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Cultura Jornal Angolano de Artes e Letras ʹ ͻ ʹͲͳͺ ȁ ͳͷ ȁ Ȉ ǣ ± À Ȉ ͷͲǡͲͲ Nascido no País Dogon, no Mali, Ama- higuèrè Dolo é reconhecido mundo afora por suas esculturas que fazem nascer do barro ou de troncos de madeira obras de arte orgânicas que mesclam natureza e arte em uma mesma peça. AMAHIGUÈRÈ DOLO E A ALMA NA NATUREZA DA ARTE A Nova Energia abriu a quinta Tem- porada do Show do Mês nos dias 2 e 3 de Março, no Royal Plaza, com concertos de Elias Dya Kimuezo, proporcionando momentos reais ao som do “Soberano da música” Ao som de “Caminho de Ferro” assistiu-se o regresso do rei, depois das saudações e reconhecimento feitas em Kimbundu, pelos dois primeiros e um esclarecimento do “Leonor” tema da época que Elias fazia jus ao nome “Dya Kimuezo” com a sua barba farta que causava o delírio das “kilumbas” dos musseques. NGA ELIAS ABRE SHOW DO MÊS ARTES LUÍS KANDJIMBU REVELA “ACASOS & MELOMANIAS URBANAS” LETRAS DIÁLOGO INTERCULTURAL 11 e 12 Pág. 13 Págs. 15 BARRA DO KWANZA Pág. 3 No quadro da parceria entre Editora Acácias, Movimento Lev’arte e Camões/Centro Cultural Português, a colecção “Troncos da Literatura Angolana” editou a obra mais recente do escritor Luís Kandjimbu, “Acasos & Melomanias Urba- nas”, que foi lançada no dia 22 de Março de 2018 no Camões. Com tristes salários, meu pai fazia feitiço de multiplicar dinheiro para que não nos faltasse o que comer, o que vestir e o por que sorrir. MEU PAI É FEITICEIRO DE ANTÓNIO QUINO Cult tur ra ARTES ͻ ʹ 11 e 12 11 e 12 C ͷ ͳ ȁ ͺ ͳ Ͳ ʹ Jornal Angolano de Artes e Letras Pág. ult ± ǣ Ȉ ȁ Jornal Angolano de Artes e Letras tur Ȉ À ± Jornal Angolano de Artes e Letras ra Jornal Angolano de Artes e Letras Ͳ Ͳ ǡ Ͳ ͷ BARRA DO KWANZA BARRA DO KWANZA 15 Págs. LETRAS 3 Pág. Pág. onhecido mundo af ec olo é r è D higuèr ogon, no M aís D Nascido no P E A ALMA NA NATUREZA DA ARTE AMAHIGUÈRÈ DOLO OGO INTERCUL DIÁL a or onhecido mundo af - ma ali, A ogon, no M E A ALMA NA NATUREZA DA ARTE AMAHIGUÈRÈ DOLO TURAL OGO INTERCUL 13 Pág. “ACASOS & MELOMANIAS URBANAS” LUÍS KANDJIMBU REVELA “ACASOS & MELOMANIAS URBANAS” LUÍS KANDJIMBU REVELA e em uma mesma peça. “ACASOS & MELOMANIAS URBANAS” t ar gânicas que mesclam na e or t ar os de madeir onc o ou de tr r bar as que faz por suas escultur onhecido mundo af ec olo é r è D higuèr LUÍS KANDJIMBU REVELA e em uma mesma peça. eza e tur gânicas que mesclam na as de a obr os de madeir er do em nasc as que faz a or onhecido mundo af “ACASOS & MELOMANIAS URBANAS” amões de 2018 no C oi lançada no dia 22 de M , que f nas casos & M A “A , andjimbu K a mais r ou a obr edit onc r T ção olec c o C tr en amões/C C vimen o , M cácias A o da par No quadr “ACASOS & MELOMANIAS URBANAS” . amões o ç ar oi lançada no dia 22 de M - ba elomanias Ur casos & M uís or L it e do escr t en ec a mais r ngolana a A tur a er os da Lit onc , a tuguês or al P ultur o C e e t ar ev o L t vimen a or dit e E tr ia en er c o da par “ACASOS & MELOMANIAS URBANAS” uís ngolana

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CulturaJornal Angolano de Artes e Letras

Nascido no País Dogon, no Mali, Ama-higuèrè Dolo é reconhecido mundo afora por suas esculturas que fazem nascer do barro ou de troncos de madeira obras de arte orgânicas que mesclam natureza e arte em uma mesma peça.

AMAHIGUÈRÈ DOLOE A ALMA NA NATUREZA DA ARTE

A Nova Energia abriu a quinta Tem-porada do Show do Mês nos dias 2 e 3 de Março, no Royal Plaza, com concertos de Elias Dya Kimuezo, proporcionando momentos reais ao som do “Soberano da música”Ao som de “Caminho de Ferro” assistiu-se o regresso do rei, depois das saudações e reconhecimento feitas em Kimbundu, pelos dois primeiros e um esclarecimentodo “Leonor” tema da épocaque Elias fazia jus ao nome“Dya Kimuezo” com a suabarba farta que causavao delírio das “kilumbas”dos musseques.

NGAELIASABRE SHOWDO MÊS

ARTES

LUÍS KANDJIMBU REVELA “ACASOS & MELOMANIAS URBANAS”

LETRAS DIÁLOGO INTERCULTURAL

Pág.11 e 12

Pág.13

Págs.15BARRA DO KWANZA Pág.

3

No quadro da parceria entre Editora Acácias, Movimento Lev’arte e Camões/Centro Cultural Português, a colecção “Troncos da Literatura Angolana” editou a obra mais recente do escritor Luís Kandjimbu, “Acasos & Melomanias Urba-nas”, que foi lançada no dia 22 de Março de 2018 no Camões.

Com tristes salários, meu pai fazia feitiço de multiplicar dinheiro para que não nos faltasse o que comer, o que vestir e o por que sorrir.

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2 | EDITORIAL 27 de Março a 9 de Abril de 2018 | Cultura

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O jornal Cultura aceita para publicação artigos literário-científicos e re-censões bibliográficas. Os manuscritos apresentados devem ser originais.Todos os autores que apresentarem os seus artigos para publicação aojornal Cultura assumem o compromisso de não apresentar esses mesmosartigos a outros órgãos. Após análise do Conselho Editorial, as contribui-ções serão avaliadas e, em caso de não publicação, os pareceres serãocomunicados aos autores.

Os conteúdos publicados, bem como a referência a figuras ou gráficos jápublicados, são da exclusiva responsabilidade dos seus autores.

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Conselho de Administração

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CulturaJornal Angolano de Artes e Letras

Nº 157/Ano VI/ 27 de Março a 9 de Abril de 2018E-mail: [email protected]: www.jornalcultura.sapo.aoTelefone e Fax: 222 01 82 84

CONSELHO EDITORIAL

Director e Editor-chefe:José Luís MendonçaEditores:Adriano de Melo e Gaspar MicoloSecretária:Ilda RosaFotografia:Paulino Damião (Cinquenta)Arte e Paginação: Jorge de Sousa,Alberto Bumba e Sócrates SimónsEdição online: Adão de Sousa

Colaboram neste número:Angola: Analtino Santos, António Quino, Lito Silva,Mário Pereira, Nok Nogueira, Rossana Miranda

Congo: Jean-Michel Mabeko-Tali

Brasil: Flora Pereira da Silva

FONTES DE INFORMAÇÃO GLOBAL:

AFREAKAAFRICULTURES, Portal e revista de referênciaAGULHACORREIO DA UNESCOMODO DE USAR & CO. OBVIOUS MAGAZINE

OUVE-SE DAQUI O LIGEIRO RESSONAR DAS ONDAS QUE SE FAZEM NO MUSSULO.

DAS ESPERTEZAS E PARÓDIAS AMANHECIDAS NUM FORNOTAL QUAL A NUVEM QUE O DETÉM ALI.

PERCEBE-SE DE LONGE O VAI E VEM DE PALAVRAS LIGEIRASQUE AO REDOR DO REDUTO MAIS LACÓNICOTRANSFORMAM-SE EM METAFÓRAS EMBUÇADAS.

A MEMÓRIA É A CHAVE QUE ABRE A AREIA, OS BARCOS E OS SERESQUE DENTRO DO SEU CANTAROLAR LIGEIRO COMPLEMENTAM A FRASE DO PESCADOR QUE O DESCREVE.

O ASSOBIO DA NOITE CHEGA BREVE, ENALTECENDO ODORES, BALANCEANDO FESTASCOM A HEGEMONIA DE SENTIMENTO QUE SE FAZEM LIGEIROS NUMA PARTICULA EVANESCENTE PELO SEU PODER.

O OUTRO LADO É CONOTADO POR SI SÓPOR SER A AURÉOLA DA BRISA QUE INSISTE EM BATER DE FRENTE COM A VIDASINGELA E FIGURADA COMO A ESCRITA DO POETA QUE ESPERA EM CADA LADO, O SABOR DA BOÉMIA DA ILHA DESPIDA PELA IRA DOS LÁBIOS DENOTADOS.

________________________________________Rossana Paula de Almeida Miranda nasceu em Luanda no dia 5 de Outu-

bro de 1979. Começou a trabalhar aos 17 anos, na Luanda Antena Co-mercial depois de ter terminado o Curso Médio de Jornalismo em Novem-

bro de 1996.Passou pela Rádio Ecclésia e teve a primeira experiência como profissional deTV (embora entre 1990 e 1991 tenha participado no espaço correspondênciado Programa Carrossel da TPA), no espaço Dicas Rápidas do programa NaçãoCoragem da Orion transmitido na TPA.Depois tornou-se apresentadora do programa Jovemania, corria o ano de 2001.Publicou vários textos na página de Cultura do Jornal de Angola na mesma época.Formada em Relações Internacionais pela Universidade Lusíada de Angola em2005, é casada há 14 anos, tem dois filhos, está ligada ao Jornalismo televisivodesde 2008 e é gestora de comunicação (institucional) desde 2004.

POEMADE ROSSANA MIRANDA

LIGEIRO

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LETRAS | 3Cultura | 27 de Março a 9 de Abril de 2018

“ACASOS & MELOMANIAS URBANAS”Estórias da autoria de Noel Vilyaneke, livrinho publicado a título

póstumo, com assinatura de seu ilustre amigo, tal como se lê no testamentoNo quadro da parceria entreEditora Acácias, MovimentoLev’arte e Camões/Centro Cul-tural Português, a colecção “Troncosda Literatura Angolana” editou a obramais recente do escritor Luís Kand-jimbu, “Acasos & Melomanias Urba-nas”, que foi lançada no dia 22 de Mar-ço de 2018 no Camões.A publicação de Acasos E Meloma-nias Urbanas, segundo Luís Kandjim-bu, resulta de uma disposição testa-mentária de um autor desconhecido,que nutria por Luís Kandjimbu umatão grande admiração, que chegava aplagiar-lhe o estilo e apropriar-se doseu nome, acalentando também o de-sejo secreto de se apropriar sua iden-tidade e personalidade. É esta figura,rodeada de mistério, que, através deuma disposição testamentária, entre-ga a Luís Kandjimbu o original da obrapara publicação, que deverá ter o seunome inscrito na capa do livro, deven-do considerar-se, para todos os efei-tos, autor da obra, ainda que em viola-ção do direito de autor. As estórias dolivro são narradas na primeira pessoa,porque o autor real quis criar umapersonagem que tivesse muitas seme-lhanças com Luís Kandjimbu.As receitas do livro, segundo amesma disposição testamentária, de-verão reverter para aquisição de maislivros para prosseguir o sonho deLuís Kandjimbu de “difundir o gostopela prática do ensaio, o género lite-rário germinal, que no princípio doséculo XX, serviu para defender a dig-nidade e a honra desta terra”. Para a publicação da obra foi deter-minante o repto lançado por um inter-nauta, Sunday Ndjeke Kamufingo, semnenhuma obra publicada, residente emNgalengin, Centro-Este de Angola, on-de desenvolve actividade como pastorda Igreja Congregacional e criou umCentro de Estudos das Religiões Tradi-cionais. Neste apelo diz: “por favor em-punhe novamente a sua caneta. Escre-va livros para que os possa ler aqui comoutros olhos. Continue a escrever nosjornais sobre ideias, literaturas, filoso-fia, arte , cinema de África (…). Sei queteme ser atacado pelos que não gostamdo que diz. Meu caro amigo, permita-me que lhe trate assim, o país que que-remos e que é nosso deve ser feito porvozes discordantes, sem unanimismos.Não é verdade que ao caos aparentesubjaz alguma ordem?”Luís Kandjimbo considera que “estaobra será a forma de corresponder àirresistível necessidade de escrever.Vem enterrar o irregular silêncio”.

Em Abril 2002, por mais um acasodo destino, foi encontrado um manus-crito de papel, escrito por um autoranónimo, internado na Psiquiatria deLuanda, que apelava à reflexão e disse-minação de 3 ideias centrais: A gera-ção de escritores, militares e políticos,que partilham memórias, história, cul-tura e destino; a semântica do concei-to de paz; a inserção do direito à paz nagramática constitucional. NARRATIVAS DA MÚSICA ANGOLANADepois destes ACASOS introdutó-rios, que poderão duplicação de per-sonalidades do criador literário, aobra espraia-se numa viagem pela his-tória da música popular urbana ango-lana, entre as décadas 60 e 70. Semdeixar de fora contextos gramaticaisdramáticos e alguns episódios pito-rescos, o Autor relembra, ao detalhe,grupos e figuras marcantes na músicapopular urbana de Angola, particular-mente de Benguela. Os grupos NgomaJazz, Ngola 74, The Lovers, Bongos,Jovens do Prenda, Águias Reais, TrioMadjesi, Merengues, África Ritmos,Kiezus, Two AH, Cabinda Ritmos e Su-per Coba. Os guitarristas Botto Trin-dade, Zé Kenu, Zeca Tyrilene e Carli-tos Vieira Dias. Os cantores Urbanode Castro, Tadadidi Mário, Tiny, Car-los Lamartine, David Zé, Carlitos Viei-ra Dias, Vate Costa, Mingo, Gino, Mari-to e Nito são evocados, entre muitosoutros nomes.O autor da obra concluiu que “Ahistória da música angolana não po-de ser feita só de biografias. É precisoescrever narrativas e explicar. Seránecessário acrescentar fotografiasque tenham registado o processo decriação musical, os espectáculos, asdanças, e os comportamentos dospares dançantes nos salões, a produ-ção fonográfica “(…)” SOBRE O AUTORLuís Kandjimbu nasceu em Bengue-la em 1960. Poeta, ensaísta e crítico li-terário, é membro da União dos Escri-tores Angolanos e da Associação parao Estudo das Literaturas Africanas deParis (APELA). Professor da Universi-dade Metodista de Angola, onde lec-ciona disciplinas da área das Literatu-ras, nomeadamente, Introdução aosEstudos Literários, Literatura Angola-na, Literaturas de Língua Portuguesa(Literaturas do Brasil, Cabo Verde,Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe,Moçambique e Portugal), Teoria daLiteratura e Crítica Textual. Tem-se

ocupado da divulgação e investigaçãodas Literaturas Africanas e da Históriada Literatura Angolana.Os seus domínios de interesse es-tendem-se aos Estudos Africanos emgeral, cobrindo especialmente a Filo-sofia Africana, a História de África, aTeologia Africana, a Linguística Afri-cana, a Antropologia, a Teoria da Lite-ratura e a Critica Literária. Preparaactualmente o Doutoramento em Es-tudos de Literatura na UniversidadeNova de Lisboa. Foi Conselheiro Cultural da Embai-xada de Angola em Portugal e Vice-Mi-nistro da Cultura do último governo daII República.Além da participação em congressos,colóquios e conferências internacio-nais, tem colaboração dispersa em di-versas publicações angolanas e estran-geiras (Alemanha, Áustria, Brasil, Espa-nha, Estados Unidos da América, Fran-ça, Moçambique, Nigéria e Portugal).

Obras Publicadas 1988 – “Apuros de Vigília – Ensaio e

Crítica”, UEA, Apologia de Kalitangi(Ensaio e Crítica), Luanda, INALD;

1997 – “A Estrada da Secura” (poe-sia) (Menção Honrosa do Prémio So-nangol de Literatura), Luanda, UEA;

2000 – “O Noctívago e Outras Estó-rias de um benguelense” (Contos),Luanda, Nzila; “De Vagares a Vestígios”(Poesia), Luanda, INIC;

2003 – “Ideogramas de Ngangi” (en-saio), Novo Imbondeiro;

2011 – “Ensaio para Inversão doOlhar da Literatura Angolana à Litera-tura Portuguesa”.

Durante mais de uma década foi oúnico crítico literário angolano quemanteve uma página da Internet con-sagrada à literatura angolana.

LUÍS KANDJIMBU REVELA

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KUFIKISA KWA MAHAMBA MA KAKALUNGA ENSAIOS POÉTICOS DE KAKALUNGA

MU KIBANDU KYA KUKU WA MUHATU (I)Mu kibandu mwala mu disa Disa dya kudisa otwana Ni ahetu ni mala mawana Adiwanena nzala mu dixisa!(II)Mu kibandu mwala mu okujiza Kwa kulengesa ojingololo ja nzalaJiza ni maka makala mu sanzalaMakudisaokubuza kwakakwiza!(III)Mu kibandu kya muhatu mwala Mwala mu isunji ya nzala ifwisa Woso ulembwa kubana kudisa Mala ma nzala mafwila kindala! (IV)Mu kibandu mwala mu we kudya. Kwa kudisa oifumbe afumbila. Asunga, alengesa akwenu adila. Moxi ya utalelu wa ndumba alaya! (V)Mu kibandu kyami mwala muWanga wakolo ujiba munyaneUjimisa mwenyu wa muxikaneKutambula wanga wa atu amutumu! (VI)Nginyunga, nginyungana dingiNi kibandu kyami ku mutweKibandu kikala kudituna ngweKukala kyabele mukuya kwengi!(VII)Mu kibandu mwene mwala mbutuMwala mwenyu wa kudisa ndumba…Ndumba dya athu ndu monandumbaUkinisa mukutu mukumona mbutuKu tandu dya mutwe kala yolosambaOujiminu wa nzala iyi yolozembaOkulokosa kwa mwenyu wadifutu! (VIII)Mu kibandu kyami ki mwala mu nzalaKuma kyezala mafu mawisu madisaWoso wandala hanji kukala sekuxisaIxindu ya kufwa mu polo ya minzangala! (IX)Mu kibandu kya kuku wa muhatuMwala hanji ibundu yofele ya kajuMwala we hanji odisa dizelesa majuKyoso muthu unjanguta matatu!NO BALAIO DA AVÓ(I)Há milho no balaio/Milho para dar de comer as crianças/Com mulheres ehomens que partilham/Dividem entre si a fome na esteira!(II) No balaio a teimosia persiste/Em afugentar os lamentos da fome/Quevêm com os problemas da sanzala/Que sublimam o fedor que há-de chegar! (III)No balaio da mulher há/Há espíritos da fome que matam/Quem se nega adar de comer/Barrigas de fome que finam agora!(IV)No balaio também há comida/Para alimentar os ladrões que assaltam/Pu-xam, fazem fugir quem chora/Sob o olhar de muitos que vivem!(V)Há no meu balaio/Um forte feitiço que mata quem rouba/Que extinge a vidade quem aceita/Receber a magia de muita gente que lhe ordenou!(VI)Rodeio e volto a rodear/Com o meu balaio à cabeça/Balaio que fica a ne-gar-se em não aceitar/Ficar definhado quando se encaminha para outro lugar!(VII) No balaio onde há fruto/Há vida para alimentar muita…/Muita gente, atéà mocetona/Que faz dançar o corpo por ver a natureza/Sobre a cabeça comoque a festejar/A extinção desta fome que odeia/O movimento da vida

que se tapou!(VIII)No meu balaio não há fome/Visto que há lá folhas verdes que alimen-tam/Quem ainda quer estar sem deixar/Rastos de fome na cara da juventude!(IX)No balaio da avó/Ainda há cajús pequenos/Há lá ainda o milho que fazbranquear os dentes/Quando alguém mastiga três deles!KWENE KWALA NZALA(I)Kwene kwala nzalaKwala ahetu ni malaAtula mixima yabwilaSekutena kutambujilaOtwana twa twezalaNi nzala ijimbisa mala!(II)Mu dibata dya nzalaMwala mu we isunjiIsungila mwenyu, ilunjiIjibisa athu mu sanzala! (III)Mu dituta dyakukutaKi mwala mu dixi Dixi dya menya, dixiDyandala kubiluka, kukutaOdixi odyo dyakambe mwenyu! (IV)Kwene kwala nzalaMwenu ulenga dikangaKi mutu utena kuusangaMwene wafu mwene kindala! (V)Kwene kwala nzalaAhetu ni mala azwataIzwatu yaxikelela ya kukataKuma kimbi kyezala Ni mauvudilu ma nzala! ONDE HÁ FOME(I) Onde há fome/Há homens e mulheres/Que pousam os cansados cora-ções/Sem poderem responder/Os seus filhos repletos/Com a fome que faz in-char a barriga!(II) Numa casa com fome/Há também espíritos/Que puxam a vida, consciên-cias/Que fazem matar na sanzala!(III) Na nuvem ressequida/Não há vapor/Vapor de água que diga/Que quertransformar, amarrar/Esse vapor carente de vida! (IV) Onde há fome/A vida foge para longe/Ninguém a pode encontrar/Ela quemorreu agora mesmo!(V) Onde há fome/Os homens e as mulheres vestem/Negras vestes dedor/Porque o cadáver inchou/Com os excessos da fome!

27 de Março a 9 de Abril de 2018 | Cultura4 | LETRAS

MÁRIO PEREIRA

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LETRAS | 5Cultura | 27 de Março a 9 de Abril de 2018

DIA MUNDIAL DA POESIA REÚNE POETAS E LEITORES

GASPAR MICOLOInstituído pela Organização das Na-ções Unidas para a Educação, aCiência e a Cultura (UNESCO) em1999, o Dia Mundial da Poesia é um tri-buto à palavra poética, género literárioque se apresenta como a manifestaçãoda beleza ou a estética por meio da pa-lavra. A data é geralmente assinaladapor todo o país com leituras, conferên-cias, concertos e exposições.A ocasião foi aproveitada pelo Me-morial Dr. António Agostinho Neto(MAAN) para lançar a primeira ediçãoda Feira da Poesia Angolana, que de-correu de 21 a 25 de Março, um certa-me que se pretende anual. O evento te-ve como lema "Criar, Criar Amor comos olhos secos....", um poema de Antó-nio Agostinho Neto, do livro SagradaEsperança. E coube exactamente apoetisa e viúva do primeiro Presiden-te de Angola, Maria Eugénia Neto, de-clamar o poema que dá mote à feira dapoesia nacional.Exposição de livros, concertos, de-bates, recitais e trova foram os atracti-vos da primeira edição do certameque procurou congregar alguns no-mes consagrados da poesia nacional,com destaque para João Tala, JoãoMaimona e Amélia da Lomba, esta úl-tima que apresentou recentemente"Antologia", e que teve um "stand" re-servado à sua produção poética.De acordo com o Presidente do Con-selho de Administração do MAAN, Jo-mo Fortunato, o objectivo da feira é apromoção do gosto pelo texto poético,sobretudo na juventude, que é afinal opúblico-alvo do evento que se preten-de anual. "O foco é o texto poético,mas queremos uma feira generalista,

porque ficava redutor dedicar só oevento exclusivamente ao livro poéti-co", diz o responsável.Jomo Fortunato explica que se pro-move no certame poesia produzidado mais antigo ao mais novo, refor-çando assim uma ponte entre os auto-res consagrados e os mais recentes,numa interacção que se julga neces-sária e fundamental. "Incentivámosas editoras a trazerem, por exemplo,livros dos nossos poetas modernistas,que inauguram o próprio fenómenoliterário como Maia Ferreira até, porexemplo, Lopito Feijó e Amélia daLomba", refere.A inauguração da feira reservouuma visita guiada aos stands dos ex-positores, seguida de um concertocom o cantor e compositor RomeuMiranda, que recentemente proce-deu o lançamento do primeiro CD,“Histórias de amor”, no MAAN. No do-mínio da música, a Feira da PoesiaAngolana reservou espaços a artistasque trabalham com o texto poético,como são os casos de Romeu Miran-da, Pascoal Mussungo, Costa Maweze,NZambi Paulo, Jesse Fernandes, quedurante os dias do certame subiramao palco para musicar poemas de au-tores nacionais.Entretanto, a coordenadora doevento, Alice Beirão, agradeceu à pre-sença de todos, em especial às livra-rias e às editoras por acederem aoconvite, tendo referido que o certameé, no fundo, um projecto literário quevisa promover a poesia e os poeta an-golanos, complementando o ciclo depromoção e aumento dos hábitos deleitura, no domínio da poesia e, con-sequentemente, o debate literário àvolta das questões criativas. "É uma

oportunidade impar de convívio e deintercâmbio cultural entre poetas detodas as gerações, abrindo inúmerasoportunidades entre os editores, pro-dutores e livreiros", diz a responsável,para quem a feira serve ainda para fa-cilitar o acesso a títulos bibliográficosda poesia nacional e debater a históriae a teorização do fenómeno poético.Ao poeta Bendinho Freitas coubeproferir uma palestra sob o tema "Di-mensão intemporal da poesia de Agos-tinho Neto" e mostrou-se, antes, felizpela iniciativa que espera que tenha adevida regularidade. "É uma iniciativade louvar. É ainda um grande impulsono incentivo à leitura, sobretudo daparte dos mais jovens", afirma, avan-çando mesmo que o evento dinamiza aalma cultural da cidade e do homemangolano. "Ajuda no diálogo com os lei-tores de modo a identificar a visão dosescritores dentro do universo cultu-ral", diz o autor de “A pitoresca etniadas palavras” (poesia, UEA, 2016).Já sobre o tema que abordou, opoeta defende que "a arte quando épura e sublime acaba por ser intem-poral e a poesia de Agostinho Netonão foge desses elementos". Ao iden-tificar os elementos que permitemdefinir a intemporalidade da poesiade Agostinho Neto, Bendinho Freitasaproveita para aprofundar as corren-tes em quem se insere a sua perspec-tiva estética. "A poesia de Agostinhoacaba por impor-se em relação à poe-sia da sua geração", explica o escritor,que abriu, no início do mês, o progra-ma “Textualidades” no MAAN. No âm-bito da programação cultural do pri-meiro semestre de 2018, o projecto“Textualidades" prevê conversa com lei-tores, espaço de tertúlia entre autores

e leitores, em que já estão agendadosos poetas João Tala, dia 30 de Março,Lopito Feijó, 27 de Abril, João Mai-mona, 25 de Maio, e Amélia Dalomba,a 29 de Junho.O poeta João Tala congratulou-seigualmente com a realização da feira,sobretudo por marcar exactamente asua estreia no Dia Mundial da Poesia."Estes eventos contribuem muito pa-ra a educação da nossa população, so-bretudo os mais jovens, que precisamde conhecer mais sobre os fenóme-nos literários do país", refere o autorde "A forma dos desejos" (1997), pré-mio "Primeiro Livro" da União dosEscritores Angolanos.Médico de profissão, João Tala ex-plica que a poesia faz parte das emo-ções das pessoas, pelo que encara acriação poética como um contributopara o engrandecimento da alma an-golana. "Com a poesia se chega muitolonge e o mundo é cada vez melhorquando temos uma alma que com-preende a beleza das coisas".Sobre os espaços reservados à mú-sica, à trova e aos recitais, João Talaelogia essa diversidade de se exprimiros textos poéticos, mas lamenta a pou-ca aderência, sobretudo dos estudan-tes. "Nas próximas edições será indis-pensável o convite às escolas na basede acordos", diz, deixando a ressalvade que esse tipo de convite implica adisponibilização de transporte.João Tala, que revela manter umacontínua produção literária, sobretu-do nas redes sociais onde vai disponi-bilizando alguns poemas, lamentaigualmente a dificuldade para se pu-blicar uma obra. "Está muito difícilpublicar. Só por isso que não tenholançado livros".

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(…) Descolonizar, diz Fanon, é “oencontro entre duas forças congenita-mente antagonistas, que tiram suaoriginalidade dessa espécie de subs-tantificação produzida e alimentadapela situação colonial” (“la rencontrede deux forces congénitalement anta-gonistes qui tirent leur originalité decette sorte de substantification quesecrète et qu’alimente la situation co-loniale ”. Ou seja, um momento dramá-tico da relação de forças entre coloni-zados e colonizadores; um momentoseguido de dramas humanos, sociais eexistenciais de uma larga porção dasociedade colonial, nomeadamentedo colono, e mormente do “pequenoBranco”. Da Argélia a Angola e Moçam-bique, a descolonização de um territó-rio de povoamento com colonos bran-cos coloca, de facto, problemas que ul-trapassam de forma dramática todosos aspectos da vida humana. (...) O tex-to de Alberto Oliveira Pinto aborda emlarga medida todos estes aspectos.Por um lado, temos a colónia, como lu-gar físico, geográfico e memorial, comuma longa presença europeia, e assubsequentes misturas somáticas que

se operaram ao longo de séculos. Poroutro lado, está o emaranhado das re-lações sociais que foram sendo cons-truídas e estruturadas neste espaço fí-sico entre de um lado, as duas “forçascongenitais” que nela coabitaram numface-à-face estruturalmente conflituo-so, e do outro lado um potencial de-sencontro identitário entre os Bran-cos metropolitanos, e os nascidos oucrescidos na colónia. Ou seja, umaconvivência com base numa oposiçãoque se foi construindo numa dialécti-ca relacional que acabou, pelo que nosmostra este texto, por ir além do pro-tagonismo económico, para criar sim-plesmente identificações que repou-savam sobre a pertença a uma geogra-fia basilar da afirmação ontológica. A experiência do próprio autor éa este respeito reveladora de quãocomplexa pode efetivamente seresta questão.(...) Quem, nos piores momentos davida socioeconómica da Angola doimediato pós-independência e dospiores anos da guerra civil – às vezescom falta gritante do mínimo parauma alimentação decente, privação

endémica de água e de luz, um sistemade saúde deficitário, etc. – não ouviunos meios urbanos angolanos, e mes-mo nos musseques de Luanda, vozesamargas, expressando saudades “dotempo da outra senhora”, ou seja docolonialismo? E este tipo de propósi-tos surgia frequentemente nos meiospopulares, africanos, menos suspeitosde terem alguma razão objectiva parasentir saudades de tempos idos, emque, como Negros, eram tratados co-mo a escuma da sociedade.É verdade que a questão dos “retor-nados” portugueses não atinge a di-mensão que a questão dos “Piedsnoirs” franceses tem assumido na vidapolítica francesa, ainda hoje. Mas à es-cala portuguesa, não deixou de consti-tuir um conjunto de múltiplos cho-ques, tanto identitários como socioe-conómicos, entre esses dois mundosda mesma nação portuguesa. Do cho-que identitário, o autor já tinha feitoexperiência ainda de menino, de re-gresso a Lisboa, ainda por cima numaaltura em que ele começava a entu-siasmar-se com a sua “portugalidade”:os meninos da sua escola trataram-no,literalmente, de “Branco de segunda”.Para o jovem Alberto Oliveira Pinto,é, sem dúvida, um momento de per-turbação identitária. Afinal, a sua“brancura” (ele, filho de dois brancos),que nunca se sentira interpelada nasua terra natal – a colónia de Angola –estava a ser posta em causa. Por ou-tras palavras, todo o discurso identitá-rio que ele ouvira acerca dos “Pretos”,como sendo “o outro inferior”, estava aser-lhe aplicado, e por gente brancacomo ele próprio... Sobre os “lugares de memória” da narrativado Alberto Oliveira PintoOs lugares de memória não se si-tuam apenas nos lugares físicos, nosmonumentos. O notável neste texto é,com efeito, o lugar intermédio ocupa-do por outras memórias: as dos escri-tores, quer ligados à história do impé-rio colonial lusitano, quer ao naciona-lismo angolano genericamente falan-do, ou a de memórias literárias e inte-lectuais da luta armada anticolonial.Através dessas memórias intermé-dias, o autor procura com efeito situaro seu próprio percurso, “recapturar”aquilo que, quer a infância, quer a au-sência, não lhe permitiram nem teste-munhar nem entender. E há os lugaresde vivência/convivência, de residên-cia, de sociabilidade, e de aventura se-manal fora do aconchego da residên-cia familiar. Desta última categoria, re-teve a minha atenção as idas ao merca-do com a avó. O lugar deste “aventura”

semanal: o mercado Kinaxixi. “Que negros via eu no Kinaxixi,quando lá ia à quinta-feira com a minhaavó? Muito poucos. Além dos criados ecriadas – lembremos que a maioria doscolonos tinha criados negros, mais ba-ratos do que os brancos – que acompa-nhavam as patroas carregando os sa-cos com as compras, viam-se à portaumas escassas quitandeiras tentandovender a fruta que exibiam nas quin-das, mas cujos pregões silenciavamcom frequência, sempre que a políciachegava e lhes dava berrida. Havia ain-da um jovem de uns catorze ou quinzeanos, vítima de poliomielite, que se ar-rastava por entre as bancas do peixe oudas hortaliças, pedindo esmola aosclientes e alimentando-se das sobrasdas mercadorias da véspera”.Dos meus longos anos de vida luan-dense, Kinaxixi era um dos lugares pa-ra compras diversas, como o pão, nu-ma das duas padarias que lá tinhamaberto. E, claro, o primeiro andar ondea circulação entre as “kitandas” erasempre um momento de tensão, entreaquilo que o bolso continha naquelado mês, e o preçário dos produtos.Ora, para alguém, como eu, que não feza experiência da Luanda colonial, aideia de um mercado do Kinaxixi ondeos Negros eram quase que ausentes –a tentarem fazer-se presentes em si-tuação de precariedade, como vende-dores ambulantes, em permanenteangustia, à espera do berro do agentede policia colonial –, é deveras chocan-te, à primeira vista. Mas quem não as-sistiu, anos depois da independência,no dia-a-dia luandense, às mesmas ce-nas de kínguilas? E com meninos derua e pequenos vendedores ambulan-tes tentando sua sorte, vendendo oque podiam, atentos à iminência demais uma das inúmeras rusgas dosagentes fiscais, ou da polícia económi-ca?... Agora, no pós-independência, aquestão já não se joga entre colonos ecolonizados, entre Brancos, donos ile-gítimos dos espaço ocupado, e Negros,donos históricos da terra. E o mercadode Kinaxixi, um dos lugares de notóriadiscriminação racial no tempo colo-nial, também tinha mudado de atores,ao mesmo tempo que refletia, pelosprodutos que lá se vendia (antes dasua destruição para um mega projetode espaço comercial moderno), as di-versas carências do dia-a-dia urbano,como a falta crónica de luz, que justifi-ca o boom do comércio de geradores: Reentrei então no mercado do Kina-xixi, pela primeira vez sem a minha avó.De facto, o aspecto era desolador. Doantigo mercado do peixe já só restava

A CRIANÇA BRANCA DE FANONDE ALBERTO OLIVEIRA PINTO

JEAN-MICHEL MABEKO-TALI

27 de Março a 9 de Abril de 2018 | Cultura6 | LETRAS

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um pequeno recanto. O mercado em siespecializara-se agora na venda dematerial eléctrico e também – nosanos de 1990 ainda não proliferavam,como agora, farmácias em Luanda –de comprimidos e demais produtosfarmacêuticos que ninguém sabia deonde provinham e cuja validade eraduvidosa. Vendia-se igualmente ta-baco. Crianças da rua, que deviam es-tar na escola, indicavam aos fregue-ses os caminhos a seguir para a com-pra dos produtos que lhes interessas-sem. Desempenhavam, portanto, opapel dos antigos cambuladores dascaravanas comerciais. (…) Hoje em dia, nos tempos da“nova senhora”, o protagonismo dasrelações socioeconómica básicas pas-sa-se, em principio e fundamental-mente, entre “nacionais” angolanos.Mas a dinâmica socioeconómica dopós-independência complicou a leitu-ra sociológica das relações de força noseio deste “nova” sociedade, sem noentanto a tornar obscura, ilegível. Aquestão coloca-se também em termosde classes sociais. Ora, a sociedade co-lonial era uma sociedade de classes,cuja leitura, apenas dominada, em lar-ga medida, pela oposição colono/co-lonizado, Branco/Negro, tendia emnegligenciar as oposições sociais declasses que se desenrolavam no seiodo mundo dos colonos. Um dos méri-tos do texto de Alberto O. Pinto é o denão ter escamoteado este facto. Pelocontrario, a questão da pobreza e daprecariedade em meios coloniais,branco, constitui um dos polos de in-teresse destes seus factos memoriaisaqui narrados. Ao desvendar emborade forma sintética mas densa, os con-tornos das dinâmicas sociais, inclusi-ve na esfera dos colonos, Alberto Oli-veira Pinto toma o encalço do seu paiputativo o o Fanon de Les Damnés dela terre, que, mesmo reconhecendoque o mundo colonial é um mundocompartimentado, “cortado em dois”,afirma no entanto,“L’originalité du contexte colonial,c’est que les réalités économiques, lesinégalités, l’énorme différence de mo-des de vie ne parviennet jamais à mas-quer les réalités himaines ”. (…) A questão da “raça” na socieda-de colonial constitui, de facto um dos“momentos” discursivos tensos destetexto, e não podia deixar de ser. Esca-moteá-la teria, por certo, empobreci-do sua reflexão sobre a sociedade co-lonial angolana – ou de qualquer outrodos antigos “territórios ultramarinos”portugueses. Aliás, a tomada de cons-ciência da sensibilidade do assunto,mesmo para o colono, aparece subita-mente quando, a seguir ao despoletarda luta armada, o sistema se viu obri-gado não só a abolir este ou aquele as-pecto da sua existência e sustentação(exemplo do estatuto de Indigenato,abolido em 1962), como também atentar limar as arestas discursivas atéaí, em uso, quase “natural”, nomeada-mente sobre as designações rácicas. Desta oposição somática no seio dasociedade colonial, potencialmenteenganadora em termos de leitura so-

ciológica, na qual “raça” e classe socialpodem ser confundidas facilmente, asociedade angolana pós-colonial nãoficou de todo desprovida. Sua herançacolonial, multi-somática, continuoubaralhando a leitura sociológica dasdinâmicas sociais no seio do Estado-nação angolano. Trata-se de um factoque veio pesar, de forma dramática,nas lutas politicas entre elites, quer noseio do partido-Estado MPLA, querentre as elites dirigentes deste, e asoriundas de outras trajetórias e sensi-bilidades políticas. Desta forma, a “ar-queologia” memorial do autor encon-tra-se na situação ética de revisitarnão só os lugares físicos, como tam-bém sociológicos da sua trajetória, eda sua relação emocional para com asua terra natal. Quando deixou Angola, Alberto Oli-veira Pinto era demasiado criança pa-ra entender o dilema que se colocavaaté ao colono que tinha nutrido algu-ma empatia para com o sofrimento docolonizado, e face à hostilidade am-biente que afecta seja quem for, nestemeio em geral fundamentalista – ofundamentalismo colonial, mormentenuma colónia de povoamento brancoonde a ideia de deixar a terra aos colo-nizados parece a coisa mais despidade sentido. Esse dilema, diz AlbertMemmi, resumia-se tão somente naseguinte pergunta:“N’y a-t-il, alors, d’autre issue que lasoumission au sein de la collectivitécoloniale ou le départ?” (Será que nãohá outra saída que não seja ora sub-meter-se no seio da colectividade co-lonial, ora ir-se embora?).(...) O texto de Alberto OliveiraPinto é, de certo modo, um retratocomplexo do seu próprio processode desalienação: um trabalho de in-trospecção, de procura de si mesmo,no contexto colonial e pós-colonialportuguês e angolano. Pelo que sepode considerar como legítima a suareclamação como sendo “a criançabranca de Fanon”. E, acrescento eu,et pour cause, o sobrinho judeu-tu-nisino de Memmi.(Extractos do prefácio ao livro A Criança Branca de Fanon)Alberto Manuel Duarte de OliveiraPinto (Luanda, 8 de Janeiro de 1962) éescritor e historiador. Licenciou-se em Direito em Lisboa,pela Universidade Católica Portugue-sa, em 1986. Tem colaboração disper-sa em diversas revistas e jornais ango-lanos e portugueses e está representa-do em várias antologias. É doutoradoem História de África na Faculdade deLetras da Universidade de Lisboa. Lec-cionou em diversas universidadesportuguesas e é investigador do Cen-tro de Estudos Sobre África, Ásia eAmérica Latina (CESA), ISEG, e doCentro de História da Faculdade deLetras da Universidade de Lisboa. Émembro da Associação Portuguesa deEscritores e da União dos EscritoresAngolanos. É um dos fundadores e di-namizadores do Centro de EstudosMulticulturais, onde, para além de lec-cionar, tem orientado pesquisas sobre

a temática africana.Foi distinguido com diversos pré-mios literários, de que se destacam o“Prémio Revelação” atribuído pelaAssociação Portuguesa de Escritoresem 1990, pelo romance O Senhor deMompenedo. Foi também distingui-do com o "Prémio Sagrada Esperan-ça", o mais importante prémio literá-rio angolano, pelo romance Mazangaem 1998 e pelo livro de ensaios Ima-ginários da História Cultural de An-gola em 2017.“O que é a ego-história? Não se tratade uma autobiografia pretensamenteliterária, nem de uma profissão de féabstracta, nem de uma tentativa depsicanálise. O que está em causa é ex-plicar a sua própria história como sefosse a de outrem, tentar aplicar a sipróprio, seguindo o estilo e os méto-dos que cada um escolheu, o olhar frio,englobante e explicativo que tantasvezes se lançou sobre os outros. Emresumo, tornar clara, como historia-dor, a ligação existente entre a históriaque cada um fez e a história de que ca-da um é produto” (Sic.). Pierre NoraTenho plena consciência de que oconceito de ego-história fornecido porPierre Nora é facilmente manipulávele de que o historiador que se abalança

a elaborar um ensaio ego-histórico searrisca - conforme o advertiu RogerChartier, outro nome respeitável dahistória cultural da escola francesa – aser armadilhado pela confusão entre aego-história e o testemunho. Daí de-corre, aliás, um outro risco: o de a tem-peratura do “olhar frio” do ego-histo-riador, preconizado por Pierre Nora,facilmente poder aumentar. Assumoambos os riscos. Mas atrevo-me a alvi-trar que o “testemunho ego-histórico”– se me é permitida esta monstruosi-dade conceptual – pode ter relevância,caso sirva de complemento às fontes,sejam elas escritas, orais ou informati-vas. Tal se traduz, de resto, numa práti-ca historiográfica que não é nova, mui-ta cara aos clássicos, entre os quais sedestaca o em tempos tão polemizadoSuetónio (Roma, 69, d.C. – c. 141 d.C.).E quero, por isso, acreditar que estemeu ensaio seja muito mais do que umtestemunho autobiográfico.“Olha, um negro!”Quando, nosanos de 1990, li pela primeira vez Peaunoire, masques blancs de Frantz Fa-non, depressa me revi na criança bran-ca que, no Capítulo V, não hesita emquebrar o silêncio dos pais e, apontan-do o dedo, bradar nos lugares públicos“Tiens, un nègre!” (“Olha, um negro!”).De facto, essas situações ocorriam na

LETRAS | 7Cultura | 27 de Março a 9 de Abril de 2018

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Luanda da minha infância, nos anos de1960, em plena época em que o discur-so político propalava a “inexistência deracismo português” e a “integraçãomultirracial” em Angola. Trago bempresente na memória o olhar de sos-laio dos colonos nos momentos emque, pontualmente, um negro se senta-va na mesa de um restaurante na quali-

dade de cliente e em que, arriscando-me a admoestações dos adultos bran-cos do género “está calado” ou “issonão se diz”, fui, como outros da minhaidade, a criança branca de Fanon. Numa sociedade de racismo enca-potado, como era a da Angola colonial,muitas crianças brancas desnudaraminocentemente - tal como a de Fanon e

tal como a do conto de Hans ChristianAndersen, que proclamou na rua averdade inquestionável de que “o reivai nu” – a falácia do mito do “anti-ra-cismo português”. A leitura de Frantz Fanon permi-tiu-me perceber ter eu próprio sido,em tempos, uma dessas crianças. Es-te ensaio ego-histórico constitui, na

esteira do meu já longo trabalho dehistoriador, mais um convite à refle-xão sobre essa falácia do “anti-racis-mo português”, ainda hoje bem viva,e mesmo estranha e perversamentefomentada, nas sociedades angolanae portuguesa. Alberto Oliveira Pinto

“EGO DO FOGO”, NOVA OBRA DE DAVID CAPELENGUELA

David Capelenguela é um poe-ta com uma extensa obra naqual se destacam “Véu dovento – Haikais & Sonetos”, “Gravu-ras Doutro Sentido” e “Acordanua”.Obras muito marcadas pelas inspira-ções da tradição oral e, por conse-quência, de valor não só literário mastambém sociológico e antropológico.Ego do Fogo é a sua nova propostaeditorial, impressa em 2012, mas

apenas apresentada ao público nopassado dia 13 de Março na sede daUnião dos Escritores Angolanos(UEA). Publicado pela TriangularteEditora, Ego do Fogo é o sétimo volu-me de poesia do escritor inserido nacolecção Ohandanji.Segundo o autor, é uma obra dedica-da a todas as mulheres do mundo, par-ticularmente as de Angola, por seremfiguras importantes da sociedade.

Em conversa ao jornal OPAÍS, oescritor referiu que o livro tentatemperar um pouco aquilo que é onormal na sua forma de escrever. Atendência, segundo o interlocutor, éa sua inclinação de forma mais pro-funda para as questões relacionadascom a antropologia: os adágios, osprovérbios, as adivinhas, entre ou-tras. O escritor salientou que a obraEgo do Fogo tentou fazer uma roturacom essa tendência.Em entrevista a José Gonçalves,para a RFI, Capelenguela considerouo trabalho em zona rural afastadacomo útil à sua produção poética, namedida em que se baseia na recolhade expressões orais.“Julgo que tenho conseguido merelacionar com esses povos e, namedida do possível, absolver suastradições, ao ponto de poder apren-der a diferenciação de um simplesassobio, um sapatear, o gesto dasmão em uma dança, que pode signi-ficar, por exemplo, ter muitos oupoucos bois. E também a indicaçãode um jovem rico, a maneira deidentificar os cortes de cabelo na ju-

ventude. Esses elementos todos medão alguma inspiração”, explica.“A minha reconversão dos cantos,dos adágios, dos provérbios, dascanções, esta forma de ouvir, absor-ver e depois passar pelo papel, a ma-neira como eu quero estruturar mi-nha poesia, a maneira como eu pre-tendo transmitir, me dá um fôlego,uma vontade de poder continuar acontinuar a conviver com o interiore com as comunidades”, diz.Nascido em 1969 na provínciada Huíla, David Capelenguela, émembro da União dos EscritoresAngolanos (UEA), e um dos escrito-res angolanos a viver fora dos gran-des centros do país. É autor de vá-rias obras poéticas, das quais,“Planta da sede”, 1989, “O enigmada Welwitschia”, 1997, “Rugir docrivo”, 1999, “Vozes ambíguas”,2004, “Acordanua”, 2009. Partici-pou nas Antologias poéticas da Bri-gada Jovem de Literatura Angolanada Huíla, em 2003 e no Namibe, em2008, com os textos “O sabor pega-diço das impressões labiais” e “Du-nas de Calahari”.

27 de Março a 9 de Abril de 2018 | Cultura8 | LETRAS

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LETRAS | 9Cultura | 27 de Março a 9 de Abril de 2018

Ao folhearmos o livro em causa, eantes mesmo de procedermosa uma análise exaustiva aosmeandros da construção narrativade “Subitamente no Cacimbo”, senti-mo-nos tentado a contextualizar asinquietantes conclusões do autor Fi-lipe S. Fernandes sobre a concentra-ção de recursos em África, citaçãoque Jacques Arlindo dos Santos elegecomo nota introdutória para este li-vro, de modo provocador. Pelo quepassamos então a citá-lo:“Um paradoxo terrível: uma dasmaiores concentrações de recursosem África tem sido associada não aodesenvolvimento e a alguma prospe-ridade, mas a anos de conflito, declí-nio económico e miséria humana.Poucos países apresentam um con-traste tão acentuado entre o poten-cial económico e a situação do seu po-vo”. Fim de citação.Ao referir-se ao continente africa-no, Filipe S. Fernandes aponta segura-mente para uma realidade que é, paramal dos pecados, transversal ao nossopaís. O que nos leva igualmente a fa-zer uma reflexão introdutória eivadade uma dose de subjectividade, sim,mas que, no fundo, decorre de umaleitura paralela aos factos narradospor Jacques dos Santos neste“Subita-mente no Cacimbo”.Nos últimos 16 anos deste sécu-lo XXI, com indicadores e práticasde enraizamento que remontavamjáàúltima década do século passado,resultante, diga-se, dos anos em que

se fixou a guerra como o único meiopara pôr termo adivergências, a dife-renças e, sobretudo, a contradiçõesque ainda hoje precisam de ser me-lhor explicadas e compreendidas pe-las gerações mais novas, Angola expe-rimentou um quadro degenerativo devária ordem que culminou com o sur-gimento ou afirmação de uma certaclasse, ouclique, se quisermos, que,mal terminou o conflito armado, pôs-se a jeito no lugar da razão e da legiti-midade como sendo aquela à qual sedeveria prestar a devida e merecidahomenagem por nos terem legado umpaís maravilhosamente belo, próspe-ro e cujo atraso no seu desenvolvi-mento deveu-se única e exclusiva-mente à guerra. Este discursoquanto a nós incon-sequente, até certo ponto, e predica-tivoserviu durante anos para justifi-car insuficiências de uma governaçãomíope, agarrada aos chavões de umdiscurso político balofo, panfletário(para não ter que dizer folclórico) eacima de tudo desprovido de susten-tação e base ideológica, porque, jánessa altura, o evocar da memória co-lectiva que desde os primórdios dasnossas lutas mereceu interesse e des-taque seria um outro em que não po-díamos caber todos; os lugares, osnomes de famílias, as benesses e osespaços em alpendres contra asagressões das intempéries da vidanão podiam mais suportar nem alber-gar o sonho comum de todos nós co-mo, de resto, desejariam e desejaram

os iniciadores de todos os processosque viriam a culminar com a nossatão almejada independência. Após a cristalização desta classe oucliqueà qual nos referimos com algumamargo de boca, passamos a conheceruma governação que se viu sempredistanciada do seu principal papel,que era e é o de servir e atender aosanseios de um povo deixado de partede todo um conjunto de processos queforam decorrendo no País nos últimosanos e que resultariam na emanaçãode um estatuto político, social e eco-nómico que marginalizou pratica-mente a esmagadora de nós, privile-giandoum número de famílias e de an-golanos que passaram a construir aoredor de si e dos que lhes foram e sãomais próximos e fiéis um império queteve no poder político o seu espaço deafirmação e no poder económico a ra-zão da sua continuidade e vocação.A acção governativa que tinha, noquadro da normalidade institucionale constitucional após os largos anosde guerra e face à aprovação da Cons-tituição em 2010, a obrigação de ofe-recer aos angolanos tudo aquilo quecom sonharam os nossos percurso-res da independência, furtou-se des-te compromisso, gerando inúmerasbossas de miséria e legou um futurosem horizontes para uma série deangolanos que continuam a viverabaixo da linha da pobreza como sefosse esta a sua sina e o único direitode escolha sobre o modo como que-rem ser vistos e estar na vida anteum quadro geral de profunda priva-ção de quase tudo, desde os direitoseconómicos à privação das liberda-des e garantias fundamentais consti-tucionalmente consagradas. De tal modo que, ao cabo de 43 anosquase de País independente, aindanão são visíveis os marcos das aspira-ções e da ânsia nacionalista que pre-viam na escala das prioridades a dig-nidade da pessoa humana, o princípioda igualdade que deveriam conduziras decisões de governação e a necessi-dade de oportunidade e da partilha dariqueza de que é detentor o País. Por conseguinte, a evocadae bem-aventuradaclique de angolanos usoude meios e métodos de enriqueci-mento, profundamente desiguais eilícitos, para construir esse estatutode bafejados pelo (de)mérito da for-tuna que hoje quer ver respeitado noPaís e no estrangeiro como parte dolídimo direito de ser detentor de umariqueza que diz não querer ver emmãos estrangeiras, por serem colo-niais, e sim em mãos angolanas, por-que estas rapidamente chegam a so-mas milionárias à custa do silêncio deum povo a quem já não respeitam e

aprenderam a calá-lo com uns quan-tos brindes deesperançaem progra-mas eleitoralistas...Esta clique de angolanos é, na ver-dade, o grande objecto de narração eaté de profunda análise nesta obra deJacques Arlindo dos Santos, pelo que,também, gostávamos de lembrar aoleitor que esta mesma clique é a que hápoucos anos foireconhecida com o tí-tulohonoris causacomo sendo aquelaà qualdeus-todo-poderoso (tudo emletra minúscula, atenção!) atribuiuodireito postular e político da acumula-ção de capitais nos moldes mais primi-tivos em época, diga-se, tãocontempo-rânea da nossa históriamoderna. Esta acção “benevolente”de legiti-midade viria a resultar num festivobrinde colectivo em memória de todosaqueles que não mediram esforços pa-ra tomar de assalto o Paíse que atravésdeste reconhecimento público de suamajestade ergueram as taças, entesa-ram de modo arrogante os rostos e se-guiram em frente agora com o reco-nhecido direito de se dizerem verda-deiros donos da riqueza do País, umavez que tinham sidooficialmente abo-lidas as suspeitas às engrenagens me-donhas, aos métodos indecentes e osilícitos criminais que os levariam a láchegar. Ainda que para isso tivésse-mos de ignorar indicadores socioeco-nómicos importantes como aquelesque nos colocam no lugar da frente noíndice da Mortalidade Infantil, na Taxade Mortalidade Materna e, finalmente,no Índice de Percepção de Corrupção.Aliás, é sobre corrupção que fala oautor de “Subitamente no Cacimbo”, eéem consequência mais real deste fenó-meno modular de acumulação primiti-va de capitais legitimado pelo poderpolítico que vimos o país minguar aosolhos daqueles que passaram a recla-mar para si o direito do usufruto das ri-quezas, com o agravante de até figurassemi-analfabetas passarem a impor-seante a verticalidade e a decência dementes catedráticas que se recusamainda hoje a cederà avalanche do lucrofácil perante a indigência de um núme-ro estrondoso de angolanos que não écapaz de compreender nada do que di-zem estas palavras aqui explanadas eprovavelmente encontrem a morte emuma qualquer das esquinas sombrias

NOK NOGUEIRA

“SUBITAMENTE NO CACIMBO” OU A QUASE “PRIMAVERA REGENERATIVA”

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27 de Março a 9 de Abril de 2018 | Cultura10 | LETRAS

desta cidade ou de outra do País, semnunca poderem ler nenhuma das li-nhas deste “Subitamente no Cacimbo”.Ora, posto isto, e após esta já longanota introdutória –embora necessáriapara compreensão do que nos propõeeste mais recente título de Jacques Ar-lindo dos Santos – cumpre-nos alertaro leitor que, diferentemente das obrasde ficção em que os cenários narrati-vos são montras oriundas do génio in-ventivo e criativo dos seus actores,neste “Subitamente no Cacimbo” oexercício literário usado por Jacquesdos Santos incorpora de modositua-cional e contextual espaços cénicosrealistas para a maioria de nós angola-nos e propõe-se a analisar as conse-quências improváveis de factos e cons-tatações da sociopolítica angolana.Ora, “Subitamente no Cacimbo” épois, no lugar do seu enquadramentotemático,um exercício reconstrutivodo cenário político que vai de Agostoaté ao início do ano de 2018,na se-quência do intrigante –para os mem-bros da tal clique de angolanos–dis-cursoacerca do serrar de fileiras con-tra a corrupção que foi o pronuncia-mento do novo Presidente angolanosobre o fenómeno que durante anosdepauperou o País e andou tambémdurante anos banido da nomenclaturado poder político até mais ou menos2009, quando finalmente se reconhe-ceuque a corrupção erao alvo a abatervencido que estava o conflito armado. Esta novela, que tem como um dosgrandes protagonistas, senão mesmoo grande protagonista, o cidadão co-nhecido como Britânico, empresárioangolano bem-sucedido à custa dasengrenagens dos tentáculos da cor-rupção, revela a parte mais sórdida eextremamente putrefactiva da tal cli-que de angolanos que, perante a ini-ciativa política de combate ao fenóme-no da corrupção, subitamente tomadaem finais do período de cacimbo de2017 – daí a origem do título do livro –reagiu como se o enunciado tivesseconstituído a pior das notícias dadaaos angolanos 42 anos após a inde-pendência, ignorando-se o facto de es-tarmos perante o principal responsá-vel pela falência moral do Estado e oprincipal agente pelo cada vez maisausente sentido patriótico que nos de-veria ligar a todos.“Subitamente no Cacimbo”, ali-mentada, por um lado, pelos longosintervalos de leituras introspectivasdo empresário e cidadão Britânico,sugere ao leitor um posicionamentoauto-crítico relativamente à formacomo o poder político conduziu osdestinos do país e como um pequenodiscurso consegue desferir um golpea uma classe que se julga detentorado direito de, em nosso nome, res-ponder de modo arrogante e exclusi-va pela riqueza do país. Este texto narrativo atenta, por is-so,contra aqueles que reclamam e ju-ram de pés juntos terem um passadoglorioso a justificar-lhes o presente bo-nificado pelas fortunas e pelo direitode se arrogarem perante o país e omundo, reivindicando que venceram a

lógica da reputação ilibada e do pesode consciência pelas vidas perdidasem consequência dos descasos gover-nativos em favor do peculato, do tráfi-co de influências, do compadrio, do su-borno e da luxúria exposta num espaçoinsular (neste caso a ilha do Mussulo)que passou a ser a grande montra ex-positora da clique de angolanos quesedizem pertencer a outras estirpes.Britânico, um destes bem-aventura-dos empresários bafejados pela sorteda tal da clique dos afortunados, é noentanto um personagem por si só elemesmo intrigante, porque, ao mesmotempo que foi e é sujeito activo destasengrenagens dos tentáculos da cor-rupção, é também um ser que integrana sua germe o sentido da moralidadee da necessidade de olhar para o espe-lho com os olhos translúcidos alimen-tados por princípios e valores. Pelomenos é a leitura que nos ficou latente!Não é por acaso que, ele beneficiadopelo sistema corrupto, ainda se ques-tiona sobre o direito que esta clique deangolanos possui para tomar de assal-to o País, à pala do jogo do poder políti-co que hoje promete combater a cor-rupção legitimando o repatriamentode capitais para as contas dos protago-nistas dos ilícitos criminais.No plano narrativo, “Subitamenteno Cacimbo” é um livro com váriasintermitências que, ao olhar simplis-ta do leitor, pode parecer uma des-continuidade ditada pela lei do me-nor esforço do seu autor, mas não!

Estas intermitências devem-se so-bretudo à necessidade de introdu-ção de personagens que mudam acadência narrativa mas que em nadalhe retira a intensidade.Cumpre-nos também fazer alusão apersonagens como a de Francisco Xa-vier Francisco, ou simplesmente Fran-cisco Duas Vezes, uma figura emble-mática desta narrativa, quiçá ela mes-ma a mais carismáticadeste título deJacques dos Santos. Francisco DuasVezes é o personagem que fala de mo-do frontal na primeira pessoa, borrifa-se para as “questões delirantes e com-plexas das raças”e é apreciador dascausas dos chamados revus, emboraseja mesmo de política nua e crua deque gosta mais de falar; não só do ce-nário político enquanto tal, mas o mo-do e a forma como o poder político étão responsável pela indigência doPaís quanto são os fenómenos como aguerra, como são também as criseseconómico-financeiras e outras. Francisco Duas Vezes introduz nes-ta narrativa um pormenor importan-tíssimo e chave: a traição. A traiçãoque numa primeira leitura aponta Ro-salina, seu amor primeiro, como gran-de responsável por ela, mas, à medidaque se desfaz o novelo, percebe-se queo conceito de traição em “Subitamenteno Cacimbo” é sobretudo perante osdesígnios do país; a traição às às cau-sas, às lutas e às tradições mais no-bres que alimentaram estas lutas peladignidade dos angolanos;lutas em

que foram protagonistas nomes vá-rios do nacionalismo angolano.“Subitamente no Cacimbo” dedicatambém espaço a duas mulheres, au-tênticas, diga-se de passagem: à Bea-triz (esposa de Britânico) e Esperança,ou Pancha (a concubina do generalSimplício ou simplesmente Plício). Es-tas duas personagens são responsá-veis por um contraponto narrativo in-teressante. Beatriz e Pancha são igual-mente responsáveis pelas várias in-termitências de que está cheio o livro,pois são histórias de vidas que se en-trecruzam, são várias as alocuçõesoriundas da força das mulheres pe-rante o trunfo da razão sobre a ambi-ção desmedida dos homens;da forçadas mulheres perante o trunfo dosafectos sobre a negação do Outro. Infelizmente por erro de uns sãotodos julgados por uma actuação quenão deve ser extensiva a todos. Os ge-nerais não representam a face maisobscura do enriquecimento ilícitoem Angola, nem tão-pouco a personi-ficação da afirmação da impunidadeperante as subtilezas da corrupção.Mas o general de “Subitamente noCacimbo” é, pelas piores razões, res-ponsável por desarranjos de cons-ciência que fizeram o país desandar,espalhar-se ao quadrado na esfera namiséria, porque o general Simplício ouPlício, representa a classe daquelesque reagiram mal à ideia política docombate à corrupção de que fala estelivro, e sua concubina Pancha, que so-nha falar ao país através dos ecrãs deTV, é tão vítima quanto aqueles que senegam ser cúmplices de actos ilícitos.Ao longo da leitura hão-de cruzar certa-mente com outras figuras não menosimportantes, como a de Nani Ngueve,como o Mano João, ou João César, masserá sempre em Britânico que hão-deesbarrar ao longo de uma narrativacom cenários tão realistas quantoaqueles que seriam ficcionados comoespaço cénico para acolher as perso-nagens deste livro que consideramosuma provocação do autor aos queagora assumem o desafio de comba-tera corrupção. Espera-se, entretan-to, que o país se consiga reinventar afim de devolver a esperança aos co-muns dos angolanos. Fica-nos, no entanto, a mesma dúvi-da com que ficou o seu autor, quandoafirmou [e passamos a citá-lo] que “oforte calor de todos os dias e a ameaçados aguaceiros fizeram esquecer asnossas esperanças. As muitas ilusõesdos populares andam aparentementea ser influenciadas por ideias que pre-tendem fazer crer que o poder políticose deve vergar sempre face ao podereconómico e, desta maneira, parecemter desaparecido com a mudança dotempo”. Fim de citação.Oxalá, dizemos nós agora, outroscacimbos se transformem em Pri-maveras, não as Árabes, que estasforam trocidadas, mas primaverasregenerativas, que nos ajudem a de-volver aos angolanos o país que a to-dos nós pertence!Viana, aos 13 de Março de 2018

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ARTES | 11Cultura | 27 de Março a 9 de Abril de 2018

ANALTINO SANTOSANova Energia abriu a quintaTemporada do Show do Mêsnos dias 2 e 3 de Março, noRoyalPlaza, com concertos de EliasDyaKimuezo, proporcionando mo-mentos reais ao som do “Soberanoda música”.TeddyNsingui, Kintino, Mias Galhe-ta, Joãozinho Morgado, João Daloba eMassoxi, assim como uma secção desopros e outra de cordas acompanha-ram o Rei da Música Angolana.Elias DyaKimuezo abriu o concer-to com “Mona Nendgue” e “MwaLun-ga”. “Katonhonho”, “MuimbuUami” e“Leonor” interpretados por Massoxi,Mr.Kim e Calabeto, vieram demons-trar que DyaKimuezo teria algunssúbditos no palco. Ao som de “Cami-nho de Ferro” assistiu-se o regressodo rei, depois das saudações e reco-nhecimento feitas em Kimbundu, pe-los dois primeiros e um esclareci-mento do “Leonor” tema da épocaque Elias fazia jus ao nome “DyaKi-muezo” com a sua barba farta quecausava o delírio das “kilumbas” dosmusseques. Paula, a voz feminina su-biu depois da segunda passagem dosoutros colegas, encantando a plateiacom “Mama Kudilengo”.Foram vinte e cinco músicas todasinterpretadas em Kimbundu que pre-tenderam uma plateia ávida em assis-tir Elias DyaKimuezo. Massoxi teve tempo de interpre-tar ainda “Kalunga Nguma”. “Agosti-nho Neto”, ”Lamento de Mãe” e“Lumby”. Este filho do Rangel quecomeçou a dar os primeiros passosno DimbaDyaNgola, teve passagemno 21 de Janeiro e noutras forma-ções demonstrou que é dos cantoresque melhorou canta Elias DyaKi-muezo e tratou a dikanza com mes-tria. O interprete “Pelenguenha” e“Josefa” da Banda Movimento tam-bém encantou com a sua “bangafu-kula” que ao longo da carreira.Mister Kim é outra voz apreciadapelos amantes da músca angolana deraiz e que mais uma vez foi convidadopara um concerto do Show do Mês,com “Kwieku” e “Umgamba” não dei-xou os seus créditos por mãos alheias.Este músico que tem o seu inicio decarreira marcado com a “kizomba” e o“zouk” com passagens pela Banda Vo-ga, Makosemba e outras pequenasformações, fez uma viragem para osemba com a sua passagem pelos“Kiezos” sendo reconhecido no tema“Mano”. Sente grande responsabilida-de pela confiança e diz que de mo-mento está concentrado na sua for-mação actual “Banda Movimento” ena divulgação de temas como “ManaMinga” promocional para o seu disco.

Paula uma das vozes mais proemi-nentes das Gingas do Makulusso en-carnou bem os lamentos “Mama Kudi-lengo” e no dueto que fez em “Ressu-reição” foi de tirar o fôlego. Em “Xama-vo” o toque das meninas da professoraRosa Roque fez-se presente e o desejode uma actuação das Gingas ficou pa-tente nos presentes. Paula apesar deestar afastada dos palcos é das vozesfemininas que Yuri Simão tem aposta-do nos concertos temáticos.Calabeto foi Bomba, um dos show-mans com maior longevidade nanossa praça, deu uma aula de inter-pretação e representação, como fi-cou patente em “Muxima” , “UaZua-ta” e “Akalakadi”. Tratado pelos cole-gas por “KotaBwé” soube interagircom os presentes e foi um autênticomestre-de-cerimonia. O artista quecomeçou na Turma do Rio de Janei-ro, formação que criou com 13 anosdos intervenientes é dos que maisprivou profissionalmente com EliasDyaKimuezo, a passagem pelo Kis-sanguela é um exemplo, assim comoas várias digressões internacionais eespectáculos. Elias DyaKimuezo mostrou garracom outros clássicos que marcarama trajectória artística do artista co-mo: o grito revolucionário “São Ni-colau”, a comovente “Nzala”, a ro-mântica “Kalumba”, uma das maisrecentes criações suas “Samba Ma-kia”, a contagiante e dançante “Zé Sa-lambinga”, dentre outros marcaramas duas noites do octagenário, EliasDyaKimuezo, um filho do Samba Ki-mongwa.Elias José Francisco nasceu emLuanda no dia 2 de Janeiro de 1936,aos sete anos perde os pais e cresceno Sambizanga com a avó Domingascom quem aprendeu o Kimbundu.

MÚSICA REAL ANGOLANA NGA ELIAS ABRE SHOW DO MÊS

Rei Elias Dya Kimuezo

Calabeto interpretou alguns sucessos

Massoxi foi um dos convidados

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12 | ARTES 27 de Março a 9 de Abril de 2018 | CulturaConta com quatro LPS s (Long Play)publicados, oito singles, quatro Cdse temas dispersos em várias colectâ-neas. O mais recente “ O Semba Pas-sa por aqui” foi lançado em Janeirode 2015, precisamente dez anos de-pois de “Sucessos do Passado”.O artista que tem passagens por vá-rios palcos a nível nacional e internacio-nal é o Rei da Música Angolana, distin-ção que tem origem na década de 60quando o Centro de Informação e Turis-mo de Angola (CITA) o consagrou Rei daMúsica Folclórica Angolana. Uma dasúltimas grande aparições de Elias Dya-Kimuezo aconteceu no dia 21 de Julhode 2017, na III Trienal de Luanda numde show homenagem prestado pelaFundação SindikaDokolo.Yuri Simão da Nova Energia falou dasdificuldades que tem tido fruto da ac-tual situação económica do pais e agra-deceu os patrocinadores e todos aque-les que têm ajudado para continuar. Ga-rantiu que esta temporada será maiseclética e nas entrelinhas deixou trans-parecer que nomes como Bonga, MitoGaspar, Matias Damásio poderão pisaro RoyalPlaza.

PAULO FLORES LEVA MÚSICAS COM ALMA O próximo concerto acontece nestefinal-de-semana, com Paulo Flores.Um dos factos que marca estes doisconcertos é a procura de ingressos,que segundo a organização em algunspostos de venda já estão esgotado.O autor de “Carta” que tem retratadonas suas composições o quotidiano dosangolanos, com aspectos ligados a cri-tica social, com quase 30 anos de car-reira, Ti Paulito fará uma retrospectivada sua discografia : "KapueteKamun-danda", "Sassassa", "Coração Farra-po","Cherry", "Brincadeira Tem Hora","Inocente", "Perto do Fim", "Recom-passo", "TheBest", "Xé Povo", " Quintaldo Semba, Ao Vivo, Ex Comabtentes, OPaís Que Viu Nascer Meu Pai, Bolo deAniversario e Kandongueiro Voador ede temas que constam em projectos deartistas nacioanis e internacionais.Vencedor de vários trofeus ao longoda sua carreira, o artista pelos seus actose posicionamentos é dos mais imcom-preendidos, mas mesmo assim respei-tado até mesmo pelas pessoas que ocontestam. De saleintar que o primeiro concertodo Show do Mês aconteceu no dia 31 deJaneiro de 2014 com Selda. Pedrito, Ga-briel Tchiema, Filipe Mukenga, Roberti-nho, Ricardo Lemvo, Carlos Burity, JoséKafala, KyakuKiadaff, Irina Vasconcelos,Eduardo Paím, Yola Semedo e CarlitosVieira Dias são alguns dos artistas quepassaram pelo Show do Mês. Cantar Te-ta Lando, André Mingas, Show Pio e An-gola Anos 70 é outro conceito com con-certos temáticos que a produtora NovaEnergia apresenta no Show do Mês. ABanda Maraviha foi a formação queacompanhou os artistas na primeiratemporada. Os conjuntos com passa-gem no projecto são: Afra SoundStar, OsKiezos e Jovens do Prenda que garantiuo Prémio de Melhor Show de 2017 doTop Rádio Luanda a Nova Energia.

Paula das Gingas foi a voz feminina convidada

Quintino ajudou a dar “ritmo” ao espectáculo

Teddy ajudou a consolidar a rítmica do espectáculo

Mister Kim mostrou talento

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DIÁLOGO INTERCULTURAL | 13Cultura | 27 de Março a 9 de Abril de 2018

Amahiguèrè Dolo é reconhecidomundo afora por suas escultu-ras que fazem nascer do barroou de troncos de madeira obras de ar-te orgânicas que mesclam natureza earte em uma mesma peça. Nascido noPaís Dogon, no Mali, o artista, quetambém trabalha com argila, ferro epintura, se destacou pelas galerias domundo com obras feitas exclusiva-mente de materiais orgânicos e commatérias-primas simples como ma-deira, terracota e tintas naturais. Seuestilo aproxima a arte estética da artenatural, com formas complexas quese confundem e se mesclam com abrandura do meio ambiente. Para ele,a natureza já carrega a mensagem e oseu trabalho está em definir e decifrara alma de cada objecto, que por simesmo é inspiração e é arte.O escultor acredita que existe umjogo ambíguo que o caracteriza comoartista. Para ele, a arte é universal eindividual ao mesmo tempo e essasduas faces estarão sempre presentesno mundo de sua criatividade. Doloexplica que antes de tudo, ele é um ar-tista no sentido puro e directo da pa-lavra e por isso sua arte fala, sobretu-do, de si mesmo, de quem ele é nofundo. Suas escolhas são a de um ar-tista e não a de um artista africano.Antes de ser de Dogon, de ser do Maliou ser da África, ele é ele mesmo. Énesta definição que ele encontra aambiguidade, uma vez que ao mesmotempo, ser ele mesmo é ser de onde

ele vem. Tudo que faz é apoiado e em-basado em sua cultura. Não por esco-lha, mas porque a própria obra falado autor e de seu deslocamento nomundo. A conotação da origem esta-rá sempre implícita, sendo maior doque o próprio artista.“Eu venho do país Dogon, mas eunão trabalho para mostrar o país Do-gon. São os outros que vêem, que adi-vinham e que pensam automatica-mente que tal escultura se asseme-lha a tal característica da minha cul-tura. São os analistas que trazem es-se olhar. O que eu faço é o que euaprecio, são as coisas que moram emmim e que não podem ser outras queonde eu nasci e cresci. E se existeuma abertura onde é possível enxer-gar isso, então existe. Na matemáticado trabalho que faço, se sente a Áfri-ca. E isso é claro”, explica Dolo ao rei-vindicar a universalidade da arte. Fo-ra a representação do seu “eu intei-ro”, ele acredita ser um artista comoos outros. Para ele, no imaginárionão existe diferença, tudo rima emalgum ponto. Pelo mundo, artistaspodem falar da mesma coisa, e mes-mo estar um dentro um do outro. Adiferença está apenas na maneira deabordar a arte em sua base, uma vezque a obra de um artista obrigatoria-mente o traduzirá.“Eu sou o fruto da minha localida-de, onde nasci, onde aprendi, ondeme ensinaram, onde me formaram.Eu não posso aprender em outro lu-

gar mais do que isso. Nos outros lu-gares, você aprende os complemen-tos. É a aprendizagem de base queforma o teu verdadeiro eu”, continuao escultor que acredita que o que po-de levar alguém longe é conhecer a simesmo e às suas origens. Dolo é deorigem animista e em suas obras aespiritualidade ancestral fala maisalto. Ele acredita na cosmogoniacomplexa e atribui uma alma a cadaser presente na terra, animal ou ma-terial, e por isso defende que as for-mas não são gratuitas. Ao apontarum tronco de madeira, ele explicaque ali a arte já está presente em seufeitio natural. E para esculpir é pre-ciso deixar que o objecto tome suaprópria forma, para depois apenas ainteirar e a complementar, desta-cando o que há de mais positivo nela.Nas madeiras esculpidas, nos seusquadros pintados com terra pura, nasargilas moldadas: na arte de Amahi-guèrè, a concepção é antes de tudotrabalhar o interior da escultura, asua alma. Para depois, deixar a obranascer. “Escolhas técnicas? Será queeu escolhi alguma coisa? Eu acho quea força está dentro do material. O ani-mismo é deixar as coisas estarem.Nós estamos do lado de fora e somosnós, com nosso imaginário, que te-mos que compreender o objecto. Éessa forma, essa maneira de com-preensão que vai ser a maneira queele deve ser. Só depois que você tra-balha a parte interna, é que existe

uma externa, é que aquilo se transfor-ma em material”, ilustra o artista aoser perguntado por suas motivações.Inspirado pela natureza na suaforma pura, ele acredita que cadamatéria tem em si uma palavra a sercompreendida e captada por quem atrabalha, uma vez que os materiaisda natureza trazem algo além daqui-lo que é visível: “A água tem uma fun-ção visível e invisível em relação aohomem. O vento, a terra e outroscomponentes também. O animismoé esse aspecto orgânico e é também orespeito a ele. O artista pode fazer parte da tra-dução entre os dois mundos. Ele temque aproveitar dentro do quotidianoo movimento e a fluidez natural doselementos naturais e para fazer issoé preciso de alma e de ânimo”, ilustrao escultor, adicionando que o concei-to actual de arte é uma criação bur-guesa. Para ele, a arte na sua origem éum espelho do passado e do presen-te e a cintilação do amanhã, é o sacri-fício de nos colocar em conexão comos entes invisíveis e com o futuro queninguém conhece. A arte é aceitar que somos todossusceptíveis desse futuro. A arte sedesdobra em si mesma, servindo pa-ra que a sociedade leia a natureza etodas as suas formas na sua face maispositiva. Por fim, para AmahiguèrèDolo, deixar um objecto existir é ilu-minar o que nos espera de melhor nonosso destino.

UNIVERSO X INDIVÍDUOAMAHIGUÈRÈ DOLO

E A ALMA NA NATUREZA DA ARTE FLORA PEREIRA DA SILVA (AFREAKA)

Arte de Natan Aquino

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Reúne mapas, textos, fotos, gra-vações e filmes de todos os tem-pos e explica em sete idiomas asjóias e relíquias culturais de todas asbibliotecas do planeta.Tem, sobretudo, carácter patrimo-nial", antecipou em LA NACION Abde-laziz Abid, coordenador do projectoimpulsionado pela UNESCO e outras32 instituições. A BDM não oferecerádocumentos correntes, a não ser "comvalor de património, que permitirãoapreciar e conhecer melhor as culturasdo mundo em diferentes idiomas: ára-be, chinês, inglês, francês, russo, espa-nhol e português. Mas há documentosem linha em mais de 50 idiomas".Entre os documentos mais antigoshá alguns códices pré-colombianos,graças à contribuição do México, e osprimeiros mapas da América, dese-nhados por Diego Gutiérrez para o reide Espanha em 1562", explicou Abid.Os tesouros incluem o Hyakumantodarani , um documento em japonês pu-blicado no ano 764 e considerado oprimeiro texto impresso da história;um relato dos azetecas que constitui aprimeira menção do Menino Jesus noNovo Mundo; trabalhos de cientistasárabes desvelando o mistério da álge-bra; ossos utilizados como oráculos eesteiras chinesas; a Bíblia de Guten-berg; antigas fotos latino-americanasda Biblioteca Nacional do Brasil e a cé-lebre Bíblia do Diabo, do século XIII, daBiblioteca Nacional da Suécia.Fácil de navegarCada jóia da cultura universal apa-rece acompanhada de uma breve ex-plicação do seu conteúdo e seu signifi-cado. Os documentos foram passadospor scanners e incorporados no seuidioma original, mas as explicaçõesaparecem em sete línguas, entre elasO PORTUGUÊS. A biblioteca começacom 1200 documentos, mas foi pen-sada para receber um número ilimita-

do de textos, gravados, mapas, foto-grafias e ilustrações.Como se acede ao sítio global?Embora seja apresentado oficial-mente na sede da UNESCO, em Paris, aBiblioteca Digital Mundial já está dis-ponível na Internet, através do sítio:www.wdl.org O acesso é gratuito e os usuários po-dem ingressar directamente pela Web ,sem necessidade de se registarem.. Permite ao internauta orientar asua busca por épocas, zonas geográ-ficas, tipo de documento e institui-ção. O sistema propõe as explicaçõesem sete idiomas (árabe, chinês, in-glês, francês, russo, espanhol e por-tuguês), embora os originas existamna sua língua original.Desse modo, é possível, por exem-plo, estudar em detalhe o Evangelho deSão Mateus traduzido em aleutianopelo missionário russo Ioann Venia-miov, em 1840. Com um simples cli-que, podem-se passar as páginas um li-vro, aproximar ou afastar os textos emovê-los em todos os sentidos. A exce-lente definição das imagens permiteuma leitura cómoda e minuciosa.Entre as jóias que contem no mo-mento a BDM está a Declaração de In-dependência dos Estados Unidos, as-sim como as Constituições de nume-rosos países; um texto japonês do sé-

culo XVI considerado a primeira im-pressão da história; o jornal de um es-tudioso veneziano que acompanhouFernão de Magalhães na sua viagemao redor do mundo; o original das "Fá-bulas" de La Fontaine , o primeiro li-vro publicado nas Filipinas em espa-nhol e tagalog, a Bíblia de Gutemberg,e umas pinturas rupestres africanasque datam de 8.000 A .C.Duas regiões bem representadas América Latina e Médio Oriente. Is-so deve-se à activa participação da Bi-blioteca Nacional do Brasil, à bibliote-ca de Alexandria no Egipto e à Univer-sidade Rei Abdulá da Arábia Saudita.A estrutura da BDM foi decalcadado projecto de digitalização da Biblio-teca do Congresso dos Estados Uni-dos, que começou em 1991 e actual-mente contém 11 milhões de docu-mentos em linha.Os seus responsáveis afirmam que aBDM está sobretudo destinada a in-vestigadores, professores e alunos.Mas a importância que reveste esse sí-tio vai muito além da incitação ao es-tudo das novas gerações que vivemnum mundo audiovisual.Lançada em 2009A World Digital Library (WDL) (Bi-blioteca Digital Mundial em português)

é uma biblioteca digital projectada pelaBiblioteca do Congresso dos EstadosUnidos da América e pela UNESCO emparceria com mais 31 outras institui-ções de vários países. James H. Billing-ton, bibliotecário do Congresso dosEUA, sugeriu em 2005 a criação da Bi-blioteca Digital Mundial para a UNES-CO, com o intuito de tornar mais aces-síveis colecções que falem e promo-vam a cultura, destacando as conquis-ta de todo o mundo. No início passoupor alguns problemas, como de digita-lização, o acesso multilingue, etc. Em2006 a UNESCO realiza uma reunião,para sanar esses problemas. Então só em Abril de 2009, a Bi-blioteca Digital Mundial é lançadapara o público internacional, comconteúdo sobre cada estado-membroda UNESCO. Foi desenvolvida poruma equipe da Biblioteca do Con-gresso dos EUA, com contribuiçõesde instituições parceiras em muitospaíses, o apoio das Organização dasNações Unidas para a Educação, aCiência e a Cultura(UNESCO) e oapoio financeiro de uma série de em-presas e fundações privadas. O objec-tivo é dispor em meio electrónico pe-la Internet o conteúdo dos mais va-riados média, inicialmente nos idio-mas árabe, chinês, espanhol, francês,inglês, português e russo. Foi inaugu-rada em 21 de Abril de 2009, contan-do com um acervo de 1.208 itens.

14 | DIÁLOGO INTERCULTURAL 27 de Março a 9 de Abril de 2018 | Cultura

UNESCO OFERECE BIBLIOTECA DIGITAL MUNDIAL

Disponível na Internet, através do site www.wdl.org

Desenho das viagens exploradoras dos europeus para Áfica

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ANTÓNIO QUINOAs acusações de feitiçaria con-tra progenitores são muitocomuns na nossa sociedade.Oportunamente oportunista, apro-veito a ocasião para também acusaro meu pai de feiticeiro.Meu pai é mesmo feiticeiro.Do que me lembro, nunca disse emvoz alta e para todo mundo ouvir, masmeu pai é feiticeiro. Não há aqui tru-ques. Feiticeiro e pronto.Talvez não tão feiticeiro como osdo Curoca, do Gulungo Alto ou doDombe Grande. Corre a fama que es-tes, com mestria, ainda fazem coisasde magieiros, superando atém mes-mo o afamado Neto Magia; o finado.Não me atrevo a afirmar se o meupai faz alguns rituais com incensoscom aromas, penas de galinha deKimbundu; se utiliza ingredientescomo unha de morcego, cauda de la-gartixa, velas encarnadas e velas pre-tas, pena de coruja ou orações aosanto dos ngapas, para que uma sim-patia seja alvejada.Também não me atrevo a confir-mar se o ocultismo e espiritualidadedo meu pai, que domina a natureza,convocam forças ocultas do univer-so e outras divindades. Não queroaqui só afirmar à toa. Porque nuncavi. Juro mesmo!Porém, por culpa desse meu feiti-ceiro, tenho maus hábitos e ainda es-tou vivo. Não faz mal lembrar que tam-bém ao feiticeiro devo o dom da vida.Juro de pés juntos que nunca lhe via fazer qualquer ritual diabólico. Masele, o meu pai, fez feitiço para que eutivesse a saúde que tenho, a formaçãoque tenho, a nacionalidade que tenhoe a personalidade que tenho. Até a ca-ra que tenho, por ter introduzido emmim traços do seu ADN.Agora, esse feiticeiro que é o meupai mexeu em mixórdias que desco-nheço, porque só assim se justificaque eu não tenha caído em caminhosdesviantes ou rotas obscuras, comovi muitos outros filhos dos pais delescaírem; não acabei mau cidadão ouindivíduo extremado que só quer sa-tisfazer o seu ego.Com tristes salários, meu pai faziafeitiço de multiplicar dinheiro paraque não nos faltasse o que comer, oque vestir e o por que sorrir.Se ele tinha algum poder oculto, nãosei. Mas não me lembro se alguma vezmeu pai deixou de ter dinheiro paraatender os desejos mínimos de casa:comer, vestir, dormir, estudar, jogar abola, tratar feridas da carne e brincar.

Tão forte é o meu feiticeiro que, nacomunhão com a sua esposa, assim jáa minha mãe, a pemba da harmoniano lar vivia em nossa casa.Acho que ele não sabia fazer feitiçopara disfarçar as dificuldades e as ca-rências dele. Nem tinha adereços pa-ra afastar a dor do insucesso, do fra-casso, da desilusão. Seu rosto nãopoucas vezes deixava transparecerisso. Até mesmo quando algum denós adoecesse, via a impotência dofeitiço dele, porque o olhar deleacambaiava-se e o silêncio da preocu-pação dele barulhava o sossego de to-dos. E certamente não era com mixór-dias que nos curávamos, porque eletinha o feitiço de ao hospital nos le-var. O feitiço do amor incondicionalnão lhe largava.Os feiticeiros também sofrem.Eu via o meu pai a sofrer por nós.Os feiticeiros tambémsorriem. Eu via o meu pai asorrir por nós.Ouvi muitas vezes omeu pai, feiticeiro, afalar de salário atra-sado. Ouvi muitasvezes o meu pai,feiticeiro, a falarde salário insigni-ficante. Nem sei sealguma vez isso foirelevante paramim, porque eunão deixei de co-mer, de dormir oude sorrir por isso.Há um feitiçoigual ao de mui-tos outros pais,que permitia ter-mos uma educa-ção cristã, que visa-va respeitar o pró-ximo, ser amigo dosamigos e olhar o paido outro como nossopai; a mãe do vizinhocomo nossa mãe. Essefeitiço ainda me actua.Está a ver o meu pai, con-fesso que nunca lhe vi a voarem vassoura, porque esse uten-sílio de limpeza relacionado comos feiticeiros, lá em casa era usadoem nós quando o fazíamos por mere-cer. Outras vezes era mesmo paravarrer o lixo lá de casa durante o dia.Mas à noite mesmo, o lixo era varri-do e encostado num canto. Não po-deria ser removido por culpa de al-gum outro feiticeiro. É que o feiticei-ro, meu pai, nos impôs o feitiço de fa-zer trabalho doméstico: lavar, cozi-

nhar, limpar, engomar e brincar.Se o meu pai tem habilidades mís-ticas? Claro que tem. Não posso ne-gar. Quem tem autoridade na voz, nãoserá uma habilidade mística? Quemtem amor nas repreensões, não seráhabilidade mística?Quem faz feitiço para o filho sergente, não pode dizer que não tem ha-bilidades místicas!Lançava magia muitas vezes. Elee a mulher dele, minha mãe, outrafeiticeira. Galinha preta e galinhabranca acabavam mesmo na pane-la, deixando o aroma transpirar sa-bores que jamais

morrerão nas lembranças. O feiti-ço do olfacto. Como eles prepara-vam esse feitiço, hoje não sei expli-car. Talvez fosse o feitiço para ablindagem contra mau-olhado oudoenças fatais.Por usar magia provinda delemesmo, sofreu grandes desgastes fí-sico e mental. Meu pai, o feiticeiro éclaro, matou-se de me enfeitiçar. Pa-rece que cada feitiço roubava dele al-gum suspiro de jovialidade. Sinto-me, por isso, responsável pelo enve-lhecimento dele.Hoje, os seus cabelos brancos de fei-ticeiro experimentado são merecidos.De feitiços bem feitos. Trabalhou mui-to em feitiços para procurar cumpriro seu papel de pai. E eu agradeçopor o ter como o meu feiticeirofavorito.Por culpa dos feitiçosdo meu pai, fui cozi-nhado para ser paium dia. Ganhei odom da vida e agraça de podergerar vida. Sãopoucos os fei-ticeiros quenos dão isso.Tambémhoje descon-fio que sou fei-ticeiro. Por-que já sou pai.Talvez um diavenha a ter ca-belo branco. Eespero queme venham aconsiderarfeiticeiro, co-mo o meu pai.Portanto, ca-da qual cuidabem do feiticei-ro dele, pois mui-tos são os que jánão têm pais feiti-ceiros.Enfim. Ainda bemque o meu pai é feiti-ceiro. E espero conti-nuar a imitar esses fei-tiços para que os meusenfeitiçados filhos sejam oque Angola espera deles: ci-dadãos úteis!

| BARRA DO KWANZA | 15Cultura | 27 de Março a 9 de Abril de 2018

MEU PAI É FEITICEIRO

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