importantes da contemporaneidade.
Assim, o kantismo constitui, no dizer de Ricoeur, o horizonte
filosfico mais prximo da hermenutica 15 , com a sua inverso das
relaes ___________________ 15 Cf. P. RICOEUR, Hermneutique, cours
profess I'Institut Suprieur de Philosophie, 1971-1972,
Louvain-la-Neuve, p. 70. Ver ainda H. G. GADAMER, Kant und die
philosophische Hermeneutik, Kant-Studien 66 (1975), pp. 395-403.
Reimpresso com o ttulo Kant und die hermeneutische Wendung in H.-
G. GADAMER, Heidegger Wege, Tbingen, 1983, pp. 45-54.
22. entre uma teoria do conhecimento e uma teoria do ser. Por
isso, compreende-se que, "num clima kantiano, a teoria dos sinais
continua Ricoeurpossa preceder a teoria das coisas", "tornando-se
possvel que uma teoria da compreenso possa emancipar-se de uma
teoria dos contedos de conhecimento"; mais precisamente, "o
kantismo convida a remontar dos objectos da experincia s suas
condies no esprito", embora "no tenha ultrapassado as condies da
experincia fsica" 16 . Ligado ainda ao movimento da hermenutica por
diversos aspectos e na seqncia do movimento fenomenolgico, temos
Heidegger para quem o dilogo com Kant momento essencial. Considera
o processo kantiano de fundamentao da metafsica profundamente
inovador pela introduo do mtodo transcendental e pela "funo do a
priori originrio atribudo ao tempo como forma a priori da imaginao
transcendental" 17 . Heidegger pretende levar ao seu termo o
discurso transcendental kantiano, mas procurando, ao arrepio do
idealismo alemo, que radicalizou a viragem copernicana iniciada por
Kant, aprofundando-a no sentido da a prioridade subjetiva,
encontrar fora do sujeito essa a prioridade, a saber, no interior
da facticidade da tradio a explorar. O dado, como ponto de partida
estratgico, deixa de ser a determinao metafsica da coisa material
ou a do sujeito. Ser antes a relacionalidade da facticidade
transmitida e isto para Heidegger a linguagem, concebida,
claramente, segundo o modelo do texto, originando, conforme
expresso de Thomas J. Wilson 18 "um funcionalismo que deve ser
caracterizado, no como uma mathesis, mas sim como exegesis
universalis". _________________________ 16 Ibidem, p. 71. J. ENES,
loc. cit., p. 122. A interpretao de Heidegger da fundamentao da
metafsica em Kant encontra-se tratada em Sein und Zeit (1927), Kant
und das Problem der Metaphysik (1929) e Die Grundprobleme der
Phnomenologie (lies do ano de 1927 editadas postumamente em
Gesamtausgabe, vol. 24, 1975). 18 Thomas J. WILSON, Sein als Text.
Vom Textmodell als Martin Heideggers Denkmodell. Eine
funktionalistische Interpretation, Freiburg/Mnchen, Verlag Karl
Albor, 1981, p. 13-14. Trata-se de uma das interpretaes mais
originais do pensamento heideggeriano. Cf. o artigo j citado de J.
ENES e o de N. GONZLEZ-CAMINERO, Dall modello del'essere come cosa
al modello dell'essere come testo, in "Revista Portuguesa de
Filosofia", XXXIX (1983), pp. 312-335. 17
23. * * * No esta a primeira traduo em lngua portuguesa da
Crtica da Razo Pura. Apareceram j no Brasil algumas verses
incompletas, a mais recente das quais, feita diretamente do alemo,
se deve a Walrio Rohden e a ligo Baldur Moosburger (So Paulo, Abril
Cultural, 1980) 1 . Traduo esta, em geral, muito fiel ao texto
original, mas que, infelizmente, no conhecemos a tempo de nos ser
de utilidade e apenas reproduz a segunda edio do texto kantiano. A
traduo que agora se d estampa esfora-se por ser um instrumento
tanto quanto possvel adequado ao estudo completo da problemtica da
razo pura. Como texto base foi adotado, como hoje norma, o da
segunda edio, que designaremos por edio B. Em rodap aparecero
indicadas por * as notas do prprio Kant e em numerao rabe as
variantes da primeira edio, designada por edio A. Nos trechos
extensos de A, que foram eliminados em B, e representam por vezes
captulos ou pargrafos inteiros, como o caso da deduo dos conceitos
puros do entendimento e da maior parte da doutrina dos
paralogismos, dividimos a pgina em duas partes: a superior
preenchida pelo texto de B, considerado principal e a inferior
comportando o texto de A. Tambm nas notas indicadas pela numerao
rabe aparecem pequenas variantes de B, introduzidas pelo prprio
Kant no seu exemplar de uso, ou leituras propostas por alguns dos
mais eminentes Kant-philologen. No tivemos a pretenso de ser
exaustivos; fizemos delas uma seleo, cujo critrio, naturalmente, se
encontrar ferido, embora contra o nosso intento, de alguma
subjetividade. Alm disso, muitas dessas variantes ou alteraes foram
eliminadas por irrelevantes em lngua portuguesa. O que sempre
pretendemos foi dar uma traduo que respeitasse o mais possvel o
original kantiano. Renunciamos, por isso, a introduzir qualquer
"melhoramento" na traduo de certos passos que se nos afiguravam
menos claros. Seria cair na parfrase sempre de rejeitar que
eliminaria ambigidades ou deficincias inerentes ao texto original,
mas estaria sujeita ao _________________ Agradecemos ao nosso
prezado Colega e Amigo Prof. Antnio Paim, do Instituto Brasileiro
de Filosofia do Rio de janeiro, as indicaes referentes a tradues de
Kant no Brasil e o envio de fotocpias e exemplares das mais
importantes.
24. perigo de trair a lio kantiana. O cuidado de interpretar
deve deixar-se, como de justia, ao leitor. A presente traduo da
Critica da Razo Pura fruto do trabalho da Dr. Manuela Pinto dos
Santos que verteu para portugus o texto da edio B at ao Cap. III, O
ideal da razo pura, quinta seco, Da impossibilidade de uma prova
cosmolgica da existncia de Deus (p. 507) e de mim prprio que
traduzi o que restava do texto de B, os prefcios de A e de B e
todos os textos de A que diferiam de B. ainda da minha
responsabilidade a traduo de todas as notas, quer as do punho do
prprio Kant, por outras, em que se apresentam variantes ao texto de
B, bem como a unificao terminolgica de toda a traduo do texto
kantiano. Como base para esta traduo foi utilizada a edio crtica de
Raymund Schmidt: Kritik der reinen Vernunft, reimpresso inalterada
da 2 edio, revista, de 1930 (Philosophische Bibliothek, vol. 37a,
Hamburgo, Felix Meiner, 1956), embora confrontada com o texto
completo de B e o de A at aos paralogismos da razo pura,
publicados, respectivamente, nos vols. III e IV da edio da Academia
de Berlim e com o vol. III da edio de Ernst Cassirer, ao cuidado de
Grland. Mas foi na edio de R. Schmidt que, fundamentalmente, nos
apoiamos e nela colhemos a seleo de notas apresentadas. Com a
finalidade de dar um texto completo e tornar possvel evidenciar o
que foi introduzido de novo na edio B, qualquer palavra, frase ou
trecho entre parntesis retos [ ] significa que foram acrescentadas
em B ou substituem outras aparecidas em A e de que daremos notcia
em nota. No escondemos a dificuldade havida, por vezes, na traduo
de certos vocbulos kantianos. Para melhor fixarmos os
correspondentes termos em portugus, comparamo-los com a lio de
algumas tradues: a traduo inglesa de Norman Kemp-Smith (Londres,
1968), a de Giovanni Gentile e Giusepp Lombardi-Radici (2 vols.,
Bari, 1925, reimpresso da 2. edio), a de J. Bani e P. Archambault
(2 vols., Paris, 1944), a de A. Tremesaygues e B. Pacaud (Paris,
1950) e a traduo incompleta de M. Carda Morente (2 vols., Madrid,
1929). Uma especial meno devida ao nosso prezado Colega e Amigo
Prof. Doutor Walter de Sousa Medeiros que amavelmente se prestou a
rever a traduo das citaes latinas e, em alguns casos, teve a
gentileza de a substituir por outra da sua autoria.
25. Temos conscincia das carncias da traduo apresentada e
esperamos melhor-la em futuras edies. Mas estamos seguros de no
termos realizado tarefa sem interesse, ao procurarmos fazer Kant
falar em lngua portuguesa e precisamente nesta obra fundamental, a
difcil Critica da Razo Pura. No poder afirmar-se com Hegel, que "um
povo' ser brbaro e no considerar bens prprios as coisas excelentes
que conhece, enquanto no aprender a conhec-las na sua lngua"?
ALEXANDRE F. MORUJO
26. BACO DE VERULAMIO INSTAURATIO MAGNA PRAEFATIO De nobis
ipsis silemus: De re autem, quae agitur, petimus: ut homines eam
non Opinionem, sed Opus esse cogitent; ac pro certo habeant, non
Sectae nos alicuius, aut Placiti, sed utilitatis et amplitudinis
humanae fundamenta moliri. Deinde ut suis commodis aequi ... in
commune consulant... et ipsi in partem veniant. Praeterea ut bene
sperent, neque Instaurationem nostram ut quiddam infinitum et ultra
mortale fingant, et animo concipiant; quum revera sit infiniti
erroris finis et terminus legitimus. ____________ S aparece em B.
Traduo: BACON DE VERULMIO INSTA URATIO MAGNA PREFCIO Quanto ao
prprio autor, preferimos guardar silncio; mas quanto ao objetivo
que temos em vista, esse vamos desde j enunci-lo, para que as
pessoas no cuidem que se trata de mera opinio, mas de verdadeira
misso; e tenham a certeza de que batalhamos no para lanar as bases
de alguma escola ou dogma, mas do bem-estar e grandeza do gnero
humano. E, depois, para que estejam atentas aos seus reais
interesses (...); tomem deliberaes em ordem ao bem comum (...); e
por si mesmas se disponham a assumir as suas posies. E, alm disso,
alimentem fundadas esperanas; e no entrevejam nem concebam esta
nossa 'Instauratio' como algo desmesurado e superior condio mortal
quando, na realidade, representa o fim do erro ilimitado e o seu
prescrito remate. B2
27. B III BV B VI A SUA EXCELNCIA O MINISTRO DE ESTADO DO REI
BARO DE ZEDLITZ I Senhor! Promover pela sua parte o crescimento das
cincias significa trabalhar no interesse de Vossa Excelncia; pois
estas duas coisas encontram-se intimamente ligadas, no s pelo posto
eminente de um protetor, mas bem mais ainda pela familiaridade de
um amador e de um conhecedor esclarecido. Por isso recorro ao nico
meio que, de certa maneira, est em meu poder, para testemunhar a
minha gratido pela benevolente confiana com que Vossa Excelncia me
honra, julgando-me capaz de contribuir para esse fim. I mesma ateno
benevolente com que Vossa Excelncia dignou honrar a primeira edio
desta obra dedico tambm agora esta segunda e, com ela, todos os
outros interesses da minha carreira literria, e sou com o mais
profundo respeito, De Vossa Excelncia, o servidor muito obediente e
humilde IMMANUEL KANT Knigsberg, 23 de Abril de 1787
______________________ Em A o ltimo pargrafo da dedicatria assim
concebido: A quem agrada a vida especulativa, a aprovao de um juiz
esclarecido e vlido , entre os desejos razoveis, um poderoso
encorajamento a esforos, cuja utilidade grande, embora mediata, e
por isso completamente desconhecida do vulgo. A um tal juiz e sua
benevolente ateno dedico este escrito e coloco sob a sua proteco
todos os outros interesses da minha carreira literria e sou, com o
mais profundo respeito, De Vossa Excelncia, servidor muito
obediente e humilde, IMMANUEL KANT Knigsberg, 29 de Maro de
1781
28. PREFCIO DA PRIMEIRA EDIO (1781) A razo humana, num
determinado domnio dos seus conhecimentos, possui o singular
destino de se ver atormentada por questes, que no pode evitar, pois
lhe so impostas pela sua natureza, mas s quais tambm no pode dar
resposta por ultrapassarem completamente as suas possibilidades. No
por culpa sua que cai nessa perplexidade. Parte de princpios, cujo
uso inevitvel no decorrer da experincia e, ao mesmo tempo,
suficientemente garantido por esta. Ajudada por estes princpios
eleva-se cada vez mais alto (como de resto lho consente a natureza)
para condies mais remotas. Porm, I logo se apercebe de que, desta
maneira, a sua tarefa h-de ficar sempre inacabada, porque as
questes nunca se esgotam; v-se obrigada, por conseguinte, a
refugiar-se em princpios, que ultrapassam todo o uso possvel da
experincia e, no obstante, esto ao abrigo de qualquer suspeita,
pois o senso comum est de acordo com eles. Assim, a razo humana cai
em obscuridades e contradies, que a autorizam a concluir dever
ter-se apoiado em erros, ocultos algures, sem contudo os poder
descobrir. Na verdade, os princpios de que se serve, uma vez que
ultrapassam os limites de toda a experincia, j no reconhecem nesta
qualquer pedra de toque. O teatro destas disputas infindveis
chama-se Metafsica. Houve um tempo em que esta cincia (a metafsica)
era chamada rainha de todas as outras e, se tomarmos a inteno pela
realidade, merecia amplamente esse ttulo honorfico, graas
importncia capital do seu objeto. No nosso tempo ____________
Omitido em B. A VII A VIII
29. tornou-se moda testemunhar-lhe o maior desprezo e a nobre
dama, repudiada e desamparada, lamenta-se como Hcuba: A IX ... Modo
maxima rerum, I Tot generis natis que potens... Nunc trahor exul,
inops. OVDIO, Metamorfoses AX Inicialmente, sob a hegemonia dos
dogmticos, o seu poder era desptico. Porm, como a legislao ainda
trazia consigo o vestgio da antiga barbrie, pouco a pouco, devido a
guerras intestinas, caiu essa metafsica em completa anarquia e os
cticos, espcie de nmades, que tem repugnncia em se estabelecer
definitivamente numa terra, rompiam, de tempos a tempos, a ordem
social. Como, felizmente, eram pouco numerosos, no puderam impedir
que os seus adversrios, os dogmticos, embora sem concordarem num
plano prvio, tentassem repetidamente, restaurar a ordem destruda.
Nos tempos modernos houve um momento em que parecia irem terminar
todas essas disputas, graas a uma certa fisiologia do entendimento
humano (a do clebre Locke) e a ser decidida inteiramente a
legitimidade dessas pretenses. Embora essa suposta rainha tivesse
um nascimento vulgar, derivasse da experincia comum e, por isso,
com justia, a sua origem tornasse suspeitas as suas exigncias,
aconteceu, no entanto, que esta genealogia tinha sido imaginada
falsamente e, assim, a metafsica continuou a afirmar as suas
pretenses; I pelo que de novo tudo caiu no dogmatismo arcaico e
carcomido e, finalmente, no desprestgio a que se tinha querido
subtrair a cincia. Agora, depois de serem tentados todos os
caminhos (ao que se v) em vo, reina o enfado e um indiferentismo,
que engendram o caos e a noite nas cincias, mas tambm, ao mesmo
tempo, so origem, ou pelo menos preldio, de uma prxima transformao
e de uma renovao dessas ________________ Traduo: Ainda h pouco a
maior de todas, poderosa por tantos genros e filhos... eis-me agora
exilada, despojada.
30. cincias, que um zelo mal entendido tornara obscuras,
confusas e inteis. vo, com efeito, afetar indiferena perante
semelhantes investigaes, cujo objeto no pode ser indiferente
natureza humana. Esses pretensos indiferentistas, por mais que
busquem tornar-se irreconhecveis, substituindo a terminologia da
Escola por uma linguagem popular, no so capazes de pensar qualquer
coisa sem recair, inevitavelmente, em afirmaes metafsicas. Porm,
esta indiferena, que se produz no meio do flores-cimento de todas
as cincias e ataca precisamente aquela, a cujos conhecimentos, se
pudssemos adquiri-los, renunciaramos com menos facilidade I do que
a qualquer outro, um fenmeno digno de ateno e de reflexo.
Evidentemente que no efeito de leviandade, mas do juzo* amadurecido
da poca, que j no se deixa seduzir por um saber aparente; um
convite razo para de novo empreender a mais difcil das suas
tarefas, a do conhecimento de si mesma e da constituio de um
tribunal que lhe assegure as pretenses legtimas e, em
contrapartida, possa condenar-lhe todas as presunes infundadas; I e
tudo isto, no por deciso arbitrria, mas em nome das suas leis
eternas e imutveis. Esse tribunal outra coisa no que a prpria
Crtica da Razo Pura. Por uma crtica assim, no entendo uma crtica de
livros e de sistemas, mas da faculdade da razo em geral, com
________________ * De vez em quando, ouvem-se queixas acerca da
superficialidade do modo de pensar da nossa poca e sobre a
decadncia da cincia rigorosa. Pois eu no vejo que as cincias, cujo
fundamento est bem assente, como a matemtica, a fsica, etc.,
meream, no mnimo que seja, uma censura. Pelo contrrio, mantm a
antiga reputao de bem fundamentadas e ultrapassam-na mesmo nos
ltimos tempos. Esse mesmo esprito mostrar-se-ia tambm eficaz nas
demais espcies de conhecimentos, se houvesse o cuidado prvio de
retificar os princpios dessas cincias. falta desta retificao, a
indiferena, a dvida e, finalmente, a crtica severa so outras provas
de um modo de pensar rigoroso. A nossa poca a poca da crtica, qual
tudo tem que submeter-se. A religio, pela sua santidade e a
legislao, pela sua majestade, querem igualmente subtrair-se a ela.
Mas ento suscitam contra elas justificadas suspeitas e no podem
aspirar ao sincero respeito, que a razo s concede a quem pode
sustentar o seu livre e pblico exame. A XI A XII
31. A XIII A XIV respeito a todos os conhecimentos a que pode
aspirar, independentemente de toda a experincia; portanto, a soluo
do problema da possibilidade ou impossibilidade de uma metafsica em
geral e a determinao tanto das suas fontes como da sua extenso e
limites; tudo isto, contudo, a partir de princpios. Assim,
enveredei por este caminho, o nico que me restava seguir e sinto-me
lisonjeado por ter conseguido eliminar todos os erros que at agora
tinham dividido a razo consigo mesma, no seu uso fora da
experincia. No evitei as suas questes, desculpandome com a
impotncia da razo humana; pelo contrrio, especifiquei-as
completamente, segundo princpios e, depois de ter descoberto o
ponto preciso do mal-entendido da razo consigo mesma, resolvi-as
com a sua inteira satisfao. I No dei, certo, quelas questes as
respostas que o exaltado desejo dogmtico de saber desejaria
esperar, pois impossvel satisfaz-lo de outra forma que no seja por
artes mgicas, das quais nada entendo. Topouco residia a o objeto do
destino natural da nossa razo; o dever da filosofia era dissipar a
iluso proveniente de um mal-entendido, mesmo com risco de destruir
uma quimera to amada e enaltecida. Neste trabalho, a minha grande
preocupao foi descer ao pormenor e atrevo-me a afirmar no haver um
s problema metafsico, que no se resolva aqui ou, pelo menos, no
encontre neste lugar a chave da soluo. Com efeito, a razo pura uma
unidade to perfeita que, se o seu princpio no fosse suficiente para
resolver uma nica questo de todas aquelas que lhe so propostas pela
sua natureza, haveria que rejeit-lo, pois no se poderia aplicar a
qualquer outra com perfeita segurana. Ao falar assim, julgo
perceber na fisionomia do leitor um misto de indignao e desprezo I
por pretenses aparentemente to vaidosas e imodestas; e, contudo, so
incomparavelmente mais moderadas do que as de qualquer autor do
programa mais vulgar, que pretende, por exemplo, demonstrar a
natureza simples da alma ou a necessidade de um primeiro comeo do
mundo; realmente, tal autor assume o compromisso de estender o
conhecimento humano para alm de todos os limites da experincia
possvel, coisa que, devo confess-lo com humildade,
32. ultrapassa inteiramente o meu poder; em vez disso, ocupo-me
unicamente da razo e do seu pensar puro e no tenho necessidade de
procurar longe de mim o seu conhecimento pormenorizado, pois o
encontro em mim mesmo e j a lgica vulgar me d um exemplo de que se
podem enunciar, de maneira completa e sistemtica, todos os atos
simples da razo. O problema que aqui levanto simplesmente o de
saber at onde posso esperar alcanar com a razo, se me for retirada
toda a matria e todo o concurso da experincia. Julgo ter dito o
bastante acerca da perfeio a atingir em cada um dos fins e a
extenso a dar investigao de conjunto de todos eles, que no
constituem um propsito arbitrrio, mas que a natureza mesma do
conhecimento nos prope como matria da nossa investigao crtica. I H
ainda a ter em conta a certeza e a clareza, dois requisitos que se
reportam forma e se devem considerar qualidades essenciais a exigir
de um autor que se lana em empresa to delicada. No respeitante
certeza, a lei que impus a mim prprio obriga-me a que, nesta ordem
de consideraes, de modo algum seja permitido emitir opinies e que
tudo o que se parea com uma hiptese seja mercadoria proibida, que
no se deve vender, nem pelo mais baixo preo, mas que urge confiscar
logo que seja descoberta. Com efeito, todo o conhecimento que
possui um fundamento a priori anuncia-se pela exigncia de ser
absolutamente necessrio; com mais forte razo deve assim acontecer a
respeito de uma determinao de todos os conhecimentos puros a priori
que deve servir de medida e, portanto, de exemplo a toda a certeza
apodtica (filosfica). S ao leitor competir julgar se me mantive
fiel, neste ponto, ao meu compromisso, pois ao autor apenas convm
apresentar razes e no decidir dos efeitos delas sobre os juzes.
Contudo, para que nada possa, inocentemente, ser causa de que se
enfraqueam estas razes, I seja permitido ao autor que ele prprio
assinale as passagens que poderiam ocasionar alguma desconfiana,
embora apenas tenham importncia secundria, a fim de prevenir a A XV
A XVI
33. A XVII influncia que o mais leve escrpulo do leitor poder
exercer mais tarde no seu juzo, relativamente ao fim principal. No
conheo investigaes mais importantes para estabelecer os fundamentos
da faculdade que designamos por entendimento e, ao mesmo tempo,
para a determinao das regras e limites do seu uso, do que aquelas
que apresentei no segundo captulo da Analtica transcendental,
intitulado Deduo dos conceitos puros do entendimento; tambm foram
as que me custaram mais esforo, mas espero que no tenha sido o
trabalho perdido. Esse estudo, elaborado com alguma profundidade,
consta de duas partes. Uma reporta-se aos objetos do entendimento
puro e deve expor e tornar compreensvel o valor objetivo desses
conceitos a priori e, por isso mesmo, entra essencialmente no meu
desgnio. A outra diz respeito ao entendimento puro, em si mesmo, do
ponto de vista da sua possibilidade e das faculdades cognitivas em
que assenta: I estuda-o, portanto, no aspecto subjetivo. Esta
discusso, embora de grande importncia para o meu fim principal, no
lhe pertence essencialmente, pois a questo fundamental reside
sempre em saber o que podem e at onde podem o entendimento e a razo
conhecer, independentemente da experincia e no como possvel a
prpria faculdade de pensar. Uma vez que esta ltima questo , de
certa maneira, a investigao da causa de um efeito dado e, nessa
medida, tambm algo semelhante a uma hiptese (embora de fato no seja
assim, como noutra ocasio mostrarei) parece ser este o caso de me
permitir formular opinies e deixar ao leitor igualmente a liberdade
de emitir outras diferentes. Por isso devo pedir ao leitor para se
lembrar de que, se a minha deduo subjetiva no lhe tiver criado a
inteira convico que espero, a deduo objetiva, que a que aqui me
importa principalmente, conserva toda a sua fora, bastando, de
resto, para isso, o que dito de pginas 92 a pginas 93 . Finalmente,
no que respeita clareza, o leitor tem o direito de exigir, em
primeiro lugar, a clareza discursiva (lgica) por ________________
Paginao de A. Kant refere-se Passagem deduo transcendental das
categorias.
34. conceitos; seguidamente, tambm a clareza I intuitiva
(esttica) por A XVIII intuies, isto , por exemplos e outros
esclarecimentos em concreto. Cuidei suficientemente da primeira,
pois dizia respeito essncia do meu projeto, mas foi tambm a causa
acidental que me impediu de me ocupar suficientemente da outra
exigncia, que justa, embora o no seja de uma maneira to estrita
como a primeira. No decurso do meu trabalho encontrei-me quase
sempre indeciso sobre o modo como a este respeito devia proceder.
Os exemplos e as explicaes pareciam-me sempre necessrios e no
primeiro esboo apresentaram-se, de fato, nos lugares adequados.
Contudo, bem depressa vi a grandeza da minha tarefa e a multido de
objetos de que tinha de me ocupar e, dando conta de que, expostos
de uma forma seca e puramente escolstica, esses objetos dariam
extenso suficiente minha obra, no me pareceu conveniente torn-la
ainda maior com exemplos e explicaes, apenas necessrios de um ponto
de vista popular; tanto mais que esta obra no podia acomodar-se ao
grande pblico e aqueles que so cultores da cincia no necessitam
tanto que se lhes facilite a leitura, coisa sempre agradvel, mas
que, neste caso, poderia desviar-nos um pouco do nosso fim em
vista. Diz com verdade o Padre Tarrasson que, se avaliarmos I o
tamanho de um livro, no A XIX pelo nmero de pginas, mas pelo tempo
necessrio a compreendlo, poder-se- afirmar de muitos livros, que
seriam muito mais pequenos se no fossem to pequenos. Mas se, por
outro lado, for proposto como objetivo a inteligncia de um vasto
conjunto de conhecimentos especulativos, embora ligados a um
princpio nico, poder-se-ia dizer, com igual razo, que muitos livros
teriam sido muito mais claros se no quisessem ser to claros. De
fato, os expedientes para ajudar a ser claro so teis nos
pormenores, embora muitas vezes distraiam de ver o conjunto,
impedindo o leitor de alcanar, com suficiente rapidez, uma viso
desse conjunto; com o seu brilhante colorido encobrem, por assim
dizer, e tornam invisvel a articulao ou a estrutura do sistema, que
o mais importante para se poder julgar da sua unidade e do seu
valor. Parece-me que pode ser para o leitor coisa de no pequeno
atrativo juntar o seu esforo ao do autor, se tiver a
35. A XX inteno de realizar inteiramente e de maneira duradoura
uma obra grande e importante, de acordo com o plano que lhe
proposto. I Ora a metafsica, segundo os conceitos que dela
apresentaremos aqui, a nica de todas as cincias que pode aspirar a
uma realizao semelhante e isto em pouco tempo e com pouco trabalho,
desde que se congreguem os esforos, de tal modo que nada mais reste
posteridade que dispor tudo de uma maneira didtica, de acordo com
seus propsitos, sem por isso poder aumentar o contedo no que quer
que seja. Na verdade, a metafsica outra coisa no seno o inventrio,
sistematicamente ordenado, de tudo o que possumos pela razo pura.
Nada nos pode aqui escapar, pois o que a razo extrai inteiramente
de si mesma no pode estar-lhe oculto; pelo contrrio, posto luz pela
prpria razo, mal se tenha descoberto o princpio comum de tudo isso.
A unidade perfeita desta espcie de conhecimentos, derivados de
simples conceitos puros, sem que nada da experincia, nem sequer
mesmo uma intuio particular, prpria a conduzir a uma experincia
determinada, possa exercer sobre ela qualquer influncia no sentido
de a estender ou de a aumentar, torna esta integridade
incondicionada no somente possvel como ainda necessria. Tecum
habita et noris, quam sit tibi curta supellex PRSIO A XXI I Eu
prprio espero publicar, com o ttulo de Metafsica da Natureza, um
tal sistema da razo pura (especulativa) que, embora no tenha metade
da extenso da Crtica, dever, no entanto, conter uma matria
incomparavelmente mais rica. Esta crtica teve primeiro que expor as
fontes e as condies de possibilidade desta metafsica e necessitou
de limpar e de alisar um terreno mal preparado. Espero aqui, do meu
leitor, a pacincia e a imparcialidade de um juiz; porm, na
Metafsica da Natureza, terei necessidade da boa vontade e do
concurso de ______________ Traduo: Regressa a ti mesmo e sabers
como simples para ti o inventrio.
36. um auxiliar. Com efeito, por mais completa que tenha sido
na Crtica a exposio de todos os princpios que servem de base ao
sistema, o desenvolvimento deste exige que tambm se esteja de posse
de todos os conceitos derivados, impossveis de enumerar a priori e
que necessrio investigar um por um. Como na Crtica foi esgotada
toda a sntese dos conceitos, o mesmo ser paralelamente exigido
aqui, relativamente anlise, o que ser fcil de conseguir e mais um
entretenimento que um trabalho. Resta-me ainda dizer alguma coisa
com respeito impresso. Como o comeo desta foi um tanto atrasado,
pude somente receber, para reviso, cerca de metade I das provas;
nelas encontro algumas gralhas, que no alteram o sentido,
exceptuado o da pgina 374, linha 4 a partir de baixo , onde se deve
ler specifisch em vez de skeptisch. A antinomia da razo pura, de
pgina 425 pgina 461, encontra-se disposta sob a forma de quadro, de
maneira a tudo o que pertence tese estar sempre esquerda e o que
pertence anttese, sempre direita. Adotei esta disposio para mais
facilmente ser possvel estabelecer comparao entre ambas.
______________ Paginao de A. Kant refere-se Passagem deduo
transcendental das categorias. Paginao de A. A XXII
37. TBUA DE MATRIAS A XXIII Introduo I. Doutrina transcendental
dos elementos. PRIMEIRA PARTE. Esttica transcendental. SECO
PRIMEIRA. Do espao. SECO SEGUNDA. Do tempo. SEGUNDA PARTE. Lgica
transcendental. PRIMEIRA DIVISO. Analtica transcendental em dois
livros com seus ttulos e suas subdivises. SEGUNDA DIVISO. Dialctica
transcendental em dois livros com seus ttulos e suas subdivises.
II. Doutrina transcendental do mtodo. CAPTULO I. Disciplina da razo
pura. CAPTULO II. Cnone da razo pura. CAPTULO III. Histria da razo
pura. ____________ Apenas em A. A XXIV
38. PREFCIO DA SEGUNDA EDIO (1787) S o resultado permite
imediatamente julgar se a elaborao dos conhecimentos pertencentes
aos domnios prprios da razo segue ou no a via segura da cincia. Se,
aps largos preparativos e prvias disposies, se cai em dificuldades
ao chegar meta, ou se, para a atingir, se volta atrs com freqncia,
tentando outros caminhos, ou ainda se no possvel alcanar
unanimidade entre os diversos colaboradores, quanto ao modo como
dever prosseguir o trabalho comum, ento poderemos ter a certeza que
esse estudo est longe ainda de ter seguido a via segura da cincia.
apenas mero tateio, sendo j grande o mrito da razo em ter
descoberto, de qualquer modo, esse caminho, mesmo custa de
renunciar a muito do que continha a finalidade proposta de incio
irrefletidamente. I Pode reconhecer-se que a lgica, desde remotos
tempos, seguiu a via segura, pelo fato de, desde Aristteles, no ter
dado um passo atrs, a no ser que se leve conta de aperfeioamento a
abolio da algumas subtilezas desnecessrias ou a determinao mais
ntida do seu contedo, coisa que mais diz respeito elegncia que
certeza da cincia. Tambm digno de nota que no tenha at hoje
progredido, parecendo, por conseguinte, acabada e perfeita, tanto
quanto se nos pode afigurar. Na verdade, se alguns modernos
pensaram alarg-la, nela inserindo captulos, quer de psicologia,
referentes s diferentes faculdades de conhecimento (a imaginao, o
esprito), quer metafsicos, respeitantes origem dos conhecimentos ou
s diversas espcies de evidncia, consoante a diversidade dos objetos
(idealismo, cepticismo, etc.), quer antropolgicos, relativos aos
preconceitos B VII B VIII
39. B IX BX (suas causas e remdios), provm isso do seu
desconhecimento da natureza peculiar desta cincia. No h acrscimo,
mas desfigurao das cincias, quando se confundem os seus limites;
porm, os limites da lgica esto rigorosamente determinados por se
tratar de uma cincia que apenas expe minuciosamente e demonstra
rigorosamente as regras formais de todo o pensamento (quer seja a
priori ou emprico, qualquer que seja a sua origem ou objeto, quer
encontre no nosso esprito obstculos naturais ou acidentais). Que a
lgica tenha sido to bem sucedida deve-se ao seu carcter limitado,
qu a autoriza e mesmo a obriga a abstrair de todos os objetos de
conhecimento e suas diferenas, tendo nela o entendimento que se
ocupar apenas consigo prprio e com a sua forma. Seria naturalmente
muito mais difcil para a razo seguir a via segura da cincia, tendo
de tratar no somente de si, mas tambm de objetos; eis porque,
enquanto propedutica, a lgica apenas como a antecmara das cincias
e, tratando-se de conhecimentos, pressupe-se, sem dvida, uma lgica
para os julgar, mas tem que procurar-se a aquisio destes nas
cincias, prpria e objetivamente designadas por esse nome. O que
nestas h de razo algo que conhecido a priori e esse conhecimento de
razo pode referir-se ao seu objeto de duas maneiras: ou pela
simples I determinao deste e do seu conceito (que dever ser dado
noutra parte) ou ento realizando-o. O primeiro o conhecimento
terico, o segundo o conhecimento prtico da razo. Em ambos, a parte
pura, isto , aquela em que a razo determina totalmente a priori o
seu objeto, por muito ou pouco que contenha, deve ser exposta
isoladamente, sem mistura com o que de outras fontes provm, pois
mau governo despender proventos levianamente, sem que
posteriormente se possa distinguir, quando eles acabam, a parte da
receita que pode suportar as despesas e a parte destas a reduzir. A
matemtica e a fsica so os dois conhecimentos tericos da razo que
devem determinar a priori o seu objeto, a primeira de uma maneira
totalmente pura e a segunda, pelo menos,
40. parcialmente pura, mas tambm por imperativo de outras
formas de conhecimento que no as da razo. Desde os tempos mais
remotos que a histria da razo pode alcanar, no admirvel povo grego,
a matemtica entrou na via segura de uma cincia. Simplesmente, no se
deve pensar que lhe foi to fcil como lgica, em que a razo apenas se
ocupa de si prpria, acertar com essa estrada real, I ou melhor,
abri-la por seu esforo. Creio antes que. por muito tempo (sobretudo
entre os egpcios), se manteve tateante, e essa transformao
definitiva foi devida a uma revoluo operada pela inspirao feliz de
um s homem, num ensaio segundo o qual no podia haver engano quanto
ao caminho a seguir, abrindo e traando para sempre e a infinita
distncia a via segura da cincia A histria desta revoluo do modo de
pensar, mais importante do que a descoberta do caminho que dobrou o
famoso promontrio e a histria do homem afortunado que a levou a
cabo, no nos foi conservada. Todavia, a tradio que Digenes Larcio
nos transmitiu, nomeando o suposto descobridor dos elementos mais
simples das demonstraes geomtricas e que, segundo a opinio comum,
nem sequer carecem de ser demonstrados, indica que a recordao da
mudana operada pelo primeiro passo dado nesse novo caminho deve ter
parecido extremamente importante aos matemticos, tornando-se, por
conseguinte, inolvidvel. Aquele que primeiro demonstrou o tringulo
issceles (fosse ele Tales ou como quer que se chamasse) teve uma
iluminao; descobriu que I no tinha que seguir passo a passo o que
via na figura, nem o simples conceito que dela possua, para
conhecer, de certa maneira, as suas propriedades; que antes deveria
produzi-la, ou constru-la, mediante o que pensava e o que
representava a priori por conceitos e que para conhecer, com
certeza, uma coisa a priori nada devia atribuir-lhe seno o que
fosse conseqncia necessria do que nela tinha posto, de acordo com o
conceito. A fsica foi ainda mais lenta em encontrar a estrada larga
da cincia. S h sculo e meio, com efeito, o ensaio do arguto Bacon
de Verulmio em parte desencadeou e, em parte, pois j dela havia
indcios, no fez seno estimular essa descoberta, que B XI B XII
41. B XIII BXIV tambm s pode ser explicada por uma revoluo
sbita, operada no modo de pensar. Aqui tomarei apenas em considerao
a fsica, na medida em que se funda em princpios empricos. Quando
Galileu fez rolar no plano inclinado as esferas, com uma acelerao
que ele prprio escolhera, quando Torricelli fez suportar pelo ar um
peso, que antecipadamente sabia idntico ao peso conhecido de uma
coluna de gua, ou quando, mais recentemente, Stahl transformou
metais em cal e esta, por sua vez, I em metal, tirando-lhes e
restituindo-lhes algo, * foi uma iluminao para todos os fsicos.
Compreenderam que a razo s entende aquilo que produz segundo os
seus prprios planos; que ela tem que tomar a dianteira com
princpios, que determinam os seus juzos segundo leis constantes e
deve forar a natureza a responder s suas interrogaes em vez de se
deixar guiar por esta; de outro modo, as observaes feitas ao acaso,
realizadas sem plano prvio, no se ordenam segundo a lei necessria,
que a razo procura e de que necessita. A razo, tendo por um lado os
seus princpios, nicos a poderem dar aos fenmenos concordantes a
autoridade de leis e, por outro, a experimentao, que imaginou
segundo esses princpios, deve ir ao encontro da natureza, para ser
por esta ensinada, certo, mas no na qualidade de aluno que aceita
tudo o que o mestre afirma, antes na de juiz investido nas suas
funes, que obriga as testemunhas a responder aos quesitos que lhes
apresenta. Assim, a prpria fsica tem de agradecer a revoluo, to
proveitosa,do seu modo de pensar, unicamente idia de procurar na
natureza (e no imaginar), I de acordo com o que a razo nela ps, o
que nela dever aprender e que por si s no alcanaria saber; s assim
a fsica enveredou pelo trilho certo da cincia, aps tantos sculos em
que foi apenas simples tateio. O destino no foi at hoje to favorvel
que permitisse trilhar o caminho seguro da cincia metafsica,
conhecimento especulativo da razo completamente parte e que se
eleva inteiramente acima das lies da experincia, mediante simples
______________ * No sigo aqui, rigorosamente, o fio da histria do
mtodo experimental, cujos primrdios no so, de resto, bem
conhecidos.
42. conceitos (no, como a matemtica, aplicando os conceitos
intuio), devendo, portanto, a razo ser discpula de si prpria;. ,
porm, a mais antiga de todas as cincias e subsistiria mesmo que as
restantes fossem totalmente subvertidas pela voragem de uma
barbrie, que tudo aniquilasse. Na verdade, a razo sente-se
constantemente embaraada, mesmo quando quer conhecer a priori (como
tem a pretenso) as leis que a mais comum experincia confirma.
preciso arrepiar caminho inmeras vezes, ao descobrirse que a via no
conduz aonde se deseja; e no que respeita ao acordo dos seus
adeptos, relativamente s suas I afirmaes, B XV encontra-se a
metafsica ainda to longe de o alcanar, que mais parece um terreiro
de luta, propriamente destinado a exercitar foras e onde nenhum
lutador pde jamais assenhorear-se de qualquer posio, por mais
insignificante, nem fundar sobre as suas vitrias conquista
duradoura. No h dvida, pois, que at hoje o seu mtodo tem sido um
mero tateio e, o que pior, um tateio apenas entre simples
conceitos. Porque ser ento que ainda aqui no se encontrou o caminho
seguro da cincia? Acaso ser ele impossvel? De onde provm que a
natureza ps na nossa razo o impulso incansvel de procurar esse
caminho como um dos seus mais importantes desgnios? Mais ainda: quo
poucos motivos teremos para confiar na nossa razo se, num dos
pontos mais importantes do nosso desejo de saber, no s nos abandona
como nos ludibria com miragens, acabando por nos enganar! Ou talvez
at hoje nos tenhamos apenas enganado no caminho; de que indcios nos
poderemos servir para esperar, em novas investigaes, sermos melhor
sucedidos do que os outros que nos precederam? Devia pensar que o
exemplo da matemtica e da fsica que, por efeito de uma revoluo
sbita, I se converteram no que hoje so, B XVI seria suficientemente
notvel para nos levar a meditar na importncia da alterao do mtodo
que lhes foi to proveitosa e para, pelo menos neste ponto, tentar
imit-las, tanto quanto o permite a sua analogia, como conhecimentos
racionais, com a metafsica. At hoje admitia-se que o nosso
conhecimento se devia regular pelos objetos; porm, todas as
43. B XVII B XVIII tentativas para descobrir a priori, mediante
conceitos, algo que ampliasse o nosso conhecimento, malogravam-se
com este pressuposto. Tentemos, pois, uma vez, experimentar se no
se resolvero melhor as tarefas da metafsica, admitindo que os
objetos se deveriam regular pelo nosso conhecimento, o que assim j
concorda melhor com o que desejamos, a saber, a possibilidade de um
conhecimento a priori desses objetos, que estabelea algo sobre eles
antes de nos serem dados. Trata-se aqui de uma semelhana com a
primeira idia de Coprnico; no podendo prosseguir na explicao dos
movimentos celestes enquanto admitia que toda a multido de estrelas
se movia em torno do espectador, tentou se no daria melhor
resultado fazer antes girar o espectador e deixar os astros imveis.
Ora, na metafsica, pode-se tentar o mesmo, I no que diz respeito
intuio dos objetos. Se a intuio tivesse de se guiar pela natureza
dos objetos, no vejo como deles se poderia conhecer algo a priori;
se, pelo contrrio, o objeto (enquanto objeto dos sentidos) se guiar
pela natureza da nossa faculdade de intuio, posso perfeitamente
representar essa possibilidade. Como, porm, no posso deter-me
nessas intuies, desde o momento em que devem tornar-se
conhecimentos; como preciso, pelo contrrio, que as reporte, como
representaes, a qualquer coisa que seja seu objeto e que determino
por meio delas, terei que admitir que ou os conceitos, com a ajuda
dos quais opero esta determinao, se regulam tambm pelo objeto e
incorro no mesma dificuldade acerca do modo pelo qual dele poderei
saber algo a priori; ou ento os objetos, ou que o mesmo, a
experincia pela qual nos so conhecidos (como objetos dados)
regula-se por esses conceitos e assim vejo um modo mais simples de
sair do embarao. Com efeito, a prpria experincia uma forma de
conhecimento que exige concurso do entendimento, cuja regra devo
pressupor em mim antes de me serem dados os objetos, por
conseqncia, a priori e essa regra expressa em conceitos a priori,
pelos quais tm I de se regular necessariamente todos os objetos da
experincia e com os quais devem concordar. No tocante aos objetos,
na medida em que so simplesmente pensados pela razo e
necessariamentemas sem poderem
44. (pelo menos tais como a razo os pensa) ser dados na
experincia, todas as tentativas para os pensar (pois tm que poder
ser pensados) sero, consequentemente, uma magnfica pedra de toque
daquilo que consideramos ser a mudana de mtodo na maneira de
pensar, a saber, que s conhecemos a priori das coisas o que ns
mesmos nelas pomos * Este ensaio d resultado e promete o caminho
seguro da cincia para a metafsica, na sua primeira parte, que se
ocupa de conceitos a priori, cujos objetos correspondentes podem
ser dados na experincia conforme a esses conceitos. I Efetivamente,
com a ajuda desta modificao do modo de pensar, pode-se muito bem
explicar a possibilidade de um conhecimento a priori e, o que ainda
mais, dotar de provas suficientes as leis que a priori