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1 CULTURA VISUAL E MODERNIDADE PELAS LITOGRAFIAS DE JULES MARTIN Mateus Pavan de Moura Leite (Unicamp) Resumo: O litógrafo Jules Martin instalou a sua oficina na cidade de São Paulo em 1870, um período de intensificação da economia visual da cidade em razão da demanda crescente de imagens pelo comércio e pelas novas práticas de consumo da população. Considerando que suas litografias tiveram na cidade um tema dileto e que o momento de seu estabelecimento coincide com uma frequente exaltação do progresso paulista, procura-se mostrar como Martin se alinha a um discurso progressista e como suas representações participam da constituição de uma ideia moderna da cidade. Algumas de suas vistas e mapas são analisados buscando-se evidenciar as suas significações sociais e implicações políticas através da investigação de suas formas de circulação e consumo. Com destaque para as imagens utilizadas para apresentar publicamente projetos urbanísticos e representar as festas de inauguração das estações ferroviárias pela província, explora-se a escolha temática e o tratamento visual dado a estes assuntos para a formação desta nova imagem de São Paulo. Palavras-chave: Jules Martin, Litografia, Cultura Visual, São Paulo Abstract: The lithographer Jules Martin installed his workshop in São Paulo in 1870, a period of intensification of the city's visual economy given the rising demand for pictures by the commerce and the population's new consumption practices. Considering that his lithographies' prevalent theme was the city and his establishment moment coincides with a recurrent exaltation of São Paulo's progress, the communication aims to show how Martin aligns himself with a progressive discourse and how his representations take part and constitute a modern idea of the city. Some of his views and maps are analysed with the purpose of evidencing the options that the author made in its making and exploring their social significances through the investigation of their forms of circulation and consumption. Highlighting the pictures used to publicly present urban projects

CULTURA VISUAL E MODERNIDADE PELAS LITOGRAFIAS DE JULES … · 2017. 5. 24. · photographicas de S. Paulo, álbuns para retratos, photographias e estereoscopes, um mapa das estradas

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CULTURA VISUAL E MODERNIDADE PELAS LITOGRAFIAS DE JULES

MARTIN

Mateus Pavan de Moura Leite (Unicamp)

Resumo:

O litógrafo Jules Martin instalou a sua oficina na cidade de São Paulo em 1870, um período de

intensificação da economia visual da cidade em razão da demanda crescente de imagens pelo

comércio e pelas novas práticas de consumo da população. Considerando que suas litografias

tiveram na cidade um tema dileto e que o momento de seu estabelecimento coincide com uma

frequente exaltação do progresso paulista, procura-se mostrar como Martin se alinha a um

discurso progressista e como suas representações participam da constituição de uma ideia

moderna da cidade. Algumas de suas vistas e mapas são analisados buscando-se evidenciar as

suas significações sociais e implicações políticas através da investigação de suas formas de

circulação e consumo. Com destaque para as imagens utilizadas para apresentar publicamente

projetos urbanísticos e representar as festas de inauguração das estações ferroviárias pela

província, explora-se a escolha temática e o tratamento visual dado a estes assuntos para a

formação desta nova imagem de São Paulo.

Palavras-chave: Jules Martin, Litografia, Cultura Visual, São Paulo

Abstract:

The lithographer Jules Martin installed his workshop in São Paulo in 1870, a period of

intensification of the city's visual economy given the rising demand for pictures by the commerce

and the population's new consumption practices. Considering that his lithographies' prevalent

theme was the city and his establishment moment coincides with a recurrent exaltation of São

Paulo's progress, the communication aims to show how Martin aligns himself with a progressive

discourse and how his representations take part and constitute a modern idea of the city. Some of

his views and maps are analysed with the purpose of evidencing the options that the author made

in its making and exploring their social significances through the investigation of their forms of

circulation and consumption. Highlighting the pictures used to publicly present urban projects

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and to represent the province's railway stations' opening parties, it finally considers the thematic

choices and visual treatment given to these subjects for the composition of this new São Paulo's

image.

Keywords: Jules Martin, Lithography, Visual Culture, São Paulo

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Ao longo do último terço do século XIX, período de instalação e atuação profissional do

litógrafo Jules Martin, o futuro da cidade e da província de São Paulo foi objeto de frequentes e

exaltadas discussões. Procurando ressaltar a importância da litografia para experiência visual

oitocentista e a sua participação na constituição dos modos de ver a cidade naquele momento, a

hipótese central da pesquisa em andamento e circunscrita na presente comunicação é de que

Martin e sua obra foram parte importante no processo de construção de uma ideia moderna de

São Paulo naquele momento. Procura-se mostrar como a escolha de temas e o tratamento dado à

cidade nestas representações está centrado em uma celebração do progresso, podendo-se

inclusive estabelecer uma narrativa modernizadora diante do conjunto de sua obra. Para tanto,

inicia-se o texto apresentando algumas características fundamentais das formas de produção,

circulação e consumo de suas imagens, para posteriormente explorar algumas selecionadas diante

destas questões postas e dos assuntos representados.

Recém-chegado da França, Martin inaugura a primeira oficina litográfica da cidade de

São Paulo em 1870, década que, além de ter sido caracterizada por Orlando Ferreira como a de

maior desenvolvimento da técnica litográfica no Brasil (FERREIRA, 1994), foi vista por muitos

como um ponto de virada para São Paulo. Um bom exemplo desta crença está em um texto

contemporâneo de Américo de Campos, quem dividiu a evolução da cidade em três grandes

etapas: “a cidade dos padres jesuítas e capitães-mores, a cidade acadêmica e a cidade da

civilização, a nova cidade que transfigura-se e cresce a nossos olhos, erguendo-se e

emancipando-se a pouco e pouco das feias antigualhas do passado” (LISBOA, 1983, pp.145-

155). Para Campos, o ano emblemático para esta terceira fase foi 1872, data que se repete na

análise posterior de Eurípedes S. de Paula como a segunda fundação de São Paulo, de acordo

com suas estatísticas econômicas e demográficas, como também pela marcação da posse de João

Teodoro como presidente da província e dos melhoramentos urbanos inaugurados naquele ano

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(PAULA, 1954, pp.167-179).

Não se pretende reafirmar esta coincidência temporal procurando inserir a instalação da

oficina de Martin em um processo súbito de desenvolvimento urbano, mas procurar esclarecer

como sua produção de imagens toma parte em um momento de crença no progresso da cidade e

da província. De diferentes maneiras, e por vezes discretamente, as imagens de Martin se alinham

ao tom destes discursos e reafirmam a experiência de que se vivia em um tempo de mudanças.

Para que se possa explorar estes paralelos, porém, é necessária uma aproximação das maneiras

com que as imagens fizeram parte da experiência urbana e do debate político daquele período

histórico. Neste sentido, o estabelecimento de Jules Martin deve ser compreendido levando em

consideração um cenário nacional de popularização da técnica litográfica e principalmente de

fortalecimento de uma nova e abrangente demanda de imagens em São Paulo. O comércio e a

indústria paulista crescem em paralelo ao aumento populacional da cidade e se tornam

importantes produtores e consumidores de ilustrações no que toca a publicidade e o próprio

funcionamento de seus negócios. Tais empresas passaram a anunciar mais frequentemente seus

serviços na imprensa e os desenhos estamparam os seus cartazes e rótulos, assim como suas

faturas e recibos. Exemplos de produções inscritas em um processo mais amplo de intensificação

da cultura visual oitocentista que afetou profundamente a vida cotidiana de habitantes de uma

cidade como São Paulo, que passa a conviver em meio à fotografia e à imprensa ilustrada,

cultivando novos hábitos de consumo, difusão e colecionismo de imagens. É neste cenário de

valorização de uma imagem que é pública, isto é, feita para ser vista, vendida e exposta, que

prosperam os negócios de Martin e seus colegas de profissão. Como um rápido vislumbre destes

novos modos de produçãos, pode-se observar os seus anúncios (Fig.1), aonde elenca-se a enorme

variedade de serviços e produtos oferecidos através dos cartazes levados pelos querubins e por

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uma alegoria do ano novo de 1878.1

Ainda que deva ser levado em conta a existência de especializações e de diferentes

tratamentos dados a cada tipo de imagem, essa oferta tão diversa de produtos não é exclusividade

de Martin e também pode ser percebida na carreira de outros profissionais no exterior e no Brasil.

Ela é possibilitada e de certa forma incentivada pela própria técnica litográfica, tão marcada por

sua versatilidade. Introduzindo-a sucintamente, a litografia é uma técnica de impressão de

imagens inventada em 1798 pelo bávaro Alois Senefelder e que, diferentemente das tradicionais

gravuras em metal e madeira cuja impressão se dá através de ranhuras ou relevo, ela se baseia no

1Estão listados: os serviços de confecção e impressão de cartões de visita, rótulos para vinhos, licores e xaropes,

facturas, circulares, notas, recibos, convites para enterros, assim como oferece a venda dos produtos: vistas

photographicas de S. Paulo, álbuns para retratos, photographias e estereoscopes, um mapa das estradas de ferro, a

nova edição da “Carta Illustrada da Província de S.Paulo” e o “Almanach Litterário” de José Maria Lisboa.

Figura 1: Anúncio da Imperial Lithographia de Jules Martin

Fonte: A Província de São Paulo, p.4, 01 jan. 1878.

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princípio físico de repulsão entre água e gordura, de maneira que se desenha com material

gorduroso sobre um suporte em pedra e após algumas simples aplicações químicas este traçado se

fixa permanentemente, permitindo então alguns milhares de cópias sem perda significativa de

qualidade. A sua invenção está inscrita em um amplo contexto de experimentação em processos

de impressão localizado entre o final do século XVIII e a primeira metade do XIX, período em

que muitas técnicas foram criadas buscando uma tiragem mais econômica e que permitissem uma

prática combinação de imagens e textos. Se, à exceção da fotografia, a maioria destas novas

técnicas não teve aplicação comercial, a litografia teve rápida e ampla difusão e tornou-se uma

das principais formas de criação e reprodução de imagens ao longo do século XIX (TWYMAN,

1998).

Apesar de seu processo ser feito através de uma série cuidadosa de procedimentos, ela se

sobressai em comparação às outras técnicas ao dispensar um gravador especialista, isto é, o

intermediário entre aquele que desenha e quem imprime, pois ao desenhista basta fazer os traços

à pedra como o faria em papel. Como consequência têm-se uma maior economia e agilidade,

fatores responsáveis pela sua versatilidade de aplicações e expansão geográfica, considerando

que ela foi praticada não apenas nos grandes centros urbanos europeus, mas se estendeu a

América e cidades menores, onde foi utilizada com fins muito diversos, quer seja para as obras

dos pintores-gravuristas, como para reprodução de mapas, partituras, anúncios e tantas outras

formas visuais utilitárias, como se viu no anúncio ilustrado acima.

Esta condição efêmera das imagens litográficas é uma dificuldade para a constituição de

um conjunto coeso e coerente da obra de Martin, pois elas não foram devidamente arquivadas.

Mesmo que a pesquisa tenha encontrado uma boa quantidade de imagens, é uma minoria que

persistiu e são muitas as lacunas para sua compreensão. Entretanto, percebe-se que ao longo de

toda a sua produção, que se estende até sua morte em 1906, ainda que tenha vendido sua oficina

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para o filho em 1887, as imagens de Martin mantém um forte vínculo com a província e

especialmente com a cidade de São Paulo, não apenas como lugar de sua comercialização, mas

também como assunto. Em princípio, as vistas e os mapas representando a região aparecem como

seus dois principais produtos, pela quantidade encontrada e considerando também a frequência

com que são mencionadas na imprensa da época. A modernização é tematizada em todos eles,

quer seja num mapa como o feito com Fernando Albuquerque em 1877, fartamente ilustrado de

forma a evidenciar alguns elementos específicos da cidade e dar visibilidade ao que considera

representativo e merecedor de atenção. Mas, mesmo aqueles mais técnicos foram criados em

razão de uma mudança espacial, sobretudo pela expansão do território ocupado e das linhas

férreas. Caso da Nova Carta da Província de São Paulo (fig.2), vendida sob um formato

encadernado intitulado Guia dos Viajantes na Provincia de S. Paulo, que une ao mapa uma vista

da capital, no canto superior direito, e que além de apresentar as cidades, os rios e as delimitações

da província, dá grande destaque não só às ferrovias construídas, como também àquelas

projetadas, destacando ambas com um traçado em vermelho. Cumpre acrescentar, por fim, que

mesmo seus retratos, apesar de não representarem diretamente o espaço, apresentam em sua

maioria personagens paulistas, no que pode ser considerado a elaboração de certa historiografia

visual da província em uma celebração dos personagens pela suas conquistas políticas, como se

vê pela série estampada no jornal a Província de São Paulo dedicada aos republicanos (11-30 nov.

1884).

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Levando em consideração o horizonte de preocupações proposto por Ulpiano Meneses

para a constituição de uma História Visual, faz-se necessário conduzir o estudo histórico destas

imagens paralelamente à investigação sobre São Paulo. Considera-se desta maneira que elas são

documentos para o estudo da cidade não apenas pelo que está representado nelas, mas também

pela sua história material, o que possibilita que a própria cultura visual paulista seja colocada

como problema. Explorar as maneiras pelas quais uma sociedade se relacionou com o visual e

com determinado conjunto de imagens significa colocá-las como parte integrante daquele

Figura 2:Nova Carta da Província de São

Paulo

Fonte: Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin

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contexto histórico e não como um documento passivo que, tomado qual o reflexo de um discurso,

permitiria potencialmente a leitura e compreensão de toda uma época. O desafio que se coloca é

estabelecer um duplo caminho de investigação, que permita melhor compreender a cidade e estas

imagens buscando inscrevê-las em um espaço discursivo que dê conta de indagar sob quais

lógicas se deu sua produção e recepção, para que se permita uma aproximação quanto aos seus

usos, funções e significações sociais (MENESES, 2003).

Neste sentido, ainda que o clássico ensaio de Walter Benjamin, a obra de arte na era de

sua reprodutibilidade técnica, lide com o desenvolvimento da litografia e das técnicas de

reprodução de imagem de uma maneira evolutiva pouco precisa, conforme alertou Stephen Bann

(2001), a sua proposição quanto à intensificação do valor político das imagens em razão de sua

circulação e exibição potencialmente irrestritas é esclarecedora para a compreensão dos usos

modernos da imagem. O uso político do visual não é uma exclusividade oitocentista, mas neste

período ele ganha novas proporções e uma das principais razões para tanto é justamente a

condição reproduzível das imagens, o que foi proporcionado pelos novos processos

desenvolvidos ao longo do século XIX. Como se percebe pela profusão de revistas ilustradas e

suas caricaturas, a imagem ganha espaço nos debates e passa por um processo de intensificação

simultânea de seu lugar social como objeto público e de consumo (BENJAMIN, 2008).

Em acordo a estas características e no que toca diretamente a produção de Martin,

destacam-se duas diferentes formas pelas quais suas imagens implicaram politicamente no

desenvolvimento de São Paulo. A primeira delas ao fato de que algumas destas imagens estão

atreladas a projetos urbanos, dos quais o mais conhecido é o Viaduto do Chá, empreendimento

levado a cabo pelo próprio Jules Martin ao longo de duas conturbadas décadas. A reprodução de

imagens de projetos como estes foi utilizada por ele como instrumento para dar visibilidade ao

plano e convencer a população e os atores políticos envolvidos na sua realização. Projetos como

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este decoraram frequentemente as novas vitrines do comércio da cidade e foram devidamente

alardeados pela imprensa, como se percebe pela primeira notícia que se tem do Viaduto: “Está

nas vidraças do sr. Jules Martin um belo quadro lythographico representando o que pode ser o

viaduto de que por vezes se tem falado entre nós como o meio plausível de ligar por meio da

linha de bonde a rua Direta, isto é, o centro da cidade, ao novo e próspero bairro do morro do

Chá, rua da Palha e Largo dos Curros. Como Wagner escreve a música do futuro, assim o sr.

Martin nos dá naquele quadro o desenho do futuro. (...)”(A Província de São Paulo, 05 out. 1877,

p.2).

Como se vê pela imagem reproduzida abaixo (fig.3), o seu desenho do futuro dá

concretude ao plano, que era até então uma ideia vaga, e permite que a população vislumbre este

prometido novo elemento da paisagem urbana e os seus usos, razão pela qual Martin acrescenta

ao desenho um razoável fluxo de pessoas atravessando o vale. A exposição pública de projetos

como este era comum e Martin o fez outras vezes em empreitadas malsucedidas, com na

atualização do projeto do Viaduto, então transformado em Boulevard, e também com suas

Galerias de Crystal e o plano de construção de um teatro na Praça da República.

Cabe acrescentar que Martin não se limitou a desenhar apenas projetos para o Viaduto do

Chá, mas também realizou, com diferentes propósitos, alguns outros ao longo do seu

planejamento e construção. Caso do convite de sua inauguração ou da estampa dedicada aos

acionistas da empresa construtora (fig.4), que enaltece aqueles responsáveis pela construção,

representando os seus rostos ao redor do de Martin no canto superior direito, e ilustrando caso a

caso com pequenos desenhos metafóricos a superação dos percalços superados no processo,

escrevendo assim uma história visual da sua construção. Os opositores são atacados na imagem,

nomeadamente o Barão de Tatuhy, que é colocado por Martin como opositor da modernização ao

lutar para proteger sua casa da desapropriação necessária à construção do viaduto. Demolido o

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casarão, o progresso ameaçado pôde finalmente triunfar, estampado no balão ao centro

composição à frente do sol.

Figura 3: Viaduto do Chá

Fonte: Mémoires et Documents biographiques transcrits et collectionnés par Jules

Martin. Coleção da família.

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Em um âmbito mais amplo, entretanto, pode-se afirmar que mesmo as imagens não

relacionadas aos seus projetos também atuam de uma forma indireta em relação à experiência

urbana paulista ao constituir e reforçar um discurso moderno da cidade. De acordo com a

proposição de Adrián Gorelik de que as cidades e suas representações se constroem mutuamente

(2011), a fatura e a circulação destas imagens participa da elaboração de uma ideia da cidade,

implicando e se relacionado de diferentes maneiras com as maneiras com que seus habitantes a

percebem e vivenciam. Como toda forma de representação, Martin opera recortes e dialoga com

todo um universo de discursos em conflito no que toca a concepção da cidade. É neste sentido

que interessa explorar as seleções e exclusões em relação ao que desenha e ao tratamento

Figura 4: Histoire Illustré d'un Viaduc à S. Paulo

Fonte: SEGAWA, 2000, p.25. Acervo: Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo.

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dispensado a estes temas, para que se possa em certa medida elaborar uma história intelectual e se

aproximar do lugar social das imagens naquele contexto histórico.

A modernidade não foi trabalhada por Martin como uma questão a ser problematizada,

como teria sido para autores como Manet, atento para novas formas de sociabilidade burguesa e

sua relação com o espaço urbano (CLARK, 2004), mas era tema e, neste sentido, alinhava-se a

um discurso progressista e dominante. Diante do conjunto de sua obra, destaca-se uma grande

parte dedicada aos melhoramentos e a instalação de novos equipamentos públicos, com especial

atenção para a expansão ferroviária da província. Ele realizou muitos desenhos de estações, feitos

e publicados de diferentes maneiras: como ilustração na imprensa, caso da estação de Poços de

Caldas no Correio Paulistano (14 dez. 1886) ou da estação de Campinas no Almanak de

Campinas para 1873, assim como produtos independentes tal qual o “Guia da Província de S.

Paulo”, álbum contendo um mapa da província e uma série de vistas das estações D. Pedro II, da

Companhia Ingleza, do Norte, Santos, Cachoeira, Campinas, Itu, Rio Claro e Sorocaba.

Entretanto, ainda dentre as imagens que representaram as estações, sobressai-se uma parte

significativa dedicada ao momento específico de suas inaugurações. Elas não fazem parte de um

conjunto previamente organizado, mas características comuns permitem estabelecê-las como uma

série. Em primeiro lugar, pois nota-se uma espécie de esforço jornalístico: Martin viajou

pessoalmente às festas para tomar as vistas d’après nature e anunciava antecipadamente sua

vinda à imprensa, de forma com que poderia garantir subscrições prévias para a venda das

estampas. São pistas interessantes para compreender a circulação e o propósito de feitura de tais

imagens, pois percebe-se aí um interesse da população em consumi-las. Ainda que não tenha sido

encontrado informações concretas sobre a tiragem destes desenhos ou relatos sobre o sucesso

comercial deles, ao menos depreende-se de que havia um mercado, pois afinal insistiu no tema e

representou várias delas ao longo dos anos.

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Um destes casos se dá com a festa de inauguração da estação de Campinas e da ligação

até Jundiaí, ocorrida em 11 de agosto de 1872 (fig.5). A presença de Martin torna-se em si parte

do evento, minuciosamente descrito na Gazeta de Campinas à época, que conta com almoço,

baile, oferta de presentes, bandas de música, iluminações públicas. Sua chegada é anunciada

como notícia: “deve chegar a esta cidade o sr. Julio Martin, exímio lithographo e habilissimo

desenhista que vem tirar a vista da estação na ocasião de inaugurar-se o tráfego da linha-férrea.

Um objeto que nos toca de tão perto e que será uma grata recordação no porvir, certamente há

de ser aceito com o melhor acolhimento por todos os nossos patrícios.” (Gazeta de Campinas, 11

ago. 1872, p.2). Sua estampa torna-se assim mais um instrumento para celebrar e dar visibilidade

ao evento e, utilizando os termos do jornal, ao primeiro monumento industrial da cidade.

Segundo anúncio da Gazeta de Campinas e do Correio Paulistano (10 set. de 1872), esta

vista estava à venda na loja de Joaquim Almeida Sales e também foi comercializada e exposta

em São Paulo nas vitrinas da casa Garraux e da Loja Nova2, dando mostras de que o mercado não

se restringia à Campinas. Depreende-se que sua litografia permitiu a contemplação do momento

pelas pessoas que não puderam comparecer, no que se configura como uma possibilidade da

época das pessoas se informarem através de imagens do que se passa na província, assim como

sugere possibilidades de decoração e coleção, também para aqueles que participaram.3

2A Loja Nova foi estabelecimento de Antonio dos Santos Seabra, que além de vender roupas, era vidraceiro e

comercializava molduras. O fato da imagem estar exposta na loja pode indicar um costume de emoldurar as

estampas, de forma que se poderia encomendar a imagem diretamente ali ou ao menos uma relação de dupla

promoção, onde Seabra exporia sua moldura em uso, propagandeando uma gravura de Martin. 3Resta indagar quanto a não existência de fotografias conhecidas destes momentos, o que não é conclusivo, mas que

poderia ser apontado como possibilidade da inexistência de um maior estatuto de testemunho nas imagens

fotográficas à época e de uma crença na maior adequação do desenho para este tipo de representação, ainda que a

situação possa ser fruto de acasos comerciais, pessoais ou mesmo arquivísticos.

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Tomado de uma perspectiva recuada e de uma altura superior, vê-se o prédio ao fundo

rodeado por uma multidão, com destaque para as bandeiras e decorações e a locomotiva em

funcionamento. A aparente neutralidade de uma vista tomada por observação direta e à distância

deve ser tomada com cautela. A composição dedica-se a preencher com pessoas todos os vazios,

Figura 5: Vista da Inauguração da Estação de Campinas

Fonte: POZZER, 2007, p.88. Acervo: Museu da Cidade de Campinas

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o que é uma característica fundamental para qualificar uma boa festa. Por sua vez, o momento

escolhido não apresenta um instante específico, mas um tempo alargado e representativo, não

havendo assim lugar para imprevistos. As pessoas são desenhadas pequenas, silhuetas não

personificadas, mas identificadas sobretudo com trajes burgueses e que exercem a boa

convivência, sem exaltações. Desta forma, Martin procura criar a impressão de que mostra a festa

como um todo, contemplando com um convincente olhar exterior todo o sucesso da

comemoração na sua regularidade. Estas são perspectivas e escolhas de composição que reforçam

o discurso celebratório oficial presente no evento, de forma com que sua litografia se alinha e

complementa todos os poemas, marchinhas e discursos dedicados ao momento e à expansão

ferroviária da província como um todo.

Os dois retratos decorando a parte superior da imagem, cuidadosamente emoldurados com

faixas e ramos, confirmam esta postura ao retratar Saldanha Marinho e Clemente Falcão Filho,

aquele ex-presidente da província e fundador da Companhia Paulista, este seu atual presidente,

ambos saudados na festa como os dois maiores contribuidores para a construção da estação e da

linha, como as descrições da Gazeta de Campinas deixam claro (11 ago. 1872). Curioso notar que

os retratos não foram planejados no momento original da feitura das imagens, no que Martin

posteriormente avisaria aos subscritores da estampa que a inclusão deles era o motivo do

aumento de seu custo. Posteriormente, seria anunciada a venda da vista com e sem os retratos, no

valor de 4$000 e 2$000, respectivamente (Gazeta de Campinas, 12 set. 1872). O que não permite

grandes conclusões, mas sugere que a ideia tenha lhe ocorrido justamente no decorrer da festa,

aonde muitos brindes foram oferecidos aos dois, o que acentua a inclinação da imagem de Martin

em reforçar os discursos oficiais daquele momento. Ao consumidor, por sua vez, não bastaria que

as litografias apenas fossem a grata recordação no porvir apenas em relação à festa, como dizia o

jornal, mas também perpetuar o nome e o semblante daqueles que a tornaram possível.

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É importante ressaltar que a representação de estações não é uma exclusividade do

trabalho de Martin, mas um tema comum e que pode ser encontrado na produção brasileira e

estrangeira, onde normalmente o trem é colocado como um agente modernizador. Porém, é

preciso deixar claro que representá-las é uma opção do autor, o que no caso de Martin se mostrou

economicamente viável, e principalmente que existiram diferentes formas e posturas possíveis

diante do tema. Neste sentido, os desenhos de Ângelo Agostini, também realizados em São Paulo

e numa data próxima, ajudam a esclarecer por contraposição o tratamento dado ao tema nas

imagens dele. Os trens de Agostini foram frequentemente comparados ao transporte com burros e

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os responsáveis pela implantação foram representados com seu conhecido sarcasmo. A caricatura

(fig.6) e publicada no Cabrião bem demonstra o tom irônico (28 abr. 1867).

Nestes desenhos, Agostini nega a associação direta entre progresso e as ferrovias,

colocando em questão a própria modernização de São Paulo. Enfatiza a lentidão do transporte

caracterizando as locomotivas como tartarugas e as más condições dos vagões ao retratar o pouco

espaço e a chuva que o invade, no que se aproveita para ironizar a avareza do burguês paulista.

Inferindo-se que a mesma população consumidora das imagens de Martin também teve acesso a

Figura 6: Desenhos de Ângelo Agostini

Fonte: O Cabrião, n.30. 28 abr. 1867.

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imagens como as de Agostini, pode-se perceber que o debate quanto ao progresso da província

paulista não era uniforme e que as imagens tomaram parte na disputa. Deste modo, desnaturaliza-

se a visão do trem como um símbolo natural do progresso, e acentua-se o posicionamento de

Martin quanto ao assunto, tornando-se mais claro as suas escolhas envolvidas na produção de

seus desenhos.

Conclusão

Retomando a vista presente no canto superior direito da Nova Carta da Província de São

Paulo (fig.7)4, nota-se em primeiro plano a figura de um senhor acompanhado de sua família e

que, portando um binóculo, observa a cidade de um ponto elevado. À frente dele, um trem corta a

imagem, no que acaba constituindo uma relação de continuidade entre a vista e as linhas férreas

destacadas no mapa da província. A várzea do Carmo, que cerca a cidade por este ponto de vista,

já foi parcialmente ajardinada no governo de João Theodoro, assim outros melhoramentos são

apresentados: o mercado, os aterrados do Brás e do Gasômetro, a Rua Vinte e Cinco de Março

com sua arborização e a Ilha dos Amores. (REIS FILHO, 2010)

4Esta imagem aparece como uma versão derivada da litografia nomeada Vista Geral da Imperial Cidade de S. Paulo,

presente no acervo da Biblioteca Nacional – RJ.

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Como mais uma das imagens de Martin exaltando a modernização da cidade, este

desenho oferece uma boa oportunidade para encerrar as discussões da comunicação em razão do

jogo de perspectivas operados e de suas significações simbólicas. Se o observador com binóculo

colocado à frente do ponto de tomada pode ser considerado como uma espécie de meta-

Figura 7: Detalhe da Nova Carta da Província de São Paulo

Fonte: Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin

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representação de Martin a observar a cidade, ele também pode representar uma prática de

observação comum de parte da população, de forma com que o observador, isto é, aquele quem

vê o mapa e o desenho em suas mãos, assumiria o lugar do personagem. Desta forma, o ato de se

afastar da cidade para melhor observá-la, o que também coincide com a chegada do viajante, é

representada como uma ação possível e desejável como um bom passeio de família. À frente

deste personagem, encontra-se São Paulo como uma cidade que se oferece à vista e cuja imagem

é apropriada pela população, seja na observação direta, como pelo consumo de suas imagens

impressas. Reforçando o fato de que esta é uma litografia reproduzível e por consequência um

produto que visa ser comercializado, apresenta-se aí uma concepção possível da cidade em meio

a um campo de disputa no qual as imagens passam, durante o século XIX, a ser cada vez mais

presentes – tanto na sua produção, como no consumo. Ambos processos são bem sintetizados no

sujeito de binóculo: no produtor de imagens que procura dar forma à cidade e no consumidor que

a observa através de uma gravura, sendo que no caso desta vista de Martin, ambos acreditam

potencialmente vivenciar uma cidade em tempos de mudança e participam juntos do mesmo

processo de constituição de sua imagem moderna.

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