Governo, Cultura e Desenvolvimento

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Governo, Cultura e desenvolvimento: reflexões desde a amazônia

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  • Governo, cultura e desenvolvimento: reflexes desde a Amaznia

  • Comit Cientfico da Srie Filosofia e Interdisciplinaridade: Agnaldo Cuoco Portugal, UNB, Brasil Alexandre Franco S, Universidade de Coimbra, Portugal Christian Iber, Alemanha Claudio Goncalves de Almeida, PUCRS, Brasil Cleide Calgaro, UCS, Brasil Danilo Marcondes Souza Filho, PUCRJ, Brasil Danilo Vaz C. R. M. Costa, UNICAP/PE, Brasil Delamar Jos Volpato Dutra, UFSC, Brasil Draiton Gonzaga de Souza, PUCRS, Brasil Eduardo Luft, PUCRS, Brasil Ernildo Jacob Stein, PUCRS, Brasil Felipe de Matos Muller, PUCRS, Brasil Jean-Franois Kervgan, Universit Paris I, Frana Joo F. Hobuss, UFPEL, Brasil Jos Pinheiro Pertille, UFRGS, Brasil Karl Heinz Efken, UNICAP/PE, Brasil Konrad Utz, UFC, Brasil Lauro Valentim Stoll Nardi, UFRGS, Brasil Marcia Andrea Bhring, PUCRS, Brasil Michael Quante, Westflische Wilhelms-Universitt, Alemanha Migule Giusti, PUC Lima, Peru Norman Roland Madarasz, PUCRS, Brasil Nythamar H. F. de Oliveira Jr., PUCRS, Brasil Reynner Franco, Universidade de Salamanca, Espanha Ricardo Timm De Souza, PUCRS, Brasil Robert Brandom, University of Pittsburgh, EUA Roberto Hofmeister Pich, PUCRS, Brasil Tarclio Ciotta, UNIOESTE, Brasil Thadeu Weber, PUCRS, Brasil

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    Christian Otto Muniz Nienov Clarides Henrich de Barba

    Fernando Danner Leno Francisco Danner

    Magnus Dagios Paulo Roberto Konzen

    (Orgs.)

    Governo, cultura e desenvolvimento: reflexes desde a Amaznia

    Porto Alegre 2015

  • Direo editorial: Agemir Bavaresco Diagramao e capa: Lucas Fontella Margoni Reviso dos autores

    Todos os livros publicados pela Editora Fi esto sob os direitos da Creative Commons 4.0 https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR

    Srie Filosofia e Interdisciplinaridade - 35

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

    DANNER, Leno Francisco ... [et al.] (Orgs.)

    Governo, cultura e desenvolvimento: reflexes desde a Amaznia [recurso eletrnico] / Leno Francisco Danner, ... [et al.] (Orgs.) -- Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2015. 283 p.

    ISBN - 978-85-66923-85-8

    Disponvel em: http://www.editorafi.org

    1. Filosofia. 2. tica. 3. Antropologia 4. Causa indgena.5. Linguagem. 6. Amaznia I. Ttulo. II. Srie.

    CDD-100

    ndices para catlogo sistemtico: 1. Filosofia 100

  • Sumrio

    Apresentao coletnea / 9 Do colonialismo colonialidade: expropriao territorial na periferia do capitalismo Wendell Ficher Teixeira Assis / 12 O progressismo como modernizao unidimensional no Brasil Moyss Pinto Neto / 48 Regimes de visibilidade indgena frente a aes de desenvolvimento: pensando uma agenda de pesquisas Estevo Rafael Fernandes / 72 Modernizao e desenvolvimento na Amaznia brasileira: dar voz queles que no tm voz como a base de um projeto poltico, cultural e econmico alternativo Leno Francisco Danner / 90 Neuro Zambam As desigualdades regionais brasileiras: o caso da Regio Norte Lincoln Frias / 123 Patrcia de Siqueira Ramos Biopoltica, Liberalismo e Neoliberalismo: uma Leitura do Curso Nascimento da Biopoltica (1978-1979) Fernando Danner / 145 (Des)construindo o direito (como justia) Christian Otto Muniz Nienov / 183

  • Os conceitos hegelianos de mentira, iluso ou engano e fraude ou impostura Paulo Roberto Konzen / 200 Histrias de vidas Ribeirinhas: relatos de uma viagem em seus mltiplos olhares amaznicos Clio Jos Borges / 237 Clarides Henrich de Barba Eliandra de Oliveira Belforte Lucileyde Feitosa Sousa Luciana Ria Mouro Borges Maria Jos Ribeiro de Souza Wart Johannes van Zonneveld Direito Privado e Direito Pblico em Hegel Magnus Dagios / 271

  • Apresentao coletnea O presente trabalho coletivo busca pensar, tendo

    como pano de fundo o processo de modernizao da Amaznia brasileira, as potencialidades e as contradies que ele carrega e gera, de modo a, em ressaltando as especificidades dele e do prprio contexto sociocultural amaznico no qual incide, problematizar sua fundamentao e sua constituio enquanto projeto de modernizao com profundas razes em determinada concepo epistemolgica, poltica, cultural e econmica. Utilizar o contexto amaznico como chave para a leitura e para a problematizao poltica do processo de modernizao, portanto, a estratgia que grande parte dos textos aqui reunidos toma como mote para o enquadramento do tipo de modernizao cultural e econmica e da forma de colonialismo que so assumidos e impostos tanto ao horizonte sociocultural amaznico quanto mais alm, ao nosso contexto nacional de um modo mais geral (isso sem mencionar-se a prpria expanso cada vez mais intensificada da modernizao cultural-econmica sob a forma de globalizao). O processo de constituio e de realizao desse projeto de modernizao em relao Amaznia um contexto ecolgico e sociocultural totalmente diferente em relao modernizao cultural e econmica de cunho ocidental serve, nesse sentido, como o espelho que faz aparecer o prprio sentido e as prprias prticas epistemolgicas, polticas, culturais e econmicas que dinamizam seja a autocompreenso que a modernidade tem de si mesma, seja a fundamentao de projetos calcados em um ideal de modernizao cultural-econmica como a alternativa por excelncia da qual temos que partir e a qual no podemos abandonar. Mais do que ressaltar os limites das formas de vida tradicionais e de um suposto ecologismo cego e arredio ao industrialismo e ao consumismo, portanto, a modernizao da Amaznia enfatiza exatamente a

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    dramaticidade e as profundas contradies da prpria modernizao cultural-econmica.

    Ora, em que medida a utilizao da modernizao como paradigma epistemolgico, cultural, poltico e econmico no naturaliza e, portanto, despolitiza a prpria modernidade tanto na elaborao e na imposio de sua prpria autocompreenso quanto na relao que ela estabelece com o no-moderno? Dito de outro modo, como se configuram as compreenses e as relaes entre, por um lado, a modernidade no apenas como centro epistemolgico e sociocultural, mas tambm como guarda-chuva normativo de todos os contextos e como superao do tradicionalismo, e, por outro, exatamente os contextos perifricos a essa mesma modernizao central? Essa pergunta nos permite duas observaes prvias como chave de leitura para a obra que estamos apresentando aos leitores e s leitoras: primeiro, de que h uma concepo hegemnica de modernizao de cunho ocidental, que se confunde com o horizonte euronorcntrico e que colocada como o modelo epistemolgico, poltico, cultural e econmico a partir do qual o no-moderno enquadrado as relaes contemporneas entre centro (modernizao tardia) e periferia (modernizao perifrica) e em certo sentido as formas atuais de colonialismo (calcadas na aceitao da modernidade como esse ncleo paradigmtico e projeto societal universalistas) ganham aqui o seu sentido e dinamizao; segundo, a modernizao conservadora brasileira assume essa contraposio entre modernizao cultural-econmica versus tradicionalismo como condio de sua estruturao e imposio, de modo que nossas elites poltico-econmicas, desde as instituies sociais, polticas e econmicas, realizam uma aclimatao da sociedad exatamente s condies dessa modernizao cultural-econmica, e isso de um modo tal que, reproduzindo o prprio processo de colonizao, levam ao silenciamento e deslegitimao de tudo o que contrrio modernizao,

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    que passa a ser afirmado como inimigo do progresso, do desenvolvimento, da evoluo cultural. Ora, esse precisamente o caso do contexto sociocultural e ecolgico amaznicos.

    Com mais este trabalho, o Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Rondnia (UNIR) e o Grupo de Pesquisa em Teoria Poltica Contempornea buscam aprimorar seja sua produo filosfico-sociolgica, seja o seu dilogo com a sociedade em geral, mantendo-se permanentemente atentos dinmica sociocultural e poltica correntes. E, principalmente, mantendo-se de guarda em relao naturalizao e despolitizao de qualquer forma de epistemologia que enquadre, sem nenhuma moderao ou considerao, os contextos particulares, como o caso seja do contexto sociocultural amaznico, seja das periferias da modernizao. Nossa crena, em relao a isso, est em que o presente e o futuro da Amaznia, de sua terra, de seus recursos naturais-minerais, e de seus povos e de suas culturas tradicionais, constituem-se no exemplo e no quadro mais pungente da prossecuo cada vez mais intensificada da modernizao cultural-econmica e, aqui, da imposio de projetos de desenvolvimento calcados no industrialismo e no consumismo sem limites, fundados em epistemologias cientificistas e culturais que, na nsia de legitimar essa mesma prossecuo sem limites, jogam para escanteio qualquer alternativa e quaisquer sujeitos epistmicos, culturais e polticos que estejam foram dessa dupla dinmica da modernidade sua epistemologia cientificista e seu projeto capitalista de integrao material. Isso nos leva, por conseguinte, politizao tanto da epistemologia moderna quanto do processo de integrao social levado a efeito como modernizao, momentos imbricados e dependentes um do outro.

    Porto Velho, setembro de 2015

  • Do colonialismo colonialidade:

    expropriao territorial na periferia do capitalismo1

    Wendell Ficher Teixeira Assis 2

    Los europeos piensan que solo lo que inventa Europa es bueno para el mundo y todo lo que sea distinto es execrable.

    Frase atribuda a Simon Bolvar por Gabriel Garcia Mrquez em El General en su Laberinto, 1989.

    INTRODUO

    Os estudos denominados ps-coloniais, subalternos ou

    ps-ocidentais, realizados na frica, sia e Amrica Latina, entendidos no somente como espaos geogrficos, mas como lugares que ativam o pensamento crtico emancipador, vm articulando uma perspectiva que evidencia a faceta colonial da expanso capitalista e de seu projeto cultural

    1 Texto primeiramente publicado em Caderno CRH (UFBA), v. 27, n. 72, p. 613-627, 2014. 2 Doutor em Planejamento Urbano e Regional. Professor Adjunto da Universidade Federal de Alagoas e pesquisador do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional - IPPUR/UFRJ. Campus A.C. Simes Av. Lourival de Melo Mota, s/n. Cidade Universitria. Cep: 57072970. Macei - Alagoas - Brasil. [email protected]

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    (Cajigas-Rotundo, 2007). Nessa mirada, as Amricas no foram incorporadas dentro de uma j existente economia mundial capitalista; pelo contrrio, no haveria uma economia capitalista mundial sem a existncia das Amricas (Quijano; Wallerstein, 1992). Quijano (2005) argumenta que esse processo comeou com uma colonizao interna de povos com identidades diferentes, mas que habitavam os mesmos territrios e foram convertidos em espaos de dominao interna. Esse fenmeno se desdobrou com a colonizao imperial ou externa de povos que no s tinham identidades diferentes, como habitavam em territrios para alm do espao de dominao interna dos colonizadores.

    A expanso colonial iniciada no sculo XVI, com as grandes navegaes e o descobrimento das Amricas - posteriormente incrementada com o neocolonialismo do final do sculo XIX, que promoveu a repartio da frica e sia -, vista, nessa abordagem, como condio sine qua non para a existncia e a manuteno do capitalismo industrial. Por outro lado, a extino do colonialismo histrico-poltico nas Amricas, com a construo de naes independentes no sculo XIX, bem como na frica e sia, por intermdio da descolonizao em meados do sculo XX, no foi condio necessria e suficiente para a emancipao poltico-econmica e cultural dos pases perifricos. Assim, a acumulao primitiva colonial, longe de ser uma pr-condio do desenvolvimento capitalista, foi um elemento indispensvel da sua dinmica interna e posterior continuidade (Coronil, 2000). A esse respeito, Lander (2006, p. 250) destaca que:

    Ao fazer abstrao da natureza dos recursos, espao e territrios, o desenvolvimento histrico da socie-dade moderna e do capitalismo aparece como um processo interno, autogerado, da sociedade euro-peia, que posteriormente se expande para as regies atrasadas. Nessa construo eurocntrica desaparece

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    do campo de viso o colonialismo como dimenso constitutiva destas experincias histricas.

    Para elucidar os desdobramentos sociopolticos desse

    processo, Quijano (1997) cunhou o conceito de colonialidade como algo que transcende as particularidades do colonialismo histrico e que no desaparece com a in-dependncia ou descolonizao. Essa formulao uma tentativa de explicar a modernidade como um processo intrinsecamente vinculado experincia colonial. Essa distino entre colonialidade e colonialismo permite, portanto, explicar a continuidade das formas coloniais de dominao, mesmo aps o fim das administraes coloniais, alm de demonstrar que essas estruturas de poder e subordinao passaram a ser reproduzidas pelos mecanismos do sistema-mundo capitalista colonial-moderno. Dessa maneira, a noo de colonialidade atrela o processo de colonizao das Amricas constituio da economia-mundo capitalista, concebendo ambos como partes integrantes de um mesmo processo histrico iniciado no sculo XVI (Castro-Gomez; Gosfroguel, 2007).

    A construo das hierarquias raciais, de gnero e de modos de apropriao dos recursos naturais, pode ser vista como simultnea e contempornea constituio de uma diviso internacional do trabalho e dos territrios, marcada por relaes assimtricas entre economias cntricas e perifricas. Na perspectiva da colonialidade, as antigas hierarquias coloniais, que foram agrupadas na relao europeu versus no europeu, continuaram arraigadas e enredadas na diviso internacional do trabalho e na acumulao do capital escala global.3 O mesmo poderia ser 3 Na tentativa de entender as estratgias de poder subjacentes ao exerccio da colonialidade, Quijano (1997; 2005; 2010) desenvolveu a ideia de colonialidade do poder, como um modelo de exerccio da dominao especificamente moderno que interliga a formao racial, o controle do trabalho, o Estado e aproduo de conhecimento. Em outras

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    dito do estabelecimento de relaes sociais cujo modo operativo favorece tanto a constituio quanto a perpetuao da existncia de sujeitos subalternizados nas es-feras intra e interestatais.4

    Essa matriz de poder, que se expressa por meio da colonialidade, procurava e ainda procura encobrir o fato de que a Europa foi produzida a partir da explorao poltico-econmica das colnias. No h como desconsiderar as implicaes histricas do estabelecimento desse padro de dominao, que se reflete na recproca produo histrica da Amrica e da Europa, como redes de dependncia histrico-estrutural (Quijano, 2005). Entretanto, o carter constitutivo da experincia colonial e da colonialidade no tem figurado nas abordagens hegemnicas e eurocntricas, inclusive de intelectuais latinos, que desprezam a importncia que as

    palavras, a colonialidade do poder a classificao social da populao mundial ancorada na noo de raa, que tem origem no carter colonial, mas j provou ser mais duradoura e estvel que o colonialismo histrico, em cuja matriz foi estabelecida (Quijano, 2000). Para Castro-Gomez (2007), esse conceito amplia a ideia foucaultiana do poder disciplinrio, ao mostrar que os dispositivos panpticos construdos pelo Estado moderno se expandem a uma estrutura mais ampla e de carter mundial, configurada pela relao colonial entre Estados cntricos e perifricos. 4 Nessa direo, Guha (1997) sustenta que subalternidade no somente uma questo de subordinao de classe dentro de um pas industrial, mas de subordinao de organizaes sociais e histricas no interior de estruturas interestatais, como as que se estabeleceram entre ndia e Inglaterra. Para o autor, o colonialismo britnico se caracterizou pelo exerccio de uma dominao sem hegemonia, uma composio seriamente determinada pela dissoluo dos elementos de persuaso e cooperao, que se ancoravam na fora desptica da superioridade ocidental para erigir uma dominao poltica que aniquila o surgimento do dissenso ou conflito. Por outro lado, se poderia argumentar que as estratgias de colonizao portuguesa e espanhola nas Amricas parecem sugerir outro itinerrio, que contemplaria uma fase do uso da fora, com aniquilamento dos diferentes, alinhavada, em seguida, por processos de persuaso e cooperao que possibilitaram a construo de uma dominao hegemnica.

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    relaes intercontinentais tiveram para a emergncia do capitalismo. Ao lanar luz sobre o lado obscuro da modernidade, o paradigma colonialidade-modernidade clarifica que os diferentes discursos histricos (evangelizao, civilizao, modernizao, desenvolvimento e globalizao) procuram sustentar a concepo arbitrria de que h um padro civilizatrio que , simultaneamente, superior e normal (Lander, 2000). No receiturio clssico da modernidade, bem como nos desdobramentos hodiernos do capitalismo, duas alternativas infernais (Stengers; Pignarre, 2005) tm sido infligidas aos povos subalternizados: uma decorre da completa aniquilao e a outra, da civilizao imposta.

    Inspirado por essa abordagem terico-metodolgica o artigo procurar demonstrar a continuidade dos processos de expropriao de recursos naturais localizados em pases da periferia do capitalismo, que, embora no sejam mais alvo do domnio poltico-administrativo dos colonizadores, ainda funcionam como espao de avano das frentes de acumulao do capital. Para cumprir tal tarefa, primeiramente, avanar na elaborao da ideia de que tem vigorado, no sistema-mundo moderno-colonial, uma atitude utilitarista no tocante explorao das riquezas naturais, consubstanciada por aquilo que aqui se denomina colonialidade na apropriao da natureza. Na sequencia, associar a perpetuao desse modelo agro-minero-exportador continuidade de relaes de dependncia, que, no entanto, vem se configurando de outra maneira, dadas as especificidades do capitalismo contemporneo. Por fim, retomar as contribuies da Teoria da Dependncia, sobretudo a vertente avanada por (Cardoso; Faletto, 1970) procurando expor uma reconceituao dos processos que engendram e reatualizam relaes de subservincia poltico-econmica.

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    COLONIALIDADE NA APROPRIAO DA NATUREZA: as novas formas de uma velha explorao territorial

    Como se procurou sugerir na sesso anterior, h variadas

    formas de expresso e exerccio da colonialidade. Assim, a colonialidade do poder se refere inter-relao entre as formas modernas de explorao e dominao e o processo europeu de expanso colonial. A colonialidade do saber se relaciona com a epistemologia e suas formas de reproduo de regimes de pensamento, enquanto a colo nialidade do ser se refere experincia vivida de colonizao e seus impactos na linguagem e na viso de mundo dos povos colonizados (Maldonado-Torres, 2007). Embora o paradigma modernidade-colonialidade tenha logrado avanar nessas diferentes frentes, Escobar assevera que, no interior dessa corrente de pensamento, h trs reas de grande importncia que tm permanecido sem uma adequada discusso, a saber: as relaes de gnero, uma abordagem da apropriao da natureza e do meio ambiente, e, por ltimo, mas no menos importante, a necessidade de se construir imaginrios econmicos capazes de ancorar lutas concretas contra o neoliberalismo.

    A partir das trilhas j abertas pelo paradigma modernidade-colonialidade, se procurar compreender a insero de novos territrios nos circuitos de acumulao do capital como expresso de uma das lgicas da colonialidade. Para isso, se lanar mo da ideia de que h uma colonialidade na apropriao da natureza, entendida tanto como resultado da construo no interior da modernidade de formas econmico-instrumentais de se pensar e explorar o meio ambiente, quanto como expresso de processos concretos de expropriao territorial que sustentam a lgica prevalecente da acumulao capitalista e mantm em funcionamento o sistema-mundo colonial-moderno. A colonialidade na apropriao da natureza se refere, portanto,

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    existncia de formas hegemnicas de se conceber e extrair recursos naturais considerando-os como mercadorias, ao mesmo tempo em que representa o aniquilamento de modos subalternos de convvio com o meio ambiente, bem como a perpetuao e justificao de formas assimtricas de poder no tocante apropriao dos territrios.

    Se, no colonialismo histrico, a rapina dos recursos naturais se legitimava pela fora e supremacia poltico-militar do Estado colonizador, no contexto de colonialidade na apropriao da natureza, h outros mecanismos de poder que promovem a aceitabilidade da explorao territorial, dentre os quais se destacam: considerao, como vantagem comparativa no mercado mundial, a extrao de riquezas naturais; discurso da disponibilidade de terras vazias, degradadas e inexploradas; necessidade de tornar o territrio economicamente produtivo; criao da ideia-fora de que o progresso e o crescimento econmico se atrelam extrao de riquezas naturais; conciliao e harmonia entre explorao capitalista da natureza e preservao ambiental; e integrao dos produtos primrios economia global como forma de pavimentar o caminho para a era moderna.5 Dito 5 Sobre esse aspecto, elucidador o pronunciamento do Presidente Lula realizado durante a cerimnia de encerramento do Seminrio Empresarial Brasil - Zmbia, ocorrido em julho de 2010, em Lusaka: Olhando o mapa do mundo, onde a gente percebe que tem terra? E no continente africano e no continente latino-americano onde tem terra, onde tem sol e onde tem gua e, portanto, ns temos que fazer disso uma vantagem comparativa na nova forma de investimento e de produo no sculo XXI. Queria dizer aos companheiros da Zmbia que eu estou convencido, e vou repetir aqui uma coisa que eu tenho dito no Brasil: que a savana africana tem as mesmas caractersticas do cerrado brasileiro [...]. E a tecnologia e o manejo do solo transformaram o cerrado brasileiro no maior produtor de gros do mundo por hectare, em um grande produtor de cana-de-acar, em um grande produtor de milho, em um grande produtor de soja, em um grande produtor de qualquer coisa que a gente queira produzir no cerrado brasileiro. E isso, inexoravelmente, acontecer com a savana africana, inexoravelmente. [...] Eu acho que, por isso, ns depositamos tanta f e tanta esperana no

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    em outros termos, durante o perodo do colonialismo histrico, a explorao de bens primrios foi levada a cabo atravs da mo visvel da dominao poltica; agora est organizada por mecanismos de poder operados pela aparente mo invisvel do mercado em associao com a destacada e necessria presena do Estado (Coronil, 2000).

    Como foi visto anteriormente, a expanso territorial e a dominao poltico-econmica das colnias foi condio indispensvel para o desenvolvimento do capitalismo. No cenrio atual, prescindindo de uma dominao poltica de corte colonial que desconhece a soberania dos povos, as grandes corporaes empresariais e os conglomerados financeiros tm se valido do poder econmico para expandir e incorporar novos espaos nos circuitos de acumulao do capital. Nesse sentido, o direcionamento de capitais para a produo brasileira de agrocombustveis6 pode exemplificar a continuidade da incorporao de novos territrios na lgica de acumulao capitalista, alm de evidenciar a vigncia de uma colonialidade na apropriao da natureza, tendo em vista que os recursos naturais so vistos como vantagem comparativa capaz de garantir a integrao economia global. Entre 2004 e 2009, perodo que coincide com os anncios da Unio Europeia e dos Estados Unidos de substituio de combustveis fsseis, a produo sucroalcooleira nacional atraiu mais de US$ 6,3 bilhes de

    continente africano e, sobretudo, levando em conta o potencial ener-gtico deste continente, no apenas pela quantidade de hidreltricas que podem ser construdas aqui, financiadas por bancos brasileiros, construdas por empresas brasileiras. No apenas por isso, mas pelo potencial da produo de etanol (Silva, 2010). 6 A perspectiva adotada neste trabalho no se v representada na noo de biocombustveis, uma vez que essa denominao traz consigo uma aceitabilidade social que vincula a produo de combustveis agrcolas a uma matriz energtica limpa e sustentvel. Ao contrrio disso, optou-se por utilizar a designao agrocombustveis no intuito de enfocar a natureza agrcola, rural e territorial da produo desse insumo energtico.

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    dlares em investimentos estrangeiro direto, e isso representou 5,4% de todos os investimentos estrangeiros diretos aplicados em todo o mercado brasileiro. Desse montante, US$ 4 bilhes e 337 milhes, ou o equivalente a 68,2%, foram direcionados exclusivamente para a fabricao de agrocombustveis (BC/ DESIG, 2010), sendo que, nos anos de 2006 e 2009, nada menos que 92% dos recursos in-vestidos no setor se enderearam para produo de etanol.7

    A insero nacional no mercado de agrocombustveis elucida o funcionamento das novas relaes centro-periferia e, nelas, o Brasil possui uma dupla funo, ao mesmo tempo, neocolonial e imperialista; de um lado, representa o espao de vazo dos capitais acumulados nas economias cntricas ( disposio dos pases que, por sua demanda de combustveis, desejem reduzir suas emisses - os capitais so investidos atravs da atuao de conglomerados internacionais que exploram os recursos naturais e humanos, periferizando o territrio brasileiro em prol do abastecimento energtico das economias cntricas), funo neocolonial; de outro, patrocina o alargamento da atuao das megacorporaes nacionais, que, por sua vez, agem como cntricas e peri- ferizam territrios localizados na frica e nos pases centro-

    7 Em 2007 e 2008, merece destaque o aumento expressivo dos investimentos estrangeiros diretos aplicados no setor, que saram de US$ 499,2 milhes em 2006, para US$ 2 bilhes e 315 milhes em 2007 e US$ 2 bilhes e 285 milhes em 2008. Quando se avaliam os pases de procedncia dos recursos nota-se que, no perodo, marcado pela crise financeira mundial, grande parte dos investimentos adveio de parasos fiscais localizados no mar do Caribe. Ao se somarem os recursos originrios das Bermudas, Ilhas Cayman, Ilhas Virgens e Ilhas do Canal Jersey, obtm-se a cifra de US$ 2 bilhes e 273 milhes, valor que representa 66,2% dos investimentos estrangeiros no setor, do ano de 2007, e 44,6% dos aplicados em 2008. Pode-se sugerir um entrecruzamento entre as crises financeira e climtica atravs do qual se criam novos mercados, que, alavancados pelo discurso da preservao ambiental, transformam a degradao do ar, gua, solos e das populaes em novos circuitos de acumulao de capitais (BC/DESIG, 2010).

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    americanos, ampliando o mercado global de agrocombustveis e possibilitando a insero de novos territrios nos circuitos de acumulao, funo imperialista. Os capitais e empresas brasileiras patrocinadas pela atuao do Estado se expandem na direo de oportunidades mais rentveis de investimento.

    Ao compreender a produo de agrocombustveis como representativa de uma colonialidade na apropriao da natureza, pretende-se indicar a contnua importncia dos recursos naturais para a manuteno da acumulao capitalista, bem como realar a imprescindvel expanso territorial que levada a cabo, simultaneamente, por processos neocolonialistas e imperialistas. Para Lefebvre (1991), o modelo dual, que explicava o processo de acumulao com base na contradio entre capital e trabalho, se tornou incapaz de dar conta da crescente importncia da natureza para a produo capitalista. Do mesmo modo, Veltz (1996), criticando uma economia ortodoxa, desligada da importncia dos territrios e baseada em fluxos financeiros indiferentes aos lugares, afirma que h necessidade de se considerar a relao entre economia e apropriao territorial, em que o territrio entra no jogo econmico como matriz de organizao das interaes econmico-sociais, e no somente como armazm ou conjunto de recursos tcnicos e naturais. O territrio passa, portanto, a ser considerado como estrutura de organizao das interaes sociais e no mais como uma reserva de recursos sem passado ou futuro (Veltz, 1996, p. 15). Assim, reconhecer o papel da natureza no capitalismo expande e modifica os referenciais temporais e geogrficos que marcaram e ainda marcam as narrativas da modernidade (Coronil, 2000).

    Tratar a ocupao territorial da monocultura de cana para produo de agrocombustveis como resultante de uma colonialidade na apropriao da natureza uma tentativa de clarificar a permanncia de um padro de poder com traos

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    colonialistas, que continuamente se revigora, se modifica e se reatualiza, buscando manter a explorao dos territrios. Nesse sentido, conceber a existncia de uma colonialidade na apropriao da natureza caminhar na direo de um projeto de descolonizao simblica e material que indaga as formas hegemnicas de usurpao das riquezas territorializadas que, por sua vez, sustentou e segue sustentando a continuidade da modernidade ocidental. E realar, portanto, a fora de um pensamento outro, calcado no ideal da descolonialidade, que aciona a diferena colonial irredutvel para questionar os valores construdos como centrais (Khatibi, 2001).

    Aqui se nomeia o terceiro termo do paradigma modernidade-colonialidade, que incorpora o potencial da ideia de descolonizao e passa a ser reconhecido a partir da trade modernidade-colonialidade-descolonialidade. Essa trade analtica auxiliaria, portanto, na compreenso da transio do colonialismo moderno colonialidade global, processo que certamente transformou as formas de dominao derivadas da modernidade, mas no modificou efetivamente a estrutura das relaes centro- periferia em escala mundial (Castro-Gomez; Gosfroguel, 2007, p. 13).8 Nessa linha, a retomada das contribuies da teoria da dependncia e da noo de centro-periferia pode clarificar o modo operativo da mquina de produo de desigualdades, que reproduz subalternidades sob a forma da colonialidade global vigente, hoje, nas sociedades interligadas.

    Embora boa parte dos intelectuais que se orientaram pela teoria da dependncia estivesse preocupada em compreender o que desviava os pases perifricos dos trilhos do desenvolvimento, Cardoso e Faletto (1970) compreenderam a prpria ambiguidade poltica do desenvolvimento e enxergaram como, em uma relao de dependncia, os interesses internos se articulam com o 8 Traduo de minha autoria do original em espanhol.

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    restante do sistema capitalista. Desse modo, enfatizaram as tramas sociopolticas que extrapolam uma explicao econmico-desenvolvimentista, que v, nas relaes externas, apenas oposies a supostos interesses nacionais globais, para reconhecer que, antes de uma oposio global, a dependncia articula interesses de determinadas classes e grupos sociais da Amrica Latina com os interesses de determinadas classes e grupos sociais de fora da Amrica Latina (Oliveira, 2003). Para os objetivos deste artigo, in-teressa, portanto, reabilitar o contedo poltico da teoria da dependncia no que tange elucidao dos processos de subalternizao dos pases perifricos economia globalizada, bem como fazer transparecer a pertinncia desse instrumental para a anlise das dinmicas espaciais contemporneas expressas em complexos fluxos de mercadorias e finanas. POR UMA NOVA TEORIA DA DEPENDNCIA: contemporaneidade das relaes centro-periferia e recolonizao econmica

    Para Beigel (2006), em meados da dcada de 1990, a

    maioria dos cientistas sociais considerava a anlise da dependncia como uma perspectiva ultrapassada, desgastada pela globalizao e intil em um contexto de apagamento do Estado-nao. Ocorria, nessa poca, uma reao contra a teoria, paradoxalmente no momento em que a subservincia poltica e econmica era reforada pelo impacto da dvida externa e pela adeso aos preceitos do Consenso de Washington. No obstante, Munck (1999), atento a esse contexto poltico-econmico dos anos 1990, afirmava que a dependncia dos pases latino-americanos ainda no havia desaparecido do mundo concreto e seguia bem viva, sendo alinhavada pelo receiturio neoliberal, que mantinha a f na convergncia entre sociedades industriais avanadas e pases atrasados, fornecedores de matrias-primas.

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    Do mesmo modo, Holloway (2003) sugere que, hoje mais do que nunca, cerca de 20 anos depois que saiu de moda entre as abordagens das cincias sociais, a teoria da depen-dncia continua a fornecer um enquadramento til para a compreenso da Amrica Latina, uma vez que sua abordagem interpretativa e heurstica permanece tendo o poder de nomear e explicar processos de subordinao eco-nmica, poltica, cultural e ideolgica. Assim, na atual fase da globalizao econmica, torna-se ainda mais importante reafirmar e dar continuidade ao desenvolvimento das teorias sociais elaboradas no mbito das naes perifricas. Nos dizeres de Kay (2009), isso no deveria ser interpretado de maneira estreita e chauvinista, mas, pelo contrrio, como uma contribuio dos cientistas sociais latino-americanos a uma teoria crtica internacional de carter mais holstico.9

    Para alm do contexto latino-americano, Amin (2005), retomando preceitos da teoria da dependncia, argumenta que, em conjunto com a tradecntrica composta por EUA, Unio Europeia e Japo, configuram-se hoje trs estratos perifricos, a saber: o primeiro composto por China, os antigos pases socialistas, Coria do Sul, Taiwan, ndia, Brasil e Mxico, que conseguiram construir sistemas produtivos nacionais (potencial ou realmente competitivos). Um segundo estrato, no qual se encontram os pases rabes, frica do Sul, Ir, Turquia e os outros pases da America Latina, que ingressaram na industrializao, mas no conseguiram criar sistemas produtivos nacionais. Por fim, um terceiro estrato que engloba os pases que ainda no entraram na revoluo industrial e apenas alcanam competitividade nos domnios regulados pelas vantagens

    9 Para Ribeiro (2000), depois do fim da era da dependncia, em algum momento da dcada de oitenta, a teoria social latino-americana no foi capaz de recuperar sua proeminncia no cenrio acadmico internacional, com uma abordagem que fosse identificvel com a regio, apesar das brilhantes contribuies de inmeros intelectuais.

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    naturais, minas, petrleo e produtos agrcolas tropicais. Embora essa abordagem procure tornar complexo o quadro das relaes centro-periferia, ainda mantm nfase na lgica dos Estados-nao, bem como pressupe estgios de desenvolvimento mediados pelo processo de industrializao, no realando a complementaridade sistmica entre naes industriais e fornecedoras de insumos bsicos. Ademais, ignora o fluxo de capitais financeiros e de investimento direto que, oriundo do centro, busca valorizao nos pases perifricos, dando novos contornos s relaes centro-periferia.

    A permanncia de anlises como as de Amin (2005), que enfatizam to somente o papel do Estado-nao na compreenso das relaes centro-periferia,10 no captam o fato de que a globalizao neoliberal tem provocado trans-formaes profundas nas relaes entre capital e trabalho, capital e recurso natural, e entre os capitais e os Estados nacionais. Essas transformaes tm permitido um aumento da dominao do capital sobre a sociedade, sobre a natureza e sobre os nveis de regulao e interferncia dos Estados Nacionais (Leiva, 2009). A esse respeito, Arrighi (1996) enfatiza que o aumento no nmero de empresas multinacionais e de transaes, dentro delas e entre elas, tornou-se fator crucial e emblemtico do definhamento do 10 O Estado-nao, mesmo sendo uma das mais importantes instituies do capitalismo histrico, tornou-se um espao limitado para compreenso das relaes centro-periferia e de promoo das transformaes polticas e sociais. Para Grosfoguel (2000), o enfoque clssico da teoria da dependncia, ao no considerar as lutas sociais, acima e abaixo da estrutura dos estados nacionais, como espaos estratgicos de interveno poltica, em parte devido sua tendncia de privilegiar o Estado como unidade de anlise, acabou por comprometer a capacidade explicativa da teoria e acarretou consequncias para o projeto poltico da esquerda latino-americana. Do mesmo modo, ao no enfocar as relaes entre as corporaes transnacionais e o desempenho do papel do Estado, deixou de iluminar, com maior preciso, as interferncias e complementaridades resultantes desse relacionamento.

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    moderno sistema de naes territoriais, que era o lcus primrio do poder. A isso se pode acrescentar o poderio resultante dos fluxos de capitais, que transitam cada vez mais rpidos e menos regulados pelos aparatos estatais.

    Na perspectiva de Schwartzman (2006), a compreenso das relaes de dependncia tem sido reformulada luz da teoria do sistema-mundo colonial-moderno. O termo dependncia, que sempre implicou mais que pobreza ou efeitos prejudiciais da adoo de formas de organizao exgenas, passou tambm a significar a presso de agentes estrangeiros, por intermdio do mercado de capitais, com efeitos negativos tanto sobre as direes do desenvol-vimento econmico nacional quanto sobre a soberania poltica e o bem-estar social da populao. Sendo assim, a abordagem terica deste trabalho procura contribuir para a retomada das discusses da teoria da dependncia, bem como tenta iluminar a continuidade das relaes centro-periferia, agora institudas por intermdio da reconfigurao territorial e dos fluxos de capitais direcionados aos pases da periferia do capitalismo. Essas novas relaes centro-periferia estariam se estruturando por meio dos frequentes deslocamentos de capital e do avano das grandes corporaes transnacionais e conglomerados financeiros, que impem novas formas organizativas de explorao do trabalho e dos recursos naturais territorializados.

    Enquanto a teoria da dependncia, formulada nas dcadas de 1960 e 1970, enfatizava o papel dos Estados-Nacionais no exerccio tanto da funo cntrica como da perifrica, no atual momento histrico, seria mais prudente afirmar a existncia de formas de dependncia levadas a cabo pelo modo operativo das grandes corporaes empresariais e conglomerados financeiros. O Estado e o mercado representariam, nesse esquema, dimenses complementares de um processo unitrio que impulsiona a expanso do capitalismo por meio da perpetuao das relaes centro-

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    periferia.11 Se, antes, a posio de centro era exercida por uma dominao e uma influncia poltica derivada do poder dos Estados, agora seria mais adequado conjeturar que as relaes de dependncia so resultado do poder econmico de grandes corporaes transnacionais e conglomerados financeiros, que se ancoram na lgica de mercado e na influ-ncia poltica dos Estados de origem para fazer valer sua fora de constrangimento.

    No capitalismo atual, o econmico tem se emancipado da submisso ao poltico e se transformado na instncia diretamente dominante que comanda a reproduo e evoluo da sociedade (Amin, 2001). O processo de con-centrao e centralizao dos capitais extrapola, assim, a esfera de controle dos Estados-nacionais e, por meio da ao das corporaes transnacionais, expande a ocupao territorial do capital. Como destaca Oliveira (2007, p. 287) em sua anlise das relaes contemporneas entre capitalismo e poltica:

    A assimetria voltou numa escala que anula a poltica, isto , a possibilidade de escapando a lgica de acu-mulao de capital, redistribuir o poder na sociedade de nosso tempo. Trata-se, agora, da anulao da pol-tica, da colonizao da poltica pela economia.

    Boaventura de Souza Santos (2010) nomeia esse

    processo como o exerccio de governos indiretos, donde poderosos agentes no estatais adquirem o controle dos cuidados com sade e segurana, detm a posse das terras, da gua potvel e das sementes, para, com base em obrigaes contratuais privadas, promoverem a despolitizao da sociedade. Como sugere Beigel (2006), 11 Para Amin (2003) a construo concomitante de centros dominantes e periferias dominadas e sua reproduo em cada etapa do sistema capitalista so prprias do processo de acumulao operante em escala global.

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    tudo indica que, no cenrio atual, ainda mais oportuna a proposio dependentista de produzir um encontro terico entre poltica e economia, uma vez que ele se tornou o terreno onde se d a verdadeira disputa.

    Nesse contexto de esquecimento da poltica e de opulncia da esfera econmica12, marcado pela ampliao do poderio das corporaes empresariais e conglomerados financeiros, argumenta-se, aqui, que as relaes centro-periferia sofreram alteraes, sendo hoje mais adequado vislumbrar a existncia de um regime de dominao exercido por essas corporaes de forma policntrica e gerando multiperiferias. Assim, as novas relaes centro-periferia no estariam mais vinculadas a posies geogrficas estanques, expressas na figura dos Estados territoriais; ao contrrio dis-so, derivariam da ao econmica de corporaes transnacionais e conglomerados financeiros organizados em redes, estruturados territorialmente, apoiados por um Estado-nacional de origem, sendo policntricos e engendrando multiperiferias. A posio de centro deixaria de ser exercida por um ou mais estados nacionais. Romper-se-ia, assim, com a perspectiva de uma relao centro-periferia geogrfica, transitando para um centro-periferia ubquo, levado a cabo por corporaes transnacionais, compostas por capitais trasnfronteirios que atuam em todas as partes do mundo.13 12 Nos dizeres de Paoli (2007), sobre a base de predominncia da economia, se absorve o campo poltico para torn-lo um vasto oikos, no qual os governos se preocupam apenas com um crescimento econmico mal definido, enquanto os cidados se ocupam inteiramente de seu bem-estar material. Dito em outras palavras, a poltica se torna desnecessria na medida em que se nega a possibilidade de alternativas ao atual modelo de desenvolvimento. 13 As foras do mercado internacional dominam com um potencial ainda maior que no passado, e os estados nacionais tm de lev-las em maior considerao nos dias atuais, sob pena de terem de enfrentar grandes retiradas de capital externo, como ocorreu nos casos do Mxico e da Argentina, respectivamente em 1994-1995 e 2001-2002 (Kay, 2009, p.

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    Para Hoogvelt (1997), medida que o capital internacional se faz mais mvel e se separa de suas anteriores limitaes institucionais, as relaes centro-periferia vo se convertendo em relaes sociais, ao invs de se fixarem numa mera relao geogrfica. No contexto das novas relaes centro-periferia, marcadas pela dominncia da esfera econmica e pelo poderio das corporaes transnacionais e conglomerados financeiros, poderia se conjecturar, ecoando as afirmaes de Coronil (2000), que o mercado se apresenta travestido e mascarado pela aparncia de uma estrutura de possibilidades, que encobre sua fisionomia de regime de dominao, criando a iluso de que a ao humana livre e no limitada, a marginalizao, o desemprego e a pobreza aparecem como falhas individuais e coletivas, quando deveriam ser vistas como efeitos inevi-tveis de uma violncia estrutural.

    Nas palavras de Katz (2002), o correlato poltico dessa dominao econmica uma recolonizao da periferia, que se apoia na crescente associao das classes dominantes locais, com seus scios do centro. Esse entrelaamento tem como consequncia a dependncia financeira, a entrega dos recursos naturais e a privatizao de setores estratgicos. A partir dessa imbricao de capitais, Robinson prope ampliar a ideia de hegemonia para alm de uma forma de dominao social inextricavelmente associada ao Estado. Ao contrrio disso, sugere que grupos sociais e classes compostas no cenrio das relaes interestatais passam a exercer a hegemonia, operando de forma transnacional e utilizando outros arranjos e formas institucionais. Nessa abordagem, a 572). Para Boltanski e Chiapello (2009), o estabelecimento dessas novas formas de organizao em rede torna as firmas muito mais flexveis e muito menos frgeis do que as grandes empresas nacionais do passado. Assiste-se, assim, ao desenvolvimento de um capitalismo marcado pela preponderncia de megacorporaes empresariais, cada vez mais poderosas e autnomas em relao aos Estados, que se tornam cada vez mais fracos.

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    hegemonia passa a ser exercida por uma classe capitalista transnacional que se constitui por intermdio da globalizao dos fluxos financeiros e de mercadorias.

    Essa forma de dominao do capital transnacional ocorre, portanto, quando os capitais nacionais expandem seu alcance para alm das fronteiras e se fusionam com outros capitais nacionais j internacionalizados, dando origem a um processo transfronteirio que os desincorpora da pertena nao e os situa em um novo espao supranacional, no mais orientado pela valorizao estrita do capital de origem nacional (Robinson, 2004). O avano transfronteirio dos capitais tem desencadeado uma apropriao privada dos recursos naturais territorializados em pases tidos como atrasados. Uma parte considervel desses recursos vem se transformando, quase que inevitavelmente, em propriedade privada de empresas transnacionais (Leiva, 2009). Embora os capitais tambm se direcionem para atividades industriais e tecnolgicas, o montante principal tem sido investido em ramos atrelados ao complexo agro-minero-exportador.

    Para se ter uma ideia desse processo, em 2008, ingressaram, no Brasil, US$ 43,8 bilhes de dlares de investimento estrangeiro direto, sendo US$ 12,9 bilhes destinados s atividades de agricultura, pecuria e extrativa mineral, outros US$ 6,7 bilhes para metalurgia e fabricao de coque, derivados de petrleo e bicombustveis, e mais US$ 5,7 bilhes em investimentos diretos em atividades do servio financeiro. Assim, o ramo extrativo e de apropriao de recursos naturais somado aos investimentos diretos em atividades do setor financeiro, totalizaram US$ 25,3 bilhes de dlares, representando 57,8% de todos os investimentos diretos aplicados no pas. Por outro lado, ao se somarem os investimentos na fabricao de equipamentos de informtica, produtos eletroeletrnicos e pticos, na fabricao de mquinas, aparelhos e materiais eltricos e na produo de mquinas e equipamentos diversos, obtm-se

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    US$ 986,6 milhes de dlares, que, expressos de outra for-ma, representam 2,2% dos investimentos estrangeiros diretos (BC/DIFIS, 2009).

    Ao analisar esses fluxos financeiros da economia global, Patnaik (2005) visualiza um processo de acumulao de capitais que denomina acumulao por meio da invaso, donde certos blocos de capital crescem atravs do deslocamento (o que significa expropriao ou compra a preos descartveis) de outros blocos, expandem-se por meio do despojamento de formas pr-capitalistas de produo ou de setores comandados pelo Estado, bem como atravs da apropriao de recursos comuns que no formavam parte da propriedade privada. Como boa parte dos investimentos diretos de capital externo, associados ou no ao capital nacional, destina-se explorao e apropria-o de recursos naturais, isso tem impactado negativamente os modos de vida e as formas de reproduo social de inmeros grupos que so subalternizados pela lgica excludente da acumulao de capitais.

    Grfico 1: Exportaes brasileiras por tipo de produto - 1970-2010 Fonte: MDIC/DEPLA, C2011.

    Ainda que, no contexto atual, o comrcio intersetorial de

    manufaturas e produtos bsicos j no defina as relaes

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    centro-periferia, haja vista a instalao de indstrias transnacionais nos pases tidos como atrasados, como se pde notar no exemplo brasileiro da produo de agrocombustveis, um grande percentual dos investimentos estrangeiros tem se destinado apropriao privada de recursos naturais e territrios. Para Di Filippo (1998), a tendncia de mudana, impulsionada pela migrao de empresas multinacionais para a periferia, est clausurando as formas intersetoriais de comrcio que caracterizavam o paradigma centro-periferia, onde o centro fornecia produtos manufaturados e a periferia produtos bsicos. Essa forma de intercmbio estaria sendo substituda pelo comrcio intraindustrial e intrafirmas, com as corporaes transnacionais produzindo bens manufaturados na periferia e exportando para as economias cntricas. Entretanto, os da-dos brasileiros de comrcio exterior, ilustrados no grfico disposto a seguir, sugerem uma inverso na pauta de exportaes a partir do ano 2000, com os produtos manufaturados perdendo fora e os bsicos crescendo em relevncia.

    Ao se relacionar os dados do grfico com os valores de investimento estrangeiro direto apresentados anteriormente, constata-se que o ingresso de capitais na apropriao privada e explorao de recursos naturais tem resultado em um crescimento das exportaes de produtos primrios; dito de outro modo, plausvel sugerir uma vinculao entre a extrao de riquezas naturais, a exportao de produtos pri-mrios e a valorizao dos capitais que aportam no Brasil. Para Coronil (2000), a globalizao neoliberal tem homogeneizado e feito abstratas diversas formas de riqueza, incluindo a natureza, que vem se convertendo, para muitos pases, em sua vantagem comparativa mais segura e sua fonte principal de ingresso14.

    14 Em artigo publicado no Le Monde Diplomatique, o Sub-comandante Marcos argumenta que a globalizao moderna e o neoliberalismo como

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    Esse exemplo da relao entre exportao de produtos bsicos e ingresso de investimento estrangeiro direto clarifica o fato de que a acumulao capitalista est fundamentalmente enraizada na trade; apropriao de sistemas ecolgicos, explorao do trabalho e valorizao financeira. Nota-se, portanto, que a insero brasileira na economia global tem se processado atravs da dilapidao do patrimnio natural, da degradao e contaminao do meio ambiente, da explorao de mo de obra barata ou em regime de escravido, da expropriao de populaes camponesas e da subservincia aos mecanismos de valorizao financeira. Agregue-se a isso o fato de que os princpios de conservao e preservao ambiental que j foram impostos s corporaes industriais pelos governos dos pases centrais, a fim de racionalizar a utilizao dos recursos naturais, nunca so aplicados na mesma medida em pases perifricos, onde o imperialismo ecolgico abertamente vem impondo suas marcas (Clark; Foster, 2009).15 sistema mundial devem ser reconhecidos como uma nova guerra de conquista de territrios. Nessa nova guerra, a poltica, como organizadora do Estado-nacional, no existe mais, foi tragada pela esfera econmica, e os polticos se transformaram em modernos administradores de empresas interessados em gerir os negcios estatais como se estivessem frente de lojas de departamentos (Marcos, 1997). 15 Clark e Foster (2009) caracterizam o imperialismo ecolgico como algo que cria assimetrias na explorao do meio ambiente, impulsiona a troca desigual e provoca uma ruptura metablica global, agravando a subordinao das naes perifricas. Nesse cenrio, os acordos internacionais de comrcio, influenciados pela dinmica da economia global e pelas posies dentro do sistema-mundo, afetam e impactam negativamente as condies socioecolgicas dos pases extrativistas e perifricos. Na avaliao de Hornborg (1997), no possvel compreender a acumulao, o desenvolvimento ou a moderna tecnologia ocidental, sem se referir a esse intercmbio comercial entre naes e o modo como os valores de troca se relacionam termodinmica. Para o autor, uma juno entre economia ecolgica e leis da fsica possibilita compreender a maneira atravs da qual as instituies de mercado

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    A regresso primrio-exportadora atualmente verificada no Brasil, em associao com a entrada de investimento estrangeiro direto no controle e apropriao de recursos naturais, so amostras da continuidade de um processo dotado de razes estruturais, assim como da pertinncia de uma anlise calcada nos pressupostos da teoria da dependncia. Schwartzman (2006) vai mais longe e afirma que as relaes de dependncia consolidadas atravs dos fluxos de capitais tm ameaado afetar at mesmo a legitimidade da democracia brasileira. Para a autora, a adoo, na ltima dcada, do paradigma do liberalismo por parte dos governos brasileiros, embora componha as diretrizes da nova globalizao, no alteraram os fundamentos do processo, ou seja, no interior das relaes entre naes desenvolvidas e em desenvolvimento, ainda persiste o componente da dependncia. A esse respeito, a reprimarizao da economia, que tem vigorado nos pases latino-americanos, pode ser considerada como um indicativo da continuidade das relaes de dependncia e um retorno s formas de controle colonial baseadas na explorao de produtos primrios e de fora de trabalho barata (Coronil, 2000, p. 99).

    No momento atual, em que talvez a caracterstica mais importante da nova fase do imperialismo seja a abertura comercial e o aperto territorial que se impe economia ru-ral dos pases tidos como atrasados (Patnaik, 2005), a juno entre imperialismo, teoria da dependncia, relaes centro-periferia e paradigma modernidade-colonialidade pode ser til na compreenso das dinmicas de reconfigurao organizam a transferncia lquida de energia e materiais para os centros do sistema. De acordo com esse raciocnio, os preos de mercado e a troca desigual so mecanismos arbitrrios por meio dos quais as economias centrais do sistema-mundo extraem energia e exportam entropia para suas periferias. Nesse sentido, o intercmbio desigual vigente no sistema-mundo colonial-moderno reproduz as mquinas e essas, por sua vez, reproduzem o intercmbio desigual.

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    territorial impostas ao meio rural brasileiro, bem como ajuda a clarificar as formas de insero da produo de commodities na economia mundial. Ao remontar s razes histricas, epistmicas, poltico-econmicas, culturais e ideolgicas que interligam os territrios latino-americanos, sobretudo o brasileiro, s lgicas operativas do capitalismo transnacional, o presente artigo intentou construir uma perspectiva terico-metodolgica, que permita iluminar o cenrio atual de insero de novos territrios nos circuitos de acumulao do capital. A linha de raciocnio aqui trilhada ambicionou realar que o estudo de uma frente atual de expanso do capitalismo permite a anlise concreta de um processo que reproduz, em algumas de suas linhas mais gerais, uma etapa da prpria formao histrica do Brasil, na medida em que as atuais frentes podem ser consideradas, de certa maneira, como as continuadoras do processo histrico de expanso e colonizao territorial (Velho, 1972). REFLEXES FINAIS Duas coisas bem distintas / Uma o preo, outra o valor / Quem no entende a diferena / Pouco saber do amor, da vida, da dor, da glria / E tampouco dessa histria / Memria de cantador [... 1 E at o velho Chico cantou pra todo mundo ouvir: Hay que, hay que, eike, hay que, hay que, hay que resistir! El Efecto.

    Msica O Encontro de Lampio com Eike Batista, 2012. Ao lanar mo da ideia de que h uma colonialidade na

    apropriao da natureza, entendida tanto como resultado da construo no interior da modernidade de formas econmico-instrumentais de se pensar e explorar o meio ambiente quanto como expresso de processos de expropriao territorial que sustentam a lgica prevalecente da acumulao capitalista, procurou-se elucidar o papel da

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    episteme na legitimao da expanso territorial e dos des-locamentos da lgica de acumulao. A produo de um conhecimento silenciador de outras realidades e de modos distintos de uso, significao e apropriao da natureza representa, assim, uma arma importante na justificao de processos expropriatrios que continuamente tm promovido a rapina dos recursos territorializados nos pases periferizados. A colonialidade na apropriao da natureza vista, portanto, como expresso de novos mecanismos de poder, que se traduzem na existncia de formas hegemnicas de se conceber e explorar os recursos naturais, considerando-os unicamente como mercadorias, ao mesmo tempo em que evidencia o aniquilamento de modos subalter-nos de convvio com o meio ambiente, bem como a perpetuao e justificao de formas assimtricas de apropriao dos territrios.

    Ao retomar as discusses da teoria da dependncia, visando a analisar as dinmicas de avano do capitalismo, tentou-se iluminar a continuidade das relaes centro-periferia que estariam se estruturando por meio dos fre-quentes deslocamentos de capital e do avano das grandes corporaes transnacionais e conglomerados financeiros, que impem novas formas organizativas de explorao do trabalho e dos recursos naturais territorializados. Enquanto a teoria da dependncia, formulada nas dcadas de 1960 e 1970, enfatizava o papel dos Estados-nacionais no exerccio, tanto da funo cntrica como perifrica, no atual momento histrico, seria mais prudente afirmar a existncia de formas de dependncia levadas a cabo pelo modo operativo das grandes corporaes empresariais e conglomerados finan-ceiros. O Estado e o mercado representariam, nesse esquema, dimenses complementares de um processo unitrio que impulsiona a expanso do capitalismo por meio da perpetuao das relaes centro-periferia.

    Por ltimo, mas no menos importante, vale destacar que este trabalho foi sendo construdo ao modo de quem

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    monta um quebra-cabea, cujas peas pertencem a diferentes figuras. Assim, mesclando-se cores, matizes, tradies intelectuais, tempos e perspectivas, procurou-se iluminar a contnua insero de novos territrios nos circuitos de acumulao do capital. Ainda que algumas peas desse quebra-cabea tenham sido encaixadas sem muita perfeio, quase empurradas por uma curiosidade que ainda desconhece as feies da totalidade, espera-se, maneira do que sugere Coronil (2003), que esse encaixe imperfeito, essa figurao derivada do equvoco, permita vislumbrar algo no imaginado antes, de modo que aquilo que ainda no se encaixa corretamente possa oferecer uma inesperada iluminao. REFERNCIAS

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  • O progressismo como modernizao

    unidimensional no Brasil Moyss Pinto Neto1

    1. Introduo: o ciclo progressista na Amrica do Sul Sabe-se que a Amrica do Sul passa por um ciclo de mais de dez anos de governos identificados com a esquerda que em alguma escala se opem lgica "neoliberal". Iniciado pela eleio de Hugo Chvez na Venezuela em pleno apogeu do discurso liberal nos anos 90, o ciclo foi ganhando reforos com as eleies de Evo Morales (Bolvia), Rafael Correa (Equador), Lus Incio Lula da Silva e Dilma Rousseff (Brasil), Nestor e Cristina Kirchner (Argentina), Fernando Lugo (Paraguai, depois deposto em impeachment), Jos Mujica e Tabar Vsquez (Uruguai) e Ollanta Humala (Peru). Dos principais pases do subcontinente sul-americano, portanto, apenas a Colmbia permaneceu sob influncia mais direta do neoliberalismo (em especial devido ao problema da violncia de grupos organizados) e o Chile em uma alternncia de lderes, mais recentemente tendo reconduzido ao cargo Michele Bachelet (de centro-esquerda) depois de um intervalo sob o governo de Sebastin Piera (centro-direita). Esse ciclo sul-americano designado por alguns como era "ps-neoliberal".

    Tomemos o exemplo - que ser sempre a principal referncia do presente ensaio - brasileiro. A filsofa Marilena 1 Doutor em Filosofia (PUCRS) e Professor da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra). Contato: [email protected].

  • Reflexes desde a Amaznia 49

    Chau, tradicionalmente identificada com o Partido dos Trabalhadores, separa o Brasil em dois momentos simblicos: do "bolo de noiva" que inaugura, em 1990, a Era Collor e com ela o perodo neoliberal, at a resposta de Lula pergunta singela do ncora do Jornal Nacional, em 2002, logo aps as eleies. O primeiro momento teria como referncia o edifcio "Bolo de Noiva", onde se reunia a equipe econmica de Collor - regida pela lgica dos "humores" dos mercados -, enquanto o segundo seria marcado pela resposta de Lula questo sobre o "nervosismo dos mercados", feita com "um sorriso levemente irnico: 'Vocs no tm outros assuntos? Cad a fome, o desemprego, a misria, a desigualdade social?'" (Chau, 2013, p. 126). Para a filsofa, enquanto o "bolo de noiva" sinalizaria a entrada do Brasil na era do neoliberalismo, o pronunciamento de Lula teria sido sua sada. Da mesma forma, Emir Sader, outro dos principais intelectuais identificados com o governo brasileiro, afirma que os mandatos do Partido dos Trabalhadores (PT), ao lado dos parceiros sul-americanos, teriam ajudado a construir uma "hegemonia ps-neoliberal" baseada na priorizao das polticas sociais sobre os ajustes fiscais, a integrao regional e os intercmbios Sul-Sul sobre tratados de livre-comrcio com os Estados Unidos e valorizao do Estado como indutor do desenvolvimento, em contraponto em Estado mnimo neoliberal (Sader, 2013, p. 138).

    O presente texto problematiza esses raciocnios como excessivamente simplistas, binrios e at maniquestas, apresentando os dilemas dos ltimos anos da conjuntura brasileira durante os governos do PT e interpretando a virada tecnocrtica para o neodesenvolvimentismo como um processo de modernizao unidimensional que, alm de perder a riqueza multinatural disponvel no pas, apresenta limites que j foram e ainda esto sendo experimentados pelos prprios pases que hoje servem de exemplo.

  • 50 Governo, cultura e desenvolvimento

    2. Do lulismo tecnocracia progressista O pensamento social brasileiro vem consolidando o

    termo "lulismo" para definir o perodo de governo do Partido dos Trabalhadores (PT), desde 2002 at os dias de hoje. Apesar das variaes nas anlises, a verso que acabou se tornando mais forte do fenmeno acabou vindo de Andr Singer (2012), que definiu o lulismo como um "pacto conservador" entre classes que se baseava na ideia de que era possvel melhorar a condio de vida dos "de baixo" da pirmide social brasileira sem que isso significasse uma transformao dessa estrutura. Para Singer, quando Lus Incio Lula da Silva assumiu a Presidncia da Repblica o PT era um partido identificado com intelectuais de esquerda, funcionrios pblicos, sindicalismo, movimentos sociais e parte da classe mdia, afinado com ideais prximos ao socialismo (anticapitalistas). Singer nomeia essa "alma" do PT de "alma de Sion". Mais tarde, sobretudo a partir da Carta ao Povo Brasileiro, feita s vsperas da eleio de 2002, o PT transmite uma mensagem de moderao, aceitando compromissos com o sistema financeiro e admitindo concesses que se expressaram, por exemplo, com a aliana com o ento PL (Partido Liberal) e a vice-presidncia dada ao empresrio Jos Alencar (Singer, 2012, pp. 84-124). Eleito, o partido enfrenta algumas graves crises, como a expulso da corrente mais esquerda a partir da reforma da Previdncia Social, entendida por esses setores (que mais tarde se tornariam o PSOL) como neoliberal, mas sobretudo a crise do "Mensalo", escndalo de corrupo envolvendo o partido e aliados, em 2005. Nesse momento, a oposio esperava o enfraquecimento do governo e a consequente derrota eleitoral em 2006, porm foi surpreendida com o acontecimento subterrneo - isto , fora dos holofotes da grande mdia - de uma nova aliana de sustentao do "lulismo". Para Singer, o Programa Bolsa-Famlia, a valorizao do salrio-mnimo, as polticas de microcrdito e

  • Reflexes desde a Amaznia 51

    outras iniciativas teriam provocado o deslocamento do eleitorado tradicional do PT, agora decepcionado com a corrupo e as "traies", para um novo setor, que ele nomeia "subproletariado" e teria se beneficiado diretamente dessas polticas (Singer, 2012, pp. 51-83; ver tambm Souza, 2012, pp. 199-255).

    Sem que tenha sido percebido claramente no momento, o lulismo movia-se no subterrneo da sociedade brasileira formando o "pacto conservador" que consistia, como j dito, em um acordo entre classes a partir do qual todas se beneficiaram, do mais alto at o mais baixo da pirmide social. Para isso, evidentemente Lula precisou contar com um ciclo mundial de bonana econmica, conhecido como boom das commodities, e segundo Singer teve a "virt" de saber aproveitar o espasmo para distribuir o bolo de modo a atingir a frao mais vulnervel da populao. Ento, consolidando esse novo pacto na sociedade brasileira, Lula pde deflagrar polticas que envolviam a incluso da "ral estrutural" - usando um termo do socilogo Jess Souza para designar a enorme frao da sociedade brasileira sem acesso a todos os direitos de cidadania (Souza, 2009) - e firmado um setor social ascendente cujos nomes variam entre "precariado", "classe C", "nova classe trabalhadora", "batalhadores" ou at "nova classe mdia", beneficirio de polticas pblicas como o aumento de salrio mnimo, expanso do crdito, programas de bolsas e financiamentos da universidade, entre outros (Souza, 2012; Cocco, 2013; Braga, 2013). O governo Lula a partir disso dinamiza a sociedade brasileira, movendo para cima os ndices econmicos a partir da ativao desse setor que at ento apenas lutava pela sobrevivncia. Com isso, mesmo aps o choque do "Mensalo", Lula recuperava a popularidade e o governo situava-se em nveis altssimos de aprovao, ainda que em boa parte dependentes do carisma do lder (e por isso tido como "populista" pelos seus adversrios, embora o prprio Andr Singer comparasse o

  • 52 Governo, cultura e desenvolvimento

    lulismo a um "bonapartismo") (Singer, 2012). O "pacto conservador" envolvia tambm, por bvio enquanto conservador, a aliana com setores polticos tradicionais, reforando a cultura poltica do "imobilismo" nomeada por Marcos Nobre de "pemedebismo", estratgia de governabilidade mantida como retaguarda contra qualquer desestabilizao poltica (Nobre, 2013). Essa polifonia de polticas pblicas - que envolviam eixos como meio ambiente, renda mnima, educao, cultura, demarcao de terras para indgenas e quilombolas, negociaes internacionais etc. -, apesar dos pesares, provoca clima de euforia que toma o Brasil e consegue agradar a amplos setores, dada a sua multiplicidade de focos.

    No entanto, desde 2006 e mais acentuadamente a partir de 2008, com a crise internacional do estouro da bolha imobiliria dos Estados Unidos, o governo passa a ter uma inflexo "neodesenvolvimentista". A figura de Dilma Rousseff, ento Ministra da Casa Civil e "gerente" do Programa de Acelerao e Crescimento, vai ganhando mais fora poltica e prestgio no governo. Uma vez que o ciclo econmico positivo da exportao das commodities esfriado, passa-se a um plano de desenvolvimento interno baseado em um programa de "modernizao" com padres industrialistas tpicos do imaginrio econmico cinquentista, sempre preocupado em resolver os "gargalos" que atravancariam o crescimento nacional2. Do ponto de vista programtico, forma-se uma aliana entre setores alinhados ideia de social-democracia no campo das cincias humanas e da intelectualidade de esquerda com o economicismo industrialista - chamado no Brasil "heterodoxo" na medida

    2 Para uma viso mais oficialista (e otimista) dessas polticas, ver Singer, 2012; Bresser-Pereira, 2013; Barbosa, 2013; Beluzzo, 2013; Pochmann, 2013; Dedecca, Trovo e Souza, 2014. O trabalho de Nelson Barbosa, em especial, divide em etapas os planos econmicos e suas mudanas dos ltimos anos.

  • Reflexes desde a Amaznia 53

    em que se oporia ao neoliberalismo dos "ortodoxos" e abriria uma via para o crescimento brasileiro paralela s solues que seguiriam o receiturio dos rgos internacionais (FMI, por exemplo). Por isso, seus adeptos - como j vimos na introduo - afirmavam que se estaria diante de um "ps-neoliberalismo", sobretudo a partir da sincronia com os outros governos "progressistas" da Amrica do Sul que aplicavam ideias semelhantes3.

    A inflexo desenvolvimentista aumenta com a eleio de Dilma Rousseff, em 2010, quando a polivocidade das estratgias lulistas substituda por uma viso linear e economicista de progresso e desenvolvimento. Cito a respeito dois exemplos emblemticos dentre outros possveis: a rea ambiental e a cultura. A primeira, que esteve sob o comando da ambientalista Marina Silva durante a maior parte dos mandatos de Lula, pela primeira vez reduzia

    3 Assim, poderamos dividir em trs braos polticos essa segunda etapa do progressismo no Brasil (que se tornaram totalmente visveis sobretudo nas eleies de 2014, quando o projeto estava em disputa): primeiro, o "apoio crtico" daqueles que, feitas ressalvas a certas concesses do progressismo a setores retrgrados da sociedade, entendiam-no como "mal menor" e, apesar de tudo, capaz de promover transformaes sociais relevantes, composto por intelectuais como por exemplo Boaventura de Souza Santos, Frei Betto, Jess Souza, Renato Janine Ribeiro e Leonardo Boff; segundo, apoio econmico-ideolgico, com Mangabeira Unger, Mrcio Pochmann, Marcelo Neri, Luis Carlos Bresser-Pereira, Luiz Gonzaga Beluzzo e Andr Singer, sempre entendendo o plano de crescimento brasileiro como uma necessidade obliterada pelo neoliberalismo que daria seguimento ao nacional-desenvolvimentismo da Ditadura Militar, porm agora de modo mais democrtico, distributivo e apostando na "aliana com a burguesia industrial"; e, finalmente, o terceiro grupo da adeso incondicional, como o caso de Emir Sader, Marilena Chau e outros intelectuais que suspenderam qualquer crtica em nome da unidade poltica da esquerda, porquanto toda e qualquer observao contrria aos rumos do governo seria automaticamente um alinhamento e fortalecimento da direita golpista. Mais tarde, esses ltimos especialmente, mas em alguma escala todos, ficaram conhecidos como "governistas".

  • 54 Governo, cultura e desenvolvimento

    significativamente o nvel de desmatamento da Amaznia, construra um plano de desenvolvimento regio que seria "carro-chefe" do governo ao lado do PAC e, por fim, tocando na geopoltica dos combustveis fsseis a partir da defesa internacional do etanol como biocombustvel ("energia limpa") em comparao com o modelo do petrleo, deixada sob a batuta da Ministra Izabella Teixeira, cujas declaraes no cansam de relativizar a questo ecolgica em nome do "progresso econmico" justamente em um front que - espera-se - seja de resistncia. Os licenciamentos so encarados como "entraves" a ser "desburocratizados" e a orientao em relao aos combustveis fsseis totalmente abandonada a partir da descoberta do Pr-Sal, passando o Brasil a uma posio conservadora nos fruns internacionais de debate sobre a transformao do modelo em face das mudanas climticas4. Uma linha mais agressiva em relao ao meio ambiente, capitaneada pelos Ministros Aldo Rebelo e Roberto Mangabeira Unger, d o tom da poltica ambiental do Governo, aprofundando-se a partir do primeiro mandato de Dilma (Cesarino, 2008, pp. 272-273; Viveiros de Castro, 2011a). A partir dessa inflexo, o Governo passa a enfrentar uma crtica mais cida por parte dos ambientalistas e resistncia dos povos indgenas e tradicionais, sobretudo em relao construo da Usina de Belo Monte. O Ministro Mangabeira Unger declara que a Amaznia no pode ser reduzida "coleo de rvores". Na verdade, pode-se dizer que h dvidas se o Governo reconhece o problema climtico como, por exemplo, expressa o seguinte trecho de carta pblica do Ministro Aldo Rebelo: 4 Mesmo na coletnea oficialista de textos organizada por Emir Sader (usada aqui como referncia do pensamento governamental), o trabalho relativo ao contexto ambiental muda o do tom da euforia para a frustrao, admitindo que o tema no fez parte da agenda governista e fica restrito ainda esfera legal (Vieira e Cader, 2013, especialmente pp. 231, 234 e 238).

  • Reflexes desde a Amaznia 55

    O cientificismo positivista que voc ope minha devoo ao materialismo dialtico como uma cincia da natureza no ter o condo de me converter doutrina de f que a teoria do aquecimento global, ela sim incompatvel com o conhecimento contemporneo. Cincia no orculo. De verdade, no h comprovao cientfica das projees do aquecimento global, e muito menos de que ele estaria ocorrendo por ao do homem e no por causa de fenmenos da natureza. Trata-se de uma formulao baseada em simulaes de computador. De fato, por minha tradio, filio-me a uma linha de pensamento cientfico que prioriza a dvida certeza e no deixa a pergunta calar-se primeira resposta. A par dos extraordinrios avanos e conquistas que a Cincia tem legado ao progresso da Humanidade, inserem-se em sua trajetria inumerveis erros, fraudes ou manipulaes sempre tecidas a servio de interesses dos pases que financiam determinadas pesquisas ou projees. Tenho a curiosidade de saber se os que hoje acatam a teoria do aquecimento global e suas afirmadas causas antropognicas como um dogma ptreo so os mesmos que h alguns anos anunciavam, como idntica certeza divina, o esfriamento global. Tal cientificismo tem por trs o controle dos padres de consumo dos pases pobres, e nesse ponto permita-me repudiar a pecha de delrio pseudonacionalista pois so profusamente evidentes as manobras para estocagem dos nossos recursos naturais com vistas melhor remunerao da produo agrcola dos pases desenvolvidos. Ao contrrio do que pensam os que mudaram muito mais do que mudou o mundo, o chamado movimento ambientalista internacional nada mais , em sua essncia geopoltica, que uma cabea de ponte imperialista5.

    5 Como no poderia deixar de ser, alm de maltratar as cincias empricas chamando-as de "positivismo" pura e simplesmente, o Ministro no pode deixar de praticar o ato falho de expressar sua devoo ao materialismo dialtico enquanto contrasta com o ceticismo quanto

  • 56 Governo, cultura e desenvolvimento

    Da mesma forma, a poltica multifacetada de cultura

    dos Ministros Gilberto Gil e Juca Ferreira que envolvia movimentos de questionamento do selo copyright e a partir da disseminao dos "pontos de cultura", que valorizavam a cultura local e amplificavam as redes de envolvimento comunitrio, substituda por uma gesto burocrtica e alinhada com os interesses empresariais e do establishment artstico a partir da nomeao de Ana Buarque de Holanda (Avelar, 2015, pp. 164-166). O processo que havia deflagrado - voluntria ou involuntariamente - o "lulismo" era de uma poli