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Cultura e Desenvolvimento

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texto do boaventura santos

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Heloisa Buarque de Hollanda (org)

C974

Cultura e Desenvolvimento/ organização Heloisa Buarque de Hollanda. – Rio de

Janeiro :Aeroplano, 2004

200p/. : 12 x 21 cm

ISBN 85-86579-65-3

1. Cultura popular – Rio de Janeiro (Estado) –Congressos.I. Hollanda, Heloisa Buarque de, 1939-

04-2584 CDD 306.098153CDU 316.7(815.3)

007787

Produção editorial:Christine Dieguez

Capa:Tita Nigrí

Projeto gráfico e editoração eletrônica:Renata Vidal

Revisão:Itala Maduell

Aeroplano Editora e ConsultoriaAv. Ataulfo de Paiva, 658 sala 402

Leblon – Rio de Janeiro – RJ CEP 22440-030

Tel: (21) 2529-6974Telefax: (21) 2239-7399

[email protected]

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Sumário

Heloisa Buarque de HollandaApresentação

Boaventura de Sousa SantosEntre Próspero e Caliban – Colonialismo,

pós-colonialismo e interidentidade

Jailson de Souza e SilvaIdentidade, território e práticas culturais:

A experiência do Centro de Estudos

e Ações Solidárias da Maré – Ceasm

Ecio de SallesCulturas transitivas

Marta Porto Cultura para o desenvolvimento:

um desafio de todos

Maurício TorresLevantes bárbaros

FerrézPoema

7

10

74

90

104

114

132

Paulo Roberto PiresEstilhaços de ficção, literatura viva

Paulo LinsPoema

Beatriz Resende A literatura brasileira

na era da multiplicidade

Tião SantosRádios Comunitárias: “Balangando o beiço”

pelo direito de comunicar!

Zuenir Ventura Do bem e do mal

Sobre os autores

Sobre o evento

136

144

148

176

186

192

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Apresentação

Seguramente, não é mais possível pensar asmanifestações estéticas e culturais hoje semarticulá-las às questões básicas do desen-volvimento econômico e social. Por toda parte,emergem novos territórios culturais e disse-minam-se novas dinâmicas de criação eintervenção que rapidamente se articulamcomo respostas e interpelações aos efeitoscontraditórios dos processos neoliberais deglobalização e transnacionalização da culturae da informação.

Neste quadro, a evidência sinaliza aocorrência de uma significativa alteração nafunção social da arte e a entrada definitiva daprodução cultural no mercado e na economia,tornando-se elemento-chave nos processos deafirmação da cidadania, de geração deemprego e inclusão social.

O esforço do seminário Cultura eDesenvolvimento foi na direção de procurardebater os caminhos possíveis da cultura hojee colocar em cena algumas perguntas ina-diáveis: Como pensar a radicalidade dobinômio desenvolvimento/cultura no Brasil?Como trabalhar as possibilidades de am-pliação do paradigma dos diretos humanospara a área cultural? Como potencializar orendimento político-cultural das redes cidadãse das “multidões”? Como refuncionalizar ageopolítica da produção e do consumo culturalno quadro transnacional? Como oferecernovos dados e variáveis para a formulação de

políticas concretas de desenvolvimento para aárea da cultura?

Com este naipe de perguntas em mente,pretendíamos promover a discussão e o ma-peamento dos movimentos civis e culturaisemergentes e novas perspectivas críticas para acompreensão dos fenômenos culturais surgidosnas grandes periferias urbanas e seu alcancede inclusão e desenvolvimento social.

Outro objetivo não menos importantedeste seminário foi a criação de canaisprodutivos e a promoção de articulações con-cretas e permanentes entre estas novas ma-nifestações que se apresentam desafiando oslimites entre classes sociais e fronteirasculturais e a academia.

Os textos reunidos neste volume procuramtrazer subsídios a este debate. São escritos emdiferentes tons e linguagens por ativistas, pro-fessores, pesquisadores, jornalistas, editores eartistas. Em todos, uma preocupação comum:a atividade cultural enquanto função radicalna vida política do país.

Assim, temos um conjunto polivalente dereflexões, análises, relatos e testemunhos noqual os poemas de Paulo Lins e Ferréz ou acrônica de Zuenir Ventura sobre PauloNegueba dialogam com ensaios como o deEcio de Salles propondo um tipo de“articulação poliglota”, capaz de agir junto amúltiplos pontos de interseção institucionais esociais na promoção de uma cidadaniacultural, o artigo de Marta Porto situando,em boa hora, a invisibilidade e a

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insuficiência histórica do debate sobreCultura e Desenvolvimento nas políticasculturais no Brasil ou de Jailson de Souza eSilva sobre as perspectivas conceituais esocioculturais do fortalecimento de umadinâmica de redes cidadãs como noçãoestruturante das ações que desenvolve noCentro de Estudos e Ações Solidárias daMaré. Outra experiência importante relatadaneste volume é a de Tião Santos emBalangando o beiço pelo direito decomunicar, sobre a atuação de 15 mil rádioscomunitárias que recriam, diariamente,espaços de liberdade de expressão e cidadania.

Na área da literatura, Beatriz Resende ePaulo Roberto Pires fazem um inventáriocrítico das tendências de nossa literatura vivaao lado de Maurício Torres, editor da CasaAmarela, que aponta, em Levantes bárbaros,o provável e bem-vindo processo de geração deum novo cânone para as letras nacionaisvindo das novas expressões literárias,marcadas pela consciência do local, pelapopulação marginal.

Abrindo o volume, o texto de Boaventurade Sousa Santos nos oferece uma categoriateórica: a noção de interidentidade parapensar a questão dos colonialismos internos edas possibilidades de uma globalizaçãocontra-hegemônica para este século 21.

Heloisa Buarque de Hollandanovembro de 2004

Entre Próspero e CalibanColonialismo, pós-colonialismoe interidentidade1

Boaventura de Sousa Santos

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Concentrando-se na análise dos processosidentitários no espaço-tempo da língua portu-guesa, este trabalho pretende ser um contributopara o estudo do pós-colonialismo. Se a iden-tidade moderna ocidental é, em grande medida,produto do colonialismo, a identidade no espaço-tempo de língua portuguesa reflecte as espe-cificidades do colonialismo português. Trata-se deum colonialismo subalterno, ele próprio “colo-nizado” em sua condição semiperiférica, que não éfacilmente entendido à luz das teorias que hojedominam o pensamento pós-colonial nos paísescentrais, um pensamento baseado no colonialismohegemônico. O autor propõe o conceito de interi-dentidade para dar conta de uma constelaçãoidentitária complexa, em que se combinam traçosde colonizador com traços de colonizado. A falta ea saudade de hegemonia (ou imaginação docentro) propiciou a formação de colonialismosinternos que perduram até hoje. À luz disto, oautor conclui que o pós-colonialismo no espaço-tempo de língua portuguesa – um pós-colo-nialismo situado – deve manifestar-se, em tempode globalização neoliberal, como anticolonialismoe globalização contra-hegemônica.

Com este trabalho pretendo dar mais umpasso numa investigação em curso sobre osprocessos identitários no espaço-tempo dalíngua portuguesa, ou seja, numa vasta emultissecular zona de contato que envolveuportugueses e outros povos da América, Ásia eÁfrica. As hipóteses de trabalho que orientamesta investigação foram formuladas emtrabalhos anteriores. Relembro-as aqui de modomuito sumário.

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A primeira hipótese é que desde o séculoXVII Portugal é um país semiperiférico nosistema mundial capitalista. Essa condição – aque melhor caracteriza a longa duração modernada sociedade portuguesa – evoluiu ao longo dosséculos mas manteve seus traços fundamentais:um desenvolvimento econômico intermédio euma posição de intermediação entre o centro e aperiferia da economia-mundo; um Estado que,por ser simultaneamente produto e produtordessa posição intermédia e intermediária, nuncaassumiu plenamente as características do Estadomoderno dos países centrais, sobretudo as que secristalizaram no Estado liberal a partir demeados do século XIX. A segunda hipótese é queessa complexa condição semiperiférica sereproduziu com base no sistema colonial ereproduz-se, há quinze anos, no modo comoPortugal está inserido na União Européia (UE).Daí decorrem três sub-hipóteses: o colonialismoportuguês, sendo conduzido por um paíssemiperiférico, foi ele próprio semiperiférico –um colonialismo subalterno; por suascaracterísticas e duração histórica, a relaçãocolonial protagonizada por Portugal impregnoude modo muito particular e intenso asconfigurações de poder social, político e culturalnão só nas colônias como no seio da própriasociedade portuguesa; o processo de integraçãona UE, apesar de sua curtíssima duração quandocomparado com o ciclo colonial, parecedestinado a ter na sociedade portuguesa umimpacto tão dramático quanto o que teve ocolonialismo – em aberto está a questão dosentido e conteúdo desse impacto2.

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A terceira hipótese geral diz respeito ao valoranalítico da teoria do sistema mundial paraentender a posição de Portugal – se periférica,semiperiférica ou central – nas atuais condições deglobalização.3 A quarta hipótese é que a culturaportuguesa é uma cultura de fronteira: não temconteúdo, tem sobretudo forma, e essa forma é ada zona fronteiriça. A cultura portuguesa sempreteve uma grande dificuldade em se diferenciar deoutras culturas nacionais ou, se preferirmos, umagrande capacidade para não se diferenciar deoutras culturas nacionais, mantendo até hoje umaforte heterogeneidade interna4.

Neste texto, debruço-me sobre as práticas ediscursos que caracterizam o colonialismoportuguês e o modo como impregnaram osregimes identitários nas sociedades que deleparticiparam, tanto durante o período colonialcomo depois da independência das colônias, comincidência sobretudo na África e na América.

O colonialismo português e o pós-colonialismo- A especificidade do colonialismo português

Formular a caracterização do colonialismoportuguês como “especificidade” exprime asrelações de hierarquia entre os diferentescolonialismos europeus. Se a especificidade é aafirmação de um desvio em relação a uma normageral, nesse caso a norma é dada pelo colonialismobritânico: é em relação a ele que se define o perfil– subalterno – do colonialismo português. Talsubalternidade é dupla, porque ocorre tanto nodomínio das práticas como no dos discursoscoloniais. No domínio das práticas, a subalter-

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nidade está no fato de que Portugal, como paíssemiperiférico, foi ele próprio, durante longoperíodo, um país dependente – em certos mo-mentos quase uma “colônia informal” – daInglaterra. Tal como ocorreu com o colonialismoespanhol, a conjunção do colonialismo portuguêscom o capitalismo foi muito menos direta do quea que caracterizou o colonialismo britânico. Emmuitos casos essa conjunção se deu por delegação,ou seja, sob o impacto da pressão inglesa por meiode mecanismos como condições de crédito etratados internacionais desiguais. Assim, en-quanto o Império Britânico assentou numequilíbrio dinâmico entre colonialismo e capi-talismo, o Português assentou num desequilíbrio,igualmente dinâmico, entre um excesso decolonialismo e um déficit de capitalismo.

No domínio dos discursos coloniais, asubalternidade do colonialismo português resideno fato de que desde o século XVII a história docolonialismo foi escrita em inglês, e não emportuguês. Isso significa que o colonizadorportuguês tem um problema de auto-representação algo semelhante ao do colonizadopelo colonialismo britânico. A necessidade dedefinir o colonialismo português em sua espe-cificidade quanto ao colonialismo hegemônicosignifica a impossibilidade ou dificuldade dedefini-lo em termos que não reflitam essasubalternidade. Por um lado, o colonizado portu-guês tem um duplo problema de auto-repre-sentação: em relação ao colonizador que o colo-nizou e em relação ao colonizador que, não otendo colonizado, escreveu no entanto a históriade sua sujeição colonial. Por outro, o problema de

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auto-representação do colonizador português criauma disjunção caótica entre o sujeito e o objeto derepresentação colonial que, por sua vez, cria umcampo aparentemente vazio de representações(mas, de fato, cheio de representações subco-dificadas) que, do ponto de vista do colonizado,constitui um espaço de manobra adicional paratentar sua auto-representação para além darepresentação de sua subalternidade.

A especificidade do colonialismo portuguêsassenta basicamente em razões de economiapolítica – a sua condição semiperiférica5 –, o quenão significa que esta tenha se manifestado apenasno plano econômico. Ao contrário, manifestou-seigualmente nos planos social, político, jurídico,cultural, no plano das práticas cotidianas deconvivência e sobrevivência, de opressão eresistência, de proximidade e distância, no planodos discursos e narrativas, do senso comum e dosoutros saberes, das emoções e afetos, dossentimentos e ideologias. A grande assimetriaentre o colonialismo inglês e o português foi ofato de que o primeiro não teve de romper comum passado descoincidente de seu presente. Ocolonialismo inglês foi sempre o colonialismo-norma desde a sua origem porque protagonizadopelo país que impunha a normatividade dosistema mundial. No caso português, uma vezcriada a possibilidade de um colonialismoretroativo, como discurso de dessincronia eruptura, este pôde ser manipulado ao sabor dasexigências e conjunturas políticas. Tanto seofereceu a leituras inquietantes – e.g. osubdesenvolvimento do colonizador produziu osubdesenvolvimento do colonizado, uma dupla

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condição que só poderia ser superada por umapolítica colonialista desenvolvida – comoreconfortantes – e.g. o lusotropicalismo,“Portugal, do Minho a Timor”, colonialismocordial –, mas quase todas as leituras tiveramelementos inquietantes e reconfortantes. Anegatividade do colonialismo português foisempre o subtexto de sua positividade e vice-versa.

- O pós-colonialismoO pós-colonialismo deve ser entendido em

duas acepções principais. A primeira é a de umperíodo histórico, aquele que se sucede àindependência das colônias, e a segunda é a de umconjunto de práticas e discursos que desconstroema narrativa colonial escrita pelo colonizador eprocuram substituí-la por narrativas escritas doponto de vista do colonizado. Na primeiraacepção o pós-colonialismo traduz-se numconjunto de análises econômicas, sociológicas epolíticas sobre a construção dos novos Estados,sua base social, sua institucionalidade e suainserção no sistema mundial, as rupturas econtinuidades com o sistema colonial, as relaçõescom a ex-potência colonial e a questão doneocolonialismo, as alianças regionais etc. Nasegunda acepção, insere-se nos estudos culturais,lingüísticos e literários e usa privilegiadamente aexegese textual e as práticas performativas paraanalisar os sistemas de representação e osprocessos identitários. Nessa acepção o pós-colonialismo contém uma crítica, implícita ouexplícita, aos silêncios das análises pós-coloniaisna primeira acepção. Por me centrar neste textonos sistemas de representação e processos

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identitários, reporto-me ao pós-colonialismo nasegunda acepção, ainda que as análises próprias àprimeira sejam recorrentemente trazidas a cotejo.

Minha hipótese de trabalho é que as diferençasdo colonialismo português devem repercutir nasdiferenças do pós-colonialismo no espaço dalíngua oficial portuguesa, nomeadamente emrelação ao pós-colonialismo anglo-saxão. Aprimeira diferença é que a experiência daambivalência e da hibridez entre colonizador ecolonizado, longe de ser uma reivindicação pós-colonial, foi a experiência do colonialismoportuguês durante longos períodos. O pós-colonialismo anglo-saxão parte de uma relaçãocolonial assente na polarização extrema entrecolonizador e colonizado, entre Próspero eCaliban, uma polarização que é tanto uma práticade representação como a representação de umaprática, e é contra ela que a subversão da críticapós-colonial se dirige e faz sentido. Mas ondeancorar a subversão quando essa polarização está,pelo menos durante largos períodos, fortementeatenuada ou matizada? O pós-colonialismo emlíngua oficial portuguesa tem de centrar-se bemmais na crítica da ambivalência do que nareivindicação desta, e a crítica residirá em fazer adistinção entre formas de ambivalência ehibridação que efetivamente dão voz aosubalterno (as hibridações emancipatórias) eaquelas que usam a voz do subalterno parasilenciá-lo (hibridações reacionárias).

A segunda diferença do pós-colonialismo delíngua oficial portuguesa reside na questão racialsob a forma da cor da pele. Para os críticos pós-coloniais anglo-saxões a cor da pele é um limite

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incontornável às práticas de imitação e deassimilação porque, consoante os casos, ou negapor fora da enunciação o que a enunciação afirmaou então afirma o que ela nega. No caso do pós-colonialismo português há que contar com aambivalência e a hibridação na própria cor da pele– o mulato e a mulata –, ou seja, o espaço-entre, azona intelectual que o crítico pós-colonialreivindica para si, encarna no mulato como corpoe zona corporal. O desejo do outro em queBhabha funda a ambivalência da representação docolonizador6 não é um artefato psicanalítico nemé duplicado pela linguagem: é físico, criador,multiplica-se em criaturas. A miscigenação não é aconseqüência da ausência de racismo, comopretende a razão lusocolonialista ou lusotro-picalista, mas certamente é a causa de um racismode tipo diferente. Por isso, também a existência daambivalência ou hibridação é trivial no contextodo pós-colonialismo português. Importante seráelucidar as regras sexistas da sexualidade que quasesempre deitam na cama o homem branco e amulher negra, e não a mulher branca e o homemnegro. Ou seja, o pós-colonialismo portuguêsexige uma articulação densa com a questão dadiscriminação sexual e o feminismo.

A terceira diferença do pós-colonialismoportuguês reside numa dimensão de ambivalênciae hibridação insuspeitável no caso anglo-saxão. Aocontrário do que sucede neste último, aambivalência das representações não decorreapenas de não haver uma distinção clara entre aidentidade do colonizador e a do colonizado, mastambém de essa distinção estar inscrita na própriaidentidade do colonizador. A identidade do

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colonizador português não se limita a conter em sia identidade do outro, o colonizado por ele, poiscontém ela própria a identidade do colonizadorenquanto colonizado por outrem. O Prósperoportuguês não é apenas um Próspero calibanizado:é um Caliban quando visto da perspectiva dosSuper-Prósperos europeus. A identidade docolonizador português é, assim, duplamentedupla, constituída pela conjunção de dois outros:o outro que é o colonizado e o outro que é opróprio colonizador enquanto colonizado. Foiessa aguda duplicidade que permitiu ao portuguêsser emigrante, mais do que colono, nas “suas”próprias colônias.

Pode-se pois concluir que a “disjunção dadiferença”7 é bem mais complexa no caso do pós-colonialismo português – uma complexidade queparadoxalmente pode redundar em conjunções oucumplicidades insuspeitas entre o colonizador e ocolonizado. O “outro” colonizado pelo colo-nizador não é totalmente outro em relação ao“outro” colonizado do colonizador. Ao contráriodo pós-colonialismo anglo-saxão, não há umoutro: há dois que nem se juntam nem seseparam, apenas interferem no impacto de cadaum deles na identidade do colonizador e docolonizado. O outro-outro (o colonizado) e ooutro-próprio (o colonizador ele própriocolonizado) disputam na identidade do colo-nizador a demarcação das margens de alteridade,mas nesse caso a alteridade está, por assim dizer,dos dois lados da margem.

É por isso também que o estereótipo docolonizado não teve nunca o fechamento que éatribuído ao estereótipo no Império Britânico, ou,

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pelo menos, o seu fechamento foi sempre maisinconseqüente e transitório. A penetração sexualconvertida em penetração territorial e interpe-netração racial deu origem a significantes flu-tuantes que sufragaram, com o mesmo grau decristalização, estereótipos contrários consoante aorigem e a intenção da enunciação. Sufragaram oracismo sem raça ou, pelo menos, um racismomais “puro” do que a sua base racial. Sufragaramtambém o sexismo sob o pretexto do anti-racismo.Por essa razão, a cama sexista e inter-racial pôdeser a unidade de base da administração imperial ea democracia racial pôde ser exibida como umtroféu anti-racista sustentado pelas mãos brancas,pardas e negras do racismo e do sexismo.

O fato de o colonizador ter a vivência de sercolonizado não significa que se identifique maisou melhor com o seu colonizado. Tampoucosignifica que o colonizado por um colonizador-colonizado seja menos colonizado que outrocolonizado por um colonizador-colonizador.Significa apenas que a ambivalência e a hibridaçãodetectadas pelo pós-colonialismo anglo-saxônicoestão, no caso do pós-colonialismo português,muito além das representações, dos olhares,discursos e práticas de enunciação. São corpos eencarnações, vivências e sobrevivências cotidianasao longo de séculos, sustentados por formas dereciprocidade entre o colonizador e o colonizadoinsuspeitáveis no espaço do Império Britânico.

Para explicar essa diferença é necessáriointroduzir uma outra, sobre os jogos de auto-ridade. Nos estudos pós-coloniais o colonizadorsurge sempre como um sujeito soberano, aencarnação metafórica do império. Ora, no

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colonialismo português tal não se pode pres-supor sem mais. Só durante um curto período –a partir do final do século XIX, na África – é queo colonizador encarna o império, e mesmo assimem circunstâncias muito seletivas. Fora disso, ocolonizador apenas se representa a si próprio. Éum auto-império e, como tal, tão livre para omáximo excesso como para o máximo defeito dacolonização. Mas precisamente porque essaidentidade imperial não lhe é outorgada porninguém além dele, ele é de fato um sujeito tãodesprovido de soberania quanto o colonizado.Por isso, a autoridade não existe para além daforça ou da negociação que é possível mobilizarna zona de encontro.

Essa dupla ambivalência das representaçõesafeta não apenas a identidade do colonizador, mastambém a do colonizado. É possível que o excessode alteridade que identifiquei no colonizadorportuguês seja igualmente identificável no seucolonizado. Sobretudo no Brasil, é possívelimaginar que a identidade do colonizado foiconstruída, em alguns períodos pelo menos, apartir de um duplo outro: o outro do colonizadordireto português e o outro do colonizador indiretobritânico. Essa duplicidade transformou-semesmo em elemento constitutivo do mito dasorigens e das possibilidades de desenvolvimentodo Brasil, como veremos adiante. Instaurou umafratura que até hoje é tema de um debate quedivide os brasileiros entre os que se sentemvergados pelo excesso de passado e os que sesentem vergados pelo excesso de futuro.

O colonialismo português carrega consigo oestigma de uma indecidibilidade que deve ser

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objeto primordial do pós-colonialismo portu-guês. A colonização por parte de um Prósperoincompetente, relutante, originariamente híbri-do, redundou em subcolonização ou em hiper-colonização? Uma colonização particularmentecapacitante ou incapacitante para o colonizado?Um Próspero caótico e absenteísta não teráaberto espaço para a emergência de Prósperossubstitutos no seio dos Calibans? Não será porisso que, no contexto do pós-colonialismo portu-guês, a questão do neocolonialismo é menosimportante que a do colonialismo interno? Odéficit de colonialismo e de neocolonialismoajuda a explicar a especificidade das formaspolíticas que emergiram com a independênciadas grandes colônias. Em sentidos opostos, essasformas divergiram da norma de descolonizaçãoestabelecida pelo colonialismo hegemônico. Nocaso do Brasil, tratou-se de uma das inde-pendências mais conservadoras e oligárquicas daAmérica Latina e a única sob a forma demonarquia. Com ela estavam criadas as condi-ções para que o colonialismo externo sucedesse ocolonialismo interno, para que o poder colonialsucedesse a colonialidade do poder. Já no caso deAngola e Moçambique o desvio da norma foi nosentido de os novos países independentes ado-tarem regimes revolucionários que, no contextoda Guerra Fria, os colocavam do lado opostoàquele em que Portugal os tinha mantidoenquanto colônias. As vicissitudes por quepassaram esses países nos últimos 25 anos (fim daGuerra Fria, guerra civil) não nos permitemavaliar em que medida o colonialismo interno irácaracterizar os novos países.

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A indecidibilidade do colonialismo portuguêsconstitui uma mina de investigação para um pós-colonialismo contextualizado, ou seja, que não sedeixe armadilhar pelo jogo de semelhanças ediferenças do colonialismo português em relaçãoao colonialismo hegemônico. Caso contrário, unsapenas verão semelhanças e outros diferenças, eentre uns e outros a indecidibilidade escapar-se-ácomo um derradeiro objeto incomensurável,invisível para si próprio como o olhar. No atualcontexto o pós-colonialismo contextualizadopressupõe cuidadosas análises históricas ecomparadas dos colonialismos e do que se lhesseguiu. É crucial responder à pergunta sobre quemdescoloniza o que e como. Só assim o discursopós-colonial pode fazer jus à disseminação queBhabha propõe: um discurso que se move entrediferentes formações culturais e processos sociaissem uma causa lógica central8. Sem tal espe-cificação histórica e comparativa o pós-colo-nialismo será mais uma forma de imperialismocultural, e uma forma particularmente insidiosaporque credivelmente antiimperalista.

Jogos de espelhos I: um Caliban naEuropa

As identidades são o produto de jogos deespelhos entre entidades que, por razõescontingentes, definem as relações entre si comorelações de diferença e atribuem relevância a taisrelações. As identidades são sempre relacionaismas raramente são recíprocas. A relação dediferenciação é uma relação de desigualdade quese oculta na pretensa incomensurabilidade dasdiferenças. Quem tem poder para declarar a

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diferença tem poder para declará-la superior àsoutras diferenças em que se espelha. A identidadeé originariamente um modo de dominação assentenum modo de produção de poder que designo por“diferenciação desigual”9. As identidades subal-ternas são sempre derivadas e correspondem asituações em que o poder de declarar a diferençase combina com o poder para resistir ao poder quea declara inferior. Na identidade subalterna adeclaração da diferença é sempre uma tentativa deapropriar uma diferença declarada inferior demodo a reduzir ou eliminar sua inferioridade. Semresistência não há identidade subalterna, háapenas subalternidade.

A identidade dominante reproduz-se assim pordois processos distintos: pela negação total dooutro e pela disputa com a identidade subalternado outro. Quase sempre o primeiro conduz aosegundo. Por exemplo, a identidade dominante emesmo matricial da modernidade ocidental –Próspero/Caliban, civilizado/selvagem – repro-duziu-se inicialmente pelo primeiro processo edepois pelo segundo. Em diferentes jogos deespelho, os dois processos continuam a vigorar.Do ponto de vista do diferente superior, porém, aidentidade dominante só se transforma em fatopolítico na medida em que entra em disputa comidentidades subalternas. É esse o fato político quehoje designamos por “multiculturalismo”. Emqualquer dos seus modos de reprodução aidentidade dominante é ambivalente, pois mesmoa negação total do outro só é possível mediante aprodução ativa da inexistência do outro. Essaprodução implica sempre o desejo do outro naforma de uma ausência abissal, de uma carência

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insaciável. Tal ambivalência está bem patente narepresentação da América no início da expansãoeuropéia. A maioria dos relatos da descoberta donovo continente e das narrativas de viagens refleteuma peculiar fusão de imagens idílicas, utópicas eparadisíacas com as de práticas cruéis ecanibalísticas dos nativos. De um lado, a naturezaluxuriante e benevolente; do outro, a antro-pofagia repulsiva.

Sobre os jogos de identidade no espaço-tempo português, adianto as seguintes hipóteses.Em primeiro lugar, esses jogos são particu-larmente complexos pelo fato de os portuguesesterem estado ao longo da história dos dois ladosdo espelho: como Próspero visto ao espelho deCaliban e como Caliban visto ao espelho dePróspero. A segunda hipótese, decorrente daanterior, é que a ambivalência é potenciadanesse espaço-tempo pelo fato de o sujeito dedesejo ter sido também objeto de desejo. Aterceira hipótese é que a identidade dominantenesse espaço-tempo nunca produziu de modoconseqüente a negação total do outro e talvezpor isso tampouco soube confrontar-se poli-ticamente com as identidades subalternas. Nestaseção e nas seguintes aduzirei alguma provadessas hipóteses.

As características com que os portuguesesforam construindo, a partir do século XV, aimagem dos povos nativos de suas colônias sãomuito semelhantes às que lhes eram atribuídas, apartir da mesma altura, por viajantes, co-merciantes e religiosos vindos da Europa doNorte10: do subdesenvolvimento à precariedadedas condições de vida, da indolência à sen-

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sualidade, da violência à afabilidade, da falta dehigiene à ignorância, da superstição à irra-cionalidade. O contraste entre Europa do Nortee Portugal está bem patente no relato do fradeClaude de Bronseval, secretário do abade deClairvaux, sobre a viagem que fizeram a Portugale Espanha entre 1531 e 1533. Queixam-serecorrentemente das péssimas estradas, docaráter rústico das pessoas, do alojamento etratamento paupérrimos, bem “à maneira dopaís”, do hábito dos nobres ou homens honradosde reservarem para albergar os estrangeiros ascasas mais miseráveis para não serem vistos comoestalajadeiros. Quanto à educação dos frades,dizem, “são poucos os que nestes reinoshispânicos gostam de latim. Eles não gostamsenão da sua língua vulgar”. A descrição deLisboa não poderia ser mais significativa daatitude geral dos viajantes:

[E]sta cidade densamente povoada éum antro de judeus, alimento de umamultidão de indianos, uma masmorrados filhos da Agar, um reservatório demercadorias, uma fornalha de agiotas,um estábulo de luxúria, um caos deavareza, uma montanha de orgulho, umrefúgio para fugitivos, um porto parafranceses cadastrados.11

Ao analisar três relatos de estrangeiros escritosno decênio de 1720, Castelo Branco Chavesafirma que

o conspecto geral do país que seapreende é o de uma terra fértil, ricamas desaproveitada, vivendo quaseexclusivamente do ouro do Brasil. Parte

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do que comia, do que vestia, as madeiraspara as construções urbanas e navais, amaioria do necessário à vida, tudovinha de fora, da Inglaterra e daHolanda, particularmente compradocom o ouro brasileiro. O português émandrião, nada industrioso, nãoaproveita as riquezas da sua terra, nemsabe fazer vender as das suas colônias.12

Com exceção da referência final às colônias, essacaracterização corresponde ponto por ponto aoque então e desde há dois séculos se dizia dospovos nativos da América e da África: osportugueses são vingativos até a crueldade,dissimulados, motejadores, frívolos e tolos.Crueldade, espírito de vingança, dissimulação,frivolidade e tolice são parte constitutiva doestereótipo dos europeus a respeito dos africanosou dos povos ameríndios. Essa assimilação estámuitas vezes implícita nos relatos quando a cor dapele dos portugueses é invocada para confirmar averacidade do estereótipo. Segundo um dosrelatos, os portugueses são “na sua maior partemuito morenos, o que resulta do clima e aindamais do cruzamento com negros”13. Ao mesmotempo que os portugueses proclamavam amiscigenação como um triunfo humanista ou umengenhoso expediente colonialista, a mesmamiscigenação era-lhes inscrita na pele como umônus pelo olhar do Próspero europeu.

É a partir da segunda metade do século XVIII,como afirma Chaves, e por invenção sobretudodos ingleses, que a “lenda negra” de Portugal edos portugueses como povo decaído, dege-nerado, imbecilizado mais se aprofunda. Em

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dezembro de 1780 o capitão inglês RichardCrocker escreve de Lisboa:

Os homens portugueses são, semdúvida, a raça mais feia da Europa.Bem podem eles considerar adenominação de “ombre blanco” [...]uma distinção. Os portuguesesdescendem de uma mistura de judeus,mouros, negros e franceses, e pela suaaparência e qualidade parecem terreservado para si as piores partes de cadaum desses povos. Tal como os judeus, sãomesquinhos, enganadores e avarentos.Tal como os mouros, são ciumentos,cruéis e vingativos. Tal como os povos decor, são servis, pouco dóceis e falsos, eparecem-se com os franceses na vaidade,artifício e gabarolice.14

No início do século XIX os portugueses são emgeral descritos como camponeses algo primitivos.Em setembro de 1808 o oficial da marinha inglesaCharles Adam escreve de Lisboa a um amigo:“Vou fazer o possível para arranjar [...] livrosespanhóis, dizem-me que não há livrosportugueses que valha a pena ter”15. Durante suaestada em Portugal entre 1808 e 1814, AugustSchaumann, comissário alemão do exército inglês,lamenta nos seguintes termos depreciativos asituação de um povo que se vê invadido, não porum, mas por dois países, um que o ataca (aFrança) e outro que o defende (a Inglaterra): “Detodo o meu coração tenho pena destes pobresdiabos”16 Pela mesma época Lord Byron visitaPortugal (1809) e escreve o seu famoso poemaPeregrinação de Childe Harold: “Palácio e cabanasão igualmente imundos; seus morenos habitantes

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educados sem asseio; e ninguém, fidalgo ouplebeu, cuida da limpeza do casaco ou da camisa,[…] os cabelos por pentear, mal asseados”. E paranão restarem dúvidas, eis a comparação com osespanhóis: “O camponês espanhol é tão soberbocomo o duque mais nobre e conhece bem adistância que vai dele ao escravo português, oúltimo dos escravos”17.

No final do século XVII, o reverendo anglicanoJohn Colbatch, que ocupou o posto de capelão daBritish Factory em Lisboa, deixara uma opiniãoem geral mais favorável dos portugueses, nãodeixando ao mesmo tempo de denunciar o “ódiomortal” que alimentavam pelos estrangeiros e delamentar a sua pouca gratidão para com osingleses, que tantas vezes foram seus “salvadores”18.Robert Southey visitou Portugal pela primeira vezem 1796, e apesar de pretender mostrar admiraçãopelos portugueses não deixou de tachá-los comopovo retrógrado, supersticioso, sujo, preguiçoso,ignorante, desonesto, tolhido pela tirania doEstado e da Igreja, ambos corruptos e ignaros, eservido por instituições insólitas e chocantes, comoa Justiça, “geralmente inoperante ou precipitada,que deixava impunes os muitos assaltantes eassassinos”, ou a medicina, “exercida por médicosque nada sabiam do ofício e desacreditados pelosdoentes, que preferiam considerar as melhoras quesentiam como obra de Deus”. E para compor asimetria com os estereótipos europeus sobre ospovos da África ou da América, afirma Southey: “Asensualidade é sem dúvida o vício dos portugueses.As imagens debochadas de Camões, a sua ilha dosamores e Vênus protetora do Gama demonstramque eles se vangloriam de deboches desse tipo”19.

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A simetria entre os estereótipos dosportugueses por parte dos europeus do Norte e osestereótipos dos povos da América e da África porparte dos europeus do Norte e do Sul torna-separticularmente consistente na ambivalência comque a estigmatização do outro é penetrada pelodesejo radical do outro. Vimos atrás como asprimeiras imagens e narrativas da Américacombinam a exaltação da natureza idílica e da vidasimples com a condenação veemente das práticascruéis e repulsivas do canibalismo. Esse contrastetem um paralelo intrigante nos relatos sobrePortugal feitos por viajantes europeus a partir doséculo XVIII, em que a beleza das paisagens, aterra rica, o clima ameno são recorrentementecontrapostos à rudeza e brutalidade dosportugueses, como nesta formulação de LordByron: “Por que desbarataste, ó natureza, as tuasmaravilhas com semelhante gente? Eis que emvário labirinto de montes e vales surge o gloriosoéden de Sintra”20. Mas o contraste está presenteem muitos outros relatos. O mesmo RobertSouthey que avalia severamente os portugueses é oque exalta as belezas naturais do país e exclama:“Daria um dos meus olhos à cega Fortuna se elame deixasse olhar o Tejo com o outro”21. A terrafértil mas desaproveitada é um topos recorrentedos relatos. Carlos de Merveilleux, médiconaturalista francês a quem D. João V convidoupara escrever “a história natural destes reinos”, dizque “as terras produzem quase sem trabalho eindenizam abundantemente os cuidados com oseu cultivo”, e arremata: “Que riquezas nãoextrairia Sua Majestade dos seus estados se elesfossem povoados por [...] gentes laboriosas”22.

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A dialética de estranheza/desejo erepulsão/atração presente na descrição dosanimais do continente americano e da relação dosíndios com eles é também identificável nos relatosdos viajantes estrangeiros em Portugal. Eis o queescreve uma viajante inglesa na década de 1890:

... os porcos desta região sãoterrivelmente feios. São uns animaisenormes com orelhas compridas, lombosimensos, [...] costados ocos [...]. Apesardisso, os aldeões consideram essascriaturas como animais domésticos querespondem aos nomes que lhes põem evêm quando os chamam, como os cães, egostam muito que lhes falem eacariciem.23

A dialética da representação do colonizado fazdeste, como vimos, um ser simultaneamenteatrativo e repulsivo, dócil e ameaçador, leal etraiçoeiro, utópico e diabólico. Daí que osestereótipos não sejam unívocos nem consistentes:consoante as necessidades de representação docolonizador, predominam estereótipos oranegativos, ora positivos, ainda que uns e outros sepertençam mutuamente. Essa dialética temigualmente paralelo nas representações dosestrangeiros a respeito dos portugueses. Ao ladodas representações “negativas”, que ilustrei acima,há igualmente representações “positivas”. Aliás, talcomo aconteceu com as narrativas coloniais arespeito do colonizado, a disputa sobre “o perfildo português” foi por vezes acesa entre osobservadores estrangeiros. Os estereótiposnegativos passam a dominar na segunda metadedo século XVIII, à medida que se aprofunda o

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domínio britânico sobre Portugal, mas ao longode toda a época moderna são freqüentes asnarrativas que procuram pôr em causa narrativasanteriores e propor alternativas. Alguns prosélitosda representação procuram mesmo reconstruir ahistória das representações dos portugueses demodo a fazer salientar sua face positiva, como é ocaso de Rose Macaulay24. Entre os estereótipospositivos, o dos brandos costumes é talvez o maisconsistente, apesar de muito recente, e está nabase de outro ainda mais recente: o dolusotropicalismo.

O que pretendo mostrar é que tanto a cargapositiva como a carga negativa dos estereótipostêm paralelos por vezes surpreendentes com osestereótipos coloniais. Num trabalho importantesobre o sistema de representações sociaisidentitárias dos portugueses, Pereira Bastosreconstrói assim o perfil do português saído dosestudos do sociólogo francês Paul Descamps, quefez investigação em Portugal nos anos 1930 aconvite de Salazar: predomínio do amor sobre osinteresses materiais; saudosismo e propensão paraa melancolia; exagerada moleza do caráter;desvirilização e hipersensibilidade; temperamentonervoso, emotividade e compaixão; espíritopoético; amabilidade e docilidade; “almafeminina”; propensão para a simulação; desejosilimitados e apelo ao irreal; espírito aventureiro;falta de perseverança, de capacidade empresarial ede chefia; ausência da noção de importância dotempo e da pontualidade; incompreensão dasconseqüências sociais das ações.25 É importantenesse rol a complexa ambivalência de atração erepulsão. Mas mais importante ainda é que, em

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pleno século XX, muitas das característicasatribuídas aos portugueses têm semelhançassurpreendentes com as que as narrativascolonialistas, inclusive as portuguesas, atribuíamao negro africano e ao índio americano.

Jogos de espelhos II: um Prósperocalibanizado

Os portugueses nunca puderam instalar-secomodamente no espaço-tempo originário doPróspero europeu. Ali viveram como queinternamente deslocados em regiões simbólicasque não lhes pertenciam e onde não se sentiam àvontade. Foram objeto de humilhação e decelebração, de estigmatização e de complacência,mas sempre com a distância de quem não éplenamente contemporâneo do espaço-tempo queocupa. Forçados a jogar o jogo dos binarismosmodernos, tiveram dificuldades em saber de quelado estavam. Nem Próspero nem Caliban,restaram-lhes a liminaridade e a fronteira, a interi-dentidade como identidade originária. Aconteceque, em aparente contradição com tudo isso,Portugal foi a primeira potência européia a lançar-se na expansão ultramarina e a que manteve pormais tempo o seu império. Se o colonialismo jogouum papel central no sistema de representações damodernidade ocidental, Portugal teve umaparticipação pioneira na construção desse sistemae, portanto, no jogo de espelhos fundador entrePróspero e Caliban. O enigma é, pois: como é queo Caliban europeu pôde ser Próspero além-mar?Ou será que, porque nunca assumiu nenhumadessas identidades plena e exclusivamente, pôdeassumir as duas simultaneamente?

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A hegemonia de Portugal no sistema mundialmoderno foi de curta duração, e no final do séculoXVI os significantes de Próspero e Calibancirculavam fora do controle dos portugueses. Asinscrições desses significantes nos sistemas derepresentação dos portugueses foram de tal modocomplexas e fizeram-se durante um período tãolongo que acabaram por dar origem a estereótipose mitos contraditórios, sobrecarregados de meias-verdades. Até hoje a construção histórica dasdescobertas e do colonialismo portugueses estáassombrada por mitos que se pertencem e se anu-lam mutuamente. De um lado, a construção deCharles Boxer: os portugueses como um Prósperoincompetente com todos os defeitos de Próspero ecom poucas das suas virtudes. De outro, a deGilberto Freyre: os portugueses como um Prósperobenevolente e cosmopolita capaz de se aliar aCaliban para criar uma realidade nova26. Duasconstruções credíveis à luz do desconcerto e docaos das práticas a que quiseram pôr ordem. Essaindecidibilidade é o sinal da vigência reiterada deum regime de interidentidades. Os portugueses,sempre em trânsito entre Próspero e Caliban, tantoforam racistas, muitas vezes violentos e corruptos,mais dados à pilhagem que ao desenvolvimento,como foram miscigenadores natos, literalmentepais da democracia racial, do que ela revela e doque esconde, melhores do que qualquer outropovo europeu na adaptação aos trópicos.

Na África, na Ásia e no Brasil esse regime deinteridentidades teve infinitas manifestações, eentre elas avultam a “cafrealização” e amiscigenação, fenômenos ligados entre si masreferidos a processos sociais distintos. “Cafrea-

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lização” é uma designação utilizada a partir doséculo XIX para caracterizar de maneira estigma-tizante os portugueses que, sobretudo na ÁfricaOriental, se desvinculavam de sua cultura e de seuestatuto civilizado para adotar os modos de viverdos “cafres”, os negros agora transformados emprimitivos e selvagens. Trata-se pois de portu-gueses apanhados nas malhas de Caliban e de fatocalibanizados, vivendo com mulheres e filhoscalibans, segundo os costumes e línguas locais.

Até então a designação “cafre” não tinhaconotação negativa, servindo apenas paradistinguir os negros (cafres) dos negros quefalavam árabe e estavam, por isso, envolvidos nocomércio que os povos de cultura árabe emuçulmana e swahili mantinham há séculosnaquelas paragens27. Ela assume conotaçãodepreciativa num momento preciso da históriado colonialismo português – que adiantedesignarei por “momento de Próspero” –, e suarelevância para a argumentação desenvolvidanesta seção é que com ela o discurso colonialpretende ressignificar uma prática que sedifundiu entre os séculos XVI e XIX, sobretudona costa oriental da África. Consistiu nainteração prolongada dos portugueses com asculturas e os poderes locais, uma interação emque os interesses do comércio não podiam serrespaldados por qualquer poder imperial dignodo nome e, por isso, tendia a ser caracterizadapela reciprocidade e horizontalidade, quandonão mesmo pela subordinação e prestação devassalagem aos reis e autoridades locais. Areiteração dessas interações foi tal que elasextravasaram da atividade comercial para esferas

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de relacionamento mais profundo que envolviamfreqüentemente a constituição de família e aassimilação das línguas e costumes locais.

Essa interação fácil entre os portugueses e aspopulações locais e as práticas culturais híbridas aque deu azo estão documentadas desde o séculoXVII. Os relatos, muitas vezes de religiosos,criticam essas práticas, ainda que por vezes mos-trem compreensão para com as dificuldades en-frentadas naquelas paragens por quem não tinha opoder colonial a defendê-lo. Escreve frei João dosSantos em 1609:

Um português chamado RodrigoLobo era senhor desta ilha [na atualregião de Sofala, em Moçambique], daqual lhe fez mercê o [rei] por ser muitoseu amigo, e juntamente lhe deu o títulode sua mulher, nome que o rei chamavaao capitão de Moçambique, ao de Sofalae aos mais portugueses que muitoestima, significando com tal nome queos ama e que quer que todos lhe façamcortesia, como a sua mulher, e realmente[...] os cafres veneram muito osportugueses que têm títulos de mulheresdo rei.28

Em 1766 escreve António Pinto Miranda que oseuropeus de Moçambique

casam com algumas senhorasnaturais e outras que de Goa descendem[e] se esquecem muito da criação cristã[...], razão por que nem aos própriosfilhos a costumam dar, pelo que ficamestes com os péssimos procedimentos quedos patrícios relatei. […] Além daspróprias mulheres não deixam de

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procurar outras. [...] Desta sorte, ociosospassam os dias da vida.29

Em 1844 João Julião da Silva escreveu a suaMemória sobre Sofala, onde refere:

A civilização nesta vila em nada setem avançado do seu primitivo estadodesde aqueles tempos em que tinha adenominação de presídio [e] seushabitantes eram [...] criminosos eimorais que eram remetidos paracumprir suas sentenças por toda a vida[...]; estes tais indivíduos logoprocuravam familiarizar-se em tudo epor tudo com os costumes e modo deproceder dos cafres que os rodeavam, epara achar apoio nestes [...] se casavamcafrialmente com as pretas dos sertões egeravam mulatos [que], criados namesma liberdade e costumes cafriais,seguiam o mesmo modo de proceder deseus pais, e até o presente são raros os quesabem ler e escrever [...]; as superstições,os prejuízos e costumes bárbaros estão[tão] arraigados neles que é impossíveldesalojá-los; ignorando até os primeirosrudimentos da nossa Santa Religião, oidioma português e os costumeseuropeus.30

Do mesmo teor é o lamento de Ignacio CaetanoXavier em meados do século XVIII, ao dizerque os moradores sujeitos à Coroa “maisparecem feras do que homens, por seremopostos à vida civil e à sujeição à política,omitindo falar na religião”31.

A desqualificação dos indígenas comoprimitivos e selvagens é uma constante desses

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relatos, e com ela a desqualificação dos portuguesesque se misturavam com eles e adotavam seus modosde vida. Ao longo de um vasto período oestereótipo português que domina não é o dePróspero, mas o de um proto-Caliban, umcafrealizado. À medida que se forem conhecendo asnarrativas desses portugueses cafrealizados, serápossível obter uma idéia mais complexa dosprocessos de hibridação e certamente diferente daque nos é dada pelas narrativas dos que os visitavamem aparições meteóricas do poder imperial, daIgreja e da Coroa, de resto sempre ausentes. Para adesqualificação e estigmatização do Prósperocafrealizado contribuiu também a origem dosportugueses que povoaram os territórios. SegundoMarc Ferro, foi primeiro em Portugal que se adotoua prática de “livrar-se dos criminosos, dosdelinqüentes, mandando-os cumprir pena paralonge – exemplo que a Inglaterra imitou em escalagigantesca com os convicts que a partir de 1797foram povoar a Austrália”32. A partir de 1415, defato, cada navio que partia a explorar a costa deÁfrica levava seu contingente de degredados.Muitos dos portugueses de que falamdepreciativamente os relatos, como o do citadoCaetano Xavier, eram degredados:

Chega ainda mais avante ainsolência destes moradores porquedepois de atropelarem os respeitoshumanos também se têm atrevidomuitas vezes a perder o decoro das Casasde Deus com sacrílegos insultos, demorte, feridas, bulhas etc., [...] comosucedeu há poucos anos na igreja dosdominicanos em Senna, que hoje estáreduzida a cinzas.33

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O subtexto desses relatos é que a origem socialdos portugueses na África reclamava uma presençamais forte da autoridade colonial. Ora, comovimos, esta era tão fraca e tão inconsistente quemelhor poderia caracterizar-se como um poderaparente, caráter esse fundamental, a meu ver,para entendermos os caminhos das interi-dentidades na África durante esse período. O fatode o colonialismo português na África ter estadodurante vários séculos mais interessado emcontrolar o comércio marítimo do que em ocuparterritórios, combinado com a debilidade político-administrativa do Estado colonial, fez que osportugueses que comerciavam nessas paragensfossem colonizadores sem Estado colonial e, porisso, se vissem forçados a praticar uma forma deautogestão colonial. Essa autogestão lhe permitiauma identificação discricionária com o poder doImpério, mas não lhes facultava desse Impériosenão o poder que pudessem mobilizar com meiospróprios. Como esses meios eram exíguos, oportuguês teve de negociar tudo, não só seucomércio como também a própria sobrevivência.Foi um “colonizador” que se viu freqüentementena contingência de prestar vassalagem ao rei localcomo qualquer nativo.

A mesma ausência do Estado colonial fez queas tarefas de soberania, como a defesa dasfronteiras, por exemplo, fossem freqüentemente“subcontratadas” às populações locais. É o quenarra Joaquim Portugal no século XVIII acercadas ilhas de Cabo Delgado, no extremo norte deMoçambique, cujos únicos habitantes, “mourosnacionais, que vivem na maior obediência, sãotoda a força que defende as nossas fronteiras dos

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insultos dos cafres macuas, sendo a Moçambiqueimpossível [...] mandar socorros [por] falta detropas34. Também a legalidade colonial, nãodispondo de um Estado colonial forte que aimpusesse, ficou menos nas mãos de quem aemitia do que nas de quem lhe devia obediência.A autogestão colonial levou à constituição de umalegalidade paralela que combinava a aplicaçãoaltamente seletiva, apenas quando conveniente, dalegalidade oficial com outras legalidades locais ouadaptadas às condições locais. Terá sido esse oprimeiro exemplo moderno de pluralismojurídico.35 Do ponto de vista dos portugueses nascolônias, a condição jurídica de suas atividadesnão era nem legal nem ilegal: era alegal. Do pontode vista da Coroa, tratava-se de um sistema dedesobediência que não podia ser assumido comotal por ninguém, semelhante ao que vigorou naAmérica espanhola e que ficou conhecido por“obedeço mas não cumpro”. Era um sistemajurídico de torna-viagem: as leis, expedidas deLisboa, nem sempre chegavam, e quandochegavam a sua chegada era ignorada, ou quandoera reconhecida, bastante mais tarde, as condiçõestinham-se alterado de tal modo que se justificavao seu não-cumprimento; por fim as leis e ajustificação eram enviadas a Lisboa com o voto deobediência em apêndice final: “Ficamos aaguardar instruções”.

Naturalmente, essas características da eco-nomia política tiveram impacto no regime deinteridentidades, no modo como os portuguesesse cafrealizaram, se hibridizaram com as culturas epráticas com que tinham de conviver. Mas se esseimpacto é evidente, o seu sentido preciso é um dos

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fatores de indecidibilidade do sistema de repre-sentações identitárias no espaço-tempo do colo-nialismo português. A cafrealização e, em geral, a“adaptação aos trópicos” foi um produto dafacilidade ou da necessidade? Foi a facilidade quea tornou necessária ou, ao contrário, a necessidadea tornou fácil?

A leitura da facilidade tende a desestigmatizar acafrealização e a torná-la uma condição capa-citante. A análise de Jorge Dias é uma versãoparadigmática dessa leitura:

A composição heterogênea do povoportuguês e a estrutura tradicionalcomunitária e patriarcal permitiram-lhe uma perfeita assimilação do espíritocristão de fraternidade, [...] mesmoquando posto à prova em situações degrandes contrastes raciais e culturais.[...] a política da Nação e o compor-tamento dos indivíduos formavam umtodo completamente harmonioso. Osportugueses não chegavam com atitudesde conquistadores, antes procuravamestabelecer relações de amizade com aspopulações de vários continentes, e sóquando as situações o exigiam eramlevados a servir-se das armas e a lutar.[…] A nossa ação assimiladora não seexerceu de maneira violenta, antes pelocontrário, procuramos adaptar-nos aosambientes naturais e sociais, respeitandoos estilos de vida tradicionais. Por outrolado, íamos, pelo exemplo e convívio,despertando nas populações indígenas orespeito por certos princípios da nossacivilização ocidental.36

Nessa leitura, a cafrealização é o não-dito quesustenta o seu contrário, a assimilação.37 Ela

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constitui um duplo não-dito: é um não-dito daassimilação porque é uma assimilação invertida,de Próspero por Caliban, mas é também o não-dito da imposição cultural que caracteriza acolonização, seja ela assimilacionista ou não,porque é uma identidade negociada. Curio-samente, em mais um jogo de espelhos, essaleitura é consonante com algumas das leituras dosviajantes estrangeiros em Portugal a partir doséculo XVIII, nas quais a porosidade das práticasidentitárias dos portugueses não passoudespercebida38. Já a leitura da necessidade tende aver na cafrealização a debilidade e a incom-petência de um Próspero que não pôde ou nãosoube escapar a ela. É expressão de uma de-generescência que arrastou no seu atraso o atrasodos colonizados. É essa, em boa medida, a leiturade Charles Boxer, bem como a que subjaz àspolíticas coloniais do final do século XIX emdiante, embora nesse caso a leitura viseexclusivamente justificar a ruptura com aspolíticas coloniais anteriores, a que farei referênciana próxima seção.

A miscigenação é a outra manifestação daporosidade dos regimes identitários dosportugueses. Trata-se de um fenômeno diferenteda cafrealização e pode ocorrer sem esta, mas averdade é que nos momentos de intensificação dosdiscursos colonialistas e racistas – os momentos dePróspero, que mencionarei adiante – a estigma-tização da cafrealização arrastou consigo a damiscigenação (a miscigenação como cafrealizaçãodo corpo). Hoje tende a ser consensual que amiscigenação foi a “exceção portuguesa” nocolonialismo europeu39, embora também o seja

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que o colonialismo português não foi o único apraticá-la.

A porosidade de fronteiras entre Próspero eCaliban atingiu sua máxima expressão identitáriana figura do mulato e da mulata. A ambivalênciadas representações a seu respeito é bemelucidativa da natureza de um pacto colonial tãoaberto quanto desprovido de garantias. Ora vistoscomo seres geneticamente degradados, expressãoviva de uma traição à Caliban, ora como seressuperiores, combinando o que de melhor haviaem Próspero e em Caliban, os mulatos foram, aolongo dos séculos, uma mercadoria simbólica cujacotação variou com as vicissitudes dos pactos edas lutas coloniais. Em momentos em quePróspero quis se afirmar como tal ou em queCaliban tomou consciência de sua opressão e sedispôs a lutar contra ela, a cotação social dosmulatos baixou; e, ao inverso, subiu nosmomentos, imensamente mais duradouros, emque nem Próspero nem Caliban sentiramnecessidade ou tiveram a possibilidade de seafirmar como tais. Expressão da democraciaracial, os mulatos contribuíram, sem querer econtra os seus interesses, para legitimar adesigualdade social racista. Pode-se pois concluirque o debate sobre o valor sociológico político ecultural da miscigenação é indecidível nos seuspróprios termos, já que é um dos debates-erzatzdo ajuste de contas histórico entre Próspero eCaliban, entre o colonialismo europeu e oscolonizados por ele, que por muito tempo aindavai ficar em aberto.

Nesse contexto, vale registrar mais uma dasastúcias do regime identitário dos portugueses,

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uma armadilha adicional para os que pensem queos jogos de espelhos refletem algo que esteja paraalém deles. Trata-se da possibilidade de oportuguês miscigenador ser ele próprio misci-genado, originalmente mulato, e não poder porisso gerar senão mulatos e mulatas, mesmoquando uns e outras são brancos e brancas.Aqueles que quiseram fazer dos portugueses umPróspero de pleno direito atribuíram-lhesancestralidade lusitana, romana e germânica,enquanto os que os viram como um Prósperorelutante, inconseqüente e calibanizado atribuí-ram-lhes ancestralidade judaica, moura e negra.

A miscigenação originária, na forma designificantes racistas inscritos na cor da pele, nacompleição física e mesmo nos costumes,perseguiu os portugueses aonde quer que fossem.Nas colônias ou ex-colônias de outras potênciaseuropéias, em especial no mundo anglo-saxão,foram freqüentemente motivo de perplexidade,constituindo objeto de classificações extravagantesque não foram senão manifestações dainteridentidade. Nas Caraíbas, nos EstadosUnidos e no Havaí os portugueses foram sempreconsiderados um grupo étnico diferente dosbrancos e dos europeus, com um estatutointermédio entre estes e os negros ou nativos.40

Nas Caraíbas e no Havaí eram designados porportygees ou potogees, trabalhadores com contratosa prazo que vieram substituir os escravos após ofim da escravatura e que, por isso, não erambrancos, mas apenas mais um tipo de coolie men,assim como os asiáticos. Para o historiador afro-caribenho Eric Williams, não há nada de estranhoem descrever os grupos étnicos que apoiaram o

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Movimento Nacional Popular de Trinidad eTobago como “africanos, indianos, chineses,portugueses, europeus, sírios”, do mesmo modoque para V.S. Naipaul a luta pós-independênciana Guiana envolveu seis raças: “indianos,africanos, portugueses, brancos, mestiços eameríndios”41.

Miguel Vale de Almeida, na sua passagem porTrinidad, recolheu o seguinte testemunho dedescendentes de portugueses (os potogees): “aselites não os consideravam brancos, quando muitoTrinidad-white, e os não-brancos não os tratavamcomo superiores”42. Esse estatuto intermédio ajudaa explicar o papel desempenhado por AlbertGomes, de descendência portuguesa, como líderpolítico dos afro e indo-caribenhos de Trinidaddos anos 1960, numa altura em que os partidospolíticos ainda correspondiam a divisões étnicas43.Os antepassados de Albert Gomes eram os“portugueses africanizados” do porto negreiro deVera Cruz onde, segundo António Garcia deLeon, faziam a intermediação (inclusivamentelingüística) entre os escravos recém-chegados e osque os compravam44. Maria Ioannis Baganharelata que no Havaí os portugueses eram vistoscomo um grupo étnico superior aos orientais masinferior aos brancos caucasianos (haole), um gruposocial intermédio45. Efetivamente, entre 1910 e1914 o censo do Havaí distinguia entre portygees e“outros caucasianos”. Esse status intermédio,sendo estruturalmente ambíguo, era bem precisoquando acionado nas práticas locais, como indicaRobert Harney: no local de trabalho osportugueses eram capatazes mas nunca diretores,posição reservada aos escoceses; do mesmo modo,

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o salário dos carpinteiros portugueses era superiorao dos carpinteiros japoneses, mas um ferreiroportuguês ganhava metade do que auferia umferreiro escocês46. Para muito além das relações detrabalho, Harney refere um caso em que o estatutointermédio dos portugueses foi decisivo para seatingir um compromisso no importantejulgamento de um crime de violação. Como osacusados eram asiáticos e nativos havaianos, se osjurados fossem brancos (haoles) os réus certamenteseriam condenados, e se fossem asiáticos ounativos, os réus seriam absolvidos. A solução foiencontrada mediante a seguinte composição dojúri: “seis brancos, um português, dois japoneses,dois chineses e um havaiano”47.

Nos Estados Unidos, a Harvard Encyclopedia ofAmerican Ethnic Groups lamentava que ainda em1976 a cidade de Barnstable, em Cape Cod, conti-nuasse a classificar os grupos étnicos que aconstituíam em duas categorias: de um lado, finlan-deses, gregos, irlandeses e judeus; de outro, negros,portugueses e wampanoags – ou seja, um grupo deinequivocamente brancos e um grupo de não-brancos48. Na mesma lógica, em 1972 o EthnicHeritage Program considerava os portugueses umadas sete minorias étnicas/raciais do país: negro,índio americano, hispânico, oriental, português,havaiano nativo, nativo do Alasca – ou seja, osportugueses eram o único grupo de emigranteseuropeus a que era recusada a origem européia.49

Originalmente mestiço, calibanizado em casapelos estrangeiros que o visitavam, cafrealizadonas suas colônias, semicalibanizado nas colônias eex-colônias das potências européias por ondeandou, como pôde este Próspero ser colonizador e

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colonizar prosperamente? E será possível serconsistentemente pós-colonial em relação a umcolonizador tão desconcertante e exasperan-temente desclassificado e incompetente?

Jogos de espelhos III: os momentos dePróspero

Distingo dois momentos de Próspero nocolonialismo português: o do final do século XIXe primeiras décadas do XX e o do 25 de Abril atéa adesão à UE. Em qualquer desses momentos aascensão de Próspero no magma identitárioportuguês faz-se sob a pressão de fatores externos,sempre sob a forma da Europa capitalistadesenvolvida. O primeiro momento ocorre noperíodo pós-Conferência de Berlim (1884-85),em que a ocupação efetiva dos territórios sobdomínio colonial se torna uma condição damanutenção desse domínio. Feita a partilha daÁfrica, os países europeus industrializados dão àempresa colonial uma feição imperial que avincula estreitamente à exploração capitalista dascolônias, o que pressupõe um rígido controlepolítico e administrativo sobre elas. Para garantirsua presença na África, Portugal vê-se obrigado aagir como as restantes potências européias, comose o desenvolvimento interno do capitalismoportuguês fizesse exigências comparáveis, o quenão era o caso. Esse fato não escapa àhistoriografia inglesa, a serviço do imperialismobritânico e, portanto, hostil ao imperialismoportuguês. Thomas Pakenham, em seu Thescramble for Africa, 1876-1912, é exemplar a esserespeito: “E havia Portugal, meio senil e aindamais arruinado, agarrado às suas possessões na

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África, Angola e Moçambique, mais por soberbado que na esperança do lucro”50.

É verdadeiramente nesse momento que surgeo indígena primitivo como contraponto aoportuguês colonizador, representante oumetáfora do Estado colonial. O processo que fazdescer o indígena ao estatuto que justifica a suacolonização é o mesmo que faz subir o portuguêsao estatuto de colonizador europeu. A dicotomiaentre os portugueses e a Coroa desaparece. Oimpério portátil que os portugueses a partir deagora transportam não é um auto-império sujeitoàs fraquezas e forças de quem o transporta, mas aemanação de uma força transcendente: o Estadocolonial. O português branco e o indígena primi-tivo surgem simultaneamente divididos e unidospor dois poderosos instrumentos da racio-nalidade ocidental: o Estado e o racismo. Pormeio do Estado procura-se garantir a exploraçãosistemática da riqueza, convertendo-a em missãocivilizatória mediante a transladação para ascolônias dos modos de vida civilizados dametrópole – a criação mimética de “pequenaEuropa” na África de que fala Edward Said51. Pormeio do racismo obtém-se a justificaçãocientífica da hierarquia das raças, para o que sãomobilizadas tanto as ciências sociais como aantropologia física.

A ocupação territorial, de que é bom exemploa campanha levada a cabo por Portugal contraGungunhana, visa reduzir os africanos, acomeçar pelos seus reis, à condição desubordinados dóceis, ao mesmo tempo que assucessivas missões de exploração científica visamestabelecer e petrificar a inferioridade dos

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negros.52 Num contexto de prosperidade docolono português, não admira que a cafrealizaçãoe a miscigenação sejam estigmatizadas comparticular violência. Em 1873 diz António Ennesque “a cafrealização é uma espécie de reversão dohomem civilizado ao estado selvagem”53. Domesmo modo, Norton de Matos, que foigovernador-geral de Angola e era paladino doassimilacionismo, insurge-se contra a assimilaçãoinvertida ao dizer que em 1912 circulavam entreos indígenas “alguns europeus, em númerofelizmente reduzido, que por tristes circuns-tâncias se tinham integrado na vida dosindígenas não civilizados e adaptado porcompleto aos seus usos e costumes”54.

Enquanto o português passa de criminosodegredado propenso a cafrealizar-se à condição deagente civilizatório, os nativos passam de reis e deservos de reis à condição da mais baixaanimalidade, na qual são suscetíveis dedomesticação apenas por via do gesto imperial. Éa animalidade do negro que justifica a brutalidadedo trabalho forçado.55 Assim, lê-se numapublicação oficial do Ministério das Colônias de1912 que o indígena, “dado à embriaguez poratavismo de muitas gerações”, “é rebelde aotrabalho manual, ao qual acorrenta a mulher; écruel e sanguinário, porque assim o educou omeio em que vive; não tem enraizado na alma oamor da família e dos seus semelhantes”56. Mas ademonização do colonizado atinge o paroxismoquando referida à mulher. É que esta éconsiderada responsável pela miscigenação, agoraestigmatizada como o grande fator de degeneraçãoda raça, como o expressa António Ennes:

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A África encarregou a preta de avingar dos europeus, e ela, a hediondanegra – porque não há negra que nãoseja hedionda –, conquista para a sen-sualidade dos macacos, para os ciúmesferozes dos tigres, para os costumes torpese desumanos dos escravistas, para osdelírios do alcoolismo, para todos osembrutecimentos das raças inferiores, eaté para os dentes das quizumbas[hienas] que escavam os cemitérios, osaltivos conquistadores do ContinenteNegro.57

Entre o homem branco e o homem negroergue-se uma barreira intransponível que é aomesmo tempo o traço da união entre ambos.Nesse jogo de espelhos o negro é selvagem eporque é selvagem tende a pensar que “nós” é quesomos selvagens. Em 1911, um médico em missãono vale do rio Zambeze escreve que o caráter“desconfiado e egoísta” do indígena

não lhe permite compreender ointeresse que o europeu tem em cuidarda sua saúde [...], e então aventa a esserespeito as hipóteses mais inverossímeis.Nós para eles somos os selvagens,atribuem-nos os piores instintos e tratamde acautelar, tanto quanto lhes permitea sua estupidez preguiçosa, a vida,mulheres e haveres. [...] O indígena nãocompreende os motivos de ordemabstrata nem razões altruístas; assim,não podendo explicar por outra forma acolheita de amostras de sanguedestinadas a exame, supõe que é paracomer. O médico que procede a esseserviço é olhado pela maioria comoantropófago e é curioso que até os

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indivíduos que de perto me serviamsupunham ser sangue o vinho que euconsumia.58

O canibalismo é um tema recorrente emmomentos de espelhos polarizados entre Prósperoe Caliban. E também aqui o mesmo vínculo quesepara abissalmente permite a mais íntimareciprocidade. Por isso, a atribuição de caniba-lismo aos africanos surge freqüentemente arti-culada com a mesma atribuição aos colonizadorespor parte dos africanos. Assim se lê numanarrativa recolhida por Henry Junod no sul deMoçambique em inícios do século XX: “– OGungunhana morreu. Os portugueses comeram-no!” [...] Os portugueses comem carne humana”59.

Em face da polarização, a colonização efetiva éum direito-dever. Hegel afirmara já perempto-riamente que a África, “terra da infância, oculta noescuro da noite”, “não é uma parte do mundo his-tórico”60. Por isso, a colonização constitui para osEstados civilizados, nas palavras de Ruy EnnesUlrich em 1909, “um dever de intervenção”: não vá“metade do mundo” ficar “no seu estado natural” e“entregue a populações selvagens”61. Não espantaráque os administradores coloniais sintam que essedever não pode ser cumprido sem violência. EscreveAlberto d’Almeida Teixeira em seu “Relatório dasoperações realizadas com o fim de prolongar aocupação até ao rio Cuilo”, datado de 1907:

É convicção minha que, sendo aidéia de independência intuitiva nospovos selvagens, como é inato neles oódio à raça superior, os processos depersuasão e de catequese serão de

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princípio quase sempre estéreis enecessitarão do apoio e da manifestaçãoprévia da força para produziremfrutos.62

A partir da polarização dicotômica entre ohomem branco e o negro selvagem, essa missãocivilizadora impõe ao colonizado uma dupladinâmica identitária: a antropologia colonial e oassimilacionismo. A antropologia colonial visaconhecer os usos e costumes dos indígenas de modoa melhor controlá-los politicamente, administrá-lose extrair-lhes impostos e trabalhos forçados. Asdiferentes formas de “governo indireto” adotadas naÁfrica no final do século XIX assentam naantropologia colonial. O assimilacionismo é umaconstrução identitária assente num jogo dedistância e proximidade do colonizado em relaçãoao colonizador nos termos do qual o primeiro –mediante procedimentos que têm algumasemelhança com os da naturalização – abandona oestádio selvagem. A sua subordinação deixa de estarinscrita num código jurídico especial (como oEstatuto do Indigenato, por exemplo) e passa a serregulada pelas leis gerais do Estado colonial. Oassimilado é, assim, o protótipo da identidadebloqueada, uma identidade entre as raízes africanasa que deixa de ter acesso direto e as opções de vidaeuropéia a que só tem um acesso muito restrito. Oassimilado é, assim, uma identidade construídasobre uma dupla desidentificação.

O assimilacionismo, combinado com amiscigenação, é o que confere à sociedade africanaa sua distinta heterogeneidade. Em 1952,questiona Alexandre Lobato:

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E que se observa na população deMoçambique? Uns milhões de pretos emestado primitivo, uns milhares debrancos civilizados à européia, algunsmilhares de mulatos semi-europeus esemi-indígenas na maior parte, unsmilhares de indianos [...] e uns quantospretos assimilados, civilizados, euro-peizados. […] não há povo moçam-bicano no sentido em que se fala do povoportuguês […]. Não há emMoçambique um pensar coletivo.63

O máximo de consciência possível do pensamentocolonial é lamentar que os povos colonizadossejam aquilo em que as políticas coloniais ostransformaram.

O momento de Próspero dos portugueses novirar do século XIX para o XX foi um momentoexcessivo em relação às suas condições de possi-bilidade. Fortemente condicionado pelas pressõesinternacionais após a partilha da África, o colo-nizador português não podia contudo romper in-teiramente com a longa duração histórica dainteridentidade entre Próspero e Caliban. Reve-lou-se, assim, um Próspero inconseqüente e sub-desenvolvido. Com arrepiante frieza colonialistaescreve Norton de Matos, então governador-geraldemissionário, em relatório confidencial datadode março de 1915:

Não temos sabido ocupar e dominarAngola. As nossas campanhas têm-selimitado aqui à organização de colunasque infligem ao gentio revoltado [...]castigo mais ou menos severo e que,terminada a sua missão militar, ganhosalguns combates, feitos alguns pri-

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sioneiros, mortos ou fuzilados algunsindígenas, retiram e se dissolvem dei-xando aqui e além um pequeno fortemal artilhado e pior guarnecido, que ogentio em breve considera como ino-fensivo. A ocupação militar intensadurante um longo período (cinco anospelo menos) a seguir à ação violenta eindispensável do combate, da destruiçãode culturas e povoações, do aprisiona-mento e do fuzilamento dos chefes indí-genas, tendo por fim a escolha e a manu-tenção de chefes novos que saibamostransformar em criaturas absolutamentenossas, o desarmamento geral, a obri-gação de trabalhos remunerados emobras do Estado, a facilitação do re-crutamento de trabalhadores [...] paratrabalhos particulares e o recrutamentomilitar, o desenvolvimento agrícola ecomercial da região ocupada, a cobrançade impostos de cubata e a transformaçãonecessária do regime de administraçãomilitar ou de capitania-mor no regimede circunscrição civil – constituem umsistema racional de ocupação apenasiniciado nos últimos anos.64

Alguns anos antes Oliveira Martins manifestara amesma preocupação perante a falta de condiçõesdo colonizador português para colonizar comcompetência:

Estar de arma – sem gatilho – aoombro, sobre os muros de uma fortalezaarruinada, com uma alfândega e umpalácio onde vegetam maus empregadosmalpagos, a assistir de braços cruzadosao comércio que os estranhos fazem e nósnão podemos fazer; a esperar todos osdias os ataques dos negros, e a ouvir o

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escárnio e o desdém com que falam denós todos os que viajam na África – nãovale, sinceramente, a pena.65

Essa incapacidade de Próspero para se assumircomo tal é testemunhada não só pelosadministradores coloniais, mas também pelosestrangeiros e assimilados. Em 1809 o capitãoTomkinson relata o seguinte sobre a condição dosportugueses de Moçambique:

O solo parecia fértil, com abundantefruta tropical […], mas as plantaçõesmais parecem pertencer a pobres nativosnão civilizados do que a europeus.Embora a terra seja boa para o cultivodo açúcar, do café e do algodão, elesapenas tratam da fruta e cultivammilho e arroz que bastem para o seusustento. […] cada plantação tem umnúmero incrível de escravos tão malvigiados que a sua principal atividade éarranjar mantimentos para usopróprio.66

Outro testemunho interessante no mesmo sentidosurge em 1823, numa carta do capitão Owen.Segundo ele, é tal a “autoridade militar earbitrária” dos mercadores portugueses emMoçambique que “os estrangeiros que com elesdesejam comércio [estão] sujeitos a toda espéciede grosseira indignidade e impertinência”. Econclui Owen: Que a decadência persiga osportugueses para onde quer que vão éconseqüência natural de sua política estreita emesquinha”67. Em 1815, os naturalistas alemãesSpix e Martius, em visita ao Brasil, contrastam oseuropeus com os portugueses, estes mais

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vulneráveis à “degeneração moral” do colono nostrópicos, revelando, além de “falta de diligência eindisposição para o trabalho”, uma “falta deeducação e respeito no trato dos escravos da casa,não estando habituados a eles na Europa”68.Igualmente cáustica é a avaliação do colonizadorem momento de Próspero feita pelos assimilados.João Albasini escreve em 1913 sobre o branco dossubúrbios:

Num casebre escuro e mal cheiroso,um balcão sebento, [...] bancos escuros,moscas voejando e… lixo, muito lixo.Para lá do balcão, um ser cabeludo ebarbado mexe-se com alguma difi-culdade, dando aqui e além um olhardistraído à sordidez das coisas que lhegarantem a bem-aventurança, o bago, amassa. É o mulungu [branco]; é a almagentil da colonização.69

Como uma maldição, o Caliban portuguêspersegue o Próspero português, segue-lhe osrastros, carnavalizando a sua postura como umaimitação rasca do que pretende ser.

O segundo momento de Próspero ocorre nocontexto da Revolução de 25 de Abril, com o fimda guerra colonial, o reconhecimento dosmovimentos de libertação e a independência dascolônias, prolongando-se no estabelecimento derelações de cooperação com os novos países delíngua oficial portuguesa e na criação, em 1996,da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa(CPLP). É o momento do Próspero anticolonialou descolonizador, semelhante ao que haviamvivenciado outras potências coloniais quase trêsdécadas antes. O fim do colonialismo europeu foi

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um momento de Próspero na medida em que aspotências coloniais, perante os excessivos custospolíticos da manutenção das colônias, buscaramno reconhecimento de sua independência umanova e mais eficiente forma de reproduzir adominação sobre elas, que ficou conhecida por“neocolonialismo”. O Caliban colonizadotransmutou-se no país subdesenvolvido ou emdesenvolvimento. Com isso, o regime identitárioalterou-se significativamente, mas a economiapolítica subjacente quase nunca se alterou comigual intensidade. Pelo contrário, a vinculaçãoeconômico-política às antigas potências coloniaiscontinuou a ser decisiva para os países agoraindependentes. Paradoxalmente, deixou de haverCaliban para que Próspero sobrevivesse.

Mais uma vez, o momento de Prósperoportuguês distingue-se em aspectos significativosdo equivalente momento de Próspero europeu.Antes de mais, os processos históricos daindependência do Brasil e das colônias africanasforam concomitantes a profundas transformaçõesde sinal progressista na sociedade portuguesa: aRevolução Liberal, no primeiro caso, e o 25 deAbril, no segundo. Isso significa que há em ambosos processos um sentido partilhado de libertaçãotanto para o colonizador como para o colonizado,o que criou alguma cumplicidade entre a novaclasse política portuguesa e a classe política dosnovos países, sobretudo no caso dasindependências africanas. A conseqüência maisdecisiva das rupturas simultâneas foi que,combinadas com a posição semiperiférica dePortugal no sistema mundial, permitiramminimizar as seqüelas neocolonialistas no período

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pós-independência. No caso do Brasil, a inca-pacidade neocolonialista do Próspero portuguêsmanifesta-se no pânico ante as conseqüências dasua perda. Aliás, o Brasil desempenhou o papel de“colônia colonizadora”, como exprime MarcFerro70, ao enviar para Angola os mais fortescontingentes de imigrantes brancos. Angola, deresto, estava desde há muito na dependênciaeconômica dos brasileiros. Como refere aindaFerro, o ministro português Martinho de Melo eCastro queixava-se já em 1781 de que o comércioe a navegação estavam a escapar inteiramente aPortugal, “pois o que os brasileiros não dominamestá nas mãos dos estrangeiros”.71

Se a debilidade e incompetência do Prósperocolonial português inviabilizou o neocolonia-lismo, facilitou, sobretudo no caso do Brasil, areprodução de relações de tipo colonial após o fimdo colonialismo, o colonialismo interno. Ao fazê-lo, suscitou entre as elites, que continuaram aexercer a dominação em nome próprio, umadivisão sobre as suas responsabilidades históricas eo modo como partilhá-las com o colonizadorentrementes saído de cena. Foi, no fundo, umadivisão sobre se a incompetência das elites paradesenvolver o país era ou não um produto daincompetência de Próspero de que se tinhamlibertado. Seria a incompetência de Próspero umapesada herança, um constrangimento incontor-nável das possibilidades de desenvolvimento pós-colonial, ou constituiria, pelo contrário, umaoportunidade insuspeitada para formas dedesenvolvimento alternativas?

Assim deve ser lida a polêmica entre iberistase americanistas no Brasil. Para os iberistas, o

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atraso do Brasil poderia ser convertido numavantagem, na possibilidade de um desen-volvimento não individualista e não utilitarista,assente numa ética comunitária de que o mundorural podia dar testemunho. Segundo OliveiraVianna, na análise de Luiz Werneck Vianna, asingularidade brasileira era menos um produtoda historicidade da metrópole do que daespecificidade das relações sociais prevalecentesno mundo agrário, onde uma classe aristocráticarural funcionava como um poder agregadorparticular72. Já Tavares Bastos via na herança dacultura política ibérica e o seu atávicoantiindividualismo o fundamento do obscu-rantismo, autoritarismo e burocratismo doEstado brasileiro, sendo preciso romper com elae criar um modelo social novo, tendo comoreferência a sociedade norte-americana, aindústria e a educação. Aliás, a incompetência doPróspero ibérico é explicitada por Tavares Bastosquando afirma que, por não deter a forçacaracterística dos países do Norte, Portugalpermitiu que “a geral depravação e bárbaraaspereza dos costumes brasileiros [acabassem]por vingar face à imposição cultural portu-guesa”73. Por outras palavras, foram as defi-ciências de Próspero que tornaram possíveis osexcessos de Caliban.

No caso da África, está ainda por fazer ojulgamento histórico do Próspero colonialportuguês. Por outro lado, não é ainda possívelajuizar da força e persistência das seqüelasneocolonialistas, sobretudo depois da adesão dePortugal à União Européia. As vicissitudes porque tem passado a CPLP são ilustrativas das

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debilidades do Próspero colonial português. Defato, este não tem conseguido impor suahegemonia, ao contrário dos Prósperos inglês efrancês em suas respectivas commonwealths: não sótem disputado a hegemonia com sua ex-colônia, oBrasil, como não tem podido impedir que algunspaíses integrem outras comunidades “rivais”,como é o caso de Moçambique em relação àinglesa e da Guiné-Bissau em relação à francesa.Como a hegemonia nesse tipo de comunidadestem significado a legitimação do neocolonialismo,a debilidade do Próspero português abre enormespotencialidades para relacionamentos demo-cráticos e verdadeiramente pós-coloniais. É umaquestão em aberto, no entanto, saber se o ex-colonizador é capaz de transformar essa fraquezaem força e se os ex-colonizados estão sequerinteressados nisso.

Interidentidades: para um pós-colonialismo situado

Se alguma vez Próspero se disfarçou deCaliban, foi com a máscara dos portugueses.Semicolonizadores e semicolonizados, incapazesde produzir regras à altura da sua complexasituação, os portugueses não puderam regulareficazmente suas colônias e, por isso, também nãopuderam preparar de forma ordeira a suaemancipação. A guerra colonial na África é amelhor demonstração dessa dupla incapacidade.Daí também que nunca tenha havido colônias eex-colônias tão autônomas em relação aocolonizador e ao ex-colonizador: nenhum outropoder colonial transferiu a capital do império paraa sua colônia, nem em nenhum outro país

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colonizador suscitou tanto medo a ascendência dacolônia. A colonização portuguesa surge, assim,como um processo caótico que, à força de sereiterar multissecularmente, se transformou numaespécie de ordem. Foi um colonialismo que, porincompetência ou incapacidade, possibilitou aemergência de ilhas de relações não imperiais nointerior do império.

A ausência de padrão e essa oscilação entre umPróspero com pés de Caliban e um Caliban comsaudades de Próspero foram se sedimentandonuma das características, talvez a mais intrin-secamente semiperiférica, da identidade dosportugueses: aquilo que os jornalistas desportivos,ao comentar o comportamento irregular daseleção nacional de futebol, chamam de “oito-oitentismo”. O oito-oitentismo, sendo umpadrão, é também a ausência de um padrão.Sugere uma forma identitária que vive perma-nentemente numa turbulência de escalas eperspectivas em que se trivializam os extremos,sejam eles exaltantes ou indignificantes, em quenão se radicaliza nada senão a opção radical denunca optar radicalmente. Isso tem um efeito depresentificação devoradora, em que os palim-psestos do que somos assumem uma contem-poraneidade desconcertante: a de tudo sercontemporâneo de tudo.

As atitudes e comportamentos que essa formaidentitária comporta predispõem a formas derepresentação e atuação que dispensam prova, ouseja, formas que se distinguem pela emergência,pelo seu caráter aparente, sem outra justificaçãosenão a sua evidência post factum: o que se diz delaspara as justificar, quando ocorrem, pode-se dizer,

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sem contradição, para justificar sua não-ocorrência.Entre essas formas de representação displicentesassumem particular relevo na construção identitáriados portugueses a urgência, a sugestão, a surpresa, aimprovisação e a violência não organizada.Qualquer delas aponta para formas de validaçãoque só são convincentes enquanto biografia eexpressividade. Essa forma epistemológica permitecriticar a racionalidade moderna e, ao mesmotempo, criticar os racionalistas modernos por não oserem suficientemente. A dispensabilidade daprova, a emergência e a contingência tornaram-separticularmente correntes a partir do momento,logo no século XVII, em que a história da expansãoeuropéia deixou de ser escrita pelos portugueses.Levados a viver os binarismos dos colonialismoshegemônicos – sujeito/objeto, civilizado/selvagem,cultura/natureza, humano/animal –, viveram-no àdistância, sob escalas impuras e “perspectivascuriosas”, no sentido da pintura pós-renascentista74.Dessa forma, os binarismos foram sendocarnavalizados como zonas abstratas onde tudo éproporcional à sua potencial desproporção.

Na ausência de critérios puros e peremptóriose de razões exterminadoras, o colonizadorportuguês não pôde apresentar um opulentomenu de identidades imperiais. Nem identidadeemancipadora nem identidade emancipada,oscilou entre Próspero e Caliban como que embusca da terceira margem do rio de que falaGuimarães Rosa. Nessas condições não foipossível consolidar essencialismos, os quais,sempre que nomeados, foram-no apenas paraserem contestados, revelando assim suaintrínseca contingência. As colônias ora foram

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colônias, ora províncias ultramarinas; amiscigenação foi vista ora como a degradação daraça, ora como a sua mais exaltante característica;e os povos nativos ora foram selvagens, oracidadãos nacionais.

A instabilidade, a imperfeição e a incom-pletude do Próspero português tornaram proble-mática a sua auto-identificação, condição quearrastou a do próprio Caliban: um Próspero nãoostentatório convocava um Caliban pedestre. Naausência de critérios puros não há grandeza, masquando esses critérios, em vez de perdidos,nunca existiram tampouco há pequenez. Quandoos inimigos não se deixam medir, não sãograndes nem pequenos, e por isso nãoconseguem estabilizar as lutas entre eles. UmPróspero tão difuso até se confundir por vezescom Caliban não podia senão confundir esteúltimo, baralhar-lhe a identidade e bloquear-lhea vontade emancipatória. A difícil calibração dadimensão de Próspero e de sua verdadeiraidentidade fez Caliban correr o risco de sercolonialista no seu afã anticolonial, ao mesmotempo que lhe permitiu, como a nenhum outro,ser pré-pós-colonial na constância formal docolonialismo. O colonialismo informal de umPróspero incompetente permitiu que durantemuito tempo setores significativos dos povoscolonizados não tivessem de viver cotidia-namente a experiência de Caliban e que algunsdeles, e não apenas na Índia, pudessem, elespróprios, pensar-se como o verdadeiro Próspero eagir como tal nos seus domínios. Muitas vezespuderam negociar com o Próspero vindo daEuropa quase em pé de igualdade a

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administração dos territórios e as regras a que elaestaria sujeita.

À luz do que fica dito, é consabidamentedifícil pensar o pós-colonialismo no espaço delíngua oficial portuguesa. Em minha opinião, opós-colonialismo nesse espaço deve centrar-separadoxalmente nas fraquezas do Prósperoportuguês. Duas orientações me parecem deci-sivas. A primeira diz respeito ao colonialismointerno e é particularmente pertinente no casobrasileiro. A fraqueza interna do colonialismoportuguês tornou possível a independênciaconservadora do Brasil. Às elites oligárquicas foipermitido transferir para as suas contas asestruturas de dominação colonial ao mesmotempo que cantavam loas ao ato inaugural daconstrução do Estado nacional. O colonialismointerno é a grande continuidade desse espaço, e écontra ele que deve dirigir-se, numa primeiraorientação, o pós-colonialismo de línguaportuguesa. Em que medida o colonialismointerno existe ou está a emergir nas ex-colôniasde África, sobretudo Angola e Moçambique, éuma questão em aberto.

A segunda orientação diz respeito à globalizaçãocontra-hegemônica. Tem a ver com a fraquezaexterna de Próspero, com o fato de o colonialismoportuguês ter ficado refém, desde cedo, docolonialismo hegemônico, sobretudo inglês, e dasformas de imperialismo em que ele se traduziu atéà sua última encarnação, nos nossos dias, sob aforma de globalização neoliberal, em quepontificam os Estados Unidos da América. Aliás,são essas formas imperiais que permitem hoje aconsolidação do colonialismo interno nos países

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saídos do colonialismo português. A segundaorientação é, pois, a de que o pós-colonialismodeve ser dirigido contra a globalização hegemônicae as novas constelações de dominação local/global,interna/externa que ela possibilita. Em nome dopós-colonialismo, faz hoje tão pouco sentido agitara bandeira antiespanhola na Colômbia como agitara bandeira antiportuguesa no Brasil, emMoçambique ou Angola.

À luz dessas duas orientações, o pós-colonialismo no espaço português terá menos de“pós” do que de anticolonialismo. Trata-se de umpós-colonialismo desterritorializado, porque diri-gido contra uma engenharia de injustiça social, dedominação e de opressão que dispensa os bina-rismos modernos em que assentou até agora o pós-colonialismo – local versus global, interno versusexterno, nacional versus transnacional. De fato, onovo pós-colonialismo só faz sentido como lutapor uma globalização contra-hegemônica, comobusca de novas alianças locais/globais entre grupossociais oprimidos pelos diferentes colonialismos.

Deve-se ter presente, contudo, que o caráterdo Próspero português, relutante e incompetente,incompleto e calibanesco, ao mesmo tempo quefundamenta essa posição pós-colonial avançada,torna difícil a sua prossecução na medida em queproduz um efeito de ocultação ou, o que é omesmo, de naturalização das relações de poder.Sendo um Próspero incompleto, o mundo que elecriou foi o mesmo mundo que o criou a ele. Opoder de criação aparece assim repartido entreum Próspero calibanizado e um Calibanprosperizado. Aqui têm residido a arrogância e alegitimidade das elites pós-independentistas.

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A análise de algumas formulações brasileirasdas comemorações dos 500 anos da descoberta doBrasil revela a ênfase posta na pluralidade depovos que ali confluíram, para além dos índios,que já estavam, e dos negros, que vieram à força:italianos, alemães, espanhóis, chineses, japoneses,portugueses etc. Posto ao par dos restantesemigrantes, o Próspero relutante dissolve-se namultidão. No entanto, essa equiparação ocultaque, pelo menos até a Independência, os portu-gueses não foram um grupo de emigrantes entreoutros e que o poder colonial que protago-nizaram, apesar de particular, não foi, por isso,menos colonial. Ao evacuar Próspero, essarepresentação da “nação arco-íris” evacua asrelações de poder colonial e transforma a Desco-berta num ato plural, não imperial, num exer-cício de fraternidade e de democracia inter-cultural e interétnica. Dessa ocultação podemalimentar-se a indolência da vontade anticoloniale a neutralização das energias emancipatórias,sendo pois de suspeitar que as elites não sãoingênuas quando promovem tais representações.

Ora demasiado familiar para se fazer notar, orademasiado telescópico para ser visto a olho nu,esse Próspero furtivo convida à complacência anteum poder das elites que se insinua miniaturizadopela ausência do poder de Próspero. Asdificuldades em desenvolver estratégias pós-coloniais no espaço do colonialismo portuguêssão, assim, o outro lado das abrangentes possibi-lidades de globalização contra-hegemônica criadaspor esse tipo de colonialismo.

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Notas[1] Uma versão ampliada deste ensaio encontra-se emRamalho, Maria Irene e Ribeiro, António S. (orgs.). Entreser e estar: raízes, percursos e discursos da identidade. Porto:Afrontamento, 2001 e também publicado em NovosEstudos CEBRAP, nº 66, 2003, pp. 23-52.[2] Cf. Sousa Santos, Boaventura de. Pela mão de Alice: osocial e o político na pós-modernidade. São Paulo: CortezEditora, 1995, pp. 53-74, 135-157.[3] Cf. Sousa Santos, Boaventura de. “Os processos daglobalização”. In: idem (org.). Globalização: fatalidade ouutopia? São Paulo: Cortez Editora, 2001, pp. 25-102. [4] Cf. Sousa Santos, Pela mão de Alice, loc. cit., pp. 150-151.[5] Sobre a inserção de Portugal no ciclo colonial africano,cf. Fortuna, Carlos. O fio da meada: o algodão deMoçambique, Portugal e a economia-mundo (1860-1960).Porto: Afrontamento, 1993, pp. 31-41.[6] Bhabha, Homi K. The location of culture. Londres:Routledge, 1994, p. 50.[7] Ibidem.[8] Bhabha, Homi K. “DissemiNation: time, narrative,and the margins of the modern nation”. In: idem (org.).Nation and narration. Londres/Nova York: Routledge,1990, p. 293.[9] Sousa Santos, Boaventura de. Toward a new commonsense: law, science and politics in the paradigmatic transition.Nova York: Routledge, 1995, pp. 424-428; A crítica darazão indolente: contra o desperdício da experiência. SãoPaulo: Cortez Editora, 2000, pp. 284-290. [10] Por Europa do Norte entende-se aqui os países daEuropa considerada “civilizada” – Inglaterra, França eAlemanha – que irão mais tarde ter um papel decisivo nacolonização. [11] Bronseval, Claude. Peregrinatio hispanica 1531-1533.Paris: Presses Universitaires de France/Fondation CalousteGulbenkian, 1970, passim. [12] Chaves, Castelo Branco. O Portugal de D. João V vistopor três forasteiros. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1983, p.20.[13] Apud ibidem, p. 24.

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[14] Apud Pires, Maria Laura B. Portugal visto pelosingleses. Lisboa: Centro de Estudos Comparados deLínguas e Literaturas Modernas da Universidade Nova deLisboa, 1981, p. 112.[15] Apud ibidem, p. 85.[16] Apud Byrne, Maria Teresa R. “As tropas aliadas anglo-portuguesas vistas por um alemão”. Revista de EstudosAnglo-Portugueses, no 7, 1998, p. 108.[17] Byron, Lord. Peregrinação de Childe Harold. Lisboa:Livraria Ferreira, 1881, pp. 30-31, 37.[18] Apud Macaulay, Rose. They went to Portugal. Oxford:Alden Press, 1946, pp. 224-225.[19] Apud Castanheira, Zulmira. “Robert Southey, oprimeiro lusófilo inglês”. Revista de Estudos Anglo-Portugueses, nº 5, 1996, p. 83, 92.[20] Byron, op. cit., p. 31.[21] Apud Castanheira, op. cit., p. 75.[22] Apud Chaves, op. cit., p. 20.[23] Apud Pires, op. cit., p. 40.[24] Macaulay, Rose. They went to Portugal. Oxford: AldenPress, 1946; They went to Portugal too. Manchester:Carcanet, 1990. [25] Pereira Bastos, José Gabriel da F. “Portugal minhaprincesa”. Contribuição para uma antropologia pós-racionalista dos processos identitários e para o estudo dosistema de representações sociais identitárias dos portugueses.Lisboa: tese de doutoramento em Antropologia Social eCultural, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas daUniversidade Nova de Lisboa, 1995, vol. I, pp. 144-147(cf. Descamps, Paul. Le Portugal: la vie sociale actuelle.Paris: Firmin-Didot et Cie., 1935).[26] Boxer, Charles R. Race relations in the Portuguesecolonial empire, 1415-1825. Oxford: Clarendon Press,1963; Freyre, Gilberto. O mundo que o português criou.Lisboa: Livros do Brasil, s/d. [27] O termo deriva do árabe kafir, utilizado para fazermenção ao não-muçulmano, ao não-crente. “Em Melinde[antigo porto da costa oriental da África] são os mourosmais amigos dos portugueses e não diferem nada nascondições e feição do rosto dos nossos, e muitos falammuito bem português, por ser aqui o principal trato nosso

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com eles [...]. Os mouros daqui confinam [...] com umaterra de cafres estranha dos outros de toda a costa. [As ilhasdo norte de Moçambique] são povoadas de mouros e cafresmisturados” (Padre Monclaro. “Relaçaõ da viagem qfizeraõ os padres da Companhia de Jesus com FranciscoBarreto na conquista de Monomotapa no anno de 1569”.In: Theal, G. M. (org.). Records of South-Eastern Africa.Cidade do Cabo: Struik, 1899, vol. 3, pp. 167, 170). [28] Santos, João dos. Etiópia Oriental e vária história decousas notáveis do Oriente. Lisboa: Comissão Nacional paraas Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1999,p. 139. [29] Miranda, António P. “Memória sobre a costa de Africae da Monarquia Africana”. In: Dias, L. F. C. (org.). Fontespara a história, geografia e comércio de Moçambique (séculoXVIII). Lisboa: Agência Geral do Ultramar, 1954, p. 64.[30] Apud Feliciano, J. F. e Nicolau, V. H. (orgs.).Memórias de Sofala por João Julião da Silva, Herculano daSilva e Guilherme Ezequiel da Silva. Lisboa: ComissãoNacional para os Descobrimentos Portugueses, 1998, p. 36.[31] Xavier, Ignacio C. “Relação do estado presente deMoçambique, Sena, Sofala, Inhambane e de todo o continenteda Africa Oriental”. In: Dias (org.), op. cit., p. 174.[32] Ferro, Marc. História das colonizações. Lisboa:Estampa, 1996, p. 179.[33] Xavier, op. cit., pp. 175-176. No mesmo sentido,relata Marc Ferro (ibidem, p. 179) que o governador deAngola tinha tal desconfiança em relação aos degradadosque “não [lhes] queria confiar armas em caso de guerracom os indígenas – a ponto de preferir servir-se de tropasafricanas tanto para dar combate às tribos insubmissascomo para, eventualmente, manter a boa distância osdelinqüentes. De qualquer modo, estes desertavam assimque se apanhavam com armas”.[34] Costa Portugal, Joaquim José da. “Notícias das ilhasde Cabo Delgado”. In: Dias (org.), op. cit., p. 276. [35] Sobre o pluralismo jurídico, cf. Sousa Santos, Towarda new common sense, loc. cit., pp. 112-122.[36] Dias, Jorge. Os elementos fundamentais da culturaportuguesa. Lisboa: Junta de Investigação do Ultramar,1961, pp. 155-156.

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[37] Em Moçambique a política de assimilação éintroduzida como parte do sistema político colonial noinício do século XX, e a partir de então a divisão entrenativos e não-nativos é reforçada. Como cidadãos deestatuto inferior, os assimilados (negros, asiáticos, mistos)tinham cartões de identidade que os diferenciavam damassa dos trabalhadores não-assimilados, detentores deuma caderneta indígena. Os nativos, a maioria dapopulação, não possuíam cidadania, não tinham direitoalgum, sendo mal pagos, explorados, sujeitos a um ensinorudimentar, ao trabalho forçado, a regimes penais dedeportação etc.[38] O capitão Costigan, por exemplo, irlandês que esteveem Portugal em 1778-79 e para quem, como nota RoseMacaulay (They went to Portugal too, loc. cit., p. 193), aperversidade dos portugueses era uma obsessão, declarava-se espantado com a agradável familiaridade dosportugueses para com os seus criados, algo inimaginável naInglaterra.[39] Ferro, op. cit., p. 177.[40] Esse estatuto social e étnico é identificável noutroscontinentes. Na África do Sul, por exemplo, os africâneresdesignavam pejorativamente os portugueses como “wit-kaf-firs” (negros brancos) (cf. Harney, Robert T. “‘Portygeesand other Caucasians’: Portugueses migrants and the racial-ism of the English-speaking world”. In: Higgs, D. (org.).Portuguese migration in global perspective. Toronto: TheMulticultural History Society of Ontario, 1990, p. 116).[41] Cf. ibidem, p. 115, 114.[42] Almeida, Miguel Vale de. Um mar da cor da terra:raça, cultura e política da identidade. Oeiras: Celta, 2000,p. 7.[43] Harney, op. cit., p. 115.[44] Garcia de Leon, António. Contrapunto entre lo barrocoy lo popular en el Veracruz colonial. Comunicação aocolóquio internacional “Modernidad europea, mestizajecultural y ethos barroco”, Universidad Nacional Autonomade México, maio de 1993. [45] Baganha, Maria Ioannis. Portuguese emigration to theUnited States, 1820-1930. Nova York/Londres: Garland,1990, p. 288.

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[46] Harney, op. cit., p. 115.[47] Ibidem, p. 115.[48] Ibidem, p. 117.[49] Cf. Baganha, Maria Ioannis. Resenha de Higgs, David(org.). Portuguese migration in global perspective (Toronto:The Multicultural History Society of Ontario, 1990).Análise Social, XXVI(111), 1991, p. 448. Embora nãoponha em causa esses dados e a existência de racismocontra os portugueses nos Estados Unidos, Baganhaconsidera que algum desse racismo se dirigia a outrosgrupos de europeus, com os de Leste. Não deixa porém deassinalar que o Johnson Act de 1924 e o National OriginsSystem de 1927 restringiam a entrada nos Estados Unidosdos grupos “não assimiláveis” e que desses grupos faziamparte os portugueses.[50] Apud Furtado, Filipe. “Portugal em histórias deInglaterra”. Revista de Estudos Anglo-Portugueses, nº 6,1997, p. 77.[51] Said, Edward. The question of Palestine. Nova York:Vintage, 1980, p. 78.[52] Num trabalho em co-autoria com F. Barros,Rodrigues Junior chega ao ponto de afirmarcategoricamente a insensibilidade dos pretos à dor (cf.“Notas etnográficas de Moçambique”. In: XIII CongressoLuso-Espanhol para o Progresso das Ciências. Lisboa, 1950,vol. 5, p. 619).[53] Ennes, António. Moçambique: relatório apresentado aogoverno. Lisboa: Imprensa Nacional, 1946 [1873], p. 192.[54] Apud Barradas, Ana. Ministros da noite – livro negroda expansão portuguesa. Lisboa: Antígona, 1992, p. 54.[55] Segundo Rodrigues Júnior (1955), “não há dúvidaque o branco não pode exercer, em África, determinadasfunções. A sua resistência física não suporta, por exemplo,a violência do trabalho da enxada”. Citando MarceloCaetano, o autor afirma que “o preto tem condições deresistência natural e uma adaptação ao meio que lhepermitem trabalhar nos climas tropicais em certasatividades em muito melhores condições que o europeu[...]. É necessário forçar [o negro] à contribuição que devedar para o desenvolvimento da riqueza pública; é precisoobrigá-lo a produzir […]. Trata-se de proteger o negro, de

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integrá-lo no sistema econômico de Moçambique”.Rodrigues Júnior (1955), O negro de Moçambique (estudo).Lourenço Marques: África Editora, pp. 22-23.[56] Apud Barradas, op. cit., p. 124.[57] Ennes, op. cit., 192.[58] Sant’Anna, José Firmino. Missão da Doença do Sonno:trabalhos de outubro a novembro de 1991 (N’hantsua, Tete).Maputo: Arquivo Histórico de Moçambique, Secção dosServiços de Saúde, 1911, p. 22.[59] Junod, Henry. Usos e costumes dos Bantu. Maputo:Arquivo Histórico de Moçambique, 1996 [1917], vol. 2,pp. 299-300.[60] Hegel, G. W. F. Vorlesungen über die Philosophie derGeschichte. Org. por Eva Moldenhauer e Karl M. Michel.Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1970, pp. 120, 129.[61] Ulrich, Ruy E. Política colonial, lições feitas ao curso do4º ano jurídico no ano de 1908/09. Coimbra: Imprensa daUniversidade, 1909, p. 698.[62] Apud Barradas, op. cit., p. 128.[63] Lobato, Alexandre. Sobre cultura moçambicana.Lisboa: Gradiva, 1952, pp. 116-117.[64] Apud Barradas, op. cit., p. 132.[65] Oliveira Martins, J. P. O Brasil e as colóniasportuguesas. Lisboa: Parceria António Mário Pereira, 1904[1880], p. 286.[66] “Report of captain J. Tomkinson to vice-admiralAlbermarble Bertie”. In: Theal (org.), op. cit., vol. 9, pp.4-5.[67] “Letter from captain W. F. W. Owen to J. W. Crocker,9 October, 1823”. In: Theal (org.), op. cit., vol. 9, p. 34.[68] Lisboa, Karen M. A Nova Atlântida ou o gabinetenaturalista dos doutores Spix e Martius: natureza ecivilização na viagem pelo Brasil (1817-20). São Paulo:dissertação de mestrado, FFLCH-USP, 1995, pp. 182-183.[69] Albasini, João. “Amor e vinho (idílio pagão)”. OAfricano (Lourenço Marques), 11/06/1913. [70] Ferro, op. cit., p. 179.[71] Ibidem, p. 180. Por sua vez, Moçambique esteve, atéo século XVIII, dependente do Vice-rei da Índia, de modoque ali o sistema econômico era largamente dominado porindianos.

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[72] Vianna, Luiz W. A revolução passiva: iberismo eamericanismo no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1997, p.162.[73] Apud ibidem, p. 157.[74] Cf. Sousa Santos, A crítica da razão indolente, loc. cit.,p. 251.

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Identidade, território e práticasculturais: A experiência doCentro de Estudos e AçõesSolidárias da Maré – Ceasm

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Os deuses condenaram Sísifo a empurrarincessantemente uma rocha até o alto deuma montanha, de onde tornava a cairpor seu próprio peso. Pensaram, comcerta razão, que não há castigo mais ter-rível que o trabalho inútil e sem espe-rança. Se dermos crédito a Homero,Sísifo era o mais sábio e prudente dosmortais. Mas, segundo uma outratradição, ele tendia para o ofício de ban-dido. Não vejo contradição nisso.1

Albert Camus

Sobre os vínculos entre as identidades eos territórios populares urbanos

Em texto anterior2, afirmava que a populaçãodas grandes metrópoles, em geral, vem desenvol-vendo uma progressiva presentificação e a particu-larização da existência. A particularização se carac-teriza pela valorização da vivência em um ter-ritório homogêneo, de "iguais", sem parâmetrosmais abrangentes de inserção na pólis. O lugar,físico e social, é o ponto de partida e de chegadapara a inserção na cidade.

A presentificação, por sua vez, expressa umaprática social que se manifesta como um "eternoagora". Ela caracteriza o que Espinoza vai definircomo prazer – a busca incessante do que ofereceretorno imediato, termo antônimo, para o filóso-fo, da alegria – a busca do que oferece retornomediato. O ser humano presentificado e particu-larizado é representado, por excelência, peloConsumidor. Sem noção de passado ou de futuro,voltado para a aquisição de bens materiais e dis-tintivos, ele não investe em projetos de longoprazo, tais como a educação, em seu sentidomaior, não desenvolve uma maior preocupação

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ambiental e tem como referência ética fundamen-tal a sua satisfação pessoal e, no limite, a de seugrupo familiar.

Com isso, fragilizam-se a democracia e o exer-cício da cidadania, tornando-se cada vez mais raroo contato com a diversidade, com o outro. Há umaprogressiva perda, então, do sentido da vida cole-tiva, fato que gera o aumento da intolerância, dasensação de insegurança, além da dificuldade emincorporar uma ética de responsabilidade emrelação ao espaço público. Vive grande parte dasociedade metropolitana um cotidiano que serepete indefinidamente, sem futuro e alma, amesma pena imposta pelos deuses a Sísifo, o reicondenado pelo deuses a viver o cotidiano deforma reprodutora e sem futuro.

As formas apresentadas de inserção na cidadeconformam um determinado tipo da identidadesocial, analisada por Néstor Canclini. Seu ponto departida é a crítica ao que denomina de "concepçõesontológico-fundamentalistas das identidades"(1995: 224). Nessa visão, haveria uma crença a-histórica e transcendental nas identidades, fossemnacionais ou populares. Nela, a identidade seriamarcada por uma essencialidade imanente, a serdefendida dos ataques dos seus possíveis adversários– sejam outros grupos sociais, as multinacionais, aglobalização etc. Não há espaço para a negociação,pois as identidades estariam prontas, delimitadas.Nesse processo, as diferenças são acentuadas e trans-formadas em elementos divisores, ignorando-se aspossíveis circularidades das relações sociais. Não sereconhece, assim, a possibilidade de constituições deuma identidade híbrida, "foco de um repertóriofragmentado de minipapéis" (1995: 39).3

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As reflexões sobre temas como identidadessociais, presentificação e particularização são ele-mentos valiosos para se debater o estatuto dafavela e da periferia e de seus moradores, assimcomo a inserção destes na pólis, em particular noquadro de tensão e medo que domina o ima-ginário do Rio de Janeiro e de outras grandesmetrópoles brasileiras.

O eixo da representação da favela é a noção deausência. Ela tradicionalmente é definida pelo quenão teria: um lugar sem infra-estrutura urbana –água, luz, esgoto, coleta de lixo; sem arruamento;globalmente miserável; sem ordem; sem lei; semregras; sem moral, enfim, o caos. Impressionatambém a visão homogeneizadora. Localizadas emterrenos elevados ou planos, reunindo centenas oualguns milhares de moradores, possuindo dife-rentes equipamentos e mobiliários urbanos, sendoconstituída por casas e/ou apartamentos, comdiferentes níveis de violência e presença do poderpúblico, com variadas características ambientais,as favelas constituem-se como territórios compaisagens razoavelmente diversificadas. Essa plu-ralidade é absolutamente ignorada, e não só pelosenso comum, mas também em definições preten-samente técnicas, tais como a do IBGE, por exem-plo, que identifica as favelas como subconjunto deum aglomerado subnormal.

A favela é contraposta a um determinado idealde urbano, vivenciado por uma pequena parcelados habitantes da cidade. Não é casual, então, queela seja considerada uma disfunção, um problemaque afeta a saúde da cidade. Nessa lógica, o reco-nhecimento da identidade do cidadão é relativiza-do, de acordo com a cor da pele, o nível de esco-

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laridade, a faixa salarial e/ou o espaço de moradiados residentes na cidade. O juízo se expressa, deforma particular, no menor ou maior grau de to-lerância com as diferentes manifestações de vio-lência, de acordo com o alvo da agressão e nãocom o ato em si. Basta lembrar como difere a pos-tura da mídia e dos órgãos de segurança quandoum morador da periferia ou outro das camadasmédias/altas sofre uma violência.

Outra forma de perceber-se a favela é possível;ela pressupõe, todavia, o reconhecimento de queos seus moradores desenvolvem formas ativas econtrastantes para enfrentar suas dificuldades dodia-a-dia, de acordo com suas trajetórias pessoais ecoletivas, as características socioculturais e geográ-ficas da localidade, o peso do tráfico de drogas e apostura assumida pelos dirigentes das entidadescomunitárias, dentre outras variáveis. Significa,então, levar em conta tanto suas demandas comoas formas inovadoras e complexas materializadaspor seus moradores para produzirem seu habitat.

Para isso, contudo, é necessária a quebra da hege-monia das referências sociocêntricas que ainda sus-tentam os olhares sobre o espaço popular e a criaçãode mecanismos de diagnóstico e definição de açõesque levem em conta os saberes construídos pelosmoradores, em sua longa e intensa caminhada poruma vida mais plena. Esse tem sido o caminho per-corrido pelo Centro de Estudos e Ações Solidáriasda Maré – o Ceasm, como veremos a seguir.

No território das práticas sociaisConstituinte da 30a Região Administrativa, a

Maré reúne 132 mil habitantes, possuindo umadensidade demográfica de pouco mais de 21 mil

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hab/km2, para uma média de 328 hab/km2 nacidade do Rio de Janeiro. No maior territóriopopular da cidade residem 2,3% da população domunicípio do Rio de Janeiro; caso recebesse o sta-tus de município, ele ocuparia a 18a posição noestado e a 11a posição na região metropolitana.

O processo intenso de ocupação do terrenolocal é um fator básico na definição de algunsaspectos da paisagem da Maré. Destaca-se, emparticular, a ausência de árvores, o rareamento deespaços vazios, a verticalização das residências e aintensa circulação de pedestres e diversos meios detransporte. A população distribui-se por cerca de38 mil domicílios e 16 comunidades: a concen-tração de vias rodoviárias, prédios públicos einstalações industriais/comerciais faz com que asfronteiras entres elas sejam heterogêneas, comníveis diferenciados de vizinhança. A rivalidadeentre facções do tráfico de drogas, por seu turno,tem um forte papel inibidor para a circulação dosmoradores. A Avenida Brasil é, assim, o principalespaço de circulação entre as diferentes comu-nidades locais.

No plano das infra-estruturas educacionais, naMaré estão instaladas 15 escolas públicas, sendosete Cieps; sete creches comunitárias, além devárias escolas privadas de pequeno porte, voltadaspara a educação infantil e para o ensino elementar.O ensino médio, cuja demanda cresce de formaexplosiva, é contemplado com a oferta de doiscolégios para toda a região – incluindo os bairrospróximos à Maré. Não há instituições com grandetradição no plano cultural, estrito senso, e osequipamentos existentes, nesse campo, sãorecentes e precariamente estruturados, ainda.

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Segundo o Censo Maré 2000, realizado peloCeasm, o percentual de moradores locais analfa-betos, maiores de 14 anos, chega a quase 10%.Abaixo da média brasileira (13,3%), ele é muitosuperior ao percentual da cidade para o ano de1999 (3,4%). Quanto aos rendimentos, mais dedois terços dos seus trabalhadores afirmam recebermenos de dois salários-mínimos por mês e, no queconcerne ao trabalho infantil, 2% das crianças de10 a 14 anos residentes na Maré exercem algumaatividade de trabalho – para um índice de 0,6%para o Rio de Janeiro.

O fato que mais singulariza a Maré, todavia, éseu processo de construção. Situado em uma áreainsalubre, alagadiça, o núcleo original da Maréera formado por seis comunidades, fronteiriças,mas também com características sociais,econômicas, geográficas e históricas heterogêneas:Morro do Timbau, Parque União, Baixa doSapateiro, Rubens Vaz, Nova Holanda e ParqueMaré. As comunidades de Vila Pinheiros, Vila doJoão, Conjunto Pinheiros e Conjunto Esperançaforam criadas no início da década de 80, sendoocupadas por antigos moradores das comu-nidades originais, principalmente os residentesnas palafitas – habitações de madeira construídasem áreas alagadiças.

Os conjuntos Bento Ribeiro Dantas, NovoPinheiros e Nova Maré foram criados via inter-venção do poder público municipal, na década de90. Eles reúnem moradores provenientes dehabitações localizadas em áreas de risco. Já ascomunidades de Marcílio Dias, Praia de Ramos ede Roquete Pinto, apesar de antigas, são umpouco mais distantes, no plano geográfico, das

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outras. Com isso, elas não tiveram o mesmo aces-so às intervenções urbanísticas realizadas na déca-da de 80. Elas passaram a ser consideradas inte-grantes da Maré a partir da transformação dessaárea em bairro e da criação da RegiãoAdministrativa.

Nesse contexto nasceu o Centro de Estudos eAções Solidárias da Maré – Ceasm. A instituiçãosurgiu a partir da iniciativa de um grupo demoradores que cresceram e/ou moraram durantemuitos anos em alguma comunidade da Maré. Odesejo maior do grupo original, que em sua maio-ria conseguiu atingir uma formação universitária,era a produção de uma intervenção integrada e delongo prazo no espaço local. O seu pressuposto éde que o exercício da cidadania deve sustentar-seem um projeto abrangente e processual. Assim, afinalidade maior do Ceasm é a constituição, for-talecimento e/ou articulação de redes sociais nasquais se valorize o papel social do morador, asações solidárias, o respeito às diferenças e a críticaàs desigualdades sociais existentes na realidadecarioca e brasileira. Essas redes são denominadassociopedagógicas, pois buscam incorporar novasformas de percepção e intervenção na realidadesocial a partir de ações cotidianas continuadas.

A grande novidade da entidade é o fato de elaaliar a inserção comunitária à condição de ins-tituição de pesquisa e gestora de projetos degrande porte no campo da educação, comuni-cação e cultura, elementos raros de serem encon-trados nas organizações sociais oriundas da pe-riferia. O principal efeito da organização institu-cional do Ceasm é que, nela, os moradores – emparticular os adolescentes e jovens – encontram

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exemplos locais positivos na construção de suastrajetórias sociais e escolares. O fato possibilitauma maior ampliação de seus campos de possibi-lidades sociais.

O conceito de Rede é a noção estruturante dadinâmica do Ceasm. A preocupação permanente éde que as atividades sejam desenvolvidas de formaarticulada, com as diferentes equipes de trabalhoestabelecendo níveis variados de relações. O eixocentral de todas, cabe ressaltar, é a oferta de novosprodutos culturais e educacionais aos moradoreslocais, em particular às crianças, aos adolescentese aos jovens. Mais do que oferta de serviços,todavia, a meta é que o próprio público benefici-ado formule e realize os produtos desenvolvidospelo Centro. Assim, em um processo permanente,vão sendo construídas as redes sociopedagógicas.

A instituição buscou ampliar sua intervenção apartir da constituição de alianças com instituiçõesda sociedade civil e do poder público. No planolocal, o Centro atua em parceria com escolasmunicipais locais, associações de moradores e ou-tras organizações da sociedade civil. No planoexterno, é forte seu vínculo com universidades,institutos de pesquisa, empresas públicas e pri-vadas, embaixadas e ONGs. As parcerias se evi-denciam, por exemplo, no processo de construçãodo seu espaço físico original. A entidade contouem um primeiro momento com o apoio da Fase,do Fundo Novib, da Embaixada do Canadá e decomerciantes locais. Posteriormente, expandiusuas instalações a partir de recursos fornecidos porentidades públicas e privadas, tais como Petrobras,Infraero e Ediouro. No que concerne às suas ativi-dades, elas são mantidas a partir de recursos tam-

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bém resultantes da prestação de serviços e da con-tribuição dos participantes, de acordo com suaspossibilidades.

Os instrumentos elaborados pelo Centro para ofortalecimento progressivo das redes cidadãs pas-saram, em um primeiro momento, pela instituiçãode um novo espaço – articulador e catalisador deum leque de ações particulares que vinham sendoencaminhadas na Maré ou com potencial paraserem materializadas. Construída no Morro doTimbau, a sede do Centro tornou-se em poucotempo o principal espaço de educação integradada Maré. O objetivo central da instituição,todavia, sempre foi atingir o Conjunto da Maré.Assim, em 2002 foi inaugurada outra sede, nacomunidade de Nova Holanda. Com isso, permi-tiu-se o acesso à entidade de pessoas que tinhamdificuldades em freqüentar o espaço do Timbau,tendo em vista a restrição do direito de ir e virprovocado pelo enfrentamento entre facções cri-minosas rivais. Em 2003, em um espaço comcerca de 3 mil m2, localizado nas fronteiras doTimbau, Avenida Brasil, Linha Amarela e LinhaVermelha, foi criada a Casa de Cultura da Maré.

A cultura como caminho para novostempos e espaços sociais

Definida a partir de variadas e arbitráriasacepções – um autor já registrou a existência de138 definições para o termo –, a reflexão sobre"cultura" oferece diversas possibilidades para aapreensão de uma multiplicidade de práticassociais. A constituição da Casa da Cultura daMaré tem provocado a necessidade de o Ceasmsistematizar sua compreensão do conceito e a

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maneira como ele será desenvolvido no cotidi-ano das ações.

Grosso modo, é possível afirmar que a con-cepção de cultura norteadora das atividades dainstituição se materializa a partir da interação dastrês formas mais comuns de tratamento do termo.De forma mais usual, ele está associado a umprocesso individual, que caracterizaria um con-junto de disposições e qualidades do ser "cultiva-do". Nesse sentido, o indivíduo culto possuiriauma habilidade especial de tratar com maior pro-fundidade e amplitude os fenômenos humanos,em particular os situados no campo da arte, daciência e da ética.

No extremo dessa representação, a cultura tam-bém é definida como o conjunto de traços carac-terísticos de uma sociedade, de uma comunidadeou de um grupo particular. Assim, as ações coti-dianas desse grupo, delimitadas pelo território,pelas características educacionais e de renda, pelalíngua etc, são entendidas como capazes de garan-tir-lhes uma identidade específica. Nesse caso, éafirmada a existência de culturas particulares, taiscomo a brasileira, a popular, a rural etc.

A outra forma mais comum de caracterizar acultura é a sua identificação como atributo ine-rente ao ser humano. Cultura seria, então, o con-junto de práticas que materializam a identidadehumana e nos distingue das outras espécies ani-mais. Seriam elas as ações que não dependem denossa fisiologia, mas de nossa história, de nossalinguagem, da consciência que temos da vida e desua finitude.

O filósofo grego Protágoras afirmava que ohomem é a medida de todas as coisas. Essa centrali-

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dade humana pode ser concebida a partir das trêsdimensões culturais expostas, vistas de formaindissociável: a singular-individual; a particular-grupal e a genérica-universal. Assim, o exercícioda cidadania plena demanda que os seres humanosampliem suas possibilidades subjetivas de apreen-são da realidade social nos planos conceitual,estético e ético; exige também um sentimento depertencimento ao coletivo social e ao gênerohumano, de forma tal que as pessoas sintam-se, deforma integrada, cidadãs da Maré, do Rio deJaneiro, do Brasil e do mundo.

A cidadania plena exige também a prática deiniciativas que ampliem as possibilidades de exer-cício dessa humanidade. O ideal da cultura seria,então, a humanização plena e permanente do serhumano, utopia que o conduziria em seu destino,apesar de não ser um ponto objetivo de chegadaou mesmo um porto seguro. Para isso, faz-senecessária a produção de equipamentos e práticasculturais, seja na Maré ou além, que se tornemterritórios de circulação e (re)produção de identi-dades em permanente negociação, mas com raízesfincadas em referências democráticas e humanistasque permitam, no caso do Rio de Janeiro, a afir-mação de uma identidade carioca, brasileira, uni-versal, que atravessa a Zona Sul e a favela, o rurale o urbano; que levem em conta que a caracterís-tica da Cidade é o fato de ela ser o espaço da pos-sibilidade do encontro, por excelência. Encontrosdas diferenças e das semelhanças, que permitem aconstituição de identidades plurais, mas, acima detudo, humanas.

Na busca desses novos caminhos para a vidana pólis, alguns atores e práticas podem cumprir

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um papel fundamental, em particular a juven-tude. Com efeito, a razão de ser desta é devorar ageração anterior, reconstruindo, sob novas refe-rências, o cotidiano. Nesse processo, há váriasformas de um novo presente ser construído. Oprimeiro passo é reconhecer que os jovens cons-tituem, em territórios múltiplos e marcados peladiversidade, diferentes redes socioculturais,variados mecanismos para a expressão dos dese-jos, temores e crenças – da subjetividade. Mesmomanifestas, muitas vezes, em "tribos", "galeras"e/ou grupos restritivos, essas redes podem serreferências preliminares para a inserção socialmais abrangente.

A partir das redes dos jovens, vistos comocidadãos e, portanto, constituídos de poder, é pos-sível estimular que diferentes grupos se encon-trem, partilhem suas experiências e tenham a pos-sibilidade, de acordo com suas características einteresses, de articular iniciativas comuns. Emuma cidade marcada pela segregação e pela inse-gurança, eles são os que mais buscam novas expe-riências, podendo construir novos vínculos, abrir-se para a diferença. Para isso, são necessárias práti-cas sociais e equipamentos urbanos adequados queestimulem o encontro e o respeito à diversidade, àpluralidade, à humanidade do outro.

As considerações feitas até aqui evidenciam osaspectos que definem o trabalho cultural que sebusca produzir no Ceasm. As ações no campo daeducação, comunicação, dança, música, foto-grafia, vídeo, teatro, artes plásticas, dentre outras,são trabalhadas como novas formas de apreensão eintervenção no mundo. O que não ocorre em umlugar qualquer, mas em um território demarcado,

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que tem características identitárias específicas,como tem de ser.

O Centro busca desenvolver linguagensmúltiplas, que permitam aos seus freqüenta-dores, em particular os moradores locais,usufruir e produzir linguagens elaboradas e con-sumidas por grupos pouco acessíveis aos setoressociais populares, de forma geral. No caso, estasmanifestações podem ser tanto o balé clássicocomo a dança contemporânea; exposições plásti-cas e exibições cinematográficas; o jornal e a TVcomunitária, a música clássica e o jongo, o mara-catu, o bumba-meu-boi e outras expressões dacultura popular territorializada.

No caso específico da Casa de Cultura daMaré, ela é proposta como um espaço de reflexãoe prática de um conjunto de referências geraissobre a condição e identidade humana; a diversi-dade cultural e territorial; a realidade política eeconômica etc. A intenção é romper com atradição de debates sobre temas conceituais ou nocampo dos direitos humanos, dentre outros,ficarem restritos aos grupos sociais mais inte-lectualizados e a espaços culturais apropriados,comumente, apenas por esses.

O seu projeto está fundamentado emmetodologias prático-sensíveis, voltadas para areconstrução crítica da relação imaginário-cotidi-ano. Elas pressupõem a construção de relaçõeshorizontalizadas entre os atores sociais, visto aintenção de trabalhar com a criação de espaços devivência. Neste, os indivíduos se reconhecemcomo participantes ativos da reconstrução de suarealidade e se afirmam como integrantes da re-solução de seus problemas. Na verdade, essa é a

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essência de um trabalho em rede, pois visa conju-gar saberes e práticas sociais como possibilidadesde ações solidárias.

Na perspectiva apontada, a Casa de Cultura daMaré surge como um espaço de tratamento, emvariadas linguagens, de temas situados em camposda subjetividade, em geral pouco refletidos ouconsiderados nos territórios populares: a sexuali-dade, os direitos humanos, o racismo, o acesso àJustiça etc. De forma particular, nela se estimula arealização de eventos que tratem, de forma sis-temática e ordenada, do fenômeno da identidadedo sujeito e do morador do Rio de Janeiro e dasmarcas da territorialidade em suas ações.

Acima de tudo, o principal sentido da criaçãoda Casa é afirmá-la como um espaço de encontro.Encontro daqueles que, na diferença, se fazemiguais. Localizada em um espaço fronteiriço e decirculação, a Casa, em sua própria localizaçãogeográfica, materializa-se como um espaço capazde permitir o fluxo de diferentes moradores dacidade, de forma regular e progressiva.

Desse modo, o Rio de Janeiro ganha, com oCeasm e a Casa de Cultura da Maré, formas decombate, em uma perspectiva democrática ecriativa, às segregações sociais e espaciais queobscurecem as suas belezas e a alegria de seupovo. Segregações que precisam, de formaurgente, ser combatidas e superadas por todosaqueles que ainda têm esperança na vida coleti-va e na construção de uma nova humanidademais justa e plena.

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Notas[1] CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Ed. Record, 2004,São Paulo.[2] Cf. Boletim Trabalho e sociedade – Jovens – nº 1, março2001. Iets, Rio de Janeiro.[3] CANCLINI, Néstor García. Consumidores e cidadãos,Ed. UFRJ, Rio de Janeiro, 1995.

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Culturas transitivas

Ecio de Salles

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A ponte não é de concretoNão é de ferro não é de cimentoA ponte é até onde vai o meu pensamentoA ponte não é para ir nem pra voltarA ponte é somente atravessarCaminhar sobre as águas desse momento

Lenine e Lula Queiroga

Do funk ao reggae: o impulso criativona origem

Quem vê de fora, ou de longe, enxerga primeiroo lado fulgurante, espetacular e belo. Talvez nãoimagine que, para quem vive de dentro, a tarefa deconstrução de um caminho alternativo ao processodegradante conduzido pelos métodos excludentesdo processo de globalização é o tempo todoatravessada por empecilhos, impossibilidades e...riscos. Desfazer diariamente cada um desses nós éa fórmula instável que confere êxito a um certonúmero de projetos que tem na cultura popular abase de sua atuação social. O Grupo Cultural AfroReggae, por exemplo.

A própria história do grupo é em si interessantee guarda alguns pontos de contato com certosaspectos da cultura hip-hop. Reunido com afinalidade de organizar festas de funk, o grupo quedeu origem ao Afro Reggae se viu obrigado amudar de planos quando o prefeito Cesar Maia,em 1992, decidiu proibir qualquer manifestaçãopública que envolvesse o ritmo. Foi assim que,instigado por um dos integrantes do grupo,Plácido Pascoal, o grupo resolveu realizar uma festade reggae. Esse primeiro evento, já revelando ainfluência que a cultura e a religiosidade hinduteriam sobre o futuro coordenador executivo dogrupo, José Junior, chamou-se Loka Govinda e

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abriu espaço para o acontecimento que aglutinariadefinitivamente as pessoas que dariam origem,meses depois, ao Grupo Cultural Afro Reggae.Desse modo, em agosto de 1992, foi realizada a 1a

Rasta Reggae Dancing.É possível inferir desse movimento não

calculado – a passagem do funk ao reggae – omarco inicial de um processo de transformação nointerior do próprio núcleo organizador da festa.Enquanto o funk prioriza o aspecto festivo, oreggae, sem prescindir desse viés, coloca de ma-neira enfática opiniões sobre consciência racial,questionamentos socioeconômicos, críticas àsociedade de consumo, enfim, um repertório deinformações que poderia induzir – como induziu,no caso do Afro Reggae – o ouvinte atento arepensar sua posição no mundo e seus modos denele interferir. Uma das canções de Bob Marley,por exemplo, profetizava que:

Até que não haja mais cidadãos deprimeira e segunda classe em nenhumanação, e que a cor da pele de um homemnão signifique mais que a cor de seusolhos, há guerra. E até que os direitoshumanos básicos sejam igualmentegarantidos a todos sem preocupação deraça, haverá guerra. [...] Vamos lutar.Nós achamos que é necessário e sabemosque vamos vencer. Pois temos confiançana vitória do bem sobre o mal.1

Foi assim que, da organização de festas, o grupopartiu para um novo desafio: publicar um jornal.O Afro Reggae Notícias veio à luz em 21 de janeirode 1993. Na capa, a imagem do cantor JuniorMarvin e do guitarrista Andrew Mc Inture

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ilustrava a matéria principal: o show da banda TheWailers no Circo Voador, Rio de Janeiro, emnovembro de 1992. No editorial, que nessa épocavinha na primeira página, os editores anunciavamexplicitamente os objetivos do jornal: “Informar,divulgar e conscientizar nossos leitores de umaforma especial. Com suingue e ritmo”. Através dahistória do reggae e da cultura afro-brasileira, ogrupo queria ainda enviar “um recado contra oracismo e a injustiça social”.

A cada edição do jornal, o grupo, autodeno-minado “organizadores”, amadurecia a idéia quegerminaria numa instituição social. Até que, emjulho de 1993, decidiu criar uma ONG, o GrupoCultural Afro Reggae (GCAR). Nesse momento, ogrupo tinha entendido que a criação de umaentidade organizada era fundamental para aconcretização de seus planos, uma vez reconhecidoque, através unicamente do jornal, não seriapossível interferir positiva e diretamente emdeterminados problemas sociais. A idéia era criarum programa de ação sociocultural voltado para osjovens que residiam em favelas e que, concre-tamente, viesse a modificar de alguma forma a vidadessas pessoas. Nesse ínterim, ocorreu um episódioque marcou tragicamente a história do Brasil: achacina de Vigário Geral.

O motivo da chacina teria sido vingança. Nanoite anterior, dois policiais foram assassinados,na Praça Catolé do Rocha, por traficantes dafavela de Vigário. Explica José Junior no livro Dafavela para o mundo:

A represália foi na noite de domingo.Pouco antes da meia-noite, um comboiode policiais encapuzados invadiu a

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favela para vingar seus companheiros.Começaram incendiando trailers naPraça Catolé do Rocha, em seguidametralharam um bar da comunidade,tradicional ponto de encontro dosmoradores, que ali se reuniam para jogarcarta ou sinuca e tomar uma cerveja.Depois, invadiram uma casa próxima,de uma família evangélica, e executaramos donos da casa e seis de seus filhos.(Junior, 2003: 49).

O Afro Reggae, então, foi conduzido pelo rumodos acontecimentos até a comunidade a qualajudaria a transformar e onde deitaria raízes.

Antes mesmo desse episódio, entretanto, umoutro evento entrou para a história não apenas deVigário Geral, mas também da comunidadevizinha, Parada de Lucas. Em 1983, as duascomunidades entraram em guerra, dando início aum conflito que, segundo a minha percepção,apresenta três fases até o momento. A primeiradurou dez anos, seguindo até 1993. De acordocom os relatos dos moradores, o conflito começoupor causa de uma partida de futebol. Durante adisputa de pênaltis, o goleiro de Vigário, Geléia,foi alvejado por um tiro de fuzil, disparado por umtraficante de Lucas, no momento em que defendiaa última cobrança, que decidiria a partida a favorde seu time. A partir daí, o termo “adversário”perderia fatidicamente o seu significado esportivo,passando a marcar de forma violenta a relaçãoentre as duas comunidades. Pelo menos até 1993,quando a chacina teria dado lugar a umaconsternação tão grande que o “armistício” foidecretado após um curto processo de negociações.Nesta segunda fase, travou-se uma espécie de

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“guerra fria”, na qual ameaças de lado a lado e tiroseventuais e sem conseqüências fatais eramdisparados de uma comunidade a outra.

A paz relativa não durou mais que sete anos.O mês de agosto de 2000 marcou o reinício dasretaliações mais concretas, iniciando desse modoa terceira fase. Caracterizado pela retomada doritmo anterior a 1993, o clímax desse terceiromomento aconteceu em julho de 2003, quandotraficantes de Lucas invadiram e tomaramVigário Geral, numa ocupação que durou poucomais de 24 horas.

Este é o cenário onde se constituiu o GrupoCultural Afro Reggae: a favela, com todos os seuscontrastes e contradições. Por um lado a violência– que, venha do crime ou da polícia, é semprebrutal, desmedida – e a exclusão social, muitoperceptível na precária estrutura, nos barracoshumildes, na dificuldade, quase impossibilidade,de acesso aos benefícios da cidadania e damodernidade a que teriam direito. Por outro, umaforça criativa, um manancial de talentos prontopara questionar a ordem social que o reprime eocupar um lugar diferenciado no mundo.

Afinidades eletivas, culturas transitivasContudo, o discurso que realça os aspectos

vinculados à violência, à marginalidade, à pobrezamaterial em cada favela põe em evidência umponto de vista redutor, que não dá conta dariqueza de conteúdos gerada nas práticascotidianas de qualquer comunidade. Pelo con-trário, trata-se de um discurso que, conforme oraciocínio de Jailson de Souza, destaca a “ausência”como fator primordial a definir o espaço da favela,

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uma localidade que não tem escolas, não temacesso a serviços de saúde, não tem teatros,cinemas, museus e, lembrando ainda Jailson, “nãotem regras, não tem leis, não tem cidadania!”.Coincidentemente ou não, trata-se de um discursoque lembra de perto a opinião etnocêntrica que osprimeiros colonizadores portugueses expressaramsobre os indígenas brasileiros, um povo que nãoteria fé, nem lei, nem rei.

A afirmação desse “discurso da ausência”em relação aos espaços populares revelauma representação muito comum de quea favela não seria constituinte da cidade.Existe o bairro, local típico para asvivências legais e formais, e existe afavela como a não-cidade, como espaçoonde não ocorreria o efetivo exercício dacidadania. (Silva, 2003: 22)

Por outro lado, quando o discurso assumeuma clave afirmativa, é a fim de chamar aatenção para a presença do crime, da violência,do perigo no interior das favelas. Um texto que,como se vê, enfatiza o pensamento crimi-nalizante, como se nessas localidades nãohouvesse outras experiências sociais que não a dotráfico de drogas. Jailson notou duas noçõesdistintas a nuançar esse discurso da ausência, aeconomicista e a paternalista.

De acordo com a primeira noção, o destinoinevitável dos jovens moradores de comunidadespobres é ingressar no tráfico, numa lógica que osconsidera criminosos em potencial, ainda que aínfima proporção de indivíduos que ingressam notráfico, em face do universo total de moradores decada comunidade, desminta esse diagnóstico. De

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acordo com a segunda – presente até nopensamento de setores da esquerda –, eles setornam vítimas de um sistema social injusto, o queinclusive justificaria o recurso a expedientes ilegaiscomo o não pagamento de impostos ou areceptação de objetos roubados. Assim, “nãorestaria ao morador das favelas, levando-se emconta esses juízos, mais do que se conformar coma sua condição de potencialmente criminoso ouvítima passiva da sociedade” (Silva, 2003: 22).

É nesse contexto que o discurso do GrupoCultural Afro Reggae entra em cena. E, felizmente,não o faz de maneira isolada, mas integrando umconjunto de discursos que, na cidade do Rio deJaneiro, começa a se fazer ouvir com maisintensidade a partir da primeira metade da décadade 90. Nesse período – um pouco mais, um poucomenos – surgem inúmeros movimentos sociais quehoje constituem um importante e produtivo focode um discurso e de uma estética, ou antes, de umcontra-discurso e de uma antiestética que, de umlado, dialogam entre si, trocando idéias eexperiências. De outro, dialogam também comórgãos governamentais, agências de cooperaçãointernacional, universidades e escolas, empresas,políticos, artistas, intelectuais, associações demoradores... Um universo amplo, que inspirouRubem César Fernandes a falar numa “poliglosiada sociabilidade” para definir os agenciamentospostos em curso pelo Afro Reggae e por outrosgrupos semelhantes. Sem dúvida, essa articulação“poliglota” envolve não poucos riscos, uma vez queos personagens envolvidos na relação estão à mercêde uma inegável assimetria no que diz respeito àsposições de poder. Entretanto, como assinalou

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George Yúdice, “a orquestração e a negociaçãoexigem manter-se firmes frente à cooptação”(Yúdice, 2002: 195). Não é o caso aqui de fazerfrente a um só foco de opressão ou dominação,mas de agir junto à diversidade de grupos einstituições, os quais na maior parte das vezesfalam a partir dos múltiplos pontos de intersecçãoentre os vários atores, interesses e discursosenvolvidos no processo (Yúdice, 2002: 195)2.

Há um problema, todavia, que merece atenção.É o caso de saber se, como argumenta Marta Porto(Porto, 2003), corremos o risco de naturalizar aidéia de que “projetos substituem processos”.Afinal, ao pôr em evidência – inclusive em posiçãodestacada na mídia – jovens que obtiveram êxitoem abraçar o viés artístico como forma de superaros obstáculos impostos por uma sociedadedesigual, sem pensar sobre o que eles representame propõem modificar, a sociedade, diria Marta,“substitui a necessária revisão das políticas emcurso, com destaque para as de cultura, esvaziando,assim, o seu potencial transformador”. Dessaforma, o estabelecimento do que poderíamos aquichamar de cidadania cultural poderia apresentarum efeito colateral neutralizador:

É como se um anúncio publicitáriopermanente, formado pela imagem devárias experiências culturais dedestaque, redimisse a culpa de todos pornão conseguir abrir mão de mais nada,ou melhor, do mais importante, que é ademocratização real da esfera pública,das oportunidades educacionais, deemprego, de renda, de moradia, deserviços estatais de qualidade, de culturatambém. (Porto, 2003)

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Se é preciso admitir que a mobilização dosmovimentos sociais ainda não foi capaz de seestruturar como processo, é preciso tambémreconhecer que os projetos – e eles são inúmeros ediversos o suficiente para que não os ponhamostodos num mesmo saco – estão trazendo umacontribuição decisiva para o debate acerca dasrelações sociopolíticas que construímos e das idéiasde futuro e transformação que postulamos.

Preparados para falar muitas “linguagens” –englobando a sociedade civil, o terceiro setor, ogoverno, a mídia, empresas – e articulá-las deforma a tornar alguns desejos realidade, gruposcomo Afro Reggae, Ceasm, Nós do Morro, Cufa,Pré-Vestibular para Negros e Carentes, Educafro,Jongo da Serrinha, Cia. Étnica de Dança3, paracitar só alguns, têm trazido para o primeiro planoo discurso da favela, ou, pelo menos, o discursolegitimado por ela. Nisso, têm contribuídobastante para mudar a correlação de forças entre ascomunidades e as outras instâncias da sociedade;têm ajudado a repensar positivamente o lugar dafavela na cidade; têm posto em curso uminteressante e produtivo processo de resistência,uma vez que não se trata de resistir apenas, mas defazê-lo com um novo sentido, possuidor de umapotência afirmativa que torne a noção deresistência comparável a um procedimento de re-existência, idéia que tomo emprestada à TatianaRoque, que, com o rigor intelectual que lhe épeculiar, percorre as acepções possíveis desta noçãopara, numa formulação fortemente inspirada pelafilosofia deleuziana, propor a “resistência” comoconstitutiva de um devir revolucionário (Roque,2001-02: 23 et alli).

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É a partir dessa concepção que o trabalho doAfro Reggae, e de outros movimentos sociais, podeescapar à cooptação ou ao “esvaziamento de seupotencial transformador”. Porque, em meio àsintersecções, interações e mediações de que fazemparte, esses movimentos estão sempre formulandoe reformulando discursos. E o fazem em meio àintempérie da globalização, o que lhe confere umoutro aspecto notável.

Segundo Canclini, uma das maneiras possíveisde entender a globalização é como um conjuntode estratégias para realizar a hegemonia deconglomerados industriais, grupos financeiros,grandes empresas da área de entretenimento ecomunicação, “a fim de apropriar-se dos recursosnaturais e culturais, do trabalho do ócio e dodinheiro dos países pobres”, mantendo-ossubjugados à ordem estabelecida por esses atoresdesde meados do século 20 (Canclini, 2003: 29).Já Zygmunt Bauman, por sua vez, entende queno mundo globalizado a marca que distingue osexcluídos é a “imobilidade”. Para o autor, “estarproibido de mover-se é um símbolo pode-rosíssimo de impotência, de incapacidade e dor”(Bauman, 1999: 130).

Nesse contexto, a atividade do Grupo CulturalAfro Reggae e dos demais grupos que venhomencionando atua como produtora de antídotosespetaculares contra a imobilidade de que falaBauman, abrindo perspectiva para – ainda queestejamos nos referindo neste primeiro momentoàquelas “experiências culturais de destaque”, comodefine Marta Porto – um movimento contínuo dedesterritorialização e reterritorialização quetermine por mover um produtivo e potente

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processo de integração social, capaz de, quem sabe,criar as condições para que sua atuação se convertaem processo, mudando efetivamente, num prazoque não podemos prever, as nossas condiçõessociais, políticas, culturais, e outras mais.

É nesse ponto que posso falar em“transitividade” desses movimentos socioculturais.Eles, por um lado, representam o desejo dodiálogo, de fato dirigem-se ao outro, estabelecemrelações com ele; por outro, implicam a idéia detrânsito, de movimento. As culturas transitivasseriam aquelas capazes de situar-se nas fronteiras,de falar desse lugar e aí se dedicar à tarefa dedesfazer muros, construir pontes. Um exemplointeressante é o projeto Parada Geral, desenvolvidoa partir das parcerias que venho destacando, nocaso entre Afro Reggae, Rede Globo, People’sPalace Project, entre outras, e visando criar noespaço que separa e une as comunidades de Lucase de Vigário um território livre para o intercâmbiode idéias, a prática do reconhecimento mútuo, acriação de arte, o contato das culturas, atransformação da realidade.

Certamente, essa não é conclusão da história. É,pelo menos deve ser, o seu ponto de partida. Estoucom Marta Porto quando ela entende que o Rio deJaneiro, que na década passada pôde reconhecer edar visibilidade a práticas inéditas originadas “nasfavelas, nos subúrbios e nas periferias”, devaassumir nos próximos dez anos esse espaço “comolocus privilegiado de mudanças sociais estruturais”(Porto, 2003).

O fato animador é que os novos discursos quesurgiram todos praticamente nessa época mos-tram-se potentes o bastante para enfrentar aqueles

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contra os quais protestava Jailson e, sob outroaspecto, para gerar ações que ressignifiquemfavoravelmente o conceito de globalização. É aindaCanclini quem sugere que a indagação “sobre ossujeitos capazes de transformar a atual estruturaçãoglobalizada nos levará a atentar aos novos espaçosde intermediação cultural e sociopolítica”(Canclini, 2003: 28. Grifo do autor). Esse é ummovimento que dá ensejo à formação de umprocesso de “afinidades eletivas”4 – um termo queprefiro neste momento à noção tradicional de“redes” – entre os diversos grupos, que se articulameventualmente, muitas vezes prescindindo dereuniões ou outros procedimentos formais. O quepromove a sintonia entre eles é antes uma espéciede sentimento íntimo, balizado primeiro pelaconsciência de que o mundo em que vivemos nãonos serve; depois pela força e vontade detransformá-lo e, por último, mas não menosimportante, pela certeza de que é possível fazê-lo.Falta o dado metodológico à fórmula, é verdade,mas o “como” da questão é justamente o que seestá inventando no dia-a-dia das lutas, namobilização dos movimentos, nos muitos ecaprichosos modos de re-existência.

Referências bibliográficasBAUMAN, Zygmunt. Globalização. Rio de Janeiro:Jorge Zahar Editor, 1999.CANCLINI, Néstor García. A globalizaçãoimaginada. São Paulo: Editora Iluminuras, 2003.JUNIOR, José. Da favela para o mundo – A históriado Grupo Cultural Afro Reggae. Rio de Janeiro:Aeroplano, 2003.PORTO, Marta. A fama x os normais: ajuste social

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no mundo das celebridades. In Dez anos depois:como vai você, Rio de Janeiro?, 2003(www.iets.org.br).ROQUE, Tatiana. Resistir a quê? Ou melhor, resistiro quê?. In Lugar Comum: Estudos de Mídia,Cultura e Cidadania, no 15. Rio de Janeiro:Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2001-2002.SILVA, Jailson de Souza e. A favela imaginária daclasse média. In Revista Global no 1, outubro-novembro. Rio de Janeiro, 2003.YÚDICE, George. El recurso de la Cultura: Usos dela cultura en la era global. Barcelona: EditoraGedisa, 2002.

Notas[1] Trecho do reggae War, de Bob Marley.[2] Em espanhol no original.[3] Enquanto escrevo, percebo que invariavelmente, emdiferentes situações e proferidas por diferentes sujeitos,quando se fala em grupos que desenvolvem projetos emfavelas, insiste-se sempre nas mesmas instituições (nocontexto carioca). Isso, a meu ver, não representa umalimitação, mas o reconhecimento de que esses gruposalcançaram resultados objetivos em seu trabalho, e agoracertamente influenciam outras iniciativas que começam atrilhar caminhos parecidos. Fora isso, há ainda umaenorme soma de outras instituições tão interessantesquanto que, por questões de espaço, não pude citar aqui.[4] Utilizo o conceito de afinidade eletiva segundoformulado por Michel Löwy, em Redenção e utopia:“Designamos por ‘afinidade eletiva’ um tipo muitoparticular de relação dialética que se estabelece entre duasconfigurações sociais ou culturais, não redutível àdeterminação causal direta ou à ‘influência’ no sentidotradicional. Trata-se, a partir de um analogia estrutural, deum movimento de convergência, de atração recíproca, deconfluência ativa, de combinação capaz de chegar até afusão”.(Löwy, 1989: 13).

Ecio de Salles

Cultura para o desenvolvimento:um desafio de todos

Marta Porto

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A proteção dos direitos humanos, emuma sociedade cultural, requer aobservância dos direitos culturais,enquanto direitos universalmenteaceitos. Não há direitos humanos, nemtampouco democracia, sem a justiçacultural, sem a diversidade e opluralismo culturais e, nem tampouco,sem que se assegure o direito de existir, odireito à visibilidade, o direito àdiferença e à dignidade cultural.

Flávia Piovesan

Pensar a relação entre cultura e desen-volvimento é um desafio global reconhecido pelasNações Unidas desde 1988, quando foi lançada aDécada Mundial do Desenvolvimento Cultural e,alguns anos depois, em 1993, implantada aComissão Mundial de Cultura e Desenvol-vimento1, sob a batuta competente do peruanoJavier Perez de Cuellar.

Como sinaliza a Comissão, o desafio da culturano século 21 propõe que pensemos em conexõesque coloquem na ordem do dia as complexasrelações entre cultura e desenvolvimentoeconômico, entre globalização e expressões locais,entre fluxos informacionais e identidade e,especialmente, entre os aspectos inovadores dosmovimentos civis e comunitários emergentes,como os da juventude das grandes periferiasurbanas, e o impacto sobre a democracia e ofortalecimento da vida pública. Ou seja, significarepensar todo o papel desempenhado pela culturano plano mais radical da vida política de um paísou de uma comunidade.

Um acesso desigual aos meios deexpressão cultural, novos ou tradicionais,

105Marta Porto

implica não somente uma negação doreconhecimento cultural, mas algo queafeta seriamente o sentimento depertencimento de indivíduos e comu-nidades à sociedade do conhecimento, oua sua exclusão dela. A cultura possuilaços múltiplos e complexos com oconhecimento. A transformação da in-formação em conhecimento é um atocultural, como é o uso a que se destinatodo o conhecimento. Um mundo auten-ticamente rico em conhecimento há deser um mundo culturalmente diverso.2

O acesso à cultura – pensada não só comomemória ou ato criativo espontâneo ou artístico,mas como conhecimento –, ou a necessidade deapropriar-se continuamente de suas variáveis edisponibilizar esse acervo à comunidade, é um atoconsciente que exige inserção coletiva e política detodos os cidadãos. Assim exige um ambientecomunitário e político favorável à inserção culturaldo indivíduo e de grupos.

A nossa disposição de aprender e dialogar comuniversos diversos é fruto dos estímulos querecebemos do ambiente vivenciado na infância, naadolescência, na fase adulta da vida. Estímulos eincentivos proporcionados pela riqueza dosencontros culturais proporcionados ao longo davida, da nossa facilidade e curiosidade deapreendê-los e transformá-los em dadosimportantes da experiência humana. A cultura, talqual ela é pensada no século 21, é a experiênciaque marca a vida humana em busca doconhecimento, do alto aprimoramento, dosentido de pertencimento e da capacidade detrocar simbolicamente.

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O valor que damos à cultura, a nossa ou aaprendida, é aquele que aprendemos a dar.

Cultura e democracia: um debateinsuficiente

Nesse contexto, é preciso lembrar a insu-ficiência histórica no Brasil do debate querelaciona cultura e retomada da democracia,cultura e direitos sociais e, conseqüentemente,cultura e desenvolvimento. Alheia a boa parte dosavanços políticos que marcaram nas duas últimasdécadas as discussões em outros setores de atuaçãopública, a cultura caracterizou-se nos últimos anoscomo uma área de “disputa de privilégios”personificados nos limites reivindicados para aisenção fiscal dos diversos setores artísticos, pelolobby de aprovação dos tetos permitidos nascomissões de cultura e, naturalmente, pelas verbaspublicitárias e de marketing das grandes empresasbrasileiras, em especial e paradoxalmente dasestatais. Assim, o campo teórico por excelência dassoluções coletivas revela com crueza o traço maiscontundente da elite nacional em relação àsmazelas do povo: o prevalecimento dos interessesprivados e das soluções imediatistas e restritas apoucos, sobre as necessidades de um corpo socialdiverso a quem se nega o direito de emancipaçãocultural e visibilidade pública.

Ao contrário de outros países latino-americanos, como Bolívia, Uruguai, Colômbia,México, onde o processo de democratizaçãoacompanhou o aprofundamento do debate sobre opapel da política cultural e a importância doprotagonismo político e da participação popularde amplos setores da sociedade no reordenamento

107Marta Porto

do papel do Estado no campo da cultura, no Brasilessa discussão esteve desde sempre secundarizada.Apesar da implantação do Ministério da Culturaem 1985, optou-se por setorizar a discussão nosmecanismos financeiros capazes de ampliar asverbas públicas a setores restritos da produçãocultural, aqueles com maior capacidade deorganização e pressão política. As leis de incentivo,nas três esferas do aparato estatal, seus tetos deisenção, as estratégias de preenchimento dasplanilhas disponibilizadas pelos órgãos públicosderam a tônica da superficialidade política queacometeu durante quase duas décadas o debatecultural no país. Como em nenhuma outra área, acultura do privilégio, da ausência de preocupaçãocom os movimentos sociais e culturais de fora doque tradicionalmente se denomina “produçãocultural” esteve tão presente como na configuraçãodas políticas culturais brasileiras.

Distante do debate político, a cultura poucocontribuiu para o debate sobre o desen-volvimento democrático no país, ou refletiu sobreo farto campo de oportunidades e/ou contri-buições que poderia ofertar ao país pensandoconjuntamente a educação, a universalização dosserviços culturais – equipamentos e programas –,o desenvolvimento local baseado em ativossingulares de cada comunidade, a organização deuma indústria e um mercado cultural digno dacapacidade e do talento da nossa diversidadecriadora. Ou indo além, ajudando a recuperar ehumanizar a face distorcida e feia de um país comum passivo de violação de direitos sociais,econômicos, culturais, enfim, direitos univer-salmente reconhecidos como Humanos. Situação

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que só nos últimos anos começamos a recuperar,de forma tímida e pouco assumida.

No entanto, é preciso afirmar que o conjuntode opções estratégicas da agenda pública, estatal ounão, proposto hoje para enfrentar o desafio dodesenvolvimento brasileiro, que se caracterizapelos altíssimos níveis de concentração de renda ede ativos educacionais e culturais em segmentosrestritos da sociedade, não pode deixar deconsiderar a importância central da cultura e daspolíticas culturais no processo de repaginação dademocracia brasileira, principalmente se consi-derarmos a força do recorte cultural no conjuntode projetos reivindicatórios e dos direitos sociais eespecialmente comunitários que surgem nas duasúltimas décadas na cena nacional.

Em especial, quando se avalia a importânciaque os projetos culturais passam a ter a partir dadécada de 90 na conquista dos espaços públicos ena legitimação dos direitos sociais dos movimentoscomunitários e das periferias dos grandes centrosurbanos. Maria Virgínia de Freitas, da AçãoEducativa, chama a atenção para a importânciadesse fenômeno:

Se, nos anos 60, eram os jovens de classemédia, os estudantes que traziam o novo,nos anos 80 e 90 a efervescência dodiferente começa a nascer em outrosespaços sociais. Em cidades como SãoPaulo, é nas periferias que começamos aencontrar uma série de grupos de jovensque se organizam para fazer música,dançar, grafitar, fazer teatro, produzirfanzines, organizar ações solidárias etc.(...) É sobretudo em torno da dimensãocultural que esses grupos vão se articular

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para encontrar seus iguais e, por meio dediferentes linguagens, expressar suasquestões, suas visões de mundo, suascondições de vida, suas revoltas, seusprojetos de sociedade. Nós observávamosesta riqueza e nos inquietávamos comsua invisibilidade.3

O poder destes movimentos culturaisexpressos em inúmeros exemplos espalhados pelopaís, sem dúvida alguma, traz um dado novopara o conjunto das práticas sociais e deocupação do espaço público que ainda não foramdevidamente absorvidas. Em parte, pela ausênciade políticas culturais estruturantes queinterfiram decisivamente no desenho daspolíticas públicas e das ditas agendas sociais noBrasil. O traço da invisibilidade continua aoperar como uma máscara de incompreensão ede não reconhecimento do lugar central dacultura e da força das práticas locais noamadurecimento da democracia brasileira.Democracia que deve incorporar o respeito àsdiferenças, o respeito à diversidade e aopluralismo cultural, às questões de gênero,étnico-raciais, de proteção às minorias culturais.

Talvez por isso, ou sobretudo por isso, aabsorção dessas práticas culturais provindas dasperiferias urbanas e protagonizadas especialmentepor jovens tenha sido erroneamente traduzidacomo ação social capaz de transformar indicadoreshistóricos de desigualdade (saúde, educação,saneamento básico, nutrição etc.) de formamágica. Programas de música, dança, capoeira, quesempre deveriam estar ali à mão dos moradoresmais ou menos próximos do universo cultural,

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como um direito assegurado pela sociedade,passaram a ser financiados não como extensãodesses direitos culturais numa sociedade demo-crática, mas como remédio para a ação social maisingênua. Aquela que ganha contornos preventivos– quem já não se surpreendeu com frases como “émelhor a garotada estar numa oficina de arte aestar nas ruas sendo vítima ou autora de violência”,ou “a cultura é a melhor estratégia contra aviolência juvenil” –, que não é capaz de seruniversalizada, pois tem “público-alvo” ou contacom parceiros com capacidade limitada de ação,reduzindo a um percentual pequeno as crianças ejovens “atendidas”.

Para os jovens das classes média e alta a culturaé uma aventura para o conhecimento e o saber,humanizando o espírito e ampliando a capacidadede escolha. Para os jovens moradores de áreaspopulares, ela é tratada como remédio preventivo àviolência urbana e a ação social vinculada a termoscomo “melhorar a auto-estima”, “se sentirincluído” e outros tantos que presenciamos deforma marcante nos balanços sociais de empresas enas falas de funcionários da burocracia estatal ouinternacional. O caráter político e reivindicatório,a ação transformadora são esvaziados pela retóricaoficial, e tratados como soluções para as mazelassociais de problemática bem mais ampla. Semdúvida alguma, as intenções são boas e osresultados, com o contingente atendido,surpreendem positivamente. Mas enquantoolharmos a ação cultural esvaziada do seu potencialpolítico transformador, aproximando-a doassistencialismo, a tarefa de universalizar o acesso àcultura, de ampliar a representatividade dos atores

Marta Porto Cultura e desenvolvimento112

e das práticas no campo político e simbólico douniverso cultural ainda estará incompleta. Investirem projetos culturais comunitários é importante,todos, sem distinção, têm o direito de se expressarartisticamente, de ter acesso a livros, às artes, à vidacultural. Isso deve ser encarado com a naturalidadeque uma sociedade democrática reivindica etambém como um desafio para o Brasil. Assim, abusca não deve ser pelos talentos, pelos possíveisfamosos do amanhã, mas pelo acesso universal. Ouseja, precisamos ultrapassar a idéia de uma culturaa serviço de algo, da prevenção, da assistênciasocial, que não esteja a serviço unicamente de simesma, de dignificar a vida humana.

O aperfeiçoamento do processo democráticobrasileiro, inevitavelmente, deve caminhar nessadireção. Daí a importância de políticas culturaisque assegurem o reconhecimento e a visibilidadedas diversas práticas culturais originadas noterritório local, e que as focalizem como capitalcultural relevante ao desenvolvimento sustentáveldo país, capaz de dialogar com outros universossimbólicos. E não tratadas como um trampolim deascensão social para alguns mais talentosos, oucomo instrumento de política social localizada e deimpacto duvidoso4. A desigualdade social, aviolência que afeta cada vez mais os jovensbrasileiros, a má qualidade ou a ausência dosserviços públicos nessas comunidades não serãorevertidos com ações ingênuas e localizadas, sejamelas culturais ou não. Mas certamente serãoamenizadas se a cultura for, desde os bancosescolares, tratada como algo essencial à vidahumana. Podemos sim apostar que se o país tivercom a política cultural um compromisso de

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ampliar o acesso, de qualificar a educação pública,de fomentar a leitura e práticas locais quecomplementem políticas de desenvolvimento, emalgumas décadas o país estará melhor.

Notas[1] Comissão Mundial de Cultura e Desenvolvimento,Nações Unidas. Sobre as idéias defendidas pela Comissãoindico a leitura do relatório Nossa diversidade criadora, SãoPaulo, 1997, Ed. Papyrus.[2] MATSUURA, Koichiro. Secretário Geral da Unesco.Informe Mundial de Cultura 2000-2001, abertura.[3] FREITAS, Maria Virgínia. A formação de redes: aexperiência da Ação Educativa, in Juventude, Cultura eCidadania, p. 113, Iser, 2002.[4] Sobre este tema, ler o artigo publicado pela autora noBoletim nº 5 do Instituto de Estudos do Trabalho eSociedade, A fama versus os normais: ajuste social no mundodas celebridades, 2003.

Marta Porto

Levantes bárbaros

Maurício Torres

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Brasília, 20 de abril de 1997. Galdino Jesus dosSantos pega fogo.

Cinco jovens delinqüentes de classe média-altaassassinam o índio pataxó com requinte deperversão: ateiam-lhe fogo.

Homicídio? Sim, mas eles se explicam,“pensavam que se tratava apenas de um mendigo”.

Sintomaticamente, os jovens da capitalreproduziram com precisão milimétrica, sem osaber, o pior aspecto da mentalidade doscolonizadores, que relegavam a uma mesma valacomum todos outrora marginalizados, seresdegradados a uma condição não-humana.

Galdino fora a Brasília e dormia em espaçopúblico, uma parada de ônibus da Asa Sul. Defato, não seria difícil confundi-lo com ummendigo. Esse último, por definição genérica,nada mais é do que um desabrigado, supostamentedesempregado, completamente à margem dasociedade. A praça é pública, o mendigo é intruso.Ele não incorpora, orbita, desnecessário e parasita,a sociedade. E Galdino?

Galdino morre no Hospital Regional da AsaNorte.

Homicídio? Não. Brincadeira, só estavam sedivertindo, segundo os seus depoimentos. Aliás,“brincadeira” bastante comum. Só em Brasília,fora o 13º caso em apenas dois anos, de mendigose crianças de rua incendiados vivos.1

Galdino em chamas clareia a fenda aberta adividir um mundo de valores e idéias radicalmentedistintos. Chega a propor que um não reconheça ooutro como um ser igual. Ilustra a partição dascidades em inclusos e exclusos. A reação dos jovens“de dentro” é emblemática e exemplar do caráter

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alienígena do outro. Mostra incisiva de como aoíndio – ou ao morador de rua e a tantos outrosgrupos – é vedado o espaço público, mesmoporque esse é tratado como prosseguimento doespaço privado dos dominantes e cidadania acabapor ser um privilégio de classe.

Tal como nas Cidades invisíveis, a cidade parte-se em lado de dentro e de fora. Porém, se afronteira de Ítalo Calvino é invisível, as nossas sãoclaras e ostensivas, exibidas como um brasão. Aliás,como o brasão de armas da Polícia Militar doEstado de São Paulo. Cada uma de suas 18 estrelasremete a um marco histórico da corporação. O quea Polícia entende por “campanhas honrosas”elucida a concepção de povo a quem serve.Orgulhosamente, constam participações nomassacre de Canudos, na repressão aos traba-lhadores na Greve Operária de 1917, na derrubadado presidente João Goulart para instauração daditadura militar, entre outras. Enfim, o glamour sedeve, comumente, a repressões sobre levantespopulares. Causa calafrios imaginar o que nãopoderá a ser 19ª estrela.2

A violência para a polícia brasileira éconstitutiva da instituição e norma no controlecotidiano da população. A polícia age de maneiraexplícita. Protege a pequena elite pondo-se acombater toda uma população oprimida. Assumefunções de triagem, isolamento, controle de acessoa determinados espaços etc. E, a tomar pelonúmero – e perfil – de mortos vitimados pelapolícia, atua também como grupo de extermínio.Naturalmente, com a mira sempre nos excluídos: amajoritária parte dos mortos são negros, jovens ede bairros pobres.

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Porém, a todas as formas de dominação, atémesmo àquelas declaradamente autoritárias, évital uma ideologia a sustentá-las, a legitimá-las,levando a um consenso que viabilize seufuncionamento. A atuação militar na manutençãodas distâncias sociais encontrou seu endosso noque Teresa Caldeira chamou de “fala do crime”:um discurso eficiente a ponto de levar apopulação a, simultaneamente, temer e apoiar aação da polícia.

O belo trabalho da antropóloga mostrou, comaguçada análise de entrevistas realizadas entre aclasse média paulistana na década de 90, comopobreza, atraso, inflação, desemprego, frustra-ções pessoais, problemas de saúde etc. fusionam-se sintetizados no discurso da violência que setornou a “fala da cidade”. O crime presta-se àarticulação, como recurso retórico, da expe-riência da classe média apavorada. Ela projeta nasuposta violência de um estigmatizado “faveladofamigerado” as agruras e fracassos de seucotidiano. Comentando a entrevista com umasenhora da Mooca, Caldeira assinala a indis-tinção das imagens do nordestino e docriminoso: “É inconcebível para ela que pudesseser de outra forma. Ela tem de prender-se aosestereótipos disponíveis e aplicá-los rigorosa-mente para entender o absurdo dos assaltos e dasmudanças em sua vida e no seu bairro. Ascategorias são rígidas: não são feitas paradescrever o mundo de forma acurada, mas paraorganizá-lo e classificá-lo simbolicamente. Elassão feitas para combater a ruptura no nível daexperiência, não para descrevê-la”3. O discursodo crime, alimentado de medo, aversão ao outro

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e preconceitos, legitima a implantação de novastecnologias de exclusão social.

Em 24 de janeiro de 2001, pôde-se perceber apropagação clássica da “fala do crime”, em plenadevoção ao preconceito e à segregação, numaexemplar e sinistra comunhão entre mídia eintolerância. Nesse dia, a revista Veja trazia maisuma de suas inesquecíveis manchetes de capa: “Ocerco da periferia: Os bairros de classe média estãosendo espremidos por um cinturão de pobreza ecriminalidade que cresce seis vezes mais que aregião central das metrópoles brasileiras”. Oexemplo lapidar do imaginário da xenofobia socialera ilustrado por uma montagem emblemática:uma região central, harmônica, bela, arborizada,limpa e ensolarada era sitiada por uma lúgubre eameaçadora mancha acinzentada, a periferia. Aligação estabelecida no subtítulo da matéria entreperiferia e criminalidade dispensava qualquerexplicação. A segunda apresentava-se comopeculiaridade intrínseca à primeira. Da mesmaforma, as imagens de esgotos a céu aberto fundiamos conceitos de pobreza, de sujeira e de doença. Àimagem e semelhança do ideário do século 19,misturam-se, sinuosamente, elementos naturaisnegativos (relacionados à doença) aos com-ponentes sociais negativos inerentementevinculados com pobreza, atraso, promiscuidade,miséria, enfim, com os “miasmas sociais”.

Há muito que a proximidade física de pobres ericos no espaço urbano aguçou diferenças efomentou separações. O Estado encarregou-se emordenar esse campo, e entenda-se por isso separaros pobres dos ricos: para classes diferentes, espaçosdiferentes. As próprias políticas públicas relegaram

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às “margens” determinados grupos. A expressão“marginal” não fala de uma fronteira geográfica,mas, antes, designa uma condição social, étnica oucultural. O olhar do Estado é crivo dessa seleção ede quem recebe ou não a aura de cidadão.

Muitas vezes, a postura do Estado foi aindamais ostensiva. Tornou-se regra as políticasurbanas “desocuparem” áreas nobres da presençade uma população “indesejada”. No começo doséculo 20, Pereira Passos, no Rio de Janeiro,reformou o Centro, demoliu cortiços, empurrou apopulação para os morros e assistiu à formação dasprimeiras favelas. No final do século 20, PauloMaluf, em São Paulo, “re-organizou” o local ondehoje é a Avenida Água Espraiada e os moradores daFavela Jardim Edith, resíduos do progresso, foramembarcados em carrocerias de caminhões daprópria Prefeitura e basculadas ao léu, às margensda represa Billings, área de proteção de manancial.4

“Ao sofrer o assim das coisas, ele, no ocosem beiras, debaixo do peso, sem queixa,exemploso.”

Guimarães Rosa – Primeiras estóriasFrente a tantos episódios de espoliação,

sempre ouvimos falar da passividade e resignaçãoda população. É a repetição do preconceito queparece ter sete fôlegos: a natureza das massasbrasileiras é “pacífica, acomodada e não rei-vindicatória”, como disse Rui Barbosa. Essapremissa fez muito pela exclusão das massaspopulares da participação política nacional.Serviu de pilar ao intenso controle do Estadosobre iniciativas sociopolíticas populares:entendendo-se as camadas populares como massa

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inerte e inapta, elas seriam incapazes de exercerqualquer função decisória e, caso isso ocorresse,seria uma degeneração da política. Na terra daresignação harmônica, “conflitos sociais são vistoscomo excepcionais, como algo que não faz parteda ‘pátria brasileira’. Assim, por exemplo, asgraves contestações que marcaram a PrimeiraRepública teriam sido realizadas por elementosestranhos, apoiados em ideologias espúrias ealheias ao corpo social brasileiro, por natureza umcorpo sadio, sem conflitos”5.

A gênese desse pensar de Rui Barbosa, OlavoBilac, Gilberto Freyre e tantos outros contem-porâneos, a eles e a nós, encontramos bem escla-recida. Carlos Nelson Coutinho, em Cultura esociedade no Brasil, explica o processo demodernização econômico-social no Brasil comoalgo oriundo das elites dominantes e alheio àsclasses populares. Isso seria causa direta do nãodesenvolvimento – como coletivo e não comovalores isolados e individuais – de umaintelectualidade posta ao seu essencial papel:“expressar a consciência social das classes emchoque ou de um bloco de classes sobre o conjuntode seus aliados reais ou potenciais”6. LeandroKonder, referindo-se a falas de Farias Brito,Gilberto Freyre, Oliveira Vianna, Miguel Reale,Francisco Campos e outros, comenta oautoritarismo elitista de pensadores brasileiros: “Opluralismo da ideologia da direita pressupõe umaunidade substancial profunda, inabalável: todas ascorrentes conservadoras, religiosas ou leigas,otimistas ou pessimistas, metafísicas ou so-ciológicas, moralistas ou cínicas, cientificistas oumísticas, concordam em um determinado ponto

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essencial. Isto é: em impedir que as massaspopulares se organizem, reivindiquem, façampolítica e criem uma verdadeira democracia”7.

Os defensores do caráter resignado dobrasileiro passaram ao largo da violência que seabateu sobre os levantes ocorridos e doesvaziamento dos direitos inalienáveis do homemà medida que não foi possível configurá-los comodireitos de um cidadão. A privação foi além dosdireitos civis, mas, como um todo coeso, direitoscivis, sociais e econômicos, necessariamenteacessíveis a todo membro de uma determinadanação. Como, então, falar em resignação econformismo? Hannah Arendt mostrou muitobem como “a destruição dos direitos de umhomem, a morte de sua pessoa jurídica, é acondição primordial para que seja inteiramentedominado”8 e como a força da aniquilação morale social do indivíduo pode ser grande ao ponto de,numa situação extrema, propiciar que “milhões deseres humanos se deixassem levar, sem resistências,às câmaras de gás”.9

Triste de ver. Salvo algumas exceções (comoCruz e Souza, Machado de Assis, Manuel Antôniode Almeida, Lima Barreto e outros), grande partedo desenvolvimento literário brasileiro, emdiversos momentos, postou-se favorável ao estadode dominação sobre o povo. Em José de Alencar,por exemplo, temos o “vanguardista literário”10,escravocrata e politicamente conservador, a cultuara subjetividade alimentando a evasão, pois, aoolhar para o falacioso personagem do indianismo,desvia o foco do real problema, os escravos negros.Mesmo Castro Alves, o poeta da abolição,preocupava-se com a implantação da ordem liberal

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para a instauração do capitalismo, e não comqualquer projeto político e cultural dos escravos.Os naturalistas, atados a concepções geode-terministas, também prestam grande desserviçosocial ao pregar a miséria brasileira como uma falazconseqüência incontroversa de elementosperenemente fatais: clima e etnia. Desviam aatenção dos reais pólos da miséria: os mutáveisfatores sociopolíticos. A estrutura social existente,mesmo caracterizada como injusta e desumana, édefendida na medida em que, conotada comoinalterável, remete à resignação e ao conformismo.

Esse discurso respondeu pela propagaçãoideológica, uma verdadeira domesticação doimaginário, que aprofundou as raízes dos estigmas,perenemente reciclados e irradiados na fala urbanacontemporânea.

“Para o pobre os lugares são muito maislonge.”

Guimarães Rosa – Primeiras estóriasNa década 80, ouviam-se as classes mais altas

indignadas: “Não tem o que comer, mora numbarraco, mas tem televisão”. A década de 90manteve a frase, só substituiu a televisão pelovideocassete. Hoje, o já tradicional jargão formu-la-se modernizado, o desaforo do pobre é ter umaantena parabólica. Pode-se supor que tal in-dignação provenha de uma sensação de “invasão”:o pobre rompe a fronteira de separação social aopraticar (em prestações) o consumo que seriaexclusivo ao rico e próprio para diferenciá-lo. Atémesmo quando o empregado, classicamente,reproduz a relação capitalista, seu ato é re-preensível por ousar parecer-se com o patrão.

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Porém, o ícone do esbanjamento do pobre e daincapacidade de administrar seus recursos, nãopor coincidência, é a sucessão televisão-vídeo-parabólica. São exatamente veículos que pos-sibilitam certo acesso à informação e ao com-partilhamento de um mesmo universo simbólicoque os ricos.

Outros argumentos contribuem para atestar aincapacidade do pobre em planejar seus gastos, anatalidade, por exemplo. “Pobre não pode nemconsigo e ainda faz filho como coelho” é outroclichê repetido ao ponto da demência. A conclusãoé clara e propícia a legitimar atos como os golpesautoritários: deduz-se que o povo não temracionalidade, conhecimento e competênciaalguma para participação política.

Da mesma forma que o consumo, qualquermenção de inclusão política do pobre é aviltantepor também representar uma equalização decondições. Participação por voto, movimentossociais, direito à comunicação são encarados pelasclasses média e rica como uma decadência social,mesmo que seus padrões de vida continuemabsolutamente iguais.

O discurso que se articula pró-diferenciaçãotem um sotaque bastante colonial. Assim comoaproximavam-se índios e negros de animais, hojedifunde-se o estereótipo de que o pobre, por ter asobrevivência como preocupação imediata, limita-se às necessidades primais: ao pobre é importanteter uma casa, mas absolutamente irrelevante queseja bela. Mais um estigma a tornar ainda maisincompreensível e insultuosa qualquer reivin-dicação. Esses pensares são uma forma antiga eeficaz de sedimentação de distinção social. “Há,

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por exemplo, uma longa tradição em estudos deestética que afirma que o gosto das pessoas pobresé uma função da necessidade, as pessoas pobresnão teriam uma percepção estética [...] Uma versãorecente e sofisticada dessa perspectiva éapresentada por Bourdieu, para quem as classestrabalhadoras estão confinadas à ‘escolha donecessário’”11. Poucos preconceitos são tãoperniciosos como esse. A redução das populaçõesde baixa renda às necessidades básicas equivale anegar-lhes uma peculiaridade humana.

A coletânea de estigmas pariu ainda outrapérola: “Pobre não gosta de ler”. Se o exercício deimaginar precede o agir, nada mais seguro do queum discurso que corte o mal na fonte e evite quea população se imagine rompendo o cerco. Alémdo que ler seria muito atrevimento, só menor doque escrever.

“As coisas pelas idéias que nos sugerem.”Machado de Assis – Várias histórias

A editora Casa Amarela, como todas as outras,recebe uma grande quantidade de textos inéditos.Porém, chama a atenção que muitos dessesoriginais provenham das periferias12 de todo o país.Certamente, isso se deve ao fato de o carro chefe daeditora, a revista Caros Amigos, falar muito a essepúblico. Edições especiais foram inteiramentededicadas ao Hip Hop e à Literatura Marginal, porexemplo. Foi-se além da abordagem de temaspróprios às periferias, deu-se espaço para que seusmoradores fossem sujeitos do próprio discurso e,da sua forma e da peculiaridade do seu ângulo devisão, mostrassem seu mundo e sua singularidade.Naturalmente, encontrou-se aí uma alternativa

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para aqueles que, quase sem exceções, não tinhamespaço algum para publicarem-se ou, em ra-ríssimos casos, produziam de modo independentesuas próprias obras.

Sempre o meio editorial viu com muito mausolhos esses textos, muitas vezes motivo dechacotas, pelo crivo da correção normativa. Aprópria carta de apresentação denuncia a origemdo autor num autêntico uso da língua comoclassificador social. Antes mesmo de qualqueravaliação, o material é descartado.

A discriminação e o preconceito partindo daapreciação lingüística não é nada inédito. Por voltade 1570, Pero de Magalhães Gandavo haviadiagnosticado a causa da incivilidade dos índios: oproblema era fonético. “A lingua deste gentio todapela Costa he huma: carece de tres letras – scilicet,não se acha nela F, nem L, nem R, cousa digna deespanto, porque assi não têm Fé, nem Lei, nemRei; e desta maneira vivem sem Justiça edesordenadamente.”13

No extremo oposto da segregação lingüística,postam-se correntes que denunciam tentativas deimpor à população padrões normativos e códigoslingüísticos típicos da classe alta. Esses mo-vimentos pecam ao louvar a “fala autêntica eespontânea do povo” quando, muitas vezes, ditafala é resultado de uma privação, de um sistemasocial injusto. Sua apologia acaba por perpetuar acondição de marginalidade.

O atrativo dos textos da periferia deve-se aoque mostram de um ato consciente desingularização, de afirmação cultural. De umreclame vigoroso de valores que particularizemuma identidade e reivindiquem um espaço

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político. Não haveria como isso escapar àiniciativa de diferenciação pela linguagem. Com orusso Mikhail Bakhtin entendemos a língua comouma expressão e registro do mundo social.Aprendemos como a língua sempre se recria ecomo, nesta transformação perene, operam-seprocessos de dominação e de resistência. LeandroKonder dá exemplos ao comentar como na Romaantiga o vocábulo vilas, que designava as casas forados perímetros urbanos, gerou os pejorativos vilãoe vilania; ou ainda em relação ao verbo pedir, emlatim rogare: “Os pobres eram tolerados, desdeque se expressassem com humildade. Se, porém,ousavam reivindicar algo (em latim reivindicar eraarrogare), passavam a ser vistos como arrogantes.”14

Se a língua registrou os critérios de quemmandava, também marcou a resistência a eles:corte, o espaço do rei, gerou cortesia, mas também,cortesã; e “o termo ladrão, por exemplo, deriva delateranus, que era em latim a designação dossoldados que caminhavam ao lado do magistrado,zelando pela preservação da ordem e aproveitandopara roubar os circunstantes.”15

É bastante coerente, nos condicionanteshistóricos brasileiros, o temor pela manifestaçãoliterária da periferia. Essa “apropriação” da língua– e principalmente da sua escrita – faz daliteratura um campo de identificação comunalque possibilita e promove uma coesão vital paraexigir direitos e enfrentar os vários tipos de discri-minação. O ato segregador de repúdio à literaturamarginal enquadra-se na dinâmica da vigilância edisciplina, da manutenção do cartel dacomunicação e da privação dos atos populares quese põem além do seu controle instituído. À

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medida que essa população assume o papel decriador, o afronte começa, não ao questionar aviolência da divisão social, mas simplesmente emassinalar a sua existência. A contra-reação daideologia dominante é eficaz. Manifestaçõespopulares que poderiam representar resistência,desarranjar estruturas e cooperar no desman-telamento dos estereótipos convertem-se emartífices à reprodução de estigmas e de dominação.A incorporação pelo mercado é caminho rápido ecerto para isso. O produto da “indústria cultural”não se presta à reflexão, ao contrário, inclina-se àomissão dos conflitos, contradições e diferençassociais. Os exemplos disso são fartos. O marginalé muito bem aceito, desde que se limite ao pagodepasteurizado, ao futebol, ou ao exotismoornamental.

“Em cada signo dorme esse monstro: umestereótipo.”

Roland Barthes – AulaO caráter de literatura “recente” arma

sinuosas ciladas. Um grande perigo é o da“exotização”. Reduz-se ao pitoresco decorativonão só a competência da obra em retratar arealidade da periferia, mas, também, o valorliterário expresso no modo como esseselementos sociais incorporam-se como dadosestruturais nos textos, delineando um conteúdoque só poderia expressar-se nessa determinadaforma. A realidade e o sofrimento do homem daperiferia são equiparados a atrações circenses.Se, por um lado, a Literatura Marginal édepreciada só pela condição marginal de seuautor, ignorando-se sua qualidade, por outro,

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também há quem esvazie seu valor e a enalteça,só, pela condição marginal de seu autor. Essaarmadilha é particularmente perigosa na seleçãodo material a ser editado. Não publicar por sermarginal é postura tão discriminatória quantopublicar só por ser marginal, houve apenas ainversão do paradigma. Seria cair no nocivopaternalismo de ignorar sua qualidade esubsidiá-la em função da identidade do autor edo valor da causa. Esse seria um caminho certopara deter a maturidade do movimento. WalterBenjamin formulou bem a idéia de que a arte,para ser combativa, deve, antes, ser arte, casocontrário, é inócua.

A conversa com um autor, comprovadamente“marginal”, elucidou bem esse dilema.

Raimundo Arruda Sobrinho, o “Condicio-nado”, é um curioso escritor. Há muitos anos,como que fundido à paisagem, mora no canteirocentral da paulistana e elegante Avenida Pedrosode Moraes, na altura da Praça Ernani Braga. Diznunca ter vivido sem trabalhar e só aceitareceber algo se for em troca de seus escritos,pequenos ensaios em livretos que costura a mãoou em folhas avulsas. Muito visitado pelaaristocrática vizinhança do Alto de Pinheiros,incomoda-se com algumas coisas. “A coisa maistriste é ver a ignorância das pessoas que vêmfalar comigo e não prestam a atenção, nãoentendem o que digo. São vazias, não sei o quequerem comigo, não sabem ouvir”. E contatambém, já sem espanto, das muitas agressõesfísicas que sofreu nesses 26 anos morando nasruas. A percepção de Raimundo sobre o olharque o classifica é aguda e penetrante. Sabe ser

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agredido por ser, nas suas palavras,“psiquiatricamente escravizado” e “vítima de umcrime político”, assim como sabe que o assédioque recebe também se deve a sua condiçãomarginal: o excêntrico mendigo que escreve.

Fere-se com os jovens que o agridem à noite.Agride-se com as pessoas que “compram” seusescritos mas não lêem: “Faça da arte literária uminstrumento de incompreensão”.

A própria designação “Literatura Marginal”tem efeito ambíguo. Eu a uso, vejo importância,por força do contexto histórico, do ressaltar-se aperiferia como autora, como criadora, algosempre negado a ela. Vejo valor na expressão peloque traduz de consciência do local ocupado pelapopulação marginal e pelo seu efeito de afirmaçãode identidade comunal. Porém, não deixo de vernessa adjetivação a proximidade do risco deescorregar para a segregação dissimulada. Se oque o morador da zona nobre escreve éLiteratura, o texto de Ferréz não pode serconsiderado “outra” literatura (como muitofreqüentemente tem sido entendido) só pelacondição social do autor. Outro MovimentoLiterário, sim. E marcado não só pelo perfil doescritor, mas por uma preocupação temática euma linguagem e estruturação próprias paracontar seu mundo e, assim, gerador de um novocânone para toda a Literatura. Isto sim,verdadeira inclusão.

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Notas[1] FRANÇA, William. “Índio é queimado por‘brincadeira’ de estudantes”. Folha de S.Paulo. São Paulo,22 abr. 1997. Caderno Cotidiano, p. 3-4.[2] Segundo o site da Polícia Militar do Estado de São Paulo:“1ª estrela – 15 de dezembro de 1831, criação da MilíciaBandeirante; 2ª estrela – 1838, Guerra dos Farrapos; 3ª estrela– 1839, Campos das Palmas; 4ª estrela – 1842, RevoluçãoLiberal de Sorocaba; 5ª estrela – 1865 a 1870, Guerra doParaguai; 6ª estrela – 1893, Revolta da Armada (RevoluçãoFederalista); 7ª estrela – 1896, Questão dos Protocolos; 8ªestrela – 1897, Campanha de Canudos; 9ª estrela – 1910,Revolta do Marinheiro João Cândido; 10ª estrela – 1917,Greve Operária; 11ª estrela – 1922, Os 18 do Forte deCopacabana e Sedição do Mato Grosso; 12ª estrela – 1924,Revolução de São Paulo e Campanhas do Sul; 13ª estrela –1926, Campanhas do Nordeste e Goiás; 14ª estrela – 1930,Revolução Outubrista-Getúlio Vargas; 15ª estrela – 1932,Revolução Constitucionalista; 16ª estrela – 1935/1937,Movimentos Extremistas; 17ª estrela – 1942/1945, 2ªGuerra Mundial; 18ª estrela – 1964, Revolução de Março.”[3] Caldeira, Teresa Pires do Rio. Cidade de muros. 1ª ed.,São Paulo, Ed. 34/Edusp, 2000.[4] Cf. FIX, Mariana. Parceiros da exclusão. 1ª ed., SãoPaulo, Boitempo, 2001.[5] KOWARICK, Lúcio. A espoliação urbana. Rio deJaneiro, Paz e Terra, 1979. p. 23.[6] COUTINHO, Carlos Nelson. “Os intelectuais e aorganização cultural”. In: Cultura e sociedade no Brasil:ensaios sobre idéias e formas. 2ª ed., Rio de Janeiro,DP&A, 2000. p. 52.[7] KONDER, Leandro. “A unidade da direita”. Jornal daRepública, São Paulo, 20 set. 1979. p. 4. Apud Coutinho,op. cit., p. 56.[8] ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo. 3.reimpres., São Paulo, Cia. das Letras, 1998. p. 502. [9] Ibid., p. 506.[10] Como, ironicamente, o designa Carlos N. Coutinho(op. cit., p. 24).[11] Caldeira, op. cit., p. 69. A obra de Pierre Bourdieureferida é Distinction: a social critique of the judgment oftaste. Cambridge, Harvard University Press, 1984.

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[12] Da mesma forma que usamos o termo “marginal”,aplicamos a expressão “periferias”, não como designaçãoterritorial, mas como indicação de segmentos sociais.Portanto, os moradores de rua do Centro de São Paulo,assassinados a pauladas na madrugada de 19 de agosto de2004, são entendidos, aqui, como população de periferia.[13] Apud. RONCARI, Luiz. Literatura brasileira. 2ª ed.,São Paulo, Edusp/FDE, 1995. p. 51.[14] KONDER, Leandro. A questão da ideologia. SãoPaulo, Cia. das Letras, 2002. p 152.[15] Id.

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Estilhaços de ficção, literatura viva

Paulo Roberto Pires

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“Literatura partida”, um dos temas desteseminário, é imagem boa e, ao mesmo tempo,insuficiente para dar conta da produção ficcionalbrasileira contemporânea. É certo que ao se falarem literatura, hoje, fala-se mais em fissura do queem unidade, refere-se antes à fratura do queramificação. Mas a expressão, que alude de formainequívoca ao livro de Zuenir Ventura, Cidadepartida, também sugere divisões entre centro eperiferia, produção dominante e alternativa, visãode mundo bem assentada e deriva marginal. E aí épreciso radicalizar para tentar ver os desenhospossíveis de uma “literatura estilhaçada”.

Fragmentação foi, por muito tempo, palavra-mágica que, nas águas ralas do que se chamou“pós-modernismo”, nomeava tudo o que não seconseguia classificar ou, o que é pior, desistia-se deinterpretar. Aqui tem outro sentido, bem preciso:os estilhaços são as ocorrências do literário emlugares físicos e simbólicos até então comple-tamente excluídos da vida literária, dos MCs erappers até a anarquia virtual dos blogs.

Face às outras artes, aqui e em qualquer outrolugar, a literatura tem perdido relevância econseqüência estética e cultural. A música e ocinema, sobretudo, estão a anos-luz de distância nacapacidade de sintonizar-se com seu tempo e,também, de pôr em questão seus fundamentos.Um vanguardista comemoraria mais esta morte daliteratura, um beletrista iria denunciá-la comindignação. Noves fora, resta para a literatura umaadmirável liberdade, que é a dos despossuídos, dosperiféricos e dos desimportantes.

A vitalidade que se vê hoje na literaturabrasileira não é heróica, como em tempos de

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resistência política e cultural. Não tem agrandiloqüência de uma retomada, como se queratribuir ao cinema nacional, e tampouco se fazcom a criatividade organizada de movimentos eescolas. Novos autores despontam aqui e ali,revistas e blogs somem e aparecem ao sabor dosdownloads e uploads, críticos reclamam “qua-lidade”, escritores ameaçam ir “às vias de fato” nadefesa de posições de um jogo literário queconhece até lances sensacionalistas na disputa porevidências passageiras e glórias banais.

Tudo isso é sintoma, se acreditarmos noconceito de um crítico como Brito Broca, de umapujante vida literária1. Tudo isso é indício de queescritores, editores, críticos e leitores deixaram oalheamento dos anos 80 e de parte dos 90 paravoltar, de alguma forma, a relacionar-se. Rom-peu-se, por cansaço ou atitude, uma hibernaçãoiniciada nos últimos estertores da ditadura,quando começa a aguar a idéia de uma “literaturacomo missão”, e que se prolongou pelo invernodo “tudo está dito”, o AI-5 da criatividade que sedecretou a partir da “morte das grandes nar-rativas” apontada por Jean-François Lyotard emO pós-moderno.

Ao despertar, cada um dos atores da vidaliterária encontrou, como é próprio ao fim dehibernações, uma paisagem muito diferente. Nohorizonte, o mercado cultural lançava novas luzes– e sombras – sobre práticas e costumes, elegendoo entretenimento como valor e o audiovisualcomo forma privilegiada de difusão. É precisoprofissionalizar-se segundo padrões internacionais– e bem o entenderam os editores, que começama esboçar novas relações com os autores (até então

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excessivamente confinados num esquema defidelidade e afetividade) e transformam livros emprodutos bem acabados e competitivos quepassam a fazer parte, de forma mais agressiva, nalógica dos blockbusters da cultura.

Se a profissionalização soou como um alerta paraescritores que, atônitos, viam alguns de seus paresfigurar em manchetes pelos polpudos adiantamentosrecebidos, para a grande maioria funcionou comoum estranho canto da sereia. O mercado acenavacom modelos narrativos de sucesso garantido (opolicial e o romance histórico, principalmente pelafacilidade com que poderiam ser adaptados para ocinema e a TV) e mostrava-se mais refratário do quese poderia supor ao surgimento de novos nomes. Ofenômeno Paulo Coelho era exemplar, pela consa-gração de um modelo narrativo e o monopólio deuma fatia deste mercado – menos por umaimposição calculada do que pelo imponderável quesempre cerca este tipo de desempenho editorial.

Neste período, os leitores aumentaram emnúmero – pelo menos a se julgar pelo incremento detítulos e tiragens2 – mas não em qualificação. Ainequívoca afirmação daquele que se poderiaconsiderar um “leitor de massa” não foi acom-panhada pela disseminação dos “leitores profis-sionais”, aqui entendidos como jornalistas, editores,professores e, é claro, os próprios escritores. Tambémestes, os que têm na leitura parte de suas obrigaçõesprofissionais, praticamente desconhecem a produçãocontemporânea, em geral confinada no circuito daspequenas editoras, agraciadas com eventuaisdestaques em jornais e revistas e penalizadas pelashistóricas dificuldades de distribuição comercial domercado editorial brasileiro.

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A disseminação da internet a partir da segundametade dos anos 90 contribuiria fundamentalmentepara transformar de forma radical esta paisagemdesolada. A literatura – e o literário – não passariamincólumes pela aceleração que a web impôs àprodução e difusão de informações. Com asimplificação crescente das formas de acesso, agrande rede começou a ser povoada por um númeromaior de textos que, entre muito lixo, pornografia,notícias, pesquisas e tecnologia, diziam-se...“literários”. É impreciso e redutor afirmar que uma“demanda reprimida” acabou escoando pelainternet, mas é fato que ela se mostrou o meio idealde expressão para escritores jovens e nem tão jovensque se sentiam excluídos da vida literária ou, o queé melhor, não estavam nem aí para estes parâmetros.

Do Rio Grande do Sul vieram as primeirasexperiências mais organizadas: TXT Magazine (deAndré Takeda), Proa da Palavra (editada por DanielGalera) e o Cardoso On Line, o COL, que começoucomo um e-zine enviado por e-mail e em 278edições3, já transformado num site, reuniu gente quehoje já tem bibliografia como Daniel Galera (Dentesguardados), Daniel Pellizzari (Ovelhas que voam seperdem no céu) e Clarah Averbuck (Máquina depinball). Teoricamente, tratava-se de “revistasliterárias” difundidas por um novo meio – o que,como veremos, não é um detalhe tão pequeno assim.

A idéia de revista literária parte de um pressupostobásico: a de um criador, ou grupo de criadores, quedispõe de um meio próprio de expressão,independente de injunções do mercado e da lógicaprodutiva, para fazer circular suas criaturas. No papel,são uma espécie de ante-sala do livro, este o meiocanônico e consensual de entrada na “vida literária”

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tal como a conhecemos ortodoxamente. A formatradicional da revista literária obedece, com pequenasvariações, a um mesmo modelo: jovens e estreantessão publicados lado a lado com nomes consagrados,que de certa forma os avalizam ou pelo menosajudam a chamar a atenção sobre seus nomes.

O que vem acontecendo na internet é em parte,e somente em parte, análogo a este processo. Poisnos sites independentes e, principalmente, nosblogs, não há necessidade alguma de legitimaçãointelectual e literária. No que já se chama deblogosfera reina uma saudável anarquia que, doponto de vista literário, marca um espaço vira-lata,sem qualquer pedigree intelectual. Como se sabe, épossível blogar o cotidiano de uma grávida, a vidaamorosa de um garoto, comentários e bastidoresde notícias, informações de um fã-clube, etc. Oque faz o literário na internet é, basicamente, aintenção – e aí entramos num terreno minado peloespontaneísmo e pela pretensão.

A literatura produzida na internet e por eladifundida é reconhecida como tal só e somenteatravés de um pacto múltiplo que se firma entreescritor (que de alguma forma declara estarrealizando algo mais do que um simples diário),leitor (que identifica no que lê algum tipo detranscendência do umbigo do blogueiro) e crítico(que se arrisca a de alguma forma emprestarlegitimação ao vazio completo de referências que éa web). Esta equação, que é o frágil processo delegitimação intelectual do literário, completa-se seo pacto for ainda firmado por um editor, que aotransformar blog em livro dá a bênção final,transformando a escrita dispersa no virtual noobjeto canônico da literatura.

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Mas é graças a esta incerteza radical, a esta terrade ninguém, que começam a despontar na ficçãobrasileira nomes que, de alguma forma, vencem asbarreiras tradicionais da difusão e, à margem domercado e suas convenções, conseguem o que é –ou deveria ser – o objetivo último de um escritor:ser lido pelo maior número de pessoas possível,dialogar com seus pares e com os críticos, manter asinceridade criativa que cimenta com solidez umaobra. Pois o garoto de qualquer idade que começaa blogar está mais solitário do que um náufrago depiada, soltando suas garrafinhas em busca de umpedido de socorro. Ao iniciar num blog seusexercícios de ficção e escrita, um autor não esperadinheiro ou consagração: manter um blog é atogratuito, felizmente “não serve para nada” a não sero exercício da escrita.

Esta mudança de atitude do escritor, que prefereblogar a chorar pela desatenção das editoras, acabaalterando de forma substancial o trabalho de umeditor, habituado a receber cotidianamente remessase mais remessas de originais. Classicamente e namaioria das vezes, trata-se de um trabalho de rápidareação às propostas que chegam pelo correio ou pelarecomendação de interlocutores qualificados.Algumas horas de navegação podem, no entanto,mudar completamente esta atitude, pois o que se lêem meio ao caos de informação da web são textosmais ou menos brutos de escritores mais ou menostalentosos. Não há placas indicando o caminho, épreciso perder-se para ter o melhor dos encontrospossíveis, a primeira leitura de um texto sedutor doqual se desconhece a autoria. Descobrir é um dosverbos que um editor tem sempre em mente – e aweb só o potencializa.

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Todas estas transformações alteram de tal formaa vida literária que a complexa equação escrever-publicar-ler-criticar ganha uma surpreendente – einteressante – carga política. O filósofo francêsJacques Rancière viaja à Grécia4 para lembrar que averdadeira política só se pode fazer pelodesentendimento, ou seja, pela atitude de alguémnão-autorizado a falar determinado assunto queresolve tomar a palavra em um lugar proibido e nomomento em que não se espera nenhuma fala.Instala-se aí o desentendimento radical e, com ele,a verdadeira discussão e ruptura que têm poderefetivamente transformador.

A literatura estilhaçada é a potencializaçãomáxima da política. Em torno dela, que não temlugar nem voz pré-definidos, estabelece-se omáximo desentendimento. E, com ele, a vitalidademais radical.

Notas[1] É impossível a meu ver abordar o texto literário semcompreender o que se desenvolve a seu redor, resumido peloconceito de “vida literária”. Tão importante quanto o livroem si é o ambiente que o influencia e que por ele éinfluenciado. Críticos, editores, jornalistas, premiações,conferências, universidades, boemia, enfim, tudo é materialde formação de uma época da literatura, como odemonstrou magnificamente Brito Broca e sua Vida literáriano Brasil – 1900.[2] Segundo pesquisa do Sindicato Nacional dos Editores deLivros, o SNEL, em 1990 publicaram-se 22.749 títulos, queresultaram na venda de 212.206.449 exemplares. Em 2000,foram 45.111 títulos (mais do que o dobro, portanto), comuma venda de 334.235.160.[3] É possível ler os arquivos emhttp://www.cardosonline.com.br/[4] RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento. Rio de Janeiro:Editora 34, 1996.

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A literatura brasileira na era damultiplicidade

Beatriz Resende

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Ao iniciarmos qualquer observação sobre aprosa de ficção brasileira contemporânea,especialmente a praticada da metade dos anos 90até agora, percebemos, de saída, que precisamosdeslocar a atenção de modelos, conceitos e espaçosque nos eram familiares, há pouco tempo atrás.Vamos ter que nos mover de jargões tradicionaisno trato do literário e, saudavelmente, nosimiscuirmos a termos que vão da antropologia aovocabulário do misterioso universo da infor-mática, tudo isso atravessado pelas necessáriasreflexões políticas. Gramsci vai parar ao lado doBill Gates, ao som de muito funk e rap,atravessando nossa familiar bossa nova, que omercado se encarregou em transformar em músicalounge, ou seja, de elevador.

Diante da produção literária recente, vale apena tentarmos formular algumas constataçõesiniciais para mapear, minimamente, o assunto. Aprimeira evidência que salta aos olhos, diante doobjeto escolhido, é a fertilidade dessa forma deexpressão entre nós, hoje. Apesar das queixasrepetidas de que há poucos leitores, o livro vendepouco etc. etc., é fácil constatar que se publicamuito, novos escritores surgem todos os dias, fala-se de literatura, consome-se literatura. Nas grandescidades, novas livrarias partilham o mesmo espaçocom outras formas de lazer, tornando o convíviocom o livro mais sedutor. A repetição da FestaLiterária Internacional de Paraty, em 2004,conseguiu apresentar escritores brasileiros ao ladodos nomes mais importantes do cenário inter-nacional em evento que se tornou, em aparentecontradição, ao mesmo tempo cult e popular.Surgiram, nos últimos anos, novos prêmios

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literários com valores bem maiores. Os jovensescritores não esperam mais a consagração pela“academia” ou pelo mercado, vão publicandocomo for possível, sobretudo a partir das pos-sibilidades oferecidas pela internet. E mais,formam listas de discussão, comentam uns aosoutros, encontram novas formas de organização,improvisam-se em críticos. A maior novidade,porém, seguramente está na constatação de quenovas vozes surgem a partir de espaços atérecentemente afastados do universo literário.Usando seu próprio discurso, vem hoje, da peri-feria das grandes cidades, forte expressão artísticaque, tendo iniciado seu percurso pela música, peloteatro e pela dança, chega agora à literatura.

A segunda constatação, ainda que sob o risco derepresentar algum namoro extemporâneo com ocânone, diz respeito à qualidade dos textos e aocuidado com a preparação da obra. Esta poderiaser uma contradição em relação à primeira, masnão é. Sobrevivendo às facilidades do computador,desprezando a obviedade dos programas de criaçãode texto, a prosa que se apresenta vive momento degrande qualidade. Em praticamente todos os textosde autores que estão surgindo, revela-se, ao lado daexperimentação inovadora, a escrita cuidadosa, oconhecimento das muitas possibilidades de nossasintaxe e uma erudição inesperada, mesmo nosautores muito jovens do pós-2000. Imaginação,originalidade na escritura e surpreendente reper-tório de referências da tradição literária (sobretudoa moderna) mostram que, como já disse uma vez,parece que, com as costas doendo menos e acorreção imediata, nossos escritores estãoescrevendo tão rápido quanto bem.

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A terceira constatação, e talvez a maisimportante para esta reflexão, é conseqüência dafertilidade, da juventude e das novas pos-sibilidades editoriais: a multiplicidade. Multi-plicidade é a heterogeneidade em convívio, nãoexcludente. Esta multiplicidade se revela nalinguagem, nos formatos, na relação buscada como público leitor e – eis aí algo de realmente novo– no suporte, que, na era da comunicaçãoinformatizada, não se limita mais ao papel ou àdeclamação. São múltiplos tons, múltiplos temase, sobretudo, múltiplas convicções sobre que éliteratura, postura que me parece a maisinteressante e provocativa nos debates que vêmsendo travados.

Num primeiro momento, a evidência damultiplicidade como expressão tão forte poderemeter às contingências do momento que foichamado de pós-moderno com a substituição dosdogmas modernistas por movimentos plurais,posteriores à superação de classificações fundadasem dicotomias. Como disse Andreas Huyssen, emensaio fundador1, o pós-modernismo passava aoperar “num campo de tensão entre tradição einovação, conservação e renovação, cultura demassa e grande arte”, o que já indicaria o convíviode diferenças, também na literatura.

No entanto, não é para a identificação de maisum “estilo de época” que apontamos, bem aocontrário. Ainda que a constatação dessa fricçãoproveitosa entre múltiplas possibilidades de criaçãoseja evidente, outras questões, me parece, merecematenção, sobretudo por certo deslocamento que jápodemos constatar, depois de desilusões equestionamentos em relação ao movimento de

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globalização da economia e da informação quecaracterizou os tempos pós-modernos.

No espaço social, rapidamente a intolerânciaultrapassou as esperanças de convivência pacífica eproveitosa entre expressões culturais diferentes,definitivamente agravada pelos conflitos étnicosque tomaram proporções ameaçadoramentemundiais depois do 11 de setembro de 2001. Poroutro lado, a força da globalização dos benssimbólicos e da circulação da mídia vemacarretando, como previsto desde o início, umahomogeneização do gosto, das expectativas, doconsumo representada pela americanização que seespalha por onde as redes midiáticas do Império seestendem. Nesse sentido, a força da globalizaçãoatingiria o imaginário e as práticas culturais, emflagrante conflito com a diversidade e opluralismo. De um lado ficaria a positividade dastrocas culturais mais rápidas e fáceis e, de outro, aimposição inevitável da homogeneização. Numlado do cabo de guerra estariam os ideais deafirmação de identidade cultural/nacional, deoutro a imposição uniformizadora que emanariadas forças econômicas dominantes, especialmenteas dos EUA. Só que não vivemos mais tempos deoposições nítidas, unívocas, nem a organizaçãogeopolítica da cultura e da arte se dá porbinarismos ou paralelismos. Pelo espaço labirínticoerguido sobre solo movediço em que se dá amultiplicação e a difusão dos bens culturais, vãosurgindo elementos que, felizmente, tornam aquestão tão mais rica quanto complicada. Entreestas características, a mais estudada tem sido acaracterização da cultura como fenômeno dehibridação (Canclini), mas outras aparecem de

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formas mais ou menos fortes em momentosdiferentes. Entre centro e margens aparecemolhares oblíquos, transversos, deslocados queterminam por enxergar melhor.

É nesta obliqüidade dos discursos anti-hegemônicos que aparecem recursos que dãoformas múltiplas à criação literária contem-porânea: a apropriação irônica, debochada mesmoem alguns casos, de ícones do consumo; airreverência diante do politicamente correto; aviolência explícita despida do charmehollywoodiano; a dicção altamente pessoalizada,voltada para o cotidiano absolutamente privado; amemória individual traumatizada seja pormomentos anteriores da vida nacional, seja pelavida particular; a arrogância de uma juventudeexcessiva; a maturidade altamente intelectualizada;a escrita saída da experiência acadêmica e assimpor diante, como continuaremos vendo.

Deste modo, a multiplicidade de nossaliteratura aparece como fator altamente positivo,original, reativo diante das forças homoge-neizadoras da globalização. De algum modo, essepluralismo – que se constitui por acúmulo demanifestações diversas e não pela fragmentação deuma unidade prévia – garantiria várias vozesdiferenciadas ao invés de sonoridades em eco oumero acúmulo reunido sem critérios.

Frederic Jameson, em ensaio sobre aglobalização como questão filosófica2, de 1998,identifica na literatura um espaço de resistência àglobalização da cultura, especialmente na AméricaLatina, fenômeno que não se estenderia ao cinemae à televisão. Segundo Jameson, a linguagemprotegeria as produções literárias provocando um

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fenômeno de reversão, com a literatura do boomlatino-americano, por exemplo, invertendo adireção e conquistando o mercado norte-americano e europeu. Apesar de a afirmação sercorreta, constatamos que, mesmo tendo seaproximado mais do pensamento latino-americano, com referências a teóricos como NéstorGarcía Canclini e George Yúdice, a forte críticaque é feita por Aijaz Ahmad ao pensadoramericano, desde 1986, com o ensaio “A retóricada alteridade de Jameson”, parece ainda não tersurtido completo efeito. Ahmad condenavanaquele texto a generalização contida na afirmaçãode que “a alegoria nacional é a forma principal, atémesmo exclusiva, de narratividade do assimchamado terceiro mundo”3, parece ainda não tersurtido efeito. Da literatura latino-americanaJameson continua conhecendo apenas o chamadoboom, e a diferença que o fenômeno guarda com aliteratura brasileira é apenas levemente percebidapor menção a Guimarães Rosa. Nem por isso, eesta é a razão pela qual nos referimos ao ensaio,faltou a Jameson acuidade na análise. Esta é argutaao constatar que ao se fazer a crítica aomodernismo ocorreu também uma libertação emrelação a padrões europeus, mas, sobretudo, aoreconhecer na multiplicidade um lugar deresistência e liberdade, fazendo com que naAmérica Latina essa propriedade seja celebradacomo contrária à unidade opressiva.

Tais características, além de não seremextensíveis à mídia cinematográfica ou televisiva,encontrariam muitas diferenças no que dizrespeito à força da manifestação popular que érepresentada pela música no Brasil, o que viabiliza

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um convívio, absolutamente peculiar, entreformas de consumo e de difusão como as dasrádios e TVs comunitárias com o poderiomultinacional das gravadoras.

Neste momento, o que nos interessa é apeculiaridade do caso da literatura, e vemos que a“imunidade” da literatura, indicada por Jameson,frente aos preceitos de gosto e às manifestações daeconomia de mercado e da sociologia do consumocertamente existe, mas não é tão nítida como podeparecer vista de fora. As relações perigosas daliteratura com o cinema são hoje um diferencialcomplexo. O fenômeno de vendas nacional einternacionalmente chamado Paulo Coelhocolocou uma marca de confusão nas avaliaçõesdepois de o autor ser canonizado pela AcademiaBrasileira de Letras. Outra variação é a via de mãodupla trilhada no desejo de alcançar sucesso nomercado ou prestígio entre a academia. Se ofascínio exercido sobre a literatura pelo mercadotelevisivo e cinematográfico, através da possi-bilidade de absorver adaptações, já é bemconhecido, resta ainda por ser compreendida aimportância que tem para autores que são tambémícones pop (ainda que se trate de um pop erudito),como Caetano Veloso e Chico Buarque deHollanda, o reconhecimento da crítica espe-cializada em literatura seja em jornais ou nauniversidade. Caetano prefere ter suas letras demúsica reunidas e apresentadas como poesia porum professor a vê-las publicadas em um songbooke Chico Buarque parece querer que a crítica seesqueça do estupendo compositor que por entrenós circulou desde 68 para identificá-lo comoromancista que de fato é, capaz de trancar-se em

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seu apartamento parisiense, comprado com osuado trabalho na música popular, paradesenvolver identidade mais recente, a de escritor.

Se quisermos identificar as possibilidadesplurais de nossa prosa de ficção, podemos partir doimportante elenco de escritores que tornou adécada de 90, especialmente a partir de suasegunda metade, um momento bastante rico,como Milton Hatoum, que já surge maduro,Rubens Figueiredo, Marçal Aquino, BernardoCarvalho e, num caso peculiar, Paulo Lins. Nestapalavra de retórica a que o termo geração se viureduzido incluem-se, também, sobreviventes,aqueles que colocaram a literatura em sintoniacom os tempos pós-modernos que se anunciavam,e apresentaram uma outra dicção com aemergência de novas subjetividades, da tensãoentre local e global, da desterritorialização, daruptura com os cânones ordenadores vigentes, deabsorção de eventuais recursos midiáticos naconstrução do texto e, sobretudo, com a ausênciade uma preocupação em garantir as barreiras queiam sendo rompidas entre alta cultura e cultura demassa. Podemos citar Rubem Fonseca, mas faloprincipalmente daqueles que, já reconhecidos poruma obra anterior, continuaram a escrever comcrescente interesse e maior impacto, como SilvianoSantiago e Sérgio Sant’Anna.

Em todos estes casos estou me referindo a umaficção de importância, que merece atenção, a umaliteratura robusta, a propostas de criaçãoinovadoras, convencida que estou de que aliteratura brasileira vive um de seus grandesmomentos. Para falar de forma mais enfática damultiplicidade na literatura brasileira, passaríamos

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pelo grupo de finais dos anos 90 – como MarceloMirisola, Luiz Ruffato, Adriana Lisboa, AndréSant’Anna, Marcelino Freire e outros – para chegara jovens escritores que vêm surgindo na cenaliterária brasileira a partir desta virada de século,observando a profunda diferença entre suas formasde expressão, como Santiago Nazarian, João PauloCuenca, Paloma Vidal, Joca Terron, ClaraAverbuck. Bastariam estes exemplos e já estaríamosdiante de escritas bastante diversas, indo dairreverência iconoclasta da maior parte aosrepresentantes de um outro grupo, preocupadocom a sofisticação da escrita e estabelecendointeressante diálogo entre literatura e outras artes,como a música e as artes plásticas, com é caso deAdriana Lisboa, Michel Laub e Rodrigo Naves.Indico aqui um elenco resumido, que facilmentepoderia ser acrescido de outros autores, capazes depraticar uma escrita literária que, mesmofabricando um presente cheio de urgências, emnada foi atingida pela pressa característica dos diasatuais ou pelas facilidades dos computadores(como já indicou Nelson de Oliveira ao publicar acoletânea Geração 90, manuscritos de computador).

Tanto a fertilidade como a multiplicidade têmmuito a ver com a realidade vivida pelo país hoje,sob diversos aspectos. Em plano maior, asolidificação do processo democrático garante maisdo que o inspirador clima de liberdade, ademocracia plena assegura a representação popularnas instâncias de poder, a organização e a expressãodos movimentos populares e, sobretudo, provocauma inusitada preocupação pela necessidade deinclusão, por diversas formas, de todas as camadasda população no processo de criação e difusão da

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cultura. A peculiaridade da transição do regimeautoritário para o democrático, entre nós,terminou por abreviar o luto vivido em relação aosanos de chumbo, de forma a que, hoje, os novostempos possam ser vividos, não sem a memória,mas sem o peso que ainda aparece em países ondeos crimes da repressão tiveram as dimensões doocorrido na Argentina, por exemplo. Os novoscriadores surgem libertos de qualquer necessidadede denúncias (anos 70/80) ou exaltação donacional reapropriado (anos 80). No plano maisdetalhado da organização econômica e política dopaís, cabe chamar atenção para a descentralizaçãoda produção literária, do início do modernismo atébem recentemente, concentrada predominan-temente no Rio e em São Paulo, com eventuaisocorrências no Rio Grande do Sul e Pernambuco.Note-se que não me refiro aqui ao estado natal dosescritores, mas ao local de produção.

Hoje a literatura vem ainda de São Paulo e doRio de Janeiro, mas também de Curitiba,(Cristóvão Tessa, José Castello), Florianópolis(Marcelo Mirisola) ou Centro Oeste. No Pará,Edyr Augusto Proença escreveu Moscow, espécie deromance/rap, diferente de tudo o que possamosesperar vir do Norte. A prosa de RaimundoCarrero não tem nada a ver com a herançaregionalista, mesmo sendo o autor tão nordestino.

As novas relações do livro com o mercadoeditorial aparecem através da maior rapidez comque o autor é editado, seja pela utilização dainformática como suporte, seja pela multiplicaçãode pequenas editoras por todo o país. Só para citaralgumas, podemos lembrar Livros do Mal, dePorto Alegre; Ciência do Acidente, com sua

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coleção “Tumba do Cânone”; Lamparina; Travessados Editores, de Curitiba, responsável pela luxuosaedição ilustrada da tragicomédia-irônico-pornô deDécio Pignatari Céu de lona; e, principalmente, a 7Letras, que, com a coleção “Rocinante”, vemgarantindo uma edição cuidada e bem acabada,inserida em catálogo de peso, ao primeiro livro devários escritores.

Dentre as possibilidades de uso da internetcomo meio de tornar um texto literário público, ouso dos blogs é o que mais debate tem provocado.Clara Averbuck talvez seja a escritora que, até omomento, encontrou maior repercussão para seuslivros, publicados de forma simultânea à escrita emseu blog Brasileira Preta, com o primeiro livro,Máquina de pinball, levado para teatro comdireção de Antônio Abujamra e comprado porMurillo Salles para ser transformado em filme. Écurioso ver como a jovem escritora percebe o blognão como uma forma de escrita, mas de edição.Sobre o segundo livro, Das coisas esquecidas atrás daestante, escreve no próprio blog, insistindo, elatambém, na busca de eliminar “intermediários”.

Existem livros de contos. De poesia. Decrônicas. Por que não uma coletânea detextos publicados em um blog? Afinal,como eu estou cansada de dizer mascontinuo repetindo porque nunca paramde perguntar, blog é apenas um meio depublicação para o que quer que o autor,dono e soberano do blog, queira escrever.Receita de bolo, resenha de disco,resmungos mal-amados, histórias,realidades, mentiras. No caso do meulivro, só não tem receita de bolo. Umlivro, uma coletânea de um blog, que é

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apenas um meio de publicação para queos escritores não precisem de inter-mediários entre ele e os leitores. Nãoexiste literatura de blog, só blog comomeio de publicação para escritores e seustextos. Que podem perfeitamente serpublicados também em livro.4

Equacionado o tema da multiplicidade, cabeapurar o olhar sobre estas obras publicadas nas úl-timas décadas, o que fará com que identifiquemosque, dentro da diversidade, há, certamente, ques-tões predominantes e preocupações em comumque se manifestam com mais freqüência.

A primeira dominante que quero apontar é apresentificação, a manifestação explícita, sob formasdiversas de um presente dominante no momentode descrença nas utopias que remetiam ao futuro,tão ao gosto modernista, e de um certo sentidointangível de distância em relação ao passado. Emartigo recente, onde analisa as formações culturaismanifestas em Buenos Aires no ano de 2000,Josefina Ludmer destaca, em relação à Argentina,que “o caminho até a literatura era o desejo depoder ver, em ficção, “as temporalidades dopresente vividas por algumas subjetividades”, emmanifestações onde “as formações culturais dopresente se superpõem, coexistem e se interpretammutuamente”5. Embora sob alguns aspectos aliteratura brasileira contemporânea se afaste daprodução argentina (ainda que em outros,evidentemente, também se aproxime) entre nós osentido de presente aparece também com força ede múltiplas formas. Há, na maioria dos textos, amanifestação de uma urgência, de uma presen-tificação radical, preocupação obsessiva com o

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presente que contrasta com um momento anterior,de valorização da história e do passado, quer pelaforça com que vigeu o romance histórico, quer pormanifestações de ufanismo em relação a momentosde construção da identidade nacional. Não é só naliteratura que isto acontece, mas também nas artescênicas – com as performances –, nas artesplásticas, que eliminaram o suporte preferindoarriscar na efemeridade das instalações, e navideoarte.

Na literatura, o sentido de urgência, depresentificação, se evidencia por atitudes, como adecisão de intervenção imediata de novos atorespresentes no universo da produção literária,escritores moradores da periferia ou os segregadosda sociedade, como os presos, que eliminarammediadores na construção de narrativas, comnovas subjetividades fazendo-se definitivamentedonas de suas próprias vozes. Na recusa dosmediadores tradicionais, essas novas vozesutilizam não apenas recursos de estilo, como odos narradores pessoalizados, mas buscamtambém o imediato em ações dentro do circuitoeditorial, com a substituição, em alguns casos,dos editores, com a criação de novas editorasonde tenham mais participação. O que interessaé, sobretudo, o tempo e o espaço presente,apresentados com a urgência que acompanha aconvivência com o intolerável.

Diante das novas configurações do espaçogeopolítico e de diferente organização do tempo,premido pela simultaneidade, as formaçõesculturais contemporâneas parecem não conseguirimaginar o futuro ou reavaliar o passado antes dedarem conta, minimamente, da compreensão deste

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presente que surge impositivo, carregado ao mesmotempo de seduções e ameaças, todas imediatas.

A presentificação me parece também se revelarpor aspectos formais, o que tem tudo a ver com aimportância que vem adquirindo o conto curto oucurtíssimo em novos escritores, como FernandoBonassi e Rodrigo Naves, ou nas pequenas ediçõespara serem lidas de um só fôlego. Exemplo da forçae do gosto pelos textos curtos pode ser encontradono interessante volume Os cem menores contosbrasileiros do século, organizado por MarcelinoFreire, onde Ítalo Moriconi, em microprefácio,apresenta o gênero: “É no lance do estalo que acena toda se cria”6. Bastam, porém, dois exemplospara mostrar que na idêntica forma presente,imediata, urgente do conto muito breve amultiplicidade continua.

Assim aparece no volume de Ronaldo Cagiano,sem título:

Quando dei por mimJá havia este cárcere

E, de Marçal Aquino, o ótimo “Disque-denúncia”:

Cabeça?É.De quem?Não sei. O dono não tá junto.

Neste efeito ou atitude que é a presentificação,seria até redundante voltar a falar da partilha doespaço de criação entre o livro impresso e aspossibilidades do virtual, de tão evidente que éeste aspecto.

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Passo agora para uma segunda constante quevenho identificando em narrativas diversas quepouco parecem ter em comum: o retorno dotrágico. A presença do trágico nas sociedades destemomento pós-globalização não é exclusividade doliterário. Está presente no cotidiano, expõe-se nasmídias, incorpora-se ao vocabulário maiscorriqueiro. Nas artes, tem-se manifestadofortemente no teatro – entre nós, no Brasil, comuma retomada mesmo da tragédia como forma quefreqüenta os palcos. Recentemente, vimos umdocumentário como o Ônibus 174, de JoséPadillha, assumir a forma de uma tragédia clássica,construída com unidade de assunto, tempo eespaço. A arte híbrida e tão atual da performanceincorporou-se à própria linguagem na visualidade,na linguagem, na relação com o público. Amanifestação de forte sentimento trágico queaparece na prosa pode se reunir ao sentido depresente de que já falei, já que nas narrativasfortemente marcadas por um pathos trágico a forçarecai sobre o momento imediato, presente, emtextos que tomam o lugar de formas narrativas quese tornaram pouco freqüentes como as narrativashistóricas, as épicas ou as que se desenvolvem emum tempo mítico/ fantástico de temporalidadeindefinida. Cabe lembrar que, de todos os gênerosda poética clássica, o que se realiza sempre numpresente é o trágico.

É evidente que são características do momentoque a cultura vive hoje, em termos de organizaçãodo mundo, que fazem com que elementos como osentido de urgência, com predomínio do olharsobre o presente, e a familiarização com o trágicocotidiano atravessem múltiplas obras. O trágico

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estabelece um efeito peculiar com o indivíduo,supera-o e traça uma relação direta com o destino.Trágico e tragédia são termos que se incorporaramaos comentários sobre nossa vida cotidiana,especialmente quando falamos da vida nas grandescidades. Vamos então perceber que é ainevitabilidade do trágico que aparece em dois dosmais importantes autores da prosa contemporânea,Luiz Ruffato e Bernardo Carvalho. É também ainexorabilidade do trágico, invadindo doloro-samente as relações pessoais, tornando a vidasomente suportável pelo consolo da arte, que dáuma força inédita aos contos de dois excelenteslivros de Sérgio Sant’Anna, O monstro e O vôo damadrugada. O trágico retorna à cidade na anomiaangustiante, nas relações pessoais e na vida pública,pelos escritos em prosa de Luiz Ruffato. E vai maislonge ainda, transformando-se no trágico radicalque se tornou matéria de Bernardo Carvalho. Nosdois, é o sentimento trágico da existência de quetemos dificuldade em falar e como tal sentimentoconforma as identidades que dominam a narrativa.

Em Luiz Ruffato – e falo aqui de seu festejadoromance Eles eram muitos cavalos, publicado em2001 – a narrativa ocupa-se da cidade que é agrande São Paulo mas pode ser qualquer cidade –que o narrador percebe fragmentada, desconexa,incongruente, quase irreal, sem que falte a estesescritos o impacto ou força dos escritores queoptam pelo realismo mais direto da linguagem. É atragicidade da vida na metrópole hostil que seentranha nos universos privados, circula dapublicidade das ruas, cruzadas com rapidez, até oespaço sem privacidade da vida doméstica, onde aviolência urbana se multiplica ou redobra.

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Seja qual for o tom adotado na construção dosfragmentos, unido pelo fio constituído pela vidana cidade global, o trágico os atravessa. Mesmoquando a prosa se organiza, próxima ao poético, otom sempre é do destino trágico. Pode ser alistagem de livros numa estante, um cardápio, umamensagem na internet, ou o texto de um diplomade evangelização. E pode, também, assemelhar-se aum microconto, como o antológico “Noite” ou em“Aquela mulher”, dolorosamente fragmentário eabsolutamente trágico. No cenário a cidade, oparadoxo trágico se constrói entre a busca poralguma forma de esperança e a inexorabilidadetrágica da vida cotidiana que segue em convíviotão próximo com a morte.

Mas cabe ressaltar que é o fragmentário danarrativa, acompanhado por certo humor eironias sutis, que impede que a obra setransforme puramente no relato do mundo cão. Anarrativa entrecortada evita a catarse comoconseqüência, propondo em seu lugar a crítica,numa espécie de distanciamento brechtiano(lembra a cidade construída no filme Dogville)que comove, mas não ilude.

Nos últimos romances de Bernardo Carvalho, otrágico radical é o elemento que inicia, impulsionae conclui as narrativas. Como em toda a obra doautor, há enigmas e não há explicações senão opróprio reconhecimento da tragicidade dacondição humana, ambígua, inexplicável,incontrolável. Em Nove noites, de 2002, o narradordeixa seu espaço e tempo para investigar quaisteriam sido as reais razões da trágica morte porsuicídio de um jovem antropólogo americanoentre índios brasileiros, nos anos 40. O romance

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irá terminar no coração da baleia, no centrourbano da cena trágica contemporânea, a NovaYork que fora atingida pelo atentado de 11 desetembro de 2001. A falha trágica, porqueinevitável, e o trágico radical, que cerca todoesforço para compreender e reconhecer qualqueridentidade (como acontece desde Édipo Rei), estãoalém das evidências que o realismo poderiaapresentar. Não se compreende o mistério dotrágico radical, nem dele se escapa.

Mongólia, de 2003, me parece trazer, como jáescrevi em outros textos, antes de mais nada, adiscussão sobre as possibilidades do literário, oconflito de vida ou morte entre o documental e oficcional, trazendo ao debate os perigos doexcesso de realismo e os limites não entreliteratura e não literatura – não é exatamente estaa questão – mas entre imaginação e realidade.Tudo isso, porém, partindo da banalidade dotrágico no cotidiano da grande cidade para seperder e se encontrar por entre caminhos tãoindecifráveis como o próprio trágico.

Chego assim à última das questões que queroidentificar nas múltiplas possibilidades da prosacontemporânea, talvez o tema mais evidente nacultura produzida no Brasil contemporâneo: o daviolência nas grandes cidades.

Se a questão da violência, com suas causas eformas de controle, divide governos e políticos,põe em cheque as diversas formas de administraro estado, espalha acusações, deixa a populaçãoamedrontada e perplexa, a transposição daviolência urbana para a literatura também nãodeixa de ser polêmica. Cada vez mais a críticaliterária, sobretudo acadêmica, vem se ocupando

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do debate em torno do excesso de realismoutilizado nestas narrativas, perguntando-se atéque ponto o ficcional não seria empobrecido,numa volta a recursos anteriores ao moderno.Volta-se à questão dos limites ente o literário, ojornalístico, o sociológico.

Parece-me que aquelas duas questões queapresentei como recorrentes em textos dediferentes dicções se unem aqui. Em torno daquestão da violência aparecem a urgência dapresentificação e a dominância do trágico, emangústia recorrente, com a inserção do autorcontemporâneo na grande cidade, na metrópoleimersa numa realidade temporal de trocas tãoglobais quanto barbaramente desiguais. Na forçadeste cotidiano urbano onde o espaço toma novasformas no diálogo do cotidiano local de perdas edanos com o universo global da economia,também a presentificação se faz um sentimentodominante e o aqui e agora modifica-se pelas novasrelações de espaços encurtados e de tragicidade dotempo. A cidade – real ou imaginária – torna-se,então, o locus de conflitos absolutamenteindividuais, privados, mas que são também osconflitos públicos que invadem a vida e ocomportamento individuais, ameaçam o presente eafastam o futuro, que passa a parecer impossível.

É aí, a meu ver, justamente pelo aspectopolêmico tomado pelas diversas narrativas daviolência na cidade, que está uma possibilidadeinovadora no quadro da produção literária.

Até que ponto o tema da violência retoma umaespécie de gosto espalhado pela mídia (no caminhoda homogeneização imposta pela mídia hegemô-nica, como assinalado por Jameson), pasteurização

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que vai dos desenhos japoneses à antes tãosofisticada cinematografia francesa? É possível,hoje, discutir a situação política do atual estado domundo sem passar pelo debate sobre a violência,sua reprodução, sua narrativa?

Ser político é ser capaz de agir como membroda pólis e é neste princípio de intervenção queaparecem as diversas possibilidades de se tratar daviolência, na literatura e fora dela.

Na relação que o relato da violência guardacom a vida política da cidade, quer me parecerque a diferença fundamental estaria em ser aviolência oferecida como objeto distante, quaseum objeto estético, que podemos observar asalvo, como se os conflitos estivessem sendoapresentados em uma arena, ou serem tãonarrados como vividos, trazidos para o espaçopolítico, locus de discussão, de debates, espaçoque passa a ser partilhado por todos: os que sesentiam a salvo na condição de merosespectadores e os próprios personagens quereivindicam a cidadania completa. A este espaçopoderíamos chamar não mais arena, onde setravam combates e também onde se encena otrágico de que nos tornamos, quotidianamente,espectadores, mas ágora, praça pública deassembléias do povo, de trocas religiosas epolíticas, numa pólis onde, diferentemente daprópria pólis grega, não houvesse cidadãos comdiferentes direitos à existência, à sobrevivência, àcirculação e à imaginação.

Nesta ágora, as novas identidades se afirmamcomo sujeitos de seus destinos, de sua história e desua vida privada, são novos atores de um mundodo trabalho que se desestrutura, arena, são

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imaginários atormentados determinados a póliscom sua produção cultural, incluindo nela umaliteratura de forte cunho urbano, tomando agrande cidade, em sua configuração cotidianasubmetida à organização da nova ordem mundial,como cenário e tema.

A obra pioneira entre nós deste tipo denarrativa/sintoma é Cidade de Deus, de Paulo Lins.Publicada em 1997, a obra terá importância, nãosó por suas próprias qualidades, mas antes de maisnada por um aspecto fundacional, apontando paramudanças que estariam a caminho.

O romance surgiu legitimado por um denossos mais importantes scholars, RobertoSchwarz, que, em ensaio publicado na Folha deS.Paulo, saudou o livro como um acontecimento.A novidade do fenômeno, porém, se provoca umgrande texto ensaístico – “Cidade de Deus”,depois republicado em livro –, revela, de saída,certa perplexidade ou impossibilidade da crítica eevidencia as dificuldades que os estudos literáriosteriam ao tratar de obras cuja origem está naproximidade entre autor e narrador. Como disseFerréz em recente entrevista a um programa detelevisão, “morar dentro do tema é complicado”.Schwarz, para analisar o “catatau” como diz,utiliza-se de recursos de análise que vão do closereading – “No parágrafo de abertura, que é sutil,encontramos as pautas clássicas da vida popularbrasileira” – aos instrumentos críticos mais segu-ros na teoria literária: ponto de vista narrativo,foco da ação, estatura das personagens (“A esta-tura das personagens, conforme o ângulo peloqual se encarem, formaliza e dá realidade literáriaà fratura social”).

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Parece-me que ficam, a partir daí, evidentes asdificuldades da crítica literária como tal emanalisar fenômenos como este. Evidencia-se aimpossibilidade de olhar a obra sem olhar a cidadereal, os habitantes reais, preocupação que éimportante para o crítico, porém, mais do que isso,o que se evidencia é a importância do inusitadoolhar de dentro.

E é justamente aí que me parece estar aimportância do romance de Paulo Lins, emcontraste, sobretudo, com os limites do filme demesmo nome realizado a partir do romance. Ofilme opta por desterritorializar a narrativa,revelando-se excessivamente sensível à estetizaçãoda violência de gosto hollywoodiano, cometendoo erro de “recortar” o gueto de seu entorno, acidade, tomada hoje pelas ameaças donarcotráfico, parte de um país latino-americano,no mundo da globalização.

Talvez, por tudo isso, o romance Cidade de Deustenha sido o último momento em que esta novaexpressão literária viu seu prestígio lançado ereferendado pela chamada academia. Daí emdiante os outros “fenômenos” não precisaram maisdisso para ocupar o espaço que ora ocupam.

Como o romance Cidade de Deus volta-se parao local em toda a sua violência, talvez neleestejam as cenas mais violentas da literaturabrasileira. É a subcultura do crime, do arbítrio,do mundo organizado não mais pelo trabalho,mas sobretudo pelo universo infrator donarcotráfico. Surge uma circularidade trágicanesta cidade-gueto dentro da cidade,comunidade tomada pela iminência da tragédiaque cerca seu cotidiano. Paulo Lins, ao pôr em

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cena a cultura deste espaço da Zona Sul do Riode Janeiro, assumiu uma nova dicção, a dos que,vindos do espaço da exclusão, usam sua própriavoz ao invés da dos tradicionais mediadores, osintelectuais, que, até recentemente, por elesfalavam, e marca o início de uma nova leva derepresentações da cidade na literatura, fora dela(no cinema, na televisão, no teatro), ou no tênuelimite dos textos depoimentos. A Cidade de Deusse sucederão outras obras que pretendem trazerpara o erudito campo do literário o universo deparcelas da cidade que já se manifestavam demaneira expressiva em outras formas deexpressão artística, como a música (princi-palmente pelo funk, hip-hop e rap) e a dança,com companhias como o Corpo de Dança daMaré e a importante Companhia Étnica deDança, do Morro do Andaraí, e ainda no teatrocom o já sólido grupo Nós do Morro, que existena Favela do Vidigal há 18 anos.

Daí em diante surge a polêmica: excesso derealidade? Apropriação da realidade que extrapolao âmbito do literário? É inegável que o filão semostra perigosamente proveitoso, já que falar daviolência urbana tornou-se, mercadologicamente,uma boa opção. Além disso, nos vastíssimosespaços das periferias, seja do Rio de Janeiro, SãoPaulo ou Recife, não faltam conflitos universais outragédias míticas que possam render boas histórias.

Foi a este perigo que se expuseram autores quevinham construindo uma literatura pessoalmerecedora de certa atenção, como Patrícia Melo,que em 1997 publicara O matador, narrativainteressante da violência que um jovem daperiferia paulista expressa. Ao criar, porém, no

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posterior Inferno o relato de um jovem traficantedas favelas do Rio, a autora termina se perdendo,ao buscar dar conta realisticamente de umcotidiano por ela pouco conhecido, repetindo amesma narrativa do narcotráfico cariocadiariamente contada pela mídia.

O mesmo acontece a toda uma leva denarrativas sobre matadores e frios criminosos emromances, filmes, minisséries, até mesmo nofantasioso espaço das telenovelas. Multiplicam-sematadores de aluguel e, de tal forma a indiferençadestes assassinos, a total falta de ética, de afeto oude emoção contamina tudo, que pouco importaquem morre, como morre, quando morre. Poucoimporta se os chefões vão se livrar ou não, se haviaamor ou não entre o casal perseguido. E, se nadaimporta, a leitura também acaba por não importar.A exibição realista de cenas violentas não é maisprivilégio de nenhum veículo, e não é à toa quedois campeões do uso da violência, mas que sãotambém competentes cineastas, QuentinTarantino e Takeshi Kitano, estão se repensando:Tarantino com o uso irônico, cômico às vezes,absolutamente irreal da tiras de quadrinhos, eKitano com a exacerbação de um trágico quaseteatral, como no recente e deslumbrante Dolls.

Quando esse realismo ocupa de forma tãoradical a literatura, excesso de realidade pode setornar banal, perder o impacto, começar aproduzir indiferença ao invés de impacto. O focoexcessivamente fechado do mundo do crimetermina por recortá-lo do espaço social e político,da vida pública. Torna-se, então, ação passada emuma espécie de espaço neutro que não tem maisnada a ver com o leitor. Corre-se o risco de

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resultarem disso tudo, o mais das vezes, obrasliterárias que temo considerar descartáveis. Surgea ameaça de que a literatura que pretende falar dearenas da cidade apresente aos seus leitoresespaços de conflito que encenam a violênciacomo fonte de divertissement. A arena da cidadeopõe-se, então, à ágora.

No entanto, esta possibilidade de exaustão deuma literatura excessivamente realista da violênciacoloca-se definitivamente à prova com a produçãode Ferréz – Reginaldo Ferreira da Silva – moradorda periferia de São Paulo. Falo de seu primeiroromance, Capão pecado, editado pela LaboratórioEditorial (ainda que a opção seja por uma espéciede texto híbrido a que não faltam colagens, comoo texto de Mano Brown, uma espécie depoema/rap, e fotos do Capão Redondo e seushabitantes), ambientado no bairro muito pobre daviolenta periferia onde mora, cenário de gritantecriminalidade, e também do segundo, bem maismaduro, Manual prático do ódio. É importanteprestarmos atenção à apresentação do livro peloautor: “Todos os personagens deste livro existemou existiram, mas Manual prático do ódio é umaficção”. Os dois romances narram histórias dos“manos”, esmiuçando, com pleno conhecimentode causa, amores, ódios, carências. O maisimportante do romance talvez seja o lócus (espaçomais do que geográfico, social e emocional) deonde fala o autor e que poderia estar situado emqualquer outro lugar do Brasil. Daí em dianteimportam ainda outros elementos, dentre eles aintenção do autor. Capaz de criar uma escritura detestemunho, sendo sujeito ele mesmo da realidadesobre a qual escreve, o que Ferréz pretende é, como

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diz, fazer ficção. Liberto dos mediadores culturaisque tradicionalmente escreveram a História e ashistórias dos excluídos, levando esta prática aoponto de desejar editar sua obra e não hesitar emvender ele mesmo seus livros, como fez noencontro literário de Paraty, Ferréz destrona seusparceiros de artes literárias da hegemonia criativa,desloca-se da periferia e instaura-se, ele mesmo, nocentro da arena da cidade, mas para desfazê-lacomo cenário a ser observado, mesmo que com amelhor das intenções. Mais do que isso, Ferrézinverte o processo: ele, como outros escritores,como os presos, autores de obras como Memória deum sobrevivente, de Luiz Alberto Mendes, ou oconjunto de escritos do presos do Carandiru emLetras da Liberdade, coloca dentro do sistemaliterário, sem intermediários, a realidade deexcluídos da grande cidade. Mas não é apenascolocar o foco de luz sobre a arena mostrada emtoda sua terrível realidade que lhes interessa. O queprocuram, ao desejar fazer literatura, é levar talrealidade para a ágora, para o espaço de discussãode intelectuais (que mereçam esta qualificação),editores, políticos, público, enfim, mas levar porsuas próprias mãos. É dessa maneira que ocupam apólis e criam uma nova forma de literaturaassumidamente política. Desse modo, diante denossa perplexidade, torna-se evidente que ésomente nesta cidade politizada que a realidadepode deixar espaço para imaginários em liberdade.

No número especial da revista Caros Amigos:“Literatura Marginal. A cultura da periferia – AtoII”, que reúne escritores de diversas periferias dopaís, membros de comunidades indígenas, comoos terenas, e ainda recupera escritores ícones como

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Plínio Marcos e João Antônio, que sempre lidaramcom o tema da marginalização, foi publicado opoema “Um presente para a elite brasileira”, deCláudia Canto, moradora da Cidade Tiradentes,bairro no extremo leste da cidade de São Paulo. Opoema assim finaliza:

(...)Dou de presenteUma língua Portuguesa diferente,aprendida no guetoPoesia marginal e Chico Buarque daperiferiaE haverá um dia em que chegarásperto do belo,Este mesmo que as estatísticasquiseram apontar como feioAprenderás o que é anseio à flor dapele.7

Notas[1] HUYSSEN, Andréas. “Mapeando o pós-moderno”. In:HOLLANDA, Heloisa Buarque. Pós-Modernismo e política.Rio de Janeiro, Rocco, 1991. Págs. 15 a 80.[2] JAMESON, Frederic. “Globalization as philosophicalissue” In: The cultures of globalization. Duke, 1998. Págs.54 a 77.[3] Cf. AHMAD, Aijaz. Linhagens do presente. São Paulo,Boitempo, 2002.[4] http://brazileirapreta.blogspot.com/[5] LUDMER, Josefina. “Temporalidades do presente”. InMargens, Revista de Cultura nº 2, dezembro de 2002. BeloHorizonte, UFMG, Pág. 14 a 27.[6] FREIRE, Marcelino. (org) Os cem menores contosbrasileiros do século. São Paulo, Ateliê Editorial, 2004. [7] CANTO, Cláudia. Revista Caros Amigos, São Paulo,Editora Casa Amarela. Edição especial: Literatura marginal.A cultura da periferia – Ato II. Pág. 11.

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Rádios Comunitárias:“Balangando o beiço” pelo direito de comunicar!

Tião Santos

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Permitam-me iniciar este pequeno capítulosobre rádios comunitárias com a frase“Balangando o beiço pelo direito de comunicar”.A expressão balangando o beiço ouvi de Misael,um dos idealizadores da Rádio Favela de BeloHorizonte, na pré-estréia do filme Uma onda noar, de Helvécio Raton, no cinema Odeon, noRio de Janeiro. Fiquei pensando em que títulodar a este artigo sobre rádios comunitáriasquando me lembrei da fala do Misael e resolvicitar sua frase, acrescentando parte do artigo 13do Pacto de São José da Costa Rica: “Pelo direitode comunicar”.

A expressão “balangando o beiço”, extre-mamente significante no dito popular mineiro,traduz a liberdade lingüística da comunicaçãopopular, direta, objetiva, perfeitamente emsintonia com um dos direitos mais sagrados do serhumano, o direito de comunicar.

Creio que o direito de comunicar seja oprimeiro viés que devemos explorar dessefantástico instrumento de democratização dacomunicação e da sociedade que são as rádioscomunitárias.

Num país como o nosso, marcado pelosilêncio das maiorias, desde os processos decolonização até os anos de ditadura militar, era dese esperar que, ao primeiro sinal de liberdade deexpressão, a voz das maiorias se fizesse ouvir nosquatro cantos deste país.

Os poderosos de sempre não conseguiram e nãoconseguirão calar a voz de milhões de brasileiros ebrasileiras que descobriram, através das rádioscomunitárias, que existem e que têm o que dizeraos seus, a mim e a você!

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É disto que quero falar: de beiços balangandopaís afora, garantindo, na prática civil erevolucionária, o sagrado Direito de Comunicar.E, para que ninguém se assuste, falo da práticagarantida na Constituição Brasileira, apenasviolada e desrespeitada pelos que se sentemdonos do ar, por onde trafegam as vozes de bonse maus, de justos e injustos mas, sobretudo, poronde trafegam as vozes dos que não querem enão vão calar!

Rádios no ar, uma conquista popularDe fato, as cerca de 15 mil rádios

comunitárias que estão no ar hoje existem graçasà luta, à resistência e à criatividade de milharesde comunidades. Sem querer desmerecer otrabalho de muitas lideranças do movimento deradiodifusão comunitária que, de maneirarevolucionária e apaixonada, iniciaram esseprocesso no Brasil. Mas, como um dos queiniciaram esse trabalho, devo reconhecer que, sea proposta não tivesse sido abraçada e apropriadapelas comunidades, nada disso estaria acon-tecendo: o milagre da multiplicação das vozesnão teria ocorrido!

Lembro-me bem, como se fosse hoje, do diaem que fui a uma comunidade da Zona Oeste doRio de Janeiro. Era início da década de 90 eprincípio da popularização das rádios nascomunidades. O desafio era mostrar à comu-nidade do Conjunto Habitacional da CapitãoTeixeira, no bairro de Realengo, como funcionavauma rádio comunitária, desmistificando a idéia deque só os poderosos poderiam ter um veículo decomunicação.

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Quando chegamos na sede da associação demoradores, local onde instalaríamos osequipamentos, já havia muita gente nos esperando,curiosa em ver se era verdade o que havia sidoanunciado. Com a ajuda de todos e com o velho ebom transmissor da Rádio Cigana (equipamentoque usávamos para demonstração nas comu-nidades), mais alguns aparelhos emprestados pelaprópria comunidade, instalamos os equipamentose colocamos a rádio no ar. A surpresa e a alegria detodos foi indescritível. Um senhor, de queminfelizmente não lembro o nome, me perguntou:“Se eu falar aqui, neste microfone, minha mulhervai ouvir lá em casa?”. Eu disse que sim. Ele, aindadescrente, me falou: “Se isso for verdade, te pagouma cerveja”.

A experiência da Capitão Teixeira floresceu edeu muitos frutos. Hoje, só no bairro de Realengoe arredores, existem mais de 10 rádioscomunitárias.

Como a Capitão Teixeira, outras comunidadessonharam, desejaram e se organizaram para ter asua rádio no ar. Hoje, em cada canto deste país temuma rádio no ar: grandes centros urbanos,periferias, favelas, pequenos e médios municípios,áreas rurais, aldeias de índios e comunidades dequilombolas, todos e todas botando a boca nomundo e, como diz o outro, “quem tem ouvidospara ouvir, que ouça!”.

O que rola pelas ondas da comunicaçãopopular

Descomprometidas com o objetivo de gerarlucro e com a desenfreada necessidade de disputaro mercado, de alcançar altos índices de audiência a

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qualquer custo, as verdadeiras rádios comunitárias,as que, verdadeiramente, têm um compromisso decontribuir com a democratização da comunicaçãoe da sociedade, livres dos velhos chavões e doscompromissos normalmente assumidos pelasrádios comerciais, vêm dando uma grande con-tribuição à comunicação de massa, na medida emque ousam criar novos formatos e experimentarnovas linguagens.

É muito comum ouvir nos encontros,seminários e oficinas de que participo, país afora,depoimentos emocionados de comunicadorescomunitários ressaltando que a rádio comercial desua cidade está levando ao ar um programaigualzinho ao que ele faz em sua rádio.

A diferença é que esse novo jeito de comunicarvem ganhando cada vez mais o gosto popular.Num contraponto à chamada comunicaçãoglobalizada, normalmente pasteurizada em seusconteúdos, as rádios comunitárias estão resgatandoo bom conceito do rádio “amigo íntimo”, queentende e fala a linguagem do ouvinte, dos seusproblemas, dos seus sonhos, das coisas que fazemparte de seu cotidiano.

Aos poucos e cada vez mais, as emissoraspopulares vêm se livrando do modelo absoluto equase centenário do rádio brasileiro. No começo, écomum as rádios, quase todas, imitarem oucopiarem as rádios comerciais. Mas, aos poucos,vão percebendo que têm um papel diferente dasrádios comerciais e que seu compromisso e seusobjetivos são outros.

Temos observado que as rádios que adotamposições extremadas, radicalizadas, que se limitama copiar as rádios comerciais ou que, do outro

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lado, resolvem fazer uma programação totalmentealternativa, desconsiderando a cultura radiofônicaexistente, normalmente encontram dificuldadespara exercer sua função de integradora,articuladora das diversas expressões sociais eculturais existentes na comunidade.

O importante é a emissora ser capaz de levar aoar uma programação que se diferencie no formato,na linguagem e, principalmente, no conteúdo,sem traumas ou radicalizações. O segredo éconsiderar a cultura radiofônica atual e, aospoucos, ir adicionando elementos novos naprogramação, capazes de construir umaidentidade própria verdadeiramente envolvida naconstrução da cidadania.

Apesar de a maioria das “emissorascomunitárias” estar nas mãos de grupos poucocomprometidos com a diversidade, com apluralidade, com a democracia, está em curso, entreelas, um processo de redefinição de suas funções ede seu papel na comunidade. Esses grupos estãopercebendo que, para consolidar um projetocoletivo comunitário como deve ser toda rádiocomunitária, é preciso ser capaz de incluir todos ossegmentos vivos da comunidade, todas asexpressões culturais, filosóficas, religiosas... Quantomais participação, maior o sucesso da emissora.

As que teimam em manter, com exclusividade,apenas os projetos de grupos fechados, ou selimitam a defender interesses individuais, acabamsaindo do ar ou perdendo totalmente acredibilidade da comunidade. Viram apenas maisuma rádio no dial.

Uma verdadeira rádio comunitária tem quefazer a diferença. Ser capaz de incluir o que

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chamo de excluídos da grande mídia e dasociedade. Sempre gosto de citar o exemplo daRádio Novos Rumos, criada em 1990, nomunicípio de Queimados, uma das primeirasrádios comunitárias do país. A Novos Rumos foiuma das primeiras rádios verdadeiramentecomunitárias. A maneira como a rádio foicriada, sua organização e seu estatuto foramexemplo e modelo para o Brasil inteiro. Mas oque mais me impressiona na Novos Rumos é acapacidade que a rádio tem de mexer com acidade, com a vida social, cultural e política dosseus ouvintes.

Situado a 50 quilômetros do Centro da cidadedo Rio de Janeiro, Queimados recebe o sinal detodas as rádios comerciais da capital e convivecom cerca de 15 outras novas rádios“comunitárias” que surgiram nos últimos anos.Mesmo assim, segundo pesquisas oficiais, aNovos Rumos se mantém em primeiro lugar,deixando bem para trás as rádios que lideram aaudiência no Grande Rio.

Isso só acontece porque a rádio vem sendocapaz de manter a pluralidade e a democracia nasua gestão e na sua programação. Outro dia,visitando a emissora, presenciei uma cena quejustifica minhas palavras. Estava na recepçãoquando chegou uma senhora muito pobre comuma receita na mão. Ela se dirigiu àrecepcionista e disse que queria falar na rádiopara ver se conseguia os remédios daquelareceita. Disse, ainda, que havia vários dias vinhase dirigindo ao posto de saúde para ver seconseguia os remédios e não era atendida.Segura do que estava querendo, disse à

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recepcionista: “Moça, sei que, se eu falar narádio a minha história, na mesma hora sereiatendida”. E assim o foi. Ela falou e foi atendida.

Creio que exemplos como esses estão rolandopelos quatro cantos do país, onde há uma rádiocomunitária no ar a serviço das comunidades e daconstrução da cidadania.

A legitimidade que o Estado nãoreconhece

Estima-se em 15 mil o número de rádioscomunitárias no ar em todo o Brasil. Passadosseis anos desde que a lei 9.612 foi aprovada (19de fevereiro de 1998), não chega a mil o númerode rádios autorizadas definitivamente peloMinistério das Comunicações. Nesse período,foram cadastrados cerca de 15 mil pedidos deassociações que sonham em ver suas emissorasautorizadas.

Enquanto as experiências e os bons exemplosdas rádios se espalham, se multiplicam,beneficiando comunidades inteiras, prestandoserviços a órgãos públicos e a associações dasociedade civil, o governo federal, numa atitudeque não se compreende, vira as costas para essepoderoso instrumento de desenvolvimento local.

Infelizmente, o movimento das emissorascomunitárias continua vivendo uma profundacontradição: se por um lado o governo federal,através de seus órgãos públicos, utiliza as rádiospara veicular campanhas fantásticas como as doPrograma de DST-Aids do Ministério da Saúde ecoisas do interesse do governo, por outro ladocontinua desenvolvendo uma brutal perseguição àsemissoras. Dados da Anatel (Agência Nacional de

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Telecomunicações) dão conta de que houve, em2003, já no novo governo, 17% a mais de rádiosfechadas do que no ano de 2002.

Mas os problemas das rádios com relação aogoverno não se resumem apenas à repressão.Outro desafio é superar a burocracia e amorosidade da análise dos processos noMinistério das Comunicações. Para muitascomunidades que, desde 1998, pediramautorização ao Estado e até agora não aobtiveram, ter a autorização é uma questão desorte, uma loteria. Some-se a isso a falta detransparência e de informações sobre oandamento dos processos que tramitam noministério.

Bom seria se, em vez de tanta perseguição, ogoverno se dispusesse a elaborar uma política decomunicação que incluísse as mídias comunitáriascomo parte estratégica de políticas dedesenvolvimento local sustentável.

Uma política que, no caso das rádioscomunitárias, permitisse maior agilidade nosprocessos no ministério, que suspendesse aviolenta, desnecessária e, às vezes, ilegal repressãoàs emissoras comunitárias e que, numa atitude dereconhecimento ao papel das emissoras, houvesseinvestimento na formação, na capacitação e nodesenvolvimento do setor, como reza o artigo 20da lei 9.612.

Enquanto o quadro não muda, ascomunidades, cansadas de esperar pelo Estado,continuam resistindo, criando e recriando espaçosde liberdade de expressão e de cidadania,“balangando o beiço”, vencendo o medo ealimentando a esperança.

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Para essas comunidades, a Mãe-Gentil, Pátria-Amada, Brasil, não tem olhado com muitocarinho, aliás, com nenhum carinho!

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Sobre os autores

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193Sobre os autores

BEATRIZ RESENDE é doutora em LiteraturaComparada. Professora da Escola de Teatro da UNI-Rio, é pesquisadora do Programa Avançado deCultura Contemporânea da UFRJ e do CNPq. Écuradora da Biblioteca Virtual de Literatura –PACC/UFRJ e editora do Fórum Virtual O que éLiteratura, projeto apoiado pela Faperj através doprêmio Cientista do Nosso Estado. PublicouApontamentos de crítica cultural (Aeroplano Editora,Rio de Janeiro, 2002), Cronistas do Rio (José Olympio,Rio de Janeiro, 1995) e Lima Barreto e o Rio de Janeiroem fragmentos (Editora UFRJ, Unicamp, 1993).Escreve regularmente para cadernos literários.

BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS é doutor emSociologia do Direito pela Universidade de Yale(1973). É professor catedrático da Faculdade deEconomia da Universidade de Coimbra e professorvisitante da Universidade de Wisconsin-Madison,da London School of Economics, da Universidadede São Paulo e da Universidad de Los Andes.Diretor do Centro de Estudos Sociais da Faculdadede Economia da Universidade de Coimbra. Diretordo Centro de Documentação 25 de Abril daUniversidade de Coimbra. Diretor da Revista Críticade Ciências Sociais. Recebeu o Prêmio de Ensaio PenClub Português 1994; o Prêmio Gulbenkian deCiência, 1996; o Prêmio Bordalo da Imprensa –Ciências, 1997; e o Prêmio Jabuti (Brasil) – Área deCiências Humanas e Educação, 2001.

ECIO DE SALLES é mestre em Literatura Brasileira,coordena o Programa de Educação do GrupoCultural Afro Reggae, núcleo responsável pelaelaboração e coordenação de projetos ligados ao

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campo da Educação, além de participar naprodução de eventos realizados pelo grupo ecoordenar um de seus subgrupos, o Afro Samba.Também integra a Coordenação Editorial daRevista Global Brasil. Em 2002, concluiu omestrado em Literatura Brasileira na UniversidadeFederal Fluminense (UFF), e o tema de suadissertação abordou a produção textual da culturahip-hop no Brasil.

FERRÉZ nasceu em São Paulo, em 1975, e adotouna literatura o pseudônimo para homenagear doislíderes populares: Virgulino Ferreira, o Lampião,e Zumbi dos Palmares. É autor do livro Capãopecado (São Paulo, Labortexto, 2000), romancesobre o cotidiano de um dos bairros da periferiade São Paulo – em que o escritor vive até hoje.Ferréz é ligado ao movimento hip hop e participade eventos culturais na periferia. Em 2003,lançou o romance Manual prático do ódio (Rio deJaneiro, Objetiva, 2003). E é idealizador doprojeto Literatura Marginal, que em breve serálançado em livro pela Editora Agir.

JAILSON DE SOUZA E SILVA é doutor em Educaçãopela PUC-Rio. Publicou Por que uns e não outros?Caminhada de jovens pobres para a universidade(Editora 7 Letras, Rio de Janeiro, 2003). É professoradjunto da Faculdade de Educação da UFF desde1992 e professor do Programa de Pós-Graduaçãoem Geografia da UFF. Um dos fundadores doCentro de Estudos e Ações Solidárias da Maré(Ceasm). Coordenador geral do Observatório deFavelas do Rio de Janeiro. Consultor do Unicef e daOrganização Internacional do Trabalho (OIT).

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MARTA PORTO é jornalista, pós-graduada emPlanejamento Estratégico e Sistemas deInformação (PUC-MG), com mestrado em Ciênciada Informação (UFMG). Foi diretora de planeja-mento e coordenação cultural da SecretariaMunicipal de Cultura de Belo Horizonte ecoordenadora do Escritório da Unesco no Rio deJaneiro. Recebeu o prêmio Prix Mobius deMultimídia Cultural, França, em 1997, pelaRevista Eletrônica Zapp Cultural, e o PrêmioBeija-Flor – Homenagem Especial 2001. Integra oComitê da Agenda XXI do Fórum de AutoridadesLocais, implantado pelo Fórum Universal deCulturas – Barcelona (2004). Atualmente édiretora da X Brasil.

MAURÍCIO TORRES nasceu na cidade de SãoPaulo. Iniciou-se na Engenharia Agronômica eperdeu-se em Letras. É professor e milita emmovimentos populares. Atualmente divide-seentre a paulistana Vila Madalena, onde trabalhana Editora Casa Amarela, e a Floresta Amazônica,desenvolvendo um trabalho de pesquisa sobreexclusão social.

PAULO LINS fez graduação e licenciatura emLíngua Portuguesa e Literaturas Brasileira ePortuguesa, na UFRJ. Foi integrante do grupoCooperativa de Poetas nos anos 80. Em 1986,publicou seu primeiro livro de poemas, Sobre osol, pela UFRJ. Entre 1991 e 1992, realizoupesquisa para o projeto “Crime e criminalidadenas classes populares” com bolsa Faperj/Iuperj.Em 1995 foi contemplado com a bolsa Vitae deArtes. Organizou o cineclube na Cidade de

Sobre os autores Cultura e desenvolvimento196

Deus. Publicou o romance Cidade de Deus pelaEditora Companhia das Letras, em 1997,transformado em filme em 2002. Trabalhou naSecretaria de Cultura do Estado do Rio deJaneiro em 2002, onde criou um projeto debibliotecas em escolas de favelas. Em 2004,passou um mês como escritor residente naUniversidade da Califórnia, em Berkeley. Éroteirista, junto com Lúcia Murat, do filmeQuase dois irmãos.

PAULO ROBERTO PIRES é jornalista, mestre emComunicação pela Escola de Comunicação daUFRJ e professor da ECO/UFRJ. Publicou abiografia Helio Pellegrino, a paixão indignada e anovela Do amor ausente (Rocco, Rio de Janeiro,2000) e organizou, com Flavio Pinheiro, Próximos500 – As perguntas que o Brasil vai ter queresponder (Aeroplano, Rio de Janeiro, 2000). Éresponsável pela organização da nova edição,ampliada, da obra reunida de Torquato Neto(Rocco, Rio de Janeiro, 2004). É diretor editorialda Ediouro e colunista do site No Mínimo.

TIÃO SANTOS é radialista, produtor e diretor derádio. Foi professor de Educação Física e Moral eCívica; diretor e instrutor da Casa de Meninos deSão Paulo Apóstolo, de Petrópolis; coordenadorde correspondentes comunitários do Portal VivaFavela, Viva Rio, em 2001; coordenador da RádioViva Rio e da Rede Viva Favela. Ex-diretor daFederação Nacional dos Radialistas; ex-presidenteda Abraço (Associação Brasileira de RadiodifusãoComunitária) e membro do Grupo de Trabalhodo Ministério das Comunicações.

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ZUENIR VENTURA é jornalista há quase 40 anos.Formado em Letras, trabalhou como repórter,redator e editor em vários jornais e revistas.Ganhou o Prêmio Esso de Reportagem e o PrêmioWladimir Herzog de Jornalismo em 1989.Recebeu o Prêmio Jabuti (categoria reportagem)pelo best-seller 1968 – O ano que não terminou(Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1988). É autor deCidade partida (São Paulo, Companhia das Letras,1994), Inveja – mal secreto (Rio de Janeiro,Objetiva, 1998), Crônicas de um fim de século (Riode Janeiro, Objetiva, 1999), Cultura em trânsito(Rio de Janeiro, Aeroplano, 2000), Chico Mendes –Crime e castigo (São Paulo, Companhia das Letras,2003) e Vozes do golpe (São Paulo, Companhia dasLetras, 2004). Atualmente é colunista do jornal OGlobo e do site No Mínimo.

Sobre os autores

Sobre o evento

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O seminário Cultura e desenvolvimento foi realizadoentre os dias 23 e 26 de novembro de 2004, noCentro Cultural Banco do Brasil, Rio de Janeiro.Participantes: Beatriz Resende, Boaventura deSousa Santos, Carmen Luz, Ecio de Salles, Ferréz,Graça Salgado, Heloisa Buarque de Hollanda,Heloisa Toller Gomes, Ilana Strozenberg, Jailson deSouza e Silva, Ismael Lopes, Marta Porto, MaurícioTorres, Misael Avelino dos Santos, MVBill, NegaGiza, Paulo Lins, Paulo Roberto Pires, Tião Santose Zuenir Ventura.

Sobre o evento

Composto em Adobe Garamond corpos 10, 12, 14 e 18 sobre 14,6,Helvetica Neue Condensed corpo 9 sobre 10,8

e corpos 10, 12, 18 e 24 sobre 15,e Highway to Heck corpo 12 sobre 17, e corpos 14 e 24 sobre 24,5.

Impresso em papel polén bold 90g, pela gráfica Imprinta para a Aeroplano Editora, em Novembro de 2004.