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DADOS DE COPYRIGHT · 2018. 5. 2. · AGATHA CHRISTIE, pseudônimo de Anna Mary Clarissa Miller (Christie é o sobrenome de seu primeiro marido e Agatha, nome de sua escolha), nasceu

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DADOS DE COPYRIGHT

Sobre a obra:

A presente obra é disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros,com o objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudosacadêmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fimexclusivo de compra futura.

É expressamente proibida e totalmente repudiável a venda, aluguel, ou quaisqueruso comercial do presente conteúdo

Sobre nós:

O Le Livros e seus parceiros disponibilizam conteúdo de dominio publico epropriedade intelectual de forma totalmente gratuita, por acreditar que oconhecimento e a educação devem ser acessíveis e livres a toda e qualquerpessoa. Você pode encontrar mais obras em nosso site: LeLivros.site ou emqualquer um dos sites parceiros apresentados neste link.

"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutandopor dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo

nível."

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APRESENTA:

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UM CRIME ADORMECIDO

Agatha Christie

Sobre a digitalização desta obra:

Esta obra foi digitalizada para proporcionar de maneira totalmente gratuita obenefício de sua leitura àqueles que não podem comprá-la ou àqueles quenecessitam de meios eletrônicos para leitura. Dessa forma, a venda deste e-bookou mesmo a sua troca por qualquer contraprestação é totalmente condenável emqualquer circunstância.

A generosidade é a marca da distribuição, portanto: Distribua este livrolivremente!

Se você tirar algum proveito desta obra, considere seriamente a possibilidade deadquirir o original.

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AGATHA CHRISTIE, pseudônimo de Anna Mary Clarissa Miller (Christie é osobrenome de seu primeiro marido e Agatha, nome de sua escolha), nasceu emTorquay, Condado de Devon, na Inglaterra, em 1891, e morreu em 1976.

Agatha, uma senhora quieta, afável, de olhos irônicos, confessava,paradoxalmente, detestar a violência. Apesar disso, assassinou mais de trezentaspessoas em seus romances policiais, que primam pela construção perfeita datrama e colocam a inteligência acima da ação. Estreou na vida literária em 1920com o livro O Misterioso Caso de Sty les, celebrizando-se com a criação dopersonagem Hercule Poirot. Escrevera-o com o intuito de refutar a opinião de sua

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irmã, que afirmava ser praticamente impossível arquitetar uma história policial emque o leitor não pudesse suspeitar do autor do crime. Em 1926 causou sensaçãocom a obra The Murder of Roger Ackroy d, por fazer do narrador o autor docrime. Entre as muitas obras que escreveu destacam-se ainda: The My stery ofthe Blue Train (1928). The Seven Dials My stery (1929). Murder at the Vicarage(1930). Lord Edgware Dies (1933), The ABC Murders (1936), The Body in theLibrary (1942), A Murder is Announced (1950) e, é claro, O Caso dos DezNegrinhos, de 1940, onde a autora conduz o leitor de suspense em suspense até aúltima página. Várias de suas obras foram levadas ao teatro e ao cinema. Em1954, três peças suas de mistério tiveram representação simultânea nos teatros doWest End (bairro de Londres). Sua peça The Mousetrap alcançou o recorde deapresentações (14 anos, em 1966). Hoje Agatha é conhecida no mundo inteirocomo a "primeira dama da literatura policial”.

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Um crime Adormecido

Frases pronunciadas numa peça de teatro causam uma reação inesperada eaparentemente inexplicada na jovem Gwenda.

O mistério vai se adensando quando, em sua nova residência no sul da Inglaterra,ela surpreende uma estranha familiaridade em cada um dos cômodos da casa.Evocações de infância, ecos, lembranças, realidade e pesadelo vão se insinuandoem seus passos.

Como miss Jane Marple, aqui desvendando seu último caso, o leitor se vêobrigado a mergulhar fundo em uma vida, ou diversas vidas, tentando, comodetetive e psicólogo, a partir de suspeitas de insanidade e de assassinatosocorridos, esclarecer as sombras de crueldade premeditada que encobrem umcrime adormecido há dezoito anos.

E, como sempre, numa das mais engenhosas tramas de sua obra, cabe à genialAgatha Christie a surpreendente solução final.

AGATHA CHRISTIE

Um crime Adormecido

Tradução de

VERA TEIXEIRA SOARES

EDITORA RECORD

Título original inglês: SLEEPING MURDER

Copyright CO 1976 by Agatha Christie Limited, Copy right © 1987 desta edição:Distribuidora Record de Serviços de Imprensa S.A.

Publicado sob licença de Aitken & Stone através da Editora Nova Fronteira S.A.

Direitos desta edição

DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIÇOS DE IMPRENSA S.A.

Rua Argentina 171 - 20921 Rio de Janeiro, RJ - Tel.: 5880-3668

lmpresso no Brasil

Distribuição exclusiva para bancas de jornais:

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FERNANDO CHINAGL.IA DISTRIBUIDORA S.A.

Rua Teodoro da Silva 907 - 20563 Rio de Janeiro, RJ - Tel.: 268-9112

Impresso na JBIG

CAPÍTULO I

UMA CASA

Gwenda Reed, ligeiramente trêmula, estava em pé à beira do cais.

As docas, os depósitos da alfândega, tudo o que podia ver da Inglaterra oscilavalentamente para cima e para baixa. Foi nesse momento que tomou a decisão -uma decisão que acarretaria acontecimentos muito importantes.

Não iria mais de trem para Londres, como planejara. Afinal, por que ir de trem?

Ninguém estava à sua espera, ninguém sabia de sua chegada. Acabara dedesembarcar daquele navio vagaroso e barulhento. A travessia de três dias,através da baía e até Ply mouth, fora excepcionalmente dura. A última coisa quequeria era entrar num trem incômodo e oscilante. Iria para um hotel, um bomhotel, sólido e estável, em terra firme, e se deitaria numa boa cama, semrangidos ou oscilações. Dormiria e no dia seguinte -

ora, é claro, que boa idéia! - alugaria um carro e dirigiria lentamente, sem seapressar, por todo o sul da Inglaterra; à procura de uma casa - uma casa gostosa- a casa que ela e Giles tinham resolvido que ela descobriria. Sim, era uma ótimaidéia.

Dessa maneira poderia conhecer um pouco a Inglaterra - a Inglaterra que Gileslhe descrevera e que ela nunca vira, apesar de chamá-la de sua pátria, como amaioria dos neozelandeses. Naquele momento, a Inglaterra não parecia muitoatraente. O tempo estava feio, ia começar a chover, soprava um vento forte eenervante. Enquanto seguia obedientemente a fila para a inspeção de passaportese para a alfândega, Gwenda pensou com seus botões que Plymouthprovavelmente não era o melhor lugar da Inglaterra.

Na manhã seguinte, entretanto, sentia-se outra. O sol brilhava. A vista de suajanela era bonita. E o universo já não oscilava mais. Tornara-se estável. Isto eraa Inglaterra, finalmente, e lá estava ela, Gwenda Reed, uma jovem recém-casada de vinte e um anos, viajando. A data de chegada de Giles era incerta.Poderia vir encontrá-la dentro de algumas semanas ou, quem sabe, só daí a uns

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seis meses. Giles sugerira que Gwenda fosse na frente e procurasse uma casaque lhes conviesse. Ambos achavam que seria bom terem um endereço fixo emalgum lugar. O trabalho de Giles lhe exigiria viajar sempre. As vezes Gwendairia junto, outras vezes as condições não seriam boas.

Ambos, porém, gostavam da idéia de terem um lar - uma casa que lhespertencesse.

Giles herdara recentemente alguns móveis de uma tia e tudo contribuía paratornar a idéia prática e viável.

Como os dois estivessem em boas condições financeiras, as perspectivas futurasnão apresentavam problemas.

No início Gwenda hesitara em escolher a casa sozinha. Devíamos escolherjuntos, dissera. Mas Giles respondera em tom de brincadeira: - Não dou muitopara isso.

Se você gostar, eu também vou gostar. Quero um jardinzinho, é claro, nadadessas casas modernas horrorosas, nem que seja grande demais. Gostaria queficasse na costa sul. De qualquer maneira, não muito longe do litoral.

Gwenda lhe perguntara se tinha preferência por algum local específico, masGiles tinha dito que não. Ficara órfão muito cedo (os dois eram órfãos), e passaraas férias com varias famílias amigas, em diversos lugares. Nenhum deles oatraía particularmente. A casa seria de Gwenda. Quanto a esperar para poderemescolher juntos - e se ele só pudesse ir daí a seis meses? O que faria Gwendadurante todo esse tempo. Ficaria em hotéis. Não, encontraria uma casa e lá seinstalaria.

- O que você quer é que eu tenha todo o trabalho! exclamara Gwenda.

No fundo, porém, ela gostara da idéia de encontrar uma casa, arrumá-la e estarcom tudo pronto para a chegada de Giles.

Estavam casados há apenas três meses e ela o amava muito. Após tomar o caféna cama, Gwenda se levantou e organizou mentalmente o programa.

Passou um dia divertido, visitando Plymouth e, no dia seguinte, alugou umconfortável Daimler com motorista e partiu para sua jornada pela Inglaterra.

O tempo estava bom e ela gostou muito do passeio. Visitou diversas casas emDevonshire, mas nenhuma delas lhe agradou realmente. Não havia pressa.

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Continuaria procurando. Aprendera a ler nas entrelinhas das entusiásticasdescrições dos corretores e economizou algumas visitas que seriamabsolutamente infrutíferas.

Cerca de uma semana depois, numa terça-feira à tarde, u carro desciasuavemente pela estrada em curvas que levava a Dillmouth quando, nosarredores do encantador local de veraneio, passou por uma placa de "Casa áVenda". Através das árvores, podia-se avistar uma pequena casa vitorianapintada de branco.

Imediatamente Gwenda teve um sobressalto de admiração - quase que dereconhecimento. Aquela era a sua casa! Já estava certa disso. Podia imaginar ojardim, as janelas altas - tinha a certeza de que era exatamente o que queria.

Como já fosse tarde, instalou-se no Hotel Clarence e dirigiu-se ao endereço doscorretores, indicado na placa.

Empunhando uma licença para visitar a casa, Gwenda estava de pé na salacomprida e antiquada, com duas portas-janela que davam para o terraço. Bemem frente havia um jardim de pedras entremeadas com arbustos floridos e quedescia abruptamente em direção ao gramado. Através das árvores, no fundo dojardim, avistava-se o mar.

- Esta é a minha casa, pensou Gwenda. É o meu lar. Tenho a impressão de jáconhecer todos os seus detalhes.

A porta se abriu e uma mulher alta, de expressão sombria entrou fungando.

- Sra. Hengrave? - Trouxe comigo uma licença fornecida pelos corretoresGalbraith & Penderley. Talvez seja um pouco cedo para visitar a casa, mas . . .

A Sra. Hengrave, assoando o nariz, respondeu em tom melancólico que não tinhaa menor importância. Começaram a ver a casa.

Sim, era exatamente aquilo. Não era grande demais. Um pouco antiquada, masela e Giles podiam construir mais um ou dois banheiros. A cozinha podia sermodernizada. Uma pia nova, um equipamento novo . . .

Enquanto Gwenda pensava e planejava, ouvia a voz da Sra. Hengrave contandoem tom monótono os detalhes da doença do falecido Major Hengrave. Gwendase esforçava para fazer os comentários adequados de condolência, simpatia ecompreensão.

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Toda a família da Sra: Hengrave morava em Kent. Estavam querendo que elafosse para perto deles. O major gostava muito de Dillmouth... fora secretário doclube de golfe durante anos, mas ela...

- Sim... É claro... Terrível para a senhora... Muito natural. . . É, os hospitais sãoassim mesmo.. . É claro. . . Compreendo. . .

O pensamento de Gwenda corria. Aqui deve ser o armário de roupa de cama... É

isso mesmo. Quarto de casal - bonita vista para o mar - Giles vai gostar. Aqui temum quartinho muito útil - pode ficar sendo o quarto de vestir de Giles... Banheiro -a banheira deve ter um rebordo de mogno. . . Tem mesmo! Que maravilha... Efica no meio do banheiro! Isso eu não vou mudar. É uma peça de época.

Uma banheira enorme!

Dava até a plantar macieiras em volta. E soltar barquinhos dentro... e patinhos debrinquedo. Podia fingir que estava no mar. . . Já sei: vamos transformar aquelequarto extra, tão escuro, em dois banheiros bem modernos, cromados. Osencanamentos da cozinha devem ficar bem embaixo... Isso aqui vou deixarcomo está...

- Pleurisia, disse a Sra. Hengrave. - No terceiro dia se transformou numapneumonia dupla...

- Terrível, respondeu Gwenda. - Não há outro quarto no fim deste corredor?

Havia - e era bem o tipo de quarto que ela imaginara quase redondo, com umagrande janela envidraçada. Ia ter que arrumá-lo, é claro. Estava bemconservado, mas por que será que pessoas como a Sra. Hengrave gostam tantode paredes pintadas em tom mostarda?

Passaram novamente pelo corredor. - Seis, não. . . sete quartos, murmurouGwenda, - contando com o quartinho menor e o sótão.

As tábuas do assoalho rangiam sob seus pés, Gwenda tinha a sensação de que eraela, e não a Sra. Hengrave, quem morava naquela casa. A Sra. Hengrave erauma intrusa - uma mulher que pintava as paredes de cor de mostarda e quegostava de glicínias na sala. Gwenda deu uma olhada no papel datilografado quedescrevia os detalhes da propriedade e o preço pedido.

Em poucos dias Gwenda ficara muito entendida em preços de casa. A quantiapedida não era demasiada. Naturalmente a casa precisava ser reformada, mas

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mesmo assim... Reparou na frase "Aceitam-se ofertas". A Sra. Hengrave deveestar louca para ir para Kent, morar perto de seus parentes...

Iam começar a descer a escada quando subitamente Gwenda se sentiu invadidapor uma onda de terror. Foi uma sensação horrível, que passou tão depressaquanto viera, mas que lhe despertou uma nova idéia.

- A casa não é... mal-assombrada ... é? perguntou ela.

A Sra. Hengrave, um degrau abaixo, tendo chegado ao ponto da narrativa em queo Major Hengrave piorou terrívelmente, olhou para cima com ar ofendido.

- Que eu saiba não, Sra. Reed. Será que. . . alguém. . . está dizendo uma coisadessas?

- A senhora nunca viu nem sentiu nada aqui? Ninguém morreu aqui?

Pergunta infeliz, pensou Gwenda, mas agora é tarde... É provável que o MajorHengrave. . .

- Meu marido morreu no Hospital Santa Mônica, respondeu secamente a Sra.

Hengrave.

- Ah, sim, é claro! A senhora me havia dito!

A Sra. Hengrave prosseguiu em tom glacial. - Numa casa construída há cerca decem anos seria muito natural que tivesse ocorrido alguma morte. A Srta.Elworthy, de quem meu querido marido comprou esta casa há sete anos atrás,tinha uma ótima saúde; estava até planejando ser missionária em outro país, enão falou de mortes recentes na família.

Gwenda apressou-se em acalmar a Sra. Hengrave. Estavam novamente na sala.

Era uma peça tranqüila e encantadora, com o tipo exato de ambiente queGwenda desejava. O pânico momentâneo parecia-lhe agora incompreensível. Oquê lhe acontecera? Não havia nada estranho na casa.

Perguntando à dona da casa se podia dar uma olhada no jardim, dirigiu-se para oterraço.

Aqui devia haver degraus... pensou Gwenda, descendo para o gramado.

Em vez disso, porém, havia um enorme tufo de forsítias que, crescidas demais,

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tapavam a vista para o mar. Gwenda decidiu que mudaria aquilo.

Seguindo a Sra. Hengrave, voltou para o terraço e desceu alguns degraus quelevavam ao lado oposto do terreno. Reparou que o jardim estava maltratado eque a maioria dos arbustos precisavam ser podados.

A Sra. Hengrave murmurou, em tom de desculpa, que o jardim estava malcuidado porque só podia pagar um jardineiro para trabalhar duas vezes porsemana, e ele freqüentemente não aparecia.

Examinaram a horta, que era pequena, mas de bom tamanho, e voltaram para acasa. Gwenda explicou que precisava visitar outras casas e que, apesar de tergostado muito de Hillside (este nome não me parece estranho!) não podia tomaruma decisão imediata.

A Sra. Hengrave despediu-se dela com olhar melancólico e uma longa fungada.

Gwenda foi direto aos corretores, fez a sua oferta e passou o resto da manhãandando por Dillmouth. Era uma encantadora e antiquada cidadezinha à beira-mar. Na parte "moderna" havia alguns hotéis novos e bangalôs rústicos, mas aformação geográfica da costa, com as colinas por trás, poupara Dillmouth deuma expansão demasiada.

Depois do almoço o corretor telefonou para Gwenda, informando que a Sra.

Hengrave aceitara a oferta. Com um sorriso malicioso, Gwenda dirigiu-se aocorreio e mandou um telegrama para o marido.

COMPREI UMA CASA. BEIJOS. GWENDA.

Ele vai ficar espantado, pensou Gwenda consigo mesma. Vai ficar sabendo queeu sei cuidar das coisas!

CAPÍTULO II

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O PAPEL DE PAREDE

Passara-se um mês desde que Gwenda se mudara para Hillside. A mobília da tiade Giles fora retirada do guarda-móveis e arrumada na casa. Eram peças antigase de boa qualidade. Gwenda vendera dois armários grandes demais, mas o restocoube muito bem e estava de acordo com a casa. Na sala ficaram mesinhas depapier-mache com incrustações de madrepérola e pintura de castelos e rosas.Além disso, uma pequena escrivaninha com uma banqueta de cetim, uma mesade trabalho de pau-rosa e uma mesinha de centro em mogno.

As espreguiçadeiras tinham sido colocadas nos quartos e Gwenda comprara duasenormes e confortáveis poltronas para que ela e Giles pudessem ficar perto dalareira.

Junto às janelas ela colocou um grande sofá estilo Chesterfield. As cortinasescolhidas eram de chintz azul bem clarinho, estampadas com buquês de rosas epássaros amarelos.

Gwenda achava que agora a sala estava exatamente como queria.

Não estava completamente instalada, pois ainda havia operários trabalhando. Jádeviam ter concluído o serviço, mas Gwenda achou que enquanto não semudasse eles não iriam embora.

A reforma da cozinha já acabara e os banheiros novos estavam quase prontos.

Quanto ao resto da decoração, Gwenda decidira esperar um pouco. Queriatempo para saborear sua nova casa e escolher as cores exatas para os quartos. Acasa estava muito bem arrumada e não havia necessidade de fazer tudo aomesmo tempo.

Na cozinha reinava a Sra. Cocker, muito amável e condescendente, inclinada arepelir o tom democrático e amigável da dona da casa. No entanto, depois de tercolocado Gwenda em seu devido lugar, tornara-se mais descontraída.

Naquela manhã, a Sra. Cocker pôs a bandeja do café no colo de Gwenda, que sesentara na cama.

- Quando não há um cavalheiro em casa, disse a Sra. Cocker - as senhoraspreferem tomar o café na cama.

Gwenda curvou-se ante a suposta regra britânica.

- Hoje de manhã são ovos mexidos, prosseguiu a Sra, Cocker. - A senhora falou

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em haddock, mas no quarto não é bom. Deixa muito cheiro. Vou prepararhaddock ao molho branco e torradas para o jantar.

- Oh, obrigada, Sra. Cocker

Esta sorriu amavelmente e se dispôs a sair do quarto.

Gwenda ainda não se instalara no espaçoso quarto de casal, pois aguardava achegada de Giles. Escolhera, por enquanto, o quarto dos fundos, de parederedonda e janela envidraçada. Sentia-se à vontade e feliz ali.

Olhando em volta, exclamou subitamente:

- Como gostei deste quarto!

A Sra. Cocker olhou em torno, com indulgência.

- É um quarto muito simpático, senhora, apesar de pequeno. Deve ter sido decriança, porque tem grades na janela.

- Nunca pensei nisso. É possível.

- Ah, bem! exclamou a Sra. Cocker, num tom repleto de subentendidos. E

retirou-se.

Parecia estar dizendo que, quando houvesse um homem na casa, quem sabetalvez passasse a ser necessário ter um quarto de criança.

Gwenda enrubesceu. Olhou em torno. Um quarto de criança? Sim, seria umquarto de criança muito simpático. Começou a arrumá-lo mentalmente. Umacasa de bonecas ali, encostada na parede; armários baixos cheios de brinquedos.O fogo aceso na lareira, um anteparo bem alto em torno, peças de roupapenduradas para arejar. Mas não essa horrenda parede cor de mostarda. Não,forraria com um papel bem alegre, estampado com raminhos de papoula e decentáureas... Sim, ficaria um amor. Procuraria um papel de parede assim. Tinhacerteza de já ter visto esse estampado em algum lugar.

O quarto não precisava de muitos móveis. Havia dois armários embutidos, masum deles, o do canto, estava trancado e a chave tinha-se perdido. Aliás o armáriointeiro havia sido pintado. Provavelmente não o abriam há muitos anos. Elaprecisava pedir aos operários que o abrissem antes de irem embora pois nãohavia espaço suficiente para todas as suas roupas.

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Sentia-se cada vez mais à vontade em Hillside. Através da janela aberta ouviualguém pigarrear e tossir. Tomou o café bem depressa. Foster, o jardineirotemperamental, nem sempre cumpridor de suas promessas, devia estar nojardim, conforme o combinado.

Gwenda tomou banho, vestiu uma saia de tweed e um suéter e correu para ojardim. Foster trabalhava perto da janela da sala de estar. Ela decidira mandarfazer um caminho que a partir dali, atravessasse o jardim de pedras e flores.Foster relutara, argumentando que as forsítias, os arbustos e os lilases teriam queser cortados. Gwenda, porém, ficara irredutível e agora Foster estava quaseentusiasmado com a tarefa.

Cumprimentou Gwenda com uma risada.

- Pelo jeito vamos voltar aos velhos tempos, senhorita. Insistia em chamarGwenda de senhorita.

- Velhos tempos? Como assim? Foster bateu com a pá no chão.

- Encontrei os degraus antigos - veja, estavam aqui exatamente onde a senhoritaqueria. Alguém os cobriu e plantou flores por cima.

- Foi uma grande bobagem, observou Gwenda. - É agradável olhar o gramado eo mar pela janela da sala.

Foster pouco ligava para a vista, mas concordou de má vontade.

- Não digo que não vá melhorar, compreende? Vai poder ter a vista, e os arbustosescurecem a sala. Mas estavam ficando lindos... Nunca vi forsítias tão bonitas.

Os lilases não valem grande coisa, mas essas outras flores custam caro... E olhe,estão velhas demais para serem replantadas.

- Sim, eu sei. Mas assim vai ficar muito, muito melhor.

- Bem. . . murmurou Foster, coçando a cabeça. - Pode ser...

-

Tenho

certeza retorquiu Gwenda sacudindo a cabeça afirmativamente. - Quem moravaaqui antes do casal Hengrave? perguntou subitamente. - Eles viveram poucotempo aqui, não é?

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- Mais ou menos seis anos. Antes deles? O pessoal da Srta. Elworthy. Gente commania de igreja. Eram missionários. Uma vez chegaram a hospedar um padrenegro.

Eram quatro e mais o irmão, mas ele não opinava muito no meio de tantasmulheres.

Antes deles... deixe-me lembrar... era a Sra. Findeyson. Ah! Essa sim, era umapessoa fina. Tinha classe! Antes de eu nascer ela já morava nesta casa.

- Morreu aqui? perguntou Gwenda.

- Morreu no Egito ou coisa parecida. Mas trouxeram o corpo de volta. Foienterrada no cemitério da igreja. Foi ela quem plantou as magnólias e aquelasoutras flores ali. Gostava muito de arbustos.

- Naquela época, prosseguiu Foster, - não havia nenhuma dessas casas novasconstruídas na colina. Isto aqui era roça. Não tinha cinema, nem lojasmodernas... Seu tom era desaprovador. Como todos os velhos, não gostava deinovações. Mudança...

resmungou ele. - Só mudanças. . .

- Acho que tudo tem que mudar, observou Gwenda. - E afinal de contas hoje emdia há muito mais progresso, não é?

- É o que dizem. Eu não vejo nada disso. Mudanças!... Fez um gesto em direção àsebe, à esquerda, através da qual se avistava um edifício. - Ali era o hospital,prosseguiu. - Antigamente. Um lugar bom e pertinho. Depois vão embora econstroem um prédio enorme a uma milha de distância da cidade. Para visitaralguém a gente tem que andar vinte minutos a pé... ou então pagar umapassagem de ônibus. Tornou a apontar para a sebe. - Agora é um colégio parameninas. Estão lá há dez anos. Vivem se mudando. Hoje em dia as pessoascompram uma casa, moram lá dez ou doze anos e depois vão embora. Agitação.. . O que é que adianta? Não se pode plantar nada direito sem ter bastante tempopela frente.

Gwenda olhou carinhosamente para o pé de magnólia.

- Como a Sra. Findeyson, observou.

- Ah, ela sim! Chegou aqui recém-casada. Criou os filhos, casou todos eles,enterrou o marido, recebia os netos no verão e só foi embora quando tinha quase

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oitenta anos.

O tom de Foster era de calorosa aprovação. Gwenda voltou sorrindo para casa.

Conversou com os operários, foi para a sala, sentou-se em frente à escrivaninhae escreveu algumas cartas. Precisava deixar a correspondência em dia,respondendo a uma carta de uns primos de Giles que moravam em Londres eque insistiam para que se hospedasse na casa deles, em Chelsea, quando fosse aLondres.

Ray mond West era um conhecido romancista e Joan, sua mulher, era pintora.

Seria divertido ficar na casa deles, se bem que provavelmente a considerariamuma completa ignorante. Nem eu nem Giles somos intelectuais, pensou Gwendaconsigo mesma.

Um gongo sonoro ecoou alto no saguão. O gongo, com uma escura moldura demadeira esculpida, fora um dos objetos preferidos da tia de Giles. A Sra. Cockerparecia gostar muito de ouvi-lo e sempre tocava com toda força. Gwenda tapouos ouvidos e se levantou.

Atravessou rapidamente a sala em direção à parede e estancou de súbito,aborrecida. Era a terceira vez que fazia isso. Parecia até que se achava capaz deatravessar uma parede para ir até à sala de jantar. Era preciso dar a volta, e noinverno seria muito desagradável, pois a entrada da casa era fria e úmida. Oaquecimento central só funcionava na sala de estar, na sala de jantar e em doisquartos de dormir.

Não posso entender - pensou Gwenda consigo mesma, ao sentar-se diante dalinda mesa de jantar estilo Sheraton que comprara para substituir a grande mesade mogno da tia Lawnder - não posso entender porque não mandei abrir umapassagem entre a sala de estar e a de jantar. Quando o Sr. Sims chegarconversarei com ele.

O Sr. Sims era construtor e decorador, um homem de meia-idade, voz rouca, quetinha sempre à mão um caderninho em que anotava todas as idéias dispendiosasque ocorressem a seus clientes.

Consultado, ele aprovou calorosamente a idéia.

- A coisa mais simples do mundo, Sra. Reed. . . e, na minha opinião, será umamelhoria enorme.

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- Sai muito caro? Gwenda já aprendera a duvidar um pouco do entusiasmo do Sr.Sims, pois haviam surgido despesas extras não incluídas no seu orçamentooriginal.

- Uma ninharia, respondeu o Sr. Sims em tom indulgente e tranqüilizador.

Gwenda ficou ainda mais desconfiada. Aprendera a duvidar justamente do queele chamava de ninharia.

- Vamos fazer uma coisa, Sra. Reed, disse o Sr. Sims em tom persuasivo. - Voupedir a Tay lor que dê uma olhada nisso hoje à tarde, quando tiver terminado oserviço no quarto de vestir. Só então poderei dar-lhe um orçamento correto.Depende do tipo de parede.

Gwenda concordou. Escreveu para Joan West, agradecendo o convite e dizendoque naquele momento não podia ausentar-se de Dillmouth porque precisavasupervisionar os operários. Em seguida foi dar uma caminhada, respirando comprazer a brisa do mar. Quando voltou para a sala, encontrou Tay lor, o mestre-de-obras do Sr.

Sims, que a recebeu com um sorriso.

- Não há o menor problema, Sra. Reed, disse ele. - Neste lugar já houve umaporta. Alguém resolveu que não queria mais essa passagem e mandou fechá-lacom gesso.

Gwenda ficou agradavelmente surpreendida. Que coisa extraordinária, pensouela. Sempre tive a impressão de que ali havia uma porta. Lembrou-se de que, àhora do almoço, se dirigira sem hesitação para aquele ponto. E, recordando,sentiu, repentinamente, uma sensação desagradável. Pensando bem, era meioestranho... Como podia ter tanta certeza de que ali havia uma porta?Evidentemente, seria prático ter uma porta de comunicação entre as duas salas,mas não havia nenhuma marca na parede.

Como tinha adivinhado, como sabia da existência daquela porta? Por que, tãodecidida, se dirigira exatamente aquele lugar? A porta poderia ficar em qualquerlugar da parede, mas ela se dirigira automaticamente para aquele ponto, o pontoexato em que tinha havido uma porta.

Espero, pensou Gwenda apreensiva, que eu não esteja me tornando vidente oucoisa assim. . .

Nunca tivera problemas psíquicos. Não era seu gênero. Ou será que era? O

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caminho que descia do terraço, através dos arbustos, até o gramado... Será que jásabia de sua existência ao insistir para que fosse aberto precisamente naquelelugar?

Talvez eu esteja ficando meio maluca, pensou ela, inquieta: Ou será que háalguma coisa estranha nesta casa?

Por que perguntara à Sra. Hengrave se a casa era mal-assombrada?

Não era mal-assombrada! Era um amor de casa! Não podia haver nada deerrado ali. A Sra. Hengrave pareceu-lhe muito surpresa com a pergunta.

Ou teria demonstrado certa reserva, respondido em tom cauteloso?

- Meu Deus, estou começando a imaginar coisas! - pensou Gwenda.

Mudou o rumo de seu pensamento e, com esforço, voltou a se dirigir a Tay lor.

- Tem mais uma coisa, disse ela. - Uma das portas do armário do meu quarto nãoabre. Gostaria que o senhor visse isso.

O homem subiu com ela e examinou a porta.

- Já levou várias mãos de tinta, disse ele. - Se não se incomodar de esperar umpouco, amanhã mando os homens darem um jeito nisso.

Gwenda concordou e Tay lor retirou-se.

Nessa noite Gwenda sentiu-se agitada e nervosa. Enquanto lia, sentada na sala,prestava atenção aos menores ruídos. Mais de uma vez olhou para trás eestremeceu.

Repetiu diversas vezes para si mesma que os incidentes da porta e do caminhonão tinham qualquer importância. Eram simples coincidências. De qualquermodo, era apenas uma questão de bom-senso.

Mesmo sem querer confessar sua sensação, estava com medo de subir para sedeitar. Quando finalmente se levantou apagou a luz e abriu a porta da sala,sentindo-se apavorada de ter que subir a escada. Subiu apressadamente, quasecorrendo, atravessou o corredor e abriu a porta do quarto. Uma vez lá dentro, foi-se acalmando aos poucos.

Olhou afetuosamente em torno. Sim, agora estava em segurança. (Em segurançacontra o quê, sua boba? perguntou a si mesma.) Olhou para a camisola estendida

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em cima da cama e os chinelos no chão.

Francamente, Gwenda, você parece que tem seis anos! Devia usar chinelos depelúcia com cara de coelho.

Meteu-se debaixo das cobertas com uma sensação de alívio e logo adormeceu.

Na manhã seguinte foi à cidade para tomar diversas providências e só voltou nahora do almoço.

- Os operários já abriram a porta do armário do quarto, senhora, disse a Sra.

Cocker ao trazer o linguado frito, o purê de batatas e a cenoura com molhobranco.

- Ótimo! exclamou Gwenda.

Estava com fome e almoçou muito bem. Tomou o café na sala de estar e subiupara o quarto. Ao abrir a porta do armário, deu um grito assustado e ficouolhando fixamente.

No seu interior via-se o papel de parede original. O quarto, antigamente, eraforrado com um papel de parede bem alegre, todo de flores, ramagens depapoulas vermelhas e centáureas azuis. . .

II

Gwenda ficou em pé, olhando fixamente para o papel. Em seguida, dirigiu-separa a cama e sentou-se, trêmula.

Estava numa casa onde jamais estivera antes, num país que jamais conhecera ehá apenas dois dias atrás imaginara um papel de parede para esse mesmo quarto,e o papel que imaginara correspondia exatamente ao que forrava as paredesantigamente.

Diversas idéias lhe passavam a toda pela cabeça. Dunne, Experiências com oTempo... ver o futuro em vez do passado...

O caminho do jardim e a porta podiam ser coincidências... mas agora não haviamais coincidência possível. Era inconcebível imaginar um papel de parede comdeterminados motivos no desenho e descobrir um exatamente igual ao que foraidealizado... Não, havia alguma explicação que não entendia e que... sim... aassustava.

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A toda hora via o passado, e não o futuro. A casa tal como fora antigamente. Aqualquer momento podia ver mais alguma coisa - alguma coisa que não queriaver... A casa lhe dava medo. . . Mas seria a casa ou ela mesma? Não queria seruma dessas pessoas que vêem coisas. . .

Suspirou fundo, botou o chapéu e o casaco, saiu apressadamente.

Chegando ao correio mandou o seguinte telegrama:

WEST, 19 ADDWAY SQUARE. CHELSEA. LONDRES.

MUDEI DE IDÉIA E CHEGAREI AMANHÃ. GWENDA.

CAPÍTULO III

"CUBRAM O SEU ROSTO..."

Raymond West e sua mulher fizeram o possível para que a jovem esposa deGiles se sentisse bem vinda. Não tinham culpa de Gwenda achá-los um poucoassustadores. Raymond, com seu aspecto estranho, parecendo uma ave de rapinae empolgando-se subitamente numa conversa bastante incompreensível, faziaGwenda ficar nervosa e de olhos arregalados. Tanto e1e como Joan pareciamfalar uma língua própria. Gwenda nunca freqüentara um ambiente deintelectuais e quase todas as suas expressões eram desconhecidas para ela.

- Resolvemos levá-la para ver alguns espetáculos, disse Ray mond, enquantoGwenda bebia gim e desejava ardentemente tomar uma xícara de chá no fim dodia.

Gwenda animou-se de imediato.

- Hoje a noite vamos ao balé do Sadler's Wells e amanhã, para festejar oaniversário de minha incrível tia Jane, vamos ver A Duquesa de Malfi, com JohnGielgud. Na sexta-feira você não pode deixar de ver They walked without fut.Traduzida do russo - a peça de teatro mais significativa dos últimos vinte anos.Estão levando no teatro Witmore.

Gwenda se mostrou agradecida a todos esses programas para diverti-la. Afinal,quando Giles chegasse, iriam juntos a espetáculos musicais e outras coisas nogênero.

Não gostou muito da perspectiva de They walked without fut, mas talvez aindaacabasse gostando. O único problema é que a gente nunca entende nada dessas

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peças

"importantes".

- Você vai adorar minha tia Jane, disse Raymond. - Eu a descreveria comoperfeito exemplar de uma peça de época. Vitoriana até a alma. Todas asmesinhas da casa dela são forradas de chintz. Mora numa aldeia, numa dessasaldeias onde nunca acontece nada, exatamente como um poço estagnado.

- Uma vez aconteceu uma coisa lá, observou Joan secamente.

- Um reles caso passional, sem nenhuma sutileza. . .

- Na época você se divertiu imensamente com o caso, retorquiu Joan com umapiscadela.

- Às vezes gosto de uma intriga de aldeia, respondeu Raymond em tom muitoalegre.

- De qualquer modo, tia Jane revelou grande talento naquele caso de assassinato.

- Oh, ela não é nenhuma boba. Adora problema.

- Problemas? perguntou Gwenda - e sua cabeça se perdeu na aritmética.

Raymond agitou uma das mãos.

- Qualquer tipo de problema, respondeu. - Por que foi que a mulher doaçougueiro saiu de guarda-chuva para ir a uma reunião na igreja numa noitelinda? Por que um vidro de pickles de camarão foi encontrado em determinadolugar? O que aconteceu com a sobrepeliz do vigário? Tudo interessa à tia Jane, demodo que, se você tiver algum problema, Gwenda, converse com ela. Elaresolve tudo.

Deu uma risada. Gwenda também riu, mas não tão calorosamente.

No dia seguinte foi apresentada à tia Jane, ou seja, Miss Marple. Miss Marple erauma atraente senhora, já idosa, alta e magra, de maçãs do rosto rosadas, olhosazuis, um jeito amável e um pouco meticuloso. Seus olhos azuis tinham sempreum brilho especial.

Depois de jantarem e beberem à saúde de tia Jane, foram todos para o teatro. O

grupo também incluía mais dois homens - um ator idoso e um jovem advogado.

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O ator acompanhava Gwenda e o jovem advogado dividia sua atenção entreJoan e Miss Marple, cujas observações muito o divertiam. No teatro, entretanto, asituação se inverteu e Gwenda sentou-se no meio da fila, entre Raymond e oadvogado.

As luzes se apagaram e a peça começou.

A representação era magnífica e Gwenda estava gostando muito. Não costumavaver peças teatrais de categoria.

A peça se desenvolvia e chegava a um clímax de horror. A voz do ator, no tomtrágico de uma mente doentia, disse:

Cubram o seu rosto. Meus olhos se ofuscam, ela morreu jovem ...

Gwenda deu um grito.

Levantou-se da poltrona, passou por toda a fila, tomou o corredor, correu escadaacima e saiu na rua. Mesmo assim não parou de correr, tomada de pânico.

Só quando chegou a Piccadilly reparou num táxi vazio que vinha passando. Fezsinal, entrou, deu o endereço da casa em Chelsea. Lá chegando, pagou o táxicom mãos trêmulas e subiu os degraus. A empregada, ao abrir a porta, olhou-asurpresa.

- Voltou cedo, senhorita. Não está se sentindo bem?

- Eu . . . não . . . sim . . . Estou me sentindo fraca.

- Deseja tomar alguma coisa, senhorita? Um pouco de brandy?

- Não, nada. Vou direto para a cama.

Subiu a escada rapidamente para evitar mais perguntas.

Despiu-se, largou a roupa toda amontoada no chão e enfiou-se na cama. Ficoudeitada, tremendo, o coração aos saltos, olhando fixamente para o teto.

Não ouviu o barulho de gente chegando lá em baixo, mas cinco minutos depois aporta se abriu e Miss Marple entrou. Trazia debaixo do braço dois sacos de águaquente e segurava uma xícara na mão.

Gwenda sentou-se na cama, tentando dominar o tremor.

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- Oh, Miss Marple! Sinto muitíssimo. Não sei o que. . . fiz um papel horrível!

Eles estão muito aborrecidos comigo?

- Não se preocupe, querida, respondeu Miss Marple. Trate de se esquentar comesses sacos de água quente.

- Não preciso de saco de água quente.

- Precisa sim. Isso, assim mesmo. Agora beba este chá.

O chá estava quente e forte, doce demais, porém Gwenda tomou-oobedientemente. O tremor diminuíra.

- Agora deite e durma, disse Miss Marple. - Você teve um choque, sabe?

Amanhã de manhã vamos conversar sobre isso. Não se preocupe com nada.Durma.

Arrumou o cobertor, sorriu, deu um tapinha no ombro de Gwenda e retirou-se.

Lá embaixo Raymond dizia para Joan, com irritação: - Que diabo aconteceucom essa moça? Será que se sentiu mal?

- Meu caro Raymond, não sei! Ela deu um grito! Acho que a peça era um poucomacabra demais para ela.

- Bem, Webster é meio terrível. Mas não poderia supor que... Interrompeu afrase ante a chegada de Miss Marple. - Ela está bem? perguntou.

- Acho que sim. Teve um choque muito grande.

- Choque? Por causa de uma peça de teatro?

- Acho que não deve ter sido só isso, respondeu Miss Marple, com ar pensativo.

Gwenda tomou o café da manhã na cama. Bebeu uns goles de café e comeu umpedaço de torrada. Quando se levantou e desceu, Joan tinha ido para o atelier,Raymond estava trancado no escritório e apenas Miss Marple estava sentadajunto à janela de que se avistava o rio.

Miss Marple tricotava compenetradamente.

Ergueu os olhos e sorriu placidamente, quando Gwenda entrou.

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- Bom dia, querida. Espero que esteja sentindo-se melhor.

- Oh, sim, estou muito bem. Não sei como fui fazer uma coisa estúpida comoaquela ontem à noite! Eles estão... estão muito zangados comigo?

- Oh, não, querida! Compreendem muito bem.

- Compreendem o quê?

Miss Marple parou de olhar para o tricô.

- Que ontem à noite você teve um choque muito grande. E acrescentou comdelicadeza: - Não quer conversar comigo sobre isso?

Gwenda andava nervosamente de um lado para o outro.

- Acho melhor eu consultar um psiquiatra qualquer.

- Naturalmente existem ótimos especialistas em Londres. . . Mas você temcerteza de que é necessário?

- Bem... acho que estou ficando louca... Devo estar ficando louca.

Uma velha empregada entrou na sala, trazendo um telegrama numa salva deprata, que estendeu para Gwenda.

- O entregador quer saber se tem resposta, senhora.

Gwenda abriu o telegrama. Tinha sido retransmitido de Dillmouth. Ela o olhoupor instantes com ar vago e depois o amassou.

- Não há resposta, disse mecanicamente. A empregada saiu da sala.

- Espero que não sejam más notícias, querida!

- É Giles, meu marido. Está vindo para casa. Vai chegar daqui a uma semana.

Sua voz indicava aflição e perplexidade. Miss Marple pigarreou com discrição.

- Bem... mas isso certamente é muito bom, não é?

- Será? Quando não sei se estou maluca ou não? Se estou maluca nunca devia tercasado com Giles. E a casa, tudo o mais. Não posso voltar para lá. Oh, não sei oque fazer!

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Miss Marple deu uma batidinha convidativa no assento do sofá.

- Bem, querida, sugiro que se sente aqui e me conte tudo.

Gwenda aceitou o convite com uma sensação de alívio. Contou toda a história,começando pela primeira vez em que vira Hillside e prosseguindo com osincidentes que a haviam intrigado e depois se tornaram assustadores.

- Aí fiquei com medo, disse ela. - E achei melhor vir para Londres... fugirdaquilo tudo. Só que, como vê, não consegui fugir. Aquilo me perseguiu. Ontem ànoite... Gwenda fechou os olhos e conteve a respiração, rememorando.

- Ontem à noite. . . ? insistiu Miss Marple.

- Acho que a senhora não vai acreditar, disse Gwenda, falando muito depressa. -

Vai achar que eu sou histérica, excêntrica, ou algo parecido. Aconteceu quase desúbito, bem no fim. Estava gostando da peça. Nem uma vez me lembrei da casa.E foi aí... sem mais nem menos... quando ele disse aquelas palavras...

Repetiu em voz baixa e trêmula: Cubram o seu rosto. Meus olhos se ofuscam.

Ela morreu jovem.

- Eu me vi novamente lá... na escada, olhando para o saguão através dabalaustrada, e a vi deitada ali. Estendida... morta. O cabelo louro e o rosto todo...azul!

Estava morta, estrangulada, e alguém estava dizendo aquelas mesmas palavrasda mesma maneira horrível e tripudiante... e eu vi as mãos dele... cinzentas...enrugadas...

não eram mãos... eram patas de macaco... Foi horrível, sabe... Ela estava morta.

Miss Marple perguntou delicadamente: - Quem estava morta?

A resposta veio imediata e automática:

- Helen . . .

CAPÍTULO IV

HELEN?

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Durante um momento Gwenda ficou olhando fixamente para Miss Marple. Emseguida afastou o cabelo que lhe caía na testa.

- Por que foi que eu disse isso? perguntou. - Por que disse Helen? Não conheçonenhuma Helen!

Num gesto de desespero, deixou cair os braços ao longo do corpo.

- Está vendo? prosseguiu. - Estou louca! Imaginando coisas! Fico vendo coisasque não existem. Primeiro era só papel de parede... mas agora são cadáveres!Estou piorando!

- Não tire conclusões precipitadas, querida...

- Ou então é a casa... A casa é mal-assombrada... ou enfeitiçada... Vejo coisasque aconteceram lá... ou então vejo coisas que vão acontecer lá... e isso seriaainda pior.

Talvez uma mulher chamada Helen vá ser assassinada lá... Só não sei é por que,se a casa é mal-assombrada, fico vendo essas coisas horríveis mesmo quandonão estou lá.

Dessa maneira, tenho de achar que alguma coisa estranha está ocorrendocomigo. E é melhor eu ir consultar um psiquiatra já. . . agora de manhã.

- Bem, Gwenda querida, é claro que se pode tomar essa providência quando jáse esgotaram todas as outras tentativas de compreensão, mas pessoalmentesempre acho que é melhor, antes disso, analisar as explicações mais simples ecomuns. Vamos esclarecer bem os fatos. Houve três incidentes que abalaramvocê. Um caminho no jardim que havia sido escondido pelas plantas mas quevocê sentiu que existia, uma porta na sala que tinha sido tapada; e um papel deparede que você imaginou com todos os detalhes sem tê-lo visto. Não é isso?

- Bem, a explicação mais fácil, mais simples seria a de você já ter visto tudo issoantes.

- Em outra encarnação?

- Não, querida, quero dizer nesta vida. Acho que podem ser lembrançasverdadeiras.

- Mas até há um mês atrás eu nunca tinha vindo à Inglaterra, Miss Marple.

- Você tem certeza disso, querida?

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- É claro que tenho. Morei perto de Christchurch, na Nova Zelândia, a vida toda.

- Você nasceu lá?

- Não, nasci na Índia. Meu pai era oficial do exército inglês. Minha mãe morreuquando eu tinha um ou dois anos, e meu pai me mandou para junto da famíliadela, na Nova Zelândia, para que cuidassem de mim. Alguns anos depois eletambém morreu.

- Você não se lembra da viagem da Índia para a Nova Zelândia?

- Não. . . muito pouco. Lembro-me vagamente de estar num navio. Uma coisacoma janela redonda - uma escotilha, é claro. E um homem de farda branca,rosto vermelho e olhos azuis; com um sinal no queixo... uma cicatriz, talvez. Elecostumava me atirar para o alto, me lembro de que eu gostava e tinha medodisso ao mesmo tempo.

Mas são lembranças muito fragmentárias.

- Você se recorda de uma babá? De uma governanta?

- De uma babá, não. Da governanta - Nannie. Lembro-me de Nannie porque elatomou conta de mim bastante tempo. . . até eu fazer cinco anos. Ela recortavapatos de papel. Sim, ela estava a bordo. Passou-me um pito porque chorei quandoo comandante me deu um beijo e não gostei da barba dele.

- Bem, isso é muito interessante, querida, porque, repare, você está confundindoduas viagens diferentes. Numa delas o Comandante usava barba e na outra tinhao rosto vermelho e uma cicatriz no queixo.

- É... respondeu, Gwenda. - Deve ser isso mesmo.

- Parece-me possível, prosseguiu Miss Marple, - que, quando sua mãe morreu,seu pai tenha primeiro trazido você com ele para a Inglaterra, e que você tenharealmente morado naquela casa - Hillside. Você me falou - lembra-se? - que sesentiu em casa logo que entrou lá. E que o quarto que você escolheu para dormirera provavelmente seu quarto de criança...

- Era um quarto de criança. Tinha grades nas janelas.

- Está vendo? Tinha esse bonito e alegre papel de centáureas e papoulas. Ascrianças se lembram muito bem das paredes de seu quarto. Nunca me esquecidos íris arroxeados na parede do meu quarto; e olhe que o papel foi mudadoquando eu tinha uns três anos.

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- Por isso é que pensei logo nos brinquedos, na casa de bonecas e nos armários debrinquedos?

- Exato. E na banheira. A banheira com uma borda de mogno. Você disse quepensou em soltar uns patos de brinquedo dentro dela assim que a viu.

- É verdade, respondeu Gwenda, pensativamente. - Eu tinha sempre a impressãode que sabia exatamente onde ficava cada coisa - a cozinha, o armário da roupade cama. E cismei que havia uma porta de comunicação entre a sala de estar e asala de jantar. Mas evidentemente é impossível eu chegar à Inglaterra e comprarexatamente a mesma casa em que morei há tantos anos!

- Não é impossível, querida. É apenas uma extraordinária coincidência... e ascoincidências extraordinárias acontecem... Seu marido queria uma casa na costasul.

Você estava procurando-a, passou por uma que lhe revolveu a lembrança eatraiu você.

Era de bom tamanho, o preço era acessível e então você a comprou. Não, não étão loucamente improvável. Se a casa fosse apenas o que se chama (às vezescom acerto) uma casa mal-assombrada, sua reação seria completamentediversa. Mas você não sentiu nenhuma sensação de violência ou de repulsa a nãoser, pelo que me contou, num determinado momento, quando ia começar adescer a escada e olhou para o saguão.

Voltou, nos olhos de Gwenda, uma expressão de pavor.

- A senhora acha... que... que Helen... que também isso é verdade?

Miss Marple respondeu em tom amável:

- Bem, acho que sim, querida... Acho que devemos reconhecer que, se as outrascoisas são lembranças, isso também é uma lembrança...

- Eu realmente vi uma pessoa morta... estrangulada... caída ali no chão?

- Não acho que você soubesse conscientemente que ela tinha sido estrangulada;isso foi sugerido pela peça de teatro ontem à noite, e você, como adulta, se dáconta do que deve significar um rosto convulso e azulado. Acho que uma criançamuito pequena, descendo uma escada com dificuldade, seria bem capaz deperceber a violência, a morte, o mal, e associá-los com um certo grupo depalavras... pois acho que não há dúvida de que o assassino realmente disse

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aquelas palavras. Isso seria um choque muito grande para uma criança. Ascrianças são criaturinhas bastante singulares. Se ficarem seriamente assustadas,sobretudo por alguma coisa que não entendem, não falam na assunto. Recalcamtudo. Aparentemente, talvez o esqueçam. Mas lá no fundo a lembrança continua.

Gwenda

suspirou.

- E a senhora acha que foi o que aconteceu comigo? Mas então por que agoranão me lembro de tudo?

- Não se pode comandar a memória. E muitas vezes, quando se tenta isso, ela seperde mais ainda. Mas creio que há um ou dois indícios de que foi isso o queaconteceu.

Por exemplo, agora há pouco, quando você me contou o que sentiu ontem à noiteno teatro, você usou uma expressão bastante reveladora. Disse que tinha aimpressão de estar olhando "através da balaustrada"... Mas normalmente não seolha para um saguão atrás da balaustrada, mas sim por cima dela. Só umacriança olharia através.

- A senhora é muito perspicaz, observou Gwenda admirada.

- Essas pequenas coisas são muito significativas.

- Mas quem era Helen? perguntou Gwenda, atônita.

- Diga, querida, você ainda tem certeza de que o nome era Helen?

- Tenho... É estranhíssimo, porque não sei quem é Helen... mas ao mesmo temposei... quer dizer, eu sei que era "Helen" quem estava caída ali... Como é que vouconseguir descobrir mais alguma coisa?

- Bem, a coisa mais óbvia a fazer é descobrir definitivamente se você esteve naInglaterra quando criança, ou se poderia ter estado. Seus parentes...

Gwenda interrompeu-a. - Tia Alison. Ela saberia. Tenho certeza.

- Então você poderia escrever-lhe uma carta aérea. Diga que, diante dascircunstâncias, se torna importantíssimo para você saber se alguma vez esteve naInglaterra. Quando seu marido chegar, a resposta provavelmente já estará aqui.

- Oh, obrigada, Miss Marple. A senhora foi maravilhosa. E espero que seu

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raciocínio esteja correto, porque assim fica tudo bem. Quer dizer, não há nada desobrenatural.

Miss

Marple

sorriu.

- Espero que dê tudo certo. Depois de amanhã vou passar uns dias com unsamigos no norte da Inglaterra. Na volta, daqui a uns dez dias, passo por Londres.Se você e seu marido estiverem aqui, ou se tiver chegado uma resposta à suacarta, eu estaria muito interessada em saber do resultado.

- É claro, querida Miss Marple! De qualquer modo, quero que a senhora conheçaGiles. Ele é um amor. E vamos bater um bom papo sobre essa história toda.

Gwenda já se sentia perfeitamente bem.

Miss Marple, entretanto, estava pensativa.

CAPITULO V

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ASSASSINATO EM RETROSPECTO

Cerca de dez dias depois Miss Marple entrou num pequeno hotel em Mayfair efoi entusiasticamente recebida pelo jovem casal Reed.

- Este é meu marido, Miss Marple, apresentou Gwenda. - Giles, você nem fazidéia de como Miss Marple foi genti1comigo.

- Muito prazer em conhecê-la, Miss Marple. Ouvi dizer que por pouco Gwendanão foi internada num hospício.

Os olhos azuis de Miss Marple examinaram Giles com ar de aprovação. Umhomem jovem e simpático, alto, louro, com o costume, por timidez, de piscar osolhos de vez em quando, de maneira muito atraente. Observou-lhe aconformação da boca, a linha firme do queixo.

- Vamos tomar chá no escritório, que é mais reservado, disse Gwenda. - Lá nãoaparece ninguém e poderemos mostrar a Miss Marple a carta de tia Alison.

- Sim, acrescentou, ante o olhar penetrante de Miss Marple. - Já chegou e é quaseexatamente o que a senhora pensou.

Terminado o chá, a carta foi aberta e lida.

"Querida Gwenda (escrevera a Srta. Danby ):

Fiquei muito preocupada ao saber que você passou por uma experiência tãoperturbadora. Para lhe dizer a verdade, eu tinha esquecido completamente quevocê morou na Inglaterra durante um curto período, quando era muito pequena.

Sua mãe, minha irmã Megan, conheceu seu pai, o Major Halliday, quando foi àÍndia e ficou hospedada em casa de amigos nossos. Eles se casaram e vocênasceu lá.

Dois meses depois de seu nascimento, sua mãe morreu. Foi um grande choquepara nós e escrevemos a seu pai, com quem nos correspondíamos, mas quenunca tínhamos conhecido pessoalmente, pedindo-lhe que nos deixasse tomarconta de você, o que seria para nós uma grande alegria; além do que talvez fossedifícil para um oficial cuidar de uma criança pequena. Seu pai, no entanto, serecusou, e nos disse que ia demitir-se do exército e trazer você com ele para aInglaterra. Disse também esperar que fôssemos visitá-lo quando estivessemorando lá.

Durante a viagem de volta seu pai conheceu uma jovem, ficou noivo e se casou

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com ela assim que chegaram à Inglaterra. Acho que o casamento não deu certoe sei que se separaram cerca de um ano depois. Foi então que seu pai tornou anos escrever, perguntando se ainda estávamos dispostos a cuidar de você. Nempreciso lhe dizer, querida, como ficamos felizes com a idéia. Você chegouacompanhada por uma governanta inglesa. Na mesma época seu pai fez umtestamento deixando tudo para você e sugeriu que você fosse legalmente adotadapor nós e passasse a usar nosso sobrenome. Devo dizer que achamos meioestranho, mas compreendemos que a intenção era boa ele desejava que você sesentisse pertencendo realmente a família -

mas não aceitamos a sugestão. Cerca de um ano depois, seu pai morreu numaclínica.

Suponho que na ocasião em que mandou você para junto de nós ele já soubesseque não estava bem de saúde.

Sinto muito não saber informar onde você morou com seu pai enquanto esteve naInglaterra. A carta dele naturalmente dava o endereço, mas isso foi há dezoitoanos atrás e a gente esquece esses detalhes. Sei que era no sul da Inglaterra eacho que o nome era mesmo Dillmouth. Tinha uma vaga idéia de que eraDartmouth, mas os dois nomes são parecidos. Acho que sua madrasta tornou a secasar, mas não me lembro de seu nome, nem mesmo do seu nome de solteira, sebem que seu pai o tivesse mencionado na carta em que nos fala de seu novocasamento. Acho que ficamos um pouco ressentidos por ele tornar a se casar tãocedo, mas naturalmente todos sabem que numa viagem de navio a influência daproximidade é muito grande - e pode ser que ele tivesse achado que seria bompara você.

Foi uma bobagem eu nunca lhe ter dito que você já havia estado na Inglaterra,mesmo que não se lembrasse disso, mas, como disse, eu já tinha esquecido todaa história... Para nós, os fatos mais importantes foram a morte de sua mãe naÍndia e você ter vindo, depois, morar conosco.

Espero que agora tudo esteja esclarecido.

Acredito que Giles poderá logo ir encontrar com você, pois é duro para os doisestarem afastados nessa fase inicial do casamento.

Mandarei notícias minhas em outra carta, pois esta , escrevi às pressas pararesponder ao seu telegrama.

Afetuosamente, sua tia Alison Danby."

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"P.S. Você não contou qual foi essa experiência tão perturbadora."

- Está vendo? perguntou Gwenda. - É quase exatamente o que a senhora sugeriu.

Miss Marple alisou a delicada folha de papel aéreo.

- É, é verdade. A explicação dada pelo bom-senso. Já descobri que, na maioriados casos, é a melhor explicação.

- Bem, sou muito grato à senhora, disse Giles. - Coitada de Gwenda... Estavaprofundamente abalada, e devo confessar que eu também fiquei preocupado aoimaginar que ela fosse vidente ou que estivesse inventando coisas.

- Deve ser uma característica incômoda numa esposa, disse Gwenda. - A menosque sempre você tenha levado uma vida completamente exemplar...

- O que levo sempre, retorquiu Giles.

- E a casa? Como se sentem em relação à casa? perguntou Miss Marple.

- Oh está tudo bem. Vamos para lá amanhã. Giles está morrendo de vontade deconhecê-la.

- Não sei se a senhora já percebeu, Miss Marple, disse Giles, - mas o que maisinteressa agora é que nós temos pela frente um misterioso caso de assassinato.Bem na nossa porta, ou melhor, no saguão de entrada da nossa casa.

- Sim, eu já tinha pensado nisso, respondeu Miss Marple, lentamente.

- E Giles adora contos policiais, disse Gwenda.

- Bem, é uma história policial. O corpo de uma linda mulher estrangulada, caídono chão. Nada se sabe sobre ela, a não ser seu primeiro nome. Naturalmente, seique ja faz quase vinte anos que isso aconteceu. Não deve ter ficado nenhumapista, depois de tanto tempo, mas pode-se pelo menos investigar um pouco, tentardescobrir alguma coisa. Oh, acho que ninguém vai conseguir decifrar omistério...

- Acho que é possível, interrompeu Miss Marple. - Mesmo depois de dezoito anos.Sim, acho que é possível.

- Mas de qualquer modo, não pode haver nenhum mal em se tentar seriamente,não é?

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Giles fez uma pausa. Seu rosto se abriu em largo sorriso.

Miss Marple se mexeu nervosamente na cadeira. Tinha o semblante sério - quasepreocupado.

- Mas isso pode causar grandes males, disse ela. - Eu aconselharia vocês dois -

oh, sim, aconselharia realmente - que deixassem isso de lado.

- Deixar de lado? Nosso próprio caso de mistério, de assassinato - se é que houveum assassinato!

- Acho que houve. E é justamente por isso que é melhor deixar de lado. Umassassinato não é... não é mesmo... uma coisa com a qual se mexadespreocupadamente.

- Mas, Miss Marple, disse Giles, - se todo mundo pensasse assim . . .

Ela

o

interrompeu.

- Oh, eu sei! Há ocasiões em que se trata de um dever uma pessoa inocenteacusada - suspeitas recaindo sobre várias outras pessoas... um criminoso à solta eque pode atacar de novo. Mas você tem que entender que esse crime já pertenceao passado.

Provavelmente ninguém ficou sabendo que houve um crime - se não você logoteria sabido pelo jardineiro ou por algum habitante do lugar. Um crime, por maisantigo que seja, sempre é novidade. Não, devem ter-se livrado do corpo dealguma forma e nunca ninguém suspeitou de nada. Você tem certeza - certezaabsoluta - de que vale a pena desencavar tudo isso?

- Miss Marple! exclamou Gwenda. - A senhora parece estar realmentepreocupada!

- Estou, querida. Vocês são dois jovens atraentes e encantadores, se mepermitem dizer assim. Estão recém-casados e felizes. Eu lhes peço, por favor,que não comecem a desencavar coisas que podem... bem, que podem... comoexplicar?... que podem vir a perturbá-los e trazer-lhes dificuldades.

Gwenda olhava-a fixamente. - A senhora está pensando em alguma coisa

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especial . . . em alguma coisa . . . Onde é que a senhora quer chegar?

- A lugar nenhum, minha querida. Estou apenas dando um conselho, porque jávivi muito e sei como a natureza humana E desconcertante. Estou apenasaconselhando vocês a deixarem o caso de lado. É o meu conselho: deixem o casode lado.

- Mas não se trata de deixar de lado, disse Giles, tendo na voz um acento maisduro - Hillside é nossa casa, minha e de Gwenda, e alguém foi assassinado ali, oupelo menos é o que imaginamos. Não vou ficar de braços cruzados, sem fazernada, diante de um assassinato na minha casa, mesmo que tenha sido há dezoitoanos atrás!

Miss Marple suspirou. - Sinto muito, disse ela. - Suponho que a maioria dos jovensinteligentes se sentiriam assim. Chego até a simpatizar com a sua atitude e aadmirar você. Mas eu gostaria - oh, como gostaria - de que vocês não semetessem nisso!

II

No dia seguinte toda a aldeia de St. Mary Mead sabia que Miss Marple estava devolta. Foi vista às onze horas na rua principal. Às dez para o meio-dia foi falarcom o vigário. Na mesma tarde três bisbilhoteiras senhoras do povoado foramvisitá-la para ouvir suas impressões da festiva metrópole e, após esse tributo àcortesia, contar todos os detalhes da grande confusão que se estava armando emtorno da barraca de trabalhos manuais para a próxima festa da igreja, e sobre alocalização do salão de chá.

Mais tarde, nesse mesmo dia, Miss Marple foi vista no jardim, como de hábito,mas dessa vez preocupava-se mais em arrancar as ervas daninhas do que emprestar atenção no que faziam os vizinhos. No decorrer de sua frugal refeiçãonoturna parecia distraída, mal ouvindo o animado relato de Evelyn, aempregada, sobre as extravagâncias do farmacêutico local. No dia seguintecontinuava com ar distraído e uma ou duas pessoas, inclusive a mulher dovigário, repararam nisso. Nessa noite Miss Marple disse que não estava sesentindo bem e foi deitar-se. Na manhã seguinte mandou chamar o Dr. Hay dock.

O Dr. Haydock era médico, amigo e aliado de Miss Marple há muitos anos.

Ouviu a descrição dos sintomas, examinou-a e em seguida recostou-se nacadeira, sacudindo, em direção a ela o estetoscópio.

- Para uma pessoa de sua idade, disse ele - apesar dessa enganosa aparência

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frágil, a senhora está em ótimas condições de saúde.

- Estou certa de que minha saúde está boa, retorquiu Miss Marple - mas confessoque me sinto um pouco cansada, um pouco deprimida.

- A senhora andou saindo muito, fazendo noitadas em Londres.

- É verdade. Hoje em dia acho Londres uma cidade muito cansativa. E com umar... tão viciado! Não há nada como a brisa do mar!

- 0 ar de St. Mary Mead é fresco e puro.

- Mas ás vezes é úmido e um tanto abafado. Não é estimulante, compreende?

Dr.

Haydock

olhou-a

muito

interessado.

- Vou-lhe receitar um tônico, disse ele, com amabilidade.

- 0brigada, Dr. Haydock. Gosto muito do xarope de Easton.

- Pelo jeito não precisa de receita minha, retorquiu o médico.

- Quem sabe se... uma mudança de ares...?

Miss Marple olhou para o Dr. Haydock inocentemente, com os seus olhos azuis.

- A senhora acaba de passar três semanas fora.

- Eu sei. Mas em Londres, que é, como o senhor disse, um lugar deprimente. E

depois no norte - uma região industrial. Não tem o ar revigorante do mar.

O Dr. Haydock fechou a maleta. Em seguida virou-se com um sorriso.

- Conte por que me mandou chamar, disse ele. - Diga-me logo o que tem de sere eu repito o que a senhora disser. Quer que lhe dê minha opinião profissional deque a senhora precisa da brisa do mar, não é?

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- Sabia que o senhor compreenderia, disse Miss Marple agradecida.

- A brisa do mar é excelente para a saúde. Proponho que a senhora partaimediatamente para Eastbourne, se não acabará ficando doente.

- Acho Eastbourne meio frio. Quem sabe mais para o sul?...

- Então Bornemouth, ou a Ilha de Wight.

Miss Marple deu-lhe uma piscadela.

- Acho as cidades pequenas muito mais agradáveis.

Dr. Hay dock tornou a sentar-se.

- A senhora despertou-me a curiosidade. Qual é a cidade à beira-mar em queestá pensando?

- Bem, eu estava pensando em Dillmouth.

- É um lugar simpático. Meio parado. Mas por que Dillh?

Miss Marple ficou em silêncio por alguns instantes. Seus voltaram a indicarpreocupação. Em seguida disse: - Suponhamos que um dia, por acaso, o senhordescubra um fato que parece mostrar que há muitos anos atrás - dezenove ouvinte anos

- ocorreu um crime. Só o senhor conhece esse fato. Ninguém jamais suspeitoude nada.

O que faria?

- Um assassínio em retrospecto?

-

Exatamente.

Haydock pensou um pouco.

- Não houve falha da justiça? Ninguém sofreu nada com resultado do crime?

- Que eu saiba, não.

- Ahn. . . Um assassínio em retrospecto. Um crime adormecido. Bem, vou lhe

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dar minha opinião. Eu deixaria esse crime de lado, adormecido - sim, é isso queeu faria.

Mexer com crimes é coisa arriscada. Pode ser mesmo muito perigoso.

- É o que temo.

- Dizem que o assassino sempre torna a atacar. Não é verdade. Existe um tipo deassassino que comete o crime, consegue escapar da justiça e toma todo cuidadopara nunca mais pôr a cabeça de fora. Não diria que ainda é capaz de viver felizsempre - não acredito que isso seja verdade - há muitos castigos diferentes. Mas,pelo menos aparentemente, tudo vai bem. Talvez tenha sido assim no caso deMadeleine Smith ou, tarde, no de Lizzie Borden. Nada foi provado no caso deMadeleine Smith, e Lizzie foi absolvida - mas muita gente acha que ambas eramculpadas. Poderia citar outros nomes.

Nunca repetiram o crime - um crime lhes proporcionou o que queriam e sederam por satisfeitos. Mas suponha que algum perigo os ameaçasse. Imagino queesse seu assassino - ou assassina - seja desse tipo. Cometeu um crime, saiu-sebem e ninguém desconfiou. Mas já pensou se alguém começa a bisbilhotar, fazerperguntas, desencavar provas abrindo caminho até conseguir, eventualmente,atingir o alvo? O que é que o assassino vai fazer? Ficar parado, sorrindo, sentindoo cerco apertar? Não... A menos que se trate de uma questão de princípio, eudeixaria isso de lado. E repetiu: - Deixe de lado esse crime; acrescentandofirmemente: - Essa é a minha ordem para a senhora.

Deixe isso de lado!

- Mas não sou eu que estou envolvida. São duas crianças encantadoras. Deixe-mecontar!

Haydock ouviu a história toda.

- Extraordinário, observou ele quando Miss Marple terminou o relato. - Umacoincidência extraordinária. A coisa, toda é extraordinária. A senhora nãodesconhece as possíveis implicações, não é?

- É claro que não! Mas acho que isso ainda não ocorreu a eles!

- Isso pode resultar em muita infelicidade e eles vão desejar nunca se teremmetido nisso. Os esqueletos devem ficar bem guardados. Mesmo assim,compreendo o ponto de vista do jovem Giles. Ora, afinal de contas eu mesmonão deixaria a coisa de lado. Até já estou ficando curioso. . .

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Interrompeu-se e olhou com severidade para Miss Marple.

- Então é por isso que a senhora arranjou tantas desculpas para ir para Dillmouth.Para se meter numa coisa que não é da sua conta!

- Não é isso, Dr. Haydock. Estou preocupada com aqueles dois. São muito jovense inexperientes, demasiadamente crédulos e confiantes. Acho que devia estarpresente para tomar conta deles.

- Então é por isso que vai. Para tomar conta deles! Será que a senhora nunca vaiconseguir deixar um crime de lado? Mesmo um crime em retrospecto?

Miss

Marple

sorriu.

- Mas o senhor concorda que algumas semanas em Dillmouth seriam benéficaspara a minha saúde, não é?

- É mais provável que acabem com ela de uma vez, respondeu o Dr. Haydock. -

Mas a senhora não me obedece!

III

Ao chegar ao portão da casa de seus amigos, o Coronel e a senhora Bantry, MissMarple encontrou o Coronel andando pelo caminho e empunhando umaespingarda, seguido pelo seu cocker-spaniel. Cumprimentou-a amavelmente.

- Que prazer vê-la de volta! Que tal está Londres?

Miss Marple respondeu que Londres estava muito bem. Seu sobrinho a levarapara assistir a várias peças de teatro.

- Bem intelectuais, posso apostar, retorquiu ele. - Só gosto de comédias musicais.

Miss Marple contou que assistira a uma peça russa muito interessante, apesar deum pouco longa.

- Esses russos! explodiu o Coronel Bantry. Certa vez, quando estava numa clínica,deram-me um romance de Dostoievski para ler.

Acrescentou que Miss Marple encontraria Dolly no jardim. A senhora Bantry

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estava quase sempre no jardim. Adorava jardinagem. Sua literatura preferidaeram catálogos de bulbos e sua conversa girava em torno de prímulas, bulbos,arbustos floridos e novidades alpinas. A primeira visão de Miss Marple foi a deum vasto traseiro vestindo uma saia de tweed desbotada.

Ao ouvir os passos que se aproximavam a senhora Bantry levantou-se comchiados e estremecimentos. De tanto cuidar de jardim, ficara com reumatismo.Com a mão suja de terra, enxugou o suor da testa e cumprimentou a amiga.

- Já me haviam dito que você estava de volta, Jane, disse ela. - Não acha queminhas flores estão lindas? Já viu essas novas gencianas pequenas? Derambastante trabalho, mas acho que agora vão indo hem. Precisamos é de chuva.Está tudo horrivelmente seco. Esther me disse que você estava de cama,acrescentou. Esther era a cozinheira da senhora Bantry e sua informante oficialdo que se passava na aldeia. -

Estou contente de ver que não é verdade.

- Um pouco cansada, respondeu Miss Marple. - Dr. Haydock acha que preciso dear marítimo. - Ando meio deprimida.

- Oh, mas você não pode viajar agora! exclamou a senhora Bantry. - É a melhorépoca do ano para cuidado jardim. Seus arbustos devem estar quase florindo!

- Dr. Haydock acha aconselhável.

- Bem, Dr. Haydock não é um bobalhão como tantos outros médicos, admitiu asenhora Bantry a contragosto.

- Dolly, estava pensando naquela sua cozinheira.

- Qual cozinheira? Você está precisando de cozinheira? Não está se referindoàquela que bebia, não é?

- Não, de jeito nenhum. Estou falando daquela que fazia massas tãomaravilhosas! A que era casada com o mordomo.

- Ah! Você se refere à Mock Turtle* - exclamou a senhora Bantry, numaidentificação imediata. - Uma que tinha uma voz chorosa. Parecia sempre queestava prestes a cair em prantos. Era uma ótima cozinheira. O marido era umhomem gordo, meio preguiçoso. Arthur sempre dizia que ele botava água nouísque. Não sei. É pena que no casal haja sempre um que não serve. Um antigopatrão deixou-lhes uma herança e eles abriram uma pensão na costa sul.

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- Era exatamente o que eu pensava. Não foram para Dillmouth?

- Isso mesmo. O endereço é: 14, Sea Parade, Dillmouth.

- Já que o Dr. Haydock sugeriu o mar, pensei em hospedar-me com eles. O

sobrenome não é Saunders?

- É. Acho uma ótima idéia, Jane. É a melhor coisa a fazer. A senhora Saundersvai cuidar bem de você e, como estamos fora da estação, eles ficarão contentesem recebê-la e poderão fazer-lhe um bom desconto. Com boa alimentação e abrisa do mar você vai se recuperar logo, logo.

- Obrigada, Dolly, respondeu Miss Marple. - Espero que sim.

*N. do T.: Um apelido, obviamente. Tartaruga dissimulada, ao pé da letra.

CAPÍTULO VI

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BRINCANDO DE DETETIVE

- Onde é que você acha que o corpo estava? Mais ou menos aqui? perguntouGiles.

Giles e Gwenda estavam de pé no saguão de entrada d Hillside. Haviam chegadona noite anterior e Giles já estiava, e plena atividade. Parecia uma criança comum brinquedo novo.

- Por aí, respondeu Gwenda. Subiu de costas alguns degraus da escada e olhouatentamente para baixo. - É, acho que estava por aí.

- Abaixe-se, ordenou Giles. - Lembre-se de que você só tem três anos de idade.

Gwenda abaixou-se obedientemente.

- Será que você realmente não poderia ver o homem disse aquela frase?

- Não me lembro de tê-lo visto. Devia estar um pouco mais para trás... Sim, aímesmo. Só via as patas.

-

Patas? Giles franziu as sobrancelhas.

- Eram patas. Patas cinzentas - não eram mãos humanas.

- Mas escute, Gwenda, isto não é um assassinato na Rue Morgue. Um homemnão tem patas!

-

Bem,

mas

ele tinha patas! Giles olhou-a com ar duvidoso.

- Isso você deve ter imaginado depois.

- Você não acha que talvez eu tenha imaginado tudo? perguntou Gwenda,fleugmática. - Sabe, Giles, estive pensando. Parece muito mais provável que tudotenha sido um sonho. Pode ter sido. Esse tipo de sonho que criança tem, ficaterrivelmente assustada e nunca mais esquece. Não acha que talvez seja isso aexplicação mais razoável? Porque ninguém em Dillmouth parece ter a mais vaga

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lembrança de um crime, ou de uma morte súbita, de um desaparecimento ou dequalquer coisa estranha relativa a esta casa.

Giles fez uma cara de criança um tanto diferente; uma criança a quem tivessemtomado o brinquedo novo.

- Acho que pode ter sido um pesadelo, admitiu ele a contragosto. Subitamente seurosto se iluminou.

- Não, disse ele. - Não acredito. Você podia ter sonhado com patas de macaco euma pessoa morta, mas duvido que você pudesse ter sonhado com aquela frasetirada da Duquesa de Malfi.

- Posso ter ouvido alguém pronunciá-la e ter sonhado com ela depois.

- Acho que nenhuma criança seria capaz disso. A não ser que a tivesse ouvido sobgrande tensão - e se tiver sido assim, voltamos ao ponto de partida. Espere... jásei!

Você sonhou, com as patas. Você viu o corpo, ouviu a frase, ficou apavorada eteve um pesadelo em que havia patas de macaco. Provavelmente você tivessemedo de macacos.

Gwenda fez uma cara meio de dúvida, dizendo: - Talvez tenha sido isso...

- Gostaria que você se lembrasse de mais coisas... Venha até o saguão. Feche osolhos. Pense... Não se lembra de mais nada?

- Não, Giles. . . Quanto mais penso, mais a coisa me escapa... Estou começandoa duvidar de que realmente tenha visto alguma coisa. Talvez, na outra noite, nãotenha passado de uma perturbação mental no teatro.

-

Não.

Houve alguma coisa. Miss Marple também acha. E Helen? Não é possível quevocê não se lembre de alguma coisa sobre Helen!

- Não me lembro de nada. É apenas um nome.

- Talvez não seja nem o nome certo.

-

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É

sim.

Era Helen.

O tom de Gwenda era obstinado e convicto.

- Se você tem tanta certeza de que era Helen, você deve saber alguma coisa aseu respeito, observou Giles. - Conhecia-a bem? Ela morava aqui ou era umahóspede?

- Já disse que não sei! Gwenda estava ficando irritada, tensa.

Giles decidiu tentar por outros meios.

- De quem mais você se lembra? De seu pai?

- Não... Isto é, não sei. Via sempre o retrato dele, entende? Tia Alison me dizia:Esse é seu pai. Mas não me lembro dele aqui, nesta casa...

- Nem dos empregados, de governantas, nada?

- Não... Não. Quanto mais tento lembrar, mais aumenta o vazio. As coisas que seiestão todas subjacentes - como, por exemplo, dirigir-me automaticamente paraaquela porta. Não me lembro que havia uma porta ali. Talvez se você não mechateasse tanto, Giles, eu conseguisse me lembrar melhor. De qualquer modo,querer desvendar tudo é inútil. Foi há tanto tempo!

- Inútil não é, de modo algum. Até a velha Miss Marple concordou com isso.

- Mas ela não nos deu nenhuma sugestão de por onde começar, retorquiuGwenda. - No entanto, pelo brilho de seus olhos, acho que ela estava comalgumas idéias. Como será que da agiria?

- Não acho que ela pudesse ter idéias muito diferentes das nossas, respondeuGiles em tom firme. - Precisamos parar de especular, Gwenda, e agir demaneira sistemática. Já temos uma base. Examinei todos os registros de pessoasmortas na paróquia. Não há, entre elas, nenhuma Helen com a idade certa. Aliásnão parece haver nenhuma Helen no período que nos interessa. Só vi uma tal deEllen Pugg, de noventa e quatro anos. Agora precisamos pensar em outramaneira prática. Se seu pai, e, presu-mivelmente sua madrasta, moraram nestacasa, ou compraram ou alugaram a propriedade.

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- Pelo que disse Foster, o jardineiro, antes dos Hengrave moravam aqui osElworthy, e antes deles a casa era da senhora Findey son. Não sabe de maisninguém.

- Seu pai pode ter comprado a casa, morado aqui muito pouco tempo e depois tertornado a vendê-la. Mas acho muito mais provável que a tenha alugado - ecertamente mobiliada. É melhor indagarmos junto aos corretores da cidade.

A pesquisa junto aos corretores não foi muito longa. Havia apenas dois escritóriosde corretagem em Dillmouth. Um deles, o dos Wilkinsons, era relativamentenovo. Seus donos só trabalhavam em Dillmouth há onze anos. Lidavam mais compequenos bangalôs e as casas novas da outra ponta da cidade. O outro escritório,Galbraith & Penderley, fora o que vendera a casa para Gwenda. Lá chegando,Giles logo atacou com sua história. Ele e a esposa estavam encantados comHillside e com a cidade da Dillmouth. Aliás, a senhora Reed acabara dedescobrir que até morara em Dillmouth quando era criança. Tinha vagasrecordações do lugar e achava que Hillside era justamente a casa em quemorara, mas não podia ter certeza disso. Será que o escritório teria algumregistro de aluguel da casa a um Major Halliday ? Isso teria sido há dezoito oudezenove anos atrás...

O senhor Penderley estendeu os braços num gesto de desculpas.

- Sinto muito, mas acho que não posso dar-lhe essa informação, senhora Reed.

Nossos registros não vão tão longe assim - pelo menos quanto a aluguéis porprazos curtos. Sinto muito não poder ajudá-lo, senhor Reed. Aliás, se o senhorNarracott nosso antigo gerente, fosse vivo - ele morreu no ano passado -provavelmente lhe seria útil.

Tinha uma memória extraordinária, realmente extraordinária. Trabalhou nafirma durante quase trinta anos.

- Não há mais ninguém que pudesse se lembrar?

- Nosso pessoal é todo muito mais moço... Bem, naturalmente há o própriosenhor Galbraith. Ele se aposentou alguns anos atrás.

- Quem sabe posso perguntar a ele? disse Gwenda.

- Bem, quanto a isso, não sei... O senhor Penderley parecia em dúvida. Ele teveum derrame no ano passado e sua cabeça já não funciona muito bem. Está commais de oitenta anos, compreende?

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- Ele mora em Dillmouth?

- Oh, sim, em Calcutta Lodge. Uma propriedade muito simpática na estrada deSeaton. Mas na realidade acho que não...

II

- É uma tentativa desesperada, disse Giles para Gwenda. - Mas nunca se sabe.

Acho que não devemos escrever. Vamos lá pessoalmente, para impor a nossapersonalidade.

Calcutta Lodge era cercada por um jardim muito bem tratado e a sala na qualforam introduzidos também era muito bem arrumada, embora um tantosobrecarregada de móveis e objetos. Cheirava a cera e a produtos de limpeza. Osmetais brilhavam.

Pesadas cortinas fechavam as janelas.

Uma mulher de meia-idade, magra e de olhar desconfiado, entrou na sala.

Giles tratou de explicar rapidamente o motivo de sua presença e a expressãodesconfiada da Srta. Galbraith, que imaginara ser ele um vendedor deeletrodomésticos, desapareceu.

- Sinto muito, disse ela - mas acho que não posso ajudá-los em nada. Foi há tantotempo, não é mesmo?

- Às vezes a gente se lembra das coisas, observou Gwenda.

- Naturalmente não sou a pessoa mais indicada. Nunca trabalhei na firma. O

senhor disse Major Halliday ? Não, não me lembro de ter conhecido ninguémcom esse nome em Dillmouth.

- Talvez o seu pai se lembre, sugeriu Gwenda.

- Meu pai? A Srta. Galbraith abanou a cabeça.

- Ele está muito alheio a tudo e sua memória anda muito fraca.

Os olhos de Gwenda fixavam, com ar pensativo, uma mesa de metal de Benarese se deslocaram para diversos elefantes de marfim colocados em cima dalareira.

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- Achei que talvez ele se lembrasse, insistiu Gwenda, porque meu pai tinhaacabado de voltar da Índia. Sua casa não se chama Calcutta Lodge?

Fez uma pausa com ar interrogativo.

- Sim, respondeu a Srta. Galbraith. - Meu pai passou algum tempo em Calcutá, anegócios. Depois veio a guerra e em 1920 ele entrou, aqui, para a firma, massempre diz que gostaria de ter voltado para lá. Mas minha mãe não gostava depaíses estrangeiros -

e naturalmente não se pode dizer que o clima de lá seja saudável. Bem, não sei...talvez gostasse de ver meu pai. Não sei se hoje ele está num de seus bons dias...

Levou-os a um pequeno escritório, nos fundos da casa. Sentado numa grandepoltrona de couro estava um ancião de vastos bigodes brancos caídos. Seu rostoera ligeiramente repuxado para um lado. Ao olhar para Gwenda fez um ar deinequívoca aprovação, após as apresentações de sua filha.

- Minha memória não é mais a mesma, disse ele em voz confusa.

- A senhora disse Halliday ? Não, não me lembro desse nome. Conheci ummenino no colégio, em Yorkshire... mas isso foi há uns setenta anos...

- Acho que ele alugou Hillside, disse Giles.

- Hillside? Naquela época a casa se chamava Hillside? O Sr. Galbraith fechou etornou a abrir a pálpebra que ainda mexia. - Findeyson morava lá. Uma mulhermaravilhosa...

- Talvez meu pai tenha alugado a casa mobiliada. . . Ele acabara de chegar daÍndia.

- Índia? A senhora falou Índia? Me lembro de um sujeito... um oficial do exército.Conhecia aquele bandido chamado Mohammed Hassan, que me roubou no preçode uns tapetes. Tinha uma mulher jovem... e um bebê... uma menininha.

- Era eu, disse Gwenda com firmeza.

- Não me diga! Bem, bem, o tempo voa. Bem, mas como era o nome dele?

Queria uma casa mobiliada... sim... A Sra. Findeyson tinha ido para o Egito ouum lugar desses qualquer para passar o inverno. Uma bobagem... Como eramesmo o nome dele?

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- Halliday, disse Gwenda.

- Isso mesmo, minha cara . . . Halliday. Major Halliday. Bom sujeito. Mulhermuito bonitinha - bem moça - loura... Queria morar junto dos parentes, ou coisaassim.

Sim, muito bonitinha.

- Quais eram os parentes dela?

- Não faço a menor idéia. Nem tenho noção. A senhora não se parece com ela.

Gwenda ia explicar que era sua madrasta, não sua mãe, mas calou-se para nãocomplicar as coisas. - Como era ela? perguntou.

- Parecia preocupada, respondeu inesperadamente o Sr. Galbraith. - É issomesmo, tinha um ar preocupado. Muito simpático, o tal major. Mostrou-seinteressado ao saber que eu conhecia Calcutá. Não era como esses sujeitos quenunca saíram da Inglaterra. Têm uma mentalidade estreita... Mas eu conheci omundo. Como é que era o nome, o do sujeito do exército que queria uma casamobiliada?

Parecia uma vitrola velha, repetindo um disco estragado.

- St. Catherine. É isso. Alugou St. Catherine - seis guinéus por semana -

enquanto a Sra. Findeyson estava no Egito. Morreu lá, coitada! A casa foi a leilão-

quem foi mesmo que a comprou? Elworthys - um bando de mulheres, irmãs.Mudaram o nome da casa - disseram que St. Catherine era coisa de carola. Nãogostavam de nenhuma espécie de carolice. Jogavam fora os prospectosreligiosos. Mulheres sem nenhum atrativo. Interessavam-se pelos negros...mandavam-lhes calças e bíblias.

Davam tudo para converter os pagãos.

Subitamente suspirou e reclinou-se na poltrona.

- Faz muito tempo, disse ele em tom agitado. - Não me lembro dos nomes. Umcara da Índia. . . bom sujeito. . . Glady s, estou cansado. Gostaria de tomar meuchá.

Giles e Gwenda agradeceram ao Sr. Galbraith, à filha, retiraram-se. - Então está

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provado, disse Gwenda. - Meu pai e eu moramos em Hillside. O que vamos fazeragora?

- Fui um idiota! exclamou Giles. - Somerset House!

- O que é Somerset House? perguntou Gwenda.

- É um escritório onde estão registrados todos os casamentos. Vou até lá procuraro registro de casamento do seu pai. Segundo sua tia, seu pai se casou pelasegunda vez assim que chegou de volta à Inglaterra. Pense bem, Gwenda - nãosei porque isso não nos ocorreu antes - é perfeitamente possível que Helen fosseparente de sua madrasta - talvez uma irmã mais moça. . . De qualquer modo,quando soubermos seu sobrenome poderemos encontrar alguém que nos contealguma coisa sobre a vida em Hillside. Lembre-se de que o velho disse que elaqueria uma casa em Dillmouth para ficar perto dos parentes! Se os parentesmoram por aqui, podemos descobrir alguma coisa.

- Giles, exclamou Gwenda - você é fantástico!

III

Giles, afinal, não achou mais necessário ir até Londres. Apesar do temperamentoenérgico, que sempre o fazia correr de um lado para outro, tentando resolvertudo sozinho, concordou que talvez uma informação de simples rotina pudesse serobtida por outra pessoa. Entrou, então, em contato com o seu escritório.

- Aqui está - exclamou entusiasticamente, quando chegou a esperada resposta.

Retirou do envelope a cópia de uma certidão de casamento.

- Está aqui, Gwenda! Sexta-feira, 7 de agosto. Cartório dos Registros deKensington. Kelvin James Halliday e Helen Spenlove Kennedy.

Gwenda deu um grito. - Helen?

Olharam um para o outro.

Giles disse lentamente: - Mas . . . mas. . . não pode ser ela. Eles se separaram, elase casou de novo... e foi embora.

- Não sabemos se ela foi embora, disse Gwenda.

Olhou novamente para o nome no papel: Helen Spenlove Kennedy.

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Helen...

CAPITULO VII

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Dr. KENNEDY

Alguns dias depois Gwenda estava passeando pela avenida sob um vento frio,quando estancou subitamente junto a um desses abrigos de vidro que umaempresa solícita construiu para proteger os seus visitantes.

- Miss Marple! exclamou, cheia de surpresa.

Sim, era Miss Marple, bem agasalhada por um espesso casaco de lã e todaenvolta em cachecóis.

- Deve estar espantada de me encontrar aqui, respondeu vivamente Miss Marple.

- Meu médico me receitou uma mudança de ares - de preferência junto do mar- e a descrição que vocês fizeram de Dillmouth foi tão atraente que decidi virpara cá. Além disso descobri que a cozinheira e o mordomo de uma amigaminha têm pensão aqui.

- Mas por que não foi nos visitar? perguntou Gwenda.

- Gente velha é sempre meio maçante, querida. Os jovens recém-casadosprecisam estar a sós. Sorriu ante o ar de protesto de Gwenda. - Tenho certeza deque seria muito bem recebida por vocês. Como é que vocês vão? E em que péestá indo o nosso mistério?

- Estamos na pista, respondeu Gwenda, sentando-se a seu lado.

Contou-lhe detalhadamente as várias investigações feitas até o momento.

- E agora, concluiu, - colocamos um anúncio em diversos jornais - nos jornaislocais, em The Times e outros de grande circulação. Pedimos que qualquerpessoa que saiba do paradeiro de Helen Spenlove Halliday, nascida Kennedy,entre em contato, etc.

Não acha que vamos receber algumas respostas?

- Acho que sim, querida - sim, acho que vão.

A voz de Miss Marple era tranqüila como sempre, mas seu olhar pareciaperturbado. Lançou um rápido olhar de observação sobre a moça que se sentavaa seu lado. Aquele tom decidido e entusiasmado soava falso. Gwenda pareciaestar preocupada. Talvez aquilo a que Dr. Haydock dera o nome de "implicações"estivesse começando a lhe ocorrer. Sim, mas agora era muito tarde para voltaratrás...

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Miss Marple disse em tom carinhoso e com um ar de desculpa.

- Estou realmente muito interessada em tudo isso. Compreende, minha vida é tãosem novidades! Espero que não me achem metida demais se lhes pedir que memantenham a par dos acontecimentos, está bem?

- É claro que lhe contaremos tudo! exclamou Gwenda, com entusiasmo. - Asenhora vai ficar a par de tudo. Ora, afinal, se não fosse a senhora, eu já teriapedido aos médicos que me trancafiassem num hospital de maluco. Dê-me seuendereço aqui. A senhora precisa ir lá em casa e tomar um drinque - isto é, umaxícara de chá, e conhecer a casa. É preciso ver o cenário do crime, não émesmo?

Gwenda riu, mas havia algo de nervoso no seu riso. Quando ela partiu MissMarple sacudiu a cabeça e franziu a testa.

II

Diariamente Giles e Gwenda examinavam com avidez a correspondência, mas aprincípio suas esperanças foram vãs. Receberam apenas duas cartas de detetivesparticulares que se declararam dispostos e preparados para fazer as investigaçõesnecessárias.

- Por enquanto eles que fiquem para lá, disse Giles. - Se tivermos de pedir ajuda,vamos contratar uma firma indubitavelmente de primeira ordem, e não umsujeito que se oferece por carta. Mas também não sei o que é que eles poderiamfazer além do que estamos fazendo.

Seu otimismo, (ou amor-próprio), viu-se justificado alguns dias mais tarde, coma chegada de uma carta escrita com letra firme mas de certo modo ilegível,típica de médico.

Prezado

Senhor:

Em resposta a seu anúncio em The Times, informo que Helen Spenlove Kennedyé minha irmã. Perdemos contato há muitos anos e gostaria de ter notícias dela.

Atenciosamente,

James Kennedy, MD.

Galls

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Hill

Woodleigh

Bolton.

- Woodleigh Bolton, disse Giles. - Não é muito longe daqui. O pessoal daquicostuma fazer piqueniques em Woodleigh Camp. Fica na região da charneca, apouco mais de quarenta quilômetros. Vamos escrever uma carta perguntando aoDr. Kennedy se podemos ir visitá-lo ou se ele prefere vir aqui nos ver.

Dr. Kennedy respondeu que os receberia na quarta-feira seguinte e no diacombinado o casal partiu.

Woodleigh Bolton era uma aldeia espalhada na encosta de uma colina. Galls Hillera a casa mais alta, no topo da ladeira, com vista para o mar, além deWoodleigh Bolton e da charneca.

- Que lugar mais desolado! exclamou Gwenda, estremecendo.

A casa em si também era desolada, e evidentemente o Dr. Kennedy desprezavaas inovações modernas, tais como aquecimento central. A mulher que abriu aporta era morena e carrancuda. Guiou-os através do despojado saguão deentrada até o escritório, onde o Dr. Kennedy se levantou para recebê-los. Erauma sala comprida e alta, com as paredes cobertas pelas estantes de livros.

Dr. Kennedy era um senhor de idade, com os cabelos grisalhos, sobrancelhasespessas e olhos muito vivos. Deteve em cada um dos dois um olhar atento,penetrante.

- Sr. e Sra. Reed? Sente-se aqui, Sra. Reed. Acho que esta é a cadeira maisconfortável. Bem, de que se trata?

Giles contou com facilidade toda a sua história previamente bem-animada.

Eles tinham se casado recentemente na Nova Zelândia. Vieram para aInglaterra, onde Gwenda tinha morado por pouco tempo quando criança, e elaagora estava querendo encontrar os antigos amigos da família e os conhecidos.

Dr. Kennedy permanecia sério e inflexível. Seu tom era polido, mas nãoescondia a irritação que lhe causava a provinciana insistência sobre os laçossentimentais de família.

- E acha que minha irmã - minha cunhada - e possivelmente eu mesmo somos

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seus conhecidos? perguntou a Gwenda de modo educado mas ligeiramente hostil.

- Ela era minha madrasta, respondeu Gwenda. - A segunda mulher de meu pai.

Naturalmente, não consigo me lembrar dela direito. Eu era tão pequena! Meunome de solteira é Halliday.

Ele olhou para ela - e subitamente um sorriso iluminou-lhe o rosto. Tornou-seoutra pessoa, já menos arredia.

- Meu Deus! exclamou. - Não me diga que você é Gwennie!

Gwenda fez que sim com a cabeça. O apelido infantil, há tanto tempo esquecido,ecoou com uma tranqüilizante familiaridade em seus ouvidos.

- Sim, respondeu ela. - Sou Gwennie.

- Céus! Adulta e casada... Como o tempo voa! Deve fazer... quinze anos... não, éclaro que faz muito mais tempo. Você não se lembra de mim, não é?

Gwenda sacudiu a cabeça.

- Não me lembro nem de meu pai. . . ou melhor, tudo é muito nebuloso.

- É claro. . . A primeira mulher de Halliday era da Nova Zelândia... Lembro queele me contou isso. Deve ser um país muito bonito.

- É o país mais lindo do mundo... mas também gosto muito da Inglaterra.

- Está de passagem ou veio morar aqui? Tocou a campainha. - Precisamos tomaruma xícara de chá.

Quando a alta mulher entrou, ele pediu: - Chá, por favor... e... torradas commanteiga ou ... bolo, qualquer coisa.

A respeitável governanta parecia cheia de má-vontade, mas respondeu: - Sim,senhor, e retirou-se.

- Não costumo tomar chá, observou o Dr. Kennedy. Mas precisamos comemorar.

- O senhor é muito gentil, disse Gwenda. - Não, não estamos de passagem.

Compramos uma casa. Fez uma pausa e acrescentou: - Hillside.

- Oh, sim! Fica em Dillmouth, respondeu o Dr. Kennedy com ar vago. - Vocês

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escreveram de lá.

- É uma coincidência extraordinária, não acha, Giles? perguntou Gwenda.

- Extraordinária, concordou Giles. - Espantosa, realmente!

- Estava à venda, sabe? prosseguiu Gwenda, dirigindo-se so Dr. Kennedy.

Percebendo que ele não compreendera, acrescentou: - É a mesma casa em quemoramos quando eu era criança.

Dr. Kennedy franziu a testa.

- Hillside? Mas... Ah, sim, ouvi dizer que mudaram o nome. Chamava-se... eraum nome de santo... se é que estamos falando da mesma casa... a que fica àdireita de quem vai para a cidade, na estrada de Leahampton.

-

Exato.

- É essa mesmo. Engraçado... Como a gente esquece os nomes! Espere uminstante. St. Catherine! Era esse o nome da casa.

- E eu morei lá, não foi? perguntou Gwenda.

- É claro que sim. Olhou-a com um ar divertido. - Por que quis voltar para lá?

Não deve se lembrar de quase nada da casa, não é mesmo?

- Não. Mas de certo modo... senti-me em casa.

- Você se sentiu em casa, repetiu o médico. Sua voz era inexpressiva, mas Gilessubitamente pôs-se a imaginar o que ele estaria pensando.

- De modo que achei, prosseguiu Gwenda - que o senhor poderia me falar detudo... de meu pai e de Helen ... e, menos convincente, de tudo...

Ele a olhou pensativamente.

- Acho que lá na Nova Zelândia não sabiam de muita coisa. Por que haviam desaber? Bem, não há muito a contar. Helen, minha irmã, estava voltando da Índiano mesmo navio que seu pai. Ele era viúvo e tinha uma filha pequena. Helen tevepena dele... ou se apaixonou por ele. Ele estava se sentindo sozinho... ou seapaixonou por ela. É difícil saber exatamente porque as coisas acontecem. Ao

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chegarem a Londres casaram-se e vieram para Dillmouth, para junto de mim.Kelvin Halliday parecia um bom sujeito, bastante nervoso e frágil... mas os doispareciam felizes... naquela época.

Ficou em silêncio por algum tempo, antes de prosseguir. - No entanto, menos deum ano depois ela fugiu com outro. Você provavelmente sabe disso.

- Com quem foi que ela fugiu? perguntou Gwenda.

Ele fixou na moça seus olhos vivos.

- Ela não me disse, respondeu. - Não me fazia confidências. Eu tinha percebido...não podia deixar de perceber...que estava havendo desentendimento entre ela eKelvin. Não sabia por quê. Sempre fui um sujeito conservador - acredito emfidelidade conjugal. Helen não gostaria que eu soubesse o que estavaacontecendo. Eu tinha ouvido boatos - sempre acabam chegando aos ouvidos dagente - mas não havia menção a nenhum nome específico. Freqüentementehospedavam amigos que vinham de Londres ou de outros lugares da Inglaterra.Acho que fugira com algum deles.

- Quer dizer que não houve divórcio?

- Helen não quis se divorciar. Foi Kelvin quem me contou. Por isso é queimaginei - talvez tenha me enganado - que fosse algum homem casado, cujamulher fosse católica.

- E meu pai?

- Também não quis pedir divórcio.

Dr. Kennedy falou com certa secura.

- Fale sobre meu pai, pediu Gwenda. - Por que foi que de repente ele resolveume mandar para a Nova Zelândia?

Kennedy fez uma pausa antes de responder. - Acho que a família de sua mãe fezpressão nesse sentido. Dissolvido o segundo casamento, ele provavelmente achouque seria a melhor coisa a fazer.

- Por que não me levou para lá pessoalmente?

Dr. Kennedy percorreu a lareira com os olhos, procurando vagamente umlimpador de cachimbo.

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- Oh, não sei . . . A saúde dele não ia bem.

- O que é que ele tinha? De que foi que morreu?

A porta se abriu e a desdenhosa governanta entrou, carregando uma pesadabandeja. Trouxera torradas, manteiga e geléia, mas bolo não. Com um gestovago, o Dr.

Kennedy fez sinal a Gwenda para servir o chá. Quando as xícaras estavamcheias e passavam de mão em mão, Gwenda pegou uma torrada e o Dr.Kennedy disse, com animação forçada.

- Contem o que fizeram na casa! Uma porção de alterações e reformas? Achoque eu não a reconheceria mais - depois do que vocês devem ter modificado.

- Estamos nos divertindo um pouco com banheiros novos - respondeu Giles.

Gwenda, com os olhos fixos no médico, insistiu: - De que morreu meu pai?

- Não sei lhe responder exatamente, minha cara. Como já disse, não estava comboa saúde e finalmente acabou se internando num sanatório - num lugar qualquerda costa leste. Morreu uns dois anos depois.

- Onde era, exatamente, esse sanatório?

- Sinto muito, mas não me lembro. Como disse, tenho a impressão de que ficavana costa leste.

O tom, agora, era francamente evasivo. Giles e Gwenda se entreolharamrapidamente.

- Mas pelo menos o senhor pode informar-nos onde ele foi enterrado? disse Giles.- Naturalmente, Gwenda quer muito visitar o túmulo.

Dr. Kennedy inclinou-se em direção à lareira, raspando o interior do cachimbocom um canivete.

- Sabem... disse ele, de maneira meio confusa. - Acho que não se deve insistirdemasiadamente no passado. Toda essa veneração por um antepassado - é umerro. O

importante é o futuro. Estão aqui vocês dois, jovens, saudáveis, com o mundo aosseus pés. Pensem no futuro. Não adianta colocar flores no túmulo de uma pessoaque, na prática, você mal conheceu.

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Gwenda respondeu teimosamente:

- Gostaria de ver o túmulo de meu pai.

- Sinto muito, mas não posso ajudá-la. - Sua voz era amável, porém fria. - Issofoi há muito tempo, e minha memória já não é a mesma. Perdi contato com seupai quando ele foi embora de Dillmouth. Acho que me escreveu uma vez, dosanatório e, como já disse, tenho a impressão de que ficava na costa leste - masnem mesmo disso tenho certeza. E não tenho a menor noção de onde foienterrado.

- Que coisa estranha! observou Gwenda.

- Nem tanto. O que nos ligava, compreende, era Helen. Sempre gostei muito deHelen. É minha meia-irmã e muitos anos mais moça do que eu, mas procureieducá-la da melhor maneira possível. Mandei-a para os melhores colégios etudo. Mas não adianta esconder que Helen... bem, ela nunca teve umtemperamento estável. Quando era muito jovem armou uma confusão com umrapaz bastante inconveniente. Consegui tirá-la da confusão. Depois resolveu irpara a Índia e casar com Walter Fane. Bem, isso estava certo - um bom rapaz,filho do melhor advogado de Dillmouth - mas, francamente, estúpido como umaporta. Sempre a adorou, mas ela nunca lhe deu a mínima. Ainda assim, mudoude idéia e foi para a Índia casar com ele. Quando tornou a vê-lo, desmanchoutudo. Passou-me um telegrama pedindo dinheiro para a passagem de volta. Eu omandei. A bordo, conheceu Kelvin. Casaram sem nem eu saber. Senti-memuito... como dizer... muito envergonhado por minha irmã. Isso explica porqueKelvin e eu não mantivemos o nosso relacionamento depois de ela ir embora.Subitamente perguntou: Onde está Helen agora? Podem me informar? Gostariade entrar em contato com ela.

- Nós não sabemos, respondeu Gwenda. - Não temos a menor idéia!

- Oh! Quando vi o anúncio, pensei... - Olhou para os dois com repentinacuriosidade. - Digam-me uma coisa: por que puseram esse anúncio?

- Queríamos entrar em contato... disse Gwenda, interrompendo a frase no meio.

- Com uma pessoa de quem você mal se lembra?

Dr. Kennedy parecia perplexo.

Gwenda apressou-se em continuar.

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- Achei que.. se conseguisse entrar em contato com ela ... ela me falaria ... sobremeu pai.

- Sim, sim, compreendo. Sinto muito não ter podido ajudar. Minha memória nãoé mais a mesma. E isso foi há muito tempo.

- O senhor deve saber pelo menos que tipo de sanatório era, observou Giles. - Detuberculosos? perguntou.

Mais uma vez o rosto do Dr. Kennedy ganhou subitamente uma expressão maisdura.

- Sim ... acho que era isso mesmo.

- Então nós devemos conseguir localizá-lo com toda facilidade, disse Giles. -

Muito obrigado, Dr. Kennedy, por tudo o que nos contou.

Levantou-se e Gwenda fez o mesmo.

- Muito obrigada, disse ela. - Não deixe de ir nos visitar em Hillside.

Saíram, e Gwenda, olhando para trás por cima do ombro, viu ainda uma vez oDr. Kennedy em pé junto à lareira, torcendo o bigode grisalho com um arpreocupado.

- Ele sabe de alguma coisa que não quer nos contar, disse Gwenda ao entraremno carro. - Há alguma coisa... Oh, Giles! Era melhor... era melhor a gente não terse metido nisso...

Os dois se entreolharam e o mesmo medo, inconfesso, passou de um para ooutro.

- Miss Marple tinha razão, disse Gwenda. - Devíamos ter deixado o passado paratrás.

- Não precisamos continuar, disse Giles, hesitante. - Talvez seja melhor nãoinsistir, minha querida.

Gwenda sacudiu a cabeça.

- Não, Giles. Agora não podemos parar. Ficaríamos o resto da vida imaginando epensando. Não, temos que continuar... Dr. Kennedy não quis nos contar porquequeria ser gentil... mas esse tipo de gentileza não adianta. Temos que continuar e

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descobrir o que realmente aconteceu. Mesmo se... mesmo se... tiver sido meu paiquem...

Mas não pôde prosseguir.

CAPÍTULO VIII

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KELVIN HALLIDAY

Na manhã seguinte, Giles e Gwenda estavam no jardim quando a Sra. Cockerveio avisar que um certo Dr. Kennedy desejava falar com Giles ao telefone.

Deixando Gwenda a conferenciar com o velho Foster, Giles entrou e pegou ofone.

- Aqui é Giles Reed, disse ele.

- Aqui é Kennedy. Estive pensando sobre nossa conversa de ontem, Sr. Reed.

Existem alguns fatos sobre os quais acho que talvez o senhor e sua mulher devamser informados. Posso ir aí hoje à tarde?

- É claro. A que horas?

- Às três horas. Está bem para vocês?

- Muito bem.

No jardim, o velho Foster perguntou a Gwenda: - É o Dr. Kennedy que moravaem West Cliff?

- Acho que sim. O senhor o conhecia?

- Ele era considerado o melhor médico daqui... se bem que o Dr. Lazenby fossemais simpático. O Dr. Lazenby sempre dizia alguma coisa engraçada ou ria paraanimar a gente. O Dr. Kennedy era meio seco... mas sabia trabalhar.

- Quando é que parou de clinicar?

- Há muito tempo. Deve fazer uns quinze anos. Dizem que ficou doente.

Giles voltou e respondeu à pergunta expressa pelo olhar de Gwenda.

- Ele vem aqui hoje à tarde.

- Oh! - Gwenda dirigiu-se novamente a Foster. - Chegou a conhecer a irmã doDr. Kennedy?

- Irmã? Não me lembro. Ela era uma garota pequena. Foi para o colégio interno,depois viajou para o estrangeiro, mas ouvi dizer que passou uns tempos aquidepois que casou. Acho que fugiu com outro sujeito - dizem que ela eramaluquinha. Não sei se cheguei a vê-la pessoalmente. Passei algum tempo

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trabalhando em Plymouth, sabe?

Caminhando ao lado de Giles em direção à ponta do terraço, Gwenda perguntou:

- Por que é que ele vem aqui?

- Saberemos às três horas.

Kennedy chegou pontualmente. Olhando para a sala, observou:

- Parece estranho estar aqui de novo!

Em seguida entrou direto no assunto.

- Pelo que vi vocês estão decididos a encontrar o sanatório onde Kelvin Hallidaymorreu e descobrir todos os detalhes sobre sua doença e sua morte, não é?

- Exatamente, respondeu Gwenda.

- Bem, evidentemente vocês o conseguiriam com a maior facilidade, de modoque cheguei à conclusão de que é menos chocante ouvirem os fatos contados pormim.

Sinto muito ter que lhes contar, pois não vai adiantar nada para ninguém eprovavelmente causará um grande sofrimento a você, Gwennie. O fato é oseguinte: seu pai não estava tuberculoso e o sanatório era uma clínica de doençasmentais.

- Doenças mentais? Ele estava louco?

Gwenda ficou bastante pálida.

- Isso nunca foi provado, e na minha opinião ele não estava louco no sentidocomum dessa palavra. Teve uma estafa muito séria e passou a ter idéiasobsessivas.

Internou-se por vontade própria e poderia, evidentemente, sair quando bementendesse.

Mas não teve melhora e acabou morrendo lá.

- Idéias obsessivas? Giles repetiu as palavras com ar interrogativo. - Que tipo deobsessão?

- Ele achava que tinha estrangulado a mulher, respondeu Kennedy secamente.

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Gwenda deixou escapar um grito. Giles rapidamente estendeu o braço e segurousua mão gelada.

- E... ele tinha mesmo feito isso? perguntou Giles.

- Hein? Kennedy olhou-o fixamente. - Não, é claro que não. Isso é pontopacífico.

- Mas. . . mas como é que o senhor pode saber? perguntou Gwenda hesitante.

- Minha cara, isso jamais aconteceu! Helen deixou-o e fugiu com outro homem.

Ele estava desequilibrado havia já algum tempo. Pesadelos, fantasias mórbidas.O

choque liquidou-o de vez. Não sou psicólogo. Eles têm explicações para essascoisas. Se um homem prefere que sua mulher morra em vez de traí-lo, podeacabar acreditando que ela morreu... até mesmo que ele a matou.

Prudentemente, Giles e Gwenda trocaram um olhar de advertência.

- Quer dizer que o senhor tem certeza absoluta de que não há possibilidade de terele realmente feito o que disse? falou Giles, serenamente.

- Absoluta. Recebi duas cartas de Helen. A primeira veio da França, cerca deuma semana depois de ela ter fugido, e a outra chegou uns seis meses mais tarde.Oh, não, era tudo uma obsessão, pura e simplesmente!

Gwenda suspirou fundo.

- Por favor, disse ela, - quer me contar toda a história?

- Vou lhe contar tudo o que sei, minha cara. Kelvin estava, havia algum tempo,num estado neurótico muito estranho. Foi me consultar a respeito. Disse-me quetivera vários sonhos angustiantes. Os sonhos eram sempre os mesmos eterminavam da mesma maneira - ele estrangulando Helen. Tentei atingir a raizdo problema - deve ter havido algum conflito na primeira infância. Parece queos pais dele não viviam bem... Mas isso não vem ao caso - só tem interesse doponto de vista médico. Sugeri que Kelvin consultasse um psicólogo - existemótimos especialistas - mas ele não queria nem ouvir falar nisso. Parece que nãoacreditava nessas coisas.

Eu achava que ele e Helen não estavam se dando muito bem, mas ele nunca

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falou sobre isso e eu não gosto de fazer perguntas. A coisa explodiu de vezquando, certa noite, ele entrou em minha casa - lembro que era uma sexta-feirae eu tinha acabado de chegar do hospital. Encontrei-o à minha espera noconsultório. Já estava lá há uns quinze minutos. Assim que entrei ele olhou paramim e disse: - Eu matei Helen.

Por um momento, fiquei sem saber o que pensar. Ele falara com um ar tão frio edireto. Perguntei-lhe: - Você quer dizer... que teve outro sonho? Ele respondeu: -Desta vez não é sonho. É verdade. Ela está caída, estrangulada. Eu a estrangulei.

Em seguida disse com um ar frio e racional: - É melhor você ir comigo lá emcasa. De lá você chama a polícia. Eu não sabia mais o que pensar. Peguei o carroe fomos juntos. A casa estava silenciosa e escura. Subimos para o quarto...

Gwenda interrompeu-o. - Para o quarto? interrogou, atônita.

Kennedy parecia ligeiramente surpreso.

- Sim, foi lá que tudo aconteceu. Bem, evidentemente, quando chegamos lá. . .

não havia nada! Nenhuma mulher morta caída na cama. Nada fora do lugar - acolcha nem sequer estava amassada. Tudo não passara de uma alucinação.

- Mas o que disse meu pai?

- Oh, ele insistiu na história, é claro! Acreditava realmente que era verdade.

Consegui que tomasse um calmante e deitei-o na cama do quarto de vestir. Emseguida examinei o aposento e a casa toda. Encontrei um bilhete amassado queHelen jogara na cesta de papéis da sala. Estava escrito mais ou menos o seguinte:"Isto é um adeus.

Sinto muito, mas nosso casamento foi um erro desde o começo. Vou-me emboracom o único homem que amo. Perdoe-me se puder. Helen."

Evidentemente, Kelvin ao chegar em casa e encontrar o bilhete, subiu a escada,teve uma séria crise emocional e foi falar comigo, convencido de que tinhamatado Helen.

Em seguida interroguei a empregada. Fora seu dia de folga e ela chegara tarde.

Levei-a ao quarto de Helen e ela examinou todas as suas roupas. Estava tudobastante claro. Helen arrumara a mala, uma sacola, e partira. Examinei a casatoda, mas não havia sinal de nenhuma anormalidade... muito menos de uma

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mulher estrangulada.

Na manhã seguinte Kelvin me deu muito trabalho, mas finalmente se convenceude que fora tudo uma alucinação - ou pelo menos disse que estava convencido - econcordou em se internar.

Uma semana depois, como já falei, recebi uma carta de Helen. Vinha deBiarritz, mas ela dizia que estava a caminho da Espanha. Pedia-me que dissesse aKelvin que não queria se divorciar e que ele tratasse de esquecê-la o maisdepressa possível.

Mostrei a carta a Kelvin. Ele não disse grande coisa. Prosseguiu com seu plano.

Telegrafou para a família de sua primeira mulher, na Nova Zelândia, pedindo-lhes que cuidassem da criança. Pôs em dia todos os seus negócios e depois seinternou numa ótima clínica particular para doentes mentais, disposto a receber otratamento adequado.

Este, no entanto, não serviu para nada. Ele morreu na mesma clínica dois anosdepois.

Posso lhe dar o endereço. Fica em Norfolk. O atual diretor, naquela ocasião, eramuito jovem e provavelmente poderá lhe dar mais informações sobre o caso deseu pai.

- E recebeu mais uma carta de sua irmã... depois disso? perguntou Gwenda.

- Sim. Uns seis meses depois. Escreveu de Florença. Pôs uma caixa-postal emnome de "Srta. Kennedy ". Disse que compreendia que talvez fosse ruim paraKelvin se divorciar, se bem que ela própria não quisesse isso. Caso ele desejasseum divórcio, eu deveria escrever-lhe para a posta restante e ela tomaria asprovidências necessárias.

Mostrei a carta a Kelvin. Ele disse imediatamente que não queria se divorciar.Escrevi para Helen a dei o recado. Depois disso nunca mais tive notícias dela.Não sei onde está morando, nem sei se está viva ou morta. Foi por isso querespondi ao anúncio, na esperança de ter notícias dela.

Acrescentou

baixinho:

- Sinto muito, Gwennie, mas você precisava saber. Só queria que você não tivessecomeçado...

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CAPÍTULO IX

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FATOR DESCONHECIDO

Giles acompanhou Kennedy até o portão e, ao voltar para dentro de casa,encontrou Gwenda sentada exatamente onde a deixara. As maçãs de seu rostoestavam vermelhas e seus olhos pareciam febris. Quando falou, sua voz era durae amarga.

- Vem a dar sempre na mesma coisa. Será que tem que ser morte ou loucura? É

isso mesmo.. . morte ou loucura ..

- Gwenda, minha querida... Giles aproximou-se e passou o braço em torno deseus ombros. Gwenda manteve o corpo insensível e retesado.

- Por que não deixamos isso de lado? Por que começamos tudo isso? Foi o meupróprio pai quem a estrangulou. Foi a voz de meu pai que eu ouvi dizer aquelaspalavras. É evidente que eu tinha de me lembrar... é evidente que tinha de ficarapavorada. Meu próprio pai!

- Espere, Gwenda, espere! Não temos certeza...

- É claro que temos! Ele disse ao Dr. Kennedy que tinha estrangulado Helen, nãodisse?

- Mas Kennedy tem certeza de que não era verdade...

- Porque não encontrou o corpo. Mas ha via um corpo. . . e eu vi!

- Você o viu no saguão, e não no quarto.

- Que diferença faz isso?

- Bem, é estranho, não é? Por que haveria Halliday de dizer que a estrangularano quarto se na realidade a estrangulou no saguão?

- Oh, não sei! Isso é um detalhe sem importância.

- Não concordo. Controle-se, querida. Vamos raciocinar. Há alguns pontosobscuros em toda essa história. Já que você insiste, vamos partir do pressupostode que seu pai estrangulou Helen no saguão. O que aconteceu em seguida?

- Ele foi falar com Kennedy.

- E disse-lhe que tinha estrangulado Helen no quarto, trouxe-o para cá, e não

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havia nenhum corpo no saguão... nem no quarto. Ora, não pode haver umassassinato sem um corpo. O que é que ele fez do corpo?

- Talvez houvesse um corpo e Kennedy tenha ajudado a sumir com ele... só que,evidentemente, não podia nos dizer isso.

Giles sacudiu a cabeça.

- Não, Gwenda. . . Não imagino Kennedy fazendo uma coisa dessas. Ele é umescocês astuto, frio e obstinado. Você está admitindo que ele se exporia ao riscode cumplicidade? Não acredito nisso. Poderia ter ajudado Halliday comotestemunha de seu estado mental, isso sim. Mas por que haveria de se arriscarpara esconder tudo?

Kelvin Halliday não tinha laços de família com ele, não era sequer um amigointimo.

Tratava-se do assassinato da própria irmã de Kennedy e é evidente que elegostava muito dela - apesar de uma desaprovação meio vitoriana de sua vidairregular. Nem ao menos você era filha da irmã dele. Não, Kennedy não setornaria conivente, escondendo um crime. Haveria uma única maneira de fazeruma coisa dessas, se ele quisesse: dar um atestado de que ela morrera docoração, ou qualquer coisa assim. Suponho que ele pudesse se sair assim... massabemos com toda a certeza que ele não fez isso. Primeiro, porque não hánenhum atestado de óbito nos cartórios locais e, depois, porque, se ele tivessefeito isso, teria nos dito que sua irmã morreu. Agora, partindo daí, explique, sepuder, o que aconteceu com o corpo.

- Quem sabe meu pai o enterrou em algum lugar. . . no jardim?

-

E

depois foi dizer a Kennedy que tinha matado a mulher? Por quê? Por que nãopreferir a versão de que ela o abandonara?

Gwenda afastou a mecha de cabelo que lhe caía na testa. Estava agora menostensa e sua cor voltara ao normal.

- Não sei, respondeu ela. - Da maneira como você colocou as coisas minhateoria parece meio absurda. Você acha que Kennedy disse a verdade?

- Oh, sim! Tenho toda certeza disso. Para ele, a história que nos contou é

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perfeitamente plausível. Sonhos, alucinações... culminando numa imensaalucinação.

Ele não tem dúvida de que foi uma alucinação porque, como já disse, não existeassassinato sem cadáver. Nesse ponto é que nós divergimos dele. Nós sabemosque havia um cadáver.

Fez uma pausa e prosseguiu. - Do ponto de vista de Kennedy, tudo encaixa.

Roupas faltando, uma mala, um bilhete de despedida. E, mais tarde, duas cartasda irmã.

Gwenda

se

perturbou.

- As cartas. . . repetiu. - Como explicar essas cartas?

- Não sei, mas tem que haver uma explicação. Se acreditarmos que Kennedycontou a verdade - e eu tenho certeza que sim - existe alguma explicação para ascartas.

- Será que a letra era realmente de Helen? Ele reconheceu a letra?

- Sabe, Gwenda, não vejo porque haveria de levantar essa questão. Não é comouma assinatura num cheque duvidoso. Se as cartas foram escritas com uma letraque imitasse razoavelmente a de Helen, Kennedy não tinha motivos para duvidar.Já estava com a idéia preconcebida de que ela fugira com alguém. As cartasapenas confirmaram essa idéia. Se ele nunca mais recebesse notícias dela...bem, aí talvez desconfiasse.

Mesmo assim, há alguns pontos curiosos que não o espantaram, mas que a mimespantam. .. As cartas são estranhamente anônimas. Nenhum endereço, apenasuma posta-restante. Nenhuma indicação de quem era o homem envolvido. Umaclara decisão de romper com todos os laços antigos. O que quero dizer é oseguinte: exatamente o tipo de cartas que um assassino forjaria se quisesse selivrar de qualquer suspeita por parte da família da vítima. Teria sido simplesmandar colocar as cartas no correio em outro país.

- Você acha que meu pai...

- Não... pelo contrário, não acho! Pense num homem que está totalmente

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decidido a se livrar da mulher. Espalha boatos sobre uma possível infidelidade.Encena uma fuga - um bilhete de despedida, roupas levadas dentro de umamala... As cartas chegarão, vindas do exterior, em intervalos cuidadosamenteplanejados. Na realidade ele a matou tranqüilamente e escondeu o corpo,digamos, no porão. Isso é um determinado tipo de crime - que já foi cometidomuitas vezes. Mas o que esse tipo de assassino não faz é correr para a casa docunhado, dizer que acabou de matar a mulher e pedir que chame a polícia. Poroutro lado, se o seu pai fosse o tipo de assassino passional, loucamenteapaixonado pela mulher e que a estrangula num momento de ciúme insuportável- uma tragédia do gênero Otelo, que combina com a frase que você ouviu - bem,esse homem certamente não iria arrumar malas, preparar cartas comantecedência e depois correr para contar o crime para um homem que não é dotipo de esconder tudo. Está tudo errado, Gwenda. A coisa não encaixa.

- Então onde é que você está querendo chegar, Giles?

- Não sei. . . É que nisso tudo parece haver um fator desconhecido... Vamoschamá-lo de fator X. Alguém que ainda não apareceu, mas cuja técnica se podeentrever.

- X? perguntou Gwenda com ar pensativo. Continuou, em seguida, em tomsombrio: - Você está inventando isso tudo; para me consolar, Giles.

- Juro que não. Você não vê que não há uma solução que consiga explicar todosos fatos? Sabemos que Helen Halliday foi estrangulada porque você viu...

Giles parou a frase no meio.

- Céus! Fui um imbecil! Agora compreendo. Isso explica tudo. Você tem razão eKennedy também. Escute, Gwenda. Helen está se preparando para fugir comum amante... quem é, nós não sabemos.

- X?

Giles afastou sua interrupção com um gesto de impaciência.

- Escreveu um bilhete para o marido, mas nesse momento ele entra, lê o que elaacabou de escrever e fica alucinado. Amassa o bilhete, joga-o na cesta de papéise avança para cima dela. Ela, apavorada, corre para o saguão. Ele corre atrásdela; aperta-lhe o pescoço, ela fica inconsciente e ele a deixa cair no chão. Emseguida afasta-se um pouco e diz aquela frase da Duquesa de Malfi no momentoexato em que uma criança chegou no alto da escada e está espiando por trás dabalaustrada.

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-

E

daí?

- O negócio é que ela não está morta. Ele pode ter pensado que ela estivesse -

mas está apenas semi-asfixiada. Depois que, o marido enlouquecido parte para acasa do médico, do outro lado da cidade, talvez o amante chegue... ou talvez elavolte a si. De qualquer modo, assim que se refaz, trata de ir embora. E bemdepressa. Isso explica tudo. A certeza de Kelvin de que a matou. Odesaparecimento das roupas, que haviam sido embaladas e levadas emboraantes. E as cartas, que são absolutamente autênticas.

Pronto. Isso explica tudo.

- Não explica por que Kelvin disse que a estrangulara no quarto, retorquiuGwenda.

- Estava tão abalado que não se lembrava bem do local em que tudo aconteceu.

- Gostaria de acreditar nisso. Quero acreditar... Mas continuo tendo certeza...

certeza absoluta... de que quando olhei para baixo ela estava morta... bem morta,disse Gwenda.

- Mas como é que você podia saber? Uma criança de menos de três anos...

Gwenda lançou-lhe um olhar de dúvida.

- Acho que as crianças sabem... mais que os adultos. É como os cachorros... elesreconhecem a morte, atiram a cabeça para trás e uivam. Acho que as crianças...

reconhecem a morte...

- Isso é tolice. Não faz sentido.

A campainha da porta interrompeu-o. - Quem será? perguntou Giles.

Gwenda olhou intimidada.

- Tinha esquecido! exclamou Gwenda. - É Miss Marple. Convidei-a para tomarchá. Não vamos contar nada disso para ela.

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II

Gwenda temia que o convite para o chá acabasse se transformando numasituação difícil, mas felizmente Miss Marple pareceu não notar que sua anfitriãestava falando um pouco depressa demais, com excessiva animação, e que suaalegria era um tanto ou quanto forçada. Miss Marple, por sua vez mostrava-sebastante loquaz. Estava gostando tanto da estadia em Dillmouth e, imaginem só,uma amiga tinha escrito a amigos que moravam em Dillmouth e Miss Marple,conseqüentemente, recebera vários convites de habitantes locais.

- A gente se sente tão bem, tão menos estranha, querida, conhecendo pessoas quemoram aqui há anos! Por exemplo, vou tomar chá com a Sra. Fane. Ela é viúvado diretor do melhor escritório de advocacia de Dillmouth. Uma firma de famíliatoda à maneira antiga. Hoje em dia quem dirige o escritório é o filho da Sra.Fane.

A voz amável, tagarelando, continuava. A dona da pensão era tão delicada,tratava-a tão bem. . . - E a comida é realmente deliciosa. Ela trabalhou duranteanos em casa de minha velha amiga a Sra. Bantry. Não é daqui, mas a tia morouem Dillmouth muito tempo e ela sempre vinha passar as férias com o marido emcasa da tia. Conhece todos os mexericos da cidade. Por falar nisso, estãosatisfeitos com o jardineiro? Ouvi dizer que ele não é dos melhores. Fala muitomas não trabalha nada.

- A especialidade dele é falar e tomar chá, respondeu Giles. - Toma umas cincoxícaras de chá por dia. Mas quando ficamos em cima trabalhamaravilhosamente bem.

- Venha ver o jardim, disse Gwenda.

Mostraram-lhe a casa e o jardim. Miss Marple fez os comentários habituais.

Gwenda não precisava temer que ela reparasse em alguma coisa fora do lugar,com a sua aguda observação, pois Miss Marple não demonstrava o menorconhecimento de qualquer irregularidade.

No entanto, estranhamente, foi Gwenda quem, de súbito resolveu agir de modoimprevisível. Interrompendo um caso que Miss Marple estava contando, disse aGiles: -

Não faz mal.. Vou contar para ela...

Miss Marple virou-se para Gwenda com ar atento. Giles começou a falar mas

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parou.

- Bem Gwenda, a cabeça é sua, disse ele finalmente.

E ela fez o relato completo. A visita a Kennedy, a conseqüente ida do médico emcasa deles e o que lhes contara.

- Era isso que a senhora queria dizer em Londres, não era? perguntou Gwendaem tom ansioso. - A senhora achava que... que talvez meu pai estivesse envolvidonisso?

- Sim, achei que era possível, respondeu Miss Marple, delicadamente. - Helenpodia muito bem ser uma jovem madrasta... e num caso de... estrangulamento,freqüentemente o culpado é o marido.

Miss Marple falava como uma pessoa que observa fenômenos absolutamentenaturais; sem surpresa ou emoção.

- Compreendo por que insistiu para que deixássemos tudo de lado, disse Gwenda.- Oh, teria sido melhor seguir esse conselho! Mas não se pode voltar atrás.

- Não, concordou Miss Marple. - Não se pode voltar atrás.

- Agora gostaria que ouvisse o que Giles tem a dizer. Ele fez vários comentários eobjeções.

- O que quero dizer é só que as coisas não encaixam, atalhou Giles.

E expôs com lucidez e clareza, todos os pontos que já expusera a Gwenda. Porfim expôs sua teoria.

- Se a senhora conseguisse convencer Gwenda de que é a única explicaçãopossível...

Miss Marple olhou para Gwenda e novamente para Giles. - É uma teoriaperfeitamente razoável, disse ela. - Mas há sempre, Sr. Reed, a possibilidade deX, como o senhor mesmo disse.

- X! exclamou Gwenda.

- O fator desconhecido, disse Miss Marple. - Alguém que ainda não apareceu -

mas cuja presença pode ser deduzida através dos fatos.

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- Decidimos ir à clínica onde meu pai morreu, em Norfolk, disse Gwenda. -

Talvez lá possamos descobrir alguma coisa.

CAPÍTULO X

HISTÓRICO DE UM CASO

Saltmarsh House ficava num local aprazível, a cerca de seis milhas da costa.

Partindo-se de South Benham, uma cidade que ficava a cinco milhas dedistância, podia-se ir de trem para Londres.

Giles e Gwenda foram introduzidos numa grande e arejada sala de estar, cujosmóveis eram estofados de cretone com flores. Uma encantadora senhora decabelos brancos entrou, trazendo um copo de leite. Cumprimentou-os com acabeça e sentou-se junto à lareira. Olhou para Gwenda com um ar pensativo,inclinou-se em sua direção e perguntou sussurrando:

-

Trata-se de sua criança, minha cara?

Gwenda, um pouco assustada, respondeu:

- Não, não é isso.

- Ah, estava pensando... A velha senhora abanou a cabeça e tomou um gole deleite. Em seguida prosseguiu, muito naturalmente. - Dez e meia... está na hora. Ésempre às dez e meia. Extraordinário... Baixou a voz e inclinou-se novamentepara a frente.

- Através da lareira, sussurrou ela. - Mas não diga que fui eu que contei.

Nesse momento uma servente vestida de branco entrou na sala e pediu ao casalque a acompanhasse.

Giles e Gwenda entraram no escritório do Dr. Penrose, que se levantou pararecebê-los.

Esse Dr. Penrose, pensou Gwenda consigo mesma, parece meio maluco. Parecemuito mais doido que aquela senhora da sala de estar... mas talvez todos ospsiquiatras sejam meio malucos.

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- Recebi sua carta e a do Dr. Kennedy, disse o Dr. Penrose. - E dei uma olhada nohistórico do caso de seu pai, Sra. Reed. Lembro-me muito bem do caso,naturalmente, mas queria refrescar minha memória para poder lhe contar tudo oque deseja saber. Pelo que fui informado, a senhora só recentemente veio aconhecer os fatos, não é?

Gwenda explicou que fora criada na Nova Zelândia pela família de sua mãe eque a única coisa que sabia a respeito do pai era sobre seu falecimento numaclinica na Inglaterra.

Dr. Penrose assentiu com a cabeça. - Exatamente. O caso de seu pai, Sra. Reed,apresentava alguns aspectos muito estranhos.

- Tais como? perguntou Giles.

- Bem, a obsessão era muito forte. O Major Halliday, apesar de um estadonervoso bastante sério, era absolutamente enfático e categórico ao afirmar queestrangulara sua segunda esposa num acesso de ciúmes. Não apresentava muitosdos sintomas habituais a esses casos e, para ser franco, Sra. Reed, devo lhe dizeruma coisa.

Se Kennedy não tivesse garantido que a Sra. Halliday estava viva, eu talveztivesse achado, na época, que seu pai só me dizia a verdade.

- O senhor teve a impressão de que ele realmente a matara? perguntou Giles.

- Eu disse "na época". Mais tarde reformulei minha opinião, pois passei aconhecer melhor a estrutura e a personalidade do Major Halliday. Seu pai, Sra.Reed, não era de maneira alguma um tipo paranóico. Não tinha mania deperseguição nem impulso, violentos. Era um homem afável, cordial e controlado.Não era o que todos chamam de "louco" nem era perigoso. Mas tinha essa idéiafixa sobre a morte da Sra.

Halliday. Para explicar isso, estou convencido de que teríamos de voltar muitoatrás... a alguma experiência infantil. Mas admito que todos os métodos deanálise falharam em seu caso. Às vezes demora-se muito tempo para quebrar aresistência de um paciente à análise. Isso pode levar anos. No caso de seu pai otempo foi insuficiente.

Fez uma pausa e, em seguida, com um olhar incisivo, prosseguiu: - Suponho quea senhora esteja ciente de que ele se suicidou.

-

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Oh,

não! gritou Gwenda.

- Sinto muito, Sra. Reed. Pensei que a senhora soubesse. Talvez até tenha o direitode achar que, em parte, a culpa foi nossa. Concordo que uma vigilância maiorteria impedido o que aconteceu. Mas, francamente, eu não via nenhum sintomade ser o Major Halliday um suicida em potencial. Não mostrava tendência paraa melancolia...

não tinha depressões nem desânimos. Queixava-se de insônia e meu colega lhedava comprimidos para dormir. Ele fingia tomá-los e, em vez disso, foiguardando todos os comprimidos até possuir uma quantidade suficiente, e...

- Ele se sentia tão infeliz assim?

- Não, acho que não. Era mais, em minha opinião, um complexo de culpa, umdesejo de ser castigado. No início, como a senhora sabe, queria chamar a políciae, apesar de termos conseguido dissuadi-lo, assegurando-lhe não haver cometidocrime algum, ele nunca se deixou realmente convencer. No entanto provamos aele seguidamente, e ele concordava, que de maneira nenhuma se lembrava doassassinato em si. Dr. Penrose remexeu nos papéis que estavam em cima de suamesa. - Seu relato sobre aquela noite era sempre o mesmo. Dizia que tinhaentrado na casa e que estava escura. As empregadas haviam saído. Ele foi à salade jantar e tomou um drinque, como costumava fazer. Em seguida passou para asala de estar pela porta de comunicação.

Depois disso não se lembrava de mais nada, até o momento em que se viu de pé,no quarto, olhando para sua mulher que estava morta... estrangulada. Ele sabiaque tinha sido ele...

Giles interrompeu. - Desculpe, Dr. Penrose, mas como é que ele sabia que tinhasido ele?

- Não havia a menor dúvida em sua mente. Desde alguns meses antes vinhatendo suspeitas melodramáticas. Disse-me, por exemplo, que estava convencidode que sua mulher lhe dava drogas. Tendo morado na Índia, ele sabia que lá érelativamente comum as mulheres fazerem os maridos enlouquecerem atravésda administração de datura. Tinha freqüentes alucinações, confundindo tempo elugar. Negava insistentemente que suspeitasse da infidelidade da esposa, masmesmo assim acho que o motivo foi esse. Parece que o que aconteceu, narealidade, é que ele entrou na sala, leu o bilhete de sua mulher dizendo que iadeixá-lo, e sua maneira de fugir do fato foi preferir

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"matá-la". Daí a alucinação.

- Acha que a amava muito? perguntou Gwenda.

- Evidentemente, Sra. Reed.

- E ele nunca admitiu... que fosse uma alucinação?

- Concordava que tinha que ser... mas internamente não se convencia. A obsessãoera forte demais para ser vencida pela razão. Se tivéssemos conseguido descobrira fixação infantil inconsciente...

Gwenda interrompeu. Não estava interessada em fixações infantis.

- Mas o senhor diz ter certeza... de que ele não cometeu o crime?

- Oh, se é isso o que a preocupa, Sra. Reed, pode ficar descansada. Por maisciúmes que tivesse da mulher, Kelvin Halliday não era, de modo algum, umassassino.

Penrose pigarreou e apanhou uma pequena caderneta preta.

- Acho que a senhora é a pessoa que deve ficar com isto, se quiser, Sra. Reed.

Contém diversas anotações feitas pelo seu pai enquanto esteve internado aqui.Quando entregamos seus pertences ao testamenteiro - que era um escritório deadvocacia, Dr.

McGuire, na ocasião, o diretor da clínica ficou com essa caderneta porque faziaparte do histórico do caso. O caso de seu pai está descrito no livro do Dr.McGuire.

Evidentemente refere-se a ele apenas através das iniciais - Sr. H. K. Se quiserficar com este diário...

Gwenda estendeu a mão rapidamente.

- Obrigada, disse ela. - Gostaria muito.

II

No trem, de volta a Londres, Gwenda pegou a pequena caderneta preta ecomeçou a ler.

Abriu-a ao acaso.

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Esses médicos devem saber o que estão dizendo... Para mim é tudo conversafiada. Será que eu estava apaixonado por minha mãe? Odiava meu pai? Nãoacredito numa só palavra... Não consigo deixar de achar que se tratasimplesmente de um caso de polícia... de julgamento... e não de um caso deinsanidade. E no entanto... algumas das pessoas aqui... tão normais, tão razoáveis,como todo mundo... a não ser quando a gente esbarra na coisa. Bem, aí eutambém esbarro e fico confuso...

Escrevi para James... insisti para que se comunicasse com Helen . . . Quero queela venha me ver em carne é osso, se estiver viva... Ele diz que não sabe onde e1aestá...

Isso é porque ele sabe que ela morreu e que fui eu que a matei... É um bomsujeito, mas não me engana... Helen está morta...

Quando foi que comecei a desconfiar dela? Faz muito tempo... Logo depois quechegamos a Dillmouth... Ela mudou. . . Estava escondendo alguma coisa... Eu avigiava... Sim, e ela me vigiava...

Será que ela colocava drogas na minha comida? Aqueles pesadelos estranhos eterríveis... Não eram sonhos comuns... pesadelos vivos... Eu sabia que eram efeitode drogas.... Só ela poderia ter feito isso... Por quê?... Há um homem... Algumhomem de quem ela sentia medo...

Vou ser franco. Eu desconfiava que ela possuía um amante, não é? Havia alguém -eu sei que havia alguém... Ela me disse no navio... Alguém que ela amava e comquem não podia se casar... Comigo era a mesma coisa... Não conseguia esquecerMegan . . . Como Gwennie se parece com Megan! Helen brincava tanto comGwennie a bordo... Helen . . . Você é tão bonita, Helen...

Será que Helen está viva? Ou será que coloquei minhas mãos em torno de seupescoço e apertei-o até tirar-lhe a vida? Entrei na sala e vi o bilhete em cima daescrivaninha, e depois... e depois... tudo negro... só a escuridão. Mas não hádúvida...

Eu a matei... Graças a Deus, Gwennie está bem na Nova Zelândia. O pessoal lá émuito bom. Amam a criança por causa de Megan. Megan - Megan, como euqueria que você estivesse aqui..

É o melhor jeito... Sem escândalo... É a melhor solução para a criança. Não possocontinuar. Não desse jeito, ano após ano... Preciso sair pelo atalho. Gwennie nuncasaberá disso tudo. Nunca saberá que seu pai era um assassino...

Gwenda mal enxergava através das lágrimas. Olhou para Giles, sentado à sua

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frente, mas os olhos de Giles estavam fixos no canto oposto.

Percebendo a insistência de Gwenda, ele virou a cabeça. Seu companheiro decompartimento estava lendo um vespertino. Na primeira página, bem à vista,havia uma manchete dramática: QUEM ERAM OS HOMENS DE SUA VIDA?

Lentamente Gwenda sacudiu a cabeça. Baixou novamente os olhos para o diário.

Havia alguém. . . Eu sei que havia alguém. . .

CAPÍTULO XI

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OS HOMENS DE SUA VIDA

Miss Marple atravessou a avenida e andou pela calçada de Fore Street, virandoem Arcade. Ali as lojas eram bastante antiquadas. Uma loja de artigos de lã e detrabalhos de agulha, um confeiteiro, uma alfaiataria para senhoras, com aspectovitoriano, e outros estabelecimentos do mesmo gênero.

Miss Marple espiou através da vitrina da loja de trabalhos de agulha. Duas jovensvendedoras atendiam as freguesas, mas no fundo da loja havia uma senhoraidosa que não estava ocupada.

Miss Marple abriu a porta e entrou. Sentou-se junto ao balcão e a vendedora,uma mulher simpática de cabelos grisalhos, perguntou-lhe:

- Em que posso ser-lhe útil, minha senhora?

Miss Marple queria uma lã azul claro para fazer um casaquinho de bebê. Nãotinha a menor pressa. Discutiram os diferentes pontos de tricô e Miss Marpleexaminou todos os figurinos infantis, enquanto conversava sobre seus sobrinhos-netos. Nem ela nem a vendedora tinham pressa. A vendedora estava acostumadaa atender pessoas como Miss Marple. Gostava mais das velhas senhoras amáveise falantes do que das jovens mães impacientes e freqüentemente mal-educadasque nunca sabiam o que queriam e só escolhiam coisas baratas e espalhafatosas.

- Jim, disse Miss Marple. - Acho que assim vai ficar muito bonitinho. E gostomuito dessa lã. Não encolhe de jeito nenhum. Acho que vou levar mais doisnovelos.

Enquanto fazia o embrulho, a vendedora observou que o tempo estava bastantefrio.

- É mesmo, respondeu Miss Marple. - Reparei nisso quando vinha andando pelarua. Dillmouth está muito mudada. Faz uns dezenove anos que não venho aqui.

- Não me diga, minha senhora! Então deve estar achando muita diferença! O

Hotel Superb ainda não existia nessa época, e acho que o Southview também não.

- Oh, não, isto aqui era uma cidadezinha bem pequena. Fiquei hospedada emcasa de amigos... Numa casa chamada St. Catherine - talvez a senhora conheça.Fica em Leahampton Road.

Mas a vendedora só morava em Dillmouth há dez anos. Miss Marple agradeceu,pegou o embrulho e foi para a alfaiataria ao lado. Tornou a escolher uma

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vendedora mais velha e a conversa seguiu mais ou menos o mesmo rumo. Dessavez a vendedora respondeu imediatamente.

- Deve ser a casa da Sra. Findeyson.

- Sim, é isso mesmo. Mas meus amigos tinham alugado a casa mobiliada. Era oMajor Halliday, a esposa e uma menininha.

- Oh, sim! Alugaram a casa por um ano, acho eu.

- É. Ele havia voltado da Índia. Tinham uma cozinheira muito boa, que me deuuma receita maravilhosa de torta de maçã e outra de pão de gengibre. Às vezesme lembro dela. Gostaria de saber onde mora agora.

- A senhora deve estar se referindo a Edith Pagett. Ainda mora em Dillmouth.

Trabalha em Windrush Lodge.

- Havia também outras pessoas - a família Fane. Acho que o pai era advogado.

- O velho Sr. Fane morreu há alguns anos, mas o filho, Sr. Walter Fane, mora coma mãe. O Sr. Walter Fane não casou. Hoje em dia é ele quem dirige o escritório.

- É mesmo? Eu tinha a impressão de que ele fora para a Índia - fazer umaplantação de chá ou coisa parecida.

- Acho que foi, minha senhora. Quando era rapaz. Mas depois voltou e um oudois anos depois entrou para a firma. Cuidam de todos os negócios importantesdaqui.

São muito competentes. O Sr. Walter Fane é um cavalheiro simpático esossegado.

Todos gostam dele.

- Agora me lembrei! exclamou Miss Marple. - Ele era noivo da Sra. Kennedy,não era? Depois ela rompeu o noivado e casou com o Major Halliday.

- Exatamente, minha senhora. Ela foi para a Índia para casar com o Sr. Fane,mas parece que mudou de idéia e em vez disso casou com o outro senhor.

A voz da vendedora demonstrava certa desaprovação.

Miss Marple inclinou-se para a frente e baixou a voz.

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- Sempre tive tanta pena do Major Halliday - conheci a mãe dele - e da filhinha!

Ouvi dizer que a segunda esposa o abandonou. Fugiu com alguém. Era meiomaluquinha, não é?

- Era sim. Mas o irmão dela, o médico, era uma ótima pessoa. Cuidou tão bemdo meu reumatismo!

- Com quem foi que ela fugiu? Nunca soube o nome dele...

- Isso eu não sei, minha senhora. Uns dizem que foi com um veranista. Só sei éque o Major Halliday ficou arrasado. Mudou-se daqui e acho que sua saúde nãoresistiu.

Está aqui seu troco, minha senhora.

Miss Marple pegou o troco e o embrulho.

- Muito obrigada, disse ela. - Será que Edith Pagett ainda tem aquela receita depão de gengibre? Perdi a minha - ou melhor, minha empregada perdeu - e gostotanto de um bom pão de gengibre!

- Acho que sim, minha senhora. Aliás a irmã dela mora aqui ao lado. É casadacom o Sr. Mountford, o confeiteiro. Nos dias de folga Edith costuma ir lá, e estoucerta de que a Sra. Mountford lhe daria o recado.

- Boa idéia! Muito obrigada por tudo.

- Foi um prazer, minha senhora.

Miss Marple saiu da loja.

- Uma boa loja, pensou consigo mesma. - E esses casacos são muito bonitos.

Não desperdicei meu dinheiro. Olhou para o relógio de esmalte azul-claro queusava preso à gola do vestido. - Ainda faltam cinco minutos para encontrar osdois jovens no Ginger Cat. Espero que não tenham ficado muito perturbados coma ida à clínica.

II

Giles e Gwenda estavam sentados lado a lado numa mesa de canto no GingerCat. A caderneta preta estava em cima da mesa, entre os dois.

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Miss Marple entrou e foi ao encontro deles.

- O que deseja tomar, Miss Marple? Café?

- Sim, muito obrigada. Não quero bolo, só um biscoito com manteiga.

Giles fez o pedido e Gwenda empurrou a caderneta em direção a Miss Marple.

- Primeiro a senhora precisa ler isso, disse ela. - Depois conversamos. É o quemeu pai... o que ele próprio escreveu quando estava internado na clínica. Giles,conte a Miss Marple o que nos disse o Dr. Penrose.

Giles fez o relato. Em seguida Miss Marple abriu a caderneta e a garçonetetrouxe três xícaras de café ralo, um biscoito, manteiga e um prato de bolinhos.Giles e Gwenda permaneceram em silêncio. Observavam Miss Marple enquantolia.

Finalmente ela fechou a caderneta e colocou-a em cima da mesa. Sua expressãoera indecifrável. Seus lábios estavam comprimidos e seus olhos brilhavamintensamente. Ela está com raiva, pensou Gwenda.

- Francamente! exclamou Miss Marple. - Francamente! repetiu.

- A senhora nos aconselhou certa vez - lembra-se? - a não prosseguirmos. Agoracompreendo por quê. Mas insistimos - e o resultado foi esse. Só que agora tenho aimpressão de que chegamos a um ponto em que poderíamos parar... sequiséssemos.

Acha que devemos parar ou não?

Miss Marple sacudiu lentamente a cabeça. Parecia preocupada, perplexa.

- Não sei, respondeu ela. - Não sei mesmo. Talvez fosse melhor parar, muitomelhor. Porque depois de tanto tempo não há nada que vocês possam fazer -nada que possa ser construtivo.

- A senhora acha, então, que depois de tanto tempo não vamos conseguirdescobrir nada? perguntou Giles.

- Oh, não! respondeu Miss Marple. - Não é nada disso. Dezenove anos não é tantotempo assim! Existem pessoas que se lembrariam de fatos, que responderiam aperguntas... muita gente. Os empregados, por exemplo. Naquela época deviahaver pelo menos duas empregadas na casa, além da governanta, eprovavelmente um jardineiro. É

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só uma questão de tempo e paciência para se conseguir descobrir essas pessoas econversar com elas. Aliás, já encontrei uma delas. A cozinheira. Não, não foi issoo que eu quis dizer. É mais o problema de saber o que vocês conseguiriam debom com isso tudo, e a minha resposta é nada. Mas mesmo assim...

Miss Marple fez uma pausa.

- Existe um mas... Demoro um pouco para encontrar as soluções, mas sinto quehá alguma coisa - uma coisa talvez não muito palpável - pela qual valeria a penase arriscar... seria até mesmo um dever se arriscar... mas não consigo dizerexatamente o que é.

- Tenho a impressão... disse Giles, interrompendo-se imediatamente.

Miss Marple virou-se para ele com ar grato.

- Os homens, disse ela, - têm uma grande clareza de exposição. Estou certa deque o senhor tem uma boa linha de raciocínio.

- Estive pensando em tudo, disse Giles, - e acho que existem apenas duasconclusões possíveis. Uma delas é a que eu já sugeri: Helen Halliday não estavamorta quando Gwennie a viu caída no saguão. Voltou a si e fugiu com o amante,fosse ele quem fosse. Isso encaixaria com os fatos que conhecemos. Explicaria acrença arraigada de Kelvin Halliday - de que matara sua mulher. Explicaria afalta da mala e das roupas, e o bilhete encontrado por Kennedy. Mas não explicaalguns outros pontos. Não explica, por exemplo, por que Kelvin estavaconvencido de que estrangulara sua mulher no quarto de dormir. E não respondeà pergunta que, em minha opinião, é a mais intrigante: onde está Helen Hallidayagora? Não faz sentido nunca mais se terem ouvido notícias dela. Supondo-se queas duas cartas que ela mandou sejam verdadeiras, o que aconteceu depois? Porque nunca mais escreveu? Ela se dava muito bem com o irmão e ele obviamentegostava muito dela. Sempre gostou. Podia desaprovar sua conduta, mas isso nãojustifica que nunca mais eles tivessem contato. Aliás eu acho que isso tambémpreocupa Kennedy. Vamos partir do princípio de que ele na ocasião, acreditou nahistória que nos contou. A fuga da irmã e o esgotamento nervoso de Kelvin. Masele não esperava não ter mais nenhuma notícia de sua irmã. Acho que, à medidaque o tempo foi passando, sem saber do paradeiro de Helen e com Kelvinpersistindo em sua idéia fixa até finalmente se suicidar, uma terrível dúvidacomeçou a penetrar na mente de Kennedy. E se a história de Kelvin fosseverdadeira? Se ele realmente tivesse matado Helen? Não há notícias dela. Ora, seela tivesse morrido, ele certamente teria sido avisado. Acho que isso explica suaansiedade ao ler o nosso anúncio. Esperou encontrar alguma pista de onde ela

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estava ou do que estava fazendo. É

absolutamente fora do comum alguém desaparecer tão... tão completamentecomo Helen. Isso é altamente suspeito.

- Concordo, disse Miss Marple. - Mas qual é a outra alternativa, Sr. Reed?

- Estava pensando na alternativa, respondeu Giles lentamente. - É meio absurda,sabe, e bastante assustadora, porque significaria... não sei como expressar... umaespécie de malevolência . . .

- Sim, atalhou Gwenda, - acho que malevolência é a palavra correta. Acho atéque se trata de algo meio doentio... e estremeceu.

- Estou de acordo, disse Miss Marple. - Sabem, há uma coisa muito estranha nissotudo... Existem muitas coisas estranhas no mundo. Já vi muito disso...

Miss Marple parecia pensativa.

- Não pode haver nenhuma explicação normal, disse Giles, - Estou imaginandouma hipótese fantástica: Kelvin Halliday não matou sua mulher, mas acreditavapiamente que a assassinara. É essa a opinião do Dr. Penrose, que me parece ummédico competente. Sua primeira impressão foi a de que estava frente a umhomem que tinha matado a mulher e que queria se entregar à polícia. Depoisteve de aceitar a palavra de Kennedy e foi forçado a acreditar que Kelvin eravítima de um complexo, fixação ou coisa que o valha - mas ele não gostavadessa explicação. Tinha bastante experiência e Kelvin não se encaixava nessetipo. No entanto, ao conhecer melhor a personalidade de Halliday, convenceu-sede que aquele não era absolutamente o tipo de homem que estrangularia umamulher devido a uma provocação. Então aceitou a teoria da fixação, mas comreticências. E isso significa, na realidade, que só existe uma hipótese paraexplicar esse caso: Halliday foi induzido por outra pessoa a acreditar que tinhamatado sua mulher. Em outras palavras, chegamos a X.

- Revendo cuidadosamente os fatos, prosseguiu Giles, - eu diria que essa hipóteseé possível. Segundo seu próprio relato, Halliday entrou em casa, foi à sala dejantar, tomou um drinque como de costume - depois foi para a sala ao lado, viu obilhete em cima da escrivaninha e a partir daí não se lembra de mais nada...

Giles fez uma pausa e Miss Marple fez um sinal de aprovação.

- Vamos supor que tenha sido drogado... algumas gotas, dentro do uísque. O

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passo seguinte é claro, não é? X tinha estrangulado Helen no saguão, mas depoislevou-a para cima e colocou-a artisticamente caída na cama, compondo umcenário de crime passional. Kelvin volta a si no quarto e o pobre homem, quevinha sendo atormentado pelo ciúme, acha que foi ele quem cometeu o crime. Oque faz em seguida? Sai para falar com o cunhado - indo a pé até a outra pontada cidade. E isso proporciona a X o tempo necessário para o golpe seguinte:embalar e levar embora uma mala com roupas e também sumir com o cadáver- se bem que o que ele fez do corpo continue sendo um mistério para mim...

- Estou surpresa de ouvir o senhor dizer isso, Sr. Reed. Acho que esse é o menordos problemas. Mas prossiga, por favor.

- QUEM ERAM OS HOMENS DE SUA VIDA? perguntou Giles, repetindo amanchete do jornal. - Li isso no trem e comecei a pensar... porque, afinal decontas, é o cerne do problema, não é? Se existe um X, como imaginamos, aúnica coisa que sabemos ë que era louco por ela - literalmente louco por ela.

- E portanto odiava meu pai, acrescentou Gwenda, - e queria fazê-lo sofrer.

- Aí é que está o problema, disse Giles. - Sabemos que tipo de moça era Helen...

Giles hesitou.

- Louca por homens, completou Gwenda.

Miss Marple levantou os olhos subitamente, como se fosse dizer alguma coisa,mas ficou em silêncio.

- E era linda. Mas não temos nenhuma pista sobre os homens de sua vida, alémdo marido. Podem ter sido muitos. Miss Marple sacudiu a cabeça.

- Acho que não. Ela era bastante jovem. Mas o senhor está enganado, Sr. Reed.

Sabemos alguma coisa sobre o que o senhor chamou de "os homens de sua vida".Havia o homem com quem ia se casar . . .

- Ah, sim, o tal advogado! Como era mesmo o nome dele?

- Walter Fane, respondeu Miss Marple.

- Sim, mas esse não conta. Estava na Malásia, na Índia, ou num lugar dessesqualquer.

- Será que estava? Sabe, ele desistiu de ser plantador de chá. Voltou para

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Dillmouth, entrou para a firma e hoje em dia é o diretor.

- Será que veio atrás dela? perguntou Gwenda.

- Talvez. Não sabemos.

Giles olhava para a velha senhora com um ar intrigado.

- Como foi que a senhora descobriu tudo isso?

Miss Marple sorriu com ar culpado.

- Estive conversando por aí. Nas lojas... e nas filas de ônibus. Senhoras idosassempre gostam de fazer perguntas. Fica-se sabendo uma porção de coisas.

- Walter Fane . . . disse Giles, pensativo. - Helen não quis casar com ele. Issotalvez tenha causado um grande ressentimento. Ele se casou?

- Não, respondeu Miss Marple. - Mora com a mãe. Vou tomar chá com eles nofim da semana.

- Devíamos pesquisar também outra pessoa, disse Gwenda subitamente. -

Lembre-se de que houve alguém de quem ela foi noiva, ou pelo menos namoroufirme, quando acabou o colégio. Kennedy disse que era uma pessoa indesejável.Por que era indesejável?

- Já são dois homens, disse Giles. - Qualquer dos dois pode ter ficado ressentido,com raiva... Talvez o primeiro rapaz não tivesse boa saúde mental.

- Kennedy poderia nos informar quanto a isso, observou Gwenda. - Só que vaiser meio difícil perguntar. É muito simples eu aparecer e querer saber notícias deuma madrasta de quem mal me lembro, mas como é que vou perguntar sobresua vida amorosa? Parece um interesse um tanto demasiado, por uma pessoa quemal eu conheci.

- Deve haver outra maneira de descobrir, disse Miss Marple. - Oh, sim, acho quecom tempo e paciência poderemos conseguir informações.

- De qualquer modo temos duas possibilidades, disse Giles. - Acho que podemosinferir uma terceira, observou Miss Marple. - Seria, evidentemente, apenas umahipótese, mas que a meu ver se justifica devido ao rumo dos acontecimentos.

Gwenda e Giles olharam surpresos para ela.

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- É só uma dedução, disse Miss Marple, levemente ruborizada. - Helen Kennedyfoi á Índia para se casar com o jovem Fane. Não estava loucamente apaixonada,mas devia gostar dele e estava pronta a viver com ele. No entanto, assim quechega lá, desmancha o noivado e telegrafa ao irmão pedindo dinheiro para voltar.Por quê?

- Deve ter mudado de idéia, disse Giles.

Tanto Miss Marple quanto Gwenda o olharam com um certo desprezo.

- É evidente que mudou de idéia, retorquiu Gwenda. Disso nós sabemos. O queMiss Marple perguntou foi - por quê?

- Acho que as moças simplesmente mudam de idéia, respondeu Giles.

-

Diante de determinadas circunstâncias, observou Miss Marple.

Suas palavras tinham um tom significativo que ia muito além do que sugeria afrase em si.

- Alguma coisa que ele fez... Giles estava pensando em voz alta quando Gwendasubitamente o interrompeu.

- É claro! exclamou ela. - Outro homem!

Gwenda e Miss Marple se entreolharam com a segurança das mulheres quepertencem a uma maçonaria da qual os homens são excluídos.

- No navio! exclamou Gwenda. - Na ida!

- A proximidade... disse a outra.

- O luar do tombadilho, acrescentou Gwenda. - Todas essas coisas... Mas deve tersido sério. . . não foi apenas um namoro.

- Oh, sim, disse Miss Marple. - Acho que foi sério.

- Então por que não casou com o sujeito? perguntou Giles.

- Talvez ele não gostasse realmente dela, respondeu Gwenda. Em seguidasacudiu a cabeça. - Não, acho que nesse caso ela teria se casado com WalterFane. Oh, mas é claro, que burrice a minha! Um homem casado!

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Olhou para Miss Marple com ar triunfante.

- Exatamente, disse esta. - É assim que eu imagino as coisas. Apaixonaram-se,acho que loucamente. Mas se ele era um homem casado - talvez com filhos - eprovavelmente um sujeito honrado - bem, isso teria liquidado o caso.

- Só que ela não podia mais casar com Walter Fane, disse Gwenda. - Aítelegrafou ao irmão e voltou para casa. É, deve ter sido assim. E no navio devolta conheceu meu pai...

Fez uma pausa, imaginando o passado.

- Não estavam loucamente apaixonados, prosseguiu. Mas sentiram-se atraídosum pelo outro. . . e havia uma criança - eu. Ambos estavam infelizes... e umconsolava o outro. Meu pai falou de minha mãe e talvez ela tenha falado do outrohomem... Sim, é claro... Virou as páginas da caderneta. " Eu sabia que haviaalguém... Ela me contou no navio... Alguém que ela amava mas com quem nãopodia se casar." Sim, é isso. Helen e papai sentiram que eram parecidos - e erapreciso cuidar de mim, e ela achou que podia fazê-lo feliz - e talvez tenhapensado que ela própria acabaria sendo feliz.

Parou de falar, olhou para Miss Marple e afirmou:

-

É

isso

mesmo!

Giles

parecia

exasperado.

- Escute, Gwenda, você inventa uma porção de coisas e fica achando que elasrealmente aconteceram!

- Aconteceram mesmo! Têm que ter acontecido! E isso quer dizer que X podeser uma terceira pessoa.

-

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Quem?

- O homem casado. Não sabemos como era. Podia ser meio louco. Pode terseguido Helen até aqui...

- Você acabou de dizer que ele estava indo para a Índia...

- Bem, as pessoas podem voltar da Índia, não podem? Walter Fane voltou.

Quase um ano depois. Não estou afirmando que esse homem tenha voltado, masé uma possibilidade. Você insiste em querer saber quem eram os homens da vidadela. Bem, já temos três. Walter Fane, um jovem cujo nome não sabemos e umhomem casado...

- Que não sabemos se existe, interrompeu Giles.

- Vamos descobrir, disse Gwenda.

- Com tempo e paciência, respondeu ela, - podemos descobrir muita coisa.

Agora gostaria de dar minha contribuir. Através de uma conversa muitooportuna, descobri que Edith Pagett, que era cozinheira em St. Catherine naépoca que nos interessa, continua morando em Dillmouth. Sua irmã é casadacom um confeiteiro.

Acho que seria bastante natural você querer conversar com ela, Gwenda. Ela écapaz de saber uma porção de coisas.

- Ótimo! exclamou Gwenda. - Tive ainda uma outra idéia, acrescentou. - Voufazer um novo testamento. Não se preocupe, Giles, meu dinheiro vai ficar paravocê, mas quem vai cuidar desse testamento é Walter Fane.

- Cuidado, Gwenda! disse Giles.

- Fazer um testamento é coisa muito normal. E já pensei em tudo o que vou dizera ele. De qualquer modo quero conhecê-lo. Quero ver como é, e se achar quepossivelmente... Deixou a frase inacabada.

- O que me espanta, disse Giles, - é que ninguém mais tenha respondido ao nossoanúncio. Essa Edith Pagett, por exemplo...

Miss Marple sacudiu a cabeça.

- No interior as pessoas custam muito a tomar uma decisão em casos como esse,

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disse ela. - São desconfiadas.

CAPÍTULO XII

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LILY KIMBLE

Lily Kimble colocou em cima da mesa da cozinha alguns jornais velhos pararecolher a gordura das batatas que estavam fritando. Enquanto cantarolavabaixinho uma cantiga popular, inclinou-se para ler as notícias.

Subitamente parou de cantarolar e chamou:

- Jim, Jim! Veja isto aqui!

Jim Kimble, um homem idoso e pouco falante, estava lavando o rosto na pia dacopa. Para responder à mulher, usou seu monossílabo preferido.

- Hein? disse ele.

- É um anúncio no jornal. Qualquer pessoa que tenha algum conhecimento deHelen Spenlove Halliday, nascida Kennedy, é favor se comunicar com oescritório Reed

& Hardy, Southampton Road. Deve ser aquela Sra. Halliday para quem eutrabalhei em St. Catherine. Ela e o marido tinham alugado a casa da Sra.Findey son. O nome dela era Helen... sim, e era irmã do Dr. Kennedy, aquele quesempre dizia que eu devia operar as adenóides.

Houve uma pausa momentânea enquanto a Sra. Kimble cuidava das batatas. JimKimble esfregava o rosto com a toalha.

- Esse jornal é velho, observou a Sra. Kimble, examinando a data. - Já tem maisde uma semana. O que será isso? Será que tem algum dinheiro na história, Jim?

- Ahn. . . limitou-se o marido, resmungando.

- Pode ser um testamento ou coisa assim, prosseguiu a mulher. - Já faz muitotempo isso tudo.

- Ahn...

- Dezoito anos, ou mais. Não me espantaria se... Por que será que puseram esseanúncio? Você acha que pode ser à polícia, Jim?

- Por quê? perguntou o Sr. Kimble.

- Bem, você sabe o que eu sempre achei, respondeu a Sra, Kimble, em tom demistério. - Contei para você quando aconteceu. Fingiram que ela havia fugido

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com outro cara. É sempre isso o que os maridos dizem quando liquidam asmulheres. Eu acho que foi crime. Foi o que eu disse a você e a Edie, mas Edienão quis acreditar de jeito nenhum. Edie não tinha a menor imaginação. Aquelasroupas que dizem que ela levou na mala - bem, não eram as roupas certas,compreende? Faltava uma mala, uma sacola, e a quantidade de roupas dava paraencher as duas coisas, mas não eram as roupas certas. E foi o que eu disse aEdie. Falei: - Acho que o patrão a matou e escondeu o corpo no porão. Só quenão deve ter sido no porão, porque Léonie, aquela governanta suíça, viu algumacoisa pela janela. Ela fora ao cinema comigo. Foi, mesmo sabendo que nãopodia deixar a criança sozinha - mas aí eu lhe disse que a menina nuncaacordava de noite - era tão boazinha, ia sempre dormia direitinho... E dissetambém que a patroa nunca ia até o quarto da criança de noite, e que ninguém iaficar sabendo se ela saísse comigo. Aí ela saiu. E quando voltamos havia umaconfusão dos diabos. O médico estava lá, o patrão estava doente, dormindo noquarto de vestir, e o médico o examinava, e foi aí que me perguntou sobre asroupas, e na hora eu achei que estava tudo certo. Achei que ela fugira mesmocom o tal sujeito de quem gostava - era um homem casado - e Edie falou que iatorcer e rezar para a gente não acabar se metendo num divórcio. Como eramesmo o nome dele? Não me lembro mais.

Começava com M... ou com R? Céus, minha memória anda ruim!

O Sr. Kimble saiu da copa e, ignorando qualquer assunto que não fosse deinteresse imediato, perguntou se o jantar estava pronto.

- Só vou escorrer as batatas... Espere, vou pegar outro jornal. É melhor guardaresse aqui. Não deve ser a polícia... depois de tanto tempo... Talvez seja algumadvogado

- e seja questão de dinheiro. Não explica nada... mas talvez valha a pena...Gostaria de saber quem deveria consultar sobre isso tudo. Diz que é paraescrever a um endereço em Londres - mas não sei se quero fazer uma coisadessas... escrever a pessoas que não conheço, em Londres... O que é que vocêacha, Jim?

- Ahn... resmungou o Sr. Kimble comendo avidamente o peixe com batatas.

A discussão foi adiada.

CAPÍTULO XIII

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WALTER FANE

Gwenda olhou para o Sr. Walter Fane, sentado do outro lado da ampla mesa demogno.

Viu um homem de cerca de cinqüenta anos, com ar cansado, um rosto amável eindefinido. Um tipo de homem, pensou Gwenda, de que dificilmente selembraria quem o tivesse conhecido por acaso... Um homem a quem, em termosmodernos, faltava personalidade. Sua voz era lenta, cautelosa e agradável. Deveser um bom advogado, imaginou Gwenda.

Olhou em torno da sala - a sala do diretor da firma. Combinava com WalterFane. Era francamente antiquada. A mobília estava surrada, mas era feita dematerial vitoriano de boa qualidade. Havia arquivos encostados nas paredes, comnomes importantes nas gavetas. Sir John Vavasour-Trench. Lady Jessup. ArthurFfoulkes, Esq.

(Falecido.)

As grandes janelas de guilhotina, um tanto sujas, abriam para o pátio quepertencia à casa vizinha, uma construção do século dezessete. Não havia ali nadaque fosse bonito ou moderno, mas por outro lado não havia nada horroroso. Erauma sala desarrumada, com gavetas de arquivos empilhadas, uma mesa cheiade papéis e fileiras de livros de direito colocados de qualquer jeito nas prateleiras.Mas era o escritório de uma pessoa que sabia exatamente onde encontrar o queprocurava.

A caneta de Walter Fane parou de arranhar, e ele deu um sorriso lento, cordial.

- Acho que está tudo muito claro, Sra. Reed, disse. - Um testamento muitosimples. Quando gostaria de voltar para assiná-lo?

Gwenda respondeu que qualquer dia estava bem. Não tinha pressa.

- Compramos uma casa aqui, disse ela. - Hillside.

Walter Fane olhou para as anotações. - Sim, a senhora me deu o endereço.

Não houve nenhuma alteração em sua voz.

- É uma casa muito simpática, disse Gwenda. - Gostamos muito dela.

- É mesmo? Walter Fane sorriu. - Fica na praia?

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- Não, respondeu Gwenda. - Acho que mudaram o nome. Antigamentechamava-se St. Catherine.

O Sr. Fane tirou o pince-nez. Limpou-o com um lenço de seda, olhando para otampo da mesa.

- Oh, sim! disse ele. - Em Leahampton Road?

Levantou os olhos e Gwenda reparou que as pessoas que costumam usar óculosficam bastante diferentes sem eles. Seus olhos, de um cinza muito claro,estranhamente fracos e fora de foco.

Fazem o rosto dele parecer ausente, pensou Gwenda.

Walter Fane tornou a colocar o pince-nez. - Se não me engano, a senhora disseque fez um testamento quando se casou? perguntou ele em seu tom preciso deadvogado.

- Fiz, mas deixei coisas para várias pessoas da família, na Nova Zelândia, que jámorreram. Por isso achei que era muito mais simples fazer um testamento novo-

principalmente porque pretendemos ficar morando neste país.

Walter Fane assentiu com a cabeça.

- Sim, é uma atitude sensata. Bem, acho que está tudo claro, Sra. Reed. A senhorapode vir aqui depois de amanhã às onze horas?

- Pois não.

Gwenda levantou-se e Walter Fane também.

- Eu... eu procurei o senhor... disse Gwenda num tom ligeiramente apressado queensaiara antecipadamente, - porque acho... ou melhor, sei que o senhorconheceu... a minha mãe.

- É, mesmo? Walter Fane acrescentou ao tom de suas palavras um toque de calorsocial. - Como era o nome dela?

- Halliday. Megan Halliday. Acho... me disseram.. . que o senhor foi noivo dela.

O relógio da parede fazia tique-taque, tique-taque.

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Subitamente Gwenda sentiu seu coração bater um pouco mais depressa. Como orosto de Walter Fane era tranqüilo! Podia imaginar uma casa assim - uma casacom todas as janelas fechadas. Uma casa com um cadáver. (Que idéias idiotas,Gwenda!) Walter Fane, sem alterar a voz, respondeu:

- Não, não conheci sua mãe, Sra. Reed. Mas fui noivo, durante um períodobastante curto, de Helen Halliday, que mais tarde se casou com o MajorHalliday.

- Oh, compreendo. Que bobagem! Confundi tudo. Foi Helen - minha madrastaclaro que isso tudo aconteceu numa época de que não me lembro. Eu era apenasuma criança quando o segundo casamento de meu pai terminou. Mas tinhaouvido alguém dizer que o senhor fora noivo da Sra. Halliday na Índia - enaturalmente pensei que fosse minha mãe - por causa da Índia... Meu paiconheceu-a na Índia.

- Helen Kennedy foi para a Índia para se casar comigo, explicou Walter Fane. -

Depois mudou de idéia e no navio, de volta para casa, conheceu seu pai.

Seu relato era tranqüilo e sem emoção. Gwenda continuava se lembrando dacasa de janelas fechadas.

- Sinto muito relembrar tristezas antigas, disse ela.

Walter Fane deu seu sorriso tranqüilo. As janelas estavam abertas.

- Faz dezenove ou vinte anos, isso, Sra. Reed, disse ele. - Depois de algum tempoas loucuras da juventude não representam muita coisa. Então a senhora é afilhinha de Halliday ! Deve saber que seu pai e Helen moraram durante algumtempo aqui em Dillmouth?

- Oh, sei, sim! respondeu Gwenda. - E foi por isso mesmo que viemos para cá.

Não me lembrava muito bem, é claro, mas quando tivemos de decidir em quelugar da Inglaterra nós íamos morar, vim primeiro a Dillmouth, para ver comoera. Achei o lugar tão atraente que resolvi que iríamos morar por aqui mesmo. Eveja só que sorte: compramos a mesma casa em que minha família morou hátantos anos atrás!

- Lembro-me da casa, disse Walter Fane. Tornou a sorrir tranqüilamente. - Asenhora pode não se lembrar de mim, Sra. Reed, mas esteja certa de quebrincamos juntos várias vezes. Gwenda riu.

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- É mesmo? Então o senhor é um velho amigo, não é? Não posso fingir que melembro do senhor - mas naquela ocasião acho que eu só tinha uns dois ou trêsanos... O

senhor tinha vindo da Índia para passar as férias?

- Não, tinha desistido da Índia. Fui para lá com a intenção de ser plantador dechá, mas não me acostumei àquela vida. Fui educado para seguir a carreira demeu pai -

ser um advogado do interior, sem o menor espírito de aventura. Como meformara em Direito, voltei e entrei para a firma. Fez uma pausa e acrescentou: -Estou aqui desde aquela época.

Novamente uma pausa e ele então repetiu em voz baixa: - Sim - desde aquelaépoca...

Afinal, pensou Gwenda, dezoito anos não é tanto tempo assim. . .

Em seguida, mudando de atitude, ele estendeu-lhe a mão e disse - Já que somosvelhos amigos, a senhora precisa ir com seu marido tomar chá com minha mãe.Vou pedir a ela que lhe escreva um bilhete convidando-os. Então, estamoscombinar - na quinta-feira, às onze horas, a senhora vem assinar o testamento.

Gwenda saiu do escritório e desceu a escada. No alto da parede havia uma teiade aranha. No centro da teia estava uma aranha pálida, indefinida. Não pareciauma aranha de verdade pensou Gwenda. Não era uma daquelas aranhas gordasque pegam moscas e comem-nas. Parecia mais o fantasma de uma aranha. Umpouco como Walter Fane, para dizer a verdade.

II

Giles foi encontrar sua mulher em frente à praia.

- Como foi? perguntou ele.

- Ele estava aqui em Dillmouth na época, respondeu Gwenda. - Tinha voltado daÍndia. Mas não é possível que tenha matado alguém. É muito tranqüilo e afável.Muito simpático, na verdade, mas um tipo de pessoa em quem a gente nempresta atenção.

Sabe, do tipo dessas pessoas que vão às festas e a gente nem repara quandosaem. Acho que ele é corretíssimo, todo dedicado à mãe e cheio de virtudes.Mas, do ponto de vista feminino, é terrivelmente sem-graça. Compreendo porque

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não conseguiu nada com Helen. Seria um marido bom e protetor... mas narealidade não dá para casar com ele.

- Coitado! exclamou Giles. - É provável que estivesse loucamente apaixonadopor ela.

- Oh, não sei... Acho que não. De qualquer modo, tenho certeza de que não é oassassino. Não é assim que imagino um assassino.

- Meu amor, acho que você não é muito entendida em assassinos, não é?

- O que é que você quer dizer com isso?

- Bem, eu estava pensando na tranqüila Lizzie Borden - o júri achou que não tinhasido ela. E Wallace, um homem tranqüila - o júri insistiu em que ele assassinara amulher, se bem a sentença, mais tarde, tenha sido anulada... E Armstrong, todosdiziam ser um sujeito pacífico e sossegado... Acho os assassinos não têm nenhumtipo especial.

- Não consigo acreditar que Walter Fane. . .

Gwenda interrompeu a frase.

- Que foi?

-

Nada.

Mas ela estava se lembrando de Walter Fane limpando os óculos e de seuestranho olhar vazio quando ela mencionou Catherine.

- Talvez, disse ela sem convicção, - ele estivesse loucamente apaixonado. . .

CAPÍTULO XIV

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EDITH PAGETT

A sala de estar da Sra. Mountford era um lugar agradável. Havia uma mesaredonda, coberta com uma toalha, algumas poltronas antiquadas e um sofá deaparência incômada mas surpreendentemente confortável. Sobre a lareira viam-se cachorros de porcelana e outros enfeites, além de uma fotografia colorida dasPrincesas Elizabeth e Margaret Rose. Em outra parede via-se o Rei vestido com ouniforme de gala da Marinha e um retrato do Sr. Mountford num grupo depadeiros e confeiteiros. Havia um quadro feito de conchas e uma aquarela querepresentava o mar muito verde em Capri.

Havia muitas outras coisas, nenhuma das quais pretendia ser bela ou ambiciosa,mas o conjunto fazia da sala um local alegre e acolhedor, onde as pessoas sereuniam para se divertir, sempre que podiam.

A Sra. Mountford, nascida Pagett, era baixa, gorducha e morena, com alguns fiosbrancos no cabelo escuro. Sua irmã, Edith Pagett, era também morena, mas altae magra. Apesar dos quase cinqüenta anos, não tinha quase nenhum cabelobranco.

- Ora, vejam só! exclamou Edith Pagett. - A pequena Srta. Gwennie! Desculpefalar assim, minha senhora, mas o tempo passa depressa. A senhora costumava irà cozinha toda arrumada e bonitinha. A senhora dizia "vinhas", "vinhas", quandoqueria pedir uvas. E eu dava uvas para a senhora, uvas sultanas.

Gwenda olhava fixamente para os olhos escuros e as bochechas vermelhas damulher, tentando se lembrar... se lembrar... mas não se lembrava de nada. Amemória é uma coisa muito traiçoeira.

- Eu gostaria de poder me lembrar... disse ela.

- Seria impossível. A senhora era uma criancinha. Hoje em dia ninguém maisquer trabalhar em casas onde há crianças. Não entendo uma coisa dessas. Achoque as crianças dão vida a uma casa, se bem que comida de criança seja sempremeio complicada. Mas sabe, isso é culpa da governanta, não é culpa da criança.As governantas são sempre complicadas - querem bandejas preparadas, queremser servidas, mais isso, mais aquilo.. . A senhora se lembra de Léonie, Srta.Gwennie?

Desculpe, quero dizer Sra. Reed.

- Léonie? Era minha governanta?

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- Era suíça. Não falava bem inglês e era muito sensível. Chorava à toa, bastavaLily dizer qualquer coisinha e ela se aborrecia. Lily era a copeira. Lily Abbott.Era mocinha, muito esperta e meio avoada. Brincava muito com a senhora, Srta.Gwennie.

Brincava de esconder na escada.

Gwenda estremeceu.

A escada...

- Lembro-me de Lily, disse ela subitamente. - Ela botou um laço no gato.

- Que engraçado, a senhora se lembrar disso. Foi no seu aniversário, e Lilycismou que tinha de pôr um laço em Thomas. Pegou uma fita da caixa dechocolates e Thomas ficou feito louco. Saiu correndo para o jardim e se esfregounos arbustos até conseguir tirar o laço. Os gatos não gostam de brincadeirasassim.

- Era um gato preto e branco.

- Isso mesmo. Coitado do velho Tommy! Caçava ratos que era uma beleza. Eraum grande caçador. Edith Pagett fez uma pausa e pigarreou. - Desculpe estarfalando tanto, minha senhora. Mas isso me fez lembrar de antigamente. Asenhora queria me perguntar alguma coisa?

- Gosto de ouvir contar coisas de antigamente, respondeu Gwenda. - É

justamente sobre isso que quero ouvir falar. Compreende, eu fui criada porparentes, na Nova Zelândia e é claro que eles não sabiam nada sobre meu pai... eminha madrasta.

Ela... ela era boazinha, não era?

- Ela gostava muito da senhora. Oh, gostava muito! Costumava levar a senhora àpraia e brincar no jardim. Ela era muito moça, compreende? Pouco mais queuma criança. Eu achava muitas vezes que ela se divertia tanto quanto a senhoracom as brincadeiras que inventava. Compreende, de certo modo ela era filhaúnica. O irmão, Dr. Kennedy, era muitos anos mais velho e estava sempreocupado, estudando. Quando ela não estava no colégio, tinha de brincar sozinha...

Miss Marple interrompeu-a delicadamente. - A senhora sempre morou emDillmouth, não é?

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- Oh, sim, minha senhora! Meu pai era dono daquela fazenda atrás da colina. O

nome da fazenda era Ry lands. Ele não tinha filhos homens e minha mãe nãoconseguìu tocar a fazenda depois que ele morreu. Aí ela vendeu a fazenda ecomprou uma loj inha na tua principal. Sim, sempre morei aqui.

- E provavelmente conhece todo mundo em Dillmouth, não é?

- Bem, naquela época isto aqui era uma cidade pequena, apesar de haver sempremuitos veranistas. Mas eram pessoas boas e tranqüilas, que vinham para cá todosos anos. Não eram esses aventureiros de hoje em dia. Era gente de boa família,que ocupava sempre os mesmos quartos, no verão.

- A senhora deve ter conhecido Helen Kennedy antes de se tornar a Sra.

Halliday, não é? perguntou Giles.

- Bem, eu a conhecia de nome, e pode ser até que a tenha visto uma vez ou outra.Mas só a conheci de verdade quando fui trabalhar para ela.

- E gostava dela? perguntou Miss Marple.

Edith Pagett virou-se para a velha senhora.

- Sim, minha senhora. Gostava. Havia um quê de desafio em seu tom. - Nãointeressa o que os outros dizem. Ela foi sempre muito boa comigo. Nuncaimaginei que ela fosse fazer o que fez. Levei um susto! Se bem que... corriamboatos...

Interrompeu a frase subitamente e olhou para Gwenda com ar de desculpa.

Gwenda apressou-se em dizer alguma coisa.

- Quero saber, disse ela. - Por favor, não pense que vou ficar magoada com oque disser. Ela não era minha mãe...

- Bem, isso é verdade, senhora.

- E compreende, estamos querendo muito... encontrá-la. Ela foi embora daqui...

e parece que desapareceu. Não sabemos onde mora agora, nem mesmo se aindaestá viva. E existem motivos...

Gwenda hesitou e Giles interveio. - Motivos legais. Não sabemos se morreu, ou...

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o que aconteceu.

- Ah, compreendo, senhor. O marido de minha prima desapareceu e foi umatrapalhada, porque ninguém sabia se tinha morrido ou o quê tinha acontecido. Elaficou em situação dificílima. Naturalmente, senhor, se eu souber de alguma coisaque possa ajudar de algum modo. . . afinal os senhores não são estranhos. Srta.Gwenda e as

"vinhas". A senhora dizia isso de um jeito tão engraçado!

- Muito obrigado, disse Giles. - Bem, se não se importa, vou lhe perguntaralgumas coisas. A Sra. Halliday abandonou o lar subitamente, não é?

- Sim, senhor. Foi um grande choque para todos nós... e principalmente para oMajor, coitado. Ficou arrasado.

- Vou lhe fazer uma pergunta direta. Tem alguma idéia quem era o homem comquem ela fugiu?

Edith Pagett sacudiu a cabeça.

- Foi o que o Dr. Kennedy me perguntou... e eu não soube responder. Nem Lily.

E é claro que a tal Léonie, sendo estrangeira, não sabia de nada.

- A senhora não sabia, disse Giles. - Mas não tem nenhum palpite? Isso já faztanto tempo que não faz mal se o palpite estiver errado. A senhora certamentedesconfia de alguém...

- Bem, nós desconfiamos... mas era apenas um palpite. Eu, por mim, nunca vinada. Mas Lily, que era muito esperta, Lily tinha lá suas idéias... há muito tempo.Ela costumava me dizer: - Esse cara está louco por ela. Basta ver o seu jeito deolhar para ela enquanto ela serve o chá. E a mulher dele fica uma fera!

- Compreendo. E quem era o... o cara?

- Bem, senhor, não me lembro do nome dele. Faz muito tempo isso.

Comandante... Esdale... não, não era isso... Emery. . . não. Tenho a impressão deque começava com E. Ou talvez fosse H. Era um nome meio fora do comum.Mas faz dezesseis anos que nem penso nisso. Ele e a mulher estavam hospedadosno Roy al Clarence.

- Eram veranistas?

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- Eram, mas acho que ele... ou talvez o casal... já conhecia a Sra. Halliday. Iammuitas vezes visitá-los. De qualquer modo, segundo Lily, ele gostava da Sra.Halliday.

- E sua mulher ficava furiosa.

- Ficava, senhor... Mas, sabe, nunca acreditei que houvesse alguma coisarealmente. E até hoje não sei o que achar.

- Eles ainda estavam aqui, no Royal Clarence, quando... quando... Helen, minhamadrasta, fugiu de casa? perguntou Gwenda.

- Se não me engano foram embora na mesma época, na véspera ou no diaseguinte... enfim, foi muito junto, e isso fez o povo falar. Mas eu nunca soube denada com certeza. Mesmo que tenha sido ele, tudo foi tratado em segredo. Quecoisa mais estranha a Sra. Halliday ir embora assim tão de repente! Mas dizemque ela sempre foi meio maluquinha - se bem que eu nunca tenha reparado emnada desse gênero. Não teria aceitado ir para Norfolk com eles se desconfiassedisso.

Durante um momento Giles, Gwenda e Miss Marple olharam fixamente para amulher.

- Norfolk? perguntou Giles, finalmente. - Eles iam para Norfolk?

- Sim, senhor. Tinham comprado uma casa lá. A Sra. Halliday me contou issoumas três semanas antes de tudo acontecer. Perguntou se eu estava disposta a ircom eles, quando se mudassem, e eu respondi que sim. Afinal de contas, eununca tinha saído de Dillmouth e achei que talvez fosse bom variar um pouco, jáque gostava da família.

- Nunca ouvi dizer que tinham comprado casa em Norfolk, disse Giles.

- Bem, é engraçado o senhor dizer isso, porque a Sra. Halliday parecia mesmoquerer que fosse segredo. Pediu-me que não contasse para ninguém e eu,evidentemente, não contei. Mas há muito tempo ela queria ir embora deDillmouth.

Insistia muito com o Major, mas ele gostava do lugar. Acho que até chegou aescrever à Sra. Findey son, que era a dona de St. Catherine, perguntando seestaria disposta a vender a casa. Mas a Sra. Halliday não queria nem ouvir falarnisso. Dava a impressão de estar com raiva de Dillmouth. Era quase como seestivesse com medo de ficar aqui.

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As palavras foram ditas com naturalidade, mas ao ouvi-las as três pessoas queescutavam ficaram alerta.

- Acha que queria ir para Norfolk para ficar perto desse... desse homem cujonome a senhora não lembra?

Edith Pagett fez um ar desolado.

- Oh, senhor, prefiro não pensar numa coisa dessas! Acho que não, de jeitonenhum. Além do mais acho que... agora me lembrei... aquele casal era donorte. Acho que eram de Northumberland. De qualquer modo, gostavam muitode passar férias no sul porque o clima era bastante mais ameno.

- Ela estava com medo de alguma coisa, não estava? perguntou Gwenda. - Ou dealguém? Estou me referindo à minha madrasta.

- Estou me lembrando... agora que a senhora falou nisso...

- De quê?

- Um dia Lily entrou na cozinha, depois de varrer a escada, e disse assim:

"Temos briga!" Lily falava as coisas sem pensar, por isso desculpem eu estarcontando o que ela disse.

Ai eu perguntei o que ela queria dizer com isso e ela respondeu que a patroa tinhaentrado na sala com o patrão, vinda do jardim, e como a porta estava aberta Lilyouvira a conversa.

-

Eu tenho medo de você, disse a Sra. Halliday.

E Lily disse que ela estava com voz de medo. - Há muito tempo tenho medo devocê. Você é louco. Você não é normal. Vá embora e me deixe em paz. Estou commedo.

Acho que no fundo sempre tive medo de você...

Era uma coisa desse tipo... evidentemente não me lembro das palavras exatas,mas Lily ficou muito impressionada e foi por isso que, depois que tudoaconteceu, ela...

Edith Pagett interrompeu subitamente a frase e sua fisionomia expressava medo.

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- Eu não queria... acreditem, disse ela. - Desculpe, senhora, mas estou falandodemais.

Giles assumiu um tom afável.

- Conte tudo, por favor, Edith. Compreenda, nós precisamos saber. Faz muitotempo isso tudo, mas nós temos que saber.

- Não sei o que dizer, respondeu Edith.

- Em que Lily não acreditou... ou o que ela achou? perguntou Miss Marple.

- Lily vivia com a cabeça cheia de idéias. Eu nunca prestava atenção a ela. Elaia sempre ao cinema e por isso inventava uma porção de melodramas. Naquelanoite...

quando tudo aconteceu, ela fora ao cinema e levara Léonie junto. E fez muitomal... eu disse isso a ela. - Ora, não tem importância, respondeu ela. - A criançanão está sozinha na casa. Você está aí na cozinha, mais tarde o patrão e a patroavão chegar e, de qualquer modo, a menina nunca acorda de noite. Mas não deviater saído e eu disse isso a ela, mas foi só depois, porque eu não soube antes queLéonie também ia. Se soubesse, tinha ido lá em cima para ver se ela... quer dizer,a senhora, Srta. Gwenda... estava bem.

Da cozinha não se ouve nada, quando se fecha a porta.

Edith Pagett fez uma pausa e prosseguiu: - Eu estava passando umas roupas.

Anoiteceu muito depressa e, a uma certa altura, o Dr. Kennedy entrou na cozinhae perguntou por Lily. Eu disse que era folga dela, mas que daí a pouco ia voltar.Nesse mesmo instante ela chegou e ele levou-a lá para cima, para o quarto dapatroa. Queria saber se levara alguma roupa com ela. Lily olhou tudo, falou comele e depois desceu.

Estava muito aflita.

- Ela fugiu, disse Lily. - Foi embora com alguém. O patrão está ruim. Parece queteve um troço qualquer. Foi um choque horrível para ele. Bobalhão... Devia tervisto o que estava acontecendo.

Eu disse para Lily que não devia falar assim, que ela não podia saber se a Sra.

Halliday tinha fugido com alguém... Talvez tivesse recebido um telegrama de umparente enfermo.

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Lily

respondeu:

- Parente enfermo uma ova! (Ela sempre falava as coisas de qualquer jeito.) -

Deixou um bilhete. Eu perguntei com quem ela havia fugido e Lily disse para euadivinhar, mas que não era o Sr. Fane, que olhava para ela com aquele ar decarneiro e a seguia como um cachorrinho. Aí eu perguntei se ela achava que erao tal comandante, e ela respondeu que achava que sim, mas que também podiaser o homem misterioso do carro grande (isso era uma brincadeira entre nósduas). Eu disse, então, que não acreditava, que a Sra. Halliday não ia fazer umacoisa dessas. E Lily me disse assim: -

Pois bem, mas foi o que ela fez.

- Isso tudo foi na hora, compreende? prosseguiu Edith Pagett. - Mais tarde, nonosso quarto, Lily me acordou e disse: - Escute, está tudo errado! Eu lheperguntei o que estava errado e ela respondeu: - As roupas. - Que roupas?perguntei eu. Aí ela disse assim: - Escute, Edie, eu olhei todo o armário dela,porque o médico me pediu. Está faltando uma mala e uma porção de roupas...mas são as roupas erradas. - O que é que você quer dizer com isso? perguntei eu.- Ela levou um vestido longo, aquele prateado, mas não levou o cinto nem acombinação que usa com ele. E, em vez de levar a sandália prateada, levou umsapato social de brocado dourado. E levou o conjunto de tweed verde, que ela sóusa no fim do outono mas, em vez de levar o suéter, levou as blusas de renda queela só usa com os conjuntos mais finos. E a roupa de baixo também está todatrocada. Lembre-se do que eu estou dizendo, Edie. Ela não foi embora coisanenhuma.

O patrão a matou.

- Bem, aí não consegui mais dormir, continuou Edith. Sentei na cama e pergunteia ela; - Do que é que você está falando?

- É igualzinho ao que eu li no Notícias do Mundo da semana passada, respondeuela. - O patrão descobriu que estava sendo enganado, matou a mulher e enterrouo corpo no porão. Não dava para você ouvir nada porque ficava embaixo dosaguão de entrada.

Foi isso o que ele fez! Depois arrumou a mala para fingir que ela foi embora.Mas é lá que ela está - debaixo do piso do porão. Ela não saiu viva desta casa!

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Eu disse a Lily que ela não podia falar uma coisa dessas, mas na manhã seguintefui ao porão e não havia nada de anormal ali, ninguém mexera em nada nemcavaram o chão. Disse-lhe então que ela estava maluca, mas Lily continuouinsistindo que o patrão tinha matado a patroa, e me disse ainda : - Não esqueçaque ela estava morta de medo dele. Eu a ouvi dizer isso. Aí eu disse para Lily : -Você não tem razão. No dia em que você me contou isso eu espiei logo depoispela janela e o patrão vinha andando pela colina com os tacos de golfe, de modoque não pode ter sido ele quem estava na sala com a patroa. Era outra pessoa.

A frase ficou suspensa no ar, naquela sala de estar comum, mas confortável.

-

Era outra pessoa, repetiu Giles em voz baixa.

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CAPITULO XV

UM ENDEREÇO

O Roy al Clarence era o hotel mais velho da cidade. Tinha uma fachada madurae arredondada, com a atmosfera dos prédios de antigamente. Era freqüentadopor famílias que iam passar um mês à beira-mar.

A Srta. Narracott, sentada atrás do balcão de recepção, era uma senhora dequarenta e sete anos, busto muito grande e penteado antiquado.

Examinou Giles e ficou à vontade, classificando-o como "uma pessoa de bem''.

Giles que, por sua vez, conseguia ser muito persuasivo quando queria algumacoisa, contou uma história bem preparada com antecedência. Tinha feito umaaposta com sua mulher, garantindo que sua madrinha se hospedara no Roy alClarence há dezoito anos atrás. Sua mulher retorquira que jamais chegariam auma conclusão sobre o assunto porque evidentemente, depois de tantos anos,todos os registros teriam sido jogados fora. Mas ele achava que umestabelecimento da categoria do Royal Clarence não cometeria o absurdo dejogar fora seus registros antigos. Deviam possuir registros de cem anos atrás.

- Bem, não é exatamente assim, Sr. Reed, mas guardamos todos os nossos Livrosde Visitantes, que contém nomes bastante ilustres. Imagine que o Rei se hospedouaqui quando era Príncipe de Gales e a Princesa Adlernar de Holstein-Rotzpassava todos os invernos aqui com a dama de companhia. Também hospedamosdiversos escritores famosos, e o Sr. Dovery, o pintor de retratos.

Giles mostrou-se devidamente interessado e dentro em pouco o volume que sereferia ao ano em questão lhe foi trazido e mostrado.

Depois de ler vários nomes importantes, virou as páginas até chegar ao mês deagosto.

Sim, era certamente isso o que ele procurava.

Major e Sra. Setoun Erskine. Antell Manor, Daith, Northumberland. 27 de julho a17 de agosto.

- Posso copiar isto? perguntou.

- É claro, Sr. Reed! Vou lhe dar papel e tinta. Oh, o senhor trouxe sua caneta!

Com licença, preciso ir ao escritório.

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Deixou-o em frente ao livro aberto e Giles copiou o registro desejado.

Ao voltar para Hillside encontrou Gwenda no jardim, cuidando de um canteiro.

Ela lançou-lhe um rápido olhar de interrogação.

- Conseguiu alguma coisa?

- Consegui. Acho que deve ser isto aqui.

- Antell Manor, Daith, Northumberland, leu Gwenda em noz alta. - É, EdithPagett falou em Northumberland. Será que ainda moram lá?

- Vamos ter de verificar.

- Sim - sim, é melhor irmos lá. Quando?

- O mais cedo possível. Que tal amanhã? Podemos ir de carro para vocêconhecer um pouco mais a Inglaterra.

- E se eles tiverem morrido... ou se tiverem se mudado e houver outras pessoasmorando lá?

Giles deu de ombros.

- Nesse caso voltamos para cá e seguimos as outras pistas. Por falar nisso,escrevi a Kennedy pedindo-lhe que me mandasse as cartas que Helen escreveudepois que foi embora - se ele ainda as tiver - e uma amostra da letra dela.

- Gostaria de entrar em contato com a outra empregada, Lily, disse Gwenda. -

Aquela que colocou um laço no pescoço de Tommy...

- Engraçado você se lembrar disso de repente, Gwenda.

- É mesmo... Lembro-me de Tommy. Era preto, com manchas brancas, e tinhatrês filhotinhos lindos.

- O quê?! Thomas?

- Bem, o nome era Thomas, mas depois descobrimos que era uma gata e ficouse chamando Thomasina. Mas, voltando a Lily... onde será que ela está? Pelojeito Edith Pagett nunca mais ouviu falar nela. Não era daqui e, depois que saiude St. Catherine, empregou-se em Torquay. Mandou uma ou duas cartas e depoismais nada. Edith ouviu contar que ela se casou, mas não sabe com quem. Se

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conseguíssemos falar com ela, poderíamos ficar sabendo muito mais.

- E poderíamos saber muita coisa através de Léonie, a moça suíça.

- Talvez... Mas ela era estrangeira e não deve ter entendido muito bem o queaconteceu. Sabe, não me lembro absolutamente dela. Acho que Lily é quepoderia ser útil. Lily é que era esperta... Já sei, Giles! Vamos botar outro anúncio- um anúncio em nome dela. Ela se chamava Lily Abbott.

- É, respondeu Giles. - Podemos tentar isso. E amanhã vamos para o norte ver oque conseguimos descobrir sobre o casal Erskine.

CAPÍTULO XVI

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UM FILHO DEDICADO

- Desça, Henry ! ordenou a Sra. Fane ao cocker-spaniel asmático cujos olhosbrilhavam de gulodice. - Aceita mais um pãozinho, Miss Marple?

- Muito obrigada. Estão deliciosos. Sua cozinheira é excelente!

- Louisa não é das piores. Muito distraída, como todas elas. E faz sempre osmesmos pudins. Diga-me uma coisa. Como vai a ciática de Dorothy Yarde?Costumava ter dores terríveis. Acho que era tão somente de fundo nervoso.

Miss Marple apressou-se em dar explicações detalhadas sobre a doença daamiga. Que sorte, pensou ela consigo mesma, ter encontrado, entre tantas amigasespalhadas pela Inglaterra, uma pessoa que conhecia a Sra. Fane e que lheescrevera dizendo que Miss Marple estava em Dillmouth e pedindo que aconvidasse para ir a sua casa.

Eleanor Fane era uma mulher alta e autoritária, com olhos cinzentos e frios,cabelo branco e crespo e uma tez rosada de bebê que mascarava o fato de nãopossuir absolutamente nada da doçura de um bebê.

Discutiram as doenças reais ou imaginárias de Dorothy e conversaram sobre asaúde de Miss Marple, o clima de Dillmouth e o mau comportamento da maioriada nova geração.

- Não foram bem educados, afirmou a Sra. Fane. - Em minha casa as coisaseram diferentes.

- A senhora tem apenas um filho? perguntou Miss Marple.

- Tenho três. Gerald, o mais velho, trabalha no Far East Bank em Singapura.

Robert é oficial do exército. A Sra. Fane deu uma fungada de reprovação antesde prosseguir. - Casou-se com uma moça católica! exclamou enfaticamente. - Asenhora sabe o que isso significa! Todas as crianças educadas na religiãocatólica! Não sei o que o pai de Robert teria dito. Hoje em dia mal tenho noticiasde Robert. Ele não gostou das coisas que eu lhe disse para seu próprio bem. Achoque as pessoas devem ser sinceras e dizer exatamente o que pensam. Em minhaopinião o casamento dele foi uma grande infelicidade. Ele pode fingir que é feliz,coitadinho, mas eu não acho que seja tudo muito satisfatório.

- Seu filho mais moço não se casou, não é?

A Sra. Fane deu um largo sorriso.

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- Não. Walter mora comigo. Ele tem uma saúde delicada - sempre teve, desdecriança - e sempre tive muitos cuidados para com ele. A senhora não podeimaginar como é delicado e atencioso! Considero-me uma mulher de sorte porter um filho assim.

Daqui a pouco ele vai chegar.

- E ele nunca pensou em se casar? perguntou Miss Marple.

- Walter sempre diz que não gosta dessas jovens modernas. Elas não o atraem.

Nós dois temos tanta coisa em comum mas acho que ele não sai tanto quantodevia. À

noite ele lê Thackeray para mim e geralmente jogamos uma partida de piquet.Walter é bastante caseiro.

- Que coisa maravilhosa! observou Miss Marple. - Ele sempre trabalhou nafirma? Disseram-me que um de seus filhos morava no Ceilão, e que tinha umaplantação de chá, mas devem ter-se enganado.

A Sra. Fane franziu ligeiramente as sobrancelhas. Ofereceu mais um bolinho aMiss Marple e explicou.

- Isso foi quando ele era muito moço. Um impulso juvenil. Os rapazes semprequerem conhecer o mundo. Na realidade havia uma moça por trás de tudo. Asmoças às vezes atrapalham tanto!

- Oh, sim, compreendo. Tenho um sobrinho que...

A Sra. Fane continuou a falar ignorando o sobrinho de Miss Marple. Tomou contado assunto, aproveitando a oportunidade de relembrar fatos antigos ao conversarcom aquela simpática amiga da querida Dorothy.

-

Uma

moça

absolutamente inconveniente. Oh, não era nenhuma atriz ou coisa no gênero. Eraa irmã do médico - parecia ser sua filha, porque era muitos anos mais moça doque ele - e o pobre médico não tinha noção de como educá-la. Os homens sãotão indefesos, não acha? Ela era muito volúvel. Primeiro se meteu com um

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jovem que trabalhava no escritório, um funcionariozinho que além do mais nãotinha bom caráter.

Tiveram de despedi-lo, porque passou adiante informações confidenciais. Dequalquer modo essa moça, Helen Kennedy, era muito bonitinha. Eu não achavatanto assim.

Sempre achei que ela clareava o cabelo. Mas Walter, coitado, apaixonou-se porela.

Como já disse, era uma pessoa que não convinha, sem dinheiro sem futuro, e nãoera o tipo de moça que se deseja como nora. Porém o que uma mãe pode fazer?Walter pediu-a em casamento e ela recusou. Então ele meteu na cabeça essaidéia idiota de ir para a Índia plantar chá. Meu marido achou que devíamosdeixá-lo ir, se bem que, evidentemente, tenha ficado bastante aborrecido.Desejava muito que Walter fosse trabalhar na firma, e Walter já se formara emdireito. Mas a realidade era outra.

Francamente, que confusão essas jovens causam!

- Oh, eu sei! Meu sobrinho...

Mais uma vez a Sra. Fane ignorou completamente o sobrinho de Miss Marple.

- Aí meu filho querido foi para Assam, ou para Bangalore - não me lembro mais,depois de tantos anos, e fiquei muito preocupada porque sabia que sua saúde nãoresistiria. Não fazia nem um ano que ele estava lá - e estava se saindootimamente, porque Walter faz tudo muito bem feito - quando aquela danadinhamuda de idéia e lhe escreve dizendo que resolveu casar com ele.

- Não me diga! exclamou Miss Marple sacudindo a cabeça.

- Faz o enxoval, compra a passagem... e o que é que a senhora imagina queaconteceu?

- Não faço idéia, respondeu Miss Marple.

- Ela tem um caso com um homem casado, nada mais nada menos. A bordo, acaminho da Índia. Um homem casado, com dois ou três filhos. Bem, lá estáWalter, no cais, à sua espera, e a primeira coisa que ela faz é dizer que não vaimais casar com ele.

Não acha que isso é uma maldade?

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- Oh, acho sim! Podia ter destruído a confiança de seu filho na natureza humana.

- Isso devia ter aberto os olhos dele para que a visse tal como ela era, mas essetipo de mulher sempre leva a melhor.

- Ele não... Miss Marple hesitou, - não ficou ressentido com o que ela fez?

Muitos homens teriam ficado furiosos!

- Walter sempre foi muito controlado. Por mais aborrecido ou preocupado queesteja, nunca demonstra nada.

Miss Marple olhou-a com ar de dúvida.

- Talvez seja porque tudo o atinge muito fundo, não acha? Às vezes as criançasespantam a gente. De repente, uma criança que a gente achava toda calmaexplode sem se saber por quê. Têm um temperamento sensível, mas que nãoconseguem expressar até não agüentarem mais.

- Oh, é interessante a senhora fazer esse comentário, Miss Marple. Lembro-metão bem! Gerald e Robert eram ambos esquentados e sempre prontos para umabriga.

Coisa muito natural em meninos sadios...

- Oh, muito natural!

- E o querido Walter sempre quieto e paciente. Um dia Robert pegou umaviãozinho que Walter levara um tempo enorme para armar - ele era muitojeitoso - e Robert, que era bastante inteligente mas pouco hábil, estragou o avião.Quando entrei no quarto Robert estava caído no chão e Walter batia nele comtanta violência que ele quase desmaiou. Tive que segurar Walter com toda forçapara fazê-lo parar, e ele só dizia: - Ele fez de propósito... Ele fez de propósito. Euvou matá-lo! Sabe, fiquei muito assustada. As crianças sentem as coisas demaneira tão intensa, não é mesmo?

- É verdade, respondeu Miss Marple, pensativa. Em seguida voltou ao assuntoanterior.

- E então, finalmente, o noivado foi rompido. Que fim levou a moça?

- Voltou para casa. A bordo, na volta, teve outro caso e dessa vez casou-se com ohomem. Um viúvo com uma filha. Um homem que acaba de perder a mulher ésempre um alvo fácil - indefeso, coitado! Ela casou-se com ele e foram morar

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numa casa chamada St. Catherine, do outra lado da cidade, pertinho do hospital.O casamento, evidentemente, não durou. Ela abandonou o marido menos de umano depois. Fugiu com outro homem.

- Meu Deus! exclamou Miss Marple, sacudindo a cabeça. - Seu filho teve sorteem escapar!

- É o que sempre digo a ele.

- E ele desistiu da plantação de chá por causa da saúde?

A Sra. Fane tornou a franzir as sobrancelhas.

- Aquela vida não lhe convinha, respondeu ela. - Voltou para casa uns seis mesesdepois da moça.

- Deve ter sido uma situação delirada, observou Miss Marple. - Se a moça estavamorando aqui, na mesma cidade...

- Walter foi maravilhoso! exclamou a mãe. - Comportou-se como se nada tivesseacontecido. Eu, pessoalmente, achei - e disse isso a ele - que seria aconselhávelromper relações de vez. Afinal de contas, ficaria desagradável os dois seencontrarem. Mas Walter insistiu em continuar sendo amigo. Freqüentava a casada maneira mais informal e brincava com a menina. Aliás, por falas nisso, amenina voltou para cá. Está casada.

Foi ao escritório de Walter para fazer um testamento. O sobrenome dela agora éReed.

- Sr. e Sra. Reed? Eu os conheço. Um jovem casal muito simpático. Imagine só...então ela é a filha...

- Filha do primeiro casamento. A primeira esposa morreu na Índia. Coitado doMajor... Como era mesmo o nome dele?... Hallway, ou coisa parecida... Coitado,ficou arrasado quando aquela descarada o abandonou. Por que será que as pioresmulheres atraem os melhores homens? Não posso compreender!

- E o jovem que ela namorou primeiro? Acho que a senhora disse que era umfuncionário do escritório de seu filho... Que fim ele levou?

- Vai indo muito bem. É dono de uma frota de ônibus de turismo. Daffodil. Osônibus são amarelo vivo. Muito vulgar. O nome dele é Afflick.

- Afflick? perguntou Miss Marple.

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- Jackie Afflick. Um sujeito metido e cavador. Decidido a vencer na vida. É

provável que tenha namorado Helen Kennedy por causa disso. Filha de médico...isso melhoraria a situação social dele.

- E essa Helen nunca mais voltou a Dillmouth?

- Não. Ficamos livres dela. A esta altura provavelmente está levando uma vidadaquelas. Fiquei com pena do Dr. Kennedy. Não foi culpa dele. A segunda esposade seu pai era um amor, muitos anos mais moça que ele. Acho que foi dela queHelen herdou esse temperamento selvagem. Sempre achei...

A Sra. Fane interrompeu a frase no meio.

- Walter chegou, disse ela. Seu ouvido de mãe percebera sons familiares quevinham do saguão. A porta se abriu e Walter entrou.

- Meu filho, esta é Miss Marple. Toque a campainha, meu filho, para pedirmosum chá fresco.

- Não se incomode, mamãe. Já tomei uma xícara.

- É claro que vamos tomar mais chá e uns botinhos, Beatrice, falou a Sra. Fane àempregada que entrara para pegar o bule.

- Sim, senhora.

Sorrindo de maneira simpática, Walter Fane observou: - Acho que minha mãeestá me mimando.

Miss Marple fez um comentário adequado e enquanto isso, observou Walter.

Uma pessoa de aspecto amável e tranqüilo, ligeiramente tímido - sem-graça.

Uma personalidade bem indefinida. O tipo do jovem dedicado, para o qual asmulheres não ligam, e com quem só se casam porque não são correspondidaspelo homem que amam. Walter, o que está sempre ali. Coitado do Walter, oquerido da mamãe... O

pequenino Walter Fane que atacou o irmão mais velho e queria matá-lo...

Miss Marple ficou pensativa.

CAPÍTULO XVII

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RICHARD ERSKINE

Antell Manor tinha um aspecto desagradável. Era uma casa branca atrás da qualse viam colinas áridas. Chegava-se à casa por uma alameda cheia de curvas emmeio a densos arbustos.

- Por que é que viemos? disse Giles a Gwenda. - O que vamos dizer?

- Já combinamos tudo.

- Bem, até certo ponto... Tivemos sorte de a prima da tia da irmã do cunhado daMiss Marple, ou seja lá qual for o parentesco, morar aqui perto... Mas daí para sefazer uma visita e perguntar ao dono da casa sobre seus casos de amor antigosvai uma grande distância.

- E foi há tanto tempo. Talvez... talvez ele nem se lembre dela.

- Talvez. E talvez nem tenha havido casa de amor nenhum.

- Giles será que estamos fazendo papel de palhaços?

- Não sei... Às vezes tenho essa sensação. Não sei porque estamos nos metendonisso tudo. A esta altura, que importância tem isso?

- Tanto tempo depois... Sim, eu sei... Tanto Miss Marple quanto o Dr. Kennedy nosdisseram que não devíamos nos meter nisso. Por que não desistimos, Giles? Oque é que nos faz insistir? Será ela?

-

Ela?

- Helen. Será por isso que me lembro? Será que minha lembrança infantil é aúnica ligação que ela tem com a vida... com a verdade? Será que Helen está meusando -

e a você também - para que a verdade apareça?

- Porque ela teve uma morte violenta?...

- É. Dizem... os livros dizem... que às vezes elas não encontram repouso...

- Acho que você está fantasiando, Gwenda.

- Talvez. De qualquer modo, podemos. . . escolher. Isto é apenas uma visita

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social. Não precisa ser mais do que isso. . , a menos que a gente queira que seja...

Giles sacudiu a cabeça.

- Vamos continuar. Não podemos desistir.

- Sim... Você tem razão. Mesmo assim, Giles, acho que estou com medo...

II

- Estão procurando uma casa? perguntou o Major Erskine.

Estendeu para Gwenda um prato de sanduíches. Gwenda serviu-se e olhou para odono da casa. Richard Erskine era um homem baixo, de cabelos grisalhos, olharcansado e pensativo. Sua voz era grave, ligeiramente arrastada, agradável. Nãotinha nada de extraordinário, pensou Gwenda consigo mesma, mas era, semdúvida, atraente...

Na realidade não era tão bonito quanto Walter Fane, mas enquanto que a maioriadas mulheres passavam por Walter Fane sem olhar para ele, não podiam passarpor Erskine sem prestar atenção. Fane era indefinido. Erskine, apesar de seu artranqüilo, tinha personalidade. Falava de assuntos banais, de maneira banal, mashavia alguma coisa...

algo que as mulheres reconhecem logo e diante do que reagem apenas comomulheres.

De maneira quase inconsciente, Gwenda arrumou a saia, passou a mão numcacho de cabelo e retocou os lábios. Há dezenove anos atrás Helen poderia ter-seapaixonado por aquele homem. Disso Gwenda tinha certeza.

Levantou os olhos e encontrou o olhar da dona da casa, observando-a fixamente.

Enrubesceu sem querer. A Sra. Erskine estava conversando com Giles, masolhava para Gwenda e seu olhar era um misto de aprovação e desconfiança.Janet Erskine era uma mulher alta e de voz grave, quase tão grave quanto a deum homem. Tinha uma compleição atlética e usava um casaco de tweed muitobem cortado, com grandes bolsos. Parecia mais velha que o marido, mas talvezna realidade não fosse, pensou Gwenda. Tinha uma expressão abatida. Umamulher infeliz, carente.

Aposto que ela inferniza a vida dele, pensou Gwenda consigo mesma.

E, interrompendo seus pensamentos, continuou a conversar em voz alta.

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- A tarefa de procurar uma casa é desanimadora, disse ela. As descrições doscorretores são maravilhosas, mas quando se vai ver a casa é sempre horrível.

- Estão pensando em morar nas vizinhanças?

- Bem... este é um dos lugares em que pensamos. Na realidade é porque ficaperto da Muralha de Adriano. Giles sempre teve fascinação pela Muralha deAdriano.

Compreende, talvez o senhor ache estranho, mas qualquer lugar da Inglaterra émais ou menos igual para nós. Eu sou da Nova Zelândia e não tenho nenhumaligação aqui. E

Giles passou férias em casa de diversas tias, em diversos lugares, de modo quetambém não tem nenhuma ligação especial. A única coisa que não queremos émorar perto de Londres. Queremos o campo.

Erskine

sorriu.

- Não tenha dúvidas de que aqui é campo mesmo! É completamente isolado.

Temos poucos vizinhos, e em casas muito afastadas.

Gwenda percebeu um tom levemente amargo naquela voz tão agradável. Teveuma súbita visão de uma vida solitária - dias de inverno curtos e escuros, com ovento assobiando na chaminé, as cortinas fechadas, ele trancado, trancado comaquela mulher de olhar infeliz - e os poucos vizinhos morando em casas bemafastadas.

Em seguida a visão desapareceu. Era verão novamente, com as portas abertaspara o jardim, o perfume das rosas entrando pela sala.

- Esta casa é antiga, não é? perguntou Gwenda.

Erskine fez sinal que sim.

- Pertence a minha família há quase trezentos anos.

- É uma linda casa. O senhor deve ter bastante orgulho dela...

- Hoje em dia está muito velha. Os impostos são tão altos que fica difícilconservar as coisas direito. Mas agora que as crianças já não moram conosco a

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pior fase já passou.

- Quantos filhos o senhor tem?

- Dois rapazes. Um deles é oficial do exército. O outro acabou de se diplomar emOxford. Vai trabalhar numa editora.

Seu olhar se dirigiu para a lareira e Gwenda acompanhou-o, vendo um retrato dedois rapazes - de uns dezoito e dezenove anos, mais ou menos. Deve ter sidotirado há alguns anos, pensou Gwenda. A expressão de Erskine era de orgulho eafeto.

- Não é por serem meus filhos, mas são bons meninos, disse ele.

- São muito simpáticos, respondeu Gwenda.

- Sim, disse Erskine. - Acho que vale a pena - realmente. Refiro-me a fazersacrifícios pelos filhos, acrescentou ante o olhar interrogativo de Gwenda.

- Suponho que... muitas vezes... tenha-se de abrir mão de muita coisa, observouGwenda.

- Muita coisa, às vezes...

Mais uma vez Gwenda sentiu um tom sombrio, porém a Sra. Erskineinterrompeu, perguntando com sua voz grossa e autoritária:

- Vocês estão mesmo procurando casa por aqui? Acho que não conheçonenhuma que sirva, nos arredores.

E se soubesse não me diria, pensou Gwenda com súbita malícia. Essa velha bobaestá com ciúmes. Está com ciúmes porque estou conversando com o marido delae porque sou jovem e atraente!

- Depende do prazo de vocês, observou Erskine.

- Não temos pressa nenhuma, respondeu Giles em tom animado. - Queremosencontrar uma coisa da qual gostemos muito. Por enquanto temos uma casa emDillmouth, na costa sul.

O Major Erskine levantou-se e foi pegar um cigarro numa caixa em cima deuma mesa junto à janela.

- Dillmouth, repetiu a Sra. Erskine. Sua voz era inexpressiva. Seus olhos estavam

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fixos na nuca do marido.

- Um lugarejo muito bonitinho, disse Giles. - Conhece?

Houve um instante de silêncio e em seguida a Sra. Erskine respondeu no mesmotom inexpressivo:

- Há muitos anos atrás passamos algumas semanas lá, no verão. Não gostamosmuito do clima.

- Isso mesmo, disse Gwenda. - É exatamente o que achamos. Giles e eupreferimos um clima mais revigorante.

Erskine aproximou-se com a caixa de cigarros. Ofereceu um a Gwenda.

- Isto aqui é muito revigorante, disse ele. Sua voz continha certa amargura.

Gwenda olhou para Erskine enquanto acendia o cigarro.

- Lembra-se bem de Dillmouth? perguntou ela com ar ingênuo.

Os lábios de Erskine tremeram no que pareceu a Gwenda um súbito acesso dedor. A resposta veio em tom neutro.

- Acho que me lembro muito bem. Ficamos hospedados no... deixe-me lembrar...

no Roy al George... não, no Royal Clarence!

- Ah, sim, é aquele hotel antigo e tão simpático! exclamou Gwenda. - Nossa casafica ali perto. Chama-se Hillside, mas antigamente o nome era... St. Mary... não éisso, Giles?

- St. Catherine, corrigiu Giles.

Dessa vez não houve dúvida quanto à reação. Erskine virou-se abruptamente decostas. A xícara de chá da Sra. Erskine por pouco não caiu no chão.

- Gostariam de ver o jardim? perguntou ele subitamente.

- Oh, com o maior prazer!

Saíram pela porta janela. O jardim era muito bem tratado com canteiroscompridos e caminhos de pedra. Gwenda achou que quem cuidava daquilo era oMajor Erskine, pois ao falar sobre as rosas, sobre as plantas, o rosto triste deErskine se iluminava. Era evidentemente um entusiasta da jardinagem.

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Quando finalmente se despediram e já estavam dentro do carro, Giles perguntouhesitante: - Você... deixou lá?

Gwenda fez sinal que sim.

- Perto da segunda moita de delfínios, respondeu ela. Olhou para o dedo e rodoua aliança com ar distraído.

- E se nunca mais encontrar?

- Bem, não é meu verdadeiro anel de noivado! Não ia correr esse risco!

- Que bom!

- Sou muito sentimental em relação àquele anel. Lembra do que você me dissequando o colocou no meu dedo? Uma esmeralda verde para uma gatinhamisteriosa de olhos verdes.

- Acho que nossa linguagem amorosa deve parecer esquisita para uma pessoa dageração de Miss Marple, por exemplo.

- Tão boazinha! O que será que está fazendo a uma hora dessas? Tomando sol?

- Está preparando alguma, se é que eu a conheço! Fazendo perguntas aqui,bisbilhotando ali... Espero que não exagere.

- Para uma senhora idosa é coisa muito natural. Se fôssemos nós as pessoasestranhariam.

- Por isso é que não gosto... Interrompeu a frase e depois prosseguiu. - Não gostode você ter que fazer isso. Não suporto a sensação de que fico sentado em casa emando você fazer tudo.

Gwenda passou carinhosamente a mão no rosto do marido.

- Eu sei, querido, eu sei, mas você tem que concordar que é complicado! É umainsolência interrogar um homem sobre sua vida amorosa pregressa - mas é umtipo de insolência em que uma mulher se sai muito bem... se for esperta. E euacho que sou esperta.

- Eu sei. Mas se Erskine for o homem que estamos procurando...

- Acho que não é, observou Gwenda com ar pensativo.

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- Você acha que estamos na pista errada?

- Não. Acho que ele esteve mesmo apaixonado par Helen, mas ele é bom, Giles,muito bom. Não é um estrangulador!

- Você não tem muita experiência de estranguladores, não é, Gwenda?

- Não, mas tenho intuição feminina.

- Acho que muitas vítimas de estranguladores disseram isso. Mas, falando sério,Gwenda, tome cuidado, por favor!

- É claro. Fiquei com tanta pena dele... com aquela mulher que é uma fera!

Aposto que ele é muito infeliz.

- Ela é uma mulher estranha... Meio assustadora, não sei por que.

- É, tem um jeito sinistro. Você viu como ela ficou olhando para mim o tempotodo?

- Bem, espero que o plano dê certo!

III

Na manhã seguinte o plano foi posto em execução. Giles, sentindo-se como umdetetive contratado para um flagrante num caso de divórcio, colocou-se numlocal de onde podia observar o portão da entrada de Antell Manor. Por volta deonze e meia comunicou a Gwenda que tudo estava bem. A Sra. Erskine saíra numpequeno Austin, dirigindo-se para o mercado, que ficava a três milhas dedistância. A pista estava livre.

Gwenda estacionou o carro em frente à porta e tocou a campainha. Perguntoupela Sra. Erskine e foi informada de que ela não estava. Perguntou pelo MajorErskine e responderam que se encontrava no jardim. Ao ver Gwenda seaproximar, ele parou de cuidar do canteiro de flores.

- Desculpe incomodá-lo, disse Gwenda, - mas acho que ontem deixei meu anelcair aqui no jardim. Lembro que quando acabamos de tomar chá ele estava nomeu dedo. É meio largo. Eu ficaria tristíssima se o perdesse, porque é meu anelde noivado.

A busca teve início. Gwenda refez o caminho da véspera, tentou se lembrar ondeficara em pé, em que flores tinha tocado. Finalmente o anel foi encontrado junto

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a uma grande moita de delfínios. Gwenda demonstrou efusivamente sua alegria.

- Aceita um drinque, Sra. Reed? Um copo de cerveja? Um sherry? Ou preferecafé?

- Muito obrigada, mas não quero nada. Só um cigarro. Sentou-se num banco eErskine sentou-se ao seu lado. Durante alguns minutos ficaram em silêncio. Ocoração de Gwenda batia em ritmo acelerado. Não podia recuar. Precisava agir.

- Queria lhe perguntar uma coisa, disse ela. - Talvez o senhor me acheterrivelmente intrometida, mas eu preciso muito saber... e o senhor éprovavelmente a única pessoa que pode me contar. Acho que o senhor já esteveapaixonado por minha madrasta.

Erskine virou-se para Gwenda com ar atônito.

-

Sua

madrasta?

- Sim. Helen Kennedy. Depois de casada o nome dela era Helen Halliday.

- Compreendo. O homem sentado ao lado de Gwenda ficou muito quieto. Seusolhos fixavam a grama com ar ausente. A cinza do cigarro ia aumentando. Portrás daquele ar tão quieto Gwenda sentiu o turbilhão interior daquele homem cujobraço estava encostado ao seu.

Como se estivesse respondendo a uma pergunta que fizera a si mesmo, Erskinedisse: - Cartas, suponho que...

Gwenda não respondeu.

- Nunca escrevi muito para ela... duas cartas, talvez três. Ela disse que haviajogado fora... mas as mulheres nunca jogam cartas fora, não é? E então caíramem suas mãos e a senhora quer saber.

- Quero saber mais coisas sobre ela. Eu... eu gostava muito dela, se bem quefosse bem pequena quando Helen foi embora.

- Ela foi embora?

- O senhor não sabia?

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O olhar cândido e surpreso de Erskine encontrou o de Gwenda.

- Não tenho notícias dela, disse ele, - desde... desde aquele verão em Dillmouth.

- Então não sabe onde ela está agora?

- Como é que posso saber? Isso foi há anos atrás... há anos! Tudo acabado eliquidado. Esquecido.

-

Esquecido?

Ele sorriu com amargura.

- Não, talvez não esteja esquecido... A senhora é muito observadora, Sra. Reed.

Mas fale sobre ela. Ela não... não morreu, não é?

Um vento frio soprou de repente, fazendo ambos estremecerem.

- Não sei se está morta ou não, respondeu Gwenda. - Não sei nada sobre ela.

Achei que talvez o senhor soubesse.

Erskine sacudiu a cabeça e Gwenda prosseguiu.

- Compreende, ela foi embora de Dillmouth naquele verão. De repente, certanoite, sem falar com ninguém. E nunca mais voltou.

- E a senhora achou que talvez eu tivesse notícias dela?

-

Exato.

Ele tornou a sacudir a cabeça.

- Não. Nem uma só palavra. Mas certamente o irmão dela - o tal médico - moraem Dillmouth. Ele deve saber. 0u será que também morreu?

- Não, está vivo. Mas também não sabe. Todos pensaram que ela fugira... comalguém.

Erskine virou a cabeça e olhou para Gwenda. Um olhar triste e profundo.

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- Pensaram que Helen fugiu comigo?

- Bem, era uma possibilidade.

- Será que era? Acho que não. Não foi nada disso. Ou será que fomos loucos...

loucos que perderam conscientemente a oportunidade de serem felizes?

Gwenda não respondeu. Mais uma vez Erskine virou-se e olhou para ela.

- É melhor eu lhe contar. Não há muito o que dizer, mas não quero que faça maujuízo de Helen. Conhecemo-nos num navio, a caminho da Índia. Uma dascrianças tinha ficado doente e minha mulher ia tomar o navio seguinte. Helen secasaria com um homem que estava na Índia. Não o amava. Era apenas umvelho amigo, bom e delicado, e ela queria sair de casa porque não era feliz.Ficamos apaixonados.

Erskine fez uma pausa.

- Sei que sempre se diz isso, mas não foi - quero deixar isso bem claro - não foiapenas um caso de amor comum. Foi sério. Nós dois ficamos... bem,profundamente abalados. E não havia nada a fazer. Eu não podia largar Janet e ascrianças. Helen concordava comigo. Se fosse apenas por causa de Janet... mashavia os meninos. Não havia esperança. Combinamos dizer adeus e tentaresquecer.

Deu uma risadinha seca e irônica.

- Esquecer? Nunca esqueci, nem um instante. A vida era um inferno. Nãoconseguia parar de pensar em Helen...

Bem, ela acabou não casando com o tal sujeito. Na hora H não conseguiuenfrentar a situação. Voltou para a Inglaterra e na viagem conheceu outrohomem -

imagino que seja seu pai. Escreveu-me poucos meses depois contando o quefizera.

Disse que ele estava muito infeliz por ter perdido a esposa e que tinha uma filha.Ela achou que podia fazê-lo feliz e que era a melhor decisão. Escreveu deDillmouth. Uns oito meses depois meu pai morreu e eu voltei para a Inglaterra.Queríamos tirar umas férias antes de vir morar aqui e minha mulher sugeriuDillmouth. Uma amiga informou-lhe que era um lugar bonito e tranqüilo.Evidentemente ela não sabia de nada sobre Helen. Imagine só minha tentação!

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Vê-la de novo! Ver que tal era o homem com quem se casara!

Houve uma pequena pausa e Erskine prosseguiu.

- Fomos, e ficamos no Royal Clarence. Foi um erro. Foi um inferno tornar a verHelen... Ela parecia estar bastante feliz - não sei... Evitava estar a sós comigo...Não sabia se ela ainda gostava de mim ou não... Talvez tivesse esquecido. Achoque minha mulher desconfiou de alguma coisa... Ela... ela é muito ciumenta -sempre foi.

E terminou bruscamente: - É só isso. Partimos de Dillmouth ...

- No dia 17 de agosto, completou Gwenda.

- Foi dia 17? É possível. Não me lembro com exatidão.

- Era sábado, disse Gwenda.

- Tem razão. Lembro que Janet disse que talvez fosse um dia ruim para viajarpara o norte... mas não sei...

- Por favor, tente se lembrar, Major Erskine. Quando foi que o senhor viu minhamadrasta - Helen - pela última vez?

Ele sorriu. Um sorriso suave, cansado.

- Não preciso fazer força. Vi-a na véspera de partir, à noite, na praia. Eucaminhei até a praia depois do jantar... e ela estava lá. Não havia ninguém porperto.

Andei com ela de volta para casa. Atravessamos o jardim...

- A que horas?

- Não sei . . . Deviam ser umas nove horas.

- E disseram adeus?

- E dissemos adeus. Erskine tornou a rir. - Oh, não foi o tipo de adeus que asenhora está imaginando. Foi muito rápido e brusco. Helen me disse: - Por favor,vá embora. Vá depressa. Prefiro não... Ela interrompeu a frase e... e eu... fuiembora.

- Voltou para o hotel?

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- Voltei mais tarde. Primeiro dei uma longa caminhada pelo campo.

- É difícil lembrar datas... depois de tantos anos, mas acho que nessa mesmanoite ela foi embora... e nunca mais voltou.

- Compreendo. E como eu e minha mulher fomos embora no dia seguinte aspessoas espalharam o boato de que ela fugira comigo. Que gente encantadora!

- Bem, quer dizer que ela não fugiu com o senhor?

- Meu Deus, não! Nunca pensamos nisso!

- Então, perguntou Gwenda, - por que acha que ela foi embora?

Erskine franziu as sobrancelhas. Mudou de atitude, tornou-se interessado.

- Compreendo, disse ele. - É uma pergunta difícil. Ela não... não deixou nenhumaexplicação?

Gwenda ficou pensativa e em seguida exprimiu sua opinião pessoal.

- Acho que ela não deixou explicação nenhuma. O senhor acha que ela foiembora com alguém?

- Não, é claro que não.

- O senhor parece ter certeza disso.

-

E

tenho

mesmo.

- Então por que ela foi embora?

- Se ela foi embora... subitamente... assim... só vejo uma explicação possível. Elaestava fugindo de mim.

- Do senhor?

- Sim. Talvez estivesse com medo de que eu tentasse vê-la de novo... de que eu aperseguisse. Deve ter visto que eu ainda estava... louco por ela... Sim, deve ter

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sido isso.

- Isso não explica, retorquiu Gwenda, - por que ela nunca mais voltou. Diga umacoisa... Helen contou-lhe alguma coisa sobre meu pai? Estava preocupada comele, ou...

com medo dele?

- Medo dele? Por quê? Oh, compreendo, a senhora acha que ele podia estar comciúmes. Era ciumento?

- Não sei. Ele morreu quando eu ainda era muito criança.

- Ah, entendo. Não, pensando bem, ele sempre me deu a impressão de umapessoa normal e agradável. Gostava de Helen, orgulhava-se dela. Não, eu é quetinha ciúmes dele.

- Pareciam felizes?

- Pareciam. Fiquei contente... e ao mesmo tempo magoado... ao verificar isso...

Não, Helen nunca me disse nada sobre ele. Como já lhe falei, raramenteficávamos sozinhos e não fazíamos confidências. Mas agora, já que a senhorafalou no assunto, lembro que achei Helen preocupada...

-

Preocupada?

- Sim. Achei que talvez fosse por causa de minha mulher... Mas era mais do queisso.

Olhou de modo penetrante para Gwenda.

- Estaria com medo do marido? Estaria ele com ciúmes de outros homens?

- O senhor parece achar que não.

- O ciúme é uma coisa muito estranha. Às vezes pode estar tão escondido queninguém desconfia. Erskine estremeceu. Mas pode ser assustador... muitoassustador...

- Gostaria de saber mais uma coisa, disse Gwenda.

Um carro subia a alameda. - Minha mulher está chegando das compras, disse o

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Major Erskine.

Num instante ele se transformou numa pessoa completamente diferente. Tornou-se formal e sua fisionomia era inexpressiva. Um leve tremor demonstrava queestava nervoso.

A Sra. Erskine aproximou-se da casa e seu marido foi ao seu encontro.

- A Sra. Reed deixou cair um anel no jardim, ontem à tarde, disse ele.

- É mesmo? retorquiu a Sra. Erskine com rispidez.

- Bom dia, disse Gwenda. - Felizmente já o encontrei.

- Que sorte!

- É mesmo. Não queria perdê-lo. Bem, preciso ir embora.

A Sra. Erskine ficou em silêncio.

- Vou acompanhá-la até o carro, disse o Major Erskine.

E seguiu atrás de Gwenda pelo terraço. A voz de sua mulher chamou-o em tomagudo.

- Richard! Um telefonema urgente para você! Explique à Sra. Reed.

- Oh, não faz mal! apressou-se Gwenda em dizer. - Por favor, não se incomode!

Correu pelo terraço e deu a volta na casa para chegar ao lugar em que tinhadeixado o carro.

Subitamente estancou. A Sra. Erskine estacionara seu carro de tal maneira queGwenda achou que não poderia passar. Hesitou, e em seguida voltou lentamentepara o terraço.

Chegando junto às portas-janelas, parou subitamente. A voz da Sra. Erskine, emtom alto e profundo, chegava a seus ouvidos.

- Não me interessa o que você está dizendo. Você combinou tudo. Combinouontem. Combinou com essa moça ela vir aqui enquanto eu estava em Daith.Você continua o mesmo... qualquer garota bonitinha serve! Não admito isso,ouviu? Não admito!

A voz de Erskine interrompeu-a num tom baixo, quase de desespero.

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- Janet, às vezes acho que você está maluca!

- Não estou maluca coisa nenhuma! Quem está doido E você! Não deixa em pazas mulheres!

- Janet, você sabe que não é verdade!

- É verdade sim! E há muito tempo... na mesma cidade de onde essa moçaveio...

Dillmouth. Você ousa me dizer que não estava apaixonado por aquela loura, amulher de Halliday?

- Será que você não consegue esquecer nada? Por que fica ruminando essascoisas? Só serve para perturbar você e...

- A culpa é sua! Você me magoa profundamente!... Não admito, estou avisando.

Não vou admitir isso! Marcando encontros! Rindo de mim pelas costas! Você nãoliga para mim... nunca ligou! Vou me matar! Vou me atirar de um penhasco... Euqueria morrer...

- Janet... Janet... Pelo amor de Deus...

A voz da Sra. Erskine sumira. Ouvia-se apenas o som de soluços desesperados.

Gwenda afastou-se na ponta dos pés e voltou para junto do carro. Pensou por uminstante e em seguida tocou a campainha.

- Será que alguém pode... tirar esse carro daí? perguntou ela. Acho que assim nãodá para o meu passar.

A empregada foi para dentro de casa e logo um homem se aproximou, vindo dopátio. Tirou o boné para cumprimentar Gwenda, entrou no Austin e levou-o parao pátio. Gwenda pegou seu carro e dirigiu à toda para o hotel onde Giles aesperava.

- Como você demorou! exclamou ele à guisa de saudação.

- Conseguiu alguma coisa?

- Consegui. Agora conheço toda a história. É muito patética. Ele estavaloucamente apaixonado por Helen.

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E contou os acontecimentos da manhã.

- Acho, disse ela, finalizando, - que a Sra. Erskine é meio doida. Estava fora de si.Agora entendo o que ele quis dizer quando contou que ela era ciumenta. Dequalquer modo, ficamos sabendo que não foi Erskine quem fugiu com Helen eque ele não sabe nada sobre a morte dela. Estava viva na noite em que sedespediram.

- É... retrucou Giles. - Pelo menos é o que ele diz.

Gwenda fez um ar indignado.

- Isso, repetiu Giles, - é o que ele diz!

CAPÍTULO XVIII

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A TREPADEIRA

Miss Marple, junto à porta-janela do terraço, lutava com uma trepadeira. Era umtrabalho difícil, pois, por baixo da terra, a trepadeira invadia tudo, como sempre.Mas pelo menos durante algum tempo os delfínios teriam mais espaço.

A Sra. Cocker apareceu na janela da sala de estar.

- Desculpe, senhora, mas Dr. Kennedy está aí. Quer saber quanto tempo o Sr. e aSra. Reed vão ficar fora e eu disse que não tinha certeza mas que ia perguntar àsenhora.

Quer que peça a ele para vir até aqui.

- Oh! Oh, sim, por favor, Sra. Cocker!

Dentro em pouco a Sra. Cocker voltou com o visitante. Miss Marple apresentou-se de maneira bastante confusa.

-... E então combinei com minha querida Gwenda que viria cuidar um pouco dojardim enquanto ela estivesse fora. Sabe, acho que esse jardineiro, Foster, estáabusando dos meus jovens amigos. Vem duas vezes por semana, toma umaporção de xícaras de chá, conversa muito e - pelo menos na minha opinião - nãotrabalha nada.

- É... respondeu o Dr. Kennedy, com ar ausente. - É, todos eles são iguais.

Miss Marple examinou-o com ar apreciativo. Era um homem mais velho do queimaginara, baseada na descrição do casal Reed. Prematuramente envelhecido,pensou consigo mesma. Parecia, também, preocupado e infeliz. Ficou em pé,acariciando com os dedos o queixo firme.

- Viajaram, não é? perguntou ele. - Sabe quando voltam?

- Oh, não vão demorar muito tempo! Foram visitar uns amigos no norte daInglaterra. Os jovens são tão irrequietos! Estão sempre indo de um lado paraoutro.

- É, respondeu Kennedy. - É verdade.

Fez uma pausa e prosseguiu meio hesitante.

- Giles me escreveu pedindo uns papéis... um as cartas... se eu conseguisseencontrá-las...

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Hesitou novamente e Miss Marple perguntou:

- As cartas de sua irmã?

Kennedy lançou-lhe um olhar rápido e agudo.

- Quer dizer que a senhora... conhece o assunto, não é? É parente deles?

- Apenas amiga, respondeu Miss Marple. - Aconselhei-os da melhor maneirapossível, mas as pessoas raramente aceitam conselhos... É pena, mas é assim...

- Qual foi o seu conselho? perguntou ele, curioso.

- Que deixassem a morte em paz, respondeu Miss Marple em tom firme.

Kennedy sentou-se num banco rústico e nada confortável.

- É verdade, disse ele. - Gosto de Gwennie. Era uma criança tão boazinha. Deviater-se tornado uma adulta muito sensata. Acho que vai se meter em encrencas.

- Existem tantos tipos de encrenca... observou Miss Marple.

- Como? Ah, sim... é mesmo! Suspirou.

- Giles Reed me escreveu pedindo as cartas de minha irmã, - as que me mandoudepois que foi embora daqui - e uma amostra de sua letra verdadeira. Olhou paraMiss Marple com um olhar penetrante. - Compreende o que isso significa, não é?

- Acho que sim, respondeu Miss Marple.

- Estão achando que, quando Kelvin Halliday dizia que estrangulara a mulherestava falando a verdade. Acham que as cartas mandadas por Helen, depois deter ido embora, não foram escritas por ela - acreditam que foram forjadas. Paraeles, ela não saiu viva desta casa.

- E o senhor, disse Miss Marple em tom afável, - também não tem tanta certezaassim, não é?

- Naquela época eu tinha certeza... Kennedy olhava fixo para a frente. - Pareciatudo absolutamente claro. Era pura alucinação de Kelvin. Não havia corpo,desaparecera a mala com roupas... O que mais eu podia achar?

- E sua irmã estava... há algum tempo... digamos, interessada... em certo senhor?

Kennedy olhou para Miss Marple. Seus olhos exprimiam uma dor profunda.

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- Eu amava minha irmã, respondeu ele, - mas tenho que admitir que Helenestava sempre metida com algum homem. Há mulheres que são assim... Nãoconseguem ser diferentes.

- Na ocasião tudo lhe pareceu claro, disse Miss Marple. - Mas agora já não estátão claro. Por quê?

- Porque, respondeu Kennedy com toda franqueza, - acho incrível que, se Helenestá viva, não tenha se comunicado comigo durante todos esses anos. E semorreu, é igualmente estranho que eu não tenha sido avisado. Bem...

Levantou-se e tirou alguma coisa do bolso.

- É o que posso fazer para ajudar. Devo ter jogado fora a primeira carta querecebi de Helen. Não consegui encontrá-la. Mas guardei a segunda - a que davaa posta restante como endereço. E aqui está, para se poder comparar, o únicoexemplar da escrita de Helen que encontrei. É uma lista de sementes e bulbospara plantação. Uma cópia guardada por ela de alguma encomenda feita. A letrada carta me parece igual à da encomenda, mas não sou nenhum perito. Voudeixar aqui para quando Giles e Gwenda voltarem. Acho que não vale a penamandar pelo correio.

- Oh, não! Creio que eles voltarão amanhã ou depois...

O doutor assentiu com a cabeça. Ficou em pé, olhando para o terraço com arausente.

- Sabe o que está me preocupando? perguntou ele subitamente.

- Se Kelvin Halliday realmente matou sua mulher, deve ter escondido o corpo ouse livrou dele de algum modo... e isso leva a crer que toda a história contada porele foi uma invenção... ele já havia arrumado aquela mala cheia de roupas paradar a impressão de que Helen tinha ido embora... que chegou até a dar um jeitode mandar cartas vindas do exterior... Significa, na realidade, que foi um crimefrio e premeditado. Gwennie era uma criança muito boa. Não é bom ter tido umpai paranóico, mas é mil vezes pior o pai ter sido um assassino.

Virou-se em direção à janela que se achava aberta.

- Sua irmã estava com medo de quem, Dr. Kennedy ? perguntou Miss Marple.

Kennedy virou-se para Miss Marple com ar espantado.

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- Com medo? De ninguém, que eu saiba.

- Estava só pensando... Por favor, desculpe estar fazendo perguntas indiscretas...

mas houve um rapaz, não houve? ... Quer dizer, um envolvimento... quando elaera muito moça. Acho que o nome dele era Afflick.

- Oh, esse aí! Foi um envolvimento bobo, muito comum nessa idade. Um rapazinconveniente, oportunista, de outra classe social. Mais tarde ele se meteu numaencrenca.

- Só estava pensando se ele era um tipo vingador.

Kennedy deu um sorriso cético.

- Oh, acho que não ficou tão atingido assim. De qualquer modo, como já lhedisse, ele se meteu numa encrenca e foi embora da cidade.

- Que tipo de encrenca foi?

- Oh, nenhum crime! Apenas indiscrição. Andou falando sobre os negócios deseu patrão.

- O patrão era o Sr. Walter Fane, não é?

Kennedy pareceu um pouco surpreso.

- Sim, sim... Agora me lembro que ele trabalhava na firma Fane e Watchman.

Era um pequeno funcionário.

Apenas um pequeno funcionário? Miss Marple, depois de ter se despedido do Dr.Kennedy, voltou à luta com a trepadeira, mas ficou pensativa...

CAPÍTULO XIX

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O Sr. KIMBLE FALA

- Não sei, tenho certeza que não, disse a Sra. Kimble.

Seu marido, diante do que considerava um ultraje, viu-se obrigado a finalmentefalar.

Estendeu

a

xícara.

- Em que é que você está pensando, Lily? perguntou ele. - Não tem açúcar!

A Sra. Kimble apressou-se a remediar o ultraje e prosseguiu na elaboração deseu tema.

- Estou pensando naquele anúncio, disse ela. - Está escrito Lily Abbott, assimmesmo. E ainda dizem "ex-empregada em St. Catherine, Dillmouth". Sou eu, nãopode haver engano.

- Ahn, resmungou o Sr. Kimble.

- Depois de tantos anos... Jim, você tem que concordar que é esquisito!

-

Ahn...

- Bem, o que é que eu devo fazer, Jim?

- Deixe para lá.

- E se for dinheiro?

Ouviu-se um gorgolejar enquanto o Sr. Kimble esvaziou toda a xícara de chá afim de se preparar para o esforço mental de fazer um discurso. Estendeu axícara e disse um lacônico: - Mais! Em seguida iniciou sua fala.

- Naquela ocasião você falava muito do que tinha acontecido em St. Catherine.

Eu nem ligava - achava que era tudo bobagem... mexerico de mulher. Talvez nãofosse.

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Talvez tenha acontecido alguma coisa. Se tiver acontecido é caso de polícia evocê não vai se meter nisso. Está tudo acabado, não é? Deixe isso para lá,mulher!

- É muito fácil dizer. Pode ser que eu tenha uma herança para receber. Pode serque ela só tenha morrido agora e tenha deixado dinheiro para mim.

- Deixar dinheiro para você? Por quê? Ahn... retorquiu o Sr. Kimble, usando seumonossílabo preferido para exprimir o desprezo.

- Mesmo que seja a polícia... Sabe, Jim, às vezes dão uma grande recompensa aqualquer pessoa que possa dar informações sobre um assassino!

- E que informações você pode dar? Tudo o que você sabe foi inventado na suacabeça!

- Isso é o que você acha, mas estive pensando...

- Ahn. . . resmungou o Sr. Kimble.

- Bem, mas estive pensando. Desde que vi aquele primeiro anúncio no jornal.

Talvez eu tenha me enganado um pouco. Aquela Léonie era burra como todos osestrangeiros, não entendia direito o que a gente estava dizendo e falava inglêsmuito mal. Será que ela não quis dizer o que eu entendi?... Estou fazendo forçapara lembrar o nome daquele homem... Se foi ele quem ela viu... Lembra aquelefilme que eu contei para você? Amante secreto. Era tão empolgante! Seguiram ocarro dele. Ele deu cinqüenta mil dólares ao homem do posto para esquecer queele havia colocado gasolina no carro aquela noite. Nem sei quanto é isso emlibras... E o outro também estava lá, e o marido louco de ciúmes. Estavam todosloucos por ela. E no fim...

O Sr. Kimble afastou a cadeira para trás com um resmungo. Levantou-sedevagar, com ar de solene autoridade. Antes de sair da cozinha deu seu ultimato -o ultimato de um homem que, apesar de mal saber falar, era astuto.

- Deixe isso tudo para lá, mulher, disse ele. - Senão você vai acabar searrependendo!

Foi para a copa, calçou as botas e saiu.

Lily ficou sentada em frente à mesa e seu cérebro não parava de funcionar. É

claro que podia fazer tudo diferente do que seu marido achava, mas... Jim era tão

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quadrado, tão sem imaginação... Seria bom poder conversar com alguém.Alguém que soubesse tudo sobre polícia, recompensas, o que queria dizeraquilo... Era uma pena perder a oportunidade de ganhar um bom dinheiro...

O rádio de pilha... permanente no cabelo... aquele casaco vermelho tão bonito daloja Russell... até mesmo, quem sabe, um conjunto de sofá e poltronas novospara a sala...

Continuou sonhando acordada, cobiçosa, imprevidente... O que foi mesmo queLéonie me disse naquela ocasião, há tantos anos atrás?

De repente teve uma idéia. Levantou-se e pegou o tinteiro. a caneta e um blocode papel de cartas.

- Já sei o que vou fazer, disse para si mesma. - Vou escrever para o doutor, oirmão da Sra. Halliday. Ele vai me dizer o que devo fazer, se é que ele ainda estávivo.

De qualquer modo, sinto remorso de nunca ter contado nada para ele sobre o queLéonie me disse, nem sobre aquele carro...

Durante algum tempo o silêncio só foi quebrado pelo barulho da caneta no papel.Era raro Lily escrever uma carta e isso representava para ela um esforçoconsiderável.

Finalmente terminou de escrever, colocou o papel num envelope e fechou-o.

Mas sentia-se menos satisfeita do que imaginara. Tinha certeza de que o Dr.

Kennedy morrera ou então deixara de morar em Dillmouth.

Havia

mais

alguém?

Como era mesmo o nome daquele cara?

Se conseguisse se lembrar disso...

CAPÍTUI.O XX

A JUVENTUDE DE HELEN

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Na manhã seguinte, ao voltarem de Northumberland, Giles e Gwenda estavamacabando de tomar café quando Miss Marple chegou. Entrou com jeito de quempede desculpas.

- Acho que vim muito cedo. Não costumo fazer isso, mas precisava explicar umacoisa.

- Muito prazer em vê-la! disse Giles, puxando uma cadeira para ela. - Gostariade uma xícara de café?

- Oh, não, muito obrigada. Já tomei um ótimo café da manhã. Agora deixem-meexplicar. Estive aqui durante a ausência de vocês, conforme o combinado, paracuidar um pouco do jardim...

- A senhora foi um anjo, interrompeu Gwenda.

- E cheguei à conclusão de que dois dias por semana é muito pouco para essejardim. De qualquer modo, acho que Foster está abusando. Muito chá e muitaconversa.

Descobri que ele não tem mais nenhum dia livre e por isso me encarreguei decontratar outro jardineiro para vir só um dia por semana às quartas-feiras - aliás,hoje.

Giles olhou-a com curiosidade e surpresa. A intenção podia ser boa, mas a atitudede Miss Marple tinha um quê de interferência, e ela não era uma pessoainterferente.

- Foster é velho demais para trabalhar de verdade, não há dúvida, disse elelentamente.

- Só que Manning é mais velho ainda, Sr. Reed. Disse que tem setenta e cincoanos. Mas, sabe, achei que valia a pena contratá-lo por algum tempo porqueantigamente, há muitos anos atrás, ele era empregado do Dr. Kennedy. Por falarnisso, o nome do rapaz que Helen namorou era Afflick.

- Miss Marple, a senhora é incrível! exclamou Giles. Um gênio! Sabe queconsegui a amostra da letra de Helen?

- Sei, respondeu Miss Marple. - Eu estava aqui quando Kennedy trouxe a carta.

- Hoje mesmo vou mandar pelo correio para um excelente perito que me foiindicado na semana passada.

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- Vamos para o jardim conhecer Manning, sugeriu Gwenda.

Manning era um velho curvado e cheio de rugas, de olhos remelentos eligeiramente velhacos. Ao ver os patrões se aproximarem, acelerou o ritmo paralimpar um caminho.

- Bom dia, senhor. Bom dia, senhora. Parece que estão precisando de um diaextra de trabalho, às quartas-feiras. Tenho muito prazer em vir. Este jardim estáuma vergonha de tão abandonado!

- Acho que há muitos anos não cuidam dele direito.

- É mesmo. Lembro o tempo da Sra. Findeyson. Naquele tempo o jardim erauma beleza. A Sra. Findey son gostava muito do jardim.

Giles apoiou-se nas costas de um banco, Gwenda cortou alguns botões de rosa eMiss Marple, um pouco afastada, inclinou-se em direção à trepadeira. O velhoManning apoiou-se em seu ancinho. Estavam todos prontos para passar a manhãdiscutindo o tempo antigo e a jardinagem de antigamente.

- O senhor deve conhecer a maioria dos jardins deste lugar, disse Giles, a fim deiniciar a conversa.

- Ah, conheço bastante bem isto aqui, e conheci também as coisas que as pessoasinventavam. A Sra. Yule, de Niagra, tinha um arbusto de teixo que era podado emforma de esquilo. Eu achava uma bobagem. Planta é uma coisa e esquilo é outra.E o Coronel Lampard... era louco por begônias. Tinha maravilhosos canteiros debegônias.

Hoje em dia ninguém mais quer saber de canteiros floridos. Nos últimos anosnem sei quantos canteiros eu desmanchei para fazer gramados. Parece que aspessoas não acham mais graça em gerânios ou lobélias.

- O senhor trabalhava para o Dr. Kennedy, não é?

- Ah, isso foi há muito tempo atrás! Deve ter sido lá por 1920. Ele mudou-se edeixou a clínica. Quem trabalha agora em Crosby Lodge é o jovem Dr. Brent.Tem umas idéias engraçadas - umas pílulas brancas que ele receita - chamam-seVittapins.

- 0 senhor deve se lembrar da Srta. Helen Kennedy, a irmã do doutor.

- Ah, lembro muito bem da Srta. Helen! Era bonitinha, com aquele cabelo lourobem comprido. Depois de casada ela veio morar aqui mesmo, nesta casa. Casou

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com um oficial do exército que veio da Índia.

- Sim, nós sabemos disso, observou Gwenda.

- Ah, ouvi dizer - acho que foi no sábado de noite - que a senhora e seu maridoeram parentes dela. A Srta. Helen era lindinha, quando acabou o colégio e veiopara cá.

Era muito animada. Gostava de ir a todos os lugares - festas, partidas de tênis,todas essas coisas. Eu tive de marcar a quadra de tênis - fazia uns vinte anos queninguém a usava. Estava coberta de plantas. Tive que cortar tudo e gastei baldese mais baldes de cal para marcar a quadra. Tive um trabalhão e, no fim, quaseninguém aproveitou para jogar. Sempre achei aquilo meio estranho...

- O quê era estranho? perguntou Giles.

- O negócio da rede de tênis. Alguém foi até lá, uma noite, e cortou a rede empedacinhos. Em pedacinhos. Por pura maldade. Isso mesmo, foi pura maldade.

- Mas quem ia fazer uma coisa dessas?

- Foi o que o doutor quis saber. Ficou danado da vida, e tinha toda razão. Masninguém sabia quem fizera aquilo. Nunca soubemos. E ele então disse que não iacomprar outra... e tinha razão, porque se fizeram maldade uma vez iam fazer denovo.

Mas a Srta. Helen não gostou. Ela não tinha sorte. Primeiro o negócio da rede, edepois o pé machucado.

- Ela machucou o pé? perguntou Gwenda.

- Foi. Tropeçou num ancinho, ou coisa que o valha, e cortou o pé. Parecia só umarranhão, mas não havia meio de curar. O doutor ficou bastante preocupado.Fazia curativos, botava remédio, mas não dava jeito. Lembro-me dele dizendoassim: - Não posso compreender. O ancinho devia estar sujo. De qualquer modo,o que é que aquele ancinho estava fazendo ali no meio do caminho? Porque foi láque a Srta. Helen se machucou, voltando a pé para casa numa noite escura.Coitada da moça, ficou um tempão sentada, de perna espichada, sem poder ir afestas! Ela só dava azar!

Giles achou que era hora de fazer a pergunta.

- Lembra-se de uma pessoa chamada Afflick?

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- Ah, o senhor está falando de Jackie Afflick? O que trabalhava no escritório deFane e Watchman?

- Exato. Era amigo da Srta. Helen, não é?

- Aquilo foi tudo uma bobagem. O doutor acabou com o negócio, e eu acho quefez muito bem. Jackie Afflick não tinha classe, E era um espertalhão. Essa genteacaba se dando mal, Mas ele não ficou na cidade muito tempo. Meteu-se numaencrenca.

Ficamos livres dele. Ninguém gostava dele, em Dillmouth. Todos acharam muitobom ele ir embora e se meter a esperto em outro canto qualquer.

- Ele estava aqui quando cortaram a rede de tênis? perguntou Gwenda.

- Ah, compreendo o que a senhora está pensando! Mas ele não faria umabobagem dessas. Jackie Afflick era esperto. Quem fez isso fez de pura maldade.

- Havia alguém que tivesse raiva da Srta. Helen? Que quisesse fazer umamaldade com ela?

O velho Manning deu uma risada.

- Algumas moças deviam ter raiva de la. Quase nenhuma delas chegava aos pésda Srta. Helen. Não, acho que aquilo foi uma doideira qualquer. Talvez algumdesses vagabundos invejosos.

- Helen ficou muito aflita por causa de Jackie Afflick? perguntou Gwenda.

- Acho que a Srta. Helen não ligava muito para nenhum dos rapazes. Gostavaapenas de se divertir. Alguns eram bastante dedicados a ela - o jovem Sr. WalterFane, por exemplo. Seguia a Srta. Helen como um cachorrinho.

- Mas não gostava nem um pouquinho dele?

- Não. Ela achava graça, só isso. Ele foi embora para outro país. Depois voltou.

Hoje em dia é diretor da firma. Nunca se casou, Acho que tem razão. Asmulheres armam muita encrenca na vida dos homens.

- O senhor é casado? perguntou Gwenda.

- Já enterrei duas, respondeu o velho Manning. - Ah, não posso me queixar.

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Agora fumo meu cachimbo em paz, onde eu bem entender.

Seguiu-se um silêncio e ele pegou o ancinho novamente, Giles e Gwendatomaram o caminho que levava à casa e Miss Marple, desistindo de lutar com atrepadeira, seguiu-os.

- Miss Marple, a senhora está com um semblante estranho, observou Gwenda. -

Está se sentindo mal?

- Não é nada, querida. A velha senhora fez uma pausa antes de dizer comestranha ênfase: - Sabe, não gostei daquela história da rede de tênis. Cortada empedaços... Mesmo assim...

Interrompeu a frase. Giles olhou-a intrigado.

- Não estou compreendendo... disse ele.

- Não? Para mim é terrivelmente claro, mas talvez seja melhor que vocês nãocompreendam. E, de qualquer modo, pode ser que eu esteja enganada. Agoracontem o que aconteceu em Northumberland.

Os dois fizeram o relato de suas atividades e Miss Marple ouviu atentamente.

- É realmente muito melancólico, disse Gwenda. - Chega a ser trágico!

- É mesmo. Coitado... coitado!

- Foi isso o que senti. Como aquele homem deve sofrer...

- Hein? Ah, sim, é claro!

- Mas a senhora estava falando...

- Bem, sim, eu estava pensado nela - na mulher dele. Provavelmente apaixonou-se loucamente por ele e ele casou com ela por conveniência, ou porque sentiapena dela, ou por um desses motivos tão sensatos que os homens inventam... eque são tão injustos!

Conheço cem modos de amar

E todos entristecem o ser amado..., disse Giles baixinho.

Miss Marple virou-se para ele.

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- Sim, isso é uma grande verdade. Sabe, o ciúme não precisa ter uma causa. E

uma coisa muito mais... como dizer?... muito mais fundamental, baseada nasensação de que o amor não é correspondido. E daí a pessoa continua esperando,vigiando, à espera de que o ser amado encontre outra pessoa. Isso aconteceinvariavelmente. De modo que a Sra. Erskine tornou a vida do marido infernal eele, sem querer, tornou a vida dela um inferno. Mas acho que foi ela quem maissofreu. E no entanto ouso dizer que ele gosta muito dela.

- Não pode ser! exclamou Gwenda.

- Oh, querida, você é muito jovem! Ele nunca abandonou a mulher, e isso querdizer alguma coisa, sabe?

- Por causa das crianças! Porque era seu dever!

- Por causa das crianças, talvez, retrucou Miss Marple, - mas confesso que oshomens não ligam muito para o dever no que tange a suas esposas... o quedemonstram exteriormente é outro assunto.

Giles

riu.

- A senhora é muito cínica, Miss Marple!

- Oh, meu caro, acho que não! Há sempre esperança quanto à natureza humana.

- Continuo achando que não pode ter sido Walter Fane, disse Gwenda, pensativa. -E tenho certeza de que não foi o Major Erskine. Aliás, eu sei que não foi!

- Não se pode ter tanta confiança nos sentimentos, observou Miss Marple. - Aspessoas mais insuspeitas fazem coisas... Você não imagina a sensação que foi, naminha cidade, quando se descobriu que o tesoureiro do Clube de Natal apostoutodo o dinheiro do clube num cavalo. Era um homem que desaprovava corridasdesse gênero, qualquer tipo de jogo ou de apostas. Seu pai jogava em corridas decavalos e tratava muito mal a mulher, de modo que, racionalmente, o nossotesoureiro era sincero. Mas um dia, por acaso, passou perto de Newmarket, viu oscavalos treinando e aí a coisa apossou-se dele. Falou a voz do sangue...

- Tanto os antecedentes de Walter Fane quanto os de Richard Erskine são acimade qualquer suspeita, disse Giles com ar sério, mas com um sorriso divertido.

- O que importa, retorquiu Miss Marple, é que eles estavam aqui. No local.

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Walter Fane estava em Dillmouth. O Major Erskine, pelo que diz, deve ter estadocom Helen Halliday muito pouco tempo antes de sua morte... e não voltou logopara o hotel.

- Mas ele foi muito sincero a respeito disso tudo! Ele...

Gwenda interrompeu a frase. Miss Marple olhava para ela com um olharpenetrante.

- Quero apenas mostrar a importância de estar no local, disse ela, olhando paraum e para outro.

Em seguida acrescentou: - Acho que vocês não terão dificuldade em encontrar oendereço de J. J. Afflick. Sendo ele dono da empresa de ônibus Daffodil Coaches,não haverá problema algum.

- Giles assentiu com a cabeça. Vou procurar na lista telefônica. Fez uma pausa. -

Acha que devíamos conversar com ele?

Miss Marple ficou em silêncio durante um momento e disse em seguida: - Sevocês forem... tomem muito cuidado! Lembrem-se do que o jardineiro disse!Jackie Afflick é esperto. Por favor, tomem cuidado, por favor...

CAPÍTULO XXI

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J. J. AFFLICK

J. J. Afflick, dono da empresa de ônibus de turismo Daffodil Coaches, figuravaduas vezes na lista telefônica - um endereço comercial em Exeter e umendereço particular nos arredores dessa mesma cidade.

Marcaram uma hora para o dia seguinte.

No momento em que Giles e Gwenda estavam saindo de carro a Sra. Cockercorreu atrás deles, gesticulando muito. Giles pisou no freio e parou.

- O Dr. Kennedy está no telefone, senhor.

Giles saltou do carro e correu para dentro de casa. Pegou o fone.

- Aqui fala Giles Reed.

- Bom dia. Acabo de receber uma carta muito estranha, de uma mulherchamada Lily Kimble. Quebrei a cabeça para lembrar quem é. Primeiro penseique fosse uma cliente, mas não é. Suponho que seja a moça que trabalhava aíantigamente. Era copeira.

Tenho quase certeza de que se chamava Lily, mas não me lembro do sobrenome.

- Havia uma Lily. Gwenda se lembra dela. Ela amarrou uma fita no pescoço dogato.

- Gwennie tem uma memória extraordinária!

-

Tem

mesmo.

- Bem, eu gostaria de conversar com vocês sobre esta carta, mas não pelotelefone. Posso dar um pulo aí?

- Estamos saindo para ir a Exeter. Se preferir, podemos ir à sua casa. É caminho.

- Ótimo, estamos combinados!

Ao chegarem à casa de Kennedy o médico explicou: - Não gosto de falar nesseassunto pelo telefone. Fico sempre achando que as telefonistas estão ouvindo.Aqui está a carta.

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Abriu o envelope e colocou a carta em cima da mesa. Estava escrita numa folhade papel ordinário e a letra era de uma pessoa semi-analfabeta.

Prezado

Senhor:

Ficaria grata se o senhor pudesse me aconselhar sobre esse recorte que tirei dojornal. Andei pensando e conversei com o Sr. Kimble, mas não sei o que devofazer. O

senhor acha que pode ser dinheiro ou recompensa? porque eu queria ganhar umdinheiro mas não quero nada com a polícia nem nada disso. Pensei muitas vezesnaquela noite que a Sra. Halliday foi embora e acho que ela não foi emboraporque as roupas estavam todas erradas. primeiro achei que o patrão tinhamatado ela mas depois fiquei sem saber por causa do carro que vi pela janela.um carro bacana que eu já tinha visto antes mas não quero fazer nada semperguntar ao senhor e não quero nada com a polícia porque nunca me meti coma polícia e o Sr. Kimble não ia gostar, posso ir falar com o senhor se o senhor meder licença na quinta-feira porque é dia de mercado e o Sr. Kimble não vai estarem casa, ficaria muito grata se o senhor pudesse.

Com

todo

o

respeito

Lily Kimble.

- Foi mandada para o meu antigo endereço em Dillmouth, disse Kennedy, - e delá mandaram para cá. O recorte é o anúncio de vocês.

- Que maravilhar exclamou Gwenda. - Essa tal de Lily, veja só, achou que nãofoi meu pai quem cometeu o crime! Falava com júbilo.

Kennedy olhou-a com olhos

cansados e afáveis.

- Melhor para você, Gwennie, disse ele. - Espero que você tenha ra.zão. Bem,acho que o melhor a fazer é o seguinte. Vou responder à carta e dizer a ela que

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venha na quinta-feira. A conexão de trem é boa. Se ela fizer uma baldeação emDillmouth Junction, chegará aqui pouco depois das 4.30 h. Vocês dois vêm paracá e, juntos, conversamos com ela.

- Ótimo! exclamou Giles. Olhou para o relógio. - Vamos acrescentou, dirigindo-se a Kennedy, - com o Sr. Afflick, dono da Daffodil Coaches, e ele me disse queé um homem muito ocupado.

- Afflick? Kennedy franziu as sobrancelhas. - Ah, já sei! Dono daqueles ônibusde turismo horrorosos, pintados de am arelo! Mas conheço esse nome de outrolugar...

- Helen... disse Gwenda.

- Meu Deus... não é aquele sujeito, é?

-

É.

- Mas ele era um pobre diabo. Quer dizer que conseguiu vencer na vida?

- Diga uma coisa, senhor, disse Giles. - O senhor interveio num envolvimentoentre ele e Helen. Foi apenas por causa de sua... posição social?

Kennedy lançou-lhe um olhar seco.

- Sou um homem antiquado, rapaz. Hoje em dia acham que todos os homens sãoiguais. Do ponto de vista moral, não há dúvida. Mas acredito firmemente que aspessoas nascem numa determinada posição social e que serão mais felizes sepermanecerem nela. Além disso, acrescentou, - achei que não era o cara certo.Mais tarde ele provou que eu tinha razão.

- O que foi que ele fez?

- Não me lembro mais. Se não me engano, tentou vender informações obtidasatravés do escritório de Fane, onde trabalhava. Era um assunto confidencialrelativo a um cliente.

- Ele ficou magoado por ter sido despedido?

Kennedy olhou-o com dureza e respondeu secamente: - Ficou.

- Não havia nenhum outro motivo para o senhor desaprovar essa amizade com

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sua irmã? O senhor não achava que ele era... bem... um pouco esquisito?

- Já que você tocou no assunto, vou ser franco. Eu fiquei com a impressão,principalmente depois de ele ter sido despedido, de que Jackie Afflick mostravacertos sintomas de desequilíbrio. Tratava-se, na realidade, de uma mania deperseguição incipiente. Mas se venceu na vida dessa maneira, deve ter ficadobom.

- Quem o despediu? Foi Walter Fane?

- Não tenho a menor idéia se Walter Fane estava metido nisso. Ele foi despedidopela firma.

- E queixou-se de que estava sendo vítima de uma injustiça?

Kennedy assentiu com a cabeça.

- Compreendo... Bem, temos que partir voando! Até quinta, senhor!

A casa era de construção recente, muito grande, com imensas janelas de vidro.

Gwenda e Giles atravessaram um enorme e luxuoso saguão e entraram numescritório em que se via uma grande mesa cromada.

Gwenda murmurou em tom nervoso para Giles:

- Francamente, não sei o que seria de nós sem Mis Marple. Ela resolve tudo.

Primeiro aqueles amigos dela em Northumberland, e agora essa excursão anualdo clube dos Meninos, dirigido pela mulher do pastor...

Giles fez sinal para que ficasse quieta ao ver a porta abrir e J. J. Afflick entrar.

Era um homem corpulento, de meia-idade, usando um terno xadrez. Seus olhoseram escuros e astutos, seu rosto era vermelho e tinha um ar bem-humorado.Parecia um bookmaker bem sucedido.

- Sr. Reed? Bom dia. Prazer em conhecê-lo, disse ele. Giles apresentou Gwenda,cuja mão foi apertada um pouco excessivamente.

- Em que posso ajudá-lo, Sr. Reed?

Afflick sentou-se à imensa mesa. Ofereceu cigarros que estavam dentro de umacaixa de ônix.

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Giles começou a falar sobre a excursão do Clube dos Meninos. Explicou que oclube era dirigido por amigos dele, e que desejava imensamente organizar umpasseio de alguns dias a Devon.

Afflick respondeu imediatamente, em tom de negócios, dando preços e fazendosugestões. Mas sua fisionomia mostrava uma indefinida surpresa.

Finalmente

acabou

dizendo:

- Bem, acho que está tudo certo, Sr. Reed, e vou lhe mandar uma cartaconfirmando. Mas isso é assunto de trabalho e, pelo que meu secretário me disse,o senhor queria um encontro pessoal comigo, em minha residência, não émesmo?

- Exato, Sr. Afflick. Na realidade queria conversar sobre dois assuntos. Um delesjá está resolvido. O outro é um tanto particular. Minha mulher deseja muitoentrar em contato com sua madrasta, que não vê há muitos anos, e achamos quetalvez o senhor pudesse nos ajudar.

- Bem, digam-me como é o nome dessa senhora... Suponho que eu a conheço,não é?

-O senhor a conheceu há muito tempo. Ela se chama Helen Halliday, e antes decasar se chamava Helen Kennedy.

Afflick permaneceu imóvel durante alguns instantes. Arregalou os olhos elentamente inclinou a cadeira para trás.

- Helen Halliday... Não me lembro... Helen Kennedy... - De Dillmouth, disseGiles.

A cadeira de Afflick voltou bruscamente à posição normal.

- Já sei! exclamou ele. - É claro! Seu rosto redondo estava iluminado por umlargo sorriso. - A pequena Helen Kennedy ! Sim, lembro-me dela. Mas isso fazmuito tempo! Deve fazer uns vinte anos.

-

Dezoito.

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- É mesmo? O tempo voa... Mas acho que vou desapontá-la, Sra. Reed. Não vejoHelen desde aquela época. Nunca mais ouvi falar dela.

- Oh, que pena! exclamou Gwenda. - Estou realmente desapontada. Tinha tantaesperança no senhor!

- Qual é o problema? Os olhos de Afflick passaram de Gwenda para Giles. -

Briga? Fugiu de casa? Questão de dinheiro?

- Ela foi embora. . . de repente... de Dillmouth... com alguém... há dezoito anosatrás, respondeu Gwenda.

O tom de Jackie Afflick era divertido. - E a senhora achou que talvez tivessefugido comigo? Por quê?

- Porque soubemos que o senhor... e ela... estiveram... bem... gostavam um dooutro... há muito tempo.

- Eu e Helen? Oh, mas não foi coisa séria! Só um namoro. Nenhum de nóslevava a sério! E acrescentou em tom seco: - Não nos incentivavam...

- O senhor deve estar nos achando muito atrevidos... disse Gwenda. Mas Afflickinterrompeu-a.

- O que é que tem? Não sou susceptível. A senhora quer encontrar umadeterminada pessoa e acha que eu posso ajudar. Pergunte o que quiser. Não tenhonada a esconder.

Olhou para Gwenda, com um ar pensativo.

- Quer dizer que a senhora é a filha de Halliday?

- Sou. Conheceu meu pai?

Ele sacudiu a cabeça.

- Fui até lá para ver Helen, um dia em que estive em Dillmouth a negócios.

Contaram-me que ela estava casada e morando lá. Ela foi bastante polida... masnão me convidou para jantar. Não, não conheci seu pai.

Não havia certo rancor no tom de Afflick ao dizer que Helen não o convidarapara jantar? pensou Gwenda consigo mesma.

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- O senhor se recorda se ela... parecia feliz?

Afflick deu de ombros.

- Acho que sim. Mas isso foi há tanto tempo. Se ela estivesse com um ar infelizeu me lembraria.

E acrescentou com uma curiosidade absolutamente normal:

- Quer dizer que nunca mais soube dela, desde há dezoito anos atrás?

-

Exato.

- Não mandou cartas?

- Mandou duas, respondeu Giles, - mas achamos que não foi ela quem asescreveu.

- Acham que não foi ela quem escreveu? Afflick parecia estar se divertindo. -

Parece um caso meio misterioso...

- É o que estamos achando.

- E o irmão dela, aquele médico? Também não sabe onde ela está?

-

Não.

- Compreendo. É bem misterioso, não? Por que não colocam um anúncio nosjornais?

- Já colocamos.

- Talvez tenha morrido, observou Afflick com naturalidade.

Gwenda

estremeceu.

- Está com frio, Sra. Reed?

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- Não. Estava pensando em Helen morta. Não gosto de pensar nela morta.

- Tem razão. Eu também não. Ela era linda!

- O senhor a conheceu. Conheceu-a bem, disse Gwenda impulsivamente. - Euera muito criança. Como é que ela era? O que é que as pessoas sentiam por ela?0 que é que o senhor sentia por ela?

Afflick olhou-a durante alguns instantes.

- Vou ser absolutamente franco, Sra. Reed. Acredite se quiser, mas eu tinha penadela.

- Pena? Gwenda olhou-o estarrecida.

- Exatamente. Acabou os estudos e voltou para casa. Louca para se divertir,como todas as moças, e lá vinha aquele seu irmão com certos preconceitos sobreo que uma moça podia ou não podia fazer! Ela não se divertia nunca. Bem, eusaía com ela e mostrava-lhe um pouco da vida. Não gostava realmente dela,nem ela de mim. Gostava mesmo era da sensação de sair escondida. Depoisdescobriram que estávamos nos encontrando e ele acabou com tudo. Não foiculpa dele, sabe? Helen tinha uma situação melhor que a minha. Não chegamosa ficar noivos, nem nada disso. Eu pretendia me casar, mas só quando fosse maisvelho. Queria subir na vida e encontrar uma mulher que me ajudasse a fazê-lo.Helen não tinha dinheiro e não significaria o tipo de casamento que eu desejava.Éramos apenas bons amigos, com um certo namoro em tudo isso.

- Mas o senhor deve ter ficado com raiva do doutor...

Gwenda fez uma pausa e Afflick respondeu: - Não nego que fiquei aborrecido.

Não tem graça dizerem para a gente que a gente não serve, mas não adianta sermuito sensível...

- E depois o senhor perdeu o emprego, não é? perguntou Giles.

Afflick fechou a cara.

- Fui despedido do escritório de Fane e Watchman. E acho que sei muito bemquem foi o responsável por isso.

- Não me diga! exclamou Giles.

Afflick sacudiu a cabeça.

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- Não estou afirmando nada, mas tenho cá minhas idéias. Cai numa cilada - foiisso mesmo - e acho que sei muito bem quem armou tudo. E por que motivo! Seurosto estava rubro. - Espionar um homem, armar ciladas, inventar mentiras a seurespeito...

Trabalhinho sujo! Oh, tive inimigos, mas eles nunca conseguiram me derrotar.Sempre dei o troco. E jamais esqueço!

Parou de falar. Subitamente modificou seu tom e voltou a ser cordial.

- De modo que sinto muito, mas não posso ajudá-la. Helen e eu nos divertíamosum pouco juntos - foi só isso. Nada além disso.

Gwenda olhou-o fixamente. Era uma história bastante plausível... mas seriaverdade? Alguma coisa destoava e ela subitamente percebeu o que era.

- Mas mesmo assim, observou ela - o senhor procurou-a mais tarde, quando foi aDillmouth.

Afflick

riu.

- Nisso a senhora tem razão, Sra. Reed. É verdade. Talvez eu quisesse mostrar aela que eu não ficara por baixo apenas porque um advogado qualquer medespediu do escritório. Meus negócios iam bem, eu guiava um carro último tipo eestava muito bem de vida.

- O senhor foi vê-la mais de uma vez, não foi?

Afflick hesitou um instante.

- Duas... talvez três vezes. Só dei um pulinho até lá. Sinto muito não poder ajudá-la, respondeu ele, dando a entender que a conversa chegara ao fim.

Giles

levantou-se.

- Desculpe ter tomado seu tempo, disse ele.

- Não tem importância. É até bom falar de antigamente, para variar.

A porta abriu, uma mulher olhou para dentro e pediu desculpas.

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- Oh, sinto muito! Não sabia que você estava com visitas...

- Entre, querida, entre! Deixe-me apresentar você. Esta é minha mulher. Sr. eSra. Reed.

A Sra. Afflick cumprimentou o casal. Era uma mulher alta, magra, de fisionomiadepressiva, vestida com roupas surpreendentemente bem cortadas.

- Estivemos conversando sobre os velhos tempos, disse o Sr. Afflick. - Antes de euconhecer você, Dorothy.

Virou-se para o casal.

- Conheci minha mulher durante uma viagem, disse ele. - Ela não é daqui. É

prima de Lord Polterham.

Falava com orgulho. Sua mulher enrubesceu.

- Viajar é uma coisa muito boa, disse Giles.

- É bastante educativo, replicou Afflick. - Bem, eu não tive lá uma grandeeducação.

- Sempre digo a meu marido que precisamos fazer um cruzeiro às ilhas gregas,disse a Sra. Afflick.

- Não tenho tempo. Sou um homem muito ocupado.

- Não queremos tomar seu tempo, disse Giles. Até logo, e obrigado. Por favor,não deixe de confirmar o preço da excursão.

Afflick acompanhou-os até à porta. Gwenda olhou para trás. A Sra. Afflick estavaem pé junto à porta do escritório. Seu olhar, fixo no marido, demonstravacuriosidade e apreensão.

Giles e Gwenda despediram-se novamente e dirigiram-se para o carro.

- Esqueci meu cachecol! exclamou Gwenda.

- Você sempre esquece alguma coisa, retorquiu Giles.

- Não precisa reclamar. Eu mesma vou buscar.

Gwenda correu de volta à casa e entrou. Através da porta aberta do escritório,

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ouviu Afflick reclamando em voz alta:

- Por que é que você tem que se meter em tudo? Isso não tem sentido!

- Sinto muito, Jackie. Eu não sabia. Quem são essas pessoas? Por que deixaramvocê tão perturbado?

- Não fiquei perturbado. Eu... Interrompeu a frase ao ver Gwenda junto à porta.

- Oh, Sr. Afflick, acho que esqueci meu cachecol!

- Cachecol? Não, Sra. Reed. Não ficou aqui.

- Oh, então deve estar no carro! E tornou a sair.

Giles manobrara para sair. Junto à calçada estava uma grande limosine amarela,cheia de cromados.

- Que carro! exclamou Giles.

- Um carro último tipo, observou Gwenda. - Lembra, Giles? Lembra do queEdith Pagett disse quando estava falando de Lily? Ela falou num "homemmisterioso com um carro bacana, último tipo"! Você não está vendo que ohomem misterioso do carro bacana era Jackie Afflick?

- É, respondeu Giles. - E na carta para Kennedy, Lily falou num carro últimotipo.

Os dois olharam um para o outro.

- Ele estava lá... no local, como diria Miss Marple, - naquela noite. Oh, Giles, malposso esperar a quinta-feira para ouvir o que Lily Kimble tem a contar!exclamou Gwenda.

- E se ela mudar de idéia e não aparecer?

- Oh, ela vai aparecer! Giles, se aquele carro espalhafatoso estava lá naquelanoite...

- Será que era amarelo como esse aí?

- Estão admirando meu carro? A voz jovial de Afflick lhes deu um sobressalto.

Estava apoiado na cerca-viva, bem atrás deles. - Costumo chamá-lo de "Botão deOuro".

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Sempre gostei de carros bonitos. Esse aí dá para chamar a atenção, não é?

- Não há dúvida, respondeu Giles.

- Gosto muito de flores disse Afflick. - Narcisos, botões-de-ouro, calceolárias...

essas são as minhas preferidas. Aqui está seu cachecol, Sra. Reed. Tinha caídoatrás da mesa. Até logo. Prazer em conhecê-los!

- Acha que ouviu nossa conversa sobre o carro? perguntou Gwenda, depois departirem.

Giles fez uma cara desapontada.

- Oh, acho que não! Ele foi tão amável!

- É... mas isso não quer dizer nada... Giles, aquela mulher. .. tem medo dele.

Notei isso em sua expressão.

- O que? Medo daquele sujeito alegre e cordial?

- Talvez no fundo ele não seja tão cordial assim... Giles, acho que não gostei doSr. Afflick ... Durante quanto tempo ele terá ouvido a nossa conversa? O que foique dissemos exatamente?

- Nada demais, respondeu Giles.

Mas, ainda assim, ele parecia pouco à vontade.

CAPÍTULO XXII

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LILY VAI AO ENCONTRO

- Raios, não entendo mais nada! exclamou Giles.

Acabara de abrir uma carta que chegara pelo correio da tarde e olhava-a com aratônito.

- O que foi?

- É o relatório dos peritos em grafologia.

- E não foi ela quem escreveu a carta?

- Aí é que está, Gwenda. - Foi ela!

Gwenda e Giles se entreolharam fixamente.

- Então as cartas não eram falsas! exclamou Gwenda com ar incrédulo. Eramautênticas! Helen foi embora da casa, naquela noite. E escreveu do exterior. Equer dizer que não foi estrangulada?

- Parece, respondeu Giles. - Mas é muito estranho. Não compreendo. Logoagora, que tudo indica outra coisa...

- Quem sabe os peritos se enganaram?

- Pode ser, mas eles estão muito seguros do que dizem. Gwenda, eu realmentenão entendo mais nada. Será que estamos fazendo papel de palhaços?

- Baseados no que me aconteceu no teatro? Olha, Giles, vamos conversar comMiss Marple. Dá tempo para ir lá e chegar em casa de Kennedy às quatro emeia.

Miss Marple, no entanto, reagiu de maneira bem diferente da que eles haviamimaginado. Achou que era muito bom.

- Mas, minha querida Miss Marple, disse Gwenda, - o que é que a senhora querdizer com isso? ~

- Quero dizer, querida, que alguém não foi tão esperto quando podia ter sido.

- Mas como? De que modo? .

- Foi um esquecimento, afirmou Miss Marple com ar satisfeito.

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- Mas como?

- Bem, Sr. Reed, o senhor certamente está compreendendo como isso torna ascoisas mais definidas.

- Suponho que Helen realmente tenha escrito as cartas, a senhora acha quemesmo assim ela pode ter sido assassinada?

- Acho que era muito importante, para alguém, que as cartas fossem escritascom a letra de Helen.

- Compreendo.. . Ou, pelo menos, acho que compreendo. É possível que, diantede certas circunstâncias, Helen tenha sido forçada a escrever essas cartas... Issotornaria as coisas mais definidas. Mas que circunstâncias seriam essas?

- Ora, Sr. Reed, o senhor não está raciocinando! É simplíssimo!

Giles fez um ar teimoso e aborrecido.

- Garanto que para mim não é tão simples assim.

- É só questão de raciocínio. . .

- Venha, Giles, disse Gwenda. - Vamos chegar atrasados.

Partiram, e Miss Marple ficou sorrindo sozinha.

- Às vezes essa velha me irrita, disse Giles. - Não sei onde ela quer chegar!

Às quatro e meia estavam em casa de Kennedy. Foi o próprio médico quemabriu a porta.

- Mandei a empregada passar a tarde fora, disse ele. Achei que seria melhor.

Levou o casal para a sala, onde estava uma bandeja com xícaras e pratinhos,pão, manteiga e bolos.

- Achei que tomar chá era uma boa idéia, não é? perguntou ele a Gwenda. - Parabotar essa Sra. Kimble à vontade...

- Acho ótimo! respondeu Gwenda.

- Bem, e vocês dois? Devo apresentá-los logo, ou será que isso vai atrapalhar?

- As pessoas do interior são muito desconfiadas, observou Gwenda. - Acho

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melhor o senhor recebê-la sozinho.

- Também acho, disse Giles.

- Se vocês ficarem na sala ao lado e deixarmos a porta de comunicaçãoentreaberta, poderão ouvir a conversa, sugeriu Kennedy. - Acho que, diante dascircunstâncias, isso se justifica.

- Acho que é uma indiscrição, mas não me incomodo, respondeu Gwenda.

Kennedy deu um vago sorriso. - Acho que não estamos quebrando nenhumprincípio ético. De qualquer modo não pretendo prometer segredo, apesar deestar disposto a dar o conselho pedido.

Olhou para o relógio.

- O trem chega em Woodleigh Road às quatro e trinta e cinco, isto é; daqui apoucos minutos. Da estação até aqui se leva uns cinco minutos a pé.

Kennedy andava para um lado e para outro. Estava agitado e abatido.

- Não compreendo, disse ele. - Não compreendo o que isso significa. Se Helennunca saiu da casa... se as cartas eram falsas... Gwenda ia dizer alguma coisa,mas Giles fez-lhe sinal para que ficasse em silêncio. O médico prosseguiu. - SeKelvin, coitado, não a matou, o que pode ter acontecido?

- Outra pessoa a matou, respondeu Gwenda.

- Mas, minha cara, se outra pessoa a matou, por que havia Kelvin de insistir quefoi ele?

- Porque ele achava que era ele. Encontrou-a caída na cama e achou que tinhasido ele. Isso pode ter acontecido, não pode?

Kennedy esfregou a ponta do nariz, com ar irritado.

- Como é que posso saber? Não sou psiquiatra! Choque? Esgotamento nervoso?

É, suponho que seja possível... Mas quem podia querer matar Helen?

- Estamos pensando em três pessoas, disse Gwenda.

- Três pessoas? Quem são essas três pessoas? Ninguém tinha motivo para matarHelen... a menos que estivesse louco! Ela não tinha inimigos. Todos gostavam

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dela.

Aproximou-se da escrivaninha e abriu a gaveta.

- Encontrei isto outro dia. . . quando estava procurando as cartas.

Estendeu uma fotografia amarelada, na qual se via uma menina alta, deuniforme de ginástica, rabo-de-cavalo, um sorriso radioso. Kennedy, umKennedy mais moço, com ar feliz, estava a seu lado, segurando um cachorrinho.

- Tenho pensado muito nela, ultimamente, disse ele. - Há muitos anos nãopensava nela.. . tinha quase conseguido esquecer... Agora não paro de pensarnela. Isso é culpa de vocês!

Falava em tom acusador.

- Acho que a culpa é dela, retorquiu Gwenda.

- Como assim?

- Isso mesmo. Não sei explicar, mas não somos nós. É a própria Helen.

Um apito de locomotiva ecoou ao longe. Kennedy olhou pela janela. Ao longo dovale via-se um rastro de fumaça.

- Lá vai o trem, disse Kennedy.

- Chegando na estação?

- Não, partindo. Fez uma pausa.

- Ela vai chegar a qualquer momento.

Mas os minutos passavam e Lily Kimble não chegava.

II

Lily Kimble saltou do trem em Dillmouth Junction e atravessou a ponte parachegar ao lado oposto, onde o pequeno trem local estava à espera. Os passageiroseram poucos. No máximo uns seis. Era uma hora morta e, de qualquer modo,era dia de mercado em Helchester.

O trem partiu através do vale tortuoso. Havia três estações antes do final da linha,em Lonsbury Bay : Newton Langford, Matchings Halt, ou Woodleigh Camps, eWoodleigh Bolton.

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Lily Kimble olhava pela janela com olhos que não viam o verde da paisagem,mas sim um conjunto de sofá e poltronas estofados de verde jade.

Foi a única pessoa a descer na pequenina estação de Matchings Halt. Entregouseu bilhete e saiu através do escritório de reservas da estação. Mais adiante, nocaminho, havia uma placa com a inscrição "Woodleigh Post", indicando o atalhoque subia por uma íngreme colina.

Lily Kimble tomou o atalho e subiu pelo caminho em passos rápidos. 0 atalhopassava ao longo de um bosque e, do outro lado, a encosta da colina era cobertade tojo e urzes.

Alguém saiu de dentro do bosque e Lily Kimble recuou, amedrontada.

- Que susto! exclamou ela. - Não esperava encontrá-lo aqui!

- Que surpresa, não é? Pois tenho mais uma surpresa para você!

O bosque era deserto. Ninguém poderia ouvir um grito ou um barulho de luta.

Na realidade não houve grito e a luta logo terminou. Um pombo selvagemlevantou vôo...

III

- O que será que aconteceu com a mulher? perguntou Kennedy com ar irritado.

Os ponteiros do relógio marcavam dez para as cinco.

- Será que se perdeu a caminho daqui?

- Expliquei muito bem qual era o caminho. Aliás, é simplíssimo. Basta virar àesquerda ao sair da estação e depois pegar a primeira estrada à direita. Como jádisse, é urna caminhada de apenas alguns minutos.

- Talvez tenha desistido, observou Giles.

- Está parecendo que sim.

- Ou talvez tenha perdido o trem, sugeriu Gwenda.

- Não. Acho mais provável que ela tenha decidido não vir. Talvez o marido tenhaproibido. Essa gente do interior é sempre imprevisível.

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Continuou andando para um lado e para outro.

Em seguida aproximou-se do telefone e fez uma ligação.

- Alô! É da estação? Aqui fala Dr. Kennedy. Eu estava esperando uma pessoaque vinha no trem de quatro e trinta e cinco. Uma mulher de meia-idade.Alguém perguntou onde ficava minha casa?

Giles e Gwenda estavam suficientemente perto para ouvir a voz arrastada doúnico carregador de Woodleigh Bolton.

- Acho que essa pessoa não veio, doutor. Não tinha ninguém desconhecido notrem das quatro e trinta e cinco. Tinha só o Sr. Narracott, de Meadows, JohnnieLawes e a filha do velho Benson. Não tinha mais nenhum passageiro.

- Bem, quer dizer que ela mudou de idéia, disse Kennedy. - Bom, posso tomarchá com vocês. A água está fervendo na chaleira. Vou preparar o chá.

Voltou com o bule de chá e todos se sentaram.

- É um atraso apenas temporário, disse ele em tom mais animado. - Temos o seuendereço. Talvez possamos ir lá conversar com ela.

O telefone tocou e Kennedy levantou-se para atender.

-

Dr.

Kennedy?

-

Sim.

- Aqui fala o Inspetor Last, da polícia de Longford. 0 senhor estava esperandouma mulher chamada Lily Kimble - Sra. Kimble?

- Estava. Por quê? Houve algum acidente?

- Não se trata propriamente de um acidente. Ela está morta. Estou lhetelefonando porque encontramos uma carta sua junto ao corpo. Será que osenhor pode vir à polícia o mais rápido possível?

- Irei imediatamente.

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IV

- Bem, vamos esclarecer bem os fatos, dizia o Inspetor Last.

Olhou para Kennedy, Giles e Gwenda, que tinham acompanhado o médico.

Gwenda estava muito pálida e apertava fortemente as mãos uma contra a outra.

- O senhor Estava esperando essa mulher pelo trem que sai de Dillmouth Junctionàs quatro e cinco, e chega em Woodleigh Bolton às quatro e trinta e cinco?

Dr. Kennedy fez sinal que sim.

O Inspetor Last olhou para a carta que encontrara junto ao corpo.

Prezada

Senhora

Kimble:

Terei o maior prazer em lhe dar a melhor orientação possível. Como poderá ver,no alto desta página, não moro mais em Dillmouth. A senhora pode tomar o tremque sai de Coombeleigh às três e trinta, fazer uma baldeação em DillmouthJunction e tomar o trem de Lonsbury Bay para Woodleigh Bolton. Minha casafica no final do caminho, à direita. No portão há uma placa com meu nome.

Atenciosamente,

James Kennedy.

- Não se falou em sua vinda num trem que chegava mais cedo?

- Mais cedo? Kennedy fez um ar espantado.

- Foi isso o que ela fez. Saiu de Coombeleigh à uma e meia - e não as três e meia

- pegou o trem das duas e cinco em Dillmouth Junction e saltou em MatchingsHalt, a estação que fica antes de Woodleigh Bolton.

- Mas isso é fantástico!

- Tratava-se de uma consulta profissional, doutor?

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- Não. Deixei a clínica há muitos anos.

- Era o que eu achava. O senhor a conhecia bem?

Kennedy sacudiu a cabeça.

- Não a via há quase vinte anos.

- Mas o senhor. . . reconheceu-a agora.

Gwenda estremeceu, mas um cadáver não perturba um médico. Kennedyrespondeu, pensativamente: - Diante das circunstâncias, acho difícil dizer se areconheci ou não. Suponho que tenha sido estrangulada, não foi?

- Exatamente. O corpo foi encontrado num bosque próximo ao atalho que vai deMatching Halt para Woodleigh Camp. Quem o encontrou foi um excursionistaque estava caminhando a pé, vindo de Woodleigh Camp. Isso foi às dez para asquatro.

Nosso legista calcula que ela morreu entre duas e quinze e três horas.Provavelmente foi assassinada pouco depois de sair da estação. Nenhum outropassageiro saltou em Matchings Halt. Ela foi a única pessoa a descer nesse lugar.

- Bem, por que foi que ela saltou em Matchings Halt? prosseguiu o inspetor. -

Terá se enganado? Acho que não. De qualquer modo, estava com umadiantamento de mais de duas horas para o encontro com o senhor, e não tomouo trem que foi sugerido, apesar de trazer sua carta na bolsa. Sobre que assuntoiam conversar, Dr. Kennedy ?

Kennedy enfiou a mão no bolso e retirou a carta de Lily. - Trouxe isto comigo.

O recorte é um anúncio colocado pelo Sr. e Sra. Reed.

O Inspetor Last leu a carta de Lily Kimble e o anúncio. Em seguida olhou paraGiles e Gwenda.

- Gostaria de conhecer a história que está por trás de tudo isso. Suponho queremonte há muito tempo atrás, não é?

Aos poucos, com muitos parênteses e acréscimos, a história foi contada. 0

Inspetor Last era bom ouvinte, Deixou que as três pessoas a sua frente contassemas coisas à sua moda. Kennedy foi seco e prático. Gwenda mostrou-se

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ligeiramente incoerente, mas sua narrativa tinha um grande poder deimaginação. A contribuição mais valiosa foi dada por Giles, que falou comclareza, sem sair do assunto, de modo menos reservado que o de Kennedy emais coerente que o de Gwenda. A história toda demorou muito tempo.

O Inspetor Last suspirou e fez um resumo.

- A Sra. Halliday era irmã do Dr. Kennedy e era sua madrasta, Sra. Reed.

Desapareceu da casa onde a senhora mora atualmente há dezoito anos atrás.Lilly Kimble, cujo nome de solteira era Abbott, era empregada da casa naquelaépoca. Por algum motivo, depois de anos, Lily Kimble acha que houve umcrime. Na ocasião, concluiu-se que a Sra. Halliday tinha fugido com um homemde identidade desconhecida. O Major Halliday faleceu numa clínica psiquiátricahá quinze anos atrás, ainda com a idéia fixa de que tinha estrangulado suamulher... se é que era uma idéia fixa . . .

Fez uma pausa.

- Todos esses fatos são muito interessantes, mas o principal é sabermos oseguinte: A Sra. Halliday está viva ou morta? Se estiver morta, quando morreu? Eo que é que Lily Kimble sabia?

- Parece, diante das circunstâncias, prosseguiu o inspetor, - que ela sabia algumacoisa muito importante. Tão importante que foi assassinada para evitar quefalasse sobre o assunto.

- Mas como é que alguém., a não ser nós, podia saber que ela falaria sobre oassunto? exclamou Gwenda.

- O fato de ela ter tomado o trem das duas e cinco em Dillmouth Junction, emvez do de quatro e cinco, é bastante significativo, Sra. Reed. Deve ter havidoalguma razão para isso. E por que saltou na estação anterior a Woodleigh Bolton?Por quê?

Parece-me possível que, depois de ter escrito ao Dr. Kennedy, ela tenha feito omesmo a outra pessoa, marcando um encontro em Woodleigh Camps. Caso esseencontro não fosse satisfatório, iria então aconselhar-se com o Dr. Kennedy. Épossível que ela suspeitasse de alguém e que tenha escrito para essa mesmapessoa, insinuando que sabia alguma coisa e marcando um encontro.

- Chantagem... observou Giles.

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- Acho que não era essa a sua maneira de ver a coisa, respondeu o Inspetor Last.

- Ela era apenas ambiciosa e estava meio confusa quanto ao que conseguiriaobter.

Vamos ver... Talvez o marido possa nos dizer mais alguma coisa.

V

- Eu avisei a ela, bem que avisei, disse o Sr. Kimble em tom deprimido. - Não semeta nessa encrenca! Foi assim que falei para ela. Saiu escondida de mim.Achou que ela sabia o que fazer. Lily era assim mesmo. Toda metida a esperta.

O interrogatório mostrou que o Sr. Kimble pouco tinha a contar.

Lily trabalhara em St. Catherine antes de ele conhecê-la e começar a sair comela. Gostava muito de cinema e lhe dissera que, quer acreditasse ou não, elahavia trabalhado numa casa onde tinha havido um assassinato.

- Não prestei muita atenção, nem liguei. Achei que era tudo imaginação. Lilynunca se contentava com explicações simples. Contou uma história incrível,dizendo que o patrão tinha matado a patroa e talvez tivesse escondido o corpo noporão... e falou também numa moça francesa que olhou pela janela e viualguma coisa ou alguém. Eu disse a ela: - Minha filha, não ligue para o que essesestrangeiros contam. São todos uns mentirosos. Não são como nós. E quando, elaficava falando nisso eu nem prestava atenção, porque ela estava imaginandotudo. Lily gostava muito de crimes. Comprava sempre o Sunday News para ler aseção de Assassinos Famosos. Ficara toda empolgada e, afinal, se ela gostava deachar que tinha trabalhado numa casa onde houve um crime...

bem, pensar não faz mal a ninguém, não é? Mas, quando ela começou a quererresponder a esse anúncio, eu disse para ela: - Deixe isso para lá. Não se metanessa encrenca! Se tivesse feito o que eu falei, estaria viva.

Ficou pensativo durante alguns instantes.

- Ahn. . . murmurou finalmente. - Estaria viva. . . Era muito metida a esperta.

Lily era assim mesmo...

CAPÍTULO XXIII

Q UAL DELES?

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Giles e Gwenda não foram interrogar o Sr. Kimble junto com o Inspetor Last eKennedy. Por volta das sete horas foram para casa. Gwenda estava pálida eindisposta.

Kennedy dissera a Giles que fizesse Gwenda tomar um pouco de conhaque,comer alguma coisa e ir para a cama, pois tivera um grande choque.

- É horrível, Giles, repetia ela sem cessar. - Horrível! Coitada da mulher, marcouum encontro com o assassino e foi toda confiante... para ser assassinada! Comoum carneirinho...

- Não pense mais nisso, querida. Afinal de contas nós não sabíamos que haviamais alguém - um assassino.

- É verdade. Não sabíamos que havia um assassino agora. Quer dizer, havia umassassino naquela época... há dezoito anos atrás. É uma coisa meio irreal. Quemsabe foi tudo engano?

- Bem, isso prova que não foi engano. Você tinha razão, Gwenda.

Giles alegrou-se ao encontrar Miss Marple em Hillside. Miss Marple, assim comoa Sra. Cocker, insistiram para que Gwenda tomasse um conhaque, mas ela serecusou, alegando que conhaque sempre lhe lembrava a travessia da Mancha.Finalmente acabou aceitando um uísque quente com limão e depois, porinsistência da Sra.

Cocker, sentou-se e comeu um omelete.

Giles queria falar de outro assunto, mas Miss Marple, com sua tática especial, fezquestão de discutir o crime de modo tranqüilo e distante.

- Horrível, meu caro, disse ela. - E também muito chocante, mas inegavelmentesignificativo. Evidentemente, como sou muito velha, a morte não me choca tantoquanto a vocês, a não ser que se trate de uma coisa prolongada e que faça sofrer,como um câncer, por exemplo. O ponto mais importante é que isso prova emdefinitivo, sem qualquer sombra de dúvida, que a pobre Helen Halliday foiassassinada. Sempre achamos isso e agora temos certeza.

- E, segundo a senhora, devíamos saber onde está o corpo, disse Giles. -

Suponho que esteja no porão.

- Não, Sr. Reed. Lembre-se de que Edith Pagett disse que na manhã seguinte foiao porão, porque estava impressionada com o que Lily tinha falado, e não

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encontrou nenhum sinal de nada. E se houvesse algum sinal ela teria achado.

- Então o que foi feito do corpo? Levaram embora de carro e atiraram ao mar,do alto de um penhasco?

- Não. Escutem, queridos, o que foi que chamou a atenção de vocês - ou melhor,a sua atenção, Gwenda, quando veio aqui pela primeira vez? O fato de que dajanela da sala não se via o mar. No local em que você achou, e com toda razão,que deveria haver degraus para descer até o gramado, havia uma porção dearbustos. Mais tarde você descobriu que os degraus originais eram ali, mas queem alguma época construíram outros degraus na ponta do terraço. Por que foique mudaram o local?

Gwenda olhou-a fixamente, começando a compreender.

- A senhora acha então que foi ali que. . .

Deve ter havido algum motivo ara a alteração, pois foi uma alteração que nãotem sentido. Um lugar idiota para colocar degraus que descem até o gramado.Mas aquela ponta do terraço é um lugar muito sossegado - só é visto da casaatravés de uma janela - a janela do quarto de crianças, no primeiro andar.Vejam bem, se alguém quer enterrar um corpo a terra vai ficar remexida, e épreciso que haja um motivo para isso. 0

motivo alegado foi o de que se decidiu mudar os degraus para a ponta do terraço.

Kennedy me contou que Helen Halliday e o marido gostavam muito do jardim eviviam mexendo nele. 0 jardineiro se limitava a cumprir ordens e se, ao chegarpara o trabalho, encontrasse algumas pedras fora do lugar, acharia apenas que ocasal começara o trabalho durante sua ausência. Naturalmente, o corpo pode tersido enterrado em qualquer dos dois lugares, mas acho que podemos ter quasecerteza de que foi enterrado na ponta do terraço, e não na frente da janela dasala.

- Como podemos ter certeza? perguntou Gwenda.

- Por causa do que a pobre Lily Kimble disse na carta - que mudou de idéiaquanto ao corpo ter sido enterrado no porão por causa do que Léonie viu quandoolhou pela janela. Isso torna as coisas bem mais claras, não acham? Durante anoite a moça olhou pela janela e viu escavarem um buraco na terra. Talvez elatenha visto até quem estava cavando.

- E nunca foi dizer nada à polícia?

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- Minha cara, naquela época ninguém estava pensando em crime. A Sra.

Halliday tinha fugido com um amante. Léonie só sabia disso e, de qualquermodo, mal falava inglês. Contou para Lily que tinha visto um fato estranho,quando olhou pela janela naquela noite, e isso aumentou a crença de Lily de quetinha havido um crime.

Pode ser que tenha contado isso mais tarde, e não no mesmo dia. Mas não tenhodúvida de que Edith Pagett disse a Lily que parasse de inventar bobagens, e amoça suíça resolveu seguir esse conselho porque não queria se meter com apolicia. Os estrangeiros sempre têm medo da polícia quando estão em outro país.De modo que ela voltou para a Suíça e provavelmente nunca mais pensou noassunto.

- Se ela ainda estivesse viva... murmurou Giles. - Se pudesse ser encontrada...

- Quem sabe? disse Miss Marple.

- O que devemos fazer? perguntou Giles.

- A polícia saberá melhor que nós o que se deve fazer, respondeu Miss Marple.

- O Inspetor Last vem aqui amanhã de manhã.

- Então acho que devia falar a ele... sobre os degraus. - E quanto ao que vi... ouacho que vi... no saguão? perguntou Gwenda em tom nervoso.

- Bem, querida, acho que você fez muito bem em não ter falado nada sobre issoaté o momento. Fez muito bem. Mas acho que está na hora de contar tudo.

- Ela foi estrangulada no saguão, disse Giles lentamente, - e depois o assassino acarregou para cima e colocou-a na cama. Kelvin Halliday chegou em casa,ficou inconsciente com a droga que tinham posto no uísque e foi, por sua vez,carregado para o quarto. Voltou a si e pensou que matara a mulher. O assassinodevia estar à espreita em algum lugar. Quando Kelvin saiu para ir procurarKennedy, o assassino pegou o corpo e provavelmente o escondeu no meio dosarbustos da ponta do terraço. Depois esperou até que todos estivessem dormindo,cavou um buraco e enterrou o corpo. Isso quer dizer que ele deve ter ficado poraqui, dentro de casa, quase toda a noite.

Miss Marple assentiu com a cabeça.

- Ele tinha de estar no local, prosseguiu Giles. Lembro-me de que a senhora falouque isso era importante. Temos que ver qual dos nossos três suspeitos encaixa na

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história. Vamos começar por Erskine. Não há dúvida de que estava no local. Elemesmo disse que subiu com Helen até aqui, vindo da praia, por volta das novehoras. Disse-lhe adeus. Mas será mesmo que disse adeus, ou a estrangulou?

- Mas estava tudo acabado entre eles! exclamou Gwenda. - Há muito tempo! Elemesmo disse que quase nunca ficava a sós com Helen.

- Você tem que entender, Gwenda, que agora não podemos mais nos basear emnada do que qualquer pessoa disse!

- Fico muito satisfeita em ouvi-lo falar isso, observou Miss Marple, - porquefiquei um pouco preocupada ao ver vocês dois aceitarem como verdadeirastodas as coisas que as pessoas disseram. Talvez eu seja uma pessoa bastantedesconfiada, mas, num caso de assassinato, faço questão de não acreditar emnada que não possa ser provado. Por exemplo, parece certo que Lily Kimbledisse que as roupas que desapareceram não seriam as roupas escolhidas porHelen Halliday. Edith Pagett contou que Lily disse isso a ela, e a própria Lilyreferiu-se ao fato na carta para Kennedy. Bem, então isso é um fato. Kennedynos disse que Kelvin Halliday achava que sua mulher estava lhe dando drogas e,no seu diário, Kelvin Halliday o confirma. Portanto, há outro fato... e um fatobastante interessante, não acham? Bem, mas não vamos falar nisso por enquanto.

- Mas o que eu gostaria de ressaltar, prosseguiu Miss Marple, - é que muitas dassuposições que vocês fizeram se baseavam no que foi dito a vocês, eprovavelmente foram afirmações muito plausíveis.

Giles olhou fixamente para ela.

Gwenda, já refeita, tomava café e estava apoiada sobre a mesa.

- Vamos verificar o que três pessoas nos contaram, disse Giles. - Vamos começarpor Erskine. Ele disse...

- Você cismou com ele, interrompeu Gwenda. - É perda de tempo, porque agoraele está definitivamente afastado. Não poderia ter matado Lily Kimble.

Giles prosseguiu sem se deixar perturbar.

- Ele disse que conheceu Helen no navio a caminho da Índia, e que os dois seapaixonaram, mas que ele não conseguiu tomar a decisão de abandonar amulher e os filhos, concordaram, então, em se dizerem adeus. Vamos supor quenão tenha sido bem assim. Vamos supor que ele se tenha apaixonadoperdidamente por Helen e que e1a não quis fugir com ele. Vamos supor que ele a

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ameaçou de morte caso se casasse com outro homem.

- É muito pouco provável, observou Gwenda.

- Essas coisas acontecem. Lembre-se do que você ouviu a mulher dele dizer.

Você acha que é tudo ciúmes, mas pode ter sido verdade. Talvez ela tenhapassado um mau bocado com ele em relação a mulheres. Pode ser que ele sejaum maníaco sexual.

- Acho que não.

- Você acha que não porque ele atrai as mulheres. Pessoalmente, acho que háalguma coisa estranha em relação a Erskine. Bem, mas vamos continuar minhateoria sobre ele. Helen rompe o noivado com Fane, volta para a Inglaterra, casacom seu pai e vem morar aqui. De repente, Erskine aparece. Vem passar asférias aqui com a mulher.

É uma coisa realmente muito esquisita. Ele admite que veio para tornar a verHelen.

Bem, vamos supor que Erskine fosse o homem que estava na sala com ela no diaem que Lily a ouviu dizer que tinha medo dele. - Eu tenho medo de você...Sempre tive medo de você... Acho que você é doido...

- E, porque ela está com medo, planeja ir morar em Norfolk, mas faz segredodisso. Ninguém deve ficar sabendo. Ninguém deve ficar sabendo até o casalErskine ir embora de Dillmouth. Até aí tudo encaixa. Agora vamos à noitefatídica. Não sabemos o que o casal Halliday estava fazendo naquela noite, maiscedo. . .

Miss

Marple

pigarreou.

- Por falar nisso, tornei a conversar com Edith Pagett. Ela se lembra de quenaquela noite jantaram cedo - às sete horas porque o Major Halliday ia a umareunião -

ela acha que era no Golf Club ou então na igreja. A Sra. Halliday saiu depois dojantar.

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- Certo. Helen encontra Erskine, tendo marcado um encontro na praia. Ele vaipartir no dia seguinte. Talvez não queira mais ir. Insiste para que Helen fuja comele.

Ela volta para casa e ele vem junto. Finalmente, num acesso de loucura, ele aestrangula. Quanto ao que se segue estamos todos de acordo. Ele quer que KelvinHalliday pense que foi ele quem a matou. Mais tarde, Erskine enterra o corpo.

Lembrem-se de que ele disse a Gwenda que voltou para o hotel muito tardeporque ficou andando por Dillmouth.

- O que será que a mulher dele estava fazendo? perguntou Miss Marple.

- Provavelmente estava louca de ciúmes, disse Gwenda, - e fez um escândaloquando ele chegou.

- É o que imagino, disse Giles. - E é possível.

- Mas ele não poderia ter matado Lily Kimble, observou Gwenda, - porque elemora em Northumberland. Portanto, pensar que foi ele é pura perda de tempo.Vamos a Walter Fane.

- Certo. Walter Fane é um sujeito reprimido. Parece dócil, amável, facilmentecomandado. Mas Miss Marple nos deu um testemunho muito valioso. Em certaocasião Walter Fane ficou com tanta raiva que quase matou o irmão.Evidentemente, era apenas uma criança, mas foi um fato que espantou a todos,porque aparentemente tinha um temperamento tão bom... Bem, Walter Faneapaixona-se por Helen Kennedy. Fica louco por ela. Ela não liga para ele e estevai para a Índia. Mais tarde ela escreve dizendo que vai casar com ele. Partepara a Índia. Aí vem o segundo golpe. Assim que chega lá ela rompe tudo.Conheceu alguém no navio. Volta para a Inglaterra e se casa com KelvinHalliday. Possivelmente Walter Fane acha que Kelvin Halliday foi o pivô dahistória.

Fica ressentido, com ódio, louco de ciúmes, e volta para cá. Comporta-se demaneira toda afável e amiga, freqüenta a casa, torna-se aparentemente umbichinho de estimação. Mas talvez Helen perceba que não é verdade. Vê o queestá por trás das aparências. Talvez, muito tempo antes, tenha percebido algoestranho no jovem Walter Fane. Diz para ele: - Acho que sempre tive medo devocê. Planeja secretamente ir embora de Dillmouth e morar em Norfolk. Porquê? Porque está com medo de Walter Fane.

- Bem, voltamos à noite fatídica, prosseguiu Giles. - Agora não estamos pisando

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em terreno firme. Não sabemos o que Walter Fane estava fazendo naquela noitee não vejo possibilidade de chegarmos a descobrir. Mas ele estava no local, vistoque morava numa casa localizada a dois ou três minutos a pé. Pode ser que tenhadito que ia para a cama cedo porque estava com dor de cabeça, ou que ficariatrabalhando no escritório, qualquer coisa nesse gênero. Podia ter feito todas ascoisas que achamos que o assassino fez e, na minha opinião, seria o maissuscetível dos três de cometer erros ao arrumar a mala, pois não conhece asmulheres e não saberia escolher as roupas certas.

- Foi estranho... disse Gwenda. - Naquele dia que fui ao escritório dele tive umasensação esquisita de que ele parecia uma casa de janelas fechadas... e fiz atéuma fantasia a respeito - achei que dentro da casa tinha uma pessoa morta.

Olhou para Miss Marple.

- A senhora acha que é bobagem minha? perguntou.

- Não, querida. Acho que talvez você esteja certa.

- E agora, disse Gwenda, - chegamos a Afflick. O Afflick dos ônibus de turismo.

Jackie Afflick, que sempre foi metido a esperto. A primeira coisa contra ele é queKennedy achava que ele tinha uma mania de perseguição incipiente, isto é,nunca foi perfeitamente normal. Contou-nos tudo sobre ele e sua irmã, masagora concordamos que era tudo mentira. Ele não achava apenas que Helen erauma menina bonitinha.

Estava loucamente apaixonado por ela. Mas ela não estava apaixonada por ele.Apenas se divertia. Era louca por homens, como diz Miss Marple.

- Não, minha cara, eu não disse isso. Não disse nada disso.

- Bem, era ninfomaníaca, se prefere usar esse termo. De qualquer modo, teveum caso com Jackie Afflick e depois quis acabar tudo. Ele não queria que issoacontecesse.

0 irmão dela ajudou-a a sair da encrenca, mas Jackie Afflick jamais esqueceunem perdoou. Ficou sem o emprego e, segundo ele, caiu numa cilada preparadapor Walter Fane. Isso mostra um sinal definitivo de mania de perseguição.

- Sim concordou Giles, - mas, por outro lado, se isso for verdade, é mais umponto contra Fane... e um ponto importante.

Gwenda

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prosseguiu.

- Helen vai para o exterior e ele vai embora de Dillmouth. Mas jamais a esquecee, quando ela volta para Dillmouth, casada, ele vem visitá-la. Primeiro ele disseter vindo uma vez, mas depois admite que veio mais de uma vez. E... oh, Giles!Você não lembra? Edith Pagett se referiu a "nosso homem misterioso num carrobacana". Isso quer dizer que ele vinha aqui o suficiente para dar o que falar entreas empregadas. Mas Helen tomou o cuidado de não convidá-lo para jantar, denão deixá-lo conhecer Kelvin.

Talvez tivesse medo dele. Talvez...

Giles

interrompeu.

- Pode ser uma explicação, disse ele. Suponhamos que Helen estivesseapaixonada por ele - o primeiro homem de quem gostou, e suponhamos quecontinuasse gostando dele. Talvez tenham tido um caso e ninguém chegou a saberdisso. Mas talvez ele quisesse que ela fugisse com ele e a essa altura ela já sesentisse farta e não quisesse ir, e daí... e daí... ele a matou, e o resto nós jásabemos. Na carta para Kennedy, Lily disse que naquela noite havia um carroúltimo tipo parado na porta. Era o carro de Jackie Afflick. Jackie Afflick tambémestava no local.

- É apenas uma hipótese disse Giles - mas parece-me razoável. Porémprecisamos nos lembrar das cartas de Helen. Andei quebrando a cabeça,pensando nas

"circunstâncias", como disse Miss Marple, sob as quais ela poderia ter sidoforçada a escrevê-las. Tenho a impressão de que, para explicar as cartas, temosque admitir que Helen tinha realmente um amante e que pretendia fugir com ele.Vamos examinar de novo as três possibilidades. Comecemos por Erskine. Vamossupor que Erskine não quisesse abandonar a mulher e os filhos, mas que Helenestivesse disposta a abandonar Kelvin e se mudar para um lugar onde Erskinepudesse estar com ela de vez em quando.

A primeira coisa a fazer é acabar com a desconfiança da Sra. Erskine. Para isso,Helen escreve duas cartas que vão chegar a tempo às mãos de seu irmão e quelhe farão crer que ela foi para o exterior com alguém. Por isso ela se mostrou tãomisteriosa quanto ao nome do homem em questão.

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- Mas se ela ia largar o marido por causa dele, por que foi que ele a assassinou?

perguntou Gwenda.

- Talvez ela tenha mudado de idéia de repente. Talvez tenha achado que, apesarde tudo, gostava do marido. Erskine perdeu a cabeça e a estrangulou. Emseguida, pegou as roupas e a mala e aproveitou as cartas. É uma explicação queresolve tudo.

- O mesmo pode ser dito sobre Walter Fane, observou Gwenda. - Acho que umescândalo seria uma coisa desastrosa para um advogado do interior. Helen podeter decidido ir para um lugar nos arredores, onde Fane pudesse ir vê-la, masfingindo que fora para o exterior com outra pessoa. As cartas estavam prontas eaí ela mudou de idéia. Walter ficou com ódio e a matou.

- E quanto a Jackie Afflick?

- Aí já se torna mais difícil encontrar uma explicação para as cartas. Umescândalo não o afetaria. Talvez Helen estivesse com medo de meu pai, e nãodele, e então achou que era melhor fingir que tinha ido para o exterior... Outalvez, naquela época, a mulher de Afflick tivesse dinheiro e ele precisasse delepara investir nos negócios. Oh, há muitas possibilidades quanto às cartas!

- O que é que a senhora acha, Miss Marple? perguntou Gwenda.

- Não acho que tenha sido Walter Fane... mas...

A Sra. Cocker entrou na sala para retirar as xícaras de café.

- Desculpe senhora, disse ela, - mas esqueci de lhe dar um recado. Fiquei tãoperturbada com esse crime, e a senhora e o Sr. Reed envolvidos numa coisadessas! Não é coisa para a senhora! Bem, o Sr. Fane esteve aqui hoje à tarde eperguntou pela senhora. Esperou meia-hora. Pelo jeito pensou que a senhoraestava à espera dele.

- Que coisa estranha! exclamou Gwenda. - A que horas foi isso?

- Deve ter sido às quatro horas, ou pouco depois disso. Depois, mais tarde, veioaqui outro senhor, num grande carro amarelo. Afirmou que a senhora estava àsua espera. Ficou aborrecido. Aguardou vinte minutos. Achei que talvez asenhora os tenha convidado para tomar chá e tenha esquecido.

- Não, disse Gwenda. - Que coisa estranha!

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- Vamos telefonar para Fane, disse Giles. - Ainda não deve ter ido dormir.

- Alô! É Fane? Aqui fala Giles Reed. Ouvi dizer que o senhor veio nos procurarhoje à tarde... Como?... Não... não, tenho certeza... não, que coisa estranha! É,também não sei.

Desligou

o

telefone.

- Aconteceu uma coisa esquisita. Hoje de manhã telefonaram para o escritóriode Fane e deixaram um recado para ele vir aqui à tarde. Disseram que era umassunto importante.

Giles e Gwenda entreolharam-se. Em seguida Gwenda disse: - Telefone paraAfflick!

Giles tornou a pegar o fone e fez a ligação.

- Sr. Afflick? Aqui fala Giles Reed. Eu...

Era evidente que, do outro lado da linha, alguém o interrompera com umatorrente de palavras, ao final das quais ele conseguiu falar novamente.

- Mas nós não... não, eu garanto que não... nada disso... sim, sim... eu sei que osenhor é um homem ocupado. Nem me passaria pela cabeça... Sim, mas escuteaqui, quem foi que lhe telefonou?... Um homem?... Não, não fui eu. Não... não...Ah, sim, compreendo!... Bem, concordo que é fantástico!

Recolocou o fone no gancho e voltou para a sala.

- Bem, disse ele, alguém, - um homem que disse que era eu, telefonou paraAfflick pedindo que viesse aqui. Era urgente - havia muito dinheiro envolvido.

Os três estavam perplexos.

- Pode ter sido qualquer um deles, disse Gwenda. - Você não compreende, Giles?Qualquer dos dois pode ter matado Lily e ter vindo até aqui para forjar um álibi!

- Seria um álibi muito fraco, querida, observou Miss Marple.

- Bem, não seria propriamente um álibi, mas uma desculpa para se ausentarem

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do escritório. O que quero dizer é o seguinte: um deles está dizendo a verdade e ooutro está mentindo. Um telefonou para o outro, pedindo-lhe que viesse aqui...para torná-lo suspeito... mas não sabemos qual deles foi. Só pode ter sido um dosdois. Fane ou Afflick. Eu acho que foi Jackie Afflick.

- E eu acho que foi Walter Fane, retorquiu Giles.

Ambos olharam para Miss Marple, que sacudiu a cabeça.

- Há outra possibilidade, observou ela.

- Erskine, é claro!

Giles correu para o telefone.

- O que é que você vai fazer? perguntou Gwenda.

- Vou pedir uma ligação interurbana para Northumberland.

- Oh, Giles! Você não pode estar achando...

- Temos que saber! Se ele estiver lá, não pode ter matado Lily Kimble esta tarde.É impossível ter arranjado um avião particular ou uma coisa qualquer no gênero.

Esperaram em silêncio até o telefone tocar. Giles atendeu.

- Sua chamada para o Major Erskine, senhor, disse a telefonista. - Pode falar. 0

Major Erskine está na linha.

Pigarreando nervosamente Giles disse : - Erskine? Aqui fala Giles Reed . . . Sim,Reed.

Lançou um olhar agoniado, para Gwenda, sem saber o que dizer.

Gwenda levantou-se e pegou o fone.

- Major Erskine? Aqui fala a Sra. Reed. Ouvimos falar de uma casa aí perto...

Chama-se Linscott Brake. O senhor a conhece? Acho que fica aí perto da sua.

A voz de Erskine respondeu: - Linscott Brake? Não, acho que nunca ouvi falarnessa casa. Qual é o código postal da cidade?

- Está quase ilegível, respondeu Gwenda. - O senhor sabe como são horríveis

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esses anúncios datilografados que os corretores mandam. Mas diz que a casa ficaa quinze milhas de Daith, e então pensei que...

- Sinto muito, mas nunca ouvi falar nessa casa. Quem é que mora lá?

- Oh, o anúncio não diz! Mas não faz mal, porque na realidade nós... nós jáescolhemos uma casa. Sinto muito tê-lo incomodado. Provavelmente o senhorestava ocupado.

- Não, de modo algum! Isto é, estava ocupado com afazeres domésticos. Minhamulher foi para fora e cozinheira teve que ir ver a mãe, de modo que estou àsvoltas com problemas domésticos. Acho que não dou muito para isso. Gosto maisdo jardim.

- Prefiro sempre cuidar do jardim a ter que fazer trabalhos domésticos,respondeu Gwenda. - Espero que sua mulher não esteja doente?

- Oh, não! Ela teve de ir passar uns dias na casa da irmã. Volta amanhã.

- Bem, boa noite! Desculpe ter incomodado o senhor.

Gwenda desligou o telefone.

- Erskine está fora de tudo isso, disse ela em tom de triunfo. - A mulher deleviajou e ele está cuidando da casa. De modo que restam apenas os outros dois.

Concorda comigo, Miss Marple?

Miss Marple estava com um ar muito sério.

- Queridos, acho que vocês não pensaram o suficiente sobre esse assunto. Oh,estou realmente muito preocupada! Se menos soubesse exatamente o que fazer...

CAPITULO XXIV

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AS PATAS DE MACACO

Gwenda pôs os cotovelos sobre a mesa e apoiou o queixo nas mãos, enquantoseus olhos percorriam, sem interesse, os restos de um almoço apressado.Precisava levar a louça para a copa, lavar os pratos, guardar tudo e providenciaralguma coisa para o jantar.

Não havia, porém a menor pressa. Sentia que precisava de um pouco de tempopara pensar. Tudo acontecera depressa demais.

Ao rever os acontecimentos da manhã, eles lhe pareciam caóticos e impossíveis.

Tudo acontecera depressa demais e de maneira absolutamente inverossímil.

O Inspetor Last chegara cedo - às nove e meia. Estava acompanhado peloInspetor Primer e pelo chefe de polícia do condado. Este último não ficara lámuito tempo. Agora, quem estava à testa do caso da morte de Lily Kimble, e detodas as suas conseqüências, era o Inspetor Primer.

Tratava-se de um homem com um ar de falsa amabilidade e voz suave, falandosempre num tom de quem pedia desculpas. O inspetor perguntara a Gwenda sepodia mandar seus homens escavarem o jardim.

Pelo seu tom de voz, dava a impressão de que queria apenas que seus homensfizessem um pouco de exercício, não parecendo que iam procurar um cadáverenterrado há dezoito anos.

Giles dissera ao inspetor que talvez pudesse ajudá-lo através de algumassugestões.

Contou-lhe, então, sobre a mudança nos degraus de pedra que levavam aogramado, e acompanhou-o até o terraço.

O inspetor olhara para a janela de grades do primeiro andar e observara que alidevia ser o quarto de crianças.

Giles

respondera

afirmativamente.

Em seguida Giles e o inspetor voltaram para dentro de casa e dois homensmunidos de pás se dirigiram ao jardim. Antes que o inspetor começasse a fazer

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perguntas, Giles lhe dissera:

- Inspetor, sugiro que o senhor ouça uma coisa que minha mulher ainda nãocontou para ninguém, a não ser para mim... e... para uma outra pessoa.

O olhar amável, porém bastante constrangedor, fixou-se em Gwenda com arespeculativo. Gwenda pensou consigo mesma: Ele está querendo adivinhar sepode confiar em mim ou se sou do tipo de mulher que imagina coisas.

A sensação era tão forte que ela começou a falar em tom defensivo.

- Pode ser que eu tenha imaginado isso tudo, disse ela. - Talvez tenha mesmo.

Mas parece-me uma coisa verdadeira. O Inspetor Primer falou em tom amávele conciliador.

- Bem, Sra. Reed, vamos ouvir o que a senhora tem a dizer.

E Gwenda contou tudo. Como a casa lhe parecera conhecida assim que a viupela primeira vez. Como viera a saber, depois, que ela morara ali quandocriança. Como se lembrara do papel de parede do quarto de crianças, da porta decomunicação e da certeza de que num determinado local deveriam existirdegraus para ir até o gramado.

O Inspetor Primer ouvia em silêncio. Não chegou a dizer que as lembrançasinfantis de Gwenda não tinham maior interesse, mas Gwenda sentiu que era essaa sua opinião.

Finalmente ela chegou ao ponto mais difícil e contou que se lembrarasubitamente, no teatro, de ter olhado através da balaustrada da casa e ter vistouma mulher morta no saguão.

- Com o rosto azulado... tinha sido estrangulada... e o cabelo louro... e era Helen...Mas era uma coisa idiota, porque eu não tinha a menor noção de quem eraHelen!

- Temos a impressão de que... começou Giles a dizer. Mas o Inspetor Primer,com ar subitamente autoritário, interrompeu-o fazendo um sinal com a mão.

- Por favor, deixe a Sra. Reed contar com suas próprias palavras.

Gwenda prosseguira aos arrancos. Seu rosto estava afogueado, e o InspetorPrimer, com extraordinária destreza técnica, procurava ajudá-la.

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- Webster? murmurou ele em tom pensativo. - Ahn. A Duquesa de Malfi. Patas demacaco?

- Mas isso provavelmente foi um pesadelo, disse Giles.

- Por favor, não interrompa, Sr. Reed.

- Talvez tenha sido tudo um pesadelo, observou Gwenda.

- Não, acho que não foi, respondeu o Inspetor Primer. - Seria muito difícilexplicar a morte de Lily Kimble, a não ser que soubéssemos que uma mulher,foi assassinada nesta casa.

Seu tom era compreensivo, quase confortador. Gwenda animou-se e prosseguiu.

- E não foi meu pai quem a matou. Tenho certeza disso. Até o Dr. Penrose disseque ele não era desse tipo. E o Dr. Kennedy tinha certeza de que ele nãocometera o crime, que apenas pensara que sim. De modo que só pode ter sidoalguém que queria dar a impressão de que foi meu pai, e acho que sabemosquem foi... ou, pelo menos, sabemos que foi uma entre duas pessoas...

- Gwenda! interrompeu Giles. - Não podemos...

- Sr. Reed, interrompeu o Inspetor Primer por sua vez, - Será que o senhor seincomoda de ir até o jardim para ver o trabalho de meus homens? Diga a elesque fui eu quem mandei o senhor lá.

Quando Giles saiu da sala, o Inspetor Primer fechou as portas-janela, passando otrinco de segurança, e voltou para junto de Gwenda.

- Bem, conte tudo o que acha, Sra. Reed. - Não se preocupe se suas idéiasparecerem incoerentes.

Gwenda lhe contara todas as especulações e raciocínios feitos por ela e por Giles.Contou tudo o que fizeram para descobrir o máximo possível de informaçõessobre os três homens que participaram da vida de Helen. Contou também a queconclusões tinham chegado, e informou-o sobre os telefonemas da véspera paraWalter Fane e J. J. Afflick, pedindo-lhes que fossem a Hillside e usando o nomede Giles.

- Acho que o senhor concorda, Inspetor, que um dos dois pode estar mentindo,não é?

Em tom afável, porém cansado, o inspetor respondeu: - Isso é uma das principais

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dificuldades no meu trabalho. Tantas pessoas podem estar mentindo! Tantaspessoas geralmente estão mentindo... Às vezes mentem por motivos diferentesdos que a gente imagina, e às vezes nem sabem que estão mentindo.

- O senhor acha que eu sou assim? perguntou Gwenda com ar apreensivo.

- Acho que a senhora é uma testemunha muito verdadeira, Sra. Reed, respondeusorrindo o inspetor.

- E acha que estou certa quanto a quem a matou?

O inspetor suspirou. - Para nós não se trata de achar isto ou aquilo, respondeu ele.- Trata-se de verificar tudo. Onde estavam as pessoas, o que cada uma delas dizsobre seus movimentos... Sabemos com bastante precisão a que horas LilyKimble foi morta. Entre duas e vinte e duas e quarenta e cinco. Qualquer pessoapodia ter cometido o crime e depois ter vindo para cá, ontem à tarde.Pessoalmente não entendo a razão dos telefonemas. Não dá nenhum álibi àspessoas de quem a senhora falou.

- Mas o senhor vai descobrir o que estavam fazendo nessa hora, não é? Entreduas e vinte e duas e quarenta e cinco. O senhor vai interrogá-los?

O Inspetor Primer sorriu.

- Pode estar certa de que faremos as perguntas necessárias, Sra. Reed. Masvamos esperar o momento adequado. Não adianta apressar os acontecimentos. Épreciso pensar com calma.

Gwenda compreendeu a maneira de trabalhar do inspetor. Calma e paciente.

Sem pressa, sem remorsos...

- Compreendo. . . murmurou ela. - O senhor é um profissional e Giles e eu somosamadores. Poderíamos acertar por sorte... mas não saberíamos trabalhar demodo organizado.

- É mais ou menos isso, Sra. Reed.

O inspetor tornou a sorrir. Levantou-se e abriu as portas-janela. Em seguida,quando ia passar para o terraço, estancou. Parece um cão de caça, pensouGwenda consigo mesma.

- Sra. Reed, aquela senhora ali é Miss Marple, por acaso?

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Gwenda aproximou-se dele. No fundo do jardim, Miss Marple continuavalutando com a trepadeira.

- Sim, é ela mesma. Um amor de pessoa. Tem nos ajudado tanto no jardim!

- Miss Marple, murmurou o inspetor. - Estou compreendendo...

Gwenda olhou-o com ar interrogativo e ele acrescentou: - É um amor de pessoa.

Miss Marple é uma pessoa muito famosa. Já passou para trás pelo menos trêschefes de polícia de diversos condados. Ainda não conseguiu passar meu chefepara trás, mas acho que isso ainda vai acontecer. Quer dizer que Miss Marple estámetida neste caso...

- Ela fez sugestões muito úteis, observou Gwenda.

- Oh, não tenho a menor dúvida! Onde é que ela disse que o cadáver da Sra.

Halliday deve estar enterrado?

- Ela falou que Giles e eu devíamos saber muito bem onde procurar, respondeuGwenda, - e ficamos com cara de bobos por não termos pensado nisso antes.

O inspetor deu uma risadinha e aproximou-se de Miss Marple, dizendo-lhe: -

Acho que não fomos apresentados, Miss Marple, mas o Coronel Melrose já mefalou na senhora:

Miss Marple levantou-se e enrubesceu, com as mãos cheias de ramos detrepadeira.

- Oh, sim! Gosto muito do Coronel Melrose! Sempre foi muito atencioso. Desde aocasião em que...

- Desde a ocasião em que um sacristão foi assassinado no escritório do vigário,disse o inspetor. Faz bastante tempo isso. Mas a senhora foi bem sucedida emoutros casos, depois desse, como aquele probleminha com um determinadoveneno, próximo a Lymstock.

- O senhor sabe muitas coisas sobre mim, Inspetor...

- Inspetor Primer. Pelo jeito a senhora tem trabalhado muito aqui!

- Bem, tento fazer o que posso neste jardim. Está bastante abandonado. Esta

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trepadeira, por exemplo, é incrível, respondeu Miss Marple, olhando com arcândido para o inspetor. - As raízes percorrem um caminho fundo por baixo daterra... um caminho muito longo...

- Acho que a senhora tem razão, disse o inspetor. - Muito longo. Muito fundo.

Como esse crime... Dezoito anos...

- Talvez a trepadeira seja ainda mais antiga que isso, respondeu Miss Marple. -

Correndo por baixo da terra... E é um bocado nociva, inspetor, porque estrangulaas flores pequenas...

Um policial. aproximou-se. Transpirava muito e sua testa estava suja de terra.

- Encontramos... alguma coisa, inspetor. Parece que é ela.

II

E foi aí, pensou Gwenda consigo mesma, que a sensação de pesadelo começou.

Giles tinha entrado em casa, bastante pálido, dizendo: - Gwenda, ela... ela está lá,naquele lugar.

Em seguida um policial dera um telefonema e o médico legista chegou.

E foi aí que a Sra. Cocker, a calma e imperturbável Sra. Cocker, saiu para ojardim - não para satisfazer sua curiosidade, mas apenas a fim de colher umtempero para a receita que estava preparando. E a Sra. Cocker, cuja reação ànotícia do crime, no dia anterior, fora de censura e de preocupação com a saúdede Gwenda - pois decidira que o quarto de criança tinha de ser ocupado após umcerto número de meses - a Sra.

Cocker deu em cheio com a descoberta feita no jardim. Imediatamentecomeçou a se sentir muito mal.

- É horrível, senhora. Nunca suportei esqueletos. E pensar que havia um aqui nojardim, pertinho do pé de hortelã! Meu coração está batendo à toda... estou compalpitações... quase não consigo respirar. Desculpe a ousadia, mas será que possotomar um pouquinho de conhaque?

Assustada com as palpitações da Sra. Cocker e com sua palidez, Gwenda correuaté o armário, serviu um copinho de conhaque e deu-o à cozinheira.

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- Era exatamente o que eu estava precisando, senhora... começou a dizer a Sra.

Cocker depois de tomar um gole. Mas subitamente sua voz foi se tornando fraca,e ela pareceu estar se sentindo tão mal que Gwenda gritou por Giles que, por suavez, gritou pelo médico legista.

- Foi uma sorte eu estar por perto, disse ele mais tarde. - Se não houvesse ummédico por perto, ela teria morrido na hora!

Em seguida o Inspetor Primer pegara a garrafa de conhaque e discutiralongamente com o médico a respeito. Depois perguntou a Gwenda quando foraque ela e Giles tomaram conhaque pela última vez.

Gwenda respondeu que já fazia vários dias - tinham viajado para o norte e,depois disso; só tinham tomado gin. - Mas ontem quase tomei conhaque,acrescentou ela. - Mas conhaque sempre me lembra a travessia da Mancha, eentão Giles abriu uma garrafa de uísque para mim.

- A senhora teve muita sorte, Sra. Reed. Se a senhora tivesse tomado conhaqueontem, acho que hoje não estaria viva. - Giles quase tomou, mas afinal resolveubeber uísque.

Gwenda

estremeceu.

Mesmo agora, sozinha na casa, achava difícil acreditar no turbilhão deacontecimentos. A polícia fora embora e Giles os acompanhara após um almoçoimprovisado, pois a Sra. Cocker estava no hospital.

Uma coisa era clara: na véspera, à tarde, Jackie Afflick e Walter Fane tinhamestado na casa, Qualquer dos dois podia ter colocado veneno no conhaque... Equal a finalidade dos telefonemas, senão proporcionar a um deles a oportunidadede envenenar o conhaque? Gwenda e Giles tinham se aproximadoexcessivamente da verdade... Ou teria uma terceira pessoa entrado na casa,talvez pela porta da varanda, enquanto ela e Giles estavam em casa de Kennedyesperando a chegada de Lily Kimble? Uma terceira pessoa que forjara ostelefonemas para atirar suspeita sobre os outros dois?

Mas uma terceira pessoa... pensava Gwenda consigo mesma, isso não fazsentido... Afinal, uma terceira pessoa teria telefonado para apenas um doshomens.

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Havia de querer um suspeito, e não dois. De qualquer maneira, quem poderia seressa terceira pessoa? Estava provado que Erskine não saíra de Northumberland.Não. Ou Walter Fane tinha telefonado para Afflick e fingira que recebera umtelefonema, ou então fora Afflick quem telefonara para Fane. Fora um dos dois,e a polícia, que tinha mais recursos que ela e Giles, ia descobrir qual deles tinhasido. Enquanto isso ambos estavam sendo vigiados. Não poderiam... tentar umaoutra vez.

Gwenda novamente estremeceu. Era difícil acostumar-se à idéia de tinha tentadoassassinar a gente. Há que alguém tempos atrás Miss Marple dissera que era umatarefa perigosa, mas Giles e ela não levaram a sério a palavra perigo. Mesmodepois da morte de Lily Kimble, não ocorrera a Gwenda a idéia de que alguémtentaria matá-la, assim como a Giles. Só porque estavam muito perto da verdadesobre o que acontecera dezoito anos antes, tentando descobrir o que se passara...e quem era o responsável por tudo . . .

Walter Fane e Jackie Afflick...

Qual dos dois?

Gwenda fechou os olhos, revendo-os sob a luz do que sabia agora.

O tranqüilo Walter Fane, sentado no escritório... a aranha branca no centro dateia. Tão sossegada, tão inofensiva... Uma casa de janelas fechadas... Umapessoa morta dentro da casa. Uma pessoa que morrera há dezoito anos... masque ainda estava lá.

Agora o tranqüilo Walter Fane parecia uma pessoa sinistra. Walter Fane, que emcerta ocasião queria matar o irmão... Walter Fane, com quem Helen não quis secasar, na Inglaterra, e novamente na Índia. Uma recusa dupla. Uma duplaofensa. Walter Fane, tão calmo, frio... só podendo se exprimir, talvez, através deum súbito impulso homicida

. . . Gwenda abriu os olhos. Estava convencida de que o culpado era Walter Fane.

Bem, mas não custa pensar em Afflick. Mas de olhos abertos. O terno xadrezvivo, seu ar autoritário... o oposto de Walter Fane. Não era nem reprimido nemtranqüilo. Mas provavelmente essa aparência era devida a um complexo deinferioridade. Os entendidos dizem que é sempre assim. Quando uma pessoa éinsegura, sente necessidade de se afirmar e dominar. Desprezado por Helenporque não servia para ela... A ferida continuando, jamais esquecida. A vontadede vencer na vida.

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Perseguição... Todos contra ele... Demitido do emprego devido à falsa acusaçãofeita por um "inimigo"... Isso mostrava que Afflick não era normal. E umassassinato daria a um homem desses enorme sensação de poder. Aquele rostosimpático e jovial era, na realidade, um rosto cruel. Era um homem cruel. . . esua mulher, magra e pálida, sabia disso e tinha medo dele. Lily Kimble oameaçara e morrera. Gwenda e Giles tinham interferido - então Gwenda e Gilestambém precisavam morrer, e ele envolveria Walter Fane, que o despedira hátanto tempo atrás... Parecia muito plausível...

Gwenda interrompeu seus pensamentos e voltou à realidade. Giles ia chegar epedir chá. Era preciso arrumar tudo e lavar a louça do almoço.

Pegou uma bandeja e levou tudo para a cozinha, que estava primorosamentelimpa. A Sra. Cocker valia ouro.

Ao lado da pia estava um par de luvas de borracha. A Sra. Cocker sempre usavaluvas para lavar a louça e as panelas. Sua sobrinha, que trabalhava no hospital,comprava-as a preço reduzido.

Gwenda calçou as luvas e começou a lavar os pratos. Não custava nada protegeras mãos.

Colocou-os no escorredor, lavou e enxugou todo o resto e guardou tudocuidadosamente em ordem.

Em seguida, ainda imersa em seus pensamentos, subiu a escada. Já que estava deluvas, podia aproveitar para lavar as meias e alguns suéteres.

Aparentemente era nisso que pensava, mas no fundo havia mais alguma coisa.

Ela achava que era Jackie Afflick ou então Walter Fane. Ou um ou outro. E

construíra uma boa versão para acusar cada um. Talvez fosse isso o que apreocupava, porque, na realidade, seria muito melhor se só conseguisse uma boaversão. A esta altura era preciso ter certeza das coisas. E Gwenda não tinhacerteza...

Se ao menos houvesse mais alguém. . . Mas não podia haver mais ninguém,porque Richard Erskine estava definitivamente afastado. Estava emNorthumberland quando Lily Kimble foi assassinada e quando envenenaram oconhaque. Sim, Richard Erskine estava definitivamente afastado.

Isso alegrava Gwenda, porque ela gostava do Sr. Erskine. Era um homem

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atraente, muito atraente. Que pena ter-se casado com aquela mulher de olhardesconfiado e voz grossa. Como uma voz de homem...

Como uma voz de homem...

Uma idéia passou-lhe subitamente pela cabeça.

Uma voz de homem... Poderia ter sido a Sra. Erskine, e não seu marido, quemfalara com Giles ao telefone, na véspera? Não, é evidente que não. É claro quenão. Ela e Giles teriam percebido. E, de qualquer modo, a Sra. Erskine não podiater adivinhado quem estava telefonando. Não, e claro que quem atendeu foiErskine, e sua mulher, como ele disse, estava fora.

Sua mulher estava fora.

Talvez... não, isso era impossível. . . Poderia ter sido a Sra. Erskine? A Sra.

Erskine, enlouquecida pelo ciúme? Teria Lily Kimble escrito para a Sra. Erskine?Teria Léonie visto uma mulher no jardim, quando olhou pela janela naquelanoite?

Uma porta bateu no saguão. Alguém entrara pela porta da frente.

Gwenda saiu do banheiro, dirigiu-se para o patamar da escada e olhou por cimada balaustrada. Sentiu um alívio ao verificar que era o Dr. Kennedy.

- Estou aqui! disse ela.

Ela estava com as mãos estendidas para a frente... molhadas brilhantes, com umtom rosa acinzentado... lembrando-lhe alguma coisa...

Kennedy olhou para cima, tapando os olhos.

- É você, Gwennie? Não consigo ver seu rosto... Meus olhos estão ofuscados...

Gwenda deu um grito de horror...

Olhar para aquelas patas de macaco e ouvir aquela voz no saguão...

- Foi você... balbuciou ela. - Você a matou... matou Helen... Agora eu sei! Foivocê... Você...

Kennedy subiu a escada. Lentamente. Olhando para Gwenda.

- Por que não me deixaram em paz? disse ele. - Por que se meteram nisso? Por

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que foram trazer... ela... de volta? Logo quando eu tinha começado a esquecer...

esquecer. Vocês a trouxeram de volta. . . Helen. . . minha Helen. Trouxeram tudode volta. Tive que matar Lily. . . e agora vou ter que matar você. Como mateiHelen . . .

Sim, como matei Helen . . .

Estava perto de Gwenda... as mãos estendidas para a frente... em direção a seupescoço... Aquele rosto agradável, simpático, normal, era o mesmo... mas oolhar... o olhar não era normal. . .

Gwenda recuou lentamente, com um grito paralisado em sua garganta. Já gritarauma vez. Não podia gritar de novo. E, se gritasse, ninguém ouviria.

Porque não havia ninguém em casa - nem Giles, nem a Sra. Cocker... Nemmesmo Miss Marple estava no jardim. Ninguém. E a casa vizinha ficava longedemais para ouvir alguma coisa se ela gritasse. De qualquer modo, nãoconseguia gritar...

Porque estava aterrorizada demais. Aterrorizada ante aquelas mãos estendidas. . .

Poderia correr, e ele a seguiria até que ela se visse encostada a porta do quarto, eaí... então... aquelas mãos apertariam seu pescoço . . .

Um soluço lhe saiu dos lábios.

E então, subitamente, Kennedy estancou e cambaleou, ao ser atingido entre osolhos por um jato de um líquido turvo. Abriu a boca, piscou e levou as mãos aorosto.

- Foi uma sorte, disse a voz de Miss Marple, um tanto ofegante por ter subidocorrendo pela escada de serviço, - foi uma sorte eu estar justamentepulverizando as roseiras!

CAPÍTULO XXV

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CONVERSA EM TORQ UAY

- Mas é claro, querida Gwenda, que nem me passou pela cabeça ir embora edeixar você sozinha na casa! exclamou Miss Marple. - Eu sabia que uma pessoamuito perigosa estava à solta e eu estava observando do jardim.

- A senhora sabia... o tempo todo... que era ele? perguntou Gwenda.

Miss Marple, Gwenda e Giles estavam sentados no terraço do Imperial Hotel, emTorquay.

Miss Marple havia sugerido uma mudança de ambiente e Giles concordara queisso faria bem a Gwenda. Com a aquiescência do Inspetor Primer, tinham idopara Torquay.

Respondendo à pergunta de Gwenda, Miss Marple disse: - Bem, eu achava queera, minha querida, apesar de não ter nenhuma prova, apenas indícios.

Olhando-a com curiosidade, Giles , observou : - Mas eu não vejo nem os indícios. .

- Oh, caro Giles, pense um pouco! Para começar, ele estava no local.

- No local?

- Evidente. Quando, naquela noite, Kelvin Halliday foi falar com ele, ele tinhaacabado de chegar do hospital. Naquela época, como várias pessoas nosdisseram, o hospital ficava ao lado de Hillside, ou St. Catherine, como erachamada a casa. De modo que isso o coloca no local certo e na hora certa. Alémdisso havia mais mil e um pequenos fatos significativos. Helen Halliday disse aRichard Erskine que tinha ido para fora para casar com Walter Fane porque nãoera feliz em casa. Isto é, não era feliz morando com o irmão. No entanto o irmãoera, para todos os efeitos, muito dedicado.

Então por que ela não era feliz? O Sr. Afflick disse a você que "tinha pena damenina".

Acho que ele foi muito sincero ao dizer isso. Tinha mesmo pena dela. Por que elaprecisava sair escondida para encontrar o jovem Afflick? Sabemos que ela nãoestava apaixonada por ele. Seria porque não podia marcar encontrosnormalmente, como todos os jovens? Seu irmão era "severo" e "antiquado". Issolembra vagamente o caso do Sr.

Barrett, de Wimpole Street, não acha? Gwenda estremeceu.

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- Era louco, disse ela. - Louco!

- Sim, respondeu Miss Marple. - Não era uma pessoa normal. Adorava a irmã eessa afeição tornou-se possessiva e doentia. Isso acontece com mais freqüênciado que você imagina. Pais que não querem que as filhas casem... nem ao menosque saiam com rapazes. Como o Sr. Barrett. Pensei nisso quando contaram ahistória da rede de tênis.

- Rede de tênis?

- Sim, isso me pareceu muito significativo. Pense naquela menina, Helen,voltando do colégio para casa, querendo aproveitar a vida como todas asmocinhas, conhecer rapazes, namorar. . .

- Um pouco maníaca por sexo.

-

Não! exclamou Miss Marple com veemência. - Isso é um dos aspectos maismaldosos desse crime. Kennedy não a matou apenas fisicamente. Se vocêexaminar com cuidado toda a história, verá que o único testemunho de que HelenKennedy era louca por homens, ou - como é mesmo a palavra que você usa?Ah, sim, ninfomaníaca - foi dado pelo próprio Kennedy. Pessoalmente, acho queela era uma moça perfeitamente normal, que queria apenas se divertir, namorarum pouco, até finalmente encontrar o homem certo para se casar. E veja o que oirmão fez. Em primeiro lugar, foi severo e antiquado em relação à liberdade damoça. Em seguida, quando ela quis convidar amigos para jogar tênis - um desejoperfeitamente normal e inocente - ele fingiu que concordava e, certa noite,cortou a rede em pedaços... um ato sádico muito significativo.

Depois disso, como ela podia continuar saindo para ir a festas ou para jogar tênis,ele tomou todas as providências para que um simples arranhão no pé não ficassebom. Foi ele quem infeccionou a ferida, a pretexto de curá-la. Oh, estouconvencida de que ele agiu assim... Tenho certeza disso!

Acho que Helen não percebia nada. Sabia que seu irmão gostava muito dela eprovavelmente não sabia por que se sentia pouco à vontade e infeliz em casa.Mas o fato é que se sentia assim, e finalmente resolveu ir para a Índia e casarcom o jovem Fane, apenas para se ver livre. Para se ver livre de quê? Ela nãosabia. Era jovem e inocente demais para saber. Partiu para a Índia e no navioconheceu Richard Erskine, por quem se apaixonou. Mais uma vez comportou-secomo uma moça honrada, e não como uma ninfomaníaca. Não insistiu para queele abandonasse a esposa. Pelo contrário, pediu-lhe que não fizesse uma coisa

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dessas. Mas, quando tornou a ver Walter Fane, percebeu, que não podia casarcom ele e, como não sabia o que fazer, telegrafou para o irmão pedindo-lhedinheiro para voltar para casa.

Na viagem de volta conheceu seu pai - e encontrou outra maneira de escapar.

Desta vez havia uma perspectiva de felicidade.

Ao se casar com seu pai, ela não foi fingida, Gwenda. Ele estava se recuperandoda perda de uma esposa querida. Ela acabava de sair de um caso de amorimpossível.

Um podia ajudar o outro. Acho muito significativo o fato de eles terem se casadoem Londres e só depois terem ido a Dillmouth para contar a novidade aKennedy. Ela deve ter adivinhado instintivamente que era mais garantido agirdessa maneira, em vez de casar em Dillmouth, o que seria mais normal.Contínuo achando, que ela não sabia conscientemente a que estava enfrentando -mas sentia-se pouco à vontade e achou que era mais seguro apresentar seucasamento como fato consumado.

Kelvin Halliday gostou muito de Kennedy. Este, por sua vez, fez tudo para dar aimpressão de que o casamento lhe agradava. O casal alugou uma casa mobiliadaem Dillmouth.

E agora chegamos a um fato dos mais significativos - a suspeita de Kelvin, queachava que sua mulher o estava envenenando. Só existem duas explicações paraisso, porque apenas duas pessoas estavam em condições de fazer uma coisadessas. Ou Helen Halliday estava mesmo envenenando o marido - mas por quefaria isso? - ou então as drogas estavam sendo administradas por Kennedy.Kennedy era o médico de Halliday, o que ficou provado pelo fato de ele ter idoconsultá-lo. Confiando no conhecimento médico de Kennedy que, com todahabilidade, lhe sugeriu que sua mulher o estava envenenando.

- Mas será que uma droga pode fazer um homem ter alucinações de queestrangulou a mulher? perguntou Giles. - Existe alguma droga que tenha esseefeito exato?

- Meu caro Giles, você tornou a cair na cilada, ao acreditar no que lhe disseram.

A única pessoa que falou nessa alucinação foi Kennedy. O próprio Halliday nãomenciona isso no diário. Tinha alucinações, isso sim, mas não descreve em queconsistiam. Ouso afirmar que Kennedy lhe contou casos de homens queestrangularam suas esposas depois de terem passado por uma fase semelhante à

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que Kelvin estava passando.

- Kennedy era realmente muito perverso, observou Gwenda.

- Acho que naquela ocasião ele já havia ultrapassado o limite entre a sanidade ea loucura, respondeu Miss Marple. E Helen, coitada, começou a perceber isso.Deve ter sido para o irmão que ela disse as palavras ouvidas por Lily : "Acho quesempre tive medo de você". Isso foi uma das coisas que ela falou, e sempreachei bastante significativa. E então ela resolveu ir embora de Dillmouth.Convenceu o marido a comprar uma casa em Norfolk e convenceu-o a nãocontar para ninguém. Isso constitui um fato muito interessante. O segredo emtorno do assunto era bastante revelador. Ela estava, evidentemente, com muitomedo de que alguém soubesse disso - mas isso não combinava com a hipótese deter sido Walter Fane ou Jackie Afflick, e muito menos com Richard Erskine. Não,isso mostrava algo bem mais próximo à família.

Finalmente Kelvin Halliday, a quem o segredo incomodava e que não vianenhum sentido em manter sigilo, contou para o cunhado.

E, ao fazê-lo, selou seu próprio destino e o de sua mulher, pois Kennedy não iadeixar Helen partir e ser feliz com o marido. Acho que talvez seu plano inicialfosse apenas liquidar a saúde de Halliday através da administração de drogasmas, ao saber que Helen e sua vítima iam escapar-lhe das mãos, ficoucompletamente transtornado.

Saiu do hospital, levando um par de luvas cirúrgicas, e entrou em St.. Catherinepelo jardim. Encontrou Helen no saguão e estrangulou-a. Ninguém o viu, nãohavia ninguém que pudesse vê-lo, ou pelo menos foi isso o que pensou. E emseguida, num acesso de amor e de loucura, citou aquelas frases trágicas, tãoapropriadas à situação.

Miss

Marple

suspirou.

- Fui uma boba... uma boba completa! Todos nós fomos bobos. Devíamos tercompreendido imediatamente. Aquele trecho da Duquesa de Malfi era averdadeira pista para tudo. Lembrem-se de que as frases são ditas por um irmãoque acabou de tramar a morte da irmã para vingar-se por ela ter-se casado como homem que amava. Sim, nós fomos muito bobos...

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- E depois? perguntou Gwenda.

- Em seguida ele prosseguiu em seu plano diabólico. Carregou o corpo paracima. Arrumou a mala. Escreveu um bilhete e jogou-o, todo amassado, na cestade papéis, para convencer Halliday.

- Mas acho que teria sido melhor para ele, observou Gwenda, - se meu pai fossecondenado pelo crime.

Miss Marple sacudiu a cabeça.

- Oh, não! Ele não podia correr esse risco! Lembre-se de que é um escocêscheio de bom senso. Tinha um grande respeito pela polícia. A polícia precisa demuitas provas antes de acreditar que um homem é culpado. A polícia podia fazeruma porção de perguntas e investigações embaraçosas. Não, seu plano era maissimples e, em minha opinião, mais diabólico. Era só convencer Halliday de duascoisas: primeiro, que tinha estrangulado sua mulher; segundo, que estava louco.Convenceu Halliday a se internar numa clínica de doentes mentais, mas achoque na realidade não queria convencê-lo de que tinha sido tudo alucinação. Seupai aceitou essa teoria principalmente por causa de você, Gwennie. Continuouachando que tinha matado Helen. Morreu acreditando nisso.

- Perverso! exclamou Gwenda. - Perverso. . . perverso. . . perverso! repetiuenfaticamente.

- Sim, respondeu Miss Marple. - É o termo exato. E acho, Gwenda, que foi porisso que a cena a que você assistiu em criança a impressionou tanto assim.Naquela noite o mal estava presente.

- Mas e as cartas? perguntou Giles. - As cartas de Helen? A letra era dela. Nãopodem ter sido forjadas!

- É claro que foram forjadas! Mas foi exatamente aí que ele exagerou. Estavatão ansioso por interromper as investigações de vocês dois! Provavelmente sabiaimitar muito bem a letra de Helen... mas não conseguiria enganar um perito. Demodo que a amostra da letra de Helen que ele mandou para vocês, junto com acarta, não era a letra de Helen. Foi ele próprio quem escreveu as duas coisas. Porisso, evidentemente, os peritos afirmaram que a letra pertencia à mesma pessoa.

- Meu Deus! exclamou Giles. - Eu nunca pensei nisso!

- Não, retorquiu Miss Marple. Você acreditou no que ele disse. É realmente muitoperigoso acreditar nas pessoas. Eu não acredito há anos!

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- E o conhaque?

- Isso foi no dia em que ele foi a Hillside levar a carta de Helen e conversoucomigo no jardim. Aproveitou o momento em que ficou sozinho na sala,enquanto a Sra. Cocker foi me chamar.

- Céus! exclamou Giles. - E depois da morte de Lily Kimble ele insistiu em queeu levasse Gwenda para casa e lhe desse um conhaque! Como foi que ele searrumou para encontrá-la mais cedo?

- Isso foi muito simples. Na carta que escrevera a Lily, dissera-lhe paraencontrá-lo em Woodleigh Camp, instruindo-a para que tomasse o trem das duase cinco de Matchings Halt para Dillmouth Junction. Provavelmente se escondeuno bosque, abordou-a quando ela ia subindo pelo caminho e estrangulou-a. Emseguida limitou-se a substituir a carta que ela trazia na bolsa pela carta que vocêsviram, e voltou para casa para receber vocês e fingir que esperava a chegada deLily.

- Será que Lily estava realmente ameaçando Kennedy? A carta dela não davaessa impressão. Parecia suspeitar de Afflick.

- É possível que sim. Mas Léonie, a governanta suíça, tinha falado com Lily, eLéonie era uma ameaça para Kennedy, porque ela olhara pela janela do quartode Gwennie e o tinha visto cavando o jardim. De manhã, no dia seguinte, ele lhedisse que o Major Halliday matara sua mulher, que o Major Halliday estavalouco e que ele, Kennedy, mantinha o assunto em segredo por causa da criança.Acrescentou, no entanto, que se Léonie achasse que devia ir à polícia, devia ir,mas que seria uma coisa bastante desagradável para ela, e assim por diante...

Ao ouvir falar em polícia, Léonie assustou-se imediatamente. Ela adorava você,Gwenda, e tinha uma fé absoluta em M. le Docteur. Kennedy deu-lhe uma boaquantia em dinheiro e mandou-a de volta para a Suíça. Mas, antes de partir, elacontou a Lily que o Major matara sua mulher e que ela vira o corpo sendoenterrado. Por isso é que Lily achava que Léonie tinha visto o Major Hallidaycavando no jardim.

- Mas Kennedy, evidentemente, não sabia disso, observou Gwenda.

- É claro que não. Ao receber a carta de Lily, os fatos que o assustaram foi queLéonie tinha contado para Lily o que vira pela janela e a menção ao carroestacionado lá fora.

- O carro? O carro de Jackie Afflick?

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- Isto foi mais um mal-entendido. Lily se lembrava, ou pensava se lembrar, deum carro parecido com o de Jackie Afflick, estacionado do lado de fora. Deuasas à imaginação e achou ser o carro do "homem misterioso" que ia sempre vera Sra.

Halliday. Como o hospital era ao lado, é claro que muitos carros estacionavamnaquela rua. Mas lembrem-se de que o carro do médico estava estacionado dolado de fora do hospital, naquela noite, e ele provavelmente concluiu que ela sereferia ao carro dele.

- Compreendo, disse Giles. - Para a consciência pesada a carta de Lily pode terparecido uma chantagem. Mas como é que a senhora sabe tanta coisa sobreLéonie?

Miss Marple respondeu com os lábios apertados.

- Ele foi até o fim. Assim que os homens do Inspetor Primer correram e oagarraram, ele contou todo o crime repetidamente... tudo o que tinha feito.Parece que Léonie morreu muito pouco tempo depois de ter voltado para aSuíça. Uma dose excessiva de remédio para dormir... Oh, ele não podia searriscar!

- E por isso tentou me envenenar com conhaque.

- Você era uma pessoa muito perigosa para ele, assim como Giles. Por sortevocê nunca contou a ele sua lembrança de ter visto Helen morta no saguão. Elenunca soube que havia uma testemunha ocular.

- E os telefonemas para Fane e Afflick? perguntou Giles. - Foi ele quem ligou?

- Foi. Se houvesse um inquérito para saber quem tinha colocado veneno noconhaque, qualquer dos dois seria suspeito e, se Jackie Afflick fosse de carro,sozinho, poderia se ver envolvido na morte de Lily Kimble. Provavelmente Faneteria um álibi.

- E dizer que ele parecia gostar de mim... murmurou Gwenda. - A pequenaGwennie...

- Ele precisava desempenhar um papel, retorquiu Miss Marple. - Imagine o queisso significava para ele. Depois de dezoito anos aparecem você e Giles, fazendoperguntas, remexendo o passado, perturbando um crime que parecia morto, masque estava apenas adormecido... A morte em retrospecto... Uma coisaterrivelmente perigosa, meus caros. Andei muito preocupada.

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- Pobre Sra. Cocker! exclamou Gwenda. - Escapou por um triz! Ainda bem quevai ficar boa. Você acha que ela vai continuar trabalhando lá em casa depois detudo isso, Giles?

- Se houver um quarto de crianças ela fica, respondeu Giles com ar muito sério.

Gwenda enrubesceu e Miss Marple com um sorriso, desviou o olhar para apaisagem de Torquay.

- Que coisa estranha tudo ter acontecido daquele jeito... disse Gwenda. - Eu, comaquelas luvas, olhando para elas, e ele entrando no saguão e dizendo aquelaspalavras tão semelhantes às outras. "Rosto"... e depois "olhos ofuscados"...

Gwenda estremeceu.

-

Cubram seu rosto... Meus olhos estão ofuscados... Ela morreu jovem... Podia tersido eu... se Miss Marple não estivesse lá.

Fez uma pausa e acrescentou baixinho: - Pobre Helen... Pobre Helen, tão linda,que morreu jovem... Sabe Giles, ela não está mais lá... na casa.. no saguão. Sentiisso ontem, antes de partirmos. Agora existe apenas a casa. E a casa gosta de nós.Podemos voltar, se quisermos...

FIM