Upload
others
View
1
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
1
CULTURA VISUAL E MODERNIDADE PELAS LITOGRAFIAS DE JULES
MARTIN
Mateus Pavan de Moura Leite (Unicamp)
Resumo:
O litógrafo Jules Martin instalou a sua oficina na cidade de São Paulo em 1870, um período de
intensificação da economia visual da cidade em razão da demanda crescente de imagens pelo
comércio e pelas novas práticas de consumo da população. Considerando que suas litografias
tiveram na cidade um tema dileto e que o momento de seu estabelecimento coincide com uma
frequente exaltação do progresso paulista, procura-se mostrar como Martin se alinha a um
discurso progressista e como suas representações participam da constituição de uma ideia
moderna da cidade. Algumas de suas vistas e mapas são analisados buscando-se evidenciar as
suas significações sociais e implicações políticas através da investigação de suas formas de
circulação e consumo. Com destaque para as imagens utilizadas para apresentar publicamente
projetos urbanísticos e representar as festas de inauguração das estações ferroviárias pela
província, explora-se a escolha temática e o tratamento visual dado a estes assuntos para a
formação desta nova imagem de São Paulo.
Palavras-chave: Jules Martin, Litografia, Cultura Visual, São Paulo
Abstract:
The lithographer Jules Martin installed his workshop in São Paulo in 1870, a period of
intensification of the city's visual economy given the rising demand for pictures by the commerce
and the population's new consumption practices. Considering that his lithographies' prevalent
theme was the city and his establishment moment coincides with a recurrent exaltation of São
Paulo's progress, the communication aims to show how Martin aligns himself with a progressive
discourse and how his representations take part and constitute a modern idea of the city. Some of
his views and maps are analysed with the purpose of evidencing the options that the author made
in its making and exploring their social significances through the investigation of their forms of
circulation and consumption. Highlighting the pictures used to publicly present urban projects
2
and to represent the province's railway stations' opening parties, it finally considers the thematic
choices and visual treatment given to these subjects for the composition of this new São Paulo's
image.
Keywords: Jules Martin, Lithography, Visual Culture, São Paulo
3
Ao longo do último terço do século XIX, período de instalação e atuação profissional do
litógrafo Jules Martin, o futuro da cidade e da província de São Paulo foi objeto de frequentes e
exaltadas discussões. Procurando ressaltar a importância da litografia para experiência visual
oitocentista e a sua participação na constituição dos modos de ver a cidade naquele momento, a
hipótese central da pesquisa em andamento e circunscrita na presente comunicação é de que
Martin e sua obra foram parte importante no processo de construção de uma ideia moderna de
São Paulo naquele momento. Procura-se mostrar como a escolha de temas e o tratamento dado à
cidade nestas representações está centrado em uma celebração do progresso, podendo-se
inclusive estabelecer uma narrativa modernizadora diante do conjunto de sua obra. Para tanto,
inicia-se o texto apresentando algumas características fundamentais das formas de produção,
circulação e consumo de suas imagens, para posteriormente explorar algumas selecionadas diante
destas questões postas e dos assuntos representados.
Recém-chegado da França, Martin inaugura a primeira oficina litográfica da cidade de
São Paulo em 1870, década que, além de ter sido caracterizada por Orlando Ferreira como a de
maior desenvolvimento da técnica litográfica no Brasil (FERREIRA, 1994), foi vista por muitos
como um ponto de virada para São Paulo. Um bom exemplo desta crença está em um texto
contemporâneo de Américo de Campos, quem dividiu a evolução da cidade em três grandes
etapas: “a cidade dos padres jesuítas e capitães-mores, a cidade acadêmica e a cidade da
civilização, a nova cidade que transfigura-se e cresce a nossos olhos, erguendo-se e
emancipando-se a pouco e pouco das feias antigualhas do passado” (LISBOA, 1983, pp.145-
155). Para Campos, o ano emblemático para esta terceira fase foi 1872, data que se repete na
análise posterior de Eurípedes S. de Paula como a segunda fundação de São Paulo, de acordo
com suas estatísticas econômicas e demográficas, como também pela marcação da posse de João
Teodoro como presidente da província e dos melhoramentos urbanos inaugurados naquele ano
4
(PAULA, 1954, pp.167-179).
Não se pretende reafirmar esta coincidência temporal procurando inserir a instalação da
oficina de Martin em um processo súbito de desenvolvimento urbano, mas procurar esclarecer
como sua produção de imagens toma parte em um momento de crença no progresso da cidade e
da província. De diferentes maneiras, e por vezes discretamente, as imagens de Martin se alinham
ao tom destes discursos e reafirmam a experiência de que se vivia em um tempo de mudanças.
Para que se possa explorar estes paralelos, porém, é necessária uma aproximação das maneiras
com que as imagens fizeram parte da experiência urbana e do debate político daquele período
histórico. Neste sentido, o estabelecimento de Jules Martin deve ser compreendido levando em
consideração um cenário nacional de popularização da técnica litográfica e principalmente de
fortalecimento de uma nova e abrangente demanda de imagens em São Paulo. O comércio e a
indústria paulista crescem em paralelo ao aumento populacional da cidade e se tornam
importantes produtores e consumidores de ilustrações no que toca a publicidade e o próprio
funcionamento de seus negócios. Tais empresas passaram a anunciar mais frequentemente seus
serviços na imprensa e os desenhos estamparam os seus cartazes e rótulos, assim como suas
faturas e recibos. Exemplos de produções inscritas em um processo mais amplo de intensificação
da cultura visual oitocentista que afetou profundamente a vida cotidiana de habitantes de uma
cidade como São Paulo, que passa a conviver em meio à fotografia e à imprensa ilustrada,
cultivando novos hábitos de consumo, difusão e colecionismo de imagens. É neste cenário de
valorização de uma imagem que é pública, isto é, feita para ser vista, vendida e exposta, que
prosperam os negócios de Martin e seus colegas de profissão. Como um rápido vislumbre destes
novos modos de produçãos, pode-se observar os seus anúncios (Fig.1), aonde elenca-se a enorme
variedade de serviços e produtos oferecidos através dos cartazes levados pelos querubins e por
5
uma alegoria do ano novo de 1878.1
Ainda que deva ser levado em conta a existência de especializações e de diferentes
tratamentos dados a cada tipo de imagem, essa oferta tão diversa de produtos não é exclusividade
de Martin e também pode ser percebida na carreira de outros profissionais no exterior e no Brasil.
Ela é possibilitada e de certa forma incentivada pela própria técnica litográfica, tão marcada por
sua versatilidade. Introduzindo-a sucintamente, a litografia é uma técnica de impressão de
imagens inventada em 1798 pelo bávaro Alois Senefelder e que, diferentemente das tradicionais
gravuras em metal e madeira cuja impressão se dá através de ranhuras ou relevo, ela se baseia no
1Estão listados: os serviços de confecção e impressão de cartões de visita, rótulos para vinhos, licores e xaropes,
facturas, circulares, notas, recibos, convites para enterros, assim como oferece a venda dos produtos: vistas
photographicas de S. Paulo, álbuns para retratos, photographias e estereoscopes, um mapa das estradas de ferro, a
nova edição da “Carta Illustrada da Província de S.Paulo” e o “Almanach Litterário” de José Maria Lisboa.
Figura 1: Anúncio da Imperial Lithographia de Jules Martin
Fonte: A Província de São Paulo, p.4, 01 jan. 1878.
6
princípio físico de repulsão entre água e gordura, de maneira que se desenha com material
gorduroso sobre um suporte em pedra e após algumas simples aplicações químicas este traçado se
fixa permanentemente, permitindo então alguns milhares de cópias sem perda significativa de
qualidade. A sua invenção está inscrita em um amplo contexto de experimentação em processos
de impressão localizado entre o final do século XVIII e a primeira metade do XIX, período em
que muitas técnicas foram criadas buscando uma tiragem mais econômica e que permitissem uma
prática combinação de imagens e textos. Se, à exceção da fotografia, a maioria destas novas
técnicas não teve aplicação comercial, a litografia teve rápida e ampla difusão e tornou-se uma
das principais formas de criação e reprodução de imagens ao longo do século XIX (TWYMAN,
1998).
Apesar de seu processo ser feito através de uma série cuidadosa de procedimentos, ela se
sobressai em comparação às outras técnicas ao dispensar um gravador especialista, isto é, o
intermediário entre aquele que desenha e quem imprime, pois ao desenhista basta fazer os traços
à pedra como o faria em papel. Como consequência têm-se uma maior economia e agilidade,
fatores responsáveis pela sua versatilidade de aplicações e expansão geográfica, considerando
que ela foi praticada não apenas nos grandes centros urbanos europeus, mas se estendeu a
América e cidades menores, onde foi utilizada com fins muito diversos, quer seja para as obras
dos pintores-gravuristas, como para reprodução de mapas, partituras, anúncios e tantas outras
formas visuais utilitárias, como se viu no anúncio ilustrado acima.
Esta condição efêmera das imagens litográficas é uma dificuldade para a constituição de
um conjunto coeso e coerente da obra de Martin, pois elas não foram devidamente arquivadas.
Mesmo que a pesquisa tenha encontrado uma boa quantidade de imagens, é uma minoria que
persistiu e são muitas as lacunas para sua compreensão. Entretanto, percebe-se que ao longo de
toda a sua produção, que se estende até sua morte em 1906, ainda que tenha vendido sua oficina
7
para o filho em 1887, as imagens de Martin mantém um forte vínculo com a província e
especialmente com a cidade de São Paulo, não apenas como lugar de sua comercialização, mas
também como assunto. Em princípio, as vistas e os mapas representando a região aparecem como
seus dois principais produtos, pela quantidade encontrada e considerando também a frequência
com que são mencionadas na imprensa da época. A modernização é tematizada em todos eles,
quer seja num mapa como o feito com Fernando Albuquerque em 1877, fartamente ilustrado de
forma a evidenciar alguns elementos específicos da cidade e dar visibilidade ao que considera
representativo e merecedor de atenção. Mas, mesmo aqueles mais técnicos foram criados em
razão de uma mudança espacial, sobretudo pela expansão do território ocupado e das linhas
férreas. Caso da Nova Carta da Província de São Paulo (fig.2), vendida sob um formato
encadernado intitulado Guia dos Viajantes na Provincia de S. Paulo, que une ao mapa uma vista
da capital, no canto superior direito, e que além de apresentar as cidades, os rios e as delimitações
da província, dá grande destaque não só às ferrovias construídas, como também àquelas
projetadas, destacando ambas com um traçado em vermelho. Cumpre acrescentar, por fim, que
mesmo seus retratos, apesar de não representarem diretamente o espaço, apresentam em sua
maioria personagens paulistas, no que pode ser considerado a elaboração de certa historiografia
visual da província em uma celebração dos personagens pela suas conquistas políticas, como se
vê pela série estampada no jornal a Província de São Paulo dedicada aos republicanos (11-30 nov.
1884).
8
Levando em consideração o horizonte de preocupações proposto por Ulpiano Meneses
para a constituição de uma História Visual, faz-se necessário conduzir o estudo histórico destas
imagens paralelamente à investigação sobre São Paulo. Considera-se desta maneira que elas são
documentos para o estudo da cidade não apenas pelo que está representado nelas, mas também
pela sua história material, o que possibilita que a própria cultura visual paulista seja colocada
como problema. Explorar as maneiras pelas quais uma sociedade se relacionou com o visual e
com determinado conjunto de imagens significa colocá-las como parte integrante daquele
Figura 2:Nova Carta da Província de São
Paulo
Fonte: Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin
9
contexto histórico e não como um documento passivo que, tomado qual o reflexo de um discurso,
permitiria potencialmente a leitura e compreensão de toda uma época. O desafio que se coloca é
estabelecer um duplo caminho de investigação, que permita melhor compreender a cidade e estas
imagens buscando inscrevê-las em um espaço discursivo que dê conta de indagar sob quais
lógicas se deu sua produção e recepção, para que se permita uma aproximação quanto aos seus
usos, funções e significações sociais (MENESES, 2003).
Neste sentido, ainda que o clássico ensaio de Walter Benjamin, a obra de arte na era de
sua reprodutibilidade técnica, lide com o desenvolvimento da litografia e das técnicas de
reprodução de imagem de uma maneira evolutiva pouco precisa, conforme alertou Stephen Bann
(2001), a sua proposição quanto à intensificação do valor político das imagens em razão de sua
circulação e exibição potencialmente irrestritas é esclarecedora para a compreensão dos usos
modernos da imagem. O uso político do visual não é uma exclusividade oitocentista, mas neste
período ele ganha novas proporções e uma das principais razões para tanto é justamente a
condição reproduzível das imagens, o que foi proporcionado pelos novos processos
desenvolvidos ao longo do século XIX. Como se percebe pela profusão de revistas ilustradas e
suas caricaturas, a imagem ganha espaço nos debates e passa por um processo de intensificação
simultânea de seu lugar social como objeto público e de consumo (BENJAMIN, 2008).
Em acordo a estas características e no que toca diretamente a produção de Martin,
destacam-se duas diferentes formas pelas quais suas imagens implicaram politicamente no
desenvolvimento de São Paulo. A primeira delas ao fato de que algumas destas imagens estão
atreladas a projetos urbanos, dos quais o mais conhecido é o Viaduto do Chá, empreendimento
levado a cabo pelo próprio Jules Martin ao longo de duas conturbadas décadas. A reprodução de
imagens de projetos como estes foi utilizada por ele como instrumento para dar visibilidade ao
plano e convencer a população e os atores políticos envolvidos na sua realização. Projetos como
10
este decoraram frequentemente as novas vitrines do comércio da cidade e foram devidamente
alardeados pela imprensa, como se percebe pela primeira notícia que se tem do Viaduto: “Está
nas vidraças do sr. Jules Martin um belo quadro lythographico representando o que pode ser o
viaduto de que por vezes se tem falado entre nós como o meio plausível de ligar por meio da
linha de bonde a rua Direta, isto é, o centro da cidade, ao novo e próspero bairro do morro do
Chá, rua da Palha e Largo dos Curros. Como Wagner escreve a música do futuro, assim o sr.
Martin nos dá naquele quadro o desenho do futuro. (...)”(A Província de São Paulo, 05 out. 1877,
p.2).
Como se vê pela imagem reproduzida abaixo (fig.3), o seu desenho do futuro dá
concretude ao plano, que era até então uma ideia vaga, e permite que a população vislumbre este
prometido novo elemento da paisagem urbana e os seus usos, razão pela qual Martin acrescenta
ao desenho um razoável fluxo de pessoas atravessando o vale. A exposição pública de projetos
como este era comum e Martin o fez outras vezes em empreitadas malsucedidas, com na
atualização do projeto do Viaduto, então transformado em Boulevard, e também com suas
Galerias de Crystal e o plano de construção de um teatro na Praça da República.
Cabe acrescentar que Martin não se limitou a desenhar apenas projetos para o Viaduto do
Chá, mas também realizou, com diferentes propósitos, alguns outros ao longo do seu
planejamento e construção. Caso do convite de sua inauguração ou da estampa dedicada aos
acionistas da empresa construtora (fig.4), que enaltece aqueles responsáveis pela construção,
representando os seus rostos ao redor do de Martin no canto superior direito, e ilustrando caso a
caso com pequenos desenhos metafóricos a superação dos percalços superados no processo,
escrevendo assim uma história visual da sua construção. Os opositores são atacados na imagem,
nomeadamente o Barão de Tatuhy, que é colocado por Martin como opositor da modernização ao
lutar para proteger sua casa da desapropriação necessária à construção do viaduto. Demolido o
11
casarão, o progresso ameaçado pôde finalmente triunfar, estampado no balão ao centro
composição à frente do sol.
Figura 3: Viaduto do Chá
Fonte: Mémoires et Documents biographiques transcrits et collectionnés par Jules
Martin. Coleção da família.
12
Em um âmbito mais amplo, entretanto, pode-se afirmar que mesmo as imagens não
relacionadas aos seus projetos também atuam de uma forma indireta em relação à experiência
urbana paulista ao constituir e reforçar um discurso moderno da cidade. De acordo com a
proposição de Adrián Gorelik de que as cidades e suas representações se constroem mutuamente
(2011), a fatura e a circulação destas imagens participa da elaboração de uma ideia da cidade,
implicando e se relacionado de diferentes maneiras com as maneiras com que seus habitantes a
percebem e vivenciam. Como toda forma de representação, Martin opera recortes e dialoga com
todo um universo de discursos em conflito no que toca a concepção da cidade. É neste sentido
que interessa explorar as seleções e exclusões em relação ao que desenha e ao tratamento
Figura 4: Histoire Illustré d'un Viaduc à S. Paulo
Fonte: SEGAWA, 2000, p.25. Acervo: Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo.
13
dispensado a estes temas, para que se possa em certa medida elaborar uma história intelectual e se
aproximar do lugar social das imagens naquele contexto histórico.
A modernidade não foi trabalhada por Martin como uma questão a ser problematizada,
como teria sido para autores como Manet, atento para novas formas de sociabilidade burguesa e
sua relação com o espaço urbano (CLARK, 2004), mas era tema e, neste sentido, alinhava-se a
um discurso progressista e dominante. Diante do conjunto de sua obra, destaca-se uma grande
parte dedicada aos melhoramentos e a instalação de novos equipamentos públicos, com especial
atenção para a expansão ferroviária da província. Ele realizou muitos desenhos de estações, feitos
e publicados de diferentes maneiras: como ilustração na imprensa, caso da estação de Poços de
Caldas no Correio Paulistano (14 dez. 1886) ou da estação de Campinas no Almanak de
Campinas para 1873, assim como produtos independentes tal qual o “Guia da Província de S.
Paulo”, álbum contendo um mapa da província e uma série de vistas das estações D. Pedro II, da
Companhia Ingleza, do Norte, Santos, Cachoeira, Campinas, Itu, Rio Claro e Sorocaba.
Entretanto, ainda dentre as imagens que representaram as estações, sobressai-se uma parte
significativa dedicada ao momento específico de suas inaugurações. Elas não fazem parte de um
conjunto previamente organizado, mas características comuns permitem estabelecê-las como uma
série. Em primeiro lugar, pois nota-se uma espécie de esforço jornalístico: Martin viajou
pessoalmente às festas para tomar as vistas d’après nature e anunciava antecipadamente sua
vinda à imprensa, de forma com que poderia garantir subscrições prévias para a venda das
estampas. São pistas interessantes para compreender a circulação e o propósito de feitura de tais
imagens, pois percebe-se aí um interesse da população em consumi-las. Ainda que não tenha sido
encontrado informações concretas sobre a tiragem destes desenhos ou relatos sobre o sucesso
comercial deles, ao menos depreende-se de que havia um mercado, pois afinal insistiu no tema e
representou várias delas ao longo dos anos.
14
Um destes casos se dá com a festa de inauguração da estação de Campinas e da ligação
até Jundiaí, ocorrida em 11 de agosto de 1872 (fig.5). A presença de Martin torna-se em si parte
do evento, minuciosamente descrito na Gazeta de Campinas à época, que conta com almoço,
baile, oferta de presentes, bandas de música, iluminações públicas. Sua chegada é anunciada
como notícia: “deve chegar a esta cidade o sr. Julio Martin, exímio lithographo e habilissimo
desenhista que vem tirar a vista da estação na ocasião de inaugurar-se o tráfego da linha-férrea.
Um objeto que nos toca de tão perto e que será uma grata recordação no porvir, certamente há
de ser aceito com o melhor acolhimento por todos os nossos patrícios.” (Gazeta de Campinas, 11
ago. 1872, p.2). Sua estampa torna-se assim mais um instrumento para celebrar e dar visibilidade
ao evento e, utilizando os termos do jornal, ao primeiro monumento industrial da cidade.
Segundo anúncio da Gazeta de Campinas e do Correio Paulistano (10 set. de 1872), esta
vista estava à venda na loja de Joaquim Almeida Sales e também foi comercializada e exposta
em São Paulo nas vitrinas da casa Garraux e da Loja Nova2, dando mostras de que o mercado não
se restringia à Campinas. Depreende-se que sua litografia permitiu a contemplação do momento
pelas pessoas que não puderam comparecer, no que se configura como uma possibilidade da
época das pessoas se informarem através de imagens do que se passa na província, assim como
sugere possibilidades de decoração e coleção, também para aqueles que participaram.3
2A Loja Nova foi estabelecimento de Antonio dos Santos Seabra, que além de vender roupas, era vidraceiro e
comercializava molduras. O fato da imagem estar exposta na loja pode indicar um costume de emoldurar as
estampas, de forma que se poderia encomendar a imagem diretamente ali ou ao menos uma relação de dupla
promoção, onde Seabra exporia sua moldura em uso, propagandeando uma gravura de Martin. 3Resta indagar quanto a não existência de fotografias conhecidas destes momentos, o que não é conclusivo, mas que
poderia ser apontado como possibilidade da inexistência de um maior estatuto de testemunho nas imagens
fotográficas à época e de uma crença na maior adequação do desenho para este tipo de representação, ainda que a
situação possa ser fruto de acasos comerciais, pessoais ou mesmo arquivísticos.
15
Tomado de uma perspectiva recuada e de uma altura superior, vê-se o prédio ao fundo
rodeado por uma multidão, com destaque para as bandeiras e decorações e a locomotiva em
funcionamento. A aparente neutralidade de uma vista tomada por observação direta e à distância
deve ser tomada com cautela. A composição dedica-se a preencher com pessoas todos os vazios,
Figura 5: Vista da Inauguração da Estação de Campinas
Fonte: POZZER, 2007, p.88. Acervo: Museu da Cidade de Campinas
16
o que é uma característica fundamental para qualificar uma boa festa. Por sua vez, o momento
escolhido não apresenta um instante específico, mas um tempo alargado e representativo, não
havendo assim lugar para imprevistos. As pessoas são desenhadas pequenas, silhuetas não
personificadas, mas identificadas sobretudo com trajes burgueses e que exercem a boa
convivência, sem exaltações. Desta forma, Martin procura criar a impressão de que mostra a festa
como um todo, contemplando com um convincente olhar exterior todo o sucesso da
comemoração na sua regularidade. Estas são perspectivas e escolhas de composição que reforçam
o discurso celebratório oficial presente no evento, de forma com que sua litografia se alinha e
complementa todos os poemas, marchinhas e discursos dedicados ao momento e à expansão
ferroviária da província como um todo.
Os dois retratos decorando a parte superior da imagem, cuidadosamente emoldurados com
faixas e ramos, confirmam esta postura ao retratar Saldanha Marinho e Clemente Falcão Filho,
aquele ex-presidente da província e fundador da Companhia Paulista, este seu atual presidente,
ambos saudados na festa como os dois maiores contribuidores para a construção da estação e da
linha, como as descrições da Gazeta de Campinas deixam claro (11 ago. 1872). Curioso notar que
os retratos não foram planejados no momento original da feitura das imagens, no que Martin
posteriormente avisaria aos subscritores da estampa que a inclusão deles era o motivo do
aumento de seu custo. Posteriormente, seria anunciada a venda da vista com e sem os retratos, no
valor de 4$000 e 2$000, respectivamente (Gazeta de Campinas, 12 set. 1872). O que não permite
grandes conclusões, mas sugere que a ideia tenha lhe ocorrido justamente no decorrer da festa,
aonde muitos brindes foram oferecidos aos dois, o que acentua a inclinação da imagem de Martin
em reforçar os discursos oficiais daquele momento. Ao consumidor, por sua vez, não bastaria que
as litografias apenas fossem a grata recordação no porvir apenas em relação à festa, como dizia o
jornal, mas também perpetuar o nome e o semblante daqueles que a tornaram possível.
17
É importante ressaltar que a representação de estações não é uma exclusividade do
trabalho de Martin, mas um tema comum e que pode ser encontrado na produção brasileira e
estrangeira, onde normalmente o trem é colocado como um agente modernizador. Porém, é
preciso deixar claro que representá-las é uma opção do autor, o que no caso de Martin se mostrou
economicamente viável, e principalmente que existiram diferentes formas e posturas possíveis
diante do tema. Neste sentido, os desenhos de Ângelo Agostini, também realizados em São Paulo
e numa data próxima, ajudam a esclarecer por contraposição o tratamento dado ao tema nas
imagens dele. Os trens de Agostini foram frequentemente comparados ao transporte com burros e
18
os responsáveis pela implantação foram representados com seu conhecido sarcasmo. A caricatura
(fig.6) e publicada no Cabrião bem demonstra o tom irônico (28 abr. 1867).
Nestes desenhos, Agostini nega a associação direta entre progresso e as ferrovias,
colocando em questão a própria modernização de São Paulo. Enfatiza a lentidão do transporte
caracterizando as locomotivas como tartarugas e as más condições dos vagões ao retratar o pouco
espaço e a chuva que o invade, no que se aproveita para ironizar a avareza do burguês paulista.
Inferindo-se que a mesma população consumidora das imagens de Martin também teve acesso a
Figura 6: Desenhos de Ângelo Agostini
Fonte: O Cabrião, n.30. 28 abr. 1867.
19
imagens como as de Agostini, pode-se perceber que o debate quanto ao progresso da província
paulista não era uniforme e que as imagens tomaram parte na disputa. Deste modo, desnaturaliza-
se a visão do trem como um símbolo natural do progresso, e acentua-se o posicionamento de
Martin quanto ao assunto, tornando-se mais claro as suas escolhas envolvidas na produção de
seus desenhos.
Conclusão
Retomando a vista presente no canto superior direito da Nova Carta da Província de São
Paulo (fig.7)4, nota-se em primeiro plano a figura de um senhor acompanhado de sua família e
que, portando um binóculo, observa a cidade de um ponto elevado. À frente dele, um trem corta a
imagem, no que acaba constituindo uma relação de continuidade entre a vista e as linhas férreas
destacadas no mapa da província. A várzea do Carmo, que cerca a cidade por este ponto de vista,
já foi parcialmente ajardinada no governo de João Theodoro, assim outros melhoramentos são
apresentados: o mercado, os aterrados do Brás e do Gasômetro, a Rua Vinte e Cinco de Março
com sua arborização e a Ilha dos Amores. (REIS FILHO, 2010)
4Esta imagem aparece como uma versão derivada da litografia nomeada Vista Geral da Imperial Cidade de S. Paulo,
presente no acervo da Biblioteca Nacional – RJ.
20
Como mais uma das imagens de Martin exaltando a modernização da cidade, este
desenho oferece uma boa oportunidade para encerrar as discussões da comunicação em razão do
jogo de perspectivas operados e de suas significações simbólicas. Se o observador com binóculo
colocado à frente do ponto de tomada pode ser considerado como uma espécie de meta-
Figura 7: Detalhe da Nova Carta da Província de São Paulo
Fonte: Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin
21
representação de Martin a observar a cidade, ele também pode representar uma prática de
observação comum de parte da população, de forma com que o observador, isto é, aquele quem
vê o mapa e o desenho em suas mãos, assumiria o lugar do personagem. Desta forma, o ato de se
afastar da cidade para melhor observá-la, o que também coincide com a chegada do viajante, é
representada como uma ação possível e desejável como um bom passeio de família. À frente
deste personagem, encontra-se São Paulo como uma cidade que se oferece à vista e cuja imagem
é apropriada pela população, seja na observação direta, como pelo consumo de suas imagens
impressas. Reforçando o fato de que esta é uma litografia reproduzível e por consequência um
produto que visa ser comercializado, apresenta-se aí uma concepção possível da cidade em meio
a um campo de disputa no qual as imagens passam, durante o século XIX, a ser cada vez mais
presentes – tanto na sua produção, como no consumo. Ambos processos são bem sintetizados no
sujeito de binóculo: no produtor de imagens que procura dar forma à cidade e no consumidor que
a observa através de uma gravura, sendo que no caso desta vista de Martin, ambos acreditam
potencialmente vivenciar uma cidade em tempos de mudança e participam juntos do mesmo
processo de constituição de sua imagem moderna.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BENJAMIN, Walter. A Obra da arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Obras
Escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 2008.
CAMPOS, Américo de. In: LISBOA, J. (Org). Almanach Litterario de São Paulo para o anno de
1878. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1983. p.145-155.
22
CLARK, Timothy J. A pintura da vida moderna: Paris na arte de Manet e seus seguidores. São
Paulo: Companhia das Letras, 2004.
FERREIRA, Orlando da Costa. Imagem e letra: introdução a bibliologia brasileira : a imagem
gravada. 2. ed. São Paulo: EDUSP, 1994.
GORELIK, Adrián. Correspondencias: arquitectura, ciudad, cultura. Buenos Aires: Nabuko,
2011.
MENESES, Ulpiano T. Fontes visuais, cultura visual, História visual: Balanço provisório,
propostas cautelares. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 23, n. 45, p. 11-36, jul. 2003.
PAULA, Eurípedes Simões. A segunda fundação de São Paulo. Da pequena cidade à grande
metrópole de hoje. Revista de História. São Paulo, n.17, p.167-179, 1954.
POZZER, Guilherme Pinheiro. A antiga estação da Companhia Paulista em Campinas: estrutura
simbólica transformadora da cidade (1872-2002). Campinas, 2007. Dissertação (Mestrado) -
IFCH, UNICAMP.
REIS FILHO, Nestor. G. Dois séculos de projetos no Estado de São Paulo: grandes obras e
urbanização. São Paulo : EDUSP: Imprensa Oficial, 2010.
TWYMAN, Michael. Printing 1770-1970: an Illustrated History of its Development and Uses in
England. Londres: British Library, 1998.