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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Hockenos, Paulo, 3963- Livres para odiar / Paul Hockenos; tradução Esther Ann Henningsen. — São Paulo: Scritta, 1995. — (Pensieri) Título original: Free to hate: the rise of the right in post-communist Eastern Europe. Bibliografia. ISBN 85-7320-002-2 1. Europa Oriental — Política e governo. 2. Fascismo — Europa Oriental. 3. Nacionalis- mo — Europa Oriental. 4. Pós-comunismo — Europa Oriental. 1. Título, II. Série. 95-3648 CDD-320.530947 índices para catálogo sistemático: 1. Europa Oriental: Fascismo: Ciência política 320.530947 2. Fascismo: Europa Oriental: Ciência política 320.530947 Título original em inglês: FREE TO HATE 1993 © Routíedge I a edição: setembro de 1995 © EDITORA PÁGINA ABERTA LTDA. Publicado mediante contrato com Routíedge. ISBN 85-7320-002-2

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Hockenos, Paulo, 3963-Livres para odiar / Paul Hockenos; tradução Esther Ann Henningsen. — São Paulo: Scritta, 1995. — (Pensieri)

Título original: Free to hate: the rise of the right in post-communist Eastern Europe. Bibliografia. ISBN 85-7320-002-2

1. Europa Oriental — Política e governo. 2. Fascismo — Europa Oriental. 3. Nacionalis-mo — Europa Oriental. 4. Pós-comunismo — Europa Oriental. 1. Título, II. Série.

95-3648 CDD-320.530947

índices para catálogo sistemático:

1. Europa Oriental: Fascismo: Ciência política 320.530947 2. Fascismo: Europa Oriental: Ciência política 320.530947

Título original em inglês: FREE TO HATE

1993 © Routíedge

I a edição: setembro de 1995 © EDITORA PÁGINA ABERTA LTDA.

Publicado mediante contrato com Routíedge.

ISBN 85-7320-002-2

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LIVRES PARA ODIAR

PAUL HOCKENOS

Tradução: Esther Ann Henningsen

SCRITTA

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I

Alemanha, um povo, uma direita

Até o final de setembro de 1991, quase um ano após a unificação das duas Alemanhas, Hoyerswerda vegetava

no mesmo anonimato indiferente de inúmeras cidades equivalentes na ex-Alemanha Oriental. Distante 32 quilômetros da fronteira polonesa, na Saxônia, estado do sudeste, uma placa solitáriá na periferia da cidade saúda os visitantes: Willkommen in Hoyerswerda*.

•••Planejadores da República Democrática Alemã construí-ram filas insípidas e uniformes de edifícios de concreto, no fi-nal dos anos 60 e começo dos 70, transformando em poucos anos a cidadezinha rural de sete mil habitantes em um aloja-mento industrial para setenta mil pessoas. Como todas as cida-des autocontroladas da RDA (Neubau), Hoyerswerda existia em função da indústria local: as escuras minas de carvão próximas e a usina elétrica Black Pumps. Ô governo atraía trabalhadores para a terra de ninguém mediante promessas de apartamentos

* Bem-vindos a Hoyerswerda.

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modernos e salários acima da média. A abundância relativa atraiu uma população homogênea e leal ao partido, contente por viver em torres de cimento, respirando o ar poluído de dióxido de enxofre, a troco de pequenos privilégios materiais. O povoamento Neubau era totalmente destituído de infra-es-trutura social e oportunidades culturais, de pluralismo ou dis-sidência e, até os anos 80, de estrangeiros também//

/No começo dos anos 80, junto com a maioria dos traba-lhadores estrangeiros dos países socialistas irmãos da RDA, chegaram os primeiros moçambicanos, angolanos e vietna-mitas a Hoyerswerda. Para suprir a falta de mão-de-obra. os trabalhadores estrangeiros executavam tarefas inferiores na Black Pumps. Nos dormitórios destinados a estrangeiros (Auslànderwohnheime), havia pouca vida familiar ou social para os trabalhadores de fora. Nos finais de semana, antes do to-,que de recolher, os homens podiam freqüentar a discoteca local ou o clube de jovensfSe dançassem com alguma moça alemã em Hoyerswerda, certamente haveria uma reação in-dignada. "Minha irmã e eu não tínhamos permissão para fre-qüentar a discoteca se lá estivessem poloneses ou moçam-bicanos", comentou Cláudia, 21 anos, estudante de Biologia em Berlim. "Meu pai trabalhou com poloneses e nos preve-niu contra eles. Ele dizia: os polaco^, são sujos, bebem e an-dam com prostitutas o tempo todo"fCirculavam boatos hor-ríveis sobre os trabalhadores estrangeiros: ganham uma nota, têm os melhores apartamentos, não pagam aluguel, compram de tudo. "O Estado entope o cu desses estrangeiros com açú-car", queixavam-se os alemães da RDA, repetindo o boato co-mum, segundo o qual os estrangeiros tinham privilégios que eles, alemães, nem sonhavam ter. Mas, enquanto o Estado repressor garantia a solidariedade de cima para baixo, a dis-criminação racial restringia-se a insultos, olhares raivosos e isolamento social

q —japS O c ja RDA> a introdução da economia de mercado (antes conhecida como capitalismo de monopólio) e o estabe-lecimento do processo de unificação acabou com a tranqüili-dade, a segurança e o conforto dos habitantes de Hoyerswerda.

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A rápida conversão da RDA à competitividade de mercado for-çou o fec hamento de inúmeras fábricas no Leste Europeu. Êm Hoyerswerda, o medo tomou conta assim que começaram as dispensas na Black Pumps, e o desemprego saltou de zero para 7 %/Òs novos cidadãos da República Federal Alemã (KKA), entretanto, recusaram-se a dirigir sua raiva à política de rápi-da transição econômica do partido governante (União dos Democratas Cristãos), que tinha recebido total apoio dos saxões conservadores nas eleições há um ano. Em vez disso, culparam os quatrocentos trabalhadores estrangeiros, todos escalados para ir embora, ao término dos contratos, no final do ano. As autoridades federais aumentaram o descontenta-mento local, enviando para Hoyerswerda 230 refugiados polí-ticos da Romênia, Camarões, Turquia, Iugoslávia, Sen e Gana. Lá, no Complexo Residencial ix, de 12 andares, na rua Thonias Müntzer, os refugiados esperavam, desempregados e entediados, enquanto, a burocracia estatal processava os pedi-dos de asilo político,

\ animosidade acumulada durante os anos de boa vontade forçada aflorou. Multiplicaram-se as queixas contra os estran-geiros: tocavam música muito alto, jogavam lixo nas ruas. Ago-ra, diante do padrão de vida muito mais alto da Alemanha Oci-dental e da possibilidade de declínio em seu próprio padrão de vida, a indignação mesquinha dos burgueses de Hoyerswerda explodia contra os hóspedes indesejados e mal-amado,y/Os negros têm banheiros de azulejos azuis, incríveis", queixava-se um homem para um repórter alemão. "Os negros! Quanto a mim, tudo que tenho é papel de parede pintado!" A opressão contra os trabalhadores estrangeiros e os refugiados aumentou de tal modo que eles não ousavam sair às ruas. "Percebemos imediatamente que o povo de Hoyerswerda estava contra nós", descreve Pierre, um refugiado de Camarões.

Sempre que tentávamos fazer alguma coisa sozinhos, como dar um telefonema ou sair às compras, éramos insultados ou cuspiam-nos. Todos odiávamos aquilo. Não era vida. Queixamo-nos às autoridades, aos assistentes sociais e à po-lícia, mas nada foi feito. Desde o começo, não houve o me-

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nor esforço para proteger-nos. A resposta deles era sempre a mesma: Kein Problem, kein Problem*.

No início da semana, os dias 17 e 18 de setembro de 1991 passaram-se como muitos outros dias tristes e nublados em Hoyerswerda. No mercado central, oito adolescentes de cabe-ças raspadas, jaquetas de aviadores e grandes botas pretas des-truíram as bancas de rua de ambulantes vietnamitas, esmurrando-os e chutando-os até sangrarem. Por fim, a polícia dispersou os skinheads, mas, como de costume, não os prendei^ Da escola para casa, algumas crianças locais quebraram algu-mas vidraças dos dormitórios de trabalhadores vietnamitas e africanos. Na tarde de quinta-feira, 19, uma multidão não mais de adolescentes reuniu-se diante do bloco de alojamentos para estrangeiros, na rua Albert Schweitzer. Os adultos instigavam os jovens, que jogavam pedras e garrafas vazias contra o prédio. Cerca de cinqüenta skinheads e tipos neo-nazistas apareceram e contribuíram com sua experiência. A polícia não foi vista;

No dia seguinte, certamente haveria um linchamento. "A cidade inteira sabia o que iria acontecer", comentou um refugia-do croata.

Parecia que tudo fora preparado com antecedência pela po-pulação. Os assistentes sociais vieram e preveniram de que haveria um ataque, portanto, que ficássemos atentos, sem dormir, com as janelas fechadas e as luzes apagadas. Eles es-tavam vindo para nos pegar.

Na sexta à noite, depois que as lojas se fecharam, os skinheads reuniram-se novamente atrás do complexo na rua Albert Schweitzer e a perseguição começou. Fora, estrangeiros!, negros cachorros, fodam-se!gritavam cinqüenta adolescentes e jovens com garrafas de cerveja nas mãos, como se estivessem num piqueni-que. Uma turba de espectadores, alguns cqm crianças peque-nas, amontoavam-se ao redor dos agressores/Trabalhadores mo-çambicanos e vietnamitas agachavam-se nos banheiros, enquan-

* Nenhum problema.

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to pedras, fogos e coquetéis molotov explodiam em suas pare-des. Alguns corriam para a rua gritando com toda força: Seus fascistas! Os que foram agarrados pela multidão seriam brutal-mente espancados. Horas depois, a polícia isolou o prédio, lu-tando contra a multidão que tentava se aproximar,0e suas va-randas padronizadas, os cidadãos de Hoyerswerda simplesmente assistiam — ou desviavam o olhar. Absolutamente ninguém se levantou contra o terror./

Os trabalhadores foram retirados cedo, no dia seguinte, mas a turba ainda precisava descarregar sua ira. Notícias do fato espa-lharam-se pelos círculos de extrema direita em toda a Saxônia. Grupos organizados de neonazistas e skinheads como o Gubner Front, de Guben, e o Deutsche Alternativa de Dresden e Leipzig, mobilizaram as tropas, baixando em Hoyerswerda às centenas.

tQ local de perseguição transferiu-se para os alojamentos de refu-giados políticos, do outro lado da cidade. Em seus Volkswagens novos e em seus Trabants, antes valorizados, o populacho e seus líderes correram para a rua Thomas Müntzer, chegando, mais uma vez, antes da polícia. Agora, a natureza da caçada era aber-tamente fascista. Mais de 120 nazistas agitavam bandeiras do Ter-ceiro Reich, e gritando SiegHeil, erguiam os braços direitos em saudação nazista. O espírito na rua era festivo e agressivo, como de uma cervejaria ou estádio de futebol. Abraçados, os racistas cantavam velhas canções da Wehrmacht, deliciando-se em sua ati-vidade favoiita/Projéteis choviam sobre o prédio até que não res-tasse uma só Vidraça do quinto andar para baixo. "Os assistentes sociais proibiram-nos de revidar os ataques e de defendermo-nos", conta Pierre. "Só tínhamos as mesas e as camas. Não havia outra escolha a não ser escondermo-nos o melhor possível. Se tivessem entrado, poderiam ter-nos matado." Helicópteros zuniam sobre as cabeças e sirenes de ambulâncias apitavam, enquanto se travava uma batalha na rua entre a polícia e os atacantes, durante a noite inteira. Ao amanhecer, o resultado final: 8S detidos, 33 presos, 29 feridos, quatro deles seriamente, e três encarcerados.

* Frente de Gubner ; Alternativa Alemã.

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Só na manhã de segunda-feira, 23 de setembro, seis dias após a primeira quebradeira, os veículos do exército da ex-RDA apare-ceram para retirar os refugiados. Os moradores da vizinhança permaneceram na rua atulhada de pedras, celebrando e gritan-do insultos, enquanto os refugiados encaminhavam-se para os ônibus, pisando sobre os cacos de vidro. "Malditos negros, va-mos matá-los", berrava um espectador. Já outros expressavam um certa culpa: "Durante anos os estrangeiros fizeram o trabalho sujo para nós, nas minas de carvão", comentava um trabalhador. "Eles têm que partir, mas têm o direito de partir em paz." Uma mãe admitiu que estava feliz por tudo ter terminado. "Foi terrí-vel", admitiu ela. "Por causa do barulho as crianças não tiveram uma só noite de sono durante a semana." Ainda que a maioria das pessoas guardasse distância da violência dos skinheads e dos neonazistas, poucas resistiam à xenofobia que assaltara a comu-nidade inteira. As últimas pedras chocaram-se contra os ônibus, que partiram para local ignorado. Hoyerswerda, regozijavam-se os fascistas, era finalmente úma cidade livre de estrangeiros {Auslünderfreie Stadt). A política nazista durante a Segunda Guer-ra Mundial tornara Hoyerswerda livre de judeus (judenfrei), e agora era também uma cidade livre de estrangeiros. O governo capitulara diante da população.

Por mais terrível que fosse, o espetáculo não fora o primei-ro nem seria o último desse tipo na Alemanha unificada. A bru-talidade de Hoyerswerda diferia apenas em grau dos lincha-mentos populares semelhantes que, naquele ano, sacudiram cidades da RDA, como Saarlotlis, Zittau, Halle, Greifswald, Hünxe e Cottbus, em sua doença pós-guerra. A perseguição foi o pri-meiro clímax em uma onda de agressões raoiáis que piorou seriamente após a queda do muro de Berlinykas cidades dos dois lados da recém-unificada República Federal, a violência de extrema direita tornou-se fato rotineiro na vida das pessoas não-brancas. Durante o ano de 1991, o primeiro da existência da Alemanha unificada, a quantidade de ataques contra resi-dentes estrangeiros aumentou dez vezes em relação às duas Alemanhas no anp_antèrior, incluindo-se 338 incêndios culpo-sos, Embora dirigida a estrangeiros não-brancos, a agressão.não

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se restringiu a eles. Judeus, esquerdistas, ciganos, deficientes mentais e homossexuais —vítimas da perseguição nazista e tam-bém de gangues protofascistas na RDA e na RFA — tornaram-se alvo do ódio popular mais uma vez, na Alemanha unificada./

A dramática explosão da violência de extrema direita le-vantou questões preocupantes em relação ao tipo de Alema-nha que surgiu do país dividido no pós-guerra. A aquiescência da Alemanha Ocidental à unificação fundamentava-se na supo-sição de que a primeira República Federal estaria firmemente apoiada na tradição da democracia ocidental. A RFA havia se destacado como condutora da integração européia, bem como financiadora e porta-voz constrangida da moderação na alian-ça militar ocidental. Apesar das dificuldades de uma vizinhan-ça com a França e a Polônia, quase quatro décadas de prosperi-dade econômica e participação obediente na OTAN unham ame-nizado os temores do ressurgimento de uma Alemanha forte e agressiva no centro da Europa. No limiar da dissolução do blo-co do Leste, o poderio econômico dos antigos estados federais parecia adequado para garantir a integração dos novos Estados alemães ao conjunto europeu — uma posição privilegiada e única entre os países pós-comunismo. Nem mesmo o fantasma do terror racial parecia prejudicar o status da RFA como demo-cracia ocidental. Em princípio, pelo menos, o moderno Rechtsstaât poderia e iria suportar a existência de um racismo violento e de movimentos ativos de extrema direita dentro de suas fronteiras.

/Os bons alemães, a maioria que não atirou pedras, espera-vam que a sujeira desaparecesse assim como surgira. Muitos explicaram Hoyerswerda como um sintoma extremo e excepci-onal da sociedade pós-totalitária em transição, um incômodo que seria eliminado com o tempo. Entretanto, o terror diário, o vandalismo, as agressões, os espancamentos, os incêndios e até mesmo os assassinatos continuaram a aumentar durante o ano de 1992. De fato, até o final do ano, o número de agressões relacionadas à extrema direita (2.285) havia dobrado. Inclu-em-se aí 701 incêndios culposos e 17 ocorrências fatais'/? Após alguns meses, Hoyerswerda foi esquecida, e a imprensa'só des-

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tinava pequenas notas às agressões.>Kté aparecerem Rostock, Môlln e Solíngen, com imagens transmitidas para,todo o mun-do, que fizeram Hoyerswerda parecer moderada/?

- Z/A violência de agosto de 1992 em Rostock, assim como em Hoyerswerda, foi uma perseguição, só que muito maior. Come-çou da mesma forma, com um grupo de skinheads locais e hooligans* bombardeando um abrigo para refugiados com pe-dras e garrafas. Cinco dias depois, seiscentos racistas diversos combatiam 1,6 mil policiais. Ainda que, como em Hoyerswerda, o movimento fosse parcialmente espontâneo, o terreno tinha sido previamente preparado na cidade portuária de Rostockí Grupos de ultradireita tinham distribuído panfletos contra es-trangeiros, do tipo Rostock permanecerá alemã. Começou como uma hospedaria para refugiados, e Rostock já é multicultural, dizia uma parte da propaganda. Um dia antes da agressão, o jornal local Ostsee Zeitung praticamente anunciou o que estava por acontecer.

Como num ensaio, cidadãos de Rostock reuniram-se para ajudar nazistas adolescentes. Multidões de até duas mil pessoas juntaram-se para incentivá-los e, em 24 horas, extremistas de direita até mesmo de Hamburgo, Berlim,e Dresden aparece-ram com walkie-talkies e outros aparatos.í Na noite seguinte à retirada de duzentos ciganos romenos do abrigo sitiado no dis-trito de Lichtenhagen, em Rostock, os arruaceiros cercaram o prédio ao lado, onde viviam 120 trabalhadores vietnamitas. Tes-temunhas relataram que cerca de quinhentos policiais e guar-das de fronteira bem equipados posicionaram-se diante do pré-dio ou ao seu redor. "O ambiente não estava tenso", relatou um operador de câmara ao grupo americano de direitos humanos Helsinki Watch.

A polícia conversava com os manifestantes, quando entra-

* Torcidas organizadas de futebol que ficaram conhecidas por sua vio-lência; atualmente o termo serve para designar qualquer tipo de gru-pos de vândalos.

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mos na casa para fazer entrevistas. Ao olhar pela janela, vi com espanto que a polícia se retirara para o topo de uma colina próxima. Os skinheads atiravam coquetéis molotov e. apedrejavam o prédio.

A polícia tinha ordens de não intervir. Os agressores puse-ram fogo no edifício e caçaram, escada acima, os estrangeiros, que conseguiram fugir pelo telhado horas mais tarde. Foi pura coincidência ninguém ter morrido./

O secretário do Interior, negando falha da polícia, decla-rou que a corporação estava exausta e precisava urgentemente de descanso. Acrescentou ainda que não estavam certos de que havia vietnamitas vivendo ali. Tampouco soube explicar ppr que a polícia manteve contato constante com os arruaceiros/Quan-do o prefeito de Rostock, do Partido Democrático Cristão, cul-pou o "incontrolável afluxo de estrangeiros" pelo acontecido, estava simplesmente repetindo seus colegas mais experientes de Bonn. "O que as autoridades de Rostock expressaram não foi extremismo de direita, sentimento contra estrangeiros ou ainda racismo, mas um descontentamento justificado pelo abuso dó direito de pedir asilõ político", declarou o ministro do Inte-rior, Dieter Heckelmann, chefe de polícia da RFA./t)s cidadãos de Rostock moradores dos conjuntos habitacionais de Lichtenhagen repetiram as manifestações de seus compatrio-tas de Hoyerswerda. "Eles não são nazistas", afirmou uma mu-lher ao jornal de Berlim Tageszeitung, "são nossos filhos, ale-mães comuns, que não queriam mais conviver com esses es-trangeiros". Várias reportagens de televisão mostraram pais de família típicos, barrigudos de tanta cerveja, vangloriando-se dos atos dos filhos.

Os estrangeiros tinham que enfrentar isso. Eu teria feito o mesmo. Eles chegam aqui, destroem as habitações, usam os jardins como banheiros. Ninguém se sentia seguro com to-dos esses ciganos por aí. Alguma coisa tinha de ser feita.

As fotos dos jovens de Rostock lançando coquetéis molotov contra os alojamentos de estrangeiros causou indignação no mundo todo. Na Alemanha, os acontecimentos de Rostock de-

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sencadearam novos ataques. Dia após dia, extremistas de direita atacaram asilos de refugiados estrangeiros, não só em cidades maiores, mas em lugarejos cujos nomes os próprios alemães des-conhecem: Stendal, Oscherleben, Lübbenau, Potsdam-Babelsberg, Quedlinburg, Eisenhüttenstadt, Dessau, Wittenberge, Cottbus, Greifswald, Schwerin, Wismar, Zielitz, Bad Lautenberg e Holzhausen. "Rostock está em toda parte", exclamava uma manchete. O governo, absolutamente paralisado, mostrava-se incapaz de agir contra a onda de terror. "O que 1908 significou para a esquerda, 1992 significa para a direita", observou um ve-terano esquerdista. Seria o advento de um Quarto Reiçh na Ale-manha unificada? Seria o governo tão indefeso contra a direita como parecia? Como explicar a cumplicidade da população, da policia e até dos políticos com essas primitivas demonstrações de ódio? Por que q chanceler Helmut Kohl esperou até dezembro de 1992, quando.morreram uma criança e duas mulheres turcas em um ataque a bomba, em Molln, para condenar abertamente a violência?/''

Vindos das ruas alemãs, os gritos de Heil Hitler e a visão de prédios ardendo e estrangeiros feridos alertaram a todos. To-davia, previsões histéricas de uma retomada de direita ou do ressurgimento de um novo estado nazista eram prematuras. Quarenta anos de supervisão aliada e prosperidade material tinham fortalecido o compromisso com o liberalismo demo-crático para a maioria dos alemães ocidentais, e este sentimen-to não se abalaria da noite para o dia. Ainda que a República Federal tivesse estancado as demonstrações estudantis da déca-da de 60, a confrontação com o passado nazista pelo menos desacreditara a ideologia fascista perante a grande maioria da população. Atitudes racistas, autoritárias e de cunho fascista ainda persistem, nem sempre camufladas, e se manifestam tan-to em partidos conservadores tradicionais como em partidos de extrema direita. Nas atuais circunstâncias, entretanto, tais partidos permanecem pequenos e isolados, sem possibilidade de chegar diretamente ao poder.

Até mesmo na ex-Alemanha Oriental o movimento neofas-cista popular dificilmente atrairá uma fração maior da popula-

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ção ./Ainda que alguns alemães possam ser racistas e hostis, a maioria, seja do Ocidente ou do Oriente, está consciente de que seu bem-estar depende da estabilidade na Alemanha, da Europa Ocidental e da democracia. Não foi coincidência, en-tretanto, que Hoyerswerda e Rostock estivessem na ex-RDA. As condições de frustração, desilusão e ansiedade proporciona-ram uma combinação explosiva, particularmente entre um povo inexperiente em termos de convivência multirracial. As incer-tezas da transição, aliadas a quarenta anos de socialização co-munista criaram um ambiente particularmente suscetível à de-magogia social e racista./

Apesar de distante do poder, o ressurgimento de uma po-tente ultradireita traz implicações significativas para a natureza da Alemanha unificada, o Estado, a sociedade e a democracia. Como qualquer vítima pode testemunhar, a ultradireita repre-senta uma ameaça real aos que, desafortunadamente, estejam em sua longa lista de ódio. O perigo que o novo tipo de violência de extrema direita se torne o status quo, parte aceita da Europa unificada, implicitamente transformaria a Alemanha e seus vizi-nhos em Rechtsstaaten apenas no nome, já que esses Estados esta-riam incapazes e despreparados para garantir a segurança e os direitos de certos povos/A retórica da direita tem uma atração evidente, que força outros partidos políticos a reagir e tomar posições mais próximas entre eles. Os progressistas já vêem o retrocesso de muitas vitórias de décadas anteriores, e um novo conservadorismo preenche o espaço vazio. Atualmente, os obje-tivos dos democratas são simplesmente proteger o que já conse-guiram e controlar o prejuízo numa sociedade em conflito, sob influência da violência e de doutrinas políticas em sua cultura. Como na República de Weimar, a explosão da violência colocou a direita na ofensiva e os democratas na defensiva//

Como nova potência internacional, a Alemanha unificada encontra-se sob intensa observação, enquanto a Nova Ordem mundial e européia toma forma. Histórias de horror como Hoyerswerda e Rostock no Leste, e Mõlln e Solingen no Oci-dente lançam dúvidas sobre a credibilidade de uma Alemanha soberana, além de provocarem preocupações nos centros do

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poder alemão/Ü Estado reagiu à violência racial apenas quan-do sentiu sua'reputação ameaçada 110 exterior e, ainda assim, culpando o ajfluxo de estrangeiros ou a lei do asilo político e nun-ca a direita em si mesma/Snteresses comerciais esforçaram-se em manter a imagem da Alemanha imaculada. Ao contrário dos anos 30, o mundo dos negócios não lucra nada com o sur-gimento e a tomada do poder pela extrema direita. Na verda-de, a comunidade financeira alemã estará muito melhor servi-da por um Estado democrático e conservador, mantido sob controle pelos mesmos partidos burocráticos que têm governa-do a RFA desde 1949.

O poder político e a mídia da ex-Alemanha Ocidental têm-se voltado contra seus compatriotas do Leste por macularem seu currículo de pós-guerra e solaparem seu heróico esforço de retorno à normalidade política. As estatísticas mostram, porém, que a agressão racista teve uma violenta escalada, em ambos os lados do muro, com as forças organizadas de extrema direita da Alemanha Ocidental à frente da cruzada.

//A tentativa do establishment da Alemanha Ocidental de cul-par os novos estados do Leste pelo racismo violento mascara sua própria cumplicidade cínica na agressão contra cidadãos estrangeiros nesses estados. À unificação transformou o racis-mo alemão e as atividades das duas extrema direitas em um único problema. "Üm ano após a unificação", comentou o se-manário l)i.e Zelt após Hoyerswerda, "parece que, finalmente, a Alemanha Ocidental e a Oriental encontraram um slogan co-mum: fora, estrangeirofJ(A. incorporação da RDÀ Â segunda Re-pública Federal fez com que seus cidadãos encontrassem um discurso político não familiar impregnado de racismo. Bonn, incapaz de prover a economia da ex-RDA com os ajustes rápidos prometidos, transferiu a responsabilidade pelos males econô-micos para a liberal lei do asilo político. Afim de obter o direi-to ao asilo político, garantido por lei, tudo que se necessita é pronunciar a palavra asilo na fronteira, para ser admitido, ali-mentado e alojado até que o caso vá a um tribunal, o que pode levar anos. Mesmo os que apoiam o estatuto de asilo reconhe-cem que é necessária uma revisão das leis de controle de imi-

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gração, mas os conservadores (ajudados por quase toda a mí-dia) usaram o problema do estrangeiro inescrupulosamente, para justificar qualquer problema na Alemanha. Já que todos os partidos políticos são carentes de políticas alternativas váli-das para compensar o enorme preço da unificação, o Partido Social Democrata e o direitista Partido Republicano apoiaram a causa da União Democrática Cristã (CDU) .

Em tempos de.crise, a liderança alemã sempre se voltou para a lei do asilo/Quando expressou seu descontentamento diante dos fatos de Hoyerswerda, o ministro do Interior, da CDU, Wolfgang Schãuble, revelou o medo legítimo dos alemães de serem inundados por levas de imigrantes. "Grande parte da po-pulação está preocupada com o afluxo maciço de refugia-dos", declarou ele. O verdadeiro problema foi o "uso indevido da lei do asilo". "Por que", perguntou Schãuble, "deveríamos exigir que nossos cidadãos abrigassem centenas de milhares de refugiados, a um custo exagerado para nossos contribuintes?" Tal lógica, sempre usada com habilidade pela elite de Bonn, na vercLade desculpava os agressores e culpava as vítimas.

,/Quanto a Rostock, o chanceler Kohl não teve palavras de consolo para as pessoas que sofreram a agressão. Duramente, recusou-se a comparecer ao funeral das vítimas turcas em Mõlln e Solingen. Kohl também reafirmou que o verdadeiro proble-ma era ò número de estrangeiros na Alemanha. Removam-se os estrangeiros e o racismo (os termos mais gentis usados na Alemanha são Auslánderfeindlichkeit — animosidade contr(a es-trangeiros — e Fremdenhass — xenofobia) desaparecerá./Àpós Rostock, os partidos políticos mais importantes, obedientemente engajaram-se na campanha para mudar a concessão de asilo, reforçando o consenso de que os estrangeiros, sucedâneos dos judeus na nova Alemanha, são os verdadeiros culpados.

J A tendência ocidental de culpar a Alemanha Oriental pelo extremismo de direita é injusta. Partidos políticos de extrema direita, como por exemplo o Partido Republicano, têm con-seguido vitórias eleitorais significativas em estados federais an-tigos e porcentagens insignificantes de votos nos novos esta-dos/Ao mesmo tempo, a agressão racial no território da ex-

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RDA provou ser qualitativamente mais odiosa e proporcional-mente maior do que do lado ocidental. Jovens rapazes mili-tantes agem com impunidade, com visível apoio popular. A polícia desfalcada ou, em alguns casos, simpatizante da direi-ta, mostrou-se inçapaz e indiferente para proteger os residen-tes estrangeiros/pesquisas de opinião mostram níveis mais al-tos de intolerância e racismo entre os cidadãos da Alemanha Oriental/Acostumados a uma sociedade quase homogênea , em termos de raça, os alemães orientais foram surpreendidos quando B o n n distribuiu refugiados pelos novos estados da federação, mesmo que em pequeno número. O governo fe-deral não havia feito o menor esforço para preparar esses novos cidadãos para a coexistência com os estrangeiros. Pelo con-trário, o teor do debate sobre o asilo político jamais poderia assegurar-lhes uma boa acolhida.

O que fez surgirem as imagens dos anos 30, o que tornou os nomes de Hoyerswerda e Rostock sinônimos de ódio racial na Nova Alemanha foi a reação de seus cidadãos. A grande mai-oria deles jamais levantou a mão contra residentes estrangeiros — nem o fez para protestar. Na verdade, aplaudiram. Até mes-mo a polícia e seus líderes assistiram em cumplicidade. Sua sim-patia manifestou-se claramente e, sem ela, as primeiras perse-guições na Alemanha, desde o nazismo, jamais teriam sido pos-síveis/quatro componentes fundamentais permitiram a vitória do racismo em Hoyerswerda e Rostock: o clima de ódio, as tro-pas de choque protofascistas, a lassidão da polícia e a. maioria .aquiescente. Segundo seus líderes, o futuro da extrema direita alemã está na reprodução de tais condiçõesf

RACISMO NA RDA

• Òs cidadãos estrangeiros concordam que o r acismo não é novi-dade na RDA. O regime comunista ignorara por muito tempo os insultos diários contra Fidschis vietnamitas é Kohten (carvões) afri-canos. "Podíamos senti-lo todos os dias", explica Stephen, estu-dante etíope de engenharia em Berlim Oriental. "Na universida-de ou no trabalho, a maioria de nós não tinha problemas. Só

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quando saíamos às compras ou íamos a lugares públicos como restaurantes. Era óbvio que muitos alemães não nos queriam como parte de sua sociedade." Um estudo de 1990 mostrou que um em cada .cinco estrangeiros na RDA não era ser vido em restau-rantes ou sofrerá algum tipo de agressão física. As autoridades esforçavam-se por encobrir a escalada de, violência contra resi-dentes estrangeiros, no final dos anos 80.

A política de vista grossa do regime comunista e o racismo institucional só poderiam ter gerado atitudes xenófobas na popu-l a ç ã Q f O Estado garantia que a filosofia de vida (weltanschauung) do cidadão padrão da RDA permanecia profundamente eurocên-trica, com a própria RDA socialista como centro. Alunos de esco-las para crianças brancas da RDA quase não tinham contato com assuntos de outras culturas ou mesmo com outras literaturas, a não ser por meio de propagandaiEra difícil para os cidadãos da RDA ampliar a imaginação além' das próprias fronteiras. Restri-ções a viagens reforçavam o provinciaíismò causado pelo siste-ma. Viajar para o Oçidente era proibido, exceto em casos excep-cionais. O único país onde eram admitidos sem visto era a ex-Tchecoslováquia. Quando no exterior, os alemães orientais, com seus marcos desvalorizados, eram tratados como alemães de se-gunda classe, cultivando um ressentimento qu,e eles transferiram para os estrangeiros que viviam em seu país.

Wolfgang Thierse, líder social-democrata e hoje membro do parlamento federal, é de opinião que o racismo na RDA re-flete uma continuidade na consciência tradicional alemã, que o socialismo real existente simplesmente perpetuou.

As lideranças do SED (Partido de Unidade Socialista) varriam para debaixo do tapete a intolerância para com os estrangei-ros e, o que é pior, de tempos em tempçs usavam-na como instrumento. A específica intolerância da RDA era e é a ex-pressão de nossa idiossincrasia. Simplesmente, não aprende-mos a nos relacionar com pessoas de outros países. E nem poderíamos, pois durante quarenta anos foi-nos negado con-tato com eles! Fomos confinados forçosamente e hoje reagi-mos como crianças enfermas: autistas, assustadas, inseguras, nervosas e agressivas.

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I)e acordo com Thierse, os alemães da RDA não só eram proibi-dos de viajar como também raramente tinham qualquer conta-to com estrangeiros residentes.

Os vietnamitas, poloneses, afeganes e angolanos que vieram para cá como trabalhadores convidados, embora o Estado, na-turalmente, não usasse essa denominação, viviam e trabalha-vam em alojamentos e fábricas separados de nós. Na verda-de, o socialismo na RDA criou algo parecido com sua própria forma de apartheid. Poucos alemães na RDA podiam transpor essas enormes barreiras2 .

Não foi por coincidência que o racismo, após a queda do muro, direcionou-se mais violentamente contra as pessoas que o Estado havia recebido, sob o rótulo de intemaàonalismoprole-tário e solidariedade internacional. Além dos países do pacto de Varsóvia, a amizade especial para com os outros estendeu-se à Etiópia, Angola, Cuba, Vietnã e Moçambique, que tinham laços com a RDA na "luta contra o imperialismo, colonialismo, neocolonialismo, racismo e apartheid". O Estado convidou a maioria dos 191 mil estrangeiros (estimativa de 1989) para vi-rem à RDA, com contratos de quatro e cinco anos, compensan-do assim a escassez de mão-de-obra local. O grupo maior, de 60.067 vietnamitas, trabalhou predominantemente na indús-tria têxtil, e os 15.483 moçambicanos na indústria pesada. O segundo maior grupo de trabalhadores convidados eram os poloneses, com 51.483 pessoas. A média total de estrangeiros na RDA era somente de 1,2% dos quase 17 milhões de habitan-tes, número bem inferior ao da Alemanha Ocidental, onde a proporção era de 7,3% para 62 milhões de habitantes.

Durante sua permanência na RDA, OS residentes estrangei-ros viviam como cidadãos de segunda classe. Como a historia-dora Irena Runge documentou em 1990, em seu estudo sobre estrangeiros na RDA — Fremdenhass: Ausland DDR* —, os contra-tos de trabalho eram detalhados e determinavam expressamente

* Xenofobia: vivendo na RDA.

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o que poderiam ou não fazer, quem poderia visitá-los em seus dormitórios e a que horas, quantas bicicletas poderiam com-prar etc. Setenta por cento dos trabalhadores e estudantes es-trangeiros eram do sexo masculino, a maioria entre vinte e quarenta anos. Os contratos das trabalhadoras vietnamitas e moçambicanas proibia a maternidade durante sua estadia. As cubanas que engravidavam na RDA eram imediatamente enca-minhadas ao primeiro avião, de volta ao país natal. O contrato assegurava aos pais, em um período de cinco anos, uma visita de dois meses aos filhos, em seus países de origem. A RDA em-pregava muitos desses trabalhadores estrangeiras para serviços de níveis inferiores recusados pelos alemães/Os vietnamitas disseram que recebiam, rotineiramente, os trabalhos mais ser-vis e perigosos. Se recusassem, seriam expulsos do país, por re-comendação do diretor da fábrica. A maioria dos habitantes estrangeiros recebia os menores salários, e quanto aos cuba-nos, 60% de seus salários eram diretamente transferidos para suas contas bancárias em Cuba. O Estado também regulamen-tava a quantia e a espécie de bens que os estrangeiros poderi-am adquirir e remeter a suas famílias. Entretanto, as autorida-des nada fizeram para dissipar o mito de que "os estrangeiros compram todos os nossos bens de consumo". Essa impressão ge-ral foi tão útil para o regime de Berlim Oriental como é hoje para Bonn, que convenientemente transfere para outros a res-ponsabilidade da má administração econômica do Estado.

/O Estado tampouco fez qualquer esforço para integrar os residentes estrangeiros à vida social alemã, o que teria ajudado a quebrar o isolamento cultural de seu próprio povo. Um dos poucos locais onde os residentes estrangeiros encontravam-se e socializavam-se com os alemães da RDA era no Café Cabana, localizado no subsolo da paróquia da igreja de São Jorge, em Berlim Orientalfíniciado em 1988, o projeto deu aos residen-tes estrangeiros* um fórum semanal e aos cidadãos alemães a oportunidade de participar um pouco da cultura de seus com-panheiros estrangeiros. Até hoje, nas noites de terça-feira, po-demos encontrar o rosto familiar do ex-dissidente pastor Almuth Berger sentado à mesa iluminada por velas, conversando com

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um punhado de freqüentadores habituais. "Quando sugerimos este projeto, as autoridades naturalmente não gostaram da idéia", diz Berger, enquanto saboreia um prato de sopa de sauerkraut, muito popular no Cabana. Do outro lado da mesa, um simpático estudante angolano concorda com a cabeça. Sua namorada alemã, alheia, olha fixamente à frente. "As autorida-des olharam-me como se estivesse louco quando falei sobre ra-cismo e sentimentos antiestrangeiros na RDA", explica, sem ro-deios, o pastor luterano, que hoje está à frente do Departamen-to para Estrangeiros Residentes em Brandenburg. "Não enten-demos seu comentário, senhor Berger", diziam-me. "Na RDA não há racismo, só solidariedade."

Tipicamente, o regime da RDA considerava o racismo um produto somente do capitalismo, excluindo os países socialis-tas que, por natureza, seriam imunes ao mesmo. Sendo um Es-tado comunista, a RDA e seus cidadãos estavam biologicamente alinhados ao mundo oprimido./À propaganda antifascista ofi-cial do Estado girava entre a céhtralidade da política racial na-zista e o socialismo nacional, e dirigia-se ao legado fascista ale-mão somente nos termos de sua continuidade na República Federal. "Embora racismo e anti-semitismo não fossem assun-tos discutidos, não significava que essas idéias não estivessem ainda na mente de muitos pais e avós na Alemanha Oriental", comenta Berger. "Aqueles anos não se passaram sem deixar vestígios. Foram transmitidos através das gerações."

Estudos mostram que a solidariedade internacional dos ale-mães da RDA para com os movimentos de libertação do Tercei-ro Mundo e para com seus irmãos de estados socialistas, ponto alto nos anos 60, caiu vertiginosamente nos anos 70 e 80. De modo geral, as pessoas participavam das marchas no Dia do Anti-Racismo ou em campanhas para angariar fundos para a Etiópia pelas mesmas razões oportunistas por que pagavam suas mensalidades para o partidos/Ainda assim, argumenta Berger, havia alguns que tinham um interesse verdadeiro em se empe-nhar nas campanhas de arrecadação de brinquedos para as cri-anças na Nicarágua ou livros escolares para Moçambique. Mes-mo assim, o "colapso da RDA e a total rejeição a tudo que repre-

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sentava e presidia pôs em descrédito qualquer aspecto positivo dessas campanhas", explicou Berger. "Muitos que anteriormente demonstravam genuína solidariedade para com os países do Terceiro Mundo, hoje não se envolvem. E impossível usar a palavra solidariedade, pois tem conotações muito negativas."

Ás pessoas do Terceiro Mundo não foram as únicas a sentir a falta de camaradagem dos alemães orientais. Após a queda do muro, como foi demonstrado pela violência contra cidadãos poloneses na Alemanha, o chauvinismo de muitos alemães para com seus vizinhos eslavos é ainda muito intenso./Os versos de uma música popular na RDA dão ênfase a uma freqüente acusa* ção feita pelos alemães contra os polacos: "Vim da loja de depar-tamentos e devo dizer-lhes que as prateleiras estão todas vazias. Em todos os lugares estão os poloneses com suas famílias." No começo dos anos 80, o tom hostil fazia eco à campanha de pro-paganda contra o sindicato polonês independente Solidarie-dade. À fim de evitar o possível alastramento do movimento democrático liderado pelos trabalhadores na RDA, a mídia re-tratava os poloneses como um povo desordeiro, preguiçoso, que preferia fazer greves em vez de trabalharí-A mensagem atingiu seu objetivo, como ilustra uma carta ao jornal diário Berliner Zeitung, de Berlim Oriental, em dezembro de 1989:

Todos conhecem a mentalidade dos poloneses. A maioria é preguiçosa e, com freqüência, ganha a vida por meios deso-nestos. É estarrecedor que tenhamos que tolerar seu comér-cio ambulante a preços exorbitantes. E as autoridades nada fazem para coibir isso, é incrível!

Uma série de estudos feitos nos novos estados federais mostram o alto índice de xenofobia, particularmente racismo, entre a população. Em 1991, o Instituto para Jovens Alemães, estabelecido em Leipzig, descobriu que metade dos jovens na Alemanha Oriental era de opinião que havia muitos estrangei-ros nos estados novos. Doze por cento dos questionados e 20% de estudantes de cursos profissionalizantes declararam que "cada estrangeiro na Alemanha era um demais". Os autores dessas pesquisas notaram que "a aversão dos jovens aos estran-

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geiros é muito significativa" devido à pequena porcentagem de estrangeiros no total de habitantes na Alemanha Oriental. Os pedagogos de Leipzig observaram que nos países da Europa Ocidental, onde a porcentagem de estrangeiros é bem maior, os jovens são "muito mais tolerantes". Estabeleceram seus pre-conceitos principalmente em linhas raciais, demonstrando gran-de hostilidade contra os ciganos, turcos, vietnamitas, negros africanos e poloneses. Os judeus estavam mais próximos ao fim da lista. Embora o grau de intolerância existente fosse maior entre os que vinham de famílias com menos estudo, não havia uma correlação direta entre racismo e condição econômica. A intolerância para com os estrangeiros, concluíram os pesquisa-dores alguns meses antes de Hoyerswerda, "aumentou drastica-mente desde 1989 e 1990. De acordo com nossos resultados a situação no momento é claramente crítica. Há muitos sinais que indicam um novo e talvez drástico aumento de sentimen-tos antiestrangeiros nos novos estados federais."

Um estudo feito pela Universidade de Humboldt em 1991, entre jovens berlinenses do leste na faixa etária de 15 a 25 anos, resultou nas mesmas conclusões. Mais da metade dos entrevista-dos concordou com a declaração de que "quando há falta de empregos, os estrangeiros devem ser enviados de volta aos países de origem". Um terço dosjovens disse não confiar nos estrangei-ros como confia nos alemães. O estudo mostrou pouca simpatia para com o desenvolvimento de uma sociedade multicultural em Berlim Oriental. Mais da metade dosjovens concordou que "es-trangeiros na Alemanha devem adaptar-se ao estilo de vida dos alemães". Um quarto dos participantes admitiu que "países como a Polônia e a Bulgária nunca poderiam alcançar o nível cultural dos alemães devido à preguiça genética e atraso dos eslavos"

LEIPZIG DESPERTA

No fim dos anos 80, o crescente ressentimento contra os es-trangeiros residentes na RDA surgiu de forma evidente, tendo como expressão maior os movimentos clandestinos skinheads e neonazistas. De 1983 a 1988, a estatística anual de atos cri-

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minosos com motivos políticos de direita aumentou em mais de cinco vezes, e os ataques contra os residentes estrangeiros compreendem uma das categorias dessa violência. Os es-trangeiros relataram que os olhares de ódio foram substituídos, cada vez mais, por agressões físicas/À proliferação dos ataques racistas e atividades de direita na RDA, entretanto, coincidiu com outros acontecimentos em 1989, o que veio a ofuscar, tempora-riamente, a ascensão da direita na RDA. Em setembro de 1989, o rápido e grande êxodo de milhares de alemães orientais para a Hungria através da recém-aberta fronteira provocou uma crise aguda na RDA,Í'NO centro da Saxônia, a pouco mais de cem qui-lômetros de Hoyerswerda, a revolução democrática começou a se manifestar. As vigílias para a paz realizadas nas noites de segun-da-feira, na igreja de São Nicolau, em Leipzig, atraíam multi-dões ainda maiores do que o habitual grupo de intelectuais democráticos, ativistas ecológicos e pacifistas cristãos. Quanto mais o regime mantinha-se obstinado e resistente a mudanças e conciliações, maiores se tornavam as vigílias na igreja de São Nicolau, até que toda a praça foi tomada. Em outubro, as vigíli-as transformaram-se em grandes demonstrações, dobrando e triplicando, a cada semana, o número de participantes. Os pro-testos aumentaram até que mais de 350 mil do meio milhão de habitantes dessa cidade industrial foram às ruas. As procissões pacíficas^ à luz de velas, pelo centro de Leipzig, deram o tom criativo à revolução democrática na Alemanha Oriental. O grito de convocação Wirsind das Volkl*, que se tornou o símbolo dos manifestantes de Leipzig, teve ressonância nos prédios cinzen-tos e sujos. A única reação hostil ocorreu quando a passeata passou em frente do bem protegido Ministério da Segurança, quartel-general da Stasi, a polícia secreta. O ambiente ressoava com longas e estridentes vaias, enquanto estudantes acendi-am velas aos pés dos policiais da força antitumultos, com seus capacetes resistentes e fortemente atados e metralhadoras em prontidão.

* Nós somos o povo.

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Solidários, os jovens e velhos, com braços entrelaçados, entoavam os versos da "Internacional" e gritavam "NeuesForum! Neues Fórum?'*, nome dado ao recém-formado grupo ilegal de direitos humanos e movimentos democráticos. A frente das demonstrações, muitos intelectuais do Novo Fórum e velhos dissidentes apregoavam sua visão de uma RDA democrática e independente, uma alternativa à ditadura e à República Fede-ral. Em seu apartamento no quarto andar, com vista para a pra-ça Karl Marx, a porta-voz do Novo Fórum em Leipzig, a escrito-ra Petra Lux, falou entusiasticamente sobre uma forma pro-gressiva de socialismo, baseado em noções abrangentes de soci-edade civil, pluralismo e comunidade. "Mas isso é para o povo decidir", comentou a dissidente de 36 anos. "Não há uma ideo-logia política ligada a essas demonstrações. Estamos simples-mente exigindo os direitos básicos de liberdade de expressão, eleições livres e o direito a viajar." Ela enfatizou ser fundamen-tal a não-violência nos protestos. "Durante 40 anos estivemos sob a violência e a repressão do Estado. Como exigimos o fim desse autoritarismo, concordamos em contrabalancear a vio-lência do Estado com a não-violência."

No dia 9 de novembro de 1989 caiu o muro de Berlim. O rumo da revolução, entretanto, j á havia sido alterado, antes mes-mo de os líderes da reforma comunista e os grupos legalizados dos movimentos democráticos se reunirem para elaborar a tran-sição na RDA./Embora a legislação na Alemanha Oriental conti-nuasse a banir as atividades de organizações políticas neofascis-

, tas, o caos do momento deu à direita o espaço que precisava. Uma anistia geral para 2,6 mil presos políticos devolveu às ruas centenas de ativistas de direita. Os skinheads neonazistas e gru-pos fascistas juntaram-se a seus associados do Qtidente desenvol-vendo, rapidamente, estratégias conjuntas/lndepéndente de qualquer ilusão que os intelectuais democratas tivessem de uma

, nova WA, a direita subitamente viu seu objetivo de muitos anos como prioridade popular, ou seja, a: derrubada da RDA e a unifi-

* Novo Fórum.

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cação das duas Aiemanhas. De fato, o inesperado sucesso pegou desprevenidos os ainda pequenos grupos organizados de direita locais. Mas as conseqüências dessas mudanças dramáticas os fa-voreceram de forma nunca antes imaginada.

,* * Essa explosão de fervor democrático durou pouco. Os lí-deres dos movimentos democráticos ficaram horrorizados quan-do as vigílias de segunda-feira em Leipzig tornaram-se celebra-ções grotescas de nacionalismo alemão. Ao término do ano, o tópico das demonstrações havia mudado de Nós somos o povo para Nós somos um povo, e o nacionalismo manifestava-se por toda a RDA. A cidade saxônica ecoava com os gritos de Uma Ale-manha!, Fora com a esquerda e A Alemanha para os alemães: O sen-tido e a formação das demonstrações mudou. Mulheres, ido-sos, estudantes e estrangeiros residentes apareciam em menor número nas manifestações. Quando os protagonistas das vigíli-as da igreja de São Nicolau se manifestavam, pedindo tolerân-cia, suas vozes eram abafadas por vaias e assobios. Garrafas de cerveja eram arremessadas nos estudantes estrangeiros que se dirigiam às massas. Cidadãos comuns que, dois meses antes, entoavam novo Fórum agora desfraldavam enormes bandeiras alemãs, coloridas de preto, vermelho e amarelo, cantando Deutschland, Deutschland uber Alies e Deutschland einig Vaterland*.

Em meados de novembro, Petra Lux levou para a praça central úm contingente de visitantes, participantes da Semana de Filmes Documentários Internacionais, em Leipzig.

Somente então ficou claro para mim que as coisas haviam tomado um claro rumo para a direita. Pelo que eu havia dito e pelo que haviam escutado, nossos convidados da Europa Ocidental, da África e América Latina esperavam ver algo realmente grandioso. Mas o sentimento racista e antiestran-geiro era bastante evidente. Estavam receosos, e eu incrivel-mente envergonhada. Essa foi a última vez que fui a uma demonstração de segunda-feira. As pessoas com tendências esquerdistas sabiam que era perigoso aparecer por lá.

* Alemanha, Alemanha por toda parte/Alemanha uma só pátria.

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Atrás das bandeiras alemãs, havia um ultranacionalismo repulsivo e um perigoso entusiasmo que os agitadores da Ale-manha Ocidental taticamente alimentavam, na gélida Leipzig. As demonstrações de segunda-feira, berço da revolução não-violenta, testemunharam a estréia na RDA de mais de uma dúzia de partidos radicais de direita/Com gritos de uma Alemanha maior e judeus fora, suas exigências foram claramente um passo além do recém-descoberto sentimento geral de unificação ale-mã. O Partido Republicano, de extrema direita, mantinha um

f perfil dominante nas manifestações, distribuindo grandes quan-tidades de propaganda, que haviam contrabandeado pelas frá-geis fronteiras. Òs rapazes, principalmente, se apossavam dos folhetos, adesivos de pára-choques e isqueiros do partido. Gru-pos neonazistas e os skinheads marchavam pelas ruas geladas, com os braços estendidos em saudação nazista e com bandeiras do Reich alemão sobre os ombros.

A recepção calorosa oferecida à direita em Leipzig provo-cou novas esperanças entre os partidos extremistas da RJFA j á estabelecidos. Embora a ultradireita da Alemanha Ocidental tivesse feito contato com grupos neonazistas e fascistas da RDA antes de 1989, a situação presente abriu um novo campo de oportunidades. As publicações de direita deixavam bem claro que a Middle German, como se referiam à RDA, era a nova linha de frente de suas campanhas. Em um relatório interno, Reinhard Rade, dirigente da campanha do Partido Republica-no da Bavária, orgulhou-se da recepção na praça Karl Marx, em Leipzig.

Noventa e cinco por cento dos manifestantes mostraram in-teresse em nossa propaganda e, em meia hora, todos os 25 mil panfletos haviam desaparecido. Alguns informantes da Alemanha Ocidental (!) e a Stasi tentaram promover agita-ções contra nós, mas a multidão os silenciou®.

Se pudessem candidatar-se às eleições, previu Rade, um resultado de 15% a 30% favoreceria os republicanos na primei-ra eleição da RDA. E concluiu seu relatório: "Esta é a hora dos republicanos!". Durante uma visita a Turingia, em janeiro de

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1990, o líder neonazista da Alemanha Ocidental, Michael Kühnen, declarou que fora sufocado por admiradores. O entu-siasmo inicial parecia estender-se além do apoio do núcleo dos skinheads e dos hooligans. Com o regime comunista em ruínas, muitos colaboradores de conveniência mostraram suas verda-deiras tendências, passando para as fileiras de ultradireita.

O inchaço do nacionalismo alemão podou, de maneira abrupta, possibilidades a longo prazo de uma RDA soberana. O colapso da ditadura foi o último golpe na frágil identidade da RDA, à gual os intelectuais democratas queriam dar novo signifi-cado,/Para um povo não politizado, confrontado da noite para o dia com uma crise de identidade, o nacionalismo era a opção mais conveniente e palpável. A vida dos cidadãos da RDA havia tomado um rumo inesperado e desconhecido, cuja incógnita eles próprios teriam que enfrentar, pela primeira vez.iEssas decisões agora teriam de ser tomadas aparentemente com base num sistema de novos valores. Embora o cidadão médio e cum-pridor das leis pudesse ter ficado feliz ao ver o Estado e sua ética depostos, esperava-se uma mudança mais em forma de dádiva do que de conflitos. O apelo feito pelos partidos de movimento democrático, no sentido de construir uma socieda-de civil nos moldes da participação democrática, foi ignorado.

O nacionalismo alemão ofereceu aos cidadãos da RDA uma rápida ideologia sucedânea que, com a estrutura unificada, tam-bém oferecia uma solução paternal, ostensivamente abrangen-te, para suas dificuldades, A possibilidade de unificação com a República Federal oferecia estabilidade, segurança econômica e uma ética j á estabelecida. A veemente negação do desacredi-tado Estado comunista colocou, mais uma vez, os alemães da RDA ao lado dos vitoriosos da história/fComo cidadãos da RDA, ha-viam sido os conquistadores do fascismo e, como cidadãos da RFA, tornaram-se vitoriosos sobre o comunismo. Anetta Kahane, diretora do Escritório Regional para a Questão dos Residentes Estrangeiros em Berlim, argumenta que a conversão rápida dos alemães da RDA deixou de alterar suas convicções essenciais. Embora o Estado menosprezasse a identificação nacional, ex-plica Kahane,

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simultaneamente, dava pouca importância ao papel do indi-víduo e encorajava a filosofia de vida direcionada ao sossego, à ordem, à segurança, ao asseio e à disciplina. Mesmo com a rejeição ao Estado, o povo não alterou esse consenso funda-mental. Na verdade, rejeitavam os que questionavam tais va-lores. A intolerância e a brutalidade que caracterizavam essa repressão popular eram realmente surpreendentes4.

Para a direita, os acontecimentos em Leipzig mostraram que os tabus de um estado repressor não mais vigoravam. Nos meses que se seguiram à derrubada do muro, ocorreram mani-festações de racismo, cada vez maiores e mais assustadoras, pa-trocinadas pela direita na RDA.' A polícia limpava os muros pi-chados com os dizeres: Despertai grandiosa Alemanha! Não ao re-conhecimento da fronteira Oder-Neisse! e Fora estrangeiros! Precisamos de espaço- vital! Na manhã seguinte, lá estavam os dizeres, nova-mente^Á violência provinha especialmente de grupos de.jfa'n:. headse neonazistas, que fortaleceram suas estruturas com armas, propaganda e conselhos táticos oferecidos pelo Ocidente. Logo, esses grupos possuíam arsenais de pistolas de ar comprimido, punhais e bastões de beisebol, armas típicas dos colegas do Oci-dente,íNesse ameaçador vácuo de poder, as inseguras unidades de polícia apenas observavam, enquanto a violência dos skinheads contra os estrangeiros, punks e representantes do sistema comu-nista manifestava-se a níveis sem precedentes. O relatório de 1990 do Escritório Federal para Proteção da Constituição descreveu um "dramático aumento da violência de extrema direita, prati-cada por skinheads na Alemanha Oriental", particularmente na Saxônia, Brandenburgo e Berlim Oriental. O relatório assinala-va padrões extremos de comportamento dos militantes da RDA e sua habilidade para reunir grande número de simpatizantes em dias específicos/Os peritos estimavam que o número de militan-tes neofascistas na RDA ficava em torno de duas mil a três mil pessoas, e o número de simpatizantes era desconhecido/

ataques aos residentes estrangeiros também aúmenta-/ram e pichações como: Fora turcos! Fora judeus! e Russos contra o paredão! proliferavam-se/;/À primeira onda de violência após a queda do muro, entretanto, tinha como alvo principal a poli-

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cia, os invasores de casas ligados à esquerda e monumentos comunistas que, do ponto de vista da direita, eram todos repre-sentantes do sistema. Até que a liderança da reforma comunis-ta e os partidos de movimento democrático estivessem total-mente fora do caminho, a esquerda permanecia o inimigo público número um. Em Berlim Oriental, Leipzig e Dresden, grupos de saqueadores skins empreendiam batidas noturnas contra pré-dios dilapidados, ocupados por anarquistas punks e transfor-mados em comunidades de invasores. Depois dosjogos de fute-bol, a polícia cercava as casas de muros coloridos dos ex-contra-revolucionários, considerados anarquistas, com carros e unida-des especiais antiterroristas, para proteger os moradores.

Até mesmo em cidades menores e vilarejos, cinqüenta ou sessentajovens de direita causavam estragos em estações de trem e nas ruas, atacando com freqüência a força policial menos numerosa/A violência chegou ao pico no dia 20 de abril de 1990, com a celebração dos 101 anos de Adolf Hitler. Depois He uma partida de futebol, no estádio de Cantian, em Berlim Oriental, quinhentos a seiscentos skinheads nazistas e uma vari-edade de hooligans marcharam na alameda Schõnhauser, con-clamando: Comunistas fora! e Heil Hitler!. A polícia de choque contra-atacou os radicais bêbados, empurrando-os até o centro da Alexanderplatz, onde uma verdadeira batalha eclodiu entre os maniféstantes skins e os seiscentos policiais//

A ASCENSÃO DA NOVA DIREITA

íÒ ingresso dos partidos de ultradireita da Alemanha Ocidental na RDA marcou uma virada crítica para a ultradireita na Alemanha Oriental. Os ocidentais apressaram-se em transferir suas estruturas para os mal-organizados grupos do Leste. Õs mais sofisticados e atuantes neofascistas da RDA rapidamente integraram-se aos partidos de direita do OcidenteJ\té o início de 1990, a maioria dos partidos ocidentais havia formado organizações irmãs na RDA. Os skinheads também, embora indisciplinados e divididos, receberam apoio básico e orientação dos partidos da RFA. As primeiras indicações de que um

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radicalismo de direita específico se desenvolveria na RDA foram diminuindo, mês a mês. Mais de uma vez, a receita para o terror provou ter seu cérebro no Ocidente e os músculos no Oriente. "Em meados do ano de 1990", argumentou o cientista político berlinense, Norbert Madloch,

ficou claro que, devido à grande ajuda amiga, provinda do Ocidente, o modelo organizado dos partidos da RFA predo-minaria. A característica dos extremistas de direita da ROA mostrava-os como sendo muito mais radicais e militantes do que seus companheiros do Leste. Embora estivessem prepa-rados para experimentar novas formas de ação, ainda esta-vam muito aquém, tanto intelectual como sistematicamente, de suas organizações de origem5.

De acordo com Madloch, o potencial de violência e a rapi-dez com que os militantes dó Leste estavam se armando ultra-passavam os do Ocidente. Mesmo nas escolas primárias, os jo-vens radicais andavam armados e eram atuantes nas violentas

: gangues de direita... A incorporação'da difusa direita da RDA ao movimento neo-

fascista da Alemanha Ocidental trouxe consigo os desenvolvimen-tos estratégicos e ideológicos, j á amadurecidos durante várias décadas na RDA. Desde o começo dos anos 50, partidos de ultra-direita atuavam legalmente na República Federa}, contanto que não fizessem uso de termos e símbolos íasristas. Anteriormente, nos anos 80, o auge dos esforços eleitorais da ultradireita foi o voto federal em 1964, quando o Partido Nacional Democrata da Alemanha (Nationaldemokratische ParteiDeutschlands), OUNPD,

conseguiu 4,3% do voto popular, faltando muito pouco para al-cançar os 5% necessários para obter representação no parlamen-to. Entretanto, a maioria dos conservadores nacionalistas e ele-mentos de ultradireita instalaram-se na ala direita de um dos partidos de tendência conservadora, a União Democrática Cris-tã (CDU) e seu partido coligado na Bavária, União Social Cristã (csu). Mas a Ostpolitik* de reconciliação da CDÜ/CSU com a RDA,

* Política do Leste.

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no começo dos anos 80, foi demais para os conservadores da ala direita. Decidiram, então, que chegara a hora de lançar suas candidaturas sozinhos.

vNo começo dos anos 80, a chegada da Nova Direita na Ale-manha Ocidental {Neue Rechté), juntamente com a Nova Direi-ta na Inglaterra (New Right), França (Nouvelle Droite) e em ou-tros países da Europa Ocidental, iniciou uma nova etapa na historia da direita européia^À meta estabelecida pelos primei-ros pensadores na Alemanha Ocidental era "tirar a direita ale-mã da sombra de Auschwitz" e assim distanciar o movimento do amaldiçoado estigma de seu passado nazista.. A estratégia desses semelhantes círculos de discussões, publicações e orga-nizações continha dois elementos principais. Primeiramente, os intelectuais de direita tentaram influenciar a cultura política de pós-guerra, de forma a desestigmatizar as idéias fascistas que não faziam parte do consenso liberal. Argumentavam que o movimento de ultradireita só seria viável quando sua lingua-gem e idéias fossem aceitas como parte do discurso político. Os neofascistas modernos, através de uma revolução cultural de di-reita, buscaram criar um clima social e político que, mais uma vez, seria receptivo a idéias fascistas/7

•í À visita de Ronald Reagan, então presidente dos Estados ! Unidos, a um cemitério militar em Bitburg, na Alemanha Oci-dental, em 1985, e o Debate de Historiadores, um ano após, era exatamente o que os pensadores da Nova Direita tinham em mente. A despeito dos protestos internacionais, Reagan concordou em participar de um culto, em Bitburg, no dia 8 de maio, em celebração aos quarenta anos do término da Segun-da Guerra Mundial e à capitulação da ditadura nazista. O pro-testo surgiu não pelas comemorações propriamente ditas, mas pela escolha do local, feita pelos líderes mundiais: um cemité-

"riò com túmulos de soldados alemães da Primeira e da Segun-da Guerras, inclusive de ex-oficiais nazistas. Ao abaixar sua ca-beça juntamente com o chanceler Kohl, o minuto de silêncio do presidente Reagan implicitamente colocou no mesmo pla-no moral a morte dos nazistas alemães e de todos os outros que perderam a vida nas mãos deles durante a Segunda Guerra

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Mundial e o Holocausto. A implicação era que todos os mortos na Segunda Grande Guerra seriam vítimas: judeus e alemães, nazistas e aliados. A cerimônia em Bitburg foi um passo dado em direção à normalização da herança nazista e à mitigação do peso histórico do povo alemão.

J/Ao escândalo de Bitburg seguiu-se o Debate dos Historia-dores. As interpretações que buscavam absolver a era nazista, feitas por um contingente de respeitados historiadores conser-vadores, iniciaram uma controvérsia tempestuosa nos círculos acadêmicos e públicos. Entre outros pontos, os revisionistas igua-lavam o nacional-socialismo aos crimes do stalinismo, minimi-zando efetivamente as atrocidades únicas e especiais cometidas pelos nazistas/Embora a Academia criticasse severamente os conservadores, a controvérsia pública deu, de maneira irrestri-ta, uma nova legitimidade às idéias da Nova Direita, que esta-vam lançadas e tinham ganhado terreno.

O segundo objetivo da Nova Direita foi a construção de uma imagem moderna para o movimento, que agradasse a um número abrangente de seguidores. As camisas pardas e as suásti-cas do passado foram substituídas por uma fachada mais jovem e profissional. Abandonaram-se terminologias como suprema-áa ariana e sangue e terra (Blut und Boden) por suas congêneres como unidade européia e proteção ambiental. A linguagem era, sem dúvida, menos ameaçadora, mas o conteúdo não menos reaci-onário. Para libertar o neofascismo do lastro nazista, a Nova Direita sacrificou Adolf Hitler. O objetivo claro da crítica caute-losa ao nacional-socialismo era eximir o fascismo alemão de dois crimes vergonhosos do regime nazista: o Holocausto e a Grande Guerra,/

/A fim de evitar os pontos mais obscuros do nacional-socia-lismò, os teóricos da Nova Direita agarraram-se a personagens relacionadas ao período de 1933 a 1939 do Terceiro Reich, como: o capitão da SA, Ernst Rohm, vítima da Noite dos facões, e os pensadores pré-fascistas da República de Weimar, como os irmãos Gregor e Otto Strasser. Em substituição às teorias nazis-tas, abertamente racistas, os membros da Nova Direita abraça-ram teorias camufladas de identidade naáonal é especificidade ét-

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nica, que caracterizavam uma hierarquia similar de povos. O resultado eram slogans como: Alemães, orgulhem-se de ser alemães; turcos, orgulhem-se de ser turcos. Unidos contra o comunismo e a inte-gração raàalJf

O conjunto central de teorias que sustenta a ideologia da Nova Direita é a comunidade popular (Volksgemeinschaft), um con-ceito central da teoria nazista e de todas as ideologias naciona-listas étnicas. De acordo com os membros da Nova Direita, to-dos os alemães, pelo mero fato de serem alemães, pertencem à comunidade popular alemã, comunidade étnica fechada, basea-da na cultura e nos valores nacionais comuns. Dentro dessa comunidade natural, todos os elementos são teoricamente iguais e superiores aos de fora. A Nova Direita oferece a comunidade popular como alternativa ao pensamento que ludibria as pesso-as na sociedade pós-industrial moderna. Argumentam que a modernidade desagregou o ser humano, lançando-o como um indivíduo diminuído num mundo alienado e de alta tecnolo-gia. Todavia, em vez de confrontar o dilema da modernização com formas vinculadas de sociedade e comunidade social, a Nova Direita refugia-se no mundo da tradição, família e nação.

À ascensão meteórica do Partido Republicano, no fim dos anos 80, anunciou formalmente a chegada da Nova Direita na RFA. Fundatlo numa taverna da Bavária, em 1983, o novo parti-do seguiá Franz Schònhuber, 60 anos, antigo jornalista da rá-dio local e ex-membro da Waffen ss. Schònhuber apresentava a imagem da Nova Direita com grande habilidade. Manobrava o fato de ser ex-nazista, enquanto deixava claro que se orgulhava de ter pertencido à Waffen ss e que havia algo realmente digno de ser resgatado da era nazista pelos alemães. A idéia de comu-nidade popular trz. transmitida pelos dois slogans principais: Or-gulho-me de ser alemão e Queremos permanecer alemães.

./Em princípio para multidões receptivas nas cervejarias da Bavária, e depois através de toda a República Federal, Schònhuber espalhava com vigor sua mensagem nacional-popular. Argumen-tava veementemente que a história alemã deveria ser inocentada para que os alemães pudessem novamente orgulhar-se de seus símbolos nacionais e valores tradicionais.|Schônhuber mostrou

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a pequeno-burguesia alemã como a verdadeira perdedora na : sociedade moderna pós-industrial. O tradicional senso de segu-rança e proximidade, típica da família alemã tradicional, tinha sido perdida, devido a influências esquerdistas, tais como os movi-mentos feministas. Em denúncias contra os estatutos liberais de asilo político e imigração na RFA, os republicanos manipularam uma potente combinação de nacionalismo, racismo e frustração social. Somente uma restrição rígida à entrada de estrangeiros na Alemanha "impediria o abuso e o dano aos cidadãos alemães, à sua segurança e à sua essência comunitária". Possivelmente o partido mais independente de todos os tempos, o Partido Repu-blicano pregava a queda da RDA e unificação imediata das duas Alemanhas. Ao contrário de outros partidos de direita, os repu-blicanos mantinham um silêncio diplomático sobre "territórios alemães perdidos", a leste da fronteira do Oder-Neisse.

.y . À espetacular ascensão do Partido Republicano ocorreu no espaço de um ano. Em janeiro de 1989, o partido alcançou a fantástica cifra de, 7,5% dos votos nas eleições municipais de Berlim Ocidental.Ãlguns distritos de trabalhadores deram 20% de seus votos aos extremistas, e sucessos similares seguiram-se. Em junho daquele ano, dois milhões de alemães ocidentais vo-taram no Partido Republicano, nas eleições para o Parlamento Europeu, enviando Schónhuber e cinco adeptos para o parla-mento de Estrasburgo/Análises das tendências eleitorais reve-laram que foi principalmente a demagogia racista direcionada contra os residentes estrangeiros na Alemanha Ocidental que deu a vitória ao partido. Noventa e sete por cento desses eleito-res do Partido Republicano admitiram que não estavam prepa-rados para reconhecer os residentes estrangeiros da RFA como conterrâneos. Mais de dois terços confessaram que "se não fos-se pela guerra e pelo Holocausto, Hitler teria sido um dos mai-ores estadistas da Alemanha."

Extraordinariamente, a formação dos eleitores do Partido Republicano apresenta uma imagem quase espelhada dos sim-patizantes de direita na RDA comunista e dos novos estados fe-derais. Embora o Partido Republicano tenha erroneamente li-gado os problemas econômicos e sociais do país à presença de

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estrangeiros na Alemanha, os distritos que tiveram grande vo-tação republicana apresentavam um número muito pequeno de residentes estrangeiros./Èm outras palavras, os eleitores do Partido Republicano não eram contra os estrangeiros porque tinham vizinhos turcos. Na realidade, os distritos com alta con-centração de residentes estrangeiros apresentaram resultados a favor dos republicanos abaixo da média. Tampouco o partido reuniu grandes fileiras de simpatizantes entre os desemprega-dos e os não-privilegiados. Assim ccimo os cidadãos de Hoyerswerda, o eleitor comum do Partido Republicano é de ciasse média ou tem padrão de vida alto,/Os pequenos comerci-antes, burocratas e assalariados que apoiaram o Partido Repu-blicano fizeram-no por medo do futuro. Muitos trocaram os votos do Partido Social-Democrata pela ultradireita/'/Uma por-centagem alta e desproporcional de eleitores do Partido Repu-blicano era do sexo masculino (três vezes mais do que mulhe-res), jovens (muitos entre os 18 e 23 anos de idade) e com nível de escolaridade abaixo dos outros eleitores. O Partido Republi-cano também teve excepcional votação entre moradores dos projetos habitacionais urbanos, os complexos Neubau do tipo Hoyerswerda, que o governo social-democrata havia construí-do nos anos 60 e 70.

A Nova Direita conseguiu traçar um caminho entre a velha escola neofascista e a cnu/csu, mas falhou ao tentar eliminar as fileiras de facções radicais ostensivas do cenário da extrema di-reita. Ao contrário da Frente Nacional na França, os republica-nos não conseguiram unir o espectro das forças de ultradireita sob sua bandeira. Os republicanos representavam uma coali-zão indefinida de forças de ultradireita com identidades dife-rentes, objetivos conflitantes e, o que é pior, com líderes rivais/ Os partidos renovados da Nova Direita como o NPD e o Deutsche Volksunion (União dos Povos Alemães) dependiam primordial-mente de estratégias eleitorais, embora não se eximissem de cortejar skinheads e de favorecer a violência. Organizações neo-nazistas, tais como a Frente Nacionalista, o Partido Liberal dos Trabalhadores Alemães e o Deutsche Alternative empregavam regularmente a violência e dependiam muito dos skinheads e

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dos grupos de hooligans. Apesar de pequenos, até os grupos marginais de neonazistas já tinham demonstrado sua capacida-de de influenciar a opinião pública e de promover o debate político. Hoyerswerda e Rostock são exemplos disso.

Um pequeno esboço dos mais importantes grupos neofascis-tas dão idéia da ultradireita, à direita do Partido Republicano7.

Partido Nacional Democrata Alemão (NPD — Nationaldemokratische Partei Deutscblands)

O mais antigo dos maiores partidos neofascistas, o NPD jamais repetiu o extraordinário desempenho que teve nas eleições fe-derais de 1969. O mais radical da diTeita alemã, como ele se des-creve, continua a perseguir uma estratégia eleitoral, apesar de situar-se sempre abaixo de 1% do total dos votos/Ao contrário do Partido Republicano, o NPD exige o restabelecimento das fronteiras da Alemanha nazista de 1937. Assim como todos os grupos abertamente neofascistas, o NPD insiste na restauração dos territórios perdidos do Reich alemão, incluindo-se a Alsácia-Lorena na França, a Polônia Ocidental, a antiga região do Sudeto na República Tcheca, a ex-Prússia Oriental na antiga União Soviética e a Áustria,Segundo o NPD, a unificação das duas Alemanhas foi só o primeiro passo em direção à ressurrei-ção das "verdadeiras fronteiras étnicas" da Alemanha. A plata-forma do NPD sempre denunciou "a fraude do asilo político" e a "estrangeirização" da Alemanha (Überfremdung). O recente de-clínio do partido levou-o à discussão interna sobre a participa-ção em uma coalizão de direita mais ampla.

União dos Povos Alemães (tivu - - Deutsche Volksunion)

;/Com a chegada dos republicanos, a União dos Povos Alemães passou para o segundo lugar em força numérica, entre as orga-nizações de ultradireita na RFA./Um desdobramento do Partido Nacional Democrático, foi fundado em 1971 pelo doutor Gerhard Frey, seu presidente e líder inçonteste. Essa organização descre-ve-se como um "movimento suprapartidário", que engloba gru-

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jpos como o Movimento Popular por uma Anistia Geral (para criminosos de guerra nazistas) e à Iniciativa para a Restrição a Estrangeiros. Por trás de seus supostos serviços democráticos,,, promove uma xenofobia agressiva e um anti-semitismo feroçi? Apregoa uma reavaliação radical da ditadura nacional-socialistá e da responsabilidade alemã na deflagração da Segunda Guerra Mundial. Como outros partidos neonazistas, a União dos Povos Alemães exige uma política forte de "lei e ordem" para deter os crimes "de inspiração estrangeira"//

O sucesso dos republicanos deveria, aparentemente, asse-gurar o declínio eleitoral do União. Entretanto, as eleições lo-cais de 1990 e 1992 em Bremen e Schleswig-Holstein (das quais o Partido Republicano não participou) deram a Frey e seus companheiros triunfes inesperados. Em 1990, o União dobrou o resultado de 1987 em Bremen, com 6,6% do total dos votos, e acima de 10% na cidade portuária de Bremerhaven. Antes e durante as eleições, o partido quase não apareceu em Bremen, dirigindo sua campanha milionária desde a sede em Munique. Seu tema único: a política de asilo na RFA.

Partido Liberal dos Trabalhadores Alemães (FAP — Freiehitliche Deutsche Arbeiterpartei)

Ò Partido Liberal sempre se gabou de ter a maior militância neonazista do país, durante anos. Ainda que tal organização, com menos de mil filiados, não tenha perspectivas eleitorais, coman-da uma violência assustadora. Sob a liderança do presidente Friedhelm Busse, de 62 anos de idade, o grupo obteve extraordi-nário suce,sso ao recrutar skinheads e hooligans nos novos estados federais/Busse, veterano no cenário neonazista, passou os últi-mos anos entrando e saindo de prisões na Alemanha Ocidental, por crimes que incluem agitação de extrema direita, incitação à desordem, celebração da violência, posse ilegal de arma. De acor-do com o Ministério do Interior, os membros do Partido Liberal dos Trabalhadores estão por trás de uma cota desproporcional-mente alta da violência de extrema direita.

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Alternativa Alemã (DA — Deutsche Alternative) — Alternativa Nacional (NA — Nationale Alternative)

Ph. Alternativa Nacional, baseada em Berlim, e a Alternativa Ale-mã são dois dos partidos fragmentados associados a Michael Kühnen, líder controvertido, até sua morte, em 1991, do movi-mento neonazista na Alemanha OcidentaliQuando fora da pri-são, Kühnen estava â frente do movimento, fundando um sem-número de partidos e grupos, entre eles o Partido Liberal dos Trabalhadores. Suas organizações seguem abertamente os pas-sos do nazista Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Ale-mães (Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei) ou NSDAF, an-terior a 1945, cuja ficha criminal os neonazistas têm lutado para anular.;Os neonazistas tampouco tentam disfarçar as teorias raciais que os republicanos se esforçam por camuflar. Os -neo saúdam-se com o cumprimento Heil Hitler, geralmente portam camisas pardas e braçadeiras com a suástica. Seus membros ho-norários incluem Adolf Hitler, Rudolf Hess, Ernst Ròhn e Joseph Goebbels. O slogan da Alternativa Alemã (DA) e da Alternativa Nacional (NA) é: O Quarto Reich está chegando! /I

Em fevereiro de 1990, a ocupação de uih prédio vago no bairro berlinense de Lichtenberge pela Alternativa Nacional de Berlim Oriental causou furor na RDA pós-comunista. O nú-mero 122 da rua Weitling tornou-se residência da liderança do partido e também o centro de comunicação nacional da Alter-nativa Alemã. Kühnen e o cidadão americano Gary Rex Lauck, diretor de propaganda do NSDAP (Divisão de Desenvolvimento Internacional) eram hóspedes freqüentes. Depois da escaramu-ça de 20 dc abril na Alexanderplatz, a polícia fechou o imóvel da rua Weitling. Uma quantidade de armas, pilhas de propa-ganda nazista e uma lista computadorizada de inimigos de es-querda foram confiscadas pelas autoridades.

,/fem dezembro de 1992, quando foi interditada pelo Minis-tério do Interior, a Alternativa Alemã havia se tornado o maior grupo neonazista nos novos estados, com centros em Brandenburg e na Saxôniaf Especialistas calculam que havia mais de mil filiados por toda a nação. Seu sucesso deveu-se, em

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grande parte, ao presidente de 28 anos, Frank Hübner, consi-derado por muitos como herdeiro de Kühnen. Aliás, o eloqüen-te e bem apessoado Hübner, de Cottbus, foi escolhido a dedo por Kühnen para articular seu Leste Impresso (Blueprint East). Interditados, os membros da Alternativa Alemã reagruparam-se em outros partidos afins, como o Alternativa Nacional, Lista Nacional de Hamburgo, Ofensiva Nacional de Dresden e o Par-tido Nacional Alemão da Turíngia. Conforme declarou Hübner, depois que a polícia revistou seu apartamento: "Um partido pode ser interditado, mas não o povo por trás dele."

Frente Nacionalista (NF — Nationalistche Front)

A Frente Nacionalista, também proscrita em 1992, considera-se o partido sucessor das tropas de choque nazistas (SA) dos anos 30. Os militantes revolucionários nacionalistas dizem que seu objetivo é "tornar a vida dos estrangeiros na Alemanha impos-sível". A literatura da organização retrata skinheads e cenas de hooligans no futebol, em caricaturas grosseiras, esmagando tur-cos com suas enormes botas. A Frente Nacionalista organiza-se em núcleos conspiratórios que se unem a outros grupos neonazistas, como a Ku Klux Klan, para promover desordens e queima de cruzes, Fazem parte do socialismo popular znúimpeú-alista e aiiticapitalista,

A invasão da direita ocidental na RDA e a acolhedora recep-ção nas ruas de Leipzig deram motivo a previsões histéricas de que uma volta radical de extrema direita tomaria conta do país. Sociólogos da RDA, que haviam lidado com extremismo de di-reita antes de 1989, previram uma onda maciça de direita entre os jovens. O Partido Comunista Reformado apontou a "amea-ça direitista" como justificativa para uma nova polícia secreta. Demonstrações antifascistas em Berlim Oriental agregaram uma incrível coalizão de comunistas de linha dura, social-democra-tas, anarquistas e militantes de esquerda da Alemanha Ociden-tal (Awfonown)/Ironicamente, alguns dos líderes do movimento democrático, os primeiros na RDA a chamar a atenção para o perigo das correntes neofascistas entre a juventude do Leste,

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ignoraram o fenômeno no princípio. Esclareciam que, assim como no Ocidente, uma extrema direjta marginal era normal num espectro democrático pluralista/

Estudos feitos logo após a queda do muro não coibiram tais medos iniciais. A volta à direita deixou de se materializar nas proporções previstas por observadores, e as estatísticas tam-bém não eram significativa^*) Instituto da Juventude Alemã, em Leipzig, revelou um potencial bem alto de extrema direita entre jovens da RDA, o que, segundo os pesquisadores, estava relacionado com atitudes negativas para com estrangeiros/Üm terço dos entrevistados admitiu que preferia a segurança de um Estado autoritário à incerteza caótica da transição em pro-gresso. Trinta e três por cento dos jovens concordavam que "o mais importante agora era a manutenção da lei e da ordem, com violência, se necessário''. Apenas 18% eram francamente contra essa afirmação, 17% achavam que "os alemães deveriam ter um governante forte novamente", e só pouco mais da meta-de rejeitava categoricamente tal declaração.

Grandes porcentagens de jovens concordavam com os slo-gans típicos dos grupos direitistas, ainda que só uma fração de-les se identificasse com algum partido ou grupo político espe-cífico./Quarenta e sete por cento dos entrevistados e dois ter-ços dos alunos do curso vocacional concordavam com "a Ale-manha para os alemães!" Entre os membros de organizações

í de extrema direita, 100% achavam que a juventude era atraída para a extrema direita porque era contra os estrangeiros. Os sociólogos descobriram uma correlação íntima entre a identifi-cação nacional e atitudes autoritárias intolerantes. De 15% a 20% de todos os jovens demonstraram idéias "autoritárias, na-cionalistas e xenófobas", sendo que uma porcentagem maior demonstrou sentimentos antagônicos para com pessoas que pensassem ou vivessem de forma diferente.

• Um estudo feito em junho de 1990, comparando atitudes da juventude alemã no Ocidente e no Oriente, concluiu haver uma propensão um pouco maior para idéias de extrema direi-

Í' ta entre os orientais. Comparados a 7% dos jovens na RFA, 16% de jovens na RDA declararam que gostariam de ter um outro

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Führer, que governasse a Alemanha com pulso forte, para o bem de todos,^Üm resultado que certamente agradou os movimen-tos da Nova Direita: mais de um terço dos alemães ocidentais e orientais concordaram que "as pessoas da idade deles não pre-cisavam se envergonhar da herança do fascismo alemão". Soci-ólogos de Munique e Leipzig verificaram que 11% dos jovens orientais e 13% dos jovens ocidentais consideravam o fascismo bom, só que mal-implementado. Quanto aos sentimentos para com os estrangeiros, houve um contraste maior, ainda que os números não informassem muito sobre nenhum dos grupos. Quarenta e dois por cento de jovens na RDA (contra 26% na RFA) admitiram que o número de estrangeiros na Alemanha os incomodava.

Nas eleições federais e estaduais de 1990, contudo, a histó-ria temporariamente surpreendeu os partidos da Nova Direita, impondo-lhes derrotas esmagadoras. ;:Ò tema abraçado pela direita durante anos, a unificação alemã, tornara-se a políüca oficial do governo. O plano de dez pontos para unificação em janeiro de 1990, apresentado pelo chanceler Kohl, segundo protestos de Schõnhuber, era idêntico à antíga proposta dos republicanos. Nas eleições para as legislaturas estaduais na Ale-manha Ocidental, no final de 1989 e em 1990, o apoio aos re-publicanos ficou abaixo dos 5% necessários para a representa-ção parlamentar. No Leste, Kohl e a União dos Democratas Cristãos aproveitaram-se da onda de euforia nacionalista, num cenário de ondulantes bandeiras nas cores vermelha, preta e amarela. As grandes promessas de prosperidade e segurança econômica do Chanceler da Unificação para os futuros estados federais eram simplesmente maravilhosas para serem rejeita-das pelos alemães do Leste. A atordoante velocidade dos acon-tecimentos ,na Alemanha deixara a direita temporariamente esvaziada.j/Nas eleições de outubro de 1990, para a legislatura estadual na RDA, O total dos votos dos republicanos e do Partido Nacional Democrata caiu para menos de 1%. Dois meses de-pois, nas primeiras eleições federais para toda a Alemanha, os republicanos triplicaram seu desempenho nos estados do les-te, mas conseguiram apenas 115.496 votos, ou seja, 1,5%/

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Os simpatizantes de direita nunca desapareceram em am-bos os lados da antiga fronteira. A União dos Democratas e União dos Socialistas foram bem-sucedidas ao retomar os votos de direita que detinham até que aparecessem os republicanos. Não familiarizado com o espectro político da Alemanha Oci-dental, o eleitorado inseguro da RDA mostrou-se mais inclinado a esperar para ver qual partido lhe poderia oferecer maior se-gurança. O fenômeno de Leipzig caracterizou a desorientação de um povo não politizado, imprevisível e suscetível a mudanças abruptas em suas preferências políticas. Um fator a distinguir os eleitorados dos estados velhos e novos era a relutância dos alemães da RDA em unir-se ou identificar-se com partidos políti-cos. A população dos novos estados federais preferia agrupar-se em torno de assuntos imediatos e emocionais, por pouco tempo, em vez de organizar-se em estruturas coerentes. A ina-bilidade dos partidos de Nova Direita em conseguir adesões substanciais na Alemanha Oriental tampouco determinou seu desaparecimento. Na verdade, após as eleições de dezembro de 1990, vários analistas assinalaram o impressionante desem-penho dos partidos da Nova Direita com mais de 150 mil votos combinados nos novos estados federais, considerando-se que concorreram sem estruturas organizadas e sem publicidade.

Os temas que sustentaram os republicanos em 1989 logo ressurgiram quando o êxtase nacional pela unificação desapa-receu e os partidos de ultradireita redobraram os esforços. Nas eleições locais de 1992 e 1993, em vários estados da antiga Ale-manha Ocidental, os republicanos e a União dos Povos Ale-mães (nvu) conseguiram vitórias excepcionais, captando de p% a 11 % de votos onde, há quatro anos, quase não os tinham,;íÉm seguida ao sucesso da Frente Nacional na França e de partidos similares na Bélgica, Áustria, Itália e Suécia, em 1992, o retor-no da direita alemã não deveria surpreender. Os partidos de maioria tinham mantido os temas importantes para a ultradi-reita em evidência. Os republicanos levaram as idéias da lide-rança de Bonn sobre asilo político ainda mais além e usaram a crescente desilusão com a falta de habilidade dos partidos de maioria em lidar com os pesados encargos causados pela unifi-

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cação. Aparentemente, a ultradireita tornara-se parte do cená-rio político alemão e, dessa vez, para ficar.

DRESDEN — CAPITAI, DA DIREITA

'Òs beneficiados iniciais pela derrota eleitoral da União dos Democratas Cristãos e da Nova Direita no Leste foram os grupos neonazistas. Conforme temiam alguns críticos, o movimento tornou-se subterrâneo novamente e mais difícil de ser observado, controlado ou previsto. A sede não-oficial dos neonazistas transferiu-se de Berlim, futura capital da Alemanha unificada, para Dresden, capital da Saxônia. A ultradireita concentrou-se impunemente na região conservadora, com apoio tácito e aberto da população e da polícia,íEm Dresden, assim como em Cottbus, Leipzig Hally e Hoyerswerda, a ameaça do racismo violento tornou-se a realidade diária de residentes estrangeiros. O clima político reinante foi uma das coisas que possibilitou ao historiador revisionista britânico, David Irving, de extrema direita, propagar, pelos corredores das universidades, sua tese de que o Holocausto foi um mito inventado pelos aliados. Nas alas escuras da estação ferroviária Hauptbahnhof, o diário Die Deutsche National Zátung, da União dos Povos Alemães, era vendido por um marco.

A maioria dos cidadãos de Dresden vive em conjuntos resi-denciaisNeubau que se espalham fora do histórico centro da cidade, herança do impiedoso bombardeio da Pérola barroca do Elba, na Saxônia, que reduziu 90% da cidade a escombros. A uma parada de ônibus da praça dos Trabalhadores da Constru-ção fica o maior conjunto habitacional de Dresden, Gorbitz. No inverno, ao cair da noite, o brilho azulado dos aparelhos de televisão ilumina os edifícios idênticos. Abaixo, caminhos sinu-osos e vazios cortam a cidade de cimento, com seu supermerca-do-padrão, sua barbearia-padrão, seu playground-pa.drío. Um trailer de cachorro-quente é o único sinal de vida. Quatro ho-mens em jaquetas de inverno volumosas aconchegam-se em torno da fumaça quente e acre das salsichas fritando, seguran-do latas de cervejas nas mãos sem luvas. No alto de uma ladeira enlameada, um edifício plano de um pavimento: o clube-pa-

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drão dajuventude na RDA. AS pichações nos muros do Espe Club mostram que Gorbitz merecia a reputação de guardião central do neonazismo de Dresden. Lia-se: Fora estrangeiros! Terceiro Reich de novo! e Hoyerswerda livre dos estrangeiros!

Numa noite tranqüila de segunda-feira, um punhado de adolescentes vestidos simplesmente pode ser visto por ali, jo-gando tênis-de-mesa na sala iluminada a néon. O único sinal do colapso da RDA é a cabine de aluguel de vídeo que funciona num armário de vassouras adaptado. Um pôster na porta aber-ta anuncia Rambo III. A irmandade de Gorbitz vinha se encon-trando no Espe, todas as semanas, até que a fraca aliança neo-nazista se rompeu, espalhando de 100 a 150 jovens violentos de/;

direita que, segundo a polícia de Dresden, vivem em Gorbitz/ Um número de três a quatro vezes maior que esse está ativo em toda a Dresden, bem como alguns milhares de simpatizantes, com diferentes graus de comprometimento. Professores de pri-meiro grau de Gorbitz calculam que 80% consideram-se "radi-cais de direita". Nas eleições estudantis, os chefes de gangues da direita lideram as votações./

Nervoso e desambientado, encaminho-me para dois rapa-zes, empoleirados nos bancos do bar. Digo-lhes que estou es-crevendo um artigo sobre a cultura dajuventude em Dresden e que j á tinha conversado com esquerdistas do outro lado do rio. O maior ri. "Cultura? Em Gorbitz? Você não vai ter muito o que escrever." Seus amigos riem também, mas, como não têm nada melhor para fazer, conversam comigo. "E, somos todos direitis-tas aqui", comenta Jôrg, 18 anos, sotaque rústico de classe tra-balhadora. Alto, musculoso, cabelo castanho cortado rente e brilhantes olhos escuros, Jòrg acrescenta que é membro da Ku Klux Klan (KKK)/Não conhecia ninguém mais da Klan, mas ti-nha toda a literatura traduzida. A KKK, há muito ligada aos neo-nazistas da Alemanha Ocidental, começou a recrutar associa-dos nos novos estados federais, no começo de dezembro de 1991. Jòrg sabe que o líder Dennis Mahon e seus colegas ale-mães iniciaram a campanha da KKK com a queima da cruz, fora de Berlim. "A Klan tem posição firme contra negros e asiáti-cos", provoca ele, "os que tomam nossos empregos e moradi-

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as." Hesita por um momento e, acrescenta: "É, e naturalmente contra esquerdistas também."/

Jôrg e seu amigo Gerd são aprendizes de padeiros. Gerd pertence ao Partido Liberal dos Trabalhadores (FAP) , o que não aborrece seu amigo da KKK. "Somos nacional-socialistas e isso é o que conta", acrescenta Jõrg. Gerd, mais baixo e de cabelo ouriçado, concorda respeitosamente. Ciciando ligeiramente, conta que é membro do Partido dos Trabalhadores porque eles têm o melhor programa, que ele resume em duas palavras: "Pa-rem, estrangeiros!" Com um boné preto sobre os cabelos cur-tos, ele não acrescenta mais informações. Basicamente, admite que o Partido dos Trabalhadores em Gorbitz tem os "melhores caras", que o convenceram a se filiar, há seis meses. O grupo de cerca de trinta neonazistas mantém contato regular com a lide-rança no Ocidente. . .., Duas moças com jaqueta de beisebol em cores vivas e cal-ças jeans bem apertadas chegam. Uma delas, Ute, dá o braço a Jôrg e conta que vai se filiar ao Juventude Viking (Wiking Jugendi), da supremacia ariana, quando fizer 18 anos, no ano seguinte. "Ajv pretende restaurar valores tradicionais e as ver-dadeiras fronteiras alemãs", ela recita, repetindo exatamente a plataforma do grupo neonazista. Tendo como modelo ajuven-tude de Hitler e sua similar União das Moças Alemãs, ajv prega a volta dos costumes populares e da cultura alemã. O que Ute não diz é se ficaria muito contente em trocai; a jaqueta Kansas City Stars por uma roupa típica da Bavária/A. atraente jovem gostaria de aderir imediatamente àJuventude Viking, mas, como menor, seus pais teriam que lhe dar permissão. "Em princípio, meus pais concordam com muitas coisas dajv", continua Ute, "mas eles são os típicos oportunistas, os seguidores, os piores de todos." Os outros concordam desgostósos. "Primeiro eram comunistas e agora votam pelo Partido Democrata Cristão", prossegue, com voz estridente. "E somos nós que pagamos!"

. Alguns filhotes de skins, de 13 e 14 anos, dão uma espiada no clube para ver o que está acontecendo. Gerd lança-lhes um olhar de reprovaçãa£/"Sfa'ns não são nazistas verdadeiros. Eles acham que bater na cabeça de alguém torna você um homem", revol-

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ta-se Jô£g. Entre os quatro há um consenso sobre a maioria dos temas/; Concordam que as fronteiras alemãs de 1937 deviam ser restauradas, que a República Federal é umi imposição dos Es-tados Unidos e não deve ser confundida com a Alemanha e, * acima de tudo, que a unificação só trouxe mais problemas/ f Quanto ao Holocausto, as opiniões divergem: "O extermínio dos judeus foi desumano. Não poderia viver com isso", Ute de-saprova. Jòrg sorri maliciosamente, sacudindo os ombros. Não tem tanta certeza. "Esse negócio de Holocausto foi exagerado. Além disso, os judeus não ,são problema hoje. Há outras coisas muitó mais importantes.'Jí

/À turma do Espe deixa claro que o problema do estrangeiro é muito mais importante. "Não detestamos estrangeiros", expli-ca Jòrg imparcialmente, "desde que fiquem em seus países. Vi-etnamitas no Vietnã, africanos na África e alemães na Alema-nha. Isso é normal. J/Para osjovens de Gorbitz, assim como para a direita em toda a Alemanha, a retirada de Hoyerswerda foi um marco. Jòrg sorri. "Hoyerswerda mostrou o que podemos fazer. Muitos estrangeiros já partiram. Foram espertos fazendo aquilo porque vai acontecer outras vezes." Ele gesticula por so-bre o ombro em direção a determinado bloco dè apartamen-tos, "até que todos se retirem".

Após um tempo, um homem baixo e corpulento, com ócu-los de lentes grossas, sai de trás do bar. Apresenta-se como gerente do Espe e pergunta-me o que estou fazendo. Mostro-lhe um cartão de jornalista americano, que ele examina e fin-ge ler. "São bons garotos, diz em voz alta. "Sei o que vocês, jornalistas, escrevem sobre eles, e são mentiras. Mentiras!". Meus novos conhecidos olham-me. Estaria tentando enganá-los? Escutem, digo com um desinteresse fingido. Não vou pu-blicar mentiras. Talvez não publique nada. Só estamos tendo uma conversa amigável. Meio desconfiado, ele se retira para o bar. Chegou a hora de ir embora e não abuso da sorte. Quan-do começo a vestir o casaco, vejo uma dás moças olhar disfar-çadamente para Jórg, fazer um gesto e apontar em minha di-reção. Engulo a seco, fingindo não perceber. Jõrg olha-me rapidamente, volta-se para a moça e sacode a cabeça negativa-

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mente. Os vinte metros escuros do Espe até o bonde foram os mais longos de minha vida.

Como os militantes de Gorbitz admitem prontamente, o ce-nário neonazista em Dresden fragmentou-se desde a perda de sua figura central, Rainer Sonntag, que trabalhava junto com Kühnen na Alemanha Ocidental, desde que deixara a RDA em 1987 em circunstâncias suspeitas. Logo após o colapso do regime comunista, Sonntag voltou a sua Dresden natal com uma missão: organizar a direita saxônica. O líder carismático de 36 anos logo se encarregou de montar o cenário neonazista, fundando vários grupos militantes como o SS-Leste, a União dos Lobisomens Sa-xônios e a Oposição Nacional Alemã ou NVVD. Com seu cão pas-tor ao lado, o homem atarracado de cabelos éastanhos era sem-pre visto no centro de Dresden rodeado de jovens skinheads e de neonazistas. Sonntag organizava suas tropas segundo a tradição das SA, grupos de elite vigilantes no combate ao desemprego, às drogas, à indústria do sexo e ao crime. "Só unidos somos fortes", Sonntag pregava às milícias. "Não importa qual o seu bairro em Dresden, Johannstadt, Gorbitz ou Hauptbahnhof, não importa se você é fascista, skin ou hooligan: limpem a sujeira das ruas de Dresden! J/A Oposição Nacional Alemã formava a ala política do movimento, um partido "contra o desmantelamento dos servi-ços sociais do governo" e pela "lei popular e a ordem".

/fA população de meio milhão de pessoas observava enquanto os militantes neonazistas atacavam os cafés alternativos de es-querda na cidade e saqueavam as barracas de papelão dos co-merciantes ambulantes vietnamitas. A polícia não coibia as ini-ciativas dos cidadãos vigilantes. As ações de limpem nazistas fe-charam vários bordéis e lojas pornográficas, acabando com as operações de jogos de esquina dos húngaros. Até as exigências neonazistas de taxas de proteção, tipo máfia, cobradas aos ne-gociantes, foram ignoradas pelas autoridades. O governador da Saxônia, Kurt Biedenkopf (CDU), menosprezou o submun-do de direita como "um fenômeno marginal de mudanças", cujas proporções a imprensa exagerara//

Em 31 de maio de 1990, Sonntag cáíu, vítima do círculo de violência que ele próprio ajudara a montar. Pouco depois da meia-

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noite de sábado, Sonntag e sessenta seguidores preparavam-se para uma incursão ao novo Sex Shopping Center. Logo cedo, al-guns partidários tinham visitado donos de uma loja pornográfi-ca na Alemanha Ocidental e exigido cinqüenta mil marcos. Os dois proprietários, Nikolas Simeonidis, de 24 anos, e Ronny Matz, de 25 anos, recusaram-se a pagar e prepararam barricadas na loja, prevendo um ataque. Quando os neonazistas se reuniram, Simeonidis e Matz tentaram negociar com Sonntag. Estaciona-ram um Mercedes preto perto do líder nazista e trocaram pala-vras ásperas. Quando Simeonidis sacou o revólver, todos os na-zistas, exceto Sonntag, escaparam. Sonntag continuava falando e gesticulando. Ouviu-se um barulho alto, quando Simeonidis disparou uma só bala no rosto de Sonntag. Antes que seus guar-da-costas pudessem reagir, o veículo partiu velozmente. Os mili-tantes envolveram o corpo ensangüentado do chefe numa ban-deira do Terceiro Reich, aos gritos de Sieg Heil! Vamos combater todos vocês!. Alguns dias depois, a polícia prendeu os dois homens no bairro do meretrício, acusando-os da morte de Sonntag.

O funeral de Sonntag atraiu a maior quantidade de neona-zistas da história alemã do pós-guerra. Quase dois mil direitis-tas acompanharam o caixão envolto na bandeira nazista, pelas ruas de Dresden. Alguns tinham as cabeças raspadas e usavam jaquetas pretas de pilotos, outros, uniformes da SA, mas a maio-ria era de cidadãos comuns. A procissão circulou pela cidade aos gritos de Sieg Heil! Rainer Sonntag, mártir do Reich! Vingança! À frente da procissão, iam os líderes de direita, à exceção de Kühnen, morto por um vírus relacionado à AÍDS, um mês antes. No túmulo de Sonntag, o líder nazista Heinz Reisz lamentou o assassinato do "companheiro na luta contra a República de Bonri". "Sonntag morreu como um soldado. Assassinos traiço-eiros mataram-no, assim como os aliados bombardearam Dres-den!", vociferava. "Lutem contra o caos que permanece em nossa porta!", continuou, advertindo um policial na multidão: "E para isso precisamos de vocês também!/ As autoridades de Dresden admitiram ter permitido a reunião com o coração aper-tado, por falta de outra alternativa.

A morte de Sonntag malogrou as esperanças dos líderes

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\neonazistas quanto a um movimento coeso no sudeste alemão. A frágil coalizão em torno de Sonntag fragmentou-se, mas não

& ponto de se extinguir a vingança jurada/À violência aumen-í tou em toda a Saxônia. Os bombardeios de coquetéis molotov /nos alojamentos de estrangeiros apresentaram uma nova esca-lada de terror. Em abril de 1991, seis skinheads de Dresden im-

itaram o estudante moçambicano Jorge Gomondai, de 28 anos, atirando-o de um bonde. Mesmo operando em pequenos gru-

pos locais, as evidências apontavam claramente para os parti-dos neonazistas de toda a nação, que promoviam o ódio e pro-vocavam violência. Arquivos policiais assinalam a presença de neofascistas da Alemanha Ocidental em quase todos os eventos mais importantes/ Um dos objetivos estratégicos, por trás da onda de agressões racistas, era tornar normal esse nível de vio-jencia social, criando um ambiente nò qual a comunidade tole-rasse o novo patamar de terrorismo de direita. O clima legiti-mava o uso da violência entre os simpatizantes passivos, ampli-ando os limites aceitos pçla maioria da sociedade, antes que esta reagisse ativamente,/

No centro barroco restaurado, no Departamento para Re-sidentes Estrangeiros de Dresden, o advogado Stefan Tranberg discute a alegação de seus superiores de que a violência racista é fenômeno marginal na Saxônia. "Claro, o racismo existia nos dias da RDA também", diz o sueco de 41 anos, designado para uma missão especial de dois anos na cidade. Fora do escritório, a sala de espera sem calefação está apinhada de estrangeiros, que tentam decifrar juntos um novo documento que lhes é exi-gido. "Agora, as pessoas de cor estão com medo de andar sozi-nhas pelas ruas de Dresden. Não se vêem pessoas do Terceiro Mundo na rua à noite." Tranberg assegura que a intolerância não se restringe às gangues de jovens nazistas.

Existe um profundo sentimento contra estrangeiros nesta cidade, que varia do casual ao extremo. Muitos aqui sentem-se traídos pelo comunismo e pelo capitalismo. Os alemães ocidentais são vistos como lordes coloniais. A terrível situa-ção econômica e o tributo psicológico pago pelas mudanças foram demais para muitos.

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A reação deles foi voltarem-se contra os estrangeiros, os mais convenientes bodes expiatórios para sua frustração.

A cidade de quinhentos mil habitantes tem apenas dez mil estrangeiros, dos quais 27 refugiados políticos. A maioria dos cidadãos da ex-União Soviética, Vietnã, Hungria e de outros antigos países socialistas têm contratos de trabalho que a RFA prometeu honrar. Segundo Tranberg, o número de estrangei-ros em Dresden deverá aumentar drasticamente, à medida que os novos estados da federação assumam suas cotas de imigran-tes. Nos próximos anos, o número de estrangeiros em Dresden possivelmente será três ou quatro vezes maior.

Quando a economia se recuperar, eles serão necessários, mas o governo precisa fazer algo para preparar a população para o convívio em uma sociedade multicultural. No momento, não há estratégia alguma. Nada poderá impedir outra Hoyerswerda.

Do outro lado da ponte George Dimitrov, escurecida pelo carvão, fica o distrito de Neustadt, palco do esquerdismo alter-nativo em Dresden. Um dos poucos sítios históricos que fica-ram relativamente inteiros após os bombardeios na Segunda Guerra Mundial, o bairro de trabalhadores construído na vira-da do século permaneceu irretocado durante as décadas de co-munismo. No começo de 1980, uma comunidade informal de escritores, pintores e músicos ocupou os prédios abandonados e os pequenos apartamentos aquecidos a carvão. Com a transi-ção política, uma vibrante subcultura alternativa floresceu no lugar antes abandonado, que agora é alvo de perseguições de direitistas e da polícia. Ataques neonazistas aos cafés e clubes noturnos são comuns em Neustadt. A polícia faz vista grossa, para a violência, aparecendo muito depois, quando aparece,. Na manhã de Ano Novo, em 1991, o Bronxx Club, na rua Alaun, foi incendiado. Os criminosos, assim como os assassinos de Jor-ge Gomonda, nunca foram julgados. Quando fechou um pu-nhado de locais anarquistas em Neustadt, entretanto, a polícia foi bem determinada. Tipicamente, cada vez que os residentes reagiam a uma invasão de skinheads com seus próprios coque-

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téis molotov, a polícia, que chegava depois da fuga dos nazistas, prendia os moradores/

Na Saxônia, a responsabilidade pelo combate ao extremismo político ficou com a polícia. As autoridades lidam com o radica-lismo de esquerda (anarquistas de Neustadt) e o radicalismo de di-reita da mesma maneira, e essa falta de diferenciação torna re-lativos tanto a violência de direita como o potencial político. '"Para nós, tanto faz se alguém é espancado para ser roubado ou por razões ideológicas", admitiu um antigo oficial do De-

partamento de Polícia de Dresden. "Os procedimentos são os mesmos." O bem-humorado e corpulento policial destrancou o armário de armas confiscadas com a chave que trazia no cin-to. "Sabe, depois que o muro caiu, algumas lojas começaram a oferecer tacos de beisebol, que venderam como pães quentes", comentou ele, retirando um taco rosa do meio de uma pilha de estrelas Ninja, punhais, soqueiras de metal, pistolas de ar com-primido e outros instrumentos de agressão. "Sabe", continuou ele, sacudindo a cabeça e batendo com o taco na palma da mão, "ninguém em Dresden sabe jogar beisebol".//

A avaliação dos movimentos neonazistás feita pelas auto-ridades saxônicas coloca em dúvida a capacidade destas para reagir à ultradireita/Como a liderança da RDA, OS Estados de ambos os lados da fronteira lidam com o extremismo de di-reita em termos criminais e não em termos políticos. Apesar da evidente natureza ideológica das agressões, especialistas da Secretaria do Interior da Saxônia descrevem os militan-tes como "jovens frustrados com, tendências criminosas", basicamente delinqüentes juvenis,'^Demonstram que os agres-sores têm um conhecimento mínimo da teoria fascista, são em número limitado, e que o cenário é pequeno demais para justificar o tratamento da violência em termos políticos ou para valorizar seu potencial. Ao mesmo tempo, reconhecem sua própria incapacidade para garantir a segurança dos es-trangeiros em Dresden. As unidades especiais antiterroristas treinadas no Ocidente e a serviço da Saxônia, deverão impe-dir que aconteça outra Hoyerswerda. "Não deve acontecer novamente", disse-me o chefe da Comissão Especial para a

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Questão do R a d i c a l i s m o de Dire i ta e m D r e s d e n , seis m e s e s antes de Rostock .

Os críticos a f i rmam que o fato de as autoridades enfatiza-r e m a fraqueza ideológica dos neonazistas possibilita que evi-tem os temas fundamentais . De acordo c o m o assistente social Andreas Meinel , 35 anos, representante da Saxônia , o m a i o r per igo é que a p r o p a g a n d a de ultradireita at inja o p o n t o f raco da região.

Esses g r u p o s e par t idos u s a m o c o s t u m e i r o j a r g ã o socia l da e s q u e r d a : e m p r e g o s , m o r a d i a s , c r e c h e s etc . A o m e s m o tem-po , a t r a e m as pessoas c o m a t rad ic iona l r e t ó r i c a n a c i o n a l i s t a de direita . S e os par t idos d e m o c r á t i c o s n ã o r e a g i r e m à cr ise e c o n ô m i c a e social , a d i re i ta vai o c u p a r s o z i n h a esse e s p a ç o . E é e x a t a m e n t e o q u e está a c o n t e c e n d o .

Meinel adverte que a direita terá maior c h a n c e n a Saxônia , se conseguir conquis tar o c idadão c o m u m .

^ P e l o m e n o s e m palavras^a explosão de violência da.direita provocou a indignação de todo o cenár io pol í t ico a lemão, in-clusive dos republ icanos . Após Hoyerswerda, c a m p a n h a s milio-nárias, patrocinadas pelo governo e pelos partidos, invadiram as paradas de ônibus e centros comerciais , c o m cartazes pedin-do tolerância. " L á fora somos todos estrangeiros" , a n u n c i a m a Jenis ta Steffi Gráf , a autora teatral H e i n e r Müller e a b a n d a de rock Die Toten Hosèn. D e m o n s t r a ç õ e s nos antigos e novos esta-d^3"ã~Fêdèrãçao* atraíram mult idões além de quaisquer e x p e o tativas da ul tradire i ta/Em n o v e m b r o de 1991 , u m a al iança de mais de cem mil pessoas de di ferentes credos polí t icos fez u m a

:passeata cont ra o rac ismo e m Ber l im. Mas foi só depois dos assassinatos e m Mõlln , e m d e z e m b r o de 1992, q u e o país intei-

7ol^ãímen"te 'se assustou c o m o terror da direiw/Kohl re lutara até então e m dirigir-se ao radicalismo de extrema direita d iante do par lamento e a inda cont inuava a c o m p a r a r a a m e a ç a da extre-m a direita c o m a da e x t r e m a esquerda. Nas noites gélidas de inverno, centenas de bons alemães marchavam e m procissões à luz de velas por todo o país, c o n t r a a violência e a x e n o f o b i a . As demonstrações de protesto e r a m notáveis, e os part ic ipantes

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superavam em número qualquer demonstração em qualquer outro país europeu/

O protesto dos alemães contra a violência racial e a extre-ma direita era sincero. Mas até onde iria essa solidariedade é outro assunto. Não se pode provar que os cidadãos de Hoyerswerda e Rostock tenham mudado de idéia quanto a seus vizinhos asiáticos e ciganos. Apenas o Partido Verde e o partido comunista reformado da Alemanha Ocidental usaram as de-monstrações do Natal para lutar pela preservação do direito ao asilo político na Constituição federal. Mesmo depois da explo-são de protesto e indignação, em conseqüência dos fatos ocor-ridos em Rostock e Mólln, os republicanos receberam 8% dos votos no estado de Hessen, nas eleições de março de 1993.

Quanto à esquerda, a presença do neofascismo uniu gru-pos religiosos antifascistas, partidos de esquerda, grupos de ci-dadãos estrangeiros, autônomos (Autonomen) radicais e antigos antifascistas da RDA. Apesar do consenso antifascista geral, per-maneceram muito divididos quanto à estratégia. Os grupos religiosos e os assistentes sociais insistem que tiveram sucesso trabalhando diretamente com a juventude direitista, tentando integrá-la à sociedade por meio de empregos e programas de

. recreação. O tratamento da juventude neofascista como vítima social, porém, é alvo de crítica de outras partes.|ÍUguns alegam que só mudanças radicais na natureza da sociedade pós-indus-trial capitalista poderão acabar com as tendências neofascistas. Outros alegam que a solução está no desenvolvimento de uma jsociedade multicultural, amplamente democrática, na qual os valores de tolerância, solidariedade e comunidade substituam

_os da intolerância e do autoritarismo/ Até agora, os partidos estabelecidos da Nova Direita tiveram

pouco sucesso nos novos estados da federação. A ex-Alemanha Oriental considera partidos como o dos republicanos uma cria-ção do Ocidente. Ao contrário, muitos eleitores desiludidos es-colheram o partido comunista reformado — o Partido para o Socialismo Democrático (PDS) — como veículo para protestar quanto ao rumo da unificação. Embora, em tese, o PDS abrace idéias da esquerda ocidental em assuntos como direitos femini-

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nos e multiculturalismo, essencialmente permanece conserva-dor, autoritário e imerso na mentalidade de seu infame prede-cessor. Suas investidas contra Bonn e as promessas irreais de se-gurança social e emprego pleno evocam lembranças inquietan-tes dos velhos tempos de segurança e ordem. Ao contrário da Itália, onde os eleitores puseram um governo de direita no po-der, na Alemanha, as ruas são o tribunal da extrema direita. Para os povos considerados indesejáveis na Noya Alemanha, a lei do povo já é um fato, esteja ela no parlamento ou não.