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Cultura como direito humano: o fazer a identidade e o Desenvolvimento Criativo Claudio Barría 1 Quando nós falamos em cultura, por vocação ou desvio profissional, por convicção ou habito, estamos falando de cultura, de educação e de diálogos transversais entre grupos, classes, disciplinas, técnicas e metodologias, num contexto de garantia de direitos, que foi o berço do Se Essa Rua. Para começar uma reflexão sobre cultura, educação e diversidade é importante hoje se afastar do conceito de cultura como conceito unívoco, reificado, como objeto que pode se possuir ou não. Não cabe aqui, por espaço e foco do nosso debate, discorrer sobre o processo de surgimento e consolidação do conceito de cultura enquanto categoria ligada ao status social ou bem de consumo. Mas cabe apontar simplesmente que essa determinada concepção de cultura, que começa a surgir no século XVIII, opera como conceito unificador a partir dos interesses de grupos específicos ao interior da sociedade, notadamente os grupos de maior poder econômico e cuja voz soa alto e transita pelos diferentes cantos do mundo como a legítima voz da civilização. É aquela que, volta e meia, ouvimos ser chamada de alta cultura, lugar das expressões mais excelsas do espírito humano. Às outras expressões resta o lugar, também cristalizado, de culturas periféricas. Estas culturas periféricas serão medidas e consideradas como legítimas na medida em que possam se assemelhar aos padrões de expressão definidos pela cultura dominante. Mas não é disso que gostaríamos de falar. Preferiremos nos aproximar do tema em questão a partir da reflexão sobre o nosso próprio fazer, fazer de educadores e fazer de quem faz coletivamente, que, ao mesmo tempo, surge de uma revolta com a sua própria negação enquanto fazer legítimo, enquanto produção humana. Esta particular opção, mais do que uma tentativa arrogante de desprezar a reflexão abstrata e suas conceituações sobre as diversas formas da prática humana, desenvolvida a partir do privilegiado lugar de um observador neutro, é para nós, de um modo muito diferente, um imperativo ético e político: uma necessidade. 1 Arte-Educador, músico, Mestre em Educação pela Universidade Federal Fluminense – UFF, Atualmente atua como professor na FFP/UERJ e como Coordenador de Projetos da ONG Se Essa Rua Fosse Minha e representante do Circo Social na Câmara Setorial de Circo, parte do Sistema Nacional de Cultura.

Cultura como Direito humano, o fazer a identidade e o desenvolvimento criativo

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Artigo reflete a perspectiva do trabalho com arte e juventude de classes populares na perspectiva das tranformações que vive a sociedade hoje.

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Cultura como direito humano: o fazer a identidade e o

Desenvolvimento Criativo

Claudio Barría1

Quando nós falamos em cultura, por vocação ou desvio profissional, por convicção ou habito,

estamos falando de cultura, de educação e de diálogos transversais entre grupos, classes,

disciplinas, técnicas e metodologias, num contexto de garantia de direitos, que foi o berço do

Se Essa Rua. Para começar uma reflexão sobre cultura, educação e diversidade é importante

hoje se afastar do conceito de cultura como conceito unívoco, reificado, como objeto que

pode se possuir ou não. Não cabe aqui, por espaço e foco do nosso debate, discorrer sobre o

processo de surgimento e consolidação do conceito de cultura enquanto categoria ligada ao

status social ou bem de consumo. Mas cabe apontar simplesmente que essa determinada

concepção de cultura, que começa a surgir no século XVIII, opera como conceito unificador a

partir dos interesses de grupos específicos ao interior da sociedade, notadamente os grupos de

maior poder econômico e cuja voz soa alto e transita pelos diferentes cantos do mundo como

a legítima voz da civilização. É aquela que, volta e meia, ouvimos ser chamada de alta

cultura, lugar das expressões mais excelsas do espírito humano. Às outras expressões resta o

lugar, também cristalizado, de culturas periféricas. Estas culturas periféricas serão medidas e

consideradas como legítimas na medida em que possam se assemelhar aos padrões de

expressão definidos pela cultura dominante.

Mas não é disso que gostaríamos de falar. Preferiremos nos aproximar do tema em questão a

partir da reflexão sobre o nosso próprio fazer, fazer de educadores e fazer de quem faz

coletivamente, que, ao mesmo tempo, surge de uma revolta com a sua própria negação

enquanto fazer legítimo, enquanto produção humana. Esta particular opção, mais do que uma

tentativa arrogante de desprezar a reflexão abstrata e suas conceituações sobre as diversas

formas da prática humana, desenvolvida a partir do privilegiado lugar de um observador

neutro, é para nós, de um modo muito diferente, um imperativo ético e político: uma

necessidade.

1 Arte-Educador, músico, Mestre em Educação pela Universidade Federal Fluminense – UFF, Atualmente atua como professor na FFP/UERJ e como Coordenador de Projetos da ONG Se Essa Rua Fosse Minha e representante do Circo Social na Câmara Setorial de Circo, parte do Sistema Nacional de Cultura.

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Assim, entendemos nosso fazer de educadores e a nossa prática artística e cultural como um

fazer historicamente ligado ao lugar que ocupamos como coletividade no mundo, carregando

nele nossas contradições, nossas necessidades e nossa revolta, e de onde surge sua própria

legitimidade enquanto fazer propriamente humano. Esta colocação traz implícita uma questão

de identidade que não pode ser resolvida a partir da idéia de identidade como unidade

simbólica unificadora anterior aos sujeitos e ao seu fazer social (como os símbolos pátrios, ou

mesmo a idéia de raça2 ou nação3, por exemplo), mas a partir de elementos simbólicos cujo

referente de materialidade são condições objetivas que historicamente dão unidade a

determinados grupos sociais, relacionadas tanto ao seu fazer social como às representações

(fator subjetivo) sociais desse fazer.

Este fazer social que depende a cada passo do fazer de outros antes de nós é, portanto, um

fluxo social de fazer. O fluxo do fazer é essencialmente histórico e coletivo, mesmo no caso

específico do fazer de um artista, por exemplo, que senta para escrever os versos de uma

canção, colocando no papel suas idéias mais profundas, pois desde o papel e a caneta - ou o

computador e a impressora - até a sua própria maneira de ver o mundo, estão atravessados

aqui e ali pelo fazer de outros antes dele. Todavia, esse modo de entender o nosso fazer e a

nossa criação, não se encontram, não se desenvolvem em algum não-lugar. Pelo contrário têm

como campo fértil o nosso lugar no mundo, alimentam-se das dores e alegrias do dia-a-dia,

carregando, por isso, a particular visão do ponto a partir do qual olhamos o mundo. “A cabeça

pensa onde os pés fincam”, dizia-nos Paulo Freire, e é justamente esse compromisso com a

realidade específica que nos toca viver e com os interesses, necessidades e legítimas revoltas

dos nossos, o que faz com que o nosso fazer criador não seja, nem possa ser em momento

algum, um fazer neutro e abstrato, como se pretende o fazer da chamada alta cultura.

É importante apontar que essa determinada concepção que concebe a existência de uma alta

cultura, traz implícita a suposição de uma sociedade “livre” onde o acesso tanto à fruição

2 O surgimento do conceito de raça se encontra ligado ao processo de colonização da América e, assim, à idéia de colonização/civilização dos povos, que acompanhou a expansão dos mercados europeus e colocou a Europa como centro e paradigma da civilização ocidental. Ver Quijano, Anibal, Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina, in Edgardo Lander (comp.), La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales.

Perspectivas latinoamericanas, Buenos Aires: CLACSO, 1993. 3 Segundo Chaui, “Sendo a sociedade capitalista fundada numa divisão interna que efetua sua identidade pela

contradição das classes, a representação da identidade como unidade e não-contradição pede pólos nos quais a

imagem unificadora possa assentar-se. Esses pólos são o povo, a nação e o Estado enquanto representações ou

abstrações que produzem um imaginário social de identificação e o ocultamento da divisão social como luta de

classes.”. ver CHAUÍ, Marilena, considerações sobre o nacional-Popular, in Cultura e Democracia. São Paulo: Cortez editora, 2003.

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cultural quanto à produção legitimamente reconhecida como tal, está aberto a todos os

sujeitos segundo o desenvolvimento de suas próprias capacidades e/ou competências. Esta

concepção desconhece todas as mediações sociais que permitem ou não determinados acessos

a informações e práticas sociais específicas, bem como desconhece os mecanismos de

distinção implícitos nas representações sociais de grupos e classes dentro da sociedade,

negando também, de modo inverso e paradoxal, a capacidade do homem de produzir e criar

de modo relativamente autônomo aos próprios mecanismos de distinção social estabelecidos

pelas produções simbólicas dominantes na sociedade.

Em outras palavras, é esse mecanismo de dominação simbólica, social e historicamente

estabelecido, o que permite o surgimento de discursos que desconsideram o potencial criador

e inclusive a própria subjetividade das classes populares: não haveria nelas formas

diversificadas de percepção do real, nem produções simbólicas profundas cuja matriz

responde a códigos desconhecidos pela cultura dominante, mas pura e simples ignorância.

Conhecer o mundo, sabê-lo e aceder à fruição das produções culturais da humanidade é

fundamental para a apropriação do mundo como um todo e para o estabelecimento de

qualquer tipo de “diálogo transversal”. Contudo, as formas de transmissão desses

conhecimentos, seja na escola, na família, na comunidade ou na mídia, nunca se dão de modo

isento, nunca desprovidos de um discurso que carregue a idéia da legitimidade e/ou

superioridade de determinadas produções simbólicas, de determinados saberes, de

determinadas “culturas”.

Durante os anos em que desenvolvemos trabalhos em arte educação junto a crianças e jovens

de classes populares, percebemos o imenso potencial criativo dos meninos e meninas das

comunidades, ao mesmo tempo em que podíamos constatar a quase nula possibilidade de dar

vazão a toda essa criatividade, bem como o não raro preconceito com relação a diversas

formas de expressão cultivadas por eles. Do mesmo modo, nossa experiência junto a essa

garotada e suas famílias, nos mostrou uma realidade totalmente diferente da visão que

costuma se ter dos chamados setores ‘excluídos’ ou ‘carentes’: um enorme potencial humano

de criatividade e de valores de pertencimento social permite não apenas a subsistência, mas a

resignificação da vida, dando dignidade à vida dessas pessoas. Esta questão adquire enorme

importância para a sociedade moderna, perante a crise do processo civilizatório, crise de

representações e valores, mas também de deterioro do próprio tecido social, que vem

colocando urgentes desafios para intelectuais e governantes. Porém, a importância que

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apontamos não está dada no sentido de uma busca romântica da cultura dos excluídos, mas

porque os saberes dos grupos, culturas e classes sociais na subalternidade, são, na verdade, o

anverso da medalha do processo civilizatório e da razão moderna, razão infiltrada não apenas

na racionalidade científica como forma única de apreender o mundo, mas no cotidiano das

relações e das formas sociais. São o outro historicamente inventado pelo pensamento social

moderno e seu inseparável viés de colonialidade.4

Por outro lado, no contexto globaritário5, que vai da subordinação dos Estados à lógica

globalizada do capital até a forma de circulação das idéias e das mercadorias -incluídos aqui

os bens culturais sob o discurso de um multiculturalismo homogeneizante-, surgem na

contramão novos atores sociais, lutas sociais de longa tradição local que se reinventam em

seus discursos e nas relações estabelecidas entre seus fazeres e os projetos globais em que se

encontram imbuídos. A liminariedade dessas práticas -definidas na sua complexa relação

entre a hegemonia e a contra-hegemonia política, social e cultural, mas que vão mais além

atravessando a própria lógica da racionalidade do sistema mundo moderno/colonial-, bem

como do pensamento social que intrinsecamente carregam, recoloca não só projetos locais de

luta pela universalização/garantia de direitos e pelo reconhecimento de determinadas formas

de expressão cultural, isto é, não apenas a necessidade do reconhecimento da diversidade

cultural, mas vem recolocando o debate sobre as matrizes de uma racionalidade não

eurocêntrica. Uma das questões colocadas no debate sobre o estado atual desse processo de

reconstrução simbólica é justamente a questão da sua totalização mediante a necessária

articulação dos processos particulares/locais e fragmentados. Esta tarefa aparece como

fundamental tanto para a efetivação de cada experiência de resistência local quanto para a

compreensão do seu lugar perante o processo globalizante que vive o mundo hoje. De

qualquer maneira, seja na experiência do Circo Social, como em experiências efetivas de luta

política de movimentos sociais e de organização social de grupos na subalternidade, como

algumas experiências locais dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, aqui no próprio Estado do

Rio de Janeiro, ou as experiências de construção de cidadania dos povos originários no sul do

4 QUIJANO, in LANDER, Op. Cit. 5 SANTOS, Milton (2000) utiliza o conceito de Globalitarismo, diferentemente do de Globalização, para marcar seu caráter de projeto. Nas suas palavras, “estou querendo chamar

a atenção para o fato de que a atual globalização exclui a democracia. A Globalização é, ela

própria, um sistema autoritário”. O utilizamos aqui, pois denota o caráter de imposição de políticas públicas não apenas na economia mas também sobre políticas sociais e culturais nacionais e locais, que devem se reordenar com arranjo a orientações de organismos internacionais que têm no discurso da Globalização seu principal referente.

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México, entre outras, encontramos nelas formas efetivas e emergentes de uma racionalidade

outra que contribui efetivamente para pensarmos a nossa realidade social com os nossos

próprios olhos. Cabe se perguntar então pelo espaço que, nas nossas práticas e nas políticas é

dado ao surgimento e consolidação desse tipo de experiência instauradora.

Aquele conjunto de valores, relações e criatividade do qual falávamos anteriormente,

configuram parte importante do complexo e dinâmico mapa da cultura das classes populares

do Brasil, constituindo a base para desenvolvimento de formas alternativas e sustentáveis de

geração de renda e organização social. Isso que, por aproximação, aqui chamamos de

complexo e dinâmico mapa da cultura das classes populares do Brasil, é, de fato, totalmente

desconhecida, quando não negada na sua forma e no seu conteúdo, nos espaços considerados

como vitais para a formação dos sujeitos dentro da ordem social: a escola e, por que não dizer,

a mídia. Alguns poderão argumentar que esse desconhecimento apontado é relativo e talvez

inexistente, posto que a cada momento encontramos programas de televisão, por exemplo, que

nos falam de cultura popular ou reportagens ‘muito bem intencionadas’ que mostrar projetos

sociais e o fazer artístico e cultural dos pobres. Contudo, o que costumamos ver na mídia,

longe de serem pontes de aproximação real e comprometida, base para qualquer diálogo

frutífero, são imagens dissociadas do processo de sua elaboração e do significado último que

possuem para o grupo que as produziu, apresentadas dentro de um contexto construído por um

discurso cujos objetivos, interesses e pertinência, pouco ou nada têm a ver com o fato exposto

aos telespectadores. Já na escola, de um modo geral, aprendemos desde cedo que existe a arte,

geralmente vedada a nossa compreensão e praticada por pessoas sensíveis e importantes que

circulam pelos grandes salões do mundo; uma chamada arte popular, da qual conheceremos

algumas expressões e cuja forma é previamente definida e, por outro lado, as manifestações

regionais e folclóricas, as que poderemos praticar de um modo distanciado, visto que se trata

de vestígios de algo morto, do mesmo modo que podemos imitar a construção de jarras de

antigas tribos no museu.

As nossas reflexões, desenvolvidas durante mais de uma década ao calor da prática de

educação popular através da arte, vêm nos alertando para a importância do papel da cultura

num processo de reconstrução da cidadania, sua centralidade nos processos de integração e

transformação social e, sobretudo, para o entendimento da cultura como base de qualquer

projeto de desenvolvimento local sustentável. Nesse sentido, compreendendo a cultura “como

eixo construtor das identidades, como espaço privilegiado de realização da cidadania e,

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também, como fato econômico gerador de riquezas”.6 A capacidade de produzir elementos

simbólicos (músicas, obras plásticas, encenações as mais diversas, textos e discursos) como

expressão clara de uma cultura viva, própria, tem sem dúvida, um necessário alicerce na

história de cada grupo ou comunidade. Contudo, não se restringe ao puro e simples resgate

histórico das expressões artísticas passadas, mas passa necessariamente pela capacidade real

de poder continuar transformando esses elementos, somando a eles todos aqueles que fazem

parte da vida das novas gerações. Esta perspectiva, para além de resgatar o direito desses

jovens à gestão da sua própria riqueza cultural, fortalecendo seu capital cultural e as

condições da sua constante e necessária transformação, permite criar e reconstruir práticas

educativas de integração social, essenciais para o desenvolvimento desses meninos e meninas,

bem como estimular o protagonismo dos mesmos no estímulo à participação social das

comunidades no debate sobre elaboração de políticas públicas. Do mesmo modo, e como

sujeitos críticos, poder fazer da sua criatividades uma forma de recriar o mundo social cultural

e economicamente falando.

O trabalho com arte, cultura e educação junto aos setores mais golpeados pelas injustas

estruturas sociais do país, para além de ser entendido como trabalho social, de caráter

assistencial, deve necessariamente ser pensado como um projeto emancipatório,

desenvolvendo uma ação atenta e sustentada nos saberes, necessidades e potencialidades da

comunidade, fortalecendo, ao mesmo tempo, a capacidade de intervenção protagonista dos

seus jovens. Para tal, é fundamental sair do lugar do eu ajudo ele, ou eles, mas assumir o

nosso lugar num fazer conjunto, partir do nós. Esse “partir do nós”, do qual falamos, longe de

ser um eufemismo retórico, significa assumir o lugar do nosso fazer coletivo, comprometido

com a idéia de uma sociedade que, se bem não sabemos a priori o que virá a ser exatamente,

porque será o fruto desse fazer coletivo, surge indissoluvelmente da necessidade de uma

realidade vivenciada, sendo portanto, diferente dela.

Aprendemos na nossa prática e professamos na metodologia do Circo Social que as técnicas

circenses são ferramentas privilegiadas no diálogo pedagógico para o desenvolvimento da

auto-estima, do saber cuidar, da concentração, do vencer medos e enfrentar desafios, do

desenvolvimento corporal como estratégia de resistência, mas é isto suficiente? O

desenvolvimento autônomo das crianças e jovens é composto, ao igual que qualquer aspecto

6 GIL, Gilberto, Ministro de Estado da Cultura, in CANCLINI, Nestor G. et al, “Políticas culturais para o

desenvolvimento,uma base de dados para a cultura”, UNESCO Brasil, Brasília, 2003, p. 9.

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da vida social, de elementos materiais e simbólicos. Mas, de que modo estamos contribuindo

para a interação desses elementos?

Ou melhor, no contexto de uma sociedade que tem naturalizado a desigualdade social, o

desemprego, a criminalização das classes populares e que tem colocado o consumo como

única alternativa de identificação para os jovens, mesmo para os que não possuem quase

nenhum acesso efetivo aos bens de consumo material ou simbólico, no contexto de uma

sociedade que estruturalmente exclui, para depois incluir de modo perverso, é possível

levantar propostas de autonomia para os jovens de classes populares sem nos questionarmos

pelo lugar dado a esses jovens nessa sociedade? Qual o papel da identidade, então, nesse

contexto? Qual o papel último da arte e da cultura nessa perspectiva? Qual a relação disso

tudo com a necessidade de um verdadeiro desenvolvimento criativo? A Socióloga e

pesquisadora da Unesco Mary Garcia Castro, levanta em recente debate sobre Cultura,

Política e Direitos7, outro questionamento central: a quem interessa o debate sobre

identidade? E aponta: “os ricos, os poderosos, os brancos não falam em identidade. De fato

quem fala em identidade são os negros, as mulheres, os homossexuais, os grupos na

subalternidade.” e acrescenta, “em que medida é mais importante o ser, ou questionar o que se

é permitido ser? Se a questão é a criatividade, e se nós estamos falando em cultura, creio que

além dos limites do poder e da falta de acesso ao que existe, há que também propor o debate

sobre a criatividade. Se estivermos jogando assim o direito à criatividade, o direito à

possibilidade de vir a ser criativo, o que se questiona é o direito à possibilidade de vir a

inventar identidades, a desidentificação”.

Essas reflexões colocam para nós a relação entre Justiça social e justiça cultural. Para além da

necessária luta por justiça social como direito à igualdade, colocamos a questão da Justiça

cultural e a luta pelo direito à diferença, pelo direito a criar novas identidades sociais

transformadoras. Sem a conquista das condições necessárias para se atingir este direito, cuja

base está diretamente ligada à possibilidade de um Desenvolvimento Criativo -isto é, na

compreensão da indissolubilidade dos direitos econômicos, sociais e culturais-, o trabalho

com arte e cultura para a transformação e para a cidadania passa a aparecer como um

eufemismo, cujas implicações últimas não afastarão esses jovens de uma vida pré-

condicionada à subalternidade desumanizada. O ser humano é por definição um criador, um

7 Garcia C. Mary, A quem interessa o debate sobre identidade? In Teixeira Coelho e outros, Cultura, Política e

Direitos, UNESCO, Sesc, Faperj, RJ, 2002.

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transformador, e sua capacidade de transformar está intrinsecamente ligada ao seu ser social,

dele enquanto sujeito coletivo. Tirar de um grupo social (classe, etnia ou nação), o valor e a

função social da sua própria produção artística, é condená-lo à dependência em todas as suas

formas. Trabalhar pelo fortalecimento de espaços de criação livre, entregando elementos que

sirvam de subsídio para uma leitura crítica dos códigos culturais recebidos cotidianamente, é

fortalecer sua capacidade emancipatória. Somente sujeitos verdadeiramente emancipatórios,

integrados ao fluxo social do fazer, poderão fazer parte de um diálogo transversal justo e

transformador, desmascarando a dominação.