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Cultura Jornal Angolano de Artes e Letras ʹͶ ʹͲͳͺ ȁ ͳͷͻ ȁ Ȉ ǣ ± À Ȉ ͷͲǡͲͲ O CASO ANGOLANO DE MANUEL RUI ORATURA NAS GEOGRAFIAS IBERÓFONAS LETRAS Pág. 6 a 9 Numa época em que a moda para a juventude são os “Sunset” ou os “Arejos”, vibrando toda a adrenalina do “Kuduro”, “Afro-house” e de outros ritmos, os apreciadores reviveram o som de temas marcantes da chamada era dourada da música nacional, com o Conjunto Angola 70. Pág. 11 ECO DE ANGOLA ASSIMILADOS VERSUS BANTU Pág. 3 e 4 Quando queremos ler o nosso dia-a-dia é inevitável que queiramos saber quais são as nossas origens. Este conflito do nosso foro íntimo é remetido, ciosamente, para os bastidores da História. Para um palco cuidadosamente reser- vado a iniciados e suficiente- mente isolado para que o “mundo real oficial” não possa ser contaminado. O século XV abriu “novos” mundos a Portugal e Espanha e deu início ao colonialismo que viria, do século XVII em diante, a ser global. A oratura é uma arma utilizada pelos povos ex-colonizados para o resgate e afirmação de culturas e tradições. Em Angola, o escritor Manuel Rui é modelar nessa capacidade de retransformar o texto literário. CONJUNTO ANGOLA 70 JUNTA ENTUSIASTAS DA MÚSICA ANGOLANA Cult tur ra ʹͶ C Jornal Angolano de Artes e Letras ʹͲͳͺ ȁ ͳͷͻ ȁ ult Jornal Angolano de Artes e Letras Ȉ ǣ ± tur Jornal Angolano de Artes e Letras À Ȉ ra Jornal Angolano de Artes e Letras ECO DE ANGOLA Ͳ Ͳ ǡ Ͳ ͷ ECO DE ANGOLA e 4 3 Pág. BANTU ECO DE ANGOLA VERSUS ASSIMILADOS queir dia é inevitá dia-a- uando quer Q BANTU ECO DE ANGOLA VERSUS ASSIMILADOS amos saber quais são as e 4 el que v dia é inevitá emos ler o nosso 3 taminado on ser c eal oficial mundo r e isolado par t men ado a iniciados e suficien v o cuidadosamen palc es da H bastidor , ciosamen emetido r o ín or do nosso f igens nossas or amos saber quais são as queir . taminado não possa eal oficial a que o e isolado par - e t ado a iniciados e suficien - eser e r t o cuidadosamen a um ar ia. P ór ist es da H a os , par e t , ciosamen timo é o ín o onflit e c . Est igens amos saber quais são as URA NAS GEOGRAFIAS IBERÓFONAS ORAT O CASO ANGOLANO URA NAS GEOGRAFIAS IBERÓFONAS O CASO ANGOLANO URA NAS GEOGRAFIAS IBERÓFONAS O CASO ANGOLANO URA NAS GEOGRAFIAS IBERÓFONAS O CASO ANGOLANO URA NAS GEOGRAFIAS IBERÓFONAS O CASO ANGOLANO ARTES DE MANUEL RUI O CASO ANGOLANO 11 Pág. Rui é modelar nessa capacidade de r a o r olonizados par c - x e VII em dian do século X no iu V abr O século X DE MANUEL RUI O CASO ANGOLANO mar o t or ansf etr Rui é modelar nessa capacidade de r mação de cultur e e afir t esga a o r a é uma ar tur a . A or , a ser global e t VII em dian tugal e Espanha e deu início ao c or mundos a P os v no DE MANUEL RUI O CASO ANGOLANO . io ár er o lit t x e mar o t ngola, o escr . Em A ões adiç as e tr mação de cultur ma utilizada pelos po a é uma ar olonialismo que vir tugal e Espanha e deu início ao c DE MANUEL RUI O CASO ANGOLANO anuel or M it ngola, o escr os v ma utilizada pelos po ia, olonialismo que vir O CASO ANGOLANO ARTES MÚSICA ANGOLANA 11 ENTUSIASTAS DA 70 JUNTA CONJUNTO ANGOLA MÚSICA ANGOLANA ENTUSIASTAS DA 70 JUNTA CONJUNTO ANGOLA MÚSICA ANGOLANA CONJUNTO ANGOLA onjun om o C , c nacional es da chamada er t can mar es r eciador , os apr itmos r , o udur “K enalina do adr ou os “Sunset famosos Numa época em que a moda par ngola 70. o A t onjun ada da música a dour es da chamada er emas am o som de t er eviv es r os e de outr -house o fr A , oda a ando t , vibr ejos r A ou os tude são os en a a juv Numa época em que a moda par tude são os

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CulturaJornal Angolano de Artes e Letras

O CASO ANGOLANO DE MANUEL RUI

ORATURA NAS GEOGRAFIAS IBERÓFONAS

LETRAS Pág.6 a 9

ARTES

Numa época em que a moda para a juventude são os famosos “Sunset” ou os “Arejos”, vibrando toda a adrenalina do “Kuduro”, “Afro-house” e de outros ritmos, os apreciadores reviveram o som de temas marcantes da chamada era dourada da música nacional, com o Conjunto Angola 70.

Pág.11

ECO DE ANGOLA

ASSIMILADOS VERSUS BANTU

Pág.3 e 4

Quando queremos ler o nosso dia-a-dia é inevitável que queiramos saber quais são as nossas origens. Este con�ito do nosso foro íntimo é remetido, ciosamente, para os bastidores da História. Para um palco cuidadosamente reser-vado a iniciados e su�ciente-mente isolado para que o “mundo real o�cial” não possa ser contaminado.

O século XV abriu “novos” mundos a Portugal e Espanha e deu início ao colonialismo que viria, do século XVII em diante, a ser global. A oratura é uma arma utilizada pelos povos ex-colonizados para o resgate e a�rmação de culturas e tradições. Em Angola, o escritor Manuel Rui é modelar nessa capacidade de retransformar o texto literário.

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2 | ARTE POÉTICA 24 de Abril a 7 de Maio de 2018 | Cultura

Propriedade

Sede: Rua Rainha Ginga, 12-26 | Caixa Postal 1312 - Luanda Redacção 222 02 01 74 |Telefone geral (PBX): 222 333 344Fax: 222 336 073 | Telegramas: ProangolaE-mail: [email protected]

Normas editoriais

O jornal Cultura aceita para publicação artigos literário-científicos e re-censões bibliográficas. Os manuscritos apresentados devem ser originais.Todos os autores que apresentarem os seus artigos para publicação aojornal Cultura assumem o compromisso de não apresentar esses mesmosartigos a outros órgãos. Após análise do Conselho Editorial, as contribui-ções serão avaliadas e, em caso de não publicação, os pareceres serãocomunicados aos autores.

Os conteúdos publicados, bem como a referência a figuras ou gráficos jápublicados, são da exclusiva responsabilidade dos seus autores.

Os textos devem ser formatados em fonte Times New Roman, corpo 12,e margens não inferiores a 3 cm. Os quadros, gráficos e figuras devem,ainda, ser enviados no formato em que foram elaborados e também numficheiro separado.

Conselho de Administração

Victor Silva (presidente)

Administradores Executivos

Caetano Pedro da Conceição Júnior

José Alberto Domingos

Carlos Alberto da Costa Faro Molares D’Abril

Mateus Francisco João dos Santos Júnior

Administradores Não Executivos

Olímpio de Sousa e Silva

Catarina Vieira Dias da Cunha

CulturaJornal Angolano de Artes e Letras

Nº 159/Ano VI/ 24 de Abril a 7 de Maio de 2018E-mail: [email protected]: www.jornalcultura.sapo.aoTelefone e Fax: 222 01 82 84

CONSELHO EDITORIAL

Director e Editor-chefe:José Luís MendonçaEditores:Adriano de Melo e Gaspar MicoloSecretária:Ilda RosaFotografia:Paulino Damião (Cinquenta)Arte e Paginação: Jorge de Sousa,Alberto Bumba e Sócrates SimónsEdição online: Adão de Sousa

Colaboram neste número:Angola: Analtino Santos, Eugénia Kossi, FranciscoNeto, Imanni Da Silva, Lito Silva, Mário Pereira, PedroÂngelo

Brasil: Samuel da Costa

Portugal: Luís Mascarenhas Gaivão

FONTES DE INFORMAÇÃO GLOBAL:

AFREAKAAFRICULTURES, Portal e revista de referênciaAGULHACORREIO DA UNESCOMODO DE USAR & CO. OBVIOUS MAGAZINE

Não há uma só gota de sangue Em cada poema...Somente o ruído das máquinasQue gritam o teu nome…Não há uma só gota de sangueEm cada poema…É a tua voz A gritar o meu nomeEm horas impróprias...São as tuas mãos a vagar Pelo meu corpo

Não há uma só gota de sangue Em cada poema…Às vezes...Fico a noite a te fitarE em meus pensamentos...Estou só!Na solidão a dois...E a dor que não passa...É ferida que não sara...Samuel da Costa é poeta em Itajaí

SAMUELDA COSTA

SURTO MODERNISTA

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A QUESTÃOQuando queremos ler (com-preender) o nosso dia-a-dia éinevitável que queiramos sa-ber quais são as nossas origens. Esteconflito do nosso foro íntimo é remeti-do, ciosamente, para os bastidores daHistória. Para um palco cuidadosa-mente reservado a iniciados e sufi-cientemente isolado para que o “mun-do real oficial” não possa ser contami-nado. Um espaço que semantize umlimbo estranho à realidade e distantedo que importa à vida das pessoas, on-de se discuta, assepticamente,a nossamatriz cultural.Temos muito orgulhoem sermos filhos de África porque é “oberço da humanidade”. Num texto pu-blicado neste jornal no nº 154 traze-mos uma fala de Ki-Zerbo, em váriasocasiões citada, que nos diz que “a me-nos que optássemos pela inconsciênciaou alienação, não poderíamos viversem memória ou com a memória dooutro”.Somos qualquer coisa, lá isso so-mos porque das suas origens ninguémpode ser, mesmo que queira, separa-do,mas o que somos é assumido silen-ciosamente, envergonhadamente.O PATRIMÓNIO MATERIALNum texto, ainda no prelo, respiga-mos duas passagens que colocam àapreciação o património construído.No texto 1 tropeçamos num monu-mento funerário próprio das culturasmegalíticas registadas por Redinha nasua carta cultural editada em Etnias eCulturas de Angola. No texto 2 encon-tramos, no coração da Quilenda, oumelhor no extremo Sudeste do seuterritório, ruínas duma construçãoque terá sido um estaleiro que baseouas primeiras edificações que iriam darorigem à Gabela.

Texto 1:“Esse chefe que a tradição conhe-ce como Kimburi ou Kinguri, (Nga-na Mburi) estacionou no alto domorro do Capilo, olhou atrás, olhouem frente, olhou à direita, olhou àesquerda e disse:– “O muno mopilu piluylamo uphelawami”. “Aqui se vira e vai-se virar omeu sobado. Aqui.”Nesse mesmo sítio existe um monu-

mental túmulo megalítico circular, di-vidido em quatro sectores circulares,que ainda há relativamente poucotempo era alvo de peregrinações edevoções mas que hoje se encontraabandonado e completamente imer-gido pela floresta circundante. Perto,mas na base do morro do Capilo estáum outro grande túmulo que segun-do a tradição se destinou a Kandon-du, irmão de Ngana Mburi.”A Quilen-da. Textos da Escrita e da Oralidade;Convergências, p. 20Texto 2:“No território da Kasuswa, na Kipe-ta, pode ver-se ruínas de um antigoentreposto de contratados assimiladoà fundação do povoado da Gabela.– Na Kipeta chegou um branco quepedia ao soba filhos para a renda. O so-ba a princípio foi mandando jovens daBanza recrutados nos bairros pois arenda era um tributo que se pagavaem trabalho. As mães começaram aqueixar-se porque nem todos regres-savam e então o soba, pressionado pe-las mamãs, para por fim a esse tributo,em vez de filhos enviou uma seta emsinal de protesto. Este sinal de resis-tência levou a que houvesse um con-fronto vigoroso em Wangulungu quefez com que fosse abandonado esseentreposto, que era mais como uma

prisão onde pernoitavam os homensda renda.”A Quilenda. Textos da Escri-ta e da Oralidade; Convergências, p. 19O texto 1 fala-nos, pela boca de Nga-na Ngwangwa, de uma construçãodoséc. XVII,de um património construí-do que nos remete para a recuperaçãoda memória bantu. O texto 2, guiados pelo mesmo Nga-na Ngwangwa, leva-nos às ruínas deuma construção do início do séc XXque nos recupera a memória de umtempo em que o protagonismo já não ébanto mas da penetração portuguesano interland do Amboim.O PATRIMÓNIO IMATERIALA figura 1 é uma fotografia de 1958retirada de Redinha, Etnias e Culturasde Angola, e repre-senta um soba daregião dos Dembos com o seu gorrodistintivo de chefe e de manufacturaritual local. A figura 2 é uma fotografia actuale representa um soba da região daQuilenda.A figura 3 representa um soba cok-we e é uma fotografia de 1945 retiradade Redinha, Etnias e Culturas de Ango-la. Como símbolos do seu poder reco-nhece-se o seu manto ou mukambo.Ao ombro tem o machadinho de para-

da, mundambala e à cinta o cindalu oubainha pregueada para facas, de acor-do com a sua hierarquia.Ngana Ngwangwa, um soba de umadas Banzas da Quilenda, ouvido pornós, discorre assim sobre a legitima-ção do Poder Tradicional:– Anualmente os sobas reunidosnas suas jimbanza fazem uma peregri-nação ao malombe (museu).O termo malombe nomeia o sítiosagrado onde repousam os artefac-tos totémicos que susten-tam a coe-são clânica da população afecta àmbanza. A esse local chama-se emportuguês museu. Propus a retrover-são para mausoléu mas foi-me expli-cado que o local não tem nada a vercom o repouso dos restos mortaisdos sobas falecidos pelo que esse no-me criaria ambiguidades que ensom-brariam o seu significado. A peregrinação anual ao museu co-meça com o envio de um recado (mu-kanda), a partir da Mbanza, a convocartodos os sobas e makota (mais velhosconselheiros) para o dia aprazado.Todos os convocados devem apre-sentar-se em jejum. As vitualhaspara a confecção dos ali-mentos sãoreservadas antecipadamente naMbanza onde um dos auxiliares doSoba (Oleyi) se encarrega de verrespeitado todo o procedimentoexigido para tal fim.Esse auxiliar do soba chama-seOleyi. Tem de ser homem e de linha-gem própria. É ele que recebe a comi-da da cozinha para servir o Soba que éo anfitrião da cerimónia. É também oOleyi que dirige a lavagem dos utensí-lios usados na distribuição da refeiçãoe ele próprio lava o prato do Soba queé feito de fibra de palmeira (como oscestos, as quindas).– É verdade, tem o próprio que prepa-ra a comida e lava o prato do Soba, «Oleyimutata opeka udya kwa soba. O owowangwana o maluvu, o mapya, o mathuowo sukula malonga (pratos de fibra depalmeira)» – explicou Ngwangwa.Então, no dia aprazado, os sobas eos seus conselheiros dirigem-se parao Museu, em jejum e assim se man-têm enquanto lá estiverem. É feita achamada a todos os sobas que um aum vão respondendo confirmando asua presença no acto. Cada soba échamado não pelo seu nome civilmas pelo nome do ancestral que deuorigem à linhagem.

ASSIMILADOS VERSUS BANTU

ECO DE ANGOLA | 3Cultura | 24 de Abril a 7 de Maio de 2018

PEDRO ÂNGELO EUGÉNIA KOSSI

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Em tempos estas peregrinações aoMuseu repetiam-se dentro de prazosfixos e sempre que algo extraordináriosurgisse perturbando a vida das popu-lações da mbanza. Algo como epi-de-mias ou catástrofes naturais.Os sobas ao saírem dessas reu-niões levavam consigo o fogo usadona assentada e junto dos seus filhos(a população da sua comunidade), re-produziam-no, fazendo que todoseles, um a um, fossem defumados poresse fogo como forma de afastar osmindele(almas pena-das)responsá-veis pelo mau estar. O auxiliar do soba encarregadodesse ritual é o Kambari que partici-pa na cerimónia do malombe levan-do consigo uma corda da qual, maistarde, faz réplicas pequenas que sãoamarradas no pulso das pessoasquando estas passam por cima dascinzas que resultaram do fogo doMuseu que se activou no jango. Concluída a cerimónia, os compo-nentes do cortejo regressam à Mban-za e são convidados do Soba para serestaurarem antes de cada um re-gressar às suas actividades diáriasjunto dos seus filhos.A peregrinação ao Museu é funda-mental para que se renove a legitimida-de da autoridade assumida pelo podertradicional e este não se esvazie já que éo reconhecimento e a homenagem aosantepassados que justifica e funda-menta esse poder (e é a sua fonte).Os princípios da legitimidade dopoder são, o princípio aristocrático-monárquico, o princípio democrático-electivo e o princípio hereditário. Es-tes princípios desembocam respecti-vamente em três tipos puros de domí-nio legítimo: a legitimidade carismáti-ca, a legitimidade racional e a legitimi-dade tradicional. Em Angola o poder éassegurado por duas legitimidades, alegitimidade racional (eleições) e atradicional, ambas garantidas pelaConstituição da República de Angola.(O poder tradicional é reconhecidopela Constituição da República de An-gola nos artigos 223º, 224º e 225º.).O poder, ou melhor, o exercício do

poder, de qualquer poder, está intima-mente relacionado com a “crença so-cial” na sua legitimidade. Só essa cren-ça valida o poder que é tido como justoe por consequência digno de respeitoe obediência consentida.INSTITUIÇÕES

DO PODER TRADICIONAL

Artigo 223.º (Reconhecimento)1. O Estado reconhece o estatuto, opapel e as funções das instituições dopoder tradicional constituídas deacordo com o direito consuetudinárioe que não contrariam a Constituição. 2. O reconhecimento das institui-ções do poder tradicional obriga asentidades públicas e privadas a res-peitarem, nas suas relações com aque-las instituições, os valores e normascon-suetudinários observados no seiodas organizações político-comunitá-rias tradicionais e que não sejam con-flituantes com a Constituição nemcom a dignidade da pessoa humana.

Artigo 224.º (Autoridades tradicionais)As autoridades tradicionais são en-tidades que personificam e exercem opoder no seio da respectiva organiza-ção político-comunitária tradicional,de acordo com os valores e normasconsuetudinários e no respeito pelaConstituição e pela lei.

Artigo 225.º (Atribuições, competência

e organização)As atribuições, competência, orga-nização, regime de controlo, da res-ponsabilidade e do património dasinstituições do poder tradicional, asrelações institucionais destas com osórgãos da administração local do Esta-do e da administração autárquica,bem como a tipologia das autoridadestradicionais, são regulados por lei.CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DEANGOLA, Diário da República, 5 de Fe-vereiro de 2010. I Série – Nº 23E AGORA,

A NOSSA PERPLEXIDADEEm Terra de Cegos, editado pela primei-ra vez em 1904, H. G. Wells conta-nos a estó-ria duma povoação perdida algures nomundo e isolada do resto da humanidade. Éumaterra de cegos em que todos estão con-vencidos que nada mais existe para além darealidade que conhecem e onde surge umestranho que tenta convencê-los do contrá-rio mas é ele que acaba por se convencerque aquela é a realidade e o mundo lá fora éque é lendário. Wells, resume o seu conto,dizendo o seguinte: “o «visionário» morre,convertido em proscrito desprezível, en-contrando unicamente na morte a evasãodo dom que possui, e o mundo dos cegosprossegue, invencivelmente satisfeito”. Depois desta rápida incursão peloconto de H.G. Wells que dá a dimensãoda universalidade à tendência para re-servar para um limbo temas suposta-mente fracturantes, vejamos quequestões se levantam nos dois tipos de

exemplos atrás referidos, simples e fa-cilmente constatáveis por essa Angolaprofunda. As questõessobre a memó-ria que nos situa na História são pos-tas aqui em dois níveis, ao nível da pe-gada material e da pegada imaterial eem cada uma delas queremos questio-nar o seguinte: como situar a procuradas nossas origens?Procura que será activa, na senda da-quilo que diz Rosa Cruz e Silva quandorefere que, “o acervo, as peças, as figu-ras históricas, os museus nacionais eregionais carecem de explicações téc-nicas sobre o seu significado e objectosocial. A abordagem, disse, deve ser re-gular a fim de o assunto continuar a serobjecto de estudo pelas gerações vin-douras”, tal como reporta o Jornal deAngola a 18 de Março de 2018.Em relação ao primeiro caso, Patri-mónio Material, de qual destas duasmemórias nos orgu-lhamos, a quenos lembra o percurso histórico daexpansão banto que no séc. XVII mar-cou a reconfiguração deste imensoterritório que hoje é Angola, ou a en-trada na nossa história de um povoeuropeu que se foi aventurando cadavez mais pelo interior desse mesmoterritório imenso? A outra questão que trazemos aquié suscitada pelo património imaterial:o que é que as três fotografias que re-presentam as figuras 1, 2 e 3 trazempara o tema que importa aqui debater,que memória é a nossa? É que as trêsrepresentam figuras ligadas ao PoderTradicional. A figura 2 assimila o Po-der Tradicional à marca clara de auto-ridade colonial recuperando a simbo-logia da farda que hierarquiza e mode-la o poder de acordo com o figurinoocidental de extracção judaico-cristã.As figuras 1 e 3 convidam-nos a procu-rar a legitimação do Poder Tradicionalna simbologia banto introduzida pe-los diversos artefactos rituais que vãodesde o gorro e manto aos acessóriosde prestígio ligados a actividades dodia-a-dia. Até que ponto é que a sim-bologia da farda colonial que hojeidentifica o Soba, autoridade máximado Poder Tradicional, se harmonizacom o ritual da visita ao Museu que éfonte de legitimação desse poder?

Mas, fazendo fé na sabedoria ances-tral preservada pela Literatura OralTradicional, sabemos, pela voz dosnossos mais velhos, que o mundo nãoé maniqueísta. Portanto, nunca dábons resultados fazer “lavagens dopassado” pelo que não queremos serlidos como defensores radicais dumaopção que diabolize a outra.As lavagens purificadoras decidi-das pelos zeladores oficiais da nossa“moral e bons costumes” dão origem aentropias que desembocam nummundo distópico, onde, parece-me,opatrimónio construído é somente oque tem a marca do colono. Mas maiorperplexidade ainda nos causa o factode, também no caso do patrimónioimaterial que aqui trouxemos,se privi-legiaressa mesma marca.Será que é a nossa memória de assi-milados que nos orgulha por termossido “emancipados” pela divina civili-zação ocidental”?Será que a pegada banto na históriasó pode ser sussurrada em espaços re-servados a “visionários”?Ou será que são ambas as memóriasresponsáveis por aquilo que somos,sem emancipações que soam semprea tutelas ideológicas reverenciadorasdo passado colonial?________________________________Referências bibliográficas

COSTA PEREIRA, Pedro Ângelo. 2 018.A Quilenda. Textos da Escrita e da Orali-dade; Convergências. Viana : edição doAutor, 2 018.

NGANA NGWANGWA, Soba da Kasus-wa, 80 anos de idade.

REDINHA, José. 1975.Etnias e Culturasde Angola. Luanda : Edição do IICA, 1975.

RIBAS, Óscar. 1969.Uanga, 2ª edição.Luanda : Tipografia Angolana/Edição doAutor, 1969.

WELLS, Herbert George (WELLS, H. G.).2008.Em Terra de Cegos... Lisboa : Pa-drões Culturais Editora, 2008. ISBN 978-989-8160-14-0.

24 de Abril a 7 de Maio de 2018 | Cultura4 | ECO DE ANGOLA

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ECO DE ANGOLA | 5Cultura | 24 de Abril a 7 de Maio de 2018

JOSÉ LUÍS MENDONÇANo próximo dia 30 de Abril,acontece em todo o Mundo oDia Mundial do Jazz. Música docoração expatriado da África que aonosso coração retorna e nos faz repen-sar o conceito de Angolanidade. A Al-ma angolana. Será esta feita só de sím-bolos pátrios e da língua comum, oportuguês? Ou será, essencial e neces-sariamente, feita do espírito da frater-nidade e da unidade no seio das famí-lias, das comunidades urbanas e ru-rais, na relação administrativa entreos dirigentes e o Povo? Música da Alma, a essência do jazz,as origens de um género musical ar-rancado com suavidade, com cautela eemoção do peito dos negros da Améri-ca: era a Alma da África que gritava no-vas sonoridades em terra adoptiva, amarcar uma posição existencial, pelodireito de viver.Desde os primórdios do jazz, estevesempre presente o espírito da Paz e daConcórdia nos acordes saídos do saxo-fone, do piano, das guitarras ou dosmúsculos da laringe. Os dez gigantesdo jazz, representantes de vários esti-los e instrumentos, - Louis Armstrong,Duke Ellington, Billie Holiday, CharlieParker, Art Blakey, Charles Mingus,Thelonious Monk, Miles Davis, JohnColtrane e Ornette Coleman – entra-ram no palco da História da Humani-dade em presença desse espírito.Ouvir o trompetista e vocalistaLouis Armstrong ("Pops", "Satchmo"),do jazz de Nova Orleans ou Dixieland, a

orquestração da improvisação coleti-va, ou o jazz no piano, o ragtime, o Har-lem stride, e o boogie-woogie ou escu-tar os toques de Art Tatum, considera-do por muitos o maior pianista de jazzde todos os tempos, é ouvir uma vozuniversal, um apelo à Fraternidade.Ouvir as melodias da Era do Swing,compostas por Glenn Miller, Duke El-lington ou Count Basie, que dava ênfa-se ao solista individual, deixar-se es-vair em nostálgicas lembranças pelasvozes de Dinah Washington e Ella Fitz-gerald, com temperos de blues, é es-quecermo-nos que há países, etnias,partidos políticos.Ouvir os ritmos do Bebop nos anos40, marco do começo do jazz moder-no, ajustado à técnicas e harmoniasmais complexas, embalados pelo saxalto de Charlie "Bird" Parker ou pelotrompete de Dizzy Gillespie ("Diz"), ointrodutor da música afro-cubana nocoração do jazz, é prolongar a noçãode Humanidade até à medula óssea.Ouvir a ondulação do cool jazz coma incorporação de música clássica, ouo hard bop dos anos 50, pelas produ-ções de Art Blakey and The Jazz Mes-sengers ou Max Roach, consideradoum dos melhores quintetos da históriado jazz é quase como viajar sem rumosob a bandeira da Esperança.Já ouviu atentamente Miles Davis ealguns dos seus partners – John Coltra-ne ("Trane") no saxofone tenor, RedGarland no piano, Paul Chambers nobaixo e "Philly" Joe Jones na bateria? Háquem diga que este grupo é o melhorgrupo de jazz de todos os tempos. Você

concorda? E o que esperava sentir de-pois de ouvir o toque de piano de HerbieHancock? Mas, dir-me-á você, então eJohn Coltrane, um dos músicos mais in-tensamente emocionais desse período?Na improvisação musical de CharlesMingus, que sabia dar mais liberdadeaos músicos individuais, nas composi-ções apuradas de Thelonious Monk aopiano estava já o dealbar do Free Jazz edo jazz de Vanguarda, levado para ca-minhos mais exploratórios. O saxofo-nista Ornette Coleman e o trompetistaDon Cherry foram pioneiros desse tipode música em álbuns como The Shapeof Jazz To Come e Free Jazz. Depois veioa vanguarda do jazz nos dedos do pia-nista Cecil Taylor, que arrastou o nomede Sun Ra até ao planeta Saturno. Um dia destes, você vai escutar a im-pressionante fusão do jazz com o rockno uso obsessivo de equipamentoseletrónicos e a incorporação de ele-mentos do funk e do rock e vai se lem-brar de Kenny G. a tocar no rádio doseu carro a caminho do Sul de Angola.Aí, você vai parar para admirar a pai-sagem até a música acabar.Mas a sua viagem não acaba aí. Háainda um longo caminho a percorrercom os músicos que tomaram em-prestada a música clássica do século20, a música africana e outras formasda música internacional, para criarcomposições mais sofisticados queiam de um extremo como a actual mú-sica New Age, à "energy music” do sa-xofonista John Zorn e dos guitarristasSonny Sharrock e Fred Frith, donosde uma total liberdade de improvisa-

ção. Entre os extremos levantaram-seo saxofonista George Adams e o pia-nista Don Pullen, que pegaram noblues, unindo-o à música de vanguar-da. Nessa idade dos anos 80, nem sódos Estados Unidos saíram os ex-poentes do jazz pós-moderno. Da Eu-ropa, da África e de outras latitudeslevantaram-se sons e ritmos para tor-nar o jazz cada vez mais universal. Hoje, você pode ir a um concerto dejazz em qualquer cidade desta nossaAldeia Global para escutar o retorno àsraízes bebop e pós-bop do jazz moder-no, do chamado neoclassicismo ou asmúltiplas interpretações do jazz origi-nal de Nova Orleães. O facto de estaraqui nesta bela cidade de Luanda, a lereste artigo é sinal de que o jazz lhe en-trou ou entrará no coração com a men-sagem que identificamos para este anode grandes transformações na nossaterra: MÚSICA DA ALMA PARA ALMAANGOLANA, fraternidade e unidade.Escute comigo "Stimela (Coal Train)",do álbum "I Am Not Afraid", uma cançãointrospectiva e sombria de Hugh Mase-kela, que faz referência ao trem quetransportou os mineiros de Joanesbur-go e compreenderá porque essa melo-dia antecede e sinaliza a chegada deuma nova música-mundo. Nos acordesdessa música perpassam o fogo e o rit-mo do ngoma, e o jazz submete-se àtrepidação da sua pele. Rogo-lhe quese levante para uma singela reverênciaao homenageado na celebração ango-lana do Dia Mundial do Jazz: Hugh Ma-sekela, falecido aos 23 de Janeiro desteano, Pai Grande do Jazz Africano.

DIA MUNDIAL DO JAZZ 2018

MÚSICA DA ALMA PARAA ALMA ANGOLANA

(em homenagem a Hugh Masekela)

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LÚCIO LARANOS TESTEMUNHOS DO SEU TRAJECTO

GASPAR MICOLO

Lúcio Rodrigo Leite Barreto de La-ra nasceu em Nova Lisboa, hojeHuambo, a 9 de Abril de 1929, filhode um comerciante e funcionáriopúblico e de uma angolana do Bai-lundo neta de um soba do Cuanza-Sul. Falecido aos 86 anos de idade,em 2016, Tchiweka, como era co-nhecido pelo seu nome de guerra,foi um dos membros fundadoresdo Movimento Popular de Liberta-ção de Angola (MPLA), tendo sidoreconhecido como “artífice da lu-ta pela Independência de Angola”,ao lado do primeiro Presidente deAngola, António Agostinho Neto,e outros eminentes nacionalistas.No mês em que nasceu, e paramarcar o percurso de um dosmais destacados nacionalistasangolanos, o Memorial Dr. AntónioAgostinho Neto ( MAAN) acolheu aconferência “Lúcio Lara: trajectória deum combatente”, que incluiu testemu-nhos de companheiros em diferentesfases da vida política e duas comunica-ções académicas sobre a vida do políti-co. Além da conferência, foi inauguradauma exposição fotográfica focando vá-rios aspectos da vida de Lúcio Lara.O evento foi uma iniciativa da Asso-ciação Tchiweka de Documentação(ATD), criada em 2006, e que tem co-mo principal objectivo preservar e di-vulgar a memória da luta pela inde-pendência de Angola. O seu Centro deDocumentação vem organizando edisponibilizando o acervo documen-tal e bibliográfico de Lúcio Lara, aoqual se juntaram contribuições de ou-tros participantes da luta e materiaisde várias proveniências.E foi exactamente a directora daATD, Rodeth Gil, a quem coube a inter-venção de abertura, seguida de teste-munhos de companheiros de luta deLúcio Lara, nomeadamente João Tetae Lopo do Nascimento, sendo modera-dor Mbeto Traça.Nascido em 1956, João SebastiãoTeta chegou a conhecer pessoalmenteLúcio Lara somente no primeiro en-contro no Bureau Político do MPLAem Brazzaville, em 1967, onde o par-tido se fixara a partir de 1963 para di-rigir a luta de libertação nacional eobteve várias instalações cedidas pe-las autoridades congolesas. “A pri-meira vista, o camarada Lara pare-ceu-me um homem enigmático, depouca fala e de um olhar penetrante”,conta João Teta, para quem, logo a se-guir, havia já no seu rosto um sorrisoconquistador, um olhar afável...A chegar à República do Congo, JoãoTeta revela-se preocupado e temeroso,mas recebeu de Lúcio Lara o consolo de

que precisava, ele e a outros jovens queentão se juntavam às instalações doMPLA. Teta não tardou a notar a impor-tância de Lara, que concebera e imple-mentara vários projectos locais de for-mação (primário e secundário) decrianças e jovens no “Internato 4 de Fe-vereiro”, onde os professores eram des-tacados membros do partido, nomea-damente, Augusto Lopes Teixeira, Ar-tur Carlos Maurício Pestana dos Santos(Pepetela), Emílio Teta, José Eduardodos Santos, Hugo Azancot de Menezes,Maria dos Céus, entre outros. “O cama-rada Lara já estava convicto, como osfinlandeses o fizeram apenas no limiardo século XXI, de que o ensino de quali-dade é garantido, antes de tudo, pelaqualidade do professor”.A paixão de Lara pela educação dohomem novo, comprometido com acausa de libertação do povo do jugocolonial e da exploração do homempelo homem foi manifestada pela cria-ção da Organização de Pioneiros deAngola (OPA), tendo dado substânciaao projecto com os dez princípios dopioneiro do MPLA. Chegou a ser pro-fessor de matemática e física, mas en-volveu-se desde cedo nas movimenta-ções nacionalistas em curso desde osanos 1950, em Angola e entre os ango-lanos no exílio. Foi eleito secretário daOrganização e dos Quadros na primei-ra conferência nacional do MPLA, emDezembro de 1962, passando maistarde a secretário-geral. Nesta função,foi o “operacional” junto de AgostinhoNeto, sobretudo a partir da sede doMPLA, em Brazzaville onde adoptouuma criança natural do país, Jean-Mi-chel Mabeko Tali. “A relação com os La-ra fez-se através de uma longa históriade amizade entre eu e o Paulo, amigode colégio e, primogénito da Ruth e doLúcio, em Brazzaville, nos fins dosanos 60. Tornámo-nos como que ir-mãos”, conta Jean-Michel Mabeko Tali,

hoje em dia um destacado historiador,professor da Universidade de Ho-ward, nos Estados Unidos, onde lec-ciona Historia Política. Em Novembro de 1974, depois daqueda da ditadura portuguesa voltoua Angola. E mais uma vez mostrou serum verdadeiro esteio moral e um dosgrandes ideólogos do MPLA ao rejei-tar, reiteradas vezes, cargos no gover-no, mantendo-se somente ao serviçodo partido. “Após a Independência,quando se constituiu o Governo, Lú-cio Lara foi indicado para ministro daEducação, mas recusou, dizendo quenão queria nenhum cargo governa-mental”, conta Lopo do Nascimento.Nascido em 1942, Lopo do Nascimen-to, que exerceu o cargo de primeiro-ministro desde o primeiro dia de in-dependência, esclareceu no seu teste-munho que o seu companheiro de lu-ta e amigo só queria continuar a tra-balhar no partido. "Não queria ir parao Governo, o que mostra a sua manei-ra de ser. Não era um indivíduo queestava ali para se servir ou aprovei-tar-se de nada”. Assim, Lopo do Nasci-mento lembra-se sempre de Lúcio La-ra como uma figura angolana de extre-ma elevação, modéstia e humildade.“Fui colega, camarada e companheirode Lúcio Lara, a partir de 1974. Convi-vemos em três áreas geográficas dife-rentes, e em cada uma delas tive aoportunidade de descobrir uma per-sonalidade e aprender muitas coisas,não apenas do ponto de vista político,mas comportamental”, reconhece.Lúcio Lara é um dos grandes obrei-ros do MPLA, porque teve sempre atendência de conservar, catalogar eclassificar documentos. “Graças a essacapacidade, muita coisa que podia seter perdido, felizmente, caiu nas mãosde Lúcio Lara e ele conseguiu fazê-losreviver até aos nossos dias”, lembrou oEx-Vice Presidente do MPLA e actual

Presidente da Fundação Sagrada Espe-rança, Roberto de Almeida, em entre-vista ao Jornal de Angola, em 2008. En-tretanto, quando desejavam apenasterminar um livro do pai, os filhos deLúcio Lara, Paulo e Wanda, aproveita-ram os arquivos do nacionalista e cria-ram uma associação de documentaçãoexactamente com o seu nome de guer-ra, Tchiweka, com mais de seis mil li-vros, milhares de recortes de jornais emais de 11 mil fotografias. Já em 1996, Lúcio Lara, um dos his-tóricos da Independência de Angola,publicou com a ajuda da esposa, RuthLara, o primeiro volume de “MPLA -Umamplo movimento”. A obra, com maisde 300 páginas, foi o resultado da com-pilação do arquivo (documentos, foto-grafias, livros, etc), que o nacionalistafoi guardando desde a fundação doMPLA até mais ou menos ao início daLuta de Libertação. Hoje, o livro é umareferência obrigatória para historiado-res e investigadores.“Angola é uma obra, e nas obras nãotemos só os arquitectos, temos tam-bém os engenheiros”, atira Lopo doNascimento, deixando transparecer olugar de destaque do nacionalista. Umlugar de destaque que pede mais histó-ria. A verdadeira. E, nos debates, mui-tas inquietações foram levantadas pe-los participantes, os quais defenderamque a iniciativa de homenagear deviaser do próprio partido, MPLA, e não deuma associação. A antiga deputada doMPLA, Teresa Cohen, uma das interve-nientes, disse ser obrigação do partidohomenagear todos aqueles que entre-garam as suas vidas pela causa da liber-dade do povo angolano que considerouterem caído no esquecimento. E a res-posta não tardou. O histórico dirigentedo MPLA, Lopo do Nascimento, garanteter chegado o momento de se contar “averdade histórica de algumas áreas dahistória de Angola”.

24 de Abril a 7 de Maio de 2018 | Cultura6 | ECO DE ANGOLA

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LETRAS | 7Cultura | 24 de Abril a 7 de Maio de 2018

1. Contactos de culturas e/ou situações coloniais? No século XV, Portugal e Espanhainiciam as descobertas/con-quistas de novos continentes,dando início à primeira modernidade.Nos novos espaços, encontraram mui-tos povos e culturas, em diferentesgraus de civilização. África e América logo foram enre-dados numa teia colonial dirigidapor Lisboa e Madrid, as capitais quese assenhorearam dum imenso po-der, exercido com muita violência. AIgreja Católica participou activamentenesta colonização administrativa, ter-ritorial, mercantil, militar e cultural,na chamada primeira globalização.Dum lado e do outro do Atlântico aeconomia da colonização processou-se num movimento triangular que,partindo da Península Ibérica, explo-rou as produções de açúcar e as minasde metais preciosos na América doSul, Central e Antilhas, com o contri-buto praticamente exclusivo dos es-cravos africanos, dado o carácter re-fractário das civilizações ameríndias aesse género de exploração. Milhões deescravos negros foram transportados,em condições indizíveis de desumani-zação, para o chamado “Novo Mundo”,epíteto que os europeus atribuíram aocontinente “descoberto” por eles, nãopelos indígenas.No confronto de olhares civilizacio-nais decorrente desta conquista, a vi-são prevalecente foi a dos colonizado-res, no caso, apetrechados com os ins-trumentos necessários: armas de fogosuperiores, embarcações poderosas,uma invejável ciência náutica, o incen-tivo à cristianização dos não crentes,e, acima de tudo, uma autoconsidera-ção cultural, filosófica, teológica e mo-ral superior às epistemologias natura-lizadas dos povos africanos e amerín-dios. Estes, na sua grande maioria,constituíam-se como povos de cultu-ras ágrafas, em contraste com a escritaem português, castelhano ou latimcom que a administração registava osfactos político-sociais, históricos, cul-turais e a Igreja procedia à conversãoreligiosa e ao ensino. Em resumo, para

além do senhorio administrativo-eco-nómico e político-militar, foi levada acabo uma porfiada tarefa de domínio(quando não apagamento) das cultu-ras locais que dificilmente eram tra-duzidas e compreendidas.O epistemicídio em causa veio a teruma continuidade ainda mais rasu-rante das culturas diferentes quando,do século XVII em diante, na Europacentral, o pensamento das luzes trazao de cima a modernidade propria-mente dita, o capitalismo e o colonia-lismo que decretavam a superiorida-de, não apenas do pensamento filosó-fico, mas da própria raça branca relati-vamente às outras, como, escreve Cas-tro-Gómez, a propósito de Kant:La tesis básica de Kant continúasiendo la misma: las cuatro razas nosolo corresponden a diferencias entregrupos humanos marcadas por deter-minaciones externas (clima y geogra-fía), sino que también, y sobre todo,corresponden a diferencias en cuantoal carácter moral de los pueblos, es de-cir, a diferencias internas marcadaspor la capacidad que tienen esos gru-pos o individuos para superar el de-terminismo de la naturaleza.(…) En su Physische Geographie,Kant establece claramente que “La hu-manidad existe en su mayor perfec-ción (Volkommenheit) en la raza blan-ca. Los hindues amarillos poseen unamenos cantidad de talento. Los negrosson inferiores y en el fondo se encuen-tra una parte de los pueblos america-nos. (Castro-Gómez, 2005:41)Segundo tais conceitos, as culturasnão eurocêntricas dificilmente se po-deriam manter incólumes ao seremconfrontadas e aculturadas pelo mo-dernismo e colonialismo dos euro-peus. A questão do seu (quase) desa-parecimento tornou-se um grave pro-blema que criou uma fissura episte-mológica entre o Norte e o Sul. Como poderiam, então, esses povoscolonizados e sem escrita, tentar res-guardar as suas características cultu-rais, as suas visões do mundo e as suasepistemologias, a sua história, de mo-do a preservar a multiculturalidade?Os ibéricos colonizadores e, sobre-tudo os crioulos independentistas,

na América primeiro (século XIX) eÁfrica depois (século XX) emboraimpusessem a força da língua escri-ta, abriram, então, um processo deaproximação das duas línguas ibéri-cas a uma prudente inserção de re-gistos das marcas linguístico-cultu-rais e epistemológicas dos povos co-lonizados e locais. Com este método, começou a tor-nar-se possível responder ao desafioameaçador duma escrita exclusiva-

mente colonizadora, dando lugar àemersão dos localismos, também lin-guísticos de forma progressiva.2. Apropriação da escrita pelos povos de oratura2.1. América LatinaAs transculturações intensas noAtlântico Sul, assim poderemos apeli-dar os fenómenos de hibridações cultu-rais que construíram e desenvolveram

ORATURA COMO AFIRMAÇÃO, COMBATE E HIBRIDAÇÃO NAS GEOGRAFIAS IBERÓFONAS:

O CASO ANGOLANO DE MANUEL RUIO século XV abriu “novos” mundos a Portugal e Espanha e deu início ao colonialismo que vi-ria, do século XVII em diante, a ser global. Com o iluminismo, encontram-se as bases da mo-dernidade eurocêntrica que trazia no seu bojo o lado escuro do capitalismo e imperialismo:a África foram os europeus buscar milhões de escravos para realizarem a construção daAmérica e nos dois continentes os epistemicídios culturais trouxeram perdas inomináveis.A oratura é uma arma utilizada, hoje em dia, pelos povos ex-colonizados da América Latina eÁfrica, para o resgate e afirmação de culturas e tradições. Em Angola, o escritor Manuel Ruié modelar nessa capacidade de retransformar o texto literário.

CINCO DIAS DEPOIS DA INDEPENDÊNCIA

LUÍS MASCARENHAS GAIVÃO

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esta história das modernidades,têm levado muitos autores a reflec-tir. Do lado da América Latina, ostrabalhos de Fernando Ortiz, ÁngelRama, Ana Pizarro, Walter Mignolo,Néstor Canclini e muitos outros, sãofundacionais. Desde logo, ao defini-rem a transculturação: …el vocablo transculturación ex-presa mejor las diferentes fases delproceso transitivo de una cultura aotra, porque este no consiste sola-mente en adquirir una cultura, que eslo que en rigor indica la voz anglo-americana aculturation, sino que elproceso implica también necesaria-mente la pérdida o desarraigo de unacultura precedente, lo que puede de-cirse una parcial desculturación, y,además, significa la consiguiente crea-ción de nuevos fenómenos culturalesque pudieran denominarse neocultu-ración. (Ortiz, 1978:86):Temos, pois, que nenhuma culturase apresenta imune à transcultura-ção, muito menos quando se situamem desníveis epistemológicos impor-tantes e que atravessam espaços etempos tão diversos.Devido à situação colonial, as cultu-ras consideradas periféricas encon-tram-se, supostamente, mais expostasà cedência relativamente às culturasmetropolitanas, onde a “superiorida-de” por estas exercida sobre aquelasnunca deixou de proclamar que a es-crita era e é considerada um avanço

cultural e tecnológico. Porém, o uru-guaio Ángel Rama chama a atençãopara a dificuldade que a escrita encer-ra, e é essa a função da literatura e dahistória, em captar a realidade totaldas representações simbólicas, pre-sentes nos novos universos continen-tais, como refere, relativamente aospovos ameríndios, ágrafos: El atroz empobrecimiento queimplica la escritura, los principiosde gramatología con su sistema designos gráficos despojados de voz yde piel, se testimonia en este saltoque ha hecho ingresar a un indio alos sistemas culturales modernos.(Rama, 2004:87)Concentremo-nos, então, na per-cepção da grande dificuldade da tra-dução para a escrita daquelas culturaslocalizadas em extremos opostos derelação político-socio-cultural e exer-cidas com instrumentos desiguais depoder. O mesmo autor recomenda quese deve manter:(…) una suerte de fidelidad al espí-ritu que se alcanza mediante la recu-peración de las estructuras peculiaresdel imaginario latinoamericano, revi-talizándolas en nuevas circunstanciashistóricas y no abandonándolas. Por-que ellas son el más alto esfuerzo in-ventivo de los pueblos americanos, elsistema simbólico en el cual se expre-sa y se reconocen como miembros deuna comunidad, de hecho la más altaconstrucción intelectual y artística de

que son capaces los hombres. (Rama,2004:123)Ana Pizarro, chilena, que reflectesobre o que decorreu no âmbito cul-tural no continente sul-americano,estabelece mesmo uma comparaçãoentre as colonizações portuguesa, es-panhola e outras, desde os primor-diais encontros ali promovidos atéhoje e é de opinião que surgiram vá-rias culturas na América do Sul proce-dentes de status coloniais diversosque foram, depois, evoluindo e gera-ram muitas especificidades culturaisrelativamente às matrizes ibero-ame-ricanas ou outras:Foi assim, e a partir desta situação,que se deu o aparecimento de nossasduas culturas nos termos que as cons-tituíram – culturas construídas comum status colonial, em uma perspecti-va de periferia – fazendo com que suaevolução tenha até hoje a complexida-de de relações de convergência e di-vergência, reconhecimento e estra-nheza, assim como desenvolvimentosparalelos. Todos eles no espaço hege-mónico de culturas metropolitanasque política ou simbolicamente seconstituem em pólos de referência pa-ra o processo de apropriação criativa:Espanha, Portugal, França, no passa-do, e, no século XX, os Estados Unidos. (…) A América ambicionava nomearum espaço que, se tinha algum traçodefinitório, era o de ser um territóriode superposições e cruzamentos, deintersecções linguísticas, um espaçoem vertiginoso movimento de cons-trução cultural. (Pizarro, 2006:105)Com o argentino Walter Mignolo,podemos confirmar que estas diferen-tes modernidades construídas naAmérica Latina se encontram vincula-das, na sua origem, a um padrão de co-lonialismo ocidental e que, após as in-dependências dos Estados (primeirametade do século XIX), os herdeiros“crioulos” prorrogaram processos so-ciais, culturais e políticos semelhantesaos dos colonizadores. Aníbal Quijano (2009), do Equador,nomeia esta mentalidade sul-ameri-cana de conservadorismo epistemoló-gico, de “colonialidade de poder” quese relaciona com outras duas colonia-lidades, a “de saber” e a “de ser”, sendoque, por esse prisma, as independên-cias políticas implementaram proce-dimentos de “colonialidade” poismantiveram as hierarquias e as práti-cas e padrões do poder económico ecultural, sem os alterar relativamenteao tempo colonial. Por isso, Mignolodeclara que é preciso “descolonizar” oparadigma duma modernidade que éessencialmente composta por três di-mensões complexas:The rhetoric of modernity tellingthe triumphal narratives of Westerncivilization: the logic of coloniality,which is the hidden and darker sideof the rhetoric of modernity andconstitutive of it; and the grammar ofdecoloniality, which is the task in thepresent toward the future. (Mignolo,2011:85-86):O argentino Néstor Canclini, porseu lado, escreve que, na América Lati-

na, a modernidade se apresenta demodo desigual e plural, pois que aideia de tradicional e moderno tem si-do construída e interpretada de mo-dos diversos pelos grupos sociais queinterferem na construção dos mosai-cos culturais. Estes teriam como ca-racterística comum, a hibridação cul-tural, por onde se misturam influên-cias das metrópoles, das colónias, dashegemonias e das subalternidades, doculto e do popular, do tradicional e domoderno. Assim, ser culto modernoimplica saber integrar o tradicional: Ser culto, e incluso ser culto moder-no, implica no tanto vincularse con unrepertorio de objetos y mensajes ex-clusivamente modernos, sino saberincorporar el arte y la literatura devanguardia, así como los avances tec-nológicos, a matrices tradicionales deprivilegio social y distinción simbóli-ca. (Canclini, 2001:86)Para a interpretação das culturas daAmérica Latina é imprescindível terpresente o caráter periférico/colonialdaquelas sociedades que, desde o sé-culo XVI, ali constroem não uma, masmuitas modernidades híbridas.Ainda, citando Canclini:Pareciera entonces que, a diferen-cia de las lecturas empecinadas en to-mar partido por la cultura tradicionalo las vanguardias, habría que enten-der la sinuosa modernidad latinoame-ricana repensando los modernismoscomo intentos de intervenir en el cru-ce de un orden dominante semioligár-quico, una economía capitalista se-miindustrializada y movimientos so-ciales semitransformadores.(…) cuando la transnacionaliza-ción de la economía y de la culturanos vuelve “contemporáneos de to-dos los hombres” (Paz), y sin embar-go no elimina las tradiciones nacio-nales, optar en forma excluyente en-tre dependencia o nacionalismo, en-tre modernización o tradicionalidadlocal, es una simplificación insosteni-ble. (Canclini, 2001:94)O que ficou registado pretende,apenas, relativamente à América Lati-na, ajudar a demonstrar a complexi-dade resultante do encontro pluricul-tural e colonial entre paradigmasepistemológicos “abissais” (Santos,2009) e, no caso presente, observar omodo como as culturas consideradastradicionais e sem escrita, souberamcontornar essa desvantagem, agindona sua retransformação, salvaguar-dando, desse modo, a tradição. Será que, do outro lado do Atlântico,se passou um fenómeno semelhante?2.2. ÁfricaÁfrica apenas despertou para as in-dependências em pleno século XX,com uma história do colonialismo queperdurou mais 150 anos do que aamericana e com especificidadesacentuadas. O século XIX e a primeirametade do século XX trouxeram até aocontinente o efeito imperialista/colo-nialista decorrente da Conferência deBerlim (1895). As potências euro-peias dividiram o território africano a

Quem me dera ser onda

8 | LETRAS 24 de Abril a 7 de Maio de 2018 | Cultura

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regra e esquadro, sem o menor respei-to por etnias, culturas ou nações, ape-nas visionando a exploração dos re-cursos naturais e o controlo violentodas populações a quem era pratica-mente impedida a ascensão social. Convém não esquecer os três sécu-los anteriores de esclavagismo que,esvaziando a África de milhões de se-res humanos – o brasileiro Alencas-tro (2012) fala, só do século XV aoXIX, em mais de 16 milhões, 10 mi-lhões desembarcados na América eos restantes mortos em viagem, – arelegou para uma paragem intervalarno tempo e no espaço. A modernida-de foi, aqui, muito diferida e diferenteda americana.É de importância capital o pensa-mento do camaronês Achille Mbembeque analisa o tempo colonial, comoaquele em que o colonizador conse-guiu esvaziar, em parte muito subs-tancial, o discurso negro:Quer se trate de literatura, de filoso-fia, de artes ou de política, o discursonegro foi então dominado por trêsacontecimentos – a escravatura, a co-lonização e o apartheid. São a espécie de prisão na qual, ain-da hoje em dia, este discurso se encon-tra. Uma certa inteligência tentou atri-buir a estes acontecimentos significa-dos canónicos, dos quais, três, em par-ticular, merecem ser evocados. Em pri-meiro lugar, como sugerimos nos capí-tulos precedentes, o da separação de simesmo. Esta separação implicou umatal perda de familiaridade consigo, queo sujeito, estranho a si mesmo, foi rele-gado para uma identidade alienada equase inerte. (Mbembe, 2014:139) Esta separação de si mesmo esten-deu-se, ainda, para outros domínios, oda expropriação material e o empo-brecimento ontológico que conduzi-ram à degradação:A condição servil não terá unica-mente mergulhado o sujeito negro nahumilhação, no rebaixamento e numsofrimento inominável. No fundo, pas-sou por uma morte civil caracterizadapela negação da dignidade, pela dis-persão e pelo tormento do exílio.(Mbembe, 2014:140)Como se vê, a ligação transculturaldo negro (dispersão e exílio pelaAmérica, sobretudo) é um elementoconstitutivo da modernidade e foiatravés do Atlântico que foi construí-da, através da escravatura colonial eracista, levando a que, também naAmérica (e no mundo) o fundamentalpapel cultural do negro afro-latino se-ja, mais uma vez apagado, como naprópria África.Embora os epistemicídios amerín-dio, africano e afro-americano tenhamassumido proporções inimagináveis,todavia surgiram nas Caraíbas/Esta-dos Unidos e em África (fim do séculoXIX e século XX) movimentos negrosque tentavam recuperar as ligaçõescom a ancestralidade esquecida, comoo “pan-africanismo” e a “negritude”(esta na própria África), gerando umnovo encontro do negro americanocom os outros, os africanos:Neste encontro, África desempe-

nharia o papel de uma força plástica,quase poético-mítica – uma força queremeterá constantemente para um«antes de tempo» (o do rebaixamen-to); uma força que, esperemos, serácapaz de transformar e assimilar opassado, de curar as mais terríveis fe-ridas, de reparar as perdas, de fazeruma história nova com os aconteci-mentos antigos e, segundo as palavrasde Nietzsche a propósito de outra coi-sa, «de reconstruir sobre o seu pró-prio fundo as formas quebradas»(Mbembe, 2014:55)A segunda identidade do negro, dizMbembe, nasce desta busca duma

participação plena na história duma«humanidade global».Esta é, portanto, outra vertente darazão negra – aquela em que a escritaprocura conjurar o demónio do textoprimeiro e a estrutura de submissãoque ele carrega; aquela em que essamesma escrita luta por evocar, salvar,activar e reactualizar a sua experiên-cia originária (a tradição) e reencon-

trar a verdade de si, já não fora de si,mas a partir do seu próprio território.(Mbembe, 2014:61)Com algumas divergências filosófi-cas relativamente à remediação entreos diversos pensadores, mas com umacordo conceptual por inteiro sobreos malefícios que a “estrutura coloni-zadora” (Mudimbe, 2013:18) (euro-centrismo) produziu nas “sociedades,culturas e seres humanos marginais”,escreve este pensador congolês que: (…) emergiu um sistema dicotómi-co e com este surgiu um grande núme-ro de oposições paradigmáticas: tra-dicional versus moderno; oral versus

escrito e impresso; comunidadesagrárias e consuetudinárias versus ci-vilização urbana e industrializada;economias de subsistência versuseconomias altamente produtivas.(…) a desintegração social das so-ciedades africanas e o crescente pro-letariado urbano como resultado deuma desestabilização das organiza-ções comuns através de um estabele-

cimento incoerente de novas ordens einstituições sociais.(…) se a nível cultural e religioso,através das escolas, igrejas, imprensae meios audiovisuais, o projecto colo-nizador difundiu novas atitudes queeram modelos contraditórios e pro-fundamente complexos em termos decultura, valores espirituais e no querespeita à sua transmissão, tambémfragmentou o esquema culturalmenteunificado e religiosamente integradode grande parte das tradições africa-nas. (Mudimbe, 2013:18-19)Muitos mais pensadores africanostratam destas funestas consequênciasdo epistemicídio colonial.Em Angola é Manuel Rui o escritorque mais reflete e pratica o tema dainscrição da angolanidade no texto li-terário, através de uma escrita marca-da pela oratura. Expor aqui o seu pen-samento sobre o processo, é um con-tributo para a sua compreensão.3. A oratura, segundo Manuel RuiQuase todos os escritores e pensado-res angolanos da nova geração inscre-vem as marcas das várias culturas bantuna escrita em português e nas outras lín-guas nacionais. Boaventura Cardoso te-ce as considerações seguintes:A dimensão sociológica de factos,protagonismos, dramas, tragédiasdo dia-a-dia; a filosofia banto do vita-lismo, inspirada na força vital, trans-mitida por um ente supremo sobre-natural, superior aos seres humanose à natureza, e na transmissão recí-proca dessa força entre as pessoas etodas as coisas; a envolvência da lin-guagem banto do maravilhoso e fan-tástico em nosso discurso ficcional –constituem, entre outras, as compo-nentes-chave que enformam a iden-tidade da nossa escrita angolaniza-da. (Cardoso, 2008:18)Para além dessa visão cosmogóni-ca, chama igualmente a atenção para oprocesso de escrita angolano, pro-priamente dito:Gostaríamos, no entanto, de frisar alinguagem gramaticalmente angola-nizada, a sintaxe reinventada parasurtir ritmos sincopados dos falaresafricanos, o recurso a linhas curvilí-neas dos fios da história e a constanterepetição de frases, o que é uma dascomponentes de fundo da narrativaafro-banto. (Cardoso, 2008:18).Manuel Rui, com mais de quarentaobras publicadas, que iniciou a carrei-ra literária em 1967, é, desde o início,um expoente importante desta aplica-ção das marcas de oralidade.Em 2008 é autor de um texto paradig-mático em que relata o que terá sido oencontro dos navegadores portuguesescom as populações do Reino do Congo(final do século XV). Desde então, refere,os congoleses e descendentes aplicamos processos que se seguem:Quando chegaste mais velhos con-tavam estórias. Tudo estava no seu lu-gar. A água. O som. A luz. Na nossa har-monia. O texto oral. E só era texto nãoapenas pela fala mas porque havia ár-vores, parrelas sobre o crepitar de

Sim, camarada!

LETRAS | 9Cultura | 24 de Abril a 7 de Maio de 2018

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braços da floresta. E era texto porquehavia gesto. Texto porque havia dança.Texto porque havia ritual. Texto fala-do, ouvido e visto. (Rui, 2008:27)A vida corria normal no Reino doCongo. Cumpria-se a harmonia, o tex-to oral vinha acompanhado de espec-táculo, música e dança, do gesto e dorito. Eis quando chegam os marinhei-ros e trazem outros costumes e cultu-ra, a escrita e armas de fogo, e com is-so, pretendem mandar nesse territó-rio feliz até então. Relata Rui:A partir daí, comecei a pensar quetu não eras tu, mas outro, por me pare-cer difícil aceitar que da tua identida-de fazia parte esse projecto de chegare bombardear o meu texto. Mais tardeviria a constatar que detinhas maisoutra arma poderosa além do canhão:a escrita. E que também sistematica-mente no texto que fazias escrito in-tentavas destruir o meu texto ouvido evisto. Eu sou eu e a minha identidadenunca a havia pensado integrando adestruição do que não me pertence.(Rui, 2008:27)Esses estranhos queriam desprezare bombardear a identidade africanacuja forma de narrar e contar atravésda oratura era tão rica? Torna-se ne-cessário expurgar da arma da escrita oque ela contém que, para os congole-ses, fosse uma agressão. É preciso ir àluta, para recuperar o texto africano:Mas agora sinto vontade de me apo-derar do teu canhão, desmontá-lo pe-ça a peça, refazê-lo e disparar não con-tra o teu texto não na intenção de o li-quidar mas para exterminar dele aparte que me agride. Afinal assimidentificando-me sempre eu até possoajudar-te à busca de uma identidadeem que sejas tu quando eu te olho emvez de seres o outro.O meu texto tem que se manter as-sim oraturizado e oraturizante. Se euperco a cosmicidade do rito perco a lu-ta. Ah! Não tinha reparado. Afinal isto éuma luta. E eu não posso retirar do meutexto a arma principal. A identidade. Seo fizer deixo de ser outro, aliás como ooutro quer [assimilação colonial]. En-tão vou preservar o meu texto, engros-sá-lo mais ainda de cantos guerreiros.Mas a escrita. A escrita. Finalmenteapodero-me dela. (Rui, 2008:27-28)Manuel Rui marca decididamente aidentidade e a cosmicidade de África,no texto escrito, e, seguidamente, en-sina as regras de proceder, para que oselementos locais fiquem registados,muito embora possam não vir a serentendidos por terceiros:Vou passar o meu texto oral para aescrita? Não. É que a partir do mo-mento em que eu o transferir para oespaço da folha branca, ele quase quemorre. Não tem árvores. Não tem ri-tual. Não tem as crianças sentadas se-gundo o quadro comunitário estabe-lecido. Não tem som. Não tem dança.Não tem braços. Não tem olhos. Nãotem bocas. O texto são bocas negras naescrita quase redundam num mutis-mo sobre a folha branca. O texto oraltem vezes que só pode ser falado poralguns de nós. E há palavras que só al-guns de nós podem ouvir. No texto es-

crito posso liquidar este código agluti-nador. Outra arma secreta para com-bater o outro e impedir que ele medescodifique para depois me destruir.(…) No texto oral já disse não toco enão o deixo minar pela escrita armaque eu conquistei ao outro. Não pos-so matar o meu texto com a arma dooutro. Vou é minar a arma do outrocom todos os elementos possíveis domeu texto. Invento outro texto. Inter-firo, desescrevo para que conquiste apartir do instrumento escrita um tex-to escrito meu. Da minha identidade.(Rui, 2008:28)Tiro, de outro texto meu, a propósito:Nasce uma literatura enriquecidade outros significantes, alterada namorfologia e sintaxe, no ritmo, nos cír-culos de narrativas onde a natureza eo maravilhoso se misturam para recu-perar e reconstruir estórias africanasde vida e pensamento, com tempos elocais de outras dimensões (…) (Gai-vão, 2016:31)Uma literatura profundamente hí-brida, onde ganha a palavra do mundo,e que se reconverte em instrumento deafirmação, de combate e vida, porque:(…) o meu espaço e tempo foiagredido para o defender por vezesdessituo do espaço e tempo o tempomais total. O mundo não sou eu só. Omundo somos nós e os outros. Equando a minha literatura transbor-da a minha identidade é arma de lutae deve ser acção de interferir nomundo total para que se conquisteentão o mundo universal.Escrever então é viver.Escrever assim é lutar.(…) até que um dia «os portos domundo sejam portos de todo o mun-do». (Rui, 2008:28)Referem alguns pensadores africa-nos, entre eles o angolano Muanamosi

(2011), que o tempo colonial foi umparêntesis na história do continente,sendo agora possível retomar muitodo que foi perdido. Fazê-lo com a des-colonialidade do pensamento é o tra-balho em causa e a literatura africanapós-colonial vem-no praticando.Na América Latina, o avanço tempo-ral das autonomias relativamente aÁfrica, representa igualmente umavanço nos estudos culturais e na pro-dução marcadamente híbrida das lite-raturas nacionais.Muitos povos e culturas de três con-tinentes se emaranharam numa histó-ria de antagonismos e violências, decentros e periferias, de colonizadorese colonizados, mas de que resultaramricas transculturações e hibridações. Nesses muitos territórios fronteiri-ços e diaspóricos vai-se acelerando osurgimento da “humanidade global”.Ela chegará quando o pensamento doscentros e das periferias se tornar limpodo preconceito histórico, descolonial.Luís Mascarenhas Gaivão:

PhD Sociologia: Pós-colonialismos e Cidadania

Global. Universidade de Coimbra: Faculdade

de Economia/Centro de Estudos Sociais

([email protected])________________________________Referências bibliográficas

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Manuel Rui

10 | LETRAS 24 de Abril a 7 de Maio de 2018 | Cultura

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OMBOMBO NI NGUBA(I)Ngyombela kidingu kyamiMasa anga ngimawombela weNi ngitene kwaakukutisa weNi kwaafufutisa, kudya kwami! (II)Eme ngyombela okudya kwamiKala kyatokala kuubangaNi ngikutise omala madisangaNi mala mu mala, divwa dyami! (III)Ni ngyombele maka mamiNgiteka menya mabeta mukuzelaKana menya maxidi, maxikelelaMangixikelesa muxima, ngwami! (IV)Ngyombesa kambiji kamiKambiji kasalakalu kezala mongwaNi ngitene kukatula owindwaWa kukamba omenya ndungu wami! Kyoso makamba mangitula! (V)Ngyombesa dilamba dyamiDina dingizula seku mvulaMvula ingilenga, ingikatulaKihanji kya kulayesa mwenyu wami! (VI)Ngyombela hanji okidingu kyamiKwila mwanya wiza kwikukutisaNi itene kungidisa, kungikutisaOngunzu ingivungina muxima wamiYa kukala ni mbombo ingidisaNi jinguba jami jiza kungidikisaKwila ki ngafwama kwaaxisa kudimaKuma ene mwene angikatula ngunzu!

BOMBÓ COM GINGUBA(I) Demolho a minha mandioca/E o meu milho tam-bém/Para que os possa fazer secar/E fazê-los farinha,meu alimento!(II) Eu demolho a minha comida/Tal como deve serfeito/Para que faça saciar os homens que se acham/Comfome na barriga, desgraça minha!(III)Para que demolhe os meus problemas/Acarreto aágua mais pura/Não a água suja, enegrecida/Que meenegrece a alma, isso não quero!(IV) Faço demolhar o meu peixito/Peixito seco repletode sal/Para que possa extrair a desgraça/Da falta do meumenya ndungu/Quando os amigos se chegam a mim!(V) Faço demolhar a minha angústia/Aquela que memolha sem que haja chuva/A chuva que de mim foge e re-tira/A ansiedade de fazer viver a minha vida! (VI)Demolho ainda a minha mandioca/Que o sol vemsecar/Para que possa alimentar-se, saciar-me/A vonta-de que encobre minha alma/De ter o meu bombó que medá de comer/E a minha ginguba que vem mostrar-me/Que não os devo deixar para trás/Visto que são elesmesmos que saciam a minha vontade!

KUFIKISA KWA MAHAMBA MA KAKALUNGAENSAIOS POÉTICOS DE KAKALUNGA

MÁRIO PEREIRA

LETRAS | 11Cultura | 24 de Abril a 7 de Maio de 2018

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ANALTINO SANTOS

Numa época em que a moda pa-ra a juventude são os famosos“Sunset” ou os “Arejos”, festasque acontecem ao pôr-do-sol,onde os convivas vão de modoinformal e escutam os sons quetrazem a adrenalina do “Kudu-ro”, “Afro-house” e de outros rit-mos, os apreciadores da músicaangolana feita nos anos 60 e 70caíram no espírito desta onda,mas ao som de temas marcantesda chamada era dourada da mú-sica nacional, com o ConjuntoAngola 70.Foi na tarde do passado domingo(25) que o Goethe Institute, emparceria com a produtora Mano-Mano levou o Conjunto Angola 70 àFortaleza de São Miguel. A instituiçãocultural afecta ao Governo Alemãoofereceu um final de tarde com músicaangolana de qualidade de modo gra-tuito, algo que nem sempre as nossasautoridades e mecenas garantem àpopulação. Esta iniciativa de pura “di-plomacia cultural” respondeu aos in-teresses da República Federal da Ale-manha, que teve como escudo o fim damissão de Manuel Negwer e às boas-vindas de GabrileeStiller-Kern comonova responsável do Goethe-Institute.TeddyNsingui e Boto Trindade so-listas mais respeitados começaramdedilhando instrumentais, “Pica De-do” um original de Nito com os ÁfricaRitmos marcou esta primeira fase.Legalize o ”Rastaman do Semba” eMister Kim foram os cantores que de-ram vozes como: ”Lena”, ”NgandeNzo-ji”, ”Sofredora”, ”Mariana Yo”, ”RosaMaria” e ”Ai UéNgongo”, clássicos quedemonstram a criatividade de artistase os conjuntos do passado. O irreverente Hélder Mendes, músi-co mais inclinado para o Afrobeat, aPop Music e Rock surpreendeu inter-pretando ”Kamata”, um lamento imor-talizado por Taborda Guedes e rebus-cou ”Colonial” que a geração mais no-va conhece nas vozes de WaldemarBastos e Carlitos Vieira, depois de ab-sorverem do Ngola Ritmo.Marito e Zé Kenu génios da guitarraangolana não ficaram de fora do ali-nhamento musical com ”Muxima e”Merengue 5 de Julho” (Camarada Pa-to Fora) proporcionando mais um mo-mento da dupla de solista TeddyNsin-gui e Botto Trindade. David Zé, Urbano de Castro, ÓscarNeves, Artur Nunes, Os Kiezos, Jo-vens do Prenda, Os Bongos do Lobito,dentre outras referências da cena

musical angolana fizeram parte doreportório preparado pelas altas pa-tentes da música angolana.Em temas como ”Fatimita”, ”Tia Ses-sa”, ”Comboio”, ” ”Mukongo”, ”PrincesaRita” e ”Mira Mira” provou-se que Dul-ce Trindade na guitarra ritmo e CarlosTimóteo ”Calili” segurando o baixonão dialogavam apenas com os solis-tas. A conversa rítmica estendia-se aomestre da DikanzaRaúlTolingas, Chi-co Montenegro nos bongós. e a per-cussão de Joãozinho Morgado e Mi-guel Correia, ambos nos tambores,que faziam a marcação do sembaO Conjunto Angola 70 é um projec-to de estrelas da música angolanaque foi criado pelo produtor angola-no Otiniel Silva da Mano a Mano Pro-duções e o alemão SamyBenRedjeb(AnalogAfrica) que reúne instrumen-tistas que marcam o bom executardas sonoridades nacionais. Os integrantes do projecto são au-tênticos ‘monstros sagrados’ do nossomeio musical, atendendo que passa-ram pelas principais formações musi-cais nacionais e com imprecisões nasgravações de artistas individuais, poristo considerado pelos organizadorescomo os “Generais do Semba”. Teddy(guitarra solo do Conjunto Inter Pa-lanca, 1 de Maio, Semba África, BandaMovimento, etc), Boto Trindade (gui-tarra solo do Os Bongos do Lobito,Kiezos, Welwitchia, etc), JoãozinhoMorgado (percussionista dos Nego-leiros do Ritmo, Os Merengues, Madi-zeza, etc), Tulinga (tocador de dikan-za do África Show, Kissangela, Kiezos,Jovens do Prenda, Kituxi, etc), Dulce

Trindade (viola ritmo Mini Bossa,Águias Reais, Kiezos, Missangala DT,etc), Kalili (baixista Águias Reais, Fa-pla Povo, Jovens do Prenda, etc) e Chi-co Montenegro (bongos dos Jovensdo Prenda e Fapla Povo). Actualmen-te ganharam o reforço de Correia per-cussionista da Banda Movimentocom passagem pelos Jovens do Pren-da e outras formações e de Legalize eMister Kim dois cantores que conse-guem interpretar canções do antiga-mente sem decepcionarem os maisradicais apreciadores das músicasfeitas nesta época.O Conjunto Angola 70, tem comopropósito, a recuperação dos sonsperdidos desta época, o que permite aperpetuação de acordes tocados eminstrumentos de corda nos bairros enas farras dos musseques de Luandaantiga. O primeiro concerto do Con-junto Angola 70 aconteceu em Maio de2011, no espaço Elinga Teatro e visavaapresentar temas da colectânea de

música Angola Soundtrack, lançadoem 2009 pela gravadora alemã Analo-gAfrica. Em Npvembro de 2011reali-zou a sua primeira digressão pela Eu-ropa, participando em festivais de mú-sicas, repetindo o feito um ano maistarde. Segundo os produtores dar aconhecer ao mundo a música da épocaque marcou a viragem da história deAngola, entre os anos 60 e 70 (antes edepois da independência), vendendoo referido produto aos maiores produ-tores e promotores internacionais deespectáculos é o foco.Já colaboraram com esta formaçãoMamukueno no primeiro concerto edigressão, Zecax que foi o vocalista nasegunda digressão, Gregório Mulato,Zé Fininho e Mogue. O grupo foi retra-tado no documentário Angola Rio Lo-co de Nguxi dos Santos.

ESTADO MAIOR DO SEMBA NA FORTALEZA

CONJUNTO ANGOLA 70 JUNTAENTUSIASTAS DA MÚSICA ANGOLANA

12 | ARTES 24 de Abril a 7 de Maio de 2018 | Cultura

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ADRIANO DE MELOAcidade, os seus integrantes e aevolução que ela sofre com odecorrer dos anos, são temasque sempre chama atenção aos artis-tas. Conseguir expressar o que de me-lhor e pior desponta nela é um desafioa que muitos se propõem e apenas al-guns conseguem. Luanda, como toda aurbe moderna, tem imensas “rique-zas” para os seus criadores e está é abase da mais recente mostra colectivade vários jovens artistas, “Indivíduo.Cidade. Metamorfose”.A exposição, patente nos Coqueiros,em Luanda, na inaugurada galeria Jah-mek Contemporary Art, faz um enfo-que especial à dinâmica da sociedadecontemporânea e as consequênciasdas mudanças na vida dos citadinos,assim como a sua influência para asgerações vindouras.Muitos visitantes podem constatarna exposição que um dos maiores de-safios dos artistas foi o de “inventar” ofuturo, tendo em conta as mudançasdo passado e o seu reflexo no presen-te. A mostra pode ser vista como a pre-missa para uma análise mais profundasobre a Luanda actual e que futuro sepode esperar dela.Como todo o artista deve marcar asua geração e saber analisar todas asmudanças vividas na sua época, entãoKiluanji Kia Henda, Nástio Mosquito,Francisco Vidal, Délio Jasse, Yonamine,Iris Buchholz Chocolate e Tiago Borgesconseguiram mostrar, com a exposição,que viram os “sinais” do seu tempo e astransformações na sociedade.As obras, cada uma com a peculiari-dade do seu criador, são uma forma di-ferente de ver as mudanças sociais eculturais de Luanda e dos seus habi-tantes, através de um diálogo aberto,no qual as fronteiras da imaginaçãopodem levar qualquer um dos visitan-tes a reflectirem sobre a sua maneirade observar a capital de Angola.“Demo Cra Cia” é, por exemplo, a pro-posta de Nástio Mosquito. A instalação,criada em 2015, inclui uma projecçãode vídeo. O objectivo do autor, como o tí-tulo da própria obra propõe, é reflectirsobre este fenómeno, que em Angola,foi tema de inúmeros debates.Para Yonamine é o “Pão nosso de cadadia” o foco da sua análise. Feita em 2016,a instalação de parede montada com pãotorrado, mostra um pouco da realidadedos angolanos residentes em Luandadurante décadas. Um aspecto que chamaatenção ao visitante é o facto de o artistater conseguido replicar o rosto do ex-presidente da República, José Eduardodos Santos, em vários dos pães.Com “Killing me Softly”, FranciscoVidal levou o público para uma viagemda imaginação, onde o tempo coman-da a visão de quem vê a instalação com

desenho e serigrafia. “Me matandosuavemente”, como sugere o títuloem inglês, dá ao público inúmerasideias sobre o que esperar deste tra-balho, criado este ano.Num estilo diferente, Délio Jasseapresentou “A volta do tempo”, outradas suas recentes criações. Feita esteano, o projecto, em imagens c-printsobre película, espelha um pouco da-quilo que marcou e foi o quotidianodos luandenses, durante meses.A proposta de Kiluanji Kia Hendafoi “Blank Capital”, um conjunto de 48fotografias, feitos no estilo inkjetprint sobre papel de algodão, entre2017 e 2018. A ideia do artista, comoo título sugere, é provocar a vontadede reflexão no público, através de um“Capital em branco”, onde cada umpode recriar, com base nas imagens, asua ideia sobre Luanda.“Money/Honey”, um título ousado, pe-lo seu significado em português “Dinhei-ro querido”, é a ideia de Tiago Borges, pa-ra mostrar uma das principais bases dasmudanças sociais e um dos aspectos queaté hoje ajudam a definir determinadasbarreiras sociais e a criar transformaçõessignificativas entre as pessoas. O projec-to, feito no estilo instalação de paredecom luz, foi criado em 2007.Com dois trabalhos, um deles “Mo-mentos de Aqui”, pintura feita em2016, e outro, “O fio das Missangas”, decera e cabelo sintético sobre papel,criado em 2016, Iris Buchholz Choco-late procura unir o passado e o pre-sente, numa perspectiva futurista. Os desafios propostos pelos jovenscriadores, patentes ao público até opróximo dia 24 deste mês, trazem tam-bém os de um novo espaço, que pre-tende se impor no mercado da capital,através de exposições ousadas, capa-zes de “prenderem” as pessoas, nestaera de novas tecnologias.

ARTE E METAMOFORSEREVER LUANDA SOBRE PERSPECTIVAS

ARTES | 13Cultura | 24 de Abril a 7 de Maio de 2018

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24 de Abril a 7 de Maio de 2018 | Cultura14 | BARRA DO KWANZA

Meio-dia. Sol fraquinho e cle-mente. A época era de cacim-bo. Depois de passar um anoem Luanda, onde esteve em tratamen-to médico, o intrépido soba Osso deLeão regressa à aldeia de Katari, na co-muna do Lombe, município de Cacuso,província de Malanje. Para o espanto geral, tão logo che-gara, convocou todos os homens, in-cluindo os jovens, para participaremde uma reunião no dia seguinte, logopelas primeiras horas do dia. A mesmanão se realizaria no jango, que era o lo-cal habitual. Seria no meio da mata,muito longe da aldeia.“O que ele quer falar de tão impor-tante que nem pode descansar ainda!?”.“Assim mesmo, estas reuniões nun-ca mais terminarão!”.“Mas este homem está pensar queainda está em Luanda?! Esqueceu-sede que estamos na época de cacimboou quê?! A mata fica fechada com o ne-voeiro e pode ser perigoso por causados animais selvagens”.“Ele veio fazer o quê?! Devia conti-nuar com a boa vida que tinha emLuanda. Ou pensa que não sabíamosdisso! Até já se esqueceu de que nestaépoca é perigoso entrar na mata demanhã”. – eram estes os sussurres quese ouviam nos quatro cantos da aldeia.Chegados aos seus ouvidos, retru-cou-os:- Não há perigo quando as pessoasse unem. Será que já se esqueceram deque a união faz a força?! Sairemos jun-tos da aldeia. Levaremos todo o mate-rial de caça que temos. No dia seguinte, às cinco horas, de-baixo de um frio intenso que, feitomanto, encobria a aldeia com um fortenevoeiro gotejante, começava a con-centração dos homens. Os murmúrios

continuavam, mas eram muito maisdiscretos. Ninguém queria correr orisco de ser ouvido pelo soba.“Com um frio desse tão intenso, apessoa tem que sair da cama, abando-nar a mulher para ouvir um homemque andava na boa vida em Luanda…”– pensou um aldeão.Trinta minutos depois, à guisa demilitares, a caravana pôs-se a mar-char. Estavam munidos do material decaça como alvitrara o indómito sobaOsso de Leão. Uns empunhavam caça-deiras, outros catanas, enxadas, pica-retas e, até, pedaços de paco uns leva-vam. Estavam preparados para en-frentar qualquer animal selvagem. O soba Osso de Leão, corajoso comoera conhecido, seguia na linha da frente.Foi assim que, notando o quão anafadoestava, um aldeão cochichou a outro:- Já reparaste como ele está bemgordinho?! Esse homem andava mes-mo na boa vida em Luanda!O outro homem apenas franziu atesta em sinal de anuência. Decerto,não queria correr o risco de ser ouvidoa vituperar o temido soba. A caravanaseguia silenciosa e apreensiva. O silên-cio denotava ansiedade sobre o que sefalaria naquela misteriosa reunião. Jáa apreensão, era por causa do perigocom os animais selvagens que abun-davam naquelas matas que estavamcobertas pelo nevoeiro. Nem lhes per-mitia ver os obstáculos a escassos me-tros adiante. A caminhada prosseguia. O únicosom que se ouvia era o produzido pe-los passos dos homens. A mata estavaapossada por um silêncio sepulcral.Finalmente, chegaram no local em quese reuniriam. Os homens do sobadoesmeraram-se em transformá-lo nu-ma sala de reunião rural, a céu aberto.

Com recurso a vários troncos, criaramum improvisado pódio. Onde se aco-modou o soba Osso de Leão.Estavam todos agasalhados. Contu-do, tiritando, muitos demonstravamum certo enfadamento. Pois nem mes-mo a caminhada os livrara do frio, quetal como o nevoeiro, continuava com amesma pujança. - Bom dia, camaradas!!! – saudou osoba numa voz forte.- Bom dia, soba Osso de Leão!!! –responderam os aldeões no mesmovigor com que foram saudados. Hou-ve sincronia.- Antes de tudo, gostaria de vos dizerque tudo o que se passou na aldeia du-rante todo o ano em que estive ausentechegou ao meu conhecimento, inclusi-ve os óbitos. Vou passar nas casas ondehouve infelicidades e pessoalmentetransmitirei a minha solidariedade àsfamílias enlutadas. Também visitareitodos os que estão adoentados – disseo soba e prosseguiu. – sei que estãochateados por estarem aqui a esta ho-ra com este frio todo. No vosso lugar eutambém estaria. Por outra, fiquem asaber que tudo o que vocês falaram so-bre mim, também chegou aos meusouvidos. Mas o problema não é meu.Quem me caluniou, o pecado é de…- É dele!!! – concluíram os aldeões e aseguir, entreolharam-se suspeitamente.Parecia que cada um, com o seu olhar,acusava o outro de ser um saco-roto.O soba Osso de Leão era conheci-do como um homem frontal e, às ve-zes, quando atacava não escondia onome do seu informante. Por estefacto, muitos evitavam o informarsobre determinado assunto. Masdesta vez, não mencionou o nome doinformante, do saco-roto.Aquela frontalidade com que o so-ba iniciara o seu discurso atiçou a an-siedade dos homens em saber o queviria a seguir, por isso, redobraram aconcentração e, até, pareceu que deforma inopinada o forte frio que sen-tiam desaparecera. - Agora, vamos tratar do assuntograve que me fez vos convocar com ur-gência. É do vosso conhecimento quesaí muito doente daqui. Em Luanda, fi-quei hospitalizado durante três me-ses. Neste período, ouvia muito umarádio local. Foi através dela que meapercebi de que alguma coisa grave sepassava por lá – continuou o soba. Os homens, expectantes, mantive-ram-se em um silêncio ensurdecedor.Apenas meneavam as cabeças em sinalde concordância com o interlocutor.- Nessa rádio, todos os dias, noticia-vam casos de violações sexuais. Nãoera um ou dois, eram vários diaria-mente. Envolvendo pais contra filhas,filhos contras mães. Netos contraavós. Avôs contra netas. Vizinhos con-tra vizinhas e outros casos em que nãohavia relação de proximidade. O mais

grave é que não poupavam as criançaspequenininhas, nem os rapazes. Erasodomia pura contra os rapazes! Es-tas notícias vergonhosas levaram-mea uma profundo reflexão. Dito isto, os aldeões mudaram com-pletamente o semblante. Muitos, debrusco, tinham os rostos carrancudos.Outros levaram as mãos às bocas queestavam completamente escancara-das de tanta admiração. Houve aindaaqueles que chegaram a desconfiarque o soba não estivesse bem curado,ou melhor, encontrou cura física, masganhou doença mental.- Pois é. É assim também que eu fica-va todos os dias quando ouvia estasconversas de vergonha. Então, depoisde ter recebido alta no hospital, resol-vi fazer uma investigação muito sériasobre isso. É o trabalho que me fez fi-car por lá durante um ano. O frio forte começou a desaparecer.O céu timidamente começava a livrar-se do nevoeiro que se tinha apossadodele. Alegres estavam os aldeões, jápodiam ter uma visibilidade melhor. Amata também começava a dar o sinalde que despertara. Ouvia-se o som dealguns grilos e também dos ninhossaía já o frágil pio dos passarinhos.O Soba Osso de Leão, já sem o seucasaco forte, colocara-o sobre uma ár-vore ao lado do pódio, continuou a ex-plicar o assunto que lhe levou a convo-car aquela reunião de emergência.Disse que das suas investigações, fei-tas com a ajuda do seu neto, sem queeste se apercebesse, descobriu que to-da esta situação de violações sexuaisque Luanda vivia tinha como respon-sável um grupo de mulheres que se au-to-denominou por Feministas.Os aldeões, sem qualquer noção doque significava este tal grupo de Femi-nistas, pasmos, entreolharam-se. Osolhares eram inquiridores. Talvezpensavam que fosse um grupo militar.De brusco, muitos foram apossadospor sentimentos de ira. O semblantenos rostos era de revolta.- Existem muitas técnicas que elasusam para deixarem os homens des-controlados e, a seguir, fazerem estascoisas que metem vergonha a qual-quer homem de juízo. As mulheres emLuanda, vestem roupas muito curtas.Todas as ancas ficam mesmo de fora.Até mesmo aquelas bochechas do ra-bo que puxam apetite no homem fi-cam à mostra. O homem sai daí cheiode prazer, quando pede amor namamã, se esta não lhe aceitar, solu-ção é violar as crianças que apare-cerem à frente. Outras mulheres an-dam com as chuchas de fora. As blu-sas bem abertas. Chamam é decote.

O GOLPE FEMINISTAFRANCISCO NETO

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CRÓNICA“SEMPRE SERÁ O NOSSO

CARNAVAL DA VITÓRIA” IMANNI DA SILVAOCarnaval sempre foi a maiorfesta cultural do País. A minhainfância foi marcada pelasgrandes e belas memórias vividas nocarnaval onde se aproveitava parausar as máscaras que representavamo verdadeiro semblante das nossaspersonalidades. Pra frente e pra trás láeu subia e descia com os amigos po-dendo assistir de perto ou do alto davaranda de frente a Marginal da Aveni-da 4ºde Fevereiro. Naquele tempo nãohaviam bancadas para o povo e sim oempurra-empurra para poder tiraruma casquinha do que se podia ver esentir dos grupos carnavalescos. Otempo passou e com ele mudaram asvontades. Os desfiles distancia-ram-se do nosso endereçomas não dos nossos corações.Este ano de 2018 foi marcadopelo facto ter passado pela expe-riência de desfilar no carnavalpara o grupo “EtuMudietu”no2ºdia de desfiles. Foi uma ex-periência fantástica desdeensaios, provas de roupa eo calor e agitação do pú-blico. O que me chamou aatenção é que a força dosgrupos carnavalescosvem de uma geração bemmais atrevida com um nívelde criatividade fora de série. E para umamente criativa e cheia de ideias não hánada pior do que seguir regras princi-palmente quando estas interferem noprocesso e liberdade de criação.O nosso carnaval é único e nada pe-

de emprestado ao que se faz em ou-tros Países mas acredito que tal comomuitas pessoas, tanto os integrantesdos grupos carnavalescos, tanto quan-to o público em geral,pede-se e espe-ra-se mais inovação. É claro que semapoio financeiro pouco ou nada se fazmas também é verdade que a força daimaginação e do querer conseguemmover montanhas. Lamentei o factode que os grupos apresentados nosprimeiro dois dias não tiveram privi-légio de uma cobertura televisiva emdirecto para poder partilhar com oPaís inteiro o seu árduo trabalho, masenfim...Atenta, assisti as entrevistasdos ilustres convidados durante a co-bertura do 3º e último dia onde desfi-laram os grupos da classe A no qualconcordei com muito do que se abor-dou. Realmente o nosso Carnaval devedeixar de ser um evento organizadoexclusivamente pelo governo e quedeve passar a envolver o maior núme-ro possível de pessoas que venham acontribuir de diversas formas. Os gru-pos necessitam de apoios de grandesempresas e instituições, parceriascom designers e fazedores de arte. Oscarros alegóricos pedem por melho-res acabamentos e colossal extrava-gância. Há quem diga e tenha medo donosso carnaval igualar-se a outros emespecial ao do Brasil que diga-se depassagem é o maior do mundo. Mas onosso carnaval está a precisar deumaincrementada e de maior opulên-cia. Para melhor entender pergunteicom todo interesse e curiosidade

quais as regras obrigatórias a seremseguidas pelos grupos carnavalescos.Portanto os grupos têm que escolherum tema e fazer uma apresentação ba-seada neste mesmo tema e ter as alascompostas por comandantes, reis erainhas, pelas varinas, grupo de baila-do, pescadores, bessanganas e claroos carros alegóricos que desfilam aosom de uma canção original ao ritmodo semba, kabetula, kazukuta ou a di-zanda. Pessoalmente não vejo nadademais em casar a tradição com a ino-vação e se possível adicionar uma lan-tejoula ali ou uma pluma acolá . A Tra-dição deve ser valorizada e preserva-da, a inovação vai fazer a diferença en-tre os grupos que competem entre si ea expectativa e entusiasmo do públicotorna-se maior. Sonho com o nosso carnaval grandio-so que arrastará multidões dos quatrocantos do planeta e sabemos bem queprecisamos de muitos motivos paraatrair turistas e pintar de coisas boas onome do nosso País pelo mundo fora. Euolho para o futuro do nosso carnavalcom entusiasmo pois eu sei que este es-tá muito bem entregue, em mãos de jo-vens que têm uma visão que faz jus aoapetite de por pra fora as ideias queinundam suas mentes brilhantes. Nãodeve haver medo de perdermos a nossaessência pois muito pelo contrário de-vemos fortalece-la com propriedade eorgulho pois o carnaval em Angola commais ou menos extravagância, mais oumenos brilho e luz nunca deixará de sero “Nosso carnaval da Vitória”.

As saias bem curtas, é só passar umvento, tudo aparece nas vistas daspessoas e, ainda por cima, as cuecasque metem são bem pequeninas, cha-mam de fio dental – prosseguiu o soba.O sol fez-se presente. Correu de vezcom o frio. Deu mais vigor à conversado soba, que já estava bem quente. Osaldeões continuavam admirados. Opasmo estava preso nos rostos. A maio-ria deles estava já sem os casacos. Amata ganhava cada vez mais vida. À dis-tância, ouvia-se o barulho dos macacos.- O objectivo das Feministas é rece-ber o lugar do homem na sociedade.Elas não aceitam o patriarcado. Comestas coisas vergonhosas que estãoacontecer em Luanda, vão chegar àconclusão de que as mulheres é quedevem mandar.- Isso nunca!! – num repente falouum aldeão – seguidamente, houvegrandes murmúrios. - Não vamos permitir. Se for precisovamos lá lhes dar uma surra. Temosmuitas armas – reforçou outro aldeão e

os outros concordaram com a sua ideia.- Em Luanda, não se bate mulher. Di-zem é violência doméstica. Tambémfalam muito de um tal de Direitos Hu-manos. Se você bater, vai parar à ca-deia – disse o soba.- E assim como é que vamos fazer?!– inquiriu outro aldeão.Em resposta, o soba Osso de Leãodisse que todos os aldeãos deverãocerrar fileiras em protecção à aldeia.Não deverão permitir que aquelasmaneiras das mulheres Feministasde Luanda chegassem lá. Todas as fi-lhas que estivessem em Luanda nãodeveriam mais voltar e quem tivesseplanos de mandar alguma que cance-lasse já, sob pena dela também nãoregressar também. - Ainda bem que aqui não temos te-levisão. É outro meio que elas usam.As novelas, onde todos os dias apre-sentam os casais a fazerem amor éuma isca pura. Até as crianças assis-tem aquelas vergonhices. Os beijoslinguados passam a todo o instante.

Os aldeões concordaram com o pla-no engendrado pelo soba. Promete-ram segui-lo à risca e que o manteriamem segredo absoluto. - Então, está declarada a guerracontra estas mulheres que queremnos receber o trono que recebemos deDeus?! Não vamos permitir um golpefeminista?! – indagou o soba - Mas éuma guerra sem armas – continuou.- Declarada!!! – responderam os al-deões em uníssono.Terminada a reunião, iniciaram acaminhada de regresso a aldeia. Po-rém, já não foi tão ordeira como chega-ram àquele local. Dessa vez, num pas-so mais vagaroso, o soba ficou no gru-po de trás. Estava com os homens dosobado. Alguns aldeões desviavam oscaminhos. Seguiam por atalhos que oslevariam à faina. Já era a hora. Uns iamà caça, afinal já estavam com as armas.Outros às lavras.- Olha, aí em Luanda, os nossos ir-mãos estão num grande perigo. As mu-lheres estão muito bonitas. Você pode se

achar que é forte, mas vai cair mesmo.Elas vestem umas roupas que chamamde colã, aquilo deixa todo o rabo da mu-lher para fora. Depois ao andar, as náde-gas fazem um sobe e desce como se esti-vessem em concurso. Nas cabeças, o ca-belo delas ficou já de branca. Todas bembonitas. Até as unhas delas são diferen-te. Na praia então?! É mesmo M´ualunga.Kalunga de verdade!! Nem tenho cora-gem de vos contar como elas se apresen-tam lá. Eh! Eh! Esqueci de falar das igre-jas. Em Luanda, até os pastores estão acair no golpe das Feministas. Todos osdias! Por isso, vamos vigiar. Aqui não po-dem chegar – dizia o soba Osso de Leãoaos seus homens de confiança. Desde aquele dia em diante, todasas esposas dos aldeões da aldeia Kata-ri, na comuna do Lombe, município deCacuso, passaram a notar um compor-tamento estranho por parte dos seusesposos. Mas nunca chegaram a des-cobrir que tal se deveu ao grupo Femi-nistas que estava a deixar cair os ho-mens em Luanda.

BARRA DO KWANZA | 15Cultura | 24 de Abril a 7 de Maio de 2018

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