228

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido
Page 2: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Coordenadoria de Biblioteca Central – UFMS, Campo Grande, MS, Brasil)

EDITORA UFMS

Universidade Federal de Mato Grosso do SulEstádio Morenão, Portão 14, Caixa Postal 549Campo Grande, MS.Fone: (67) 3345-7200e-mail: [email protected]

CORRESPONDÊNCIA EDITORIAL

Universidade Federal de Mato Grosso do SulCentro de Ciências Humanas e SociaisPapéis: Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudos de LinguagensPrograma de Pós-Graduação em Estudos de LinguagensCidade Universitária, Cx. Postal 549, UNIDADE 4, Campo Grande, MS.Fone: (67) 3345-7634e-mail: [email protected]

Papéis : Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens / Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. – v. 1, n. 1 (1997)- . Campo Grande, MS : A Universidade, 1997- . v. : il. ; 23 cm.

SemestralSubtítulo anterior: revista de Letras.ISSN 1517-9257

1. Literatura - Periódicos. 2. Lingüística - Periódicos. 3. Semiótica - Periódicos. I. Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.

CDD (22)-805

Page 3: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido
Page 4: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SULCENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAISPROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGENS

CÂMARA EDITORIALEluiza Bortolotto Ghizzi – Geraldo Vicente Martins – Maria Luceli Faria Batistote – Raimunda Madalena Araújo Maeda – Willie Macedo de Almeida

CONSELHO CIENTÍFICOÁlvaro Cardoso Gomes [UNIMARCO] – Benjamin Abdala Junior [FFLCH/USP] – Clotilde Azevedo Almeida Murakawa [FCLAR-UNESP] – Daniel Abrão [UEMS] – Eduardo de Oliveira Elias [UNAES] - Gladis Maria de Barcellos Almeida [UFSCAR] – Jacyra Andrade Mota [UFBA] – Jaime Ginsburg [USP] – Luiz Carlos Santos Simon [UEL] – Luiz Gonzaga Marchezan [FCLAR-UNESP] – Márcia Valéria Zamboni Gobbi [FCLAR-UNESP] – Maria Cândida Trindade Costa de Seabra [UFMG] – Marilene Weinhardt [UFPR] – Richard Perassi Luiz de Sousa [UFSC] - Silvia Maria Azevedo [FCL-ASSIS/UNESP] – Thomas Bonnici [UEM] – Vanderci de Andrade Aguilera [UEL].

REITORACélia Maria Silva Correa Oliveira

VICE-REITORJoão Ricardo Filgueiras Tognini

DIRETORA DE CENTROÉlcia Esnarriaga de Arruda

COORDENADOR DO PROGRAMADE PÓS-GRADUAÇÃOGeraldo Vicente Martins

EDITOR CIENTÍFICOGeraldo Vicente Martins

EDITORA ADJUNTA DESTA EDIÇÃOAparecida Negri Isquerdo

IMAGEM DE CAPACarla de CápuaJoão de Barro, 2003Pastel seco sobre papel39 x 60 cmAcervo particular

PROJETO GRÁFICOEluiza Bortolotto Ghizzi

REVISÃOA revisão linguística e ortográfica é de responsabilidade de Aparecida Negri Isquerdo

TRADUÇÃO PARA O INGLÊS DO TEXTO DA ORELHADaniela de Souza Silva Costa

Page 5: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

5

Sumário

Apresentação

Dialetologia, Sociolinguística e Toponímia

O /R/ CAIPIRA ESTÁ GANHANDO STATUS? O QUE DIZEM OS DADOS DO ATLAS LINGUÍSTICO DO BRASIL COLETADOS NO PARANÁVanderci de Andrade Aguilera

O PAPEL DAS PESQUISAS SOCIOLINGUÍSTICAS E DIALETOLÓ-GICAS PARA OS ESTUDOS DO PORTUGUÊS BRASILEIROSuzana Alice Marcelino Cardoso

O SENTIDO DE UM ATLAS LINGUÍSTICO NACIONAL (POR QUE UM ATLAS LINGUÍSTICO NACIONAL?)Suzana Alice Marcelino Cardoso

ETNOTOPONÍMIA EM MINAS GERAISMaria Vicentina de Paula do Amaral Dick Maria Cândida Trindade Costa de Seabra

O PROCESSO DE MONOTONGAÇÃO: UMA REALIDADE EM TEXTOS ESCOLARES DO ENSINO FUNDAMENTALDermeval da Hora Greiciane Pereira Mendonça

COROTOPÔNIMOS NA TOPONÍMIA SUL-MATO-GROSSENSE: REFLEXÕES TEÓRICO-METODOLÓGICASAparecida Negri IsquerdoCarla Regina de Souza Figueiredo

13

27

51

65

75

85

Page 6: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

6

Linguística Indígena

OS PROCESSOS DE NOMINALIZAÇÃO NA LÍNGUA MATIS (FAMÍLIA PANO)Rogério Vicente Ferreira

Linguística Aplicada

DISCURSOS DO PROFESSOR DE LÍNGUA MATERNA: UM OLHARCláudia Graziano Paes de Barros

LA ENSEÑANZA DE LENGUAS DESDE UNA PERSPECTIVA COGNITIVAElizabete Aparecida Marques

Análise do Discurso

DISCURSO INDÍGENA: IMAGENS PROJETADAS PELO IMAGINÁRIORita de Cássia Pacheco Limberti

DISCURSO DA EXCLUSÃO: A CONSTRUÇÃO DO ETHOS DE ADOLESCENTES DA UNIDADE EDUCACIONAL DE INTERNAÇÃO (UNEI) NA CIDADE DE CAMPO GRANDE - MSCelina Aparecida Garcia de Souza Nascimento Heloísa Rení da SilvaLidiane Campos Salazar da Silva

Semiótica

O SIGNIFICADO EM ARQUITETURA: CONSIDERAÇÕES BASEADAS NOS MODOS DE RACIOCÍNIO EM PEIRCEEluiza Bortolotto Ghizzi

A EVOLUÇÃO DO OBJETO DE ESTUDO DA SINTAXE E DA SE-MÂNTICA NARRATIVASLuiz Carlos Migliozzi Ferreira de Mello

A CONSTRUÇÃO DA MASCULINIDADE - UMA ABORDAGEM SEMIÓTICAAntonio Vicente Pietroforte

109

119

129

145

159

177

195

211

Page 7: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

7

Apresentação

Este número especial da PAPÉIS: Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens, destinado à publicação de trabalhos nas áreas de Semiótica e Linguística, reúne artigos que focalizam resultados de pesquisas relacionadas a diferentes abordagens dos estudos sobre a linguagem – estudos descritivos; relações entre texto e discurso; linguística e ensino e semiótica do texto verbal e não-verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido pela ABRALIN – Associação Brasileira de Linguística em parceria com o Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens, do Centro de Ciências Humanas e Sociais (CCHS), da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em setembro de 2008.

A Papéis, seguindo a sua política de destinar números especiais à publicação de trabalhos apresentados em eventos de grande porte promovidos pela UFMS, a exemplo do ocorrido com o volume 7 – 2003 – número especial, partes 1 e 2, que reuniram trabalhos apresentados no I Encontro Nacional do Grupo de Estudos da Linguagem do Centro-Oeste (GELCO) e II Encontro de Professores de Letras do Brasil Central (EnPROL), realizados em outubro de 2001, no CCHS/UFMS, abre espaço para a disseminação de trabalhos produzidos por ilustres pesquisadores vinculados a diferentes universidades brasileiras que integraram a programação do evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, evento que, atendendo à política de descentralização, implantada pela Diretoria da ABRALIN, gestão 2007-2009, sob a presidência do Prof. Dr. Dermeval da Hora, teve como objetivo promover o intercâmbio entre pesquisadores das diversas regiões brasileiras, priorizando as linhas de pesquisa existentes nos Programas de Pós-Graduação da instituição sede do evento. No caso específico do ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, a programação foi organizada com base nas linhas de pesquisa da área de concentração

Page 8: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

8

Linguística e Semiótica do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens (PPGEL) – Constituição do saber linguístico e Produção de sentido no texto/discurso – e os projetos de pesquisa a elas vinculados. Essa característica da programação do evento também justificou a opção do Conselho Editorial da Papéis de publicação de um número da revista com trabalhos apresentados nesse evento e submetidos para publicação. Em razão dessa particularidade, a organização dos trabalhos obedeceu a uma estrutura diferenciada do padrão do sumário da Revista, de maneira a dar melhor visibilidade à diversidade das temáticas abordadas. Nessa perspectiva, os trabalhos foram organizados segundo a natureza das áreas de conhecimento a que estão vinculados.

O tema “Dialetologia, Sociolinguística e Toponímia”, por exemplo, abriga um trabalho de cunho teórico, apresentado por Suzana Cardoso na conferência de abertura do evento: O papel das pesquisas sociolinguísticas e dialetológicas para os estudos do português brasileiro. Integram esse bloco também os trabalhos relacionados às contribuições da Sociolinguística e da Dialetologia para os estudos sobre a variação – artigos de Aguilera e de Hora e Mendonça acerca de fenômenos de natureza fonético-fonológica no âmbito do português do Brasil, respectivamente, o “/r/ caipira” e a “monotongação”, e o texto de Cardoso que discute o sentido de um atlas linguístico nacional do português do Brasil. Os dois últimos artigos reunidos nesse bloco, por sua vez, focalizam diferentes olhares sobre a pesquisa toponímica no Brasil – o de Dick e Seabra que aborda a temática da etnotoponímia no Estado de Minas Gerais e o de Isquerdo e Figueiredo que discute a categoria dos corotopônimos com base em dados da toponímia sul-mato-grossense.

O tema “Linguística indígena”, por seu turno, é presentificado pelo trabalho de Ferreira acerca de processos de nominalização na língua Matis (família Pano).

Já os artigos de Marques e de Barros, associados ao domínio da Linguística Aplicada, abordam questões que afetam o ensino. O primeiro volta-se para a abordagem cognitiva no ensino de línguas, especificamente o espanhol, enquanto o segundo discute diferentes olhares sobre o discurso do professor acerca do ensino.

Page 9: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

9

Na sequência, o bloco temático “Discurso, Identidades e Imagens” reúne dois artigos que têm como foco o discurso sobre a identidade de grupos minoritários. O artigo de Limberti traz à tona o discurso indígena sob a perspectiva das imagens projetadas pelo imaginário, enquanto o de Nascimento, Silva e Salazar da Silva focaliza a questão do discurso da exclusão, com ênfase para a construção do ethos de adolescentes internos em uma unidade educacional.

Por fim, a unidade temática “Diálogos semióticos: o texto verbal e não verbal” concentra três artigos: o de Ghizzi aborda estudos na perspectiva da semiótica peirceana sobre o significado na área da arquitetura; o de Migliozzi centra-se na discussão da evolução do objeto de estudo da sintaxe e da semântica narrativas pelo viés da semiótica greimasiana, enquanto o de Pietroforte, também sob a óptica dos estudos greimasianos e seus seguidores, analisa a competência modal do sujeito que já se definiu homem em suas conotações sociossemióticas a partir de um corpus material recolhido nas linguagens do cinema e da história em quadrinhos.

Na expectativa de que a diversidade de temas e enfoques teóricos materializados nos artigos reunidos neste número da Papéis estimule novas pesquisas nas áreas de Linguística e Semiótica, registramos os nossos agradecimentos aos pesquisadores que colaboraram com esta publicação por meio do envio dos seus respectivos trabalhos, originalmente apresentados no ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul e, posteriormente, revisados, ampliados e adequados aos propósitos deste número da Papéis.

Geraldo Vicente MartinsEditor

Aparecida Negri IsquerdoEditora adjunta desta edição

Page 10: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido
Page 11: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

Dialetologia, Sociolinguística e

Toponímia

Page 12: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido
Page 13: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

13Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

O /r/ caipira está ganhando status? O que dizem os dados do Atlas Linguistico do Brasil coletados no Paraná1

Is the rural /r/ gaining status? What the data from the Linguistic Atlas of Brazil collected in Paraná say

Resumo: Este artigo tem como proposta apresentar e discutir a vitalidade do /r/ retroflexo em dados coletados em 17 localidades paranaenses e transcritos para compor o Atlas Linguístico do Brasil. O corpus constitui-se de cerca de 3.100 registros fonéticos do /r/ em coda silábica interna e externa, retirados das respostas dadas ao QFF dos Questionários do ALiB (Comitê Nacional do ALiB, 2001), pelos 72 informantes que compõem o universo de falantes dos pontos linguísticos distribuídos pelo território paranaense. Os dados demonstram que, no Paraná, o [}] em coda silábica interna vem se mantendo, também, na fala de informantes urbanos, sendo introduzido, por falantes jovens, gradativamente, em áreas de predominância do tepe.

Palavras-chave: /r/ retroflexo. Fala paranaense. Estudo geossociolinguístico.

Abstract: This article aims at presenting and discussing the vitality of retroflex /r/ in data collected in 17 localities in Paraná and transcribed for the Linguistic Atlas of Brazil. The corpus consists of approximately 3.100 phonetic records of /r/ in internal and external syllable coda, extracted from the answers given to the QFF of the Questionnaires of ALiB (ALiB National Committee, 2001), by 72 informants that constitute the universe of speakers from the linguistic spots distributed along Paraná territory. The data show that, in Paraná, [}] in syllable coda still exists also in the speech

Vanderci de Andrade Aguilera Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas

Universidade Estadual de Londrina [email protected]

Page 14: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

14

Vanderci de Andrade Aguilera [13-25]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

of urban informants, and it has been gradually introduced by young speakers in areas where the flap consonant predominates.

Keywords: Retroflex /r/. Spoken language from Paraná. Geo-sociolinguistic study.

Apresentação

Este artigo tem como proposta apresentar e discutir a vitalidade do /r/ retroflexo na fala dos paranaenses. Essa variante do fonema /r/, mais conhecido como /r/ caipira1 - aqui representado foneticamente como [}] - foi selecionado por Amaral (1920) como um dos traços mais marcantes do dialeto caipira do interior de São Paulo. Assumimos, neste artigo, como [}], a variante fônica que articulatoriamente se realiza quando o ápice da língua está curvado para trás na direção da parte anterior do palato duro, isto é, logo atrás do alvéolo. Segundo Crystal (2000, p. 229)2, o grau de retroflexão varia consideravelmente dependendo dos sons e dos dialetos.

O corpus constitui-se de cerca de 3.100 registros fonéticos retirados das respostas dadas ao QFF dos Questionários do ALiB (Comitê Nacional do ALiB, 2001), pelos 72 informantes que compõem o universo de falantes dos 17 pontos linguísticos distribuídos pelo território paranaense. Devido ao baixo número de ocorrências do /r/ retroflexo em início de sílaba, o foco da análise passa a ser a sílaba travada por rótico, isto é, em codas silábicas interna e externa.

1 Castro (2005, p. 30), em sua tese defendida na UNICAMP, ao tratar da vitalidade do dialeto caipira, discorre que: “em contraste com esses fatos de ocorrência mais geral, algumas características têm sido consideradas específicas do dialeto caipira (apontan-do-se, em geral, como áreas de uso da variedade, São Paulo, Minas Gerais (sul, sudoes-te), Paraná, Mato Grosso e Goiás, sem definição precisa de limites). Essas características são: a) o “r retroflexo”; b) a realização africada [tS] - chave > [tS]ave; c) a realização africada [dZ] - gente > [dZ]ente]”.2 “Retroflexão (retroflexo). [...] Refere-se aos sons feitos quando o ápice da língua está curvado para trás na direção da parte anterior do palato duro – em outras palavras, logo atrás do alvéolo. O grau de retroflexão varia consideravelmente dependendo dos sons e dos dialetos” (CRYSTAL, 2000, p. 229).

Page 15: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

15

O /R/ caipira está ganhando status? [13-25]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Esses informantes do ALiB, ao contrário dos informantes dos atlas estaduais anteriores que eram oriundos ou moradores da zona rural, são pessoas naturais e moradoras de centros urbanos, têm escolaridade máxima até a 8ª série do Ensino Fundamental e se distribuem por quatro grupos: 17 homens de 18 a 30 anos de idade; 17 mulheres de 18 a 30 anos de idade, 17 homens na faixa dos 50 aos 65 anos e 17 mulheres, também na faixa etária de 50 a 65 anos. Na capital, Curitiba, além dos quatro informantes com nível básico de escolaridade, foram entrevistados mais quatro, nas mesmas faixas etárias, mas com nível de escolaridade superior.

Os resultados a que chegamos, em relação ao [}] no Paraná, vêm, de certa forma, contrariar os prognósticos de Amaral (1920) que antevia para o dialeto caipira – do qual o [}] é uma de suas marcas mais legítimas e salientes – uma vida, ou sobrevida, relativamente curta, pois, já no início do século passado achava-se esse dialeto acantoado em pequenas localidades que não acompanharam de perto o movimento geral do progresso e subsiste fora daí, na boca de pessoas idosas, indelevelmente influenciadas pela antiga educação (AMARAL, 1920, p. 42).

Esse fonema tem chamado a atenção de pesquisadores de várias regiões do Brasil e tem servido de objeto de estudo das mais variadas pesquisas acadêmicas, como dissertações, teses, artigos em periódicos, entre outros.

Conforme afirmamos em outras ocasiões, uma das sínteses mais bem feitas sobre a vitalidade do [}] no português brasileiro acreditamos ter sido elaborada por Brandão (2007, p. 265-283), uma vez que investiga nada menos que trinta e três trabalhos, dentre os quais se destacam doze atlas3: Rossi, 1963; Ribeiro et al., 1977; Aragão e Menezes, 1984; Ferreira et al, 1987; Aguilera, 1987; Aguilera, 1994; Koch et al., 2002; Cruz, 2004; Razky, 2004; Cardoso, 2005; Lima, 2006 e Pereira, 2007. Ao final, a autora demonstra, num mapa do Brasil, mas sem a preocupação de tratamento quantitativo, os Estados onde foi registrada essa variante nos estudos pesquisados. Isto significa que o [}] se encontra em uma ou algumas localidades do Estado, não necessariamente em todo o território.

3 Dentre esses atlas, alguns são o resultado de trabalhos de grupos de pesquisa; outros foram objeto de tese ou de dissertação.

Page 16: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

16

Vanderci de Andrade Aguilera [13-25]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Figura 1. Mapa dos róticos no Brasil (BRANDÃO: 2007, p. 280)

O artigo de Brandão (2007, p. 265-283), por se constituir em pesquisa mais extensiva, envolvendo não só os atlas, mas teses, dissertações e artigos, mostra a expansão do [}] nos demais Estados brasileiros, além de São Paulo, Paraná, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso e Goiás. A ausência de estudos específicos sobre o /r/ posvocálico nas capitais e no interior de Roraima, Acre, Rondônia, Amapá, Maranhão, Piauí, Ceará, Pernambuco, Alagoas e Espírito Santo não permite confirmar nem a ausência nem a presença do [}] nesses Estados.

No Amazonas e no Rio Grande do Norte, no entanto, Cruz (2004) e Pereira (2007), respectivamente, não detectaram essa variante de rótico: a primeira pesquisando em nove municípios do interior amazonense e a segunda em localidades do litoral potiguar.

1. Estudos sobre o /r/ em coda silábica com base nos dados do ALiB-Paraná

O banco de dados do Atlas Linguístico do Brasil, referente às entrevistas realizadas no Paraná, em 17 pontos, conta com 72 entrevistas: oito na capital, Curitiba, onde foram entrevistados informantes, de ambos os sexos, de dois níveis de escolaridade (fundamental e superior)

Page 17: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

17

O /R/ caipira está ganhando status? [13-25]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

e de duas faixas etárias (18 a 30 anos e de 50 a 65 anos). As demais 64 foram realizadas no interior, em 16 localidades, em cada uma das quais foram inquiridos quatro informantes com apenas o nível fundamental, de ambos os sexos e das mesmas faixas etárias.

Para melhor compreensão da distribuição dos róticos e para facilitar a leitura dos comentários que fazemos na sequência, incluímos o mapa a seguir com a distribuição desses pontos do ALiB sobre o território paranaense:

Mapa 1 – Distribuição dos pontos linguísticos do ALiB no Paraná4

Uma vez apresentada a rede de pontos linguísticos, é importante observar que o Questionário Fonético Fonológico – QFF, que integra os Questionários do ALiB – 2001, contém 159 questões. Dentre elas, 16 trazem como resposta itens lexicais5 com o rótico em coda silábica interna, 13 em coda externa (final de vocábulo), quatro que oferecem contexto

4 Mapa elaborado por Kika Milani para este trabalho.5 Neste artigo, tomamos item lexical, vocábulo e palavra como sinônimos, independentemente das divergências conceituais que possam suscitar entre os especialistas.

Page 18: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

18

Vanderci de Andrade Aguilera [13-25]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

propício à metátese do rótico e 11 casos de /l/ em codas interna e externa, passíveis de rotacismo, o que totaliza um corpus com cerca de 3.100 dados.

Apresentamos nos quadros a seguir a relação das palavras que trazem o /r/ nos vários contextos fônicos. Iniciamos com o Quadro 1 e a relação dessas palavras com o /r/ em coda interna:

Questão Vocábulo pesquisado012 torneira014 (fecha a) porta022 gordura027 fervendo039 árvore046 borboleta062 tarde065 catorze/quatorze092 pernambucano105 certo110 perdão144 perfume148 dormindo150 perdida152 perguntar158 esquerdo

Quadro 1 - Questões do QFF ALiB com róticos em coda interna

Os dados, que irão compor o Atlas Linguístico do Brasil, coletados junto aos 72 informantes urbanos paranaenses, mostram o seguinte quadro do [}] em coda silábica interna: (i) é categórico em dez das dezessete localidades: Nova Londrina (207), Londrina (208), Terra Boa (209), Umuarama (210), Tomazina (211), Cândido de Abreu (213), Adrianópolis (216), Imbituva (218), Morretes (221) e Lapa (222); (ii) é altamente favorável em Campo Mourão (212), Piraí do Sul (214), São Miguel do Iguaçu (217) e Guarapuava (219); (iii) favorável em Toledo (215), uma vez que os jovens é que estão implementando a variante retroflexa e os idosos mantendo a vibrante simples ou tepe; (iv) em Barracão (223), predomina o tepe, com baixo índice de [}]; e (v) está em competição em Curitiba, onde os informantes de baixa escolaridade, com ênfase na faixa dos idosos, registram o [}] com mais frequência, próximo de 75%; ao contrário, os de nível superior mantêm o tepe em aproximadamente 70% dos casos.

Page 19: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

19

O /R/ caipira está ganhando status? [13-25]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Neste estudo constatamos também que, dos 11.16 registros de róticos em coda interna, 87% são de [}]. Alguns vocábulos, independentemente de fatores extra ou intralinguísticos, isto é, do ponto linguístico e da posição no vocábulo, se mostram mais sensíveis a essa variante: esquerdo (91%), tarde, pernambucano (90%), borboleta, catorze, perguntar (89%), fervendo, árvore, dormindo, perdida, gordura (88%), perfume (87%), certo, perdão (85,5%) e torneira, porta (84%).

Os resultados estão, pois, muito próximos dos já documentados pelo Atlas Linguístico do Paraná (AGUILERA, 1994), junto a informantes rurais, analfabetos ou semialfabetizados, situados na faixa etária dos 30 aos 60 anos. Aproximam-se também dos dados constantes do ALERS-Paraná, citados por Brandão (2007, p. 271), que registrou a presença desse rótico em 94% das localidades investigadas.

O Quadro 2 traz a relação dos vocábulos, procedentes do QFF do ALiB, que contêm o /r/ em coda externa (verbos e substantivos).

Questão Vocábulo pesquisado018 varrer025 colher (substantivo)026 liquidificador036 botar043 montar061 calor080 trabalhar088 rasgar129 mulher146 beijar151 encontrar152 perguntar153 sairQuadro 2. Questões do QFF ALiB com róticos em coda externa

Sobre os róticos em coda externa, lembramos Amaral ([1920] 1976, p. 52):

o r cai, quando final de palavra: andá, muié, esquecê, subi, vapô, Artú. Conserva-se, entretanto, geralmente, em alguns monossílabos acentuados, tendo de certo influído nisso a posição proclítica habitual: dor, cor, cor, par. Conserva-se também no monossílabo átono por, pela mesma razão, assim como, raras vezes, em palavras de mais de uma sílaba: amor, suor. Nos verbos, ainda que monossílabos, cai sempre, provavelmente pela influência niveladora da analogia: vê, vi, pô.

Page 20: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

20

Vanderci de Andrade Aguilera [13-25]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Amaral, como se observa, não separa os vocábulos em classes gramaticais, generalizando a apócope para todos eles.

Pierson (1951, p. 236), no entanto, relativiza esse fenômeno fonético ao afirmar que:

Há tendência para omitir o r final, especialmente dos verbos, e para acentuar a vogal precedente; por exemplo:“convidá” ao invés de convidar“familiá” ao invés de familiar“ficá” ao invés de ficar [...]“lugá” ao invés de lugar [...] (os sublinhados são meus)

Neste estudo, verificamos que a distribuição do cancelamento não é simétrica entre verbos e nomes (substantivos e adjetivos). Para facilitar a análise, os vocábulos com róticos em coda silábica externa foram distribuídos em dois grupos. Os do primeiro dizem respeito aos verbos no infinitivo (varrer, botar, montar, trabalhar, rasgar, beijar, encontrar, perguntar e sair) e apresentam as variantes: retroflexa, vibrante simples/tepe e cancelamento. A presença do rótico é menor que o apagamento do fonema neste contexto, pois, de 560 registros, 53% são de zero fonético. Os demais 47% distribuem-se pelas variantes retroflexa (40%) e o tepe (7%).

Caso interessante é o da resposta dada à questão 153 que indaga sobre o verbo sair em que a manutenção do rótico ocorre em 78% dos registros, seja com a variante retroflexa ou com a alveolar. As demais questões, que buscam os verbos no infinitivo (perguntar, botar, montar, trabalhar, rasgar, beijar e encontrar), são formuladas com expressões, como “o que é que se tem que/precisa fazer...?”. Neste caso, o informante tem que buscar na memória um verbo que indique a ação pedida. É o que ocorre, por exemplo, com a questão 43: Para andar a cavalo, o que é que se tem que fazer? ou a 80: Para ganhar dinheiro, o que é que se precisa fazer? No caso da questão para obter sair, o verbo no infinitivo entrar está no final da pergunta: Qual é o contrário de entrar? e, parece-me que a tendência do entrevistador é manter o rótico final, no que é seguido pelo informante. Isto talvez tenha influenciado na alta taxa de manutenção do rótico, próxima de 80%.

Na sequência, com menor índice de cancelamento do rótico, vêm os verbos: encontrar (55%), trabalhar (51%) e beijar (50%). Acreditamos

Page 21: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

21

O /R/ caipira está ganhando status? [13-25]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

que um corpus mais extenso poderá esclarecer a influência das possíveis variáveis linguísticas ou extralinguísticas sobre os resultados obtidos para este estudo.

Quanto aos nomes (colher, liquidificador, calor e mulher), dos 289 registros, menos de 4% são de apagamento do rótico, predominando, como previsto, a variante [}] em 86% dos casos e a alveolar em 10% deles.

O cancelamento do rótico em coda externa, nos falantes do interior, não se mostrou influenciada pelas variáveis sexo e faixa etária. Na capital, porém, onde foram investigados dois níveis de escolaridade, os informantes do nível fundamental apresentam um índice mais elevado de cancelamento (60%) em relação aos do nível superior (40%). A manutenção do rótico, em Curitiba, nos verbos no infinitivo indica que 67% dos registros são de [R] e 33%, de [}].

O Quadro 3 traz a relação dos vocábulos do QFF do ALiB que contêm o /r/ em encontro consonantal, mas passível de metátese na fala popular e/ou informal.

Questão Vocábulo pesquisado003 prateleira083 prefeito107 procissão142 braguilha

Quadro 3. Questões do QFF ALiB com contexto propício à metátese do rótico.

Sobre as questões suscetíveis de metátese: prateleira (003), prefeito (83), procissão (107) e braguilha (142), ocorreram:

i. Das 72 respostas para prateleira, 33% apresentam a sílaba inicial com metátese do rótico par-, a maioria absoluta (92%) com a variante [}]. Os casos de metátese em prateleira não parecem estar condicionados pelo fator idade, uma vez que há um equilíbrio entre esses registros, isto é, 12 informantes da 1ª faixa etária (18-30 anos) e 11, da 2ª (50-65), apresentam a forma com transposição de fonemas na sílaba inicial; o mesmo ocorre com a variável sexo/gênero em que 11 homens e 12 mulheres registram a variante com metátese. Os dados sugerem que a analogia é feita com o próprio móvel que se compõe de partes onde se

Page 22: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

22

Vanderci de Andrade Aguilera [13-25]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

colocam os objetos, não estando na memória do falante atual que a prateleira há algum tempo servia para acondicionar pratos;

ii. quanto a prefeito não ocorreu nenhum caso de metátese, sugerindo que na linguagem popular não se costuma confundir ou alternar o prefeito com a qualidade de perfeito;

iii. a resposta da questão 107 – procissão – sofreu metátese apenas na fala de quatro informantes: dois da faixa 1 e dois da faixa 2 do nível fundamental;

iv. a forma mais produtiva com metátese é a da questão 142, se considerarmos apenas a resposta braguilha, com dezoito registros: 11 na faixa 1 e sete na faixa 2, sendo 11 de registros masculinos e sete femininos. Essa questão foi inserida nos Questionários do ALiB com o objetivo de verificar tanto o comportamento do rótico no encontro consonantal como o da sílaba final com a palatal ou iotizada. Apenas em quatro localidades: 208 Londrina, 213 Cândido de Abreu, 214 Piraí do Sul, 220 Curitiba não se registrou a metátese em nenhum dos quatro itens investigados.

O Quadro 4 traz a relação dos vocábulos do QFF que contêm o /l/ em coda externa, portanto passível de roticização na fala popular.

Questão Vocábulo pesquisado017 pólvora/pórvora/porva019 almoço/armoço028 sal/sar045 mel/mer058 sol/sor089 azul/azur090 Brasil/Brasir093 soldado/sordado098 calção/carção134 alta/arta143 anel/aner

Quadro 4. Questões do QFF ALiB com possibilidade de roticização do /l/ > /r/.

Os casos de roticização da líquida são pouco frequentes na linguagem oral analisada, sobretudo se considerarmos que foram obtidos junto a falantes urbanos, embora de baixa escolaridade. Essa marca do dialeto caipira, apresentada por Amaral (1920, p.52), parece,

Page 23: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

23

O /R/ caipira está ganhando status? [13-25]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

sim, estar com os dias contados na fala paranaense. Dos 792 dados coletados, apenas 18 registros, representando pouco mais de 2%, apresentaram o rótico: pólvora/porva (9 registros), almoço/armoço (4 registros); soldado/sordado (3 registros) e calção/carção (2), a maioria dos quais com [}].

Conclusões

Os dados do ALiB – PR apontam para as seguintes direções do /r/ em coda silábica:

i. o [}] se mantêm resistente junto a falantes urbanos na mesma proporção registrada anteriormente, em coletas realizadas há cerca de duas décadas, em atlas de base rural, como o ALPR e o ALERS;

ii. em apenas três das dezessete localidades pesquisadas predomina o [R]: Barracão, Curitiba e Toledo – e nestes dois últimos concorre com o [}], principalmente na fala dos mais jovens;

iii. os casos de rótico em coda interna mostram que há contextos mais favoráveis ao [}] em detrimento de outros, mas que não foram aqui analisados;

iv. a metátese em encontros consonantais é pouco produtiva em palavras de uso mais frequente. A produtividade mais acentuada ocorreu na palavra braguilha > barguilha, obtida a partir do questionamento sobre o nome dado à abertura da calça do homem, fechada por botões ou zíper.

v. os róticos em coda externa ora se mantêm, ora sofrem apócope, principalmente nos verbos no infinitivo; os nomes mantêm, com mais frequência o rótico que se realiza, em sua maioria, como [}].

vi. os casos de roticização da líquida estão cada vez mais raros realizando-se em pouco mais de 2% dos 192 registros coletados.

Concluída a pesquisa com os dados acima, podemos voltar ao título deste artigo: O /r/ caipira está ganhando status? e podemos afirmar, com segurança - por meio dos dados coletados no Paraná para a elaboração

Page 24: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

24

Vanderci de Andrade Aguilera [13-25]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

do Atlas Linguístico do Brasil - que o [}] em coda silábica interna vem se mantendo na fala de informantes urbanos, em regiões onde se pesquisara, há duas décadas, a sua ocorrência junto a falantes rurais (AGUILERA: 1987; MERCER, 1992; AGUILERA, 1994; GUSMÃO, 2000 e GUSMÃO, 2004). Outro dado que reforça essa assertiva é a sua introdução gradual junto aos falantes jovens em áreas até então de predominância do tepe.

ReferênciasAGUILERA, Vanderci de Andrade. Aspectos lingüísticos da fala londrinense: esboço de um atlas lingüístico de Londrina. Curitiba/Londrina: CONCITEC/Universidade Estadual de Londrina, 1987.

AGUILERA, Vanderci de Andrade. Atlas lingüístico do Paraná. Curitiba: Imprensa Oficial do Estado: 1994.

AMARAL, Amadeu. O dialeto caipira. 3 ed. São Paulo: HUCITEC, Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo, [1920], 1976.

ARAGÃO, Maria do Socorro; MENEZES, Cleuza Bezerra de. Atlas lingüístico da Paraíba. 2 v. João Pessoa/Brasília: UFPB/CNPq, 1984.

BRANDÃO, Sílvia Figueiredo. Nas trilhas do –R retroflexo. Signum: estudos da linguagem. Londrina, v. 10, n. 2, p. 265-283, 2007.

CARDOSO, Suzana Alice Marcelino. Atlas lingüístico de Sergipe- II. Salvador: EDUFBA, 2005.

CASTRO, Vandersí Sant’Ana. A resistência de traços do dialeto caipira: estudo com base em Atlas lingüísticos regionais brasileiros. 2006. Tese (Doutorado em Lingüística) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2006.

COMITÊ NACIONAL DO PROJETO ALiB (Brasil). Atlas lingüístico do Brasil: Questionários 2001. Londrina: Ed. UEL, 2001.

CRUZ, Maria Luiza. Atlas lingüístico do Amazonas. 2v. Tese (doutorado em Letras) – Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: 2004.

CRYSTAL, David. Dicionário de Lingüística e Fonética. Tradução e adaptação da [2.a ed. inglesa ver. e ampliada, publicada em 1985]. Maria Carmelita Pádua Dias.–Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000.

FERREIRA, Carlota et al. Atlas lingüístico de Sergipe. Salvador: UFBA/FUNDESC, 1987.

GUSMÃO, Alessandra Babler. As realizações da vibrante na variedade lingüística rural do Paraná: uma abordagem geovariacionista. 2004. Dissertação (Mestrado em Estudos da Linguagem). Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2004.

GUSMÃO, Alessandra Babler. Realizações do /R/ na variedade lingüística falada em

Page 25: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

25

O /R/ caipira está ganhando status? [13-25]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Cândido de Abreu - Paraná. 2000. Monografia (Especialização em Língua Portuguesa). Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2000.

KOCH, Walter; KLASSMANN, Mário Silfredo; ALTENHOFEN, Cléo Vílson. Atlas Lingüístico-Etnográfico da Região Sul. 2 vols. Porto Alegre/Florianópolis/Curitiba.: Ed. UFRGS/ Ed. UFSC/ Ed. UFPR. 2002.

LIMA, Alcides. A pronúncia do /r/ pós-vocálico na cidade de Cametá-PA. In: RAZKY, A. (org.) Estudos Geo-Sociolingüísticos no Estado do Pará. Belém: UFPA, 2003, P. 54-78.

LINO, Fádua Maria Moisés. Aspectos lingüísticos da fala de Cândido de Abreu: um estudo geossociolinguístico. 2000. Dissertação (Mestrado em Letras). Universidade Estadual de Londrina, Londrina.

MERCER, José Luiz da Veiga. Áreas fonéticas do Paraná. 2 v. Tese (Concurso para professor Titular de Lingüística). Curitiba, Universidade Federal do Paraná, 1992.

PEREIRA, Maria das Neves. Atlas Lingüístico do Litoral Potiguar. Tese. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2007.

PIERSON, Donald. Cruz das Almas. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1966.

RAZKY, Abdelhak. Atlas lingüístico sonoro do Pará (ALISPA). Belém: CAPES/ UFPA/ UTM, 2004.

RIBEIRO, José et al. Esboço de um Atlas Lingüístico de Minas Gerais. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura/Casa de Rui Barbosa/Universidade Federal de Juiz de Fora, 1977.

ROSSI, Nelson. Atlas prévio dos falares baianos. Rio de Janeiro: MEC/INL, 1963.

Page 26: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido
Page 27: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

27Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

O papel das pesquisas sociolinguísticas e dialetológicas para os estudos do português brasileiro.The role of sociolinguistic and dialectological research in the study of brazilian portuguese

Podemos concluir, sin embargo, que las perspectivas de una mejor convivencia en la diversidad tendrán que superar tanto las posiciones universalistas y monoculturales, como también las visiones esencialistas que dificultan la construcción de puentes de entendimiento, para transitar hacia orientaciones pluriculturales y plurilingües que permitan el encausamiento de las contradicciones en un nivel cualitativo superior de comprensión y aceptación de la diversidad en el marco de la democratización radicalizada (HAMEL, 2008, p. 46).

Resumo: Neste texto examina-se o papel das pesquisas sociolinguísticas e dialetológicas para o desenvolvimento dos estudos do português brasileiro. Apresentando os caminhos da Dialectologia e da Sociolinguística, discute-se a perspectiva de enfoque de cada um desses ramos dos estudos linguísticos, salientando-se o caráter de complementariedade que entre os seus objetivos existe e destacando a contribuição (i) para o entendimento da realidade linguística num país multidialetal; (ii) no trabalho de resgate das nossas marcas africanas; (iii) na convivência com as línguas indígenas; (iv) e na construção do MERCOSUL onde espanhol e português devem e precisam crescer juntos.

Suzana Alice Marcelino Cardoso Programa de Pós-Graduação em Língua e Cultura e no Programa de

Pós Graduação em Literatura e CulturaUniversidade Federal da Bahia

Membro Associado do LDI-Lexiques, Dictionnaires, Informatique da Université Paris 13

[email protected]

Page 28: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

28

Suzana Alice Marcelino Cardoso [27-49]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Palavras-chave: Dialectologia. Sociolinguística. Política linguística. Língua Portuguesa. Variação linguística.

Abstract: This text is intended to investigate the role of sociolinguistic and dialectological researches for the development of Brazilian Portuguese studies. Grounded in Dialectology and Sociolinguistics, it fosters the discussion about the perspective of approach of each of these branches of the linguistic studies, and points out the complementarity of its objectives and the contribution (i) to the understanding of the linguistic reality in a multidialectal country; (ii) in the recapturing of our African marks; (iii) in living with Indian languages; (iv) and in the construction of MERCOSUL, where Spanish and Portuguese ought and need to grow together.

Keywords: Dialectology. Sociolinguistics. Language policy. Portuguese language. Linguistic variation.

O texto em epígrafe, de Rainer Enrique Hamel, em afirmação feita recentemente, por ocasião do Congresso Internacional de Política Linguística na América Latina, realizado em João Pessoa (2006), aqui é trazido com o objetivo de pôr em destaque alguns aspectos do pensamento que expressa. Primeiramente, a “receita” para assegurar a melhor convivência no âmbito da diversidade: superar as posições universalistas e monoculturais que dificultam a construção de pontes de entendimento. Em segundo lugar, a necessidade de, firmados nos meios que vêm de delinear, caminhar na direção de orientações pluriculturais e plurilíngues. Por fim, a compreensão e aceitação da diversidade que se converte, para o autor, em marco da democratização generalizada.

1. Compreensão e aceitação da diversidade

Ao trazer este pensamento, faço-o para formular uma pergunta retórica: E que buscam a Dialectologia e a Sociolinguística senão, exatamente, “a compreensão e a aceitação da diversidade”? E sob esse signo nasceram esses dois ramos dos estudos linguísticos, dando, cada um, a resposta condizente com a sua proposta particular.

Page 29: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

29

O papel das pesquisas sociolinguísticas e dialetológicas para os estudos do português brasileiro [27-49]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

1.1 A resposta/proposta da Dialetologia

Somente ao final do século XVIII os linguistas dirigem, de maneira constante, a sua atenção para os dialetos, e os trabalhos concernentes à Dialetologia afloram de maneira exuberante. São numerosos os autores que se debruçam sobre questões dialetais e dentre eles quero destacar o Abbé Grégoire que realiza, em 1790, na França, uma pesquisa com o fim específico de conhecer a situação dos patois.

O cura de Embermesnil, Henri-Baptista Grégoire, bispo constitucional de Blois, tinha o desejo de levar à Convenção um projeto com vistas ao extermínio, à erradicação dos patois, a fim de alcançar a unidade linguística do país. Para tanto, empenha-se, antes, em documentar o estágio desses patois, e se dedica a essa tarefa (POP, 1950, p. 6-7), enviando, em 13 de agosto de 1790, uma circular para obter informações objetivas e precisas sobre esses usos linguísticos. Distribui, assim, um questionário acompanhado de solicitação na qual apresenta a sua intenção de conhecer a realidade da língua e dos costumes do homem do campo, declarando que esse questionário tinha “un but d’utilité publique” (POP, 1952, p.7). O questionário contém 43 perguntas, com questões como as que se tomam para uma breve ilustração a seguir:

1. L’usage de la langue française est-il universel dans votre contrée: y parle-t-on un ou plusieurs patois?2.Ce patois a-t-il une origine ancienne et connue?19. Les campagnards savent-ils également s’énoncer en français?

As respostas obtidas pelo Abbé Grégoire foram publicadas, como assinala POP (1950, p.7-9), por A. Grazier e flutuavam entre os que se manifestavam favoráveis à extinção dos patois e os que os defendiam ardentemente. Desses últimos, há uma manifestação que merece ser lembrada. Trata-se de um falante da Languedoc que, na sua resposta, afirma que para destruir o patois (POP. 1950, p.9) “il faudrait détruire le soleil, le fraîcheur, des nuits, le genre des aliments, la qualité des eaux, l’homme tout entier”. Travam-se acaloradas discussões em torno da questão levantada pelo Abbé Grégoire, assinala-se o perigo

Page 30: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

30

Suzana Alice Marcelino Cardoso [27-49]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

da existência de patois para a harmonia e a estabilidade da nação, mas cresce, também, o lado dos que a isso se contrapõem. E Pop considera o nascimento da Dialetologia na França exatamente nesse momento, como claramente se manifesta, ao afirmar que “On peut même considérer les commencements des études dialectologiques en France (et ailleurs) comme une sorte de reaction contre les dispositions prises pour l’anéantissement des patois» (1950, p. 13).

E, assim, o efeito foi contrário!

Não vamos, para esse momento, fazer um histórico da Dialetologia, mas para entender o seu papel na construção dos estudos linguísticos, pelo menos necessário se faz assinalar alguns pontos, o que passo a fazer a seguir.

Destaco, assim, inicialmente, o inquérito por correspondência feito, em 1807, sob os auspícios do Ministère de l’Intérieur, pelo Barão Charles-Étienne Coquebert de Montbret, por constituir-se no primeiro grande inquérito do gênero. Tendo como base a Parábola do Filho Pródigo, escolhida por tratar-se de um texto de estruturas simples e de conhecimento generalizado, foi enviada solicitação aos prefeitos e subprefeitos das regiões escolhidas, para que se dirigissem a pessoas consideradas conhecedoras do patois da área, às quais era pedido que fizessem uma tradução do texto para o seu uso específico da língua. O conjunto de respostas contém 86 traduções da Parábola, das quais a maior parte representa variedades do francês e do provençal.

Nada obstante as críticas que são feitas às traduções da Parábola, Pop (1950, p. 23) salienta a importância desses inquéritos, afirmando que

Malgré ces critiques, on doit toutefois considérer cette collection comme la première grande enquête linguistique que eut un grand retentissement dans plusieurs pays romans (et non romans). Elle seule donna, jusque vers la fin do XIXe. siècle, une orientation sur les patois de la langue française ainsi que sur le provençal.

Os estudos dialetológicos propriamente ditos vêm a se iniciar num momento da história, século XIX, em que a individualidade geográfica de cada região estava resguardada seja pelo isolamento decorrente da

Page 31: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

31

O papel das pesquisas sociolinguísticas e dialetológicas para os estudos do português brasileiro [27-49]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

frágil rede de estradas, seja pela dificuldade de comunicação, seja, ainda, pela inexistência de meios tecnológicos que permitissem a interação à distância entre as diferentes áreas, mas resultaram, principalmente, da preocupação com o resgate de dados e a documentação dos diferentes estágios da língua, pois, como já assinalava o Abbé Rousselot, em 1887 (apud POP, 1950, p. 41),

Chaque année qui s’écoule emporte avec elle des sons, des constructions, des mots dont la perte est irréparable. Il faut donc se hâter de sauver ce qui a été épargné jusqu’ici. C’est une oeuvre qui intéresse la science et l’honneur du pays. Plusieurs l’ont senti, et les ouvrages sur les patois se sont multipliés. [...]. Mais, il faut bien reconnaître, ce qui a été fait est bien peu en comparaison de ce qui reste à faire (grifos nossos).

As preocupações que manifestava o Abbé Rousselot merecem comentário especial, porque suas palavras, ditas no final do século XIX, não perderam nem a atualidade nem a pertinência. Preliminarmente, a ação inexorável do tempo como elemento responsável pelas transformações, pela substituição de estágios da língua, que se perdem, irremediavelmente, no curso da história. O segundo aspecto a destacar-se diz respeito ao caráter de que se reveste o trabalho de tal natureza: é uma questão que interessa a “la science et l’honneur du pays”.

Ao citar essas palavras do Abbé Rousselot, Pop faz um breve comentário que não posso me furtar de transcrever (POP, 1950, p. 41): “J’ai reproduit intentionnellement ces lignes de l’abbé Rousselot, car elles renferment plus d’une vérité et marquent le commencement heureux (grifo nosso) des études dialectales en France”.

Transcorria, pois, o século XIX. A sociedade passava por transformações que se consolidariam no século seguinte, dando nova conformação aos aglomerados sociais e redefinindo a rede de relações entre os povos.

Nascida, portanto, nesse contexto e sob a égide de conhecer, identificar, localizar e descrever a realidade linguística da França, a Dialetologia teve, de início, um objetivo eminentemente diatópico: mostrar a diversidade de um rincão para outro, reconhecer a validade

Page 32: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

32

Suzana Alice Marcelino Cardoso [27-49]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

das diferenças e interpretá-las à luz da história. E isso é o que revela o primeiro e principal trabalho de cunho geolinguístico, publicado entre 1902 e 1910, o Atlas Linguistique de la France, obra de Jules Gilliéron produzida com a participação de Edmond Edmont.

Elegendo um único inquiridor, Edmond Edmont, Gilliéron empreende a documentação do falar de 639 localidades a partir da aplicação de um questionário de, inicialmente, cerca de 1.400 perguntas, vindo a alcançar um total de 1.900 perguntas ao final dos inquéritos. Reconhecendo as dificuldades na elaboração de questionários, Gilliéron, respondendo a críticas que lhe foram dirigidas, faz uma afirmação categórica: “Le questionnaire... pour être sensiblement meilleur, aurait dû être fait après l’enquête”(apud POP, 1950, p. 120).

Na grande maioria das localidades – 550 – foi ouvido apenas um informante. Em 72, foram documentados dois informantes, observando-se, nesse caso, a diferenciação de idade, ou seja, se o primeiro informante ouvido fosse idoso, o segundo deveria ser, o que quase sempre o foi, uma pessoa jovem, mas não se observa o controle sistemático do grau de escolaridade nada obstante agrupar os seus informantes levando em consideração os que têm profissão que supõe instrução secundária e aqueles cuja ocupação indica a necessidade apenas de instrução primária.

As variáveis sociais, no entanto, não se encontram registradas nas cartas linguísticas. Introdutor da Dialetologia, implantando-a numa perspectiva metodológica monodimensional, Gilliéron tem o mérito maior de definir o rumo para os estudos dialetais e, como afirma Rossi (1980, s. v. Dialectologia):

[...] inscreve-se entre os responsáveis por uma das mais importantes tendências da passagem do séc. XIX ao séc. XX nos estudos lingüísticos: o deslocamento do centro de interesse do som fônico à palavra (da fonética histórica à lexicologia histórica).

Nascida sob uma visão monodimensional, a Dialetologia avança no sentido da pluridimensionalidade.

Page 33: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

33

O papel das pesquisas sociolinguísticas e dialetológicas para os estudos do português brasileiro [27-49]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Se a intenção de localizar os fatos linguísticos nos espaços geopolíticos é uma constante na história dos estudos dialetais, a preocupação com as características sociais dos informantes e as suas implicações no uso que fazem da língua não tem passado à margem dos objetivos da Dialetologia. Fatores sociais – idade, gênero, escolaridade, profissão – têm-se constituído em aspectos da variação que, de forma diferenciada e com graus distintos de focalização, vêm ocupando lugar nos estudos dialetais, especificamente naqueles que se desenvolvem sob a metodologia geolinguística, motivados pelo que assinalam Chambers e Trudgill (1994, p. 81-82):

Algunos dialectólogos empezaron a reconocer que se había puesto mucho énfasis en la dimensión espacial de la variación lingüística, excluyendo la dimensión social en cambio. Gradualmente esto supuso un lastre para algunos estudiosos, ya que la variación social en la lengua es tan común e importante como la variación espacial. Todos los dialectos son tanto espaciales como sociales, puesto que todos los hablantes tienen un entorno social igual que una localización espacial.

Esse “espaço social” recobre a variação diageracional, a variação diagenérica, a variação diastrática e a variação diafásica. As cartas linguísticas passam a apresentar, de forma sistemática, dados que fornecem o perfil social do falante e estabelecem as bases para a definição das relações/implicações língua fatores sociais.

Esse novo pensamento estreia no trabalho de Hans Kurath, o Linguistic Atlas of New England (LANE), publicado de 1939 a 1943, com 734 cartas linguísticas que trazem dados referentes aos Estados de Connecticut, Rhode Island, Massachusetts, Vermont, New Hampshire e Maine e da Long Island, aos quais foi acrescentada a província canadense de New Brunswich, que, com as demais, constitui o conjunto de colônias da Nova Inglaterra, fundadas no século XVII (POP, 1950, p. 914-923).

A grande novidade do atlas de Kurath está no estabelecimento de critérios para escolha dos informantes envolvendo o aspecto geográfico e o social. Desse modo, foram três os níveis de escolaridade abordados: a) pessoas com escassa educação formal, pouca leitura e com reduzido contato

Page 34: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

34

Suzana Alice Marcelino Cardoso [27-49]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

social; b) pessoas com educação formal mediana, tendo frequentado a escola média e familiarizadas com maior leitura do que o grupo anterior, além de apresentarem contatos sociais mais amplos; e c) pessoas portadoras de educação de nível superior, afeitas a leituras e com amplos contatos sociais. A esses três níveis, somam-se duas faixas etárias: a) idosos, geralmente de mais de 70 anos; e b) pessoas de meia-idade ou mais jovens.

O controle de variáveis socioculturais na escolha dos informantes estabelecido no Atlas da Nova Inglaterra abre para a Geografia Linguística novas perspectivas e faz da obra de Kurath “la première tentative de donner, sur une grande échelle, des indications plus précises sur l’aspect social du langage” (POP, 1950, p. 922).

Estavam, assim, implantados os fundamentos da Geolinguística Pluridimensional que, na atualidade, tem numerosos atlas representativos, entre os quais, e para ficarmos com exemplo do nosso continente, se encontra o Atlas Lingüístico Diatópico y Diastrático del Uruguay, que se desenvolve sob a responsabilidade de Adolfo Elizaincín, da Faculdad de Humanidades da Universidad de la República (Uruguai), e Harald Thun, do Romanisches Seminar da Christian-Albrechts-Universität zu Kiel (Alemanha).

A grande inovação que traz o ADDU consiste no tratamento das variáveis diageracional, diagenérica, diastrática e diafásica, apresentadas em mapas monodimensionais e pluridimensionais.

Pensada, pois, inicialmente, como ciência dos espaços, a Dialetologia assume no seu percurso histórico, a inclusão de fatores sociais na composição do perfil dos dados que levanta e analisa. Isso poderá levar a uma, imaginemos, afirmação dessa natureza: “Dialetologia e Sociolinguística se encontram e consequentemente já não se diferenciam”.

Vejamos a resposta/proposta da Sociolinguística.

1.2 A resposta/proposta da Sociolinguística

Ramo dos estudos linguísticos que se consolida na segunda metade do século XX, a Sociolinguística assume como tarefa explicitar, na medida do possível, a correlação entre os fenômenos linguísticos

Page 35: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

35

O papel das pesquisas sociolinguísticas e dialetológicas para os estudos do português brasileiro [27-49]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

e sociais, estabelecendo, quando possível, uma “relação de causa e efeito”, como assinala Dubois (1973, p.561).

Da variação dialetal já vinha dando conta a Dialetologia, mas a ausência de uma ação especificamente direcionada para a compreensão das relações língua-falante, usos diferenciados-caraterísticas sociais dos usuários conduziu à formalização desses estudos concebidos, não de forma desvinculada dos espaços geográficos, mas particularmente comprometidos com o comportamento sociolinguístico dos usuários da língua.

Assume-se outra forma de ver as diferenças linguísticas e de interpretar as distinções. Quantificação e qualificação dos fenômenos ocorridos tornam-se chave para descrever a variação e interpretar os processos de mudança linguística.

O espaço, porém, não se torna desprezível. O fato de um sociolinguista enfrentar uma empreitada dialetológica é prova disso, como se atesta com a recente publicação de Labov, Ash e Boberg (2006) que, ao produzir o seu Atlas of North American English (ANAE), traz uma amostra dos dialetos regionais do inglês falado nas áreas urbanas dos Estados Unidos e do Canadá, recolhida entre 1992 e 1999.

Nessa introdução, na qual trago a presença e um pouco do percurso histórico de duas das manifestações dos estudos linguísticos – a Dialetologia e a Sociolinguística – tenho um objetivo definido: (i) mostrar que Dialetologia e Sociolinguística não se opõem nem se excluem, mas caminham juntas e de forma complementar; (ii) que a variação interessa a cada uma delas e na mesma intensidade; (iii) que os enfoques, sem serem exclusivistas, estabelecem prioridades de tratamento o que faz da Dialetologia um ramo dos estudos linguísticos que partindo do que revelam os espaços aponta as diferenças e pode correlacioná-las à natureza social do falante, e o que torna a Sociolinguística a responsável pela interpretação das relações língua-fatores sociais, sem, contudo, desconsiderar a correlação com os espaços geográficos.

Page 36: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

36

Suzana Alice Marcelino Cardoso [27-49]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Com isso quero justificar o título desta conferência, particularmente o “papel” que procuro atribuir a esses ramos da ciência no ensino da língua portuguesa.

2. O ensino da língua portuguesa e sua relação com a Dialetologia e a Sociolinguística

Para tratar da língua, muitos caminhos existem, muitos enfoques se apresentam, muitas perspectivas podem ser selecionadas. Dentre tantas possibilidades, situa-se a visão geo-sociolinguística recoberta pela Dialetologia e pela Sociolinguística, que buscam destacar as relações entre língua, espaço e sociedade e dar ênfase à importância do reconhecimento da diversidade de usos, fato estritamente relacionado à pluralidade cultural do nosso país.

2.1 Pluralidade cultural

E para esse entendimento é preciso que se comece, ainda que de maneira breve, tecendo considerações sobre o entrelaçamento cultural que, no dizer de Diegues Junior (1955, p. 5), ao se referir às relações de raça e de cultura no Brasil, “se verificam desde o instante da descoberta, quando a armada portuguesa de Pedro Álvares Cabral entrou em contato com a terra brasileira e os grupos aborígines aí encontrados”. Entendê-la requer percorrer os caminhos da história, desbravar a constituição demográfica do país, encontrar as motivações em que se sedimentam núcleos sociais, ver as bases das diferentes comunidades, traçar, enfim, o perfil de cada rincão, porque as raízes dessa pluralidade cultural infiltram-se por muitas veredas, por muitos atalhos e se refletem na língua.

Entender a pluralidade cultural requer, assim, sentir os caminhos da história, da formação política do Brasil. E isso começa pela compreensão dos nossos sistemas de governo – fomos monarquia, somos república – e como esses sistemas vêm construindo o nosso espírito de Nação, o que leva a uma indagação: por que livres da dominação colonizadora – ao menos teoricamente – sustentamos uma monarquia por um, relativamente, longo tempo, quando eclodiam

Page 37: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

37

O papel das pesquisas sociolinguísticas e dialetológicas para os estudos do português brasileiro [27-49]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

as repúblicas à volta? Isso leva Schwarcz (1999, p.13) a perguntar na Introdução do seu livro As barbas do Imperador:

Afinal, como explicar a permanência, por quase sessenta anos, de uma monarquia rodeada de repúblicas por todos os lados? Como entender o enraizamento de uma realeza Bragança, mas também Bourbon e Habsburgo, em um ambiente tropical, cercado de indígenas, negros e mestiços?

Dessa citação quero destacar a menção ao “ambiente tropical, cercado de indígenas, negros e mestiços”, para uma referência inicial à miscigenação que marca nossa história desde os seus primórdios. E retorno à autora que evoca a situação da capital da monarquia brasileira – o Rio de Janeiro – para mostrar que, em 1838, do total de 97 mil habitantes, 37 mil eram escravos, números que, em 1849, se modificam para 206 mil pessoas, das quais 79 mil eram cativos, destacando que “nesse ambiente, a corte e os paços representavam ilhas com pretensões européias cercadas de mares tropicais, e sobretudo africanos, por todos os lados” (SCHWARCZ, 1999, p.13). As relações entre Brasil e África exibiram, desde os tempos coloniais, uma política muito ampla de trocas, a que se refere a autora como “mais alargada do que se pode, à primeira vista, imaginar” (p.14). Eram contribuições africanas incorporadas aos usos brasileiros, mas eram, também, usos indígenas transportados ao continente africano, o que leva Costa e Silva (apud SCHWARCZ, 1999, p.14) a afirmar que “a África recebeu e africanizou a rede, a mandioca e o milho, enquanto o Brasil fazia seus o dendê, a malagueta e a panaria da Costa”.

Entender a pluralidade cultural leva a que se procure desbravar a constituição demográfica do país. Com uma base inicialmente tripartite – índios, portugueses, africanos –, o Brasil se torna, sobretudo a partir do século XIX, quando o príncipe regente, D. João, não só abre os portos brasileiros a todas as nações amigas, mas assina outro ato permitindo a concessão de terras aos estrangeiros (DIEGUES JUNIOR, 1955, p.12), uma nação da pluralidade de raças, com fluxos de imigração procedentes de várias partes, que se fixam em regiões diferenciadas do país e conforme os anseios e necessidades de cada um dos que se achegam à terra brasílica. Essa diversidade de conformação demográfica leva a peculiaridades

Page 38: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

38

Suzana Alice Marcelino Cardoso [27-49]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

de usos linguísticos que vão distinguir áreas e caracterizá-las conforme o elemento humano presente na sua constituição. Tal fato nos leva a constatações como as que trago à consideração na “Apresentação” do livro Quinhentos anos de história linguística do Brasil (CARDOSO, 2006), ao chamar a atenção para a densidade da inter-relação existente entre os diferentes grupos e as diferentes culturas, particularmente, na constituição do léxico do português brasileiro. São numerosos os itens resultantes da contribuição das línguas indígenas. São abundantes os africanismos que permeiam os usos cotidianos do nosso vernáculo. São representativos, em áreas particulares, os empréstimos tomados às línguas de imigração. Não escapamos, assim, de exigir, no Rio Grande do Sul, a presença do chimier (alemão schmiere, ‘geleia’) para o nosso café da manhã, do mesmo modo que, à mesma hora e a essa mesa do desjejum, comparece por todo o Nordeste a maravilhosa tapioca (tupi tïpï’oka ‘fécula alimentícia da mandioca’), perpassando por qualquer horário e a qualquer pretexto o irresistível acarajé (iorubá akara ‘bolo de feijões’ + ije ‘comida’). Mas, também, vai noutra direção a troca, como ilustra a presença, na Língua Geral Amazônica do século XVIII, da forma wajmí~myrapára para ‘arco-íris’, que, literalmente, se traduz ‘arco [de flecha] da velha’ (e não seria o mesmo arco-da-velha, corrente no português do Brasil para, também, ‘arco-íris’?).

As diferentes correntes migratórias e a base demográfica de cada região vão responder por outro tipo de pluralidade cultural que se constata: as diferentes motivações em que se sedimentam os núcleos sociais que levam a escolhas diversificadas e, consequentemente, a denominações particulares para os elementos do mundo biossocial. O espaço sideral, a ideia do infinito e do não totalmente dominado pelo homem e a curiosidade pelo, ainda, não desvendado por meio do conhecimento científico ou do saber feito de experiências constituem-se, por exemplo, num foco de revelação de concepções e de indicadores da imaginação que se traduz nas denominações utilizadas para referentes nesse campo semântico, em muitos casos, figurações do imaginário e das “verdades” que povoam a cabeça de cada falante, de cada grupo humano.

Page 39: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

39

O papel das pesquisas sociolinguísticas e dialetológicas para os estudos do português brasileiro [27-49]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Exemplo a ilustrar a questão é a pluralidade de nomes em áreas brasileiras para designar o arco-íris os quais, além de estimulantes para uma reflexão mais ampla que ultrapasse os limites da diatopia e da descrição linguística, são atraentes e, no que diz respeito a alguns deles, intrigantes: arco, arco-celeste, arco-da-aliança, arco-da-velha, arco-de-boi, arco-de-celeste, arco-de-velho, arco do sol, arco inselente, barra de nuvem, as torres, olho-de-boi, rabo de pavão, sete-e-um-couros (CARDOSO, 2004).

O Brasil, na sua ampla extensão territorial – país-continente –, apresenta-se como uma terra de grandes contrastes, marcada pela heterogeneidade cultural, social e econômica que se vai refletir, também, na língua portuguesa, hoje majoritariamente falada. A diversidade da língua está, pois, vinculada à diversidade cultural tomada nos seus mais diferenciados aspectos.

2.2 A unidade e a diversidade no português do Brasil

Nesse quadro, a unidade do português do Brasil, enquanto uniformidade de usos, não passa de uma abstração, cujo reconhecimento se justifica apenas no pensar-se a língua como um sistema único, conjunto de possibilidades responsáveis pela continuidade histórica que representa através dos tempos, como bem conceitua Coseriu (1982).

Assim entendendo, a primeira grande distinção para a língua decorre da sua relação com o espaço. A amplitude do território traz como consequência a diversidade diatópica. Traços que são regionais, definidores de áreas geográficas, afetam a todos os falantes da região, não se constituindo, no seu interior, como distintivo de classes sociais e, portanto, estigmatizantes. Apresentam-se, ao contrário, como manifestações do padrão, da norma linguística da área e, portanto, perfeitamente incorporados na fala de todos os usuários do português como se pode ilustrar com a realização aberta das vogais médias em distribuição pretônica, exemplo típico de variação diatópica, que se vê na parte Norte-Nordeste do Brasil, fato já assinalado por Nascentes (1953), ao tomar esse fenômeno como marco distintivo entre a Região Norte e a Região Sul da sua divisão dialetal do Brasil. Os falantes da área,

Page 40: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

40

Suzana Alice Marcelino Cardoso [27-49]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

independentemente das suas próprias características sociais, utilizam-se de uma das duas possibilidades assinaladas para a realização das vogais médias pretônicas. O estudo do /r/ posvocálico que, no português do Brasil, se realiza como vibrante apical múltipla, vibrante uvular, fricativa velar, fricativa laríngea, vibrante apical simples, aproximante retroflexa ou zero fonético, mostra, por exemplo, a existência de duas áreas distintas, conforme os dados do Projeto NURC1, em trabalho apresentado por Callou, Leite e Moraes (1995). De um lado ficam São Paulo e Porto Alegre, onde se registra a presença de uma vibrante, de outro, Rio de Janeiro, Salvador e Recife onde essa variante quase não se registra.

E outro fato, ainda a título de ilustração: a presença de um elevado índice de palatalização atingindo realizações africadas, como sucede ao / t / e ao / d / quando seguidos da / i /, na pronúncia dos cariocas e, já agora, na de outras áreas, como vêm mostrando aprofundados estudos sobre esse fenômeno feitos por Mota (1994), Mota e Rollemberg (1995), Hora (1990; 1997), Noll (2008), entre outros.

Esses traços, e muitos outros que poderão ser arrolados, figuram como marcas regionais fonéticas que refletem uma continuidade ao interior da área em que se documentam, produzindo uma unidade da qual só se vêm a tomar plena consciência no momento em que se põe em confronto o que se passa nessa com o que ocorre em outras regiões.

Outra gama de traços diferenciadores foge à continuidade numa mesma área, quebrando o caráter generalizante de que outros traços, como os apontados anteriormente, se revestem. São aqueles que assinalam diferenças diastráticas, etárias, de gênero, que não têm marca de regionalismo, mas trazem uma definição de categorias sociais. Ilustram esse caso, no campo da diastratia – para ficarmos em apenas uma das

1 Projeto de Estudo da Norma Linguística Urbana Culta no Brasil, desenvolvido em cinco capitais – Recife, Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre – de que resultou a constituição de um amplo corpus que vem servindo a numerosos estudos, destacando-se teses e dissertações de mestrado.

Page 41: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

41

O papel das pesquisas sociolinguísticas e dialetológicas para os estudos do português brasileiro [27-49]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

categorias –, a presença do ieísmo – mulher/muié, folha/foia –, a ausência da concordância verbal – nós vai, a gente fomos –, a simplificação na morfologia verbal com a redução das oposições mórficas – tu vai, ele vai, nós vai, eles vai –, entre outros. Esses traços ultrapassam os limites geográficos de uma área e vão se constituir em instrumento de unidade entre falantes de diferentes regiões, identificados pelo estrato social a que pertencem. Tal situação levou Teyssier (1982, p. 79) a fazer a seguinte afirmação:

A realidade, porém, é que as divisões “dialectais” no Brasil são menos geográficas que sócio-culturais. As diferenças na maneira de falar são maiores, num determinado lugar, entre um homem culto e o vizinho analfabeto que entre dois brasileiros do mesmo nível cultural originários de duas regiões distantes uma da outra.

A essa diferenciação de usos, quero acrescentar um terceiro grupo, sem, a princípio, classificá-lo ou denominá-lo como da primeira ou da segunda categorias que acabam de ser citadas. Refiro-me, primeiramente a título de exemplo, à tendência que se vem tornando frequente no português do Brasil de usar a preposição de depois de certos verbos, fenômeno identificado, a partir dos estudos de Rabanales para o espanhol do Chile, como dequeísmo. Os exemplos que tenho anotado (CARDOSO, 1996) e os que vêm citados por Mollica (1995) mostram que o fenômeno atinge uma gama variada de verbos e se apresenta também em distintas situações discursivas. Surpreendentemente os usuários, autores do dequeísmo, não se têm dado conta do fenômeno. A realidade, porém, mostra que o dequeísmo vem-se expandindo.

Seguindo a mesma perspectiva, a de buscar fatos não estigmatizados, mas diferenciados nas coletividades consideradas, trago alguns exemplos da área rural, tomados de inquéritos linguísticos feitos para o Atlas Linguístico de Sergipe (1987) e de referência à categoria dos pronomes. Trata-se do uso de clíticos, anotados em frases do tipo:

“... tem um lugarzinho que chama-se Cajueiro”.“Chama-se uma jarra”“Se travessa de canoa”

A observação de tais exemplos permite verificar que:

Page 42: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

42

Suzana Alice Marcelino Cardoso [27-49]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

(i) a ênclise não está fora dos padrões desses dialetos rurais, apesar de considerada uma forma de expressão do português padrão, ocorrendo tanto em situações que podem ser consideradas estereotipadas, por introduzirem com certa sistematicidade respostas a perguntas com a formulação “Como se chama...”, a que o informante acorria com a resposta “Chama-se...”, como também em construções sem essa marca discursiva, como em “... tem um lugarzinho que chama-se Cajueiro”;

(ii) o uso do clítico está presente no dialeto de falantes daquela coletividade, nada obstante se tratar de um dialeto rural e de usuários de baixa ou nula escolaridade.

As diferentes formas de expressão da variação, que, com parcimônia, se procurou ilustrar com os exemplos trazidos, constituem-se numa intricada malha tecida, por um lado, com traços estráticos, geralmente sem demarcações espaciais, de caráter generalizante, porque passíveis de serem encontrados independentemente dos limites regionais, como ilustram os casos de não concordância sujeito-verbo, de iotização, aqui lembrados. Por outro, figuram os traços diatópicos, sem marcação estrática, mas definidores de limites espaciais. Por último, estão as ocorrências de usos que mostram que certas inovações entram no cotidiano do falante, sem estigma, como é o caso do dequeísmo; ou que demonstram que fatos tidos como típicos de estratos sociais com certo grau de escolaridade ocorrem nas falas rurais, indicando a sua generalidade, como sucede com os casos de ênclise documentados entre informantes do campo.

Já é hora, pois, de relacionar o quadro que tentei descrever com o papel que têm a desempenhar a Dialetologia e a Sociolinguística no ensino das línguas, particularmente da língua materna, mas no mundo globalizado em que vivemos, também no ensino de uma segunda ou terceira língua.

2.3 Dialetologia, Sociolinguística e ensino

O pressuposto básico para essa consideração reside na definição do que se deve ensinar, para quem e para que. Parece claro e já de muito assente que à escola cabe ensinar ao aluno as modalidades de uso da língua que escapam ao seu domínio, como forma de integrá-lo linguística, social e politicamente e de torná-lo capaz de exercitar

Page 43: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

43

O papel das pesquisas sociolinguísticas e dialetológicas para os estudos do português brasileiro [27-49]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

quaisquer dos dialetos que constituem a língua nacional de seu uso e a oficial do país.

Deparamo-nos, no entanto, com alguns óbices. A dimensão da diversidade linguística do Brasil ainda está por ser devidamente traçada. Os estudos de Geolinguística e de Sociolinguística, apesar do esforço que em muitas áreas e sob a responsabilidade de um número considerável de pesquisadores se vem fazendo, estão muito longe de permitir uma caracterização completa dos usos do português brasileiro e definir o conjunto de normas-padrão ou de uma possível, vamos denominar, “arquinorma” a se constituir no modelo a ser seguido. Tal fato decorre do desconhecimento das realidades regionais o que, consequentemente, inviabiliza a identificação de parâmetros regionais e serem tomados como modelo. Trabalho de fôlego nacional, com base em dados coletados in loco e representativos das diferentes áreas geográfico-culturais e linguísticas do país vêm sendo desenvolvidos, mas não têm amplitude nacional. Reportam-se a áreas, regiões mais ou menos extensas, como se observa com o Projeto da Norma Urbana Culta, o Projeto Censo Linguístico do Português do Rio de Janeiro, o Projeto Variação do Português no Sul, o Projeto Variação Linguística no Estado da Paraíba, entre outros. De amplitude nacional surge, a partir de 1996, o Projeto Atlas Linguístico do Brasil que tem por meta documentar a fala de 1.100 cidadãos representativos das áreas consideradas ilustrativas das diferentes regiões geográfico-culturais, fixadas em número de 250. O resultado desse trabalho, que já conta, neste ano de 2008, com 58 % da documentação recolhida e com a preparação dos primeiros resultados a serem divulgados – referentes às capitais de estado2 – há de nos fornecer, espera-se, pelo menos as linhas mestras dos parâmetros referidos que possam contribuir para a concepção de um processo de ensino-aprendizagem da língua materna perfeitamente integrado às diferentes realidades do país.

Das reflexões aqui trazidas pode-se concluir que não existe ainda um modelo real da norma brasileira ou das normas regionais no

2 No momento em que se faz esta publicação, 2011, a documentação recolhida já atingiu o índice de 91.6%.

Page 44: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

44

Suzana Alice Marcelino Cardoso [27-49]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Brasil descritos na sua inteireza. O que temos são descrições esparsas e pontuais, focalizando esse ou aquele fenômeno, abordando tal ou qual nível da língua, numa região ou num conjunto de regiões. E nisto está o cerne da competência, responsabilidade e possibilidade de contribuição dos estudos dialetais e sociolinguísticos para os estudos do português brasileiro, cujas linhas gerais procurarei, a seguir, traçar e já à busca de uma conclusão.

3. Para concluir: o que se espera da Dialetologia e da Sociolinguística

O que se espera da Dialetologia e da Sociolinguística num país pluricultural e multidialetal, onde permeiam diferentes línguas com diferenciados status? O que se espera da ação desses dois ramos dos estudos linguísticos num mundo globalizado onde a hegemonia do inglês convive com a diversidade de línguas? O que se espera desses estudos no resgate das nossas marcas linguísticas africanas e na convivência com as línguas indígenas? O que se espera dos estudos geo-sociolinguísticos na construção do MERCOSUL onde espanhol e português devem e precisam crescer juntos? São perguntas que implicam tarefas muito particulares para os estudos dialetais e sociolinguísticos. Nesse sentido, e para concluir, me imponho algumas considerações.

3.1 O que se espera da Dialetologia e da Sociolinguística num país pluricultural e multidialetal, onde permeiam diferentes línguas com diferenciados status?

Sem dúvida, os primeiros passos devem ser na direção do conhecimento da realidade nacional. E para isso, necessário se faz buscarem-se os meios de apresentar o nosso panorama linguístico, no conjunto de línguas que o constituem: a língua portuguesa com as suas variedades; as línguas indígenas nas suas diferentes situações de uso e de expansão; os vestígios das línguas africanas; e as línguas de imigração. E esse trabalho, graças a Deus, está bem começado. São numerosos os projetos – Projeto NURC, Projeto Censo, Peul, VARSUL, VARLParaíba, para ficar apenas numa breve exemplificação – muitos deles com reconhecimento e apoio de instituições financiadoras da pesquisa em nosso país, mas ainda sem resultados que permitam ou

Page 45: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

45

O papel das pesquisas sociolinguísticas e dialetológicas para os estudos do português brasileiro [27-49]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

uma macro visão do território nacional ou a intercomparação sistemática entre áreas, com base em fenômenos comuns estudados, ou, ainda, a identificação de variedades de usos segundo as categorias sociais em que se situam os grupos de falantes, tudo isso numa perspectiva nacional. O Projeto ALiB, presentemente, tem o objetivo de mapear linguisticamente o Brasil, no que diz respeito à língua portuguesa, o que nos dará em breve – espera-se – um primeiro retrato geral do nosso território. E essa é uma tarefa da Dialetologia e da Sociolinguística.

3.2 O que se espera da ação desses dois ramos dos estudos linguísticos num mundo globalizado onde a hegemonia do inglês convive com a diversidade de línguas?

Atualmente se falam cerca de 6.500 línguas, o que significa a existência de 6.500 grupos e povos etnolinguísticos no mundo (HAMEL, 2008, p.46). A distribuição desse imenso conjunto é, porém, muito desigual no que se refere à relação línguas/falantes/espaços políticos onde se fazem presentes. Nesse contexto, presenciamos o desaparecimento de línguas minoritárias, motivado por diferentes fatores.

Por outro lado, observa-se, a partir do século XX, a expansão do inglês, a sua “mundialização”, no dizer de Hamel (2008, p.51), presença que se sente nas diferentes manifestações da vida atual, e sobre a qual assim se manifesta esse autor (HAMEL, 2008, p.60):

La globalización y el monopolio del inglés se fomentan desde posiciones de mucha fuerza política y con amplios recursos económicos y científicos No puede sorprender que estos actores provengan en su mayoría de los países anglófonos mismos y de sus satélites que se ven directamente beneficiados. Encuentran adhesión también entre las elites de países medianos y pequeños, así como entre representantes de lenguas que sufren la opresión de otras lenguas nacionales e internacionales.

O pensamento de Hamel, aqui trazido, tem o objetivo de chamar a atenção para o quadro no qual se expande o inglês, destacando-se o papel dos países anglófonos, em situação econômico-política privilegiada e a posição que assumem “as elites de países medianos y pequeños”, bem como povos cujas línguas são reprimidas.

Page 46: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

46

Suzana Alice Marcelino Cardoso [27-49]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Com isso, quero assinar que cabe à Dialetologia e à Sociolinguística um aprofundamento dessa questão, sem xenofobia e sem recurso a “decretos” radicais, mas, analisando os novos contextos e buscando elementos para avaliar o redimensionamento das relações entre as línguas que cá entre nós convivem com o inglês que se expande. Essa é mais uma tarefa!

3.4 O que se espera desses estudos no resgate das nossas marcas linguísticas africanas e na convivência com as línguas indígenas?

E novamente caminho na trilha do reconhecimento, identificação, descrição e análise dessas línguas. Reconheço que núcleos de especialistas nesses campos vêm, intensamente, se dedicando à causa. Mas, pergunto, não estaria, para além dos objetivos gerais da Linguística, um compromisso, específico, da Dialetologia e da Sociolinguística no sentido de buscar, ao lado do conhecimento, desvendar os intrincados meandros das relações entre língua indígenas/línguas-vestígio de línguas africanas e o português e, assim, dar elementos para a construção da sócio-história da nossa língua majoritariamente falada? Fica mais essa tarefa!

3.4. O que se espera dos estudos geo-sociolinguísticos na construção do MERCOSUL onde espanhol e português devem e precisam crescer juntos?

Não se pode desconhecer a nova fisionomia que se delineou com o MERCOSUL pelo menos no tocante, especificamente, às relações português-espanhol e ao papel de cada uma dessas línguas, individualmente, na América Latina. As relações linguísticas se estreitaram, e não seria essa a hora de serem articulados grandes projetos comuns, envolvendo cada uma dessas línguas? Por que não se pensar no dequeísmo na América Latina? Ou na categoria dos pronomes com as suas diferentes reordenações? Ou, ainda, no intercâmbio do léxico? Seriam, esses, voos mais amplos que se fariam preceder de uma base comum, geral, de aprendizado da “língua do vizinho” com o ensino vulgarizado em todos os níveis escolares.

O âmbito da ALFAL, com o espaço já criado para projetos, poderá converter-se no locus ideal para a concretização de trabalhos dessa natureza, espaço que, certamente, deve ser ampliado pela ação da ABRALIN e da ANPOLL. E fica uma última tarefa!

Page 47: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

47

O papel das pesquisas sociolinguísticas e dialetológicas para os estudos do português brasileiro [27-49]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Ao concluir essa exposição quero chegar a um ponto, que é final, mas é também conclusivo: a Dialetologia e a Sociolinguística têm no momento atual importante papel, relevante missão de assumindo uma reflexão sobre a língua portuguesa dar o salto da teoria à práxis para que encontrem os veios do aperfeiçoamento ensino-aprendizagem da língua materna; e, por outro, deve colaborar na construção de políticas de convivência com outras línguas, particularmente o espanhol e, inevitavelmente, o inglês, aproximando-se, assim, do que sugere a organização dos Estados Iberoamericanos para a Educação, a Ciência e a Cultura com a recomendação:

Resulta válida la recomendación de que se promueva el manejo generalizado, por parte de los hablantes, de al menos tres lenguas: la lengua materna, la lengua de la comunidad lingüística vecina, y una lengua da amplio alcance internacional. Y eso porque de ese modo se cubre un aspecto realmente global sin olvido de lo local (apud ARNOUX, 2008, p.20).

Sigamos, pois, o caminho que se mostra à nossa frente.

ReferênciasARNOUX, Elvira Narvaja de. El conocimiento del otro en el proceso de integración regional. Propuestas para la enseñanza media. In: HORA, Dermeval da; LUCENA, Rubens Marques de (Orgs.). Política lingüística na América Latina. João Pessoa: Idéia/Editora Universitária, 2008, p. 11-31.

CALLOU, Dinah; LEITE, Yonne; MORAES, João. Neutralização e realização fonética: a harmonia vocálica no português do Brasil. In: DUARTE, Inês e LEIRIA, Isabel (Orgs.). Congresso Internacional sobre o Português. Actas... Lisboa: A. P. L. ; Colibri, junho 1996, p.395-413.

CARDOSO, Suzana Alice Marcelino da Silva. Dequeísmo: um fenômeno da România Nova?. Estudos Língüísticos e Literários, Salvador, nº esp., p. 239-246, 1996.

CARDOSO, Suzana Alice Marcelino. Apresentação. In: CARDOSO, Suzana Alice Marcelino; MOTA, Jacyra Andrade; MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia (Orgs.). Quinhentos anos de história lingüística do Brasil. Salvador: Secretaria da Cultura e Turismo do Estado da Bahia, 2006.

CARDOSO, Suzana Alice Marcelino. As « cores » do arco-íris no Brasil. In: AGRELO, Ana Isabel Boullón (ed.). Novi te ex nomine. Estudos filolóxicos ofrecidos ao Prof. Dr. Dieter Kremer. A Coruña: Fundación Pedro Barrié de la Maza, 2004. p. 69-81.

Page 48: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

48

Suzana Alice Marcelino Cardoso [27-49]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

CHAMBERS, J. K. (Jack); TRUDGILL, Peter. La dialectología. Madrid: Visor Libros, 1994.

COSERIU, Eugênio. A geografia lingüística. In: COSERIU, Eugenio. O homem e sua linguagem. Rio de Janeiro/São Paulo: Presença/USP, 1982.

DIÉGUES JUNIOR, Manuel. Estudos de relações de cultura o Brasil. Rio de Janeiro: Ministério de Educação e Cultura, 1955.

DUBOIS, Jean et al. Dicionário de Lingüística. São Paulo: Cultrix, 1993.

FERREIRA, Carlota; FREITAS, Judith; MOTA, Jacyra; ANDRADE, Nadja; CARDOSO, Suzana; ROLLEMBERG, Vera; ROSSI, Nelson. Atlas Lingüístico de Sergipe. Salvador: Universidade Federal da Bahia; Fundação Estadual de Cultura de Sergipe, 1987.

GILLIÉRON, Jules; EDMONT, Edmond. Atlas Linguistique de la France. 35 fasc. Paris: Honoré Champion, 1902-1910.

HAMEL, Rainer Enrique. La globalización de las lenguas en el siglo XXI entre la hegemonía del inglés y la diversidad lingüística. In: HORA, Dermeval da; LUCENA, Rubens Marques de (Orgs.). Política lingüística na América Latina. João Pessoa: Idéia/Editora Universitária, 2008, p. 45-77.

HORA, Demerval da. A palatalização das oclusivas dentais /t/ e /d/ e as restrições sociais. Graphos: revista da Pós-Graduação em Letras. João Pessoa: Curso de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba, ano II, v. 2, n. 1, p. 135-141,1997.

HORA, Dermeval da. A palatalização das oclusivas dentais: variação e representação não-linear. Rio Grande do Sul: PUC, 1990. Tese de Doutorado.

KURATH, Hans. et al. Linguistic Atlas of New England (LANE). New York: Brown University Press, 1939-1943.

LABOV, William; ASH, Sharon; BOBERG, Charles. The atlas of North American English. Phonetics, Phonology abd Sound Change. Berlin: Mouton de Gruyter, 2006.

MOLLICA, Maria Cecília de Magalhães. (De) que falamos?. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1995.

MOTA, Jacyra Andrade. Consoantes constritivas implosivas e vogais pretônicas no nordeste. ABRALIN, Salvador: ABRALIN/UFBA, v. 15, p. 233-237, 1994.

MOTA, Jacyra Andrade; ROLEMBERG, Vera. Constritivas implosivas em área nordestina. Estudos Lingüísticos e Literários, Salvador: Mestrado em Letras, v. 17, p. 79-86, 1995.

NOLL, Volker. O português brasileiro. Formação e contrastes. Traduzido do alemão por Mário Eduardo Viaro. São Paulo: Globo, 2008.

POP, Sever. La dialectologie. Aperçu historique et méthodes d’enquêtes linguistiques, v. 1 e 2. Louvain: Chez l’Auteur; Gembloux, Duculot, 1950.

ROSSI, Nelson. Dialectologia. In: HOUAISS, Antônio (Ed.). Enciclopédia Mirador Internacional. São Paulo; Rio de Janeiro: Encyclopædia Britannica do Brasil, 1980.

Page 49: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

49

O papel das pesquisas sociolinguísticas e dialetológicas para os estudos do português brasileiro [27-49]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do imperador. D. Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

TEYSSIER, Paul. História da língua portuguesa. Trad. port. de Celso Cunha. Lisboa: Sá da Costa, 1982.

THUN, Harald; ELIZAINCÍN, Adolfo. Atlas Lingüístico Diatópico y Diastrático del Uruguay (ADDU). Kiel: Westensee, 2000.

Page 50: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido
Page 51: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

51Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

O sentido de um atlas linguístico nacional(por que um atlas linguístico nacional?)The meaning of a national linguistic atlas (why a national linguistic atlas?)

Suzana Alice Marcelino Cardoso Programa de Pós-Graduação em Língua e Cultura e no Programa de

Pós Graduação em Literatura e CulturaUniversidade Federal da Bahia

Membro Associado do LDI-Lexiques, Dictionnaires, Informatique da Université Paris 13

[email protected]

Resumo: Apresentam-se o entendimento e as razões para a produção de um atlas linguístico geral do Brasil no tocante à língua portuguesa. Retomam-se dados históricos relativos à concepção da ideia, em 1952, e são fornecidos dados sobre o Projeto Atlas Linguístico do Brasil, com informação sobre o seu desenvolvimento e sobre a sua contribuição para a constituição da sócio-história do português brasileiro e o lugar que ocupa nos estudos linguísticos brasileiros.

Palavras-chave: Dialetologia. Geolinguística. Atlas linguístico. Variação.

Abstract: This work is intended to present the understanding and the reasons for the production of a general Brazilian linguistic Atlas with regard to Portuguese. Historical records from 1952 are resumed and data about the Projeto Atlas Linguístico do Brasil are supplied, with information about its development and contribution to the constitution of the social history of the Brazilian Portuguese and the role it plays in the Brazilian linguistic atlases.

Keywords: Dialectology. Geolinguistics. Linguistic Atlas. Linguistic Variation.

Page 52: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

52

Suzana Alice Marcelino Cardoso [51-63]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

O título desta comunicação, ao qual é aposto um subtítulo provocativo — Por que um atlas linguístico nacional? —, levanta uma questão de fundo que diz respeito ao entendimento de um atlas nacional, da sua importância, da sua finalidade, em suma, do sentido linguístico, político e social de que se reveste.

Sabe-se que perguntas, adjungidas a esta formulada, podem ser acrescentadas. Por exemplo, pode-se indagar:

A que serve um atlas linguístico nacional?

Porque se empreende um atlas nacional, agora, começando dos seus primórdios, quando já existem atlas linguísticos regionais?

Por que não se juntam esses atlas regionais e, completando-os, chega-se a um atlas geral do Brasil?

Esses e outros porquês podem ser formulados. Nesta oportunidade busca-se dar uma resposta, entender este sentido posto em destaque. Espera-se tirar a dúvida, encontrando o que distingue a repetição da novidade, o sobejo do essencial, o que acrescenta do que é apenas redundante.

Para isso, retomam-se alguns dos passos da Geolinguística assim identificados:

a. O surgimento da ideia de um atlas linguístico geral do Brasil.b. A prioridade dada aos atlas regionais.c. A construção de um atlas nacional.d. Os lucros advindos de um atlas nacional.

1. O surgimento da ideia de um atlas linguístico geral do Brasil.

A ideia e o desejo de um atlas linguístico do Brasil estavam em cogitação nos meios acadêmicos desde meados do século XX e nos objetivos do Governo Federal que, ao promulgar o Decreto 30.643/20.03.1952, assentava no Art. 3°, como principal finalidade da Comissão de Filologia da Casa de Rui Barbosa, a elaboração do atlas linguístico do Brasil, como se lê no texto legal:

Page 53: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

53

O sentido de um atlas linguístico nacional [51-63]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

3º - A Comissão de Filologia promoverá pesquisas em todo o vasto campo de filologia portuguesa-fonologia, morfológicas, sintáticas, léxicas, etimológicas, métricas, onomatológicas, dialetológicas bibliográficas, históricas, literárias, problemas de texto, de fontes, de Autoria, de influências, sendo sua finalidade principal a elaboração do Atlas Lingüístico do Brasil (grifo nosso).

Aflorar em começos/meados do século XX esse desejo tem um sentido histórico bem delineado e razões de ordem linguística sustentáveis.

Ao se iniciar esse século, a Europa assiste ao lançamento do primeiro atlas linguístico nacional, o Atlas Linguistique de la France – ALF (1902-1910), obra de Jules Gilliéron e de Edmond Edmont que, como salienta Pop (1950, p. 113):

On reconnaît bien aujord’hui que J. Gilliéron avait parfaitement raison lorqu’il déclarait, en 1904, en réponse à la critique trop injuste d’A. Thomas (J. Gilliéron, A. L. de la France: compte rendu de M. Thomas, Paris, Champion, 1904, p.8), qu’une nouvelle ère (grifo nosso) allait s’ouvrir dans l’étude du langage par la publication de l’Atlas linguistique de la France1.

A nova era, referida por Pop, que se instala, representa o enfrentamento da língua a partir da realidade colhida in loco, a descoberta de fatos e fenômenos linguísticos que vão revelar o estágio em que se encontra e a diversidade de usos de que se reveste. Com o ALF quebra-se a ideia de regularidade dos fatos e de uniformidade dos usos. Sincronia e diacronia vão se encontrar nos espaços como a mostrar o percurso que segue cada idioma na sua caminhada: modificando-se, variando de cá para lá, refazendo a sua história.

Gilliéron aprofunda o estudo da variação e ao mesmo tempo os problemas de ordem dialetal, procurando mostrar de que maneira se podia configurar o seu estudo numa perspectiva científica (POP, 1950, p.114).

1 Reconhece-se, hoje, que J. Gilliéron tinha perfeitamente razão quando declarou, em 1904, em resposta à crítica de A. Thomas (J. Gilliéron, A.L. de la France: recensão de M. Thomas, Paris, Champion, 1904, p. 8) que uma nova era se abria para os estudos da linguagem com a publicação do Atlas lingüístico da França.

Page 54: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

54

Suzana Alice Marcelino Cardoso [51-63]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Dado o primeiro passo, novos atlas vão surgindo e se apresentam diferenciadamente segundo os espaços a que se reportam – atlas regionais, atlas nacionais, inicialmente, mas também atlas de famílias de línguas e atlas de um continente, mais ao final do século XX. O enfoque inicial, priorizando a distinção espacial, se amplia com a preocupação em ver outras formas de se apresentar a variação. As variáveis sociais passam a ser acopladas à variável diatópica e a Dialetologia amplia a sua perspectiva metodológica, passando de um estágio monodimensional para uma abordagem pluridimensional. Aos atlas inicialmente voltados para detectar a variação no espaço geográfico, juntam-se outros que reúnem informações diatópicas, diastráticas, diagenéricas, diageracional. As duas formas de abordagem, porém, continuam convivendo, validamente, pois, a depender do objetivo a atingir-se, um ou outro dos caminhos pode ser o ideal e o recomendável. Assim, e para citar exemplos bem atuais, encontrar-se ao lado do Atlas Linguistique Roman - ALiR, monodimensional, o Atlas Diatópico y Diastrático del Uruguay - ADDU, pluridimensional.

Nesse contexto mundial o Brasil também procura se situar. Surgem as primeiras manifestações em favor de que se elabore um atlas linguístico do Brasil. Linguistas e dialetólogos brasileiros manifestam-se nesse sentido. Ouvem-se vozes como as de Antenor Nascentes, Serafim da Silva Neto, Celso Cunha, Nelson Rossi. O Brasil reconhece a importância de um estudo geral, mas também tem consciência das dificuldades para concretizar um projeto desse vulto. E a solução, vem, pois, do pensamento abalizado de Antenor Nascentes (1953, p. 7) que assim se exprime:

Embora seja de toda vantagem um atlas feito ao mesmo tempo para todo o país, para que o fim não fique muito distanciado do princípio, os Estados Unidos, país vasto e rico e com excelentes estradas, entregou-se à elaboração de atlas regionais, para mais tarde juntá-los no atlas geral. Assim também devemos fazer em nosso país, que é também vasto...

2. A prioridade dada aos atlas regionais

O reconhecimento das dificuldades advindas, sobretudo da extensão territorial do país, da precariedade das vias de comunicação e da inexistência de equipes de pesquisadores preparados nesse campo

Page 55: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

55

O sentido de um atlas linguístico nacional [51-63]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

fizeram com que o seu conselho fosse seguido e determinaram a opção inicial dos estudos geolinguísticos no Brasil: empreender-se o trabalho começando pelos atlas regionais.

Partiram, assim, os dialetólogos brasileiros para a execução de atlas regionais, o primeiro dos quais, o Atlas Prévio dos Falares Baianos - APFB, de autoria de Nelson Rossi, Dinah Isensee e Carlota Ferreira, publicado em 1963, atingindo-se, na atualidade, o total de nove atlas publicados, como se apresenta no Quadro 1, aos quais se somam duas teses de doutorado (atlas da Amazônia e do Litoral Potiguar).

A observação dos dados constantes do quadro apresentado permite alguns comentários:

1. As datas de publicação recobrem um período de 45 anos, ou seja, quase meio século, o que permite entrever-se a existência de pelo menos duas gerações aptas a se constituírem em informantes documentáveis em pesquisa de natureza geolinguística.

2. A rede de pontos reflete diferentes relações com a densidade demográfica da área documentada.

3. Os informantes não se encontram, de forma generalizada, identificados em cada ponto.

Quadro 1 - Atlas Linguísticos Regionais

Page 56: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

56

Suzana Alice Marcelino Cardoso [51-63]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

4. A metodologia seguida é monodimensional.5. A metodologia seguida é pluridimensional.6. As cartas linguísticas apresentam notas com comentários aos

dados registrados.7. A natureza dos dados registrados recobre os níveis fonético-

fonológico, semântico-lexical e morfossintático.8. Presença de comentários às cartas.9. Distinto número de informantes por ponto da rede.

3. Começando a responder...

Como se pode observar, não há entre os atlas apresentados uma coincidência total dos princípios metodológicos seguidos. A diversidade de técnicas, o distanciamento no tempo, a natureza diversificada dos dados exibe uma heterogeneidade, explicável e justificável pela própria origem de cada atlas, incompatível com a homogeneidade de tratamento que uma visão macro do Brasil requer. E esta se configura uma razão, fundada em base científica, para a não construção de um atlas nacional a partir da consolidação de dados dos atlas regionais existentes. Sem negar a importância e até mesmo a necessidade de que se continue a produção de atlas regionais, não se pode conceber uma visão geral do território nacional desvinculada de um processo metodológico perfeitamente integrado e nacionalmente ajustado.

3.1 A construção de um atlas nacional.

Nesse quadro geral, passados cerca de cinquenta anos e com a clareza de visão da realidade nacional, retoma-se a ideia de realização de um atlas linguístico do Brasil no que tange à língua portuguesa, motivados (i) pela urgência de descrever o português brasileiro antes que se percam dados e fatos capazes de esclarecer aspectos da história linguística do país (ii) e pelo papel relevante que, no momento, a Geografia Linguística assume nos estudos linguísticos, no exterior e no Brasil.

Concebe-se, para a concretização do desiderato, o Projeto Atlas Linguístico do Brasil (Projeto ALiB), cujas bases se lançam no Seminário

Page 57: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

57

O sentido de um atlas linguístico nacional [51-63]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Caminhos e Perspectivas para a Geolinguística no Brasil, realizado na Universidade Federal da Bahia, em novembro de 1996 e promovido pelo Grupo de pesquisadores em Dialetologia dessa Universidade, o qual contou com a participação de representativo número de pesquisadores da área no Brasil, entre eles a presença de autores de todos os atlas até então publicados e de representantes de atlas em andamento, e com a presença do Prof. Dr. Michel Contini, do Centre de Dialectologie de Grenoble, Diretor do Atlas Linguistique Roman e membro do Comitê Diretor do Atlas Linguarum Europae, dois dos principais atlas linguísticos em fase de publicação, na Europa.

O Projeto ALiB centra-se no estudo da língua portuguesa no Brasil cuja implantação, na América, data do século XVI, atingindo, assim, cinco séculos de uso. O curso do tempo, as mudanças sociais operadas na sociedade, o perfil dos contatos com outras línguas, a distribuição demográfica do País e a própria constituição dos núcleos populacionais, a natureza do desenvolvimento implantado e implementado, a estrutura social e o confronto cidade-campo, rural-urbano são aspectos da história do Brasil que têm ampla repercussão na língua aqui, majoritariamente, falada. Essa visão está na base do Projeto ALiB e a compreensão da significância de cada um desses aspectos fundamenta o reconhecimento e a definição dos problemas a serem abordados.

Um projeto voltado para a língua, especificamente a língua materna de um país, impõe-se, pela sua própria natureza, como um modo de serviço à Nação de onde advêm diferentes formas de contribuição, que pressupõem uma base preliminar. Esse pressuposto básico e fundamental consubstancia-se no entendimento de que a realidade de uma língua precisa ser descrita para tornar-se conhecida a fim de permitir a assimilação e a absorção das vantagens que tal fato possa propiciar. A consciência desse valor, que provém do conhecimento da realidade linguística, levou J. Grimm, o fundador da filologia germânica, a afirmar (apud POP, 1950, p. XXXI) que ‘Toute individualité doit être tenue pour sacrée, même dans le langage [...]”.2

2 “Toda individualidade deve ser reconhecida como sagrada, mesmo na linguagem”.

Page 58: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

58

Suzana Alice Marcelino Cardoso [51-63]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Nessa citação clássica de Grimm, dois aspectos tornam-se evi-dentes: o respeito às individualidades linguísticas, ou seja, à diversi-dade de que se reveste toda e qualquer língua, a que se acrescenta o entendimento de que todos os dialetos sejam preservados, porque cada um deles tem o seu valor.

Com essa compreensão, o estudo da realidade linguística do Bra-sil, no tocante à língua portuguesa, que se propõe realizar o Projeto ALiB impõe-se como contribuição social e pelo aporte que pode trazer ao processo de ensino-aprendizagem da língua portuguesa.

As relações dos estudos geolinguísticos com a sociedade usuária da língua descrita explicitam-se por meio de diferentes formas de con-tribuição, identificadas, com os objetivos do Projeto ALiB, como a pos-sibilidade de:

i. Permitir o conhecimento da realidade espacial do domínio do português, explicitando as diferenças e convergências que se registram no território nacional.

ii. Identificar áreas linguísticas e relacionar áreas dialetais a áreas socioculturais.

iii. Oferecer ao sistema organizado de ensino-aprendizagem da língua materna dados da realidade linguística que venham a contribuir para o aperfeiçoamento do ensino do português.

iv. Contribuir para o entendimento da variação linguística como fenômeno peculiar a toda e qualquer língua, de forma a elimi-nar preconceitos e discriminações sociais decorrentes de uma falsa interpretação da realidade da língua no país.

v. Mostrar como convivem diferenças e convergências, reconhe-cendo, porém, a validade da existência de um padrão culto necessário à comunicação oficial, à ministração do ensino, à efetivação do discurso formal e às opções de grupos de falantes.

vi. Fornecer elementos para a construção da história da língua portuguesa no Brasil, quer pela indicação dos caminhos

Page 59: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

59

O sentido de um atlas linguístico nacional [51-63]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

seguidos, quer pela natureza das opções de mudança feitas, quer pelo estabelecimento de camadas caracterizadas linguística, social e geograficamente, quer, ainda, pela referência a resultados de contato com outras línguas ou à adoção de empréstimos linguísticos.

vii. Permitir a atualização de dicionários da língua portuguesa.

viii. Contribuir para a construção de uma gramática voltada para a realidade do português brasileiro.

A essa contribuição de cunho social acrescenta-se uma potencial contribuição de natureza econômica que não se quantifica em moeda, mas que se fará sentir no curso da história. Assim, e a título de ilustração, a melhoria do ensino é um agente de progresso e um dos grandes responsáveis pela qualidade da produção e pelo aperfeiçoamento da mão-de-obra qualificada, e para atingir-se essa meta a contribuição dos estudos geolinguísticos é de fundamental valia.

Agrega-se, às razões apontadas, o caráter multi e interdisciplinar do Projeto Atlas Linguístico do Brasil, na sua essência um projeto linguístico, porque busca documentar, descrever e interpretar a realidade do português brasileiro e tem, exatamente por esse caráter, uma evidente interface com diferentes ramos do conhecimento organizado, decorrente do fato de que a história de uma língua é a história do próprio povo que a fala.

Esse caráter de que se reveste o Projeto ALiB tem duas evidentes implicações: por um lado, inspira e fundamenta a sua concepção na pluralidade do conhecimento; por outro, permite que, dos resultados que venha a oferecer, se beneficie amplo espectro das ciências na atualidade.

Com essa fundamentação, o Projeto ALiB oferece, pela própria natureza dos dados que se propõe reunir, uma ampla interface com outros ramos das ciências o que lhe assegura o caráter multi e interdisciplinar, como se procura, a seguir, ilustrar, ainda que não de forma exaustiva.

Page 60: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

60

Suzana Alice Marcelino Cardoso [51-63]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

No que concerne ao tipo de recolha previsto, os dados vão evidenciar diferentes formas de comportamento linguístico correlacionadas ao tipo de discurso. A postura linguística que assume o falante, a depender da natureza da sua elocução, oferece aos estudos no campo da psicologia e da sociologia vasto material de análise para o conhecimento do comportamento humano. As respostas não dadas e as restrições que muitas vezes ficam claras na fala dos informantes, bem como o recurso a metáforas e a circunlóquios, permitem reflexões no campo dos estudos culturais, em geral, que evidenciam tabus existentes, construídos no curso da história e motivados por impulsos diferenciados. O conjunto de dados que um atlas linguístico espelha, na sua amplitude maior, pode (i) mostrar coordenadas seguidas no povoamento do país, desfazendo dúvidas sobre roteiros de penetração ou oferecendo elementos comprobatórios de levas de povoamento fixadas nesses locais ou que por eles transitaram; (ii) assinalar o papel de acidentes geográficos na difusão de hábitos linguísticos — como se pode ver, examinando, por exemplo, o papel dos rios — ou no isolamento de fenômenos que se detêm por trás de montanhas ou incrustados em vales; (iii) fornecer elementos específicos para estudos pontuais como no campo da medicina, mostrando nomes de doenças, diagnósticos e curas que estão na sabedoria popular e que afloram em perguntas nessa direção, ou no campo da geologia, com a caracterização e denominações para tipos de terreno, por exemplo, ou ainda na forma de designar os elementos do mundo biossocial, vasto campo para os psicanalistas. Com a educação, é altamente significativa a relação do Projeto ALiB, cujos resultados propiciarão um melhor equacionamento do ensino-aprendizagem à realidade de cada região, uma vez que, descritas as peculiaridades de cada área e caracterizada a variedade de uso da língua ali dominante, pode-se construir um modelo de ensino do vernáculo mais eficaz.

A esses aspectos relacionados, com os quais não se pretendeu esgotar a indicação das possibilidades de interdisciplinaridade do projeto, mister se faz destacar o que advém de um atlas para os estudos linguísticos especificamente nos seus diferentes campos — semântica,

Page 61: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

61

O sentido de um atlas linguístico nacional [51-63]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

lexicologia, sintaxe, morfologia, fonética/fonologia, pragmática, discurso.

3.2 O sentido do Atlas Linguístico do Brasil para os estudos do português brasileiro

Nesse campo, dois aspectos merecem destaque: a contribuição para o conhecimento da realidade nacional no tocante à língua portuguesa e o fornecimento de dados que permitam uma divisão dialetal do Brasil com base em dados empíricos recolhidos in loco.

No tocante ao primeiro aspecto, o português do Brasil não possui, ainda, uma descrição geral que permita a intercomparação de dados entre as diversas regiões do país a partir de um levantamento único da realidade linguística em todo o território nacional. Há estudos esparsos, seja na perspectiva dialetológica, seja numa visão sociolinguística, mas todos eles circunscritos a áreas determinadas ou focalizando fenômeno específico, o que permite, sem dúvida, um estudo comparativo, mas numa micro visão. Projetos mais amplos, como o Projeto NURC - Projeto de Estudo Conjunto e Coordenado da Norma Linguística Culta no Brasil, que se ocupa de cinco capitais brasileiras (Recife, Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre), não chegam a se envolver com todo o território nacional, embora tenham a vantagem de aplicar a mesma metodologia em todos os pontos pesquisados. Temos, assim, uma efervescência de esforços na busca do conhecimento sistemático do português brasileiro, seja na linha da Dialetologia, com inúmeros trabalhos publicados e com teses e dissertações aprovadas, seja na linha da Sociolinguística que tem florescido vivamente em nossos centros de pesquisa. A macrovisão, um retrato global da realidade linguística no tocante ao português brasileiro inexiste. E isso se constitui em uma lacuna da qual precisamos nos desvencilhar.

3.4 Que lucros advêm de um atlas nacional?

O ALiB vem, assim, em boa hora, preencher esse vazio uma vez que busca, com a aplicação de uma metodologia homogeneamente utilizada, recolher dados de diferentes pontos e representativos de

Page 62: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

62

Suzana Alice Marcelino Cardoso [51-63]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

todas as regiões os quais, submetidos a análise, fornecerão, sem dúvida, um perfil da realidade do português aqui falado, abrindo caminhos para considerações as mais diversas sobre a sua formação, a variação que nele se registra, as mudanças que se operam de um sítio a outro, de um tipo de falante para outro, enfim, apontando coordenadas para a construção da sua sócio-história e para a interpretação das diferenciadas bases que interferiram na sua conformação.

O percorrer desse caminho levará, sem dúvida, a atingir um aspecto relevante da sua atualidade: fornecer elementos para uma divisão dialetal do Brasil, fundada em dados empíricos.

Sabemos, todos, que temos apenas uma única divisão dialetal do Brasil, feita com base em fatos linguísticos: a divisão de Nascentes (1953). Trabalho magnífico, se considerarmos as circunstâncias e o momento de sua execução, mas a divisão necessita, passados mais de cinquenta anos, ser retomada, a partir de dados coletados in loco, para que se verifiquem as transformações sócio-históricas havidas e as consequências delas advindas para o comportamento linguístico da população de cada área, e com isso apurar-se a atualidade dessa divisão ou detectarmos outros limites que, certamente, encontrarão justificativa nas transformações sociais, políticas e econômicas ditadas pelo curso da história. E essa contribuição, sem dúvida, será dada pelo atlas do Brasil, uma vez que a rede de pontos estabelecida o foi pensando-se, também, na investigação de limites dialetais e na investigação das diferenças que possam gerar os limites de área geograficamente identificada.

Para concluir

Nesta apresentação do Projeto ALiB imperou a preocupação de, respondendo à questão inicialmente levantada, apresentar as linhas gerais do Projeto, a sua contribuição para a constituição da sócio-história do português brasileiro e o lugar que ocupa nos estudos linguísticos brasileiros.

ReferênciasAGUILERA, Vanderci de Andrade. Atlas Lingüístico do Paraná. Curitiba: Imprensa Oficial do Estado, 1994. 2 v.

Page 63: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

63

O sentido de um atlas linguístico nacional [51-63]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

ARAGÃO, Maria do Socorro; MENEZES, Cleuza. .Atlas Lingüístico da Paraíba. Brasília: UFPB/CNPq, Coordenação Editorial, 1984.

Atlas Linguarum Europae (ALE). Assen-Maastricht: Van Gorcum, 1983-1990. v. 1-4. Roma: Istituto Poligrafico e Zecca dello Stato, 1998. v. 5.

Atlas Lingüístico Diatópico y Diastrático del Uruguay (ADDU). Dirigido por THUN, Harald; ELIZAINCÍN, Adolfo. Fasc. A.1. Kiel: Westensee, 2000.

Atlas Linguistique Roman (ALiR). Roma: Istituto Poligrafico e Zecca dello Stato; Libreria dello Stato, 1996. v. 1, 1996, v. 2, 2002.

BRASIL. Decreto n.° 30.643, de 20 de março de 1952. Institui o Centro de Pesquisas da Casa de Rui Barbosa e dispõe sobre seu funcionamento.

CARDOSO, Suzana Alice Marcelino. Atlas Lingüístico de Sergipe-II. Salvador: EDUFBA, 2005.

FERREIRA, Carlota; FREITAS, Judith; MOTA, Jacyra; ANDRADE, Nadja; CARDOSO, Suzana; ROLLEMBERG, Vera; ROSSI, Nelson. Atlas Lingüístico de Sergipe. Salvador: Universidade Federal da Bahia; Fundação Estadual de Cultura de Sergipe, 1987.

GILLIÉRON, Jules; EDMONT, Edmond. Atlas Linguistique de la France. 35 fasc. Paris: Honoré Champion, 1902-1910.

KOCH, Walter; KLASSMANN, Mário; ALTENHOFEN, Cléo. Atlas Lingüístico-Etnográfico da região Sul do Brasil. V. I e II. Porto Alegre/Florianópolis/Curitiba: Editora da UFRGS/Editora da EFSC/Editora da UFPR, 2002.

NASCENTES, Antenor. O linguajar carioca. 2. ed. Rio de Janeiro: Organização Simões, 1953.

OLIVEIRA, Dercir Pedro (org.). Atlas Lingüístico de Mato Grosso do Sul. Campo Grande: Ed. UFMS, 2007.

POP, Sever. La dialectologie. Aperçu historique et méthodes d’enquêtes linguistiques, I-II. Louvain: Chez l’ Auteur-Gembloux, Ducolot, 1950.

RAZKY, Abdelhak. Atlas Lingüístico Sonoro do Pará. Belém: CAPES/UFPAUTM (Robert Gauthier), 2004. CD. ISBN 85904127-1-7.

RIBEIRO, José; ZÁGARI, Mário Roberto Lobuglio; PASSINI, José; GAIO. Antônio Pereira. Esboço de um Atlas Lingüístico de Minas Gerais. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura; Casa de Rui Barbosa; Universidade Federal de Juiz de Fora, 1977.

ROSSI, Nelson; FERREIRA, Carlota; ISENSEE, Dinah. Atlas Prévio dos Falares Baianos. Rio de Janeiro, Ministério de Educação e Cultura - Instituto Nacional do Livro, 1963.

Page 64: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido
Page 65: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

65Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Resumo: Este artigo, que versa sobre nomes de lugares que tiveram como motivação grupos indígenas, apresenta resultados parciais do Projeto ATEMIG – Atlas Toponímico do Estado de Minas Gerais – variante regional do ATB – Atlas Toponímico do Brasil, e funda-se na compreensão de que o topônimo, a par do seu papel sígnico, evidencia comportamentos extintos, resgata memórias de um povo e de uma cultura.

Palavras-chave: Toponímia. Grupos indígenas. Minas Gerais.

Abstract: This paper aims to broach place names of indigenous background, and highlights partial results of the Projeto ATEMIG – Project Toponimic Atlas of the State of Minas Gerais – regional variant of the ATB - Toponimic Atlas of Brazil, and is based on the understanding that a toponym, aware of his/her signic role, evidences extinct behaviors, salvages memories of peoples and cultures.

Keywords: Toponimy. Indigenous groups. Minas Gerais.

Etnotoponímia em Minas GeraisEthnotoponymy in Minas Gerais

Maria Vicentina de Paula do Amaral Dick Programa de Pós-graduação em Linguística

Universidade de São [email protected]

Maria Cândida Trindade Costa de Seabra Faculdade de Letras

Universidade Federal de Minas [email protected]

Page 66: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

66

Maria Vicentina do Amaral Dick / Maria Cândida Costa de Seabra [65-74]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

O vocábulo etnia costuma ser definido pelos lexicógrafos contemporâneos como termo da antropologia, embora saibamos não se tratar de um termo exclusivo dessa área, mas de toda ciência que se utiliza da história, das religiões e, principalmente, da sociologia. Na definição de Houaiss (2001), etnia refere-se à “coletividade de indivíduos que se diferencia por sua especificidade sociocultural, refletida, principalmente na língua, religião e maneiras de agir; grupo étnico”. Esse lexicógrafo acrescenta, ainda, que, para alguns autores, o termo “etnia pressupõe uma base biológica, podendo ser definido por uma raça, uma cultura ou ambas”, por isso, complementa, “o termo é evitado por parte da antropologia atual, por não haver recebido conceituação precisa”.

Em sua definição, Houaiss não menciona “região”, muito embora a questão da localização espacial deva, também, ser levada em conta para a definição de etnia, conforme aponta Dick (2008, p.177):

O entendimento significativo do termo etnia, ou o seu próprio conceito definidor, passa, antes pelo crivo de vários fatores intricados entre si, como localização espacial do grupo em questão, situação sociológica interna, tipologia das sociedades, práticas culturais características dos contatos, por exemplo. Além disso, posicionou-se, também, como dado fenomenológico a exigir atenção analítica, o próprio corpus linguístico utilizado no extrato comunicativo dos vários patamares da escala social (função diafásica da linguagem). Essa forma de expressão típica do local, do grupo étnico ou, mesmo, de indivíduos isolados (idioletos), insere-se nos chamados níveis sociolinguísticos de manifestação da linguagem propriamente dita, tanto do ponto de vista fonológico, como da realização sintagmático-semântica.

Derivado do grego éthnos, cujo significado é “raça, povo”, etnia era uma palavra usada na antiguidade, geralmente, como referência aos estrangeiros, aos povos não gregos. Podemos dizer que resulta daí a dificuldade em definir a palavra, pois, para a mesma, não existe uma explicação conceitual – etnia não é um conceito fixo, podendo mudar com o passar do tempo – é um termo que ainda vem sendo cunhado, principalmente, por historiadores, sociólogos e antropólogos.

Page 67: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

67

Etnotoponímia em Minas Gerais [65-74]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Dentre eles podemos citar alguns estudiosos com trabalhos de grande expressividade: Weber (1993), Fenton (1999), Barth (1976), entre outros. Esse último trata, ainda, de etnicidade.

Termo da antropologia, oriundo da década de 60, etnicidade é definido por Fredrk Barth (apud VILLAR, 2004) como a maneira que os grupos se organizam na esfera social, ou seja, é a identificação que se faz nos múltiplos contatos, o que resulta em ações de interação. Villar (2004) comenta sobre a obra de Barth e sua discussão para o entendimento dos grupos étnicos, mas chama a atenção para o fato de que “não podemos aceitar sem mais a ideia de um ator que ‘opta’ ou ‘escolhe’ em cada contexto uma identidade étnica, para abandoná-la tão logo lhe resulte inconveniente”.

Apoiando-se em Barthes (1971), Dick (2008, p. 179), visando à realização de trabalhos onomásticos, mais especificamente, estudos toponímicos, apreende o sentido de etnia e etnicidade, “começando por definir grupo como um conjunto de pessoas participantes de um sentido étnico, que possuem o entendimento comum ou próximo àquele geral ou dominante nas categorias envolvidas”, pois só assim, segundo essa autora, pode-se chegar a entender os valores que conformam esses conceitos (etnia e etnicidade), conceitos esses fundamentais quando se pretende fazer um estudo etnotoponímico.

1. Famílias linguísticas em território brasileiro

Antes da chegada de Colombo, as línguas autóctones das Américas encontravam-se disseminadas por todo o continente e eram bastante numerosas. Algumas sobreviveram à chegada dos europeus, mas muitas desapareceram. No vasto território em que se localiza a América do Sul, calcula-se que haja cerca de 600 línguas distintas e só no Brasil perto de 250. O mapa que mostramos, a seguir, dá uma visão das famílias linguísticas da América do Sul.

Page 68: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

68

Maria Vicentina do Amaral Dick / Maria Cândida Costa de Seabra [65-74]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Mapa 1: Famílias linguísticas da América do Sul1

Conforme podemos ver, dois foram os troncos linguísticos predominantes no Brasil: tupi e macro-gê. O primeiro, através das bandeiras que penetraram todo o interior do Brasil, foi-se espalhando, posteriormente, por áreas diversas do território nacional. Já o segundo, em convivência menos “pacífica” com o homem europeu, ficou, em decorrência desse fato, menos conhecido, portanto, menos estudado.

1 Conrie (2001, p. 135).

Page 69: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

69

Etnotoponímia em Minas Gerais [65-74]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

2. Grupos étnicos em Minas Gerais

Como em vários estados brasileiros, em Minas Gerais, houve, desde épocas anteriores ao desbravamento do País, agrupamentos indígenas diversos, mas poucos resquícios ficaram desses povos pré-cabralinos. Torna-se, portanto, dificultoso, reconstituir o que foi social, política e etnologicamente o passado desse território. Sabe-se, porém, com certeza, que as tribos ameríndias que povoaram Minas Gerais pertenciam com raras exceções ao grupo gê ou tapuia. José (1965, p. 14-A) dá-nos orientação de suas localizações (ver Mapa 2):

Mapa 2: Povos indígenas em Minas Gerais

Dentre esses grupos, distribuídos por Oiliam José (1965), interessa-nos, para este estudo, observar as etnias indígenas que permaneceram como topônimos em Minas Gerais, nomeando municípios, povoados, serras e rios desse Estado.

• AbAetés – Nome dado aos índios que habitavam a região onde hoje se localiza o município de Abaeté e, também, na parte

Page 70: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

70

Maria Vicentina do Amaral Dick / Maria Cândida Costa de Seabra [65-74]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

alta da Bacia do São Francisco, hoje representada por diversos municípios. Os abaetés foram dizimados em fins do século XVIII. De acordo com Senna (1926, p. 337), o verdadeiro nome desse grupo é “abaité (alcunha tupi, decomposta em aba-ité, com a significação de gente feia, horrenda, de aspecto repulsivo). A outra etymologia abá-été, “homem abalizado”, não se aplica a este gentio”. Abaetés > Abaeté.

• AbAtipós – Grupo indígena que habitava a região onde hoje se situam os municípios de Matipó, Abre Campo. “Sua alcunha tupi abá-ti-pó mostra que esse gentio tinha certo mal de pelle toda ‘pampa’ ou cheia de manchas esbranquiçadas, nas mãos e pés” (SENNA, 1926, p. 337). Abatipós > Matipó.

• Aimorés – Indígenas de origem tapuia. Segundo José (1965, p. 14), “formavam diversas tribos e moravam, inicialmente, nos limites dos atuais Estados da Bahia, Espírito Santo e Minas Gerais. Premidos pelos bandeirantes e outros devassadores, desde o século XVI ao início do século XVIII, emigraram defensivamente para leste ou sudeste, indo fixar-se nas cordilheiras componentes da Serra dos Aimorés, nas divisas com o Espírito Santo”. Conforme Senna (1926, p. 338), os colonos portugueses costumavam chamar os aimorés, também, de amorés, aimbirés, aimborés, amborés e ambarés. “Em tupi, a expressão amo-ré designa a ‘gente diversa’, isto é, de sangue, raça e costumes differentes da nação Tupi”. Essa tribo nomeia, hoje, o município de Aimorés.

• ArAxás – Esse grupo indígena foi muito perseguido pela bandeira de Lourenço Castanho Taques, extinguindo-se desde então. Habitaram o Oeste de Minas, dominando vasta área até o Triângulo Mineiro. É nome de município mineiro: Araxá < Araxás.

• CArijós – Esses índios viveram onde hoje se localiza o município de Conselheiro Lafaiete. Segundo José (1965, p. 19), “provieram da nação carijó, que os desbravadores, no

Page 71: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

71

Etnotoponímia em Minas Gerais [65-74]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

século XVI, fizeram sair da Guanabara e refugiar-se no interior, até alcançar e transpor a Mantiqueira”. De acordo com Senna (1926, p. 341), “além de designar, genericamente, os escravos indígenas que tomavam parte nas expedições de descoberta e conquista de Minas, o nome Carijós foi conservado, outrora, no antigo ‘Arraial dos Carijós’, hoje cidade mineira de Queluz – região essa até onde chegaram os restos de tribus da grande nação Carijó, expulsa do Rio de Janeiro pelos portuguezes, no século XVI”. Arraial dos Carijós > Campo Alegre dos Carijós > Villa de Queluz > Conselheiro Lafaiete.

• CAtAguás – Viveram no centro, a oeste e no Sul de Minas até o século XVIII, subdividindo-se em diversas tribos. De acordo com José (1965, p. 20), “a enorme extensão de seus domínios em solo mineiro, até o início do século XVIII, fazia com que nosso território se chamasse de início, Campos Gerais dos Goitacases e, depois, Minas Gerais dos Goitacases”. Senna (1926, p. 341) diz ter sido essa “nação” completamente abatida pela bandeira de Lourenço Castanho, o “Velho”. Hoje, cataguás dá nome à cidade mineira de Cataguases.

• Chonins – Viviam no aldeamento de Dom Manuel, às margens do Rio Doce, até as primeiras décadas do século XIX. Chonim é, hoje, nome de distrito pertencente à cidade mineira de Governador Valadares. Nomeia, também, córrego.

• guAnAãs – Constitui uma das tribos dos “botocudos”, “do antigo aldeamento de Dom Manoel, perto da Figueira do Rio Doce, e o seu nome ficou conservado no districto, povoado e ribeirão do Chonin” (SENNA, 1926, p. 341). Segundo José (1965, p. 28), esses índios “habitavam em solo banhado pelos Rios Guanhães, Correntes e Santo Antônio, até o início do século XIX, quando se extinguiram, deixando, porém, fundas influências na mentalidade das populações locais. Guanaã, em tupi, significa andarilho,

Page 72: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

72

Maria Vicentina do Amaral Dick / Maria Cândida Costa de Seabra [65-74]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

corredor”. Guanhães é, hoje, nome de município da Região do Rio Doce.

• mutuns – Poucos numerosos, extinguiram-se ao findar do século XVIII. Segundo Senna (1926, p. 349), esse grupo vivia “a Léste, no Valle do rio Mutum, entre Minas e Espirito Santo, e inimigos dos Crakmuns e Guicraks da mesma região do Rio Doce”. Mutuns > Mutum deu origem ao topônimo Mutum, município mineiro.

• nACnenuques – Botocudos que dominavam desde a região onde se situa o município mineiro de Teófilo Otoni até o município de Caravelas na Bahia. De acordo com José (1965, p. 31), o nome nacnenuque significa morador das serras. Em Senna (1926, p. 349), encontramos outras informações: “o gentio nak-nanuk ou nenuk dominou uma parte do Valle do Rio Doce até a primeira metade do século dezenove, da barra do Piracicaba ao Cuyeté. Era tribu numerosa e com a qual Guido Marlière se poz em relações, para chamal-a ao grêmio da gente civilizada, naquella época. Veja-se a predominância do thema Nack ou Nak, nos nomes dessas hordas de bugres: naknanuk, nakná, Crenak, Nakrehê, nak-nak”. Nanuque se perpetua como nome de município mineiro.

• xopotós – Conforme José (1965, p. 37), “alguns agrupamentos botocudos subiram o Rio Doce até suas cabeceiras e, em terras vizinhas”. Extinguiram-se no século XVIII. Senna (1926, p. 353) enaltece a coragem desse povo: “valente gentio que deo nome ao rio ora denominado Chopotó, nos altos valles mineiros do Rio Doce”. Segundo Seabra (2004, p. 301), Xopotó dá nome a povoado e fazenda no município mineiro de Ponte Nova.

Podemos inferir que a onomástica diz muito da origem dos habitantes que outrora habitaram uma determinada região. A análise da documentação cartográfica – Mapa 2 – publicada por José (1965,

Page 73: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

73

Etnotoponímia em Minas Gerais [65-74]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

p. 14 – A) bem mostra um grande paralelismo entre as áreas étnicas apontadas por esse estudioso e a etnotoponímia mineira de motivação indígena, destacada no Mapa 3, que apresentamos a seguir:

Mapa 3: Etnotoponímia mineira de motivação indígenaLegenda1-Abaeté 2-Aimorés 3-Araxá 4-Chonim 5-Cataguases 6-Carijós7-Guanhães 8-Matipó 9-Mutum 10-Nanuque 11-Xopotó

Olhares atentos de linguistas aos nomes dos municípios de Minas Gerais fazem com que se reconheçam algumas áreas que indicam como pode a denominação geográfica revelar a região já ocupada por determinado tipo étnico.

Temos muito a descobrir sobre esses povos. Os dados aqui apresentados são, ainda, parciais, mas revelam como pode ser surpreendente um estudo sobre a etnotoponímia. Por meio do Projeto ATEMIG – Atlas Toponímico do Estado de Minas Gerais, variante regional do ATB – Atlas Toponímico do Brasil, vamos desenvolvendo nosso trabalho.

Page 74: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

74

Maria Vicentina do Amaral Dick / Maria Cândida Costa de Seabra [65-74]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Referências

BARTH, Fredrik (org.). Los grupos étnicos y sus fronteras. México: Fondo de Cultura Económica, 1976.

BARTHES, Roland. Elementos de Semiologia. São Paulo: Cultrix, 1971.

CONRIE, Bernard; MATTHEWS, Stephen; POLINSKY, Maria. O Atlas das Línguas. Lisboa: Editorial Estampa, 2001.

DICK, Maria Vicentina de Paula do Amaral. Etnia e Etnicidade. Um outro modo de nomear. In: ISQUERDO, Aparecida Negri; FINATTO, Maria José Bocorny (Orgs.). As ciências do léxico. Lexicologia, Lexicografia e Terminologia. Vol. IV. Campo Grande, MS: Editora UFMS, 2008, p. 177-197.

FENTON, Steve. Ethnicity, racism, class and culture. London: MacMillan, 1999.

HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro; FRANCO, Francisco Manuel de Melo. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

JOSÉ, Oiliam. Indígenas de Minas Gerais: aspectos sociais, políticos e etnológicos. Belo Horizonte: Edições Movimento Perspectiva, 1965.

SEABRA, Maria Cândida Trindade Costa de. A formação e a fixação da língua portuguesa em Minas Gerais: a toponímia da região do Carmo. Belo horizonte: FALE/UFMG, 2004. Tese de Doutorado, inédita.

SENNA, Nelson de. Nótulas sobre a toponímia geográfica brasílico-indígena em Minas Gerais. Revista do Arquivo Público Mineiro, v.20, 1926.

VILLAR, Diego. Uma abordagem crítica do conceito de etnicidade na obra de Fredrik Barth. Revista Mana. V. 10 n.1. Rio de Janeiro: 2004

WEBER, Max. Ensayos sobre metodología sociológica. Amorrortu, Buenos Aires, 1993.

Page 75: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

75Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Resumo: A monotongação, processo quase que categórico no PB, não implica atitude negativa por parte do ouvinte, e vale observar que o tratamento dado pela escola à existência desse fenômeno parece não ser motivo para um registro especial em seus ensinamentos. O apagamento do glide em ditongos decrescentes do tipo [ej] (f[ej]ra > f[e]ra), [aj] (c[aj]xa > c[a]xa), [ow] ([ow]ro > [o]ro), [wa] (guarda > garda), tem sido atestado em diferentes falares. Utilizamos como corpus 177 redações que fazem parte do acervo do Laboratório de Aquisição da Fala e da escrita –– LAFE –– recolhida pelos bolsistas participantes deste projeto, durante o período do mês de maio de 2006. As redações foram analisadas uma a uma e a partir daí recolhemos todos os dados necessários para a elaboração da pesquisa. Neste trabalho, constatamos que se pode encontrar na escrita, principalmente quando se refere a alunos em processo de aprendizagem, resquícios da fala. E a monotongação de ditongos, por ser, como já foi dito, categórico na fala, não poderia deixar de ser encontrado em textos escritos.

Palavras-chave: Sociolinguística. Monotongação. Sílaba.

O processo de monotongação: uma realidade em textos escolares do ensino fundamentalThe process of monophthongization: a reality in the basic school textbooks

Dermeval da Hora Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas

Universidade Federal da Paraí[email protected]

Greiciane Pereira Mendonça Universidade Federal da Paraíba

[email protected]

Page 76: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

76

Demerval da Hora / Greiciane Pereira Mendonça [75-83]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Abstract: The monothongation, an almost crucial process in Brazilian Portuguese, does not imply a negative attitude on the part of the listener, and is worth noting that the treatment given by schooling to the existence of this phenomenon seems to be of no reason for a particular record in its teachings. The deletion of the glide in falling diphthongs like [j] (f [ej] ra> f [e] ra), [j] (c [aj] x> c [a] x), [ow] ([ ow] ro> [o] ro), has been certified in different speeches. 177 compositions, which are part of the Laboratory of Speaking and Writing Acquisition – LAFE - collected by the participants in this project during the month of May 2006, were used as the corpus. These compositions were analyzed one by one, so that all the necessary data could be collected in order to perform the research. In this work, we see that it is possible to find in writing, especially when referring to students in the learning process, much of the speaking. Although monothongation of diphthong is a special feature of the speaking, it may be found, nonetheless, in written texts.

Keywords: Sociolinguistics. Monothongation. Syllable.

Introdução

O Projeto Variação Linguística no Estado da Paraíba (VALPB), iniciado em 1993, registra em seu Corpus a realidade linguística da comunidade de João Pessoa e mostra o perfil linguístico, em nível fonético-fonológico e gramatical, dos seus falantes. Dentre os seus objetivos, observa fatores estruturais e sociais que interferem no uso da língua, visando a subsidiar o ensino da língua portuguesa em todos os níveis.

Nossa pesquisa se fundamenta na Teoria da Variação, proposta por Labov na década de 60, com o objetivo de descrever a língua e seus determinantes sociais e linguísticos, levando em conta seu uso variável. Esse modelo teórico-metodológico busca evidências na relação intrínseca existente entre língua e sociedade, utilizando-se de modelos matemáticos e admitindo a heterogeneidade linguística dos falantes como passível de sistematização. Assim, observa-se qual elemento, social e/ou linguístico, influencia no contexto onde se configura a realização de cada variante.

Page 77: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

77

O processo de monotongação [75-83]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Utilizando como corpus textos de escolares do ensino básico, armazenados no Projeto de Aquisição da Fala e Escrita – LAFE – e com base nos pressupostos da sociolinguística variacionista, à luz de Winreinch, Labov (1994; 2001), Herzog (1968), a sistematização dos dados permitiu que discutíssemos o processo de monotongação de ditongos orais, contando com a análise quantitativa baseada no pacote de programas VARBRUL (PINTZUK,1998; 1989).

As redações foram reunidas após atividades propostas e planejadas pelas próprias professoras das escolas, com tema já previsto para o mês de maio. As redações que os alunos produziram tinham por tema o Dia das Mães, significando que todos escreveram mensagens e declarações para suas mães.

Após recolher as redações escolares, cada texto foi analisado com o objetivo de verificar grafias que reproduzissem a língua falada, ou seja, com a redução dos glides, [j] e [w]. Essa representação gráfica nos dá suporte empírico para determinar se a fala influenciaria o processo de aprendizagem desses alunos, quando se trata de apagamento desses elementos.

1. Sobre a sílaba e o ditongo

Basicamente, há duas teorias sobre a sílaba, uma Autossegmental, formulada por Kahn, indica que cada sílaba (σ) é composta de camadas independentes entre si, como em 1.

(1)

A teoria métrica da sílaba, na qual se baseou esta pesquisa, que afirma que a sílaba é composta por 4 elementos: A (Ataque), R (Rima), Nu (Núcleo) e Co (Coda). Destes elementos o único que não pode

Page 78: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

78

Demerval da Hora / Greiciane Pereira Mendonça [75-83]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

aparecer nulo é o Núcleo, já que a vogal é componente que dá a força à sílaba, quer dizer, é o ápice de sonoridade, como representado em (2):

(2)

O sistema ortográfico da língua portuguesa reconhece como

ditongo decrescente encontros de uma vogal mais uma semivogal.

2. A monotongação

Dos vários fenômenos linguísticos que se encontram em variação no Português do Brasil, interessa-nos o apagamento do glide em ditongos orais decrescentes a exemplo de — ba[j]xo – “baxo”, pe[j]xe – “pexe”, co[w]ro – “coro”, caracterizando o processo de monotongação, conhecido como a redução do ditongo a uma vogal simples, o monotongo.

Essa tendência a reduzir o ditongo a uma vogal simples já se dava desde o latim vulgar. O enfraquecimento do segundo elemento se deu nas línguas derivadas, passando a ditongos breves ou a simples vogais (no caso da queda do segundo elemento).

Os ditongos latinos eram quatro: [ae], [oe], [aw] e [ew]. Os dois primeiros reduziram-se ainda na língua clássica a [é] e [ê] , respectivamente, como nos casos do tipo: caelebes => celebes; saeta => seta. O ditongo [aw] passou a [o], [ow] e ainda a [a]. Já o ditongo [ow], o mais raro na língua latina, foi reduzido à vogal [o].

A monotongação é um processo em que, numa sílaba, a Coda Silábica, que comporta uma dos glides [w] ou [j], reduz-se, restando, apenas, a vogal pertencente ao núcleo desta sílaba.

Page 79: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

79

O processo de monotongação [75-83]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

3. A monotongação e os textos de escolares No processo de aprendizagem da escrita pelas crianças, podemos

encontrar traços da fala no momento da produção textual, já que, nesse momento, a criança ainda não tem consciência de que há uma diferença entre a fala e a escrita. Essa tomada de consciência somente ocorrerá ao longo de sua vida escolar, a partir das exposições feitas pelos professores.

Algumas palavras que, normalmente, na fala, implicariam a ocorrência de monotongação, como aldeia à [awdea], trigueiro à [trigero], monteiro à [montero], foram grafadas de forma “correta”. Acreditamos que essas palavras não sofreram interferência da fala, pelo fato de se tratarem dos nomes das escolas em que os alunos estudam e, por estarem acostumados a copiarem do quadro como cabeçalho, não haveria a possibilidade de redução desses ditongos.

Após o levantamento dos dados, encontramos 155 casos em que poderia haver a possibilidade de apagamento dos glides [w] e [j]. Dentre esses casos, percebemos que 41 palavras foram escritas como são faladas, correndo, assim, a monotongação (“bejo”, “baxa”, “poço”).

74%

26%

MonotongaçãoNão-monotongação

Gráfico 1 - Dados da monotongação

De acordo com o Gráfico 1, percebemos que, dentre as possibilidades de monotongação, 26% dos dados favoreceram a redução. Esse percentual, obviamente, varia de acordo com o contexto.

Um dado nos chamou a atenção. As palavras respeitar e remédio foram escritas de forma bastante peculiar. A palavra respeitar apareceu

Page 80: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

80

Demerval da Hora / Greiciane Pereira Mendonça [75-83]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

4 vezes, vale salientar, em redações de diferentes alunos, com o ditongo reduzido [ej], respeitar à /respetar/, fato que não é verificado na fala. Quanto à palavra remédio, ocorreu não a redução, mas sim a mudança de lugar do glide [j] dentro da palavra. O glide [j] passou da última sílaba para a penúltima sílaba, processo conhecido como Metátese, fenômeno observado já na passagem do Latim para as língua românicas –– Português, Francês, Espanhol etc., como em (3):

(3)

Dentre os tipos de consoantes que seguem os ditongos, comparamos as ocorrências entre as seguintes: alveolar [r, t, d] e palatal [ , S, Z ]. De acordo com os dados, o processo de monotongação é mais produtivo quando o contexto fonológico seguinte é uma consoante alveolar, de 44 ocorrências de ditongo nesse contexto, 17 foram reduzidos à vogal simples. Já com consoantes palatais, de 33 palavras, 9 apresentam ditongos reduzidos.

Consoante alveolar Consoante palatal

Monotongação Não-monotongação

17

28

9

23

0

5

10

15

20

25

30

Consoante Alveolar Consoante PalatalMonotongação Não Monotongação

Gráfico 2 - Oposição entre as consoantes alveolar e palatal

Analisamos, individualmente, cada ditongo. Confirmando, vários estudos a respeito deste tema, verificamos que a monotongação do ditongo decrescente, especificamente /ej/, é mais produtiva quando o

Page 81: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

81

O processo de monotongação [75-83]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

segmento seguinte é uma consoante alveolar – brigad[ej]ro – do que quando palatal – b[ej]jô.

Consoante alveolarVogal Consoante palatal

Monotongação Não-monotongação

013 10 4

5

22

0

5

10

15

20

25

Vogal Consoante Alveolar Consoante palatal

Monotongação Não-Monotongação

Gráfico 3 - Monotongação de ditongo [ej]

Quando se trata do ditongo [ow], constatamos que não houve monotongação se fossem seguidos de vogal, formando tritongos, ou de consoante palatal. Mas, encontramos palavras em que os ditongos foram reduzidos quando seguidos de uma consoante alveolar; neste caso, de forma categórica, todas as crianças apagaram o glides [w] nesse contexto. Se analisarmos, proporcionalmente, os ditongos [ow] reduzem-se a [o] com maior frequência na escrita desses alunos, principalmente, quando aparecem em posição final de palavra, fato que ocorre com a mesma frequência na fala, como em (4):

(4)

Vou à /voO/Pouco à /poOko/

O Grafico 4 apresenta a oposição entre a monotongação e a não-monotongação, quando a consoante seguinte é uma alveolar e quando as duas vogais estão em final de palavra.

Page 82: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

82

Demerval da Hora / Greiciane Pereira Mendonça [75-83]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Consoante alveolar Final

Monotongação Não-monotongação

4 29

28

0

5

10

15

20

25

30

Consoantes Alveolar Final

Monotongação Não-monotongaçãoGráfico 4 - Oposição entre monotongação e não-monotongação

O que podemos observar é que a não-monotongação é sempre mais favorecida pela posição final.

Considerações finais

Através da análise dos dados obtidos não podemos constatar que o contexto fonológico seguinte ao ditongo decrescente, sendo uma consoante palatal, ao contrário do que ocorre com a fala, propicia o apagamento do glide, com mais frequência. Esse fato impede que confirmemos alguns estudos feitos a esse respeito, no que se refere à escrita infantil. Constatamos, também, que como fala, o ditongo crescente [ow] tem maior probabilidade de redução em posição final, que qualquer outro ditongo.

Portanto, após analisarmos todos os dados, confirmamos a hipótese de que, na escrita de crianças em processo de aprendizagem, há influência da fala, considerando que, no início deste processo, o aprendiz ainda tem a concepção de escrita como um reflexo da fala. Porém, no decorrer de suas experiências escolares, passarão a ser “corrigidos” pelos professores e, então, internalizarão as regras da escrita, mesmo sem que realmente saibam o porquê.

Page 83: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

83

O processo de monotongação [75-83]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Referências

BISOL, Leda (Org.). Introdução a Estudos de Fonologia do Português Brasileiro. 3. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001. v. 1. 254 p

BATTISTI, Elisa.VIEIRA, Maria Jose B. O sistema vocálico do português. In: __________. Introdução a estudos de fonologia do português brasileiro. 3 ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001. p. 159.

COLLISCHONN, Gisela. A sílaba em português In: ______. Introdução a estudos de fonologia do português brasileiro. 3 ed. Porto Alegre: Edipucrs, 2001. p. 91.

HORA, Dermeval da. Estudos Sociolinguisticos: perfil de uma comunidade. Santa Maria: Gráfica e Editora Pallotti. 2004, p. 13-28.

LABOV, William. Principles of linguistic change: internal factors. Oxford: Blackwell, 2001.

________. Principle of Linguistic Change: Social Factors. Vol 1. Oxford: Blackwell Publishers, 2001.

________. Principles of linguistic change: internal factors. Oxford Blackwell, 1994.

________., SMOLENSKY, Paul. Optimality theory: constraint interaction in generative grammar, 1996.

PEREIRA, Gerusa. Monotongaçao. Dos Ditongos /aj/, /ej/, /ow/ No Português falado de Tubarão (SC): um estudo de Caso. 2004. Dissertação de Mestrado. Tubarão - Santa Catarina

PRINCE, Alan, McCARTHY, John. Prosodic morphology I: constraint interaction and satisfaction, 1993.

SILVA, Fabiana de Souza. O processo de monotongação em João Pessoa. In: HORA, Dermeval da (org.). Estudos Sociolinguísticos: perfil de uma comunidade. Gráfica Ed. Palloti: João Pessoa, 2004, p. 35-49.

SIMÕES, Darcilia. Fonologia em nova chave: considerações metodológicas sobre a fala e a escrita. Rio de Janeiro: H. P. Comunicação, 2003. v. 1. 150 p.

WEINRICH, Uriel; LABOV, William; HERZOG, Marvin. Empirical foundations for a theory of languagem change. In: LEHMANN, Winfred; MALKIEL,Yakov. (eds). Directions for historical linguistics. Austin: University of Texas Press, 1968, p. 95-188.

Page 84: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido
Page 85: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

85Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Resumo: Este trabalho focaliza a categoria de topônimos relacionada à corotoponímia e, a partir da análise dos nomes de lugares dessa natureza, cadastrados no Banco de Dados do ATEMS (Atlas Toponímico do Estado de Mato Grosso do Sul) e de topônimios estudados por Souza (2006), discute o estatuto de topônimos classificados como corotopônimos (DICK, 1992), apontando dificuldades enfrentadas pelos estudiosos da toponímia, não só na busca da motivação para a escolha de corotopônimos para nomeação de um espaço geográfico, como também a importância de serem consideradas peculiaridades extralinguísticas na elucidação desse mecanismo de nomeação.

Palavras-chaves: Toponímia. Mato Grosso do Sul. Corotopônimos.

Corotopônimos na toponímia sul-mato-grossense: reflexões teórico-metodológicasCorotoponyms in toponymy of mato grosso do sul: theoretical and methodological reflections

Aparecida Negri Isquerdo Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens

Universidade Federal de Mato Grosso do SulPrograma de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem

Universidade Estadual de [email protected]

Carla Regina de Souza Figueiredo Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul / Campo Grande

[email protected]

Page 86: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

86

Aparecida Negri Isquerdo / Carla Regina de Souza Figueiredo [85-106]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Abstract: This paper aims corotoponyms, and through the analysis of this kind of places names registered in ATEMS database (Toponymic Atlas of Mato Grosso do Sul Brazilian State) besides studies of Souza (2006), it discuss toponyms classified as corotoponyms (DICK, 1992), pointing faced difficulties by toponymic researches, not only by the search for choice motivation of these toponyms to name geographic spaces, but also showing the importance to consider extralinguistics particularities on this naming mechanism1.

Keywords: Toponymy. Mato Grosso do Sul. Corotoponyms.

Introdução

Desde a criação do mundo, segundo o livro do Gênesis (I, 1-31), a palavra tende a constituir uma realidade dotada de poder em que o referente que ela nomeia a assume não só como um instrumento identificador, mas como parte integrante do seu próprio ser. Trata-se não apenas de um signo arbitrário, mas de um elemento mágico capaz de personificar o objeto que designa com todas as características gerais ou específicas que o constituem (BIDERMAN, 1998, p.81-2). Assim são os topônimos – signos dotados de especificidades que os tornam diferentes dos nomes comuns, pois consubstanciam a intencionalidade do denominador que, acionando as várias circunstâncias que o rodeiam, seleciona um determinado nome para este ou aquele acidente geográfico, que evoca em seu significado a justificativa para a sua própria existência (DICK, 1990, p.38-39).

Como em uma peça teatral, os topônimos são como atores que emprestam seu talento, suas características e peculiaridades ao papel que desejam representar. Passam a delinear, a construir uma identidade própria do acidente que estão nomeando, encontrando, sobretudo na Linguística, o respaldo que lhe garanta o papel principal. À Antropologia, à História, à Geografia, entre outras, cabe a construção do cenário, ou seja, essas disciplinas funcionam como um pano de fundo revelador, por exemplo,

1 Agradecemos a Daniela de Souza Silva Costa pela tradução do título, do resumo e das palavras-chave para a língua inglesa.

Page 87: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

87

Corotopônimos na toponímia sul-mato-grossense [85-106]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

das bases étnicas da população, do cotidiano de um grupo e/ou das particularidades naturais do espaço geográfico a que o topônimo se refere.

1. Nomes geográficos: questões terminológicas

Os nomes geográficos recorrentes em um território são legitimados pela representação cartográfica e identificados por uma terminologia específica própria do domínio de conhecimento da Geografia. Nesse contexto, situam-se diferentes termos formados com coro-: “elemento de composição culta, que traduz as idéias de “região, país, território“, do gr. chõros, “espaço, intervalo entre objetos isolados; lugar determinado, sítio limitado; território, região; campo, em oposição à cidade; bens rurais” (MACHADO, 1987). Dentre os termos formados com o radical coro- encontram-se a coronímia e a corografia, que são definidos por Houaiss (2001), respectivamente, como: “GEO 1. Parte da onomástica dedicada ao estudo e à etimologia dos nomes designativos de continente, país, região, pátria, estado, província, divisão administrativa qualquer (abrangido pela toponímia ou geonímia); 2. estudo ou teoria dos corônimos”; “Descrição representação de um país, região ou área geográfica particular, num mapa ou carta, que explicita visualmente, através de código(s) as suas características mais notáveis”. No âmbito desse domínio terminológico, convivem também os termos topônimo e geônimo. Este último vem sendo objeto de investigação de pesquisadores da área de Geografia que defendem a preferência pelo uso desse termo no âmbito desse domínio de conhecimento. Santos (2007, p. 34), por exemplo, pondera: “a partir do primeiro registro de um geônimo num documento cartográfico, seria como se a feição terrestre aí denominada, nascesse para a sociedade, e a partir de então, fosse reconhecida como uma ocorrência com uma existência real”.

Tradicionalmente os nomes próprios de lugares e de acidentes geográficos são estudados pela Toponímia, disciplina a princípio vinculada aos estudos de natureza geográfica. O surgimento no Canadá, em 1966, de um grupo de Estudos de Coronímia e Terminologia Geográfica atesta a importância científica desse ramo de estudos. Já a Toponímia como campo de investigação linguística surge na França,

Page 88: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

88

Aparecida Negri Isquerdo / Carla Regina de Souza Figueiredo [85-106]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

em 1798, com as pesquisas de Auguste Longnon. Esses estudos tiveram continuidade sob o comando do linguista francês, Albert Dauzat, a partir de 1922, com uma conferência na École Pratique e com a publicação do artigo “Chronique Toponymie”, na revista Révue des Étude Anciennes por ele fundada. A promoção do I Congresso Internacional de Toponímia e Antroponímia, organizado pelo mesmo linguista em 1938, representou um marco para os estudos onomásticos na Europa que aos poucos foram se expandindo para os demais continentes (DICK, 1990).

No Brasil, as pesquisas de Theodoro Sampaio (1901), Armando Levy Cardoso (1961), Carlos Drumond (1965), respectivamente, sobre a toponímia dos estratos tupi, aruaque e bororo configuram-se como trabalhos pioneiros na área (DICK, 1990). Todavia, são as pesquisas de Maria Vicentina de Paula do Amaral Dick, na Universidade de São Paulo, a partir de 1980, que sistematizam esses estudos, à medida que constroem um modelo teórico que contém as bases para a pesquisa toponímica no Brasil. Para essa toponimista, os topônimos “são verdadeiros ‘testemunhos históricos’ de fatos e ocorrências registrados nos mais diversos momentos da vida de uma população e que encerram, em si, um valor que transcende ao próprio ato da nomeação [...]” (DICK, 1990, p. 22).

Contemporaneamente, Menezes e Santos (2006), ao discutirem a questão do espaço ocupado pela Geonímia (ramo da onomástica que estuda os nomes geográficos, os geônimos) e pela Toponímia (ramo da onomástica que estuda os nomes próprios de lugares, os topônimos), esclarecem:

O estudo dos nomes geográficos já foi, no Brasil, bastante desenvolvido, por volta do fim do século XIX e meados do século XX (1930 a 1970). Hoje em dia, porém, exceto por estudos desenvolvidos em algumas áreas lingüísticas, está voltando a ser objeto de estudo, devido às inúmeras relações que podem ser estabelecidas (MENEZES; SANTOS, 2006, p. 76).

Em síntese, a Toponímia (dos radicais gregos topos + onoma), tradicionalmente vinculada à Geografia, vem conquistando a sua autonomia como ramo dos estudos do léxico, fundamentada nos princípios teóricos das teorias linguísticas, à medida que concebe o topônimo como signo de língua

Page 89: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

89

Corotopônimos na toponímia sul-mato-grossense [85-106]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

e como tal é analisado. Dada a estreita relação entre topônimo e cultura, em especial no que tange às bases éticas que subjazem a uma nomenclatura geográfica, os estudos toponímicos buscam suas bases teóricas também na Etnolinguística, na relação entre léxico, etnia e etnicidade. Nessa perspectiva, Dick (1990, p. 36) define a Toponímia como “um imenso complexo línguo-cultural, em que dados das demais ciências se interseccionam necessariamente e não exclusivamente”. Assim, a Toponímia, em sua feição intrínseca, “deve ser considerada como um fato do sistema das línguas humanas” e como tal é passível de sistematização e categorização, segundo diferentes pontos de vista, dentre eles o taxionômico.

Dada à heterogeneidade dos diferentes sistemas onomásticos, modelos classificatórios são concebidos, na tentativa de estabelecer parâmetros de análise que permitam traçar matrizes toponímicas, segundo diferentes olhares. Na esfera do viés taxionômico, o modelo de Dick (1990), por exemplo, prevê, dentre as suas 27 taxes classificatórias, a dos corotopônimos, que abriga nomes de cidades, países, estados, regiões e continentes transplantados para um novo universo toponímico. O termo resgata o elemento de composição coro-, associando-o ao termo identificador da área, o topônimo, dando origem a uma categoria de topônimo muito produtiva em regiões que passaram por processo de colonização recente e cujo povoamento se singulariza pela presença de muitos e diversificados fluxos migratórios. O sema básico que identifica essa taxe é fornecido pelo elemento de composição “trans-, «para além»; do lat. trans-, de trans, prep., mesmo sentido” (MACHADO, 1987), associado a plantar, do latim plantare, que deu origem a transplantar: “transferir (algo) de um lugar ou contexto para outro” (HOUAISS, 2001). A categoria dos corotopônimos é examinada ao longo deste trabalho a partir de dados da toponímia sul-mato-grossense.

2. Toponímia: alguns fundamentos

Qualquer tentativa de descrever a linguagem de um grupo social resulta no conhecimento das bases culturais em que ele se assenta. No caso dos estudos onomásticos, a partir do estudo do topônimo, nome próprio de um lugar, pode-se descobrir aspectos do modus vivendi de cada comunidade linguística, já que toda movimentação lexical de uma língua

Page 90: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

90

Aparecida Negri Isquerdo / Carla Regina de Souza Figueiredo [85-106]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

deve ser encarada como um fato que ultrapassa o simples ato da fala e se configura como um fato social de grande importância. Ainda que o denominador selecione um topônimo já existente, ao fazer uma escolha a partir de um leque de possibilidades, demonstra o seu caráter intencional e motivador, os seus valores ideológicos. Assim, “dizer-se que a Toponímia reflete de perto a vivência do homem enquanto entidade individual e enquanto membro do grupo que o acolhe, nada mais é que reconhecer o papel por ela desenvolvido, no ordenamento dos fatos cognitivos” (DICK, 1990, p.19).

Tolhido, na maioria das vezes, dos elementos que possam esclarecer a real intencionalidade manifesta na denominação em análise, o pesquisador tende a decifrar as tessituras de um topônimo sob dois planos: i) o objetivo ou extrínseco, pelo qual, a partir das circunstâncias exteriores de natureza ambiental do acidente físico, procura respaldo para justificar a escolha do nome; ii) os subjetivos ou intrínsecos, em que a maneira de “perceber” e de “sentir” o local e o vínculo estabelecido entre o topônimo e o indivíduo não só são explicitados, como também são apontados como a(s) causa(s) motivadora(s) da denominação do acidente (DICK, 1992, p.55). É, pois, na graça de revelar a “faceta personalíssima” do homem que, no momento do batismo do lugar, foi materializada naquela designação, que o estudioso da toponímia procura o nexo causal, ora nas particularidades ambientais do próprio território em que o acidente está localizado, ora nas tendências e costumes dominantes na época da nomeação. No primeiro caso, considera que, principalmente antes da chegada dos europeus ao Brasil, era costume das populações autóctones imprimir, aos nomes de lugares, ora impressões que as reservas hídricas ou a topografia despertavam nos habitantes por meio da utilização de um denominador básico como córrego, vale, rio, dentre outros, acrescido da indicação de características como a cor, o volume e a extensão do acidente; ora tendências e costumes dominantes na época da nomeação. Já a segunda perspectiva parte da elucidação dos aspectos psicossociais do denominador na crença de que provavelmente possam ter motivado o signo toponímico.

Ainda que desafiadora, verifica-se que a Toponímia é uma disciplina dinâmica e de caráter amplo, não só por não limitar a

Page 91: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

91

Corotopônimos na toponímia sul-mato-grossense [85-106]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

sua investigação aos aspectos linguísticos e à categorização dos nomes, mas também por se voltar para o estudo das motivações que impulsionaram o denominador no ato da nomeação. Daí manter interface com outras áreas de conhecimento como a História, a Geografia, a Antropologia, a Etnolinguística. Assim, por meio de investigações toponímicas, podem-se descobrir áreas de colonização, o percurso de línguas até então fadadas ao esquecimento, à memória de um grupo, entre outros fatores.

Na trajetória dos estudos toponímicos, várias concepções foram sendo lapidadas. Da perspectiva de que a investigação linguística dos nomes geográficos limitava-se basicamente à Etimologia, passou-se a admitir que um topônimo perpassa uma realidade sócio-histórica, econômica e antropocultural de um grupo, o que o torna um signo linguístico autêntico, mas com uma carga motivacional diversificada, que só será revelada se houver uma intersecção entre as várias áreas de conhecimento. Deste modo, é a junção de elementos linguísticos e extralinguísticos que garante a autenticidade e a própria subsistência do nome de um lugar em meio à dinamicidade do acervo lexical de uma comunidade de falantes.

Dentre as várias propostas e tentativas de classificação taxionômica do topônimios, destaca-se o modelo desenvolvido por Dick (1992) para o estudo da toponímia brasileira. Para a elaboração das taxes, a pesquisadora acenou para a autonomia do topônimo enquanto objeto de investigação, que tanto pode ser de ordem física quanto de ordem antropocultural. Uma vez admitida essa duplicidade de visão, passou a buscar uma terminologia técnica que fosse capaz de enquadrar os nomes de lugares em modalidades particularizantes. Assim, definiu que o topônimo propriamente dito seria antecedido por um elemento genérico que definiria a respectiva classe onomástica a que pertence, numa tentativa de contar a suficiente explicação de sua substância ou a clareza lógica para justificar a escolha de uma designação que não outra. O primeiro membro do sintagma teria por finalidade definir a classe genérica do topônimo, acentuando o tipo de acidente nomeado se um rio,

Page 92: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

92

Aparecida Negri Isquerdo / Carla Regina de Souza Figueiredo [85-106]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

se uma rua ou se uma propriedade rural, por exemplo. É o segundo elemento do sintagma nominal que determinaria a procedência do campo de estudo específico, ou seja, o topônimo propriamente dito (DICK, 1992, p.26).

Das vinte e sete taxes propostas por Dick (1992, p.31-34), onze referem-se aos nomes que resgatam, de alguma maneira, peculiaridades do ambiente físico e por isso mesmo enquadram-se às Taxionomias de Natureza Física (astrotopônimos, fitotopônimos...), e as outras dezesseis remetem a relações sociais e culturais do homem no lugar em que estiver inserido, integrando as Taxionomias de Natureza Antropocultural (animotopônimos, corotopônimos...). Como já anunciado, neste trabalho, serão os topônimos relacionados aos nomes de cidades, países, estados, regiões e continentes o objeto de discussão, ou seja, os corotopônimos.

3. Contextualização e objetivos

Pesquisadores de diferentes Instituições brasileiras, ao partilharem o interesse comum de investigar os topônimos, têm desenvolvido trabalhos diversificados no Brasil, incluindo os que têm como produto final atlas toponímicos. Dentre esses, situa-se o projeto ATEMS (Atlas Toponímico do Estado de Mato Grosso do Sul)2, variante regional do ATB (Atlas Toponímico do Brasil), idealizado e em execução pela renomada toponimista brasileira, Maria Vicentina de Paula do Amaral Dick, na Universidade de São Paulo (USP). A primeira versão do ATEMS, ainda de caráter inédito e na fase de revisão final, foi concebida, por ora, em dois volumes3.

2 O ATEMS foi financiado pela Fundação de Apoio ao Desenvolvimento do Ensino, Ciência e Tecnologia do Estado de Mato Grosso do Sul – FUNDECT (2008/2011), e desenvolvido sob a coordenação da Profa. Drª. Aparecida Negri Isquerdo (UFMS) com a assessoria científica da Profa. Drª. Maria Vicentina do Amaral Dick (USP). O ATEMS teve como objetivos mais amplos catalogar e analisar os topônimos registrados nos mapas oficiais do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, relativos aos 78 municípios de Mato Grosso do Sul, buscando demonstrar peculiaridades linguísticas, históricas, geográficas, culturais, sociais e ambientais do espaço pesquisado a partir do estudo da designação dos topos. Com sede na UFMS, o Projeto ATEMS foi executado em parceria com a UEMS e a UFGD.3 O volume I foi destinado à descrição dos fundamentos teórico-metodológicos que orientaram a execução do projeto e o conjunto de 80 mapas toponímicos até então elaborados a partir dos dados armazenados no Banco de Dados. Já o volume

Page 93: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

93

Corotopônimos na toponímia sul-mato-grossense [85-106]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Os dados analisados neste artigo foram extraídos de duas fontes: Banco de Dados do ATEMS (2011) e base de dados da pesquisa de Souza (2006)4, ambos os corpora foram obtidos das cartas topográficas do IBGE. O corpus do ATEMS reúne no estágio atual dos estudos toponímicos em Mato Grosso do Sul um total de 7.513 (sete mil quinhentos e treze)5, predominantemente da área rural, enquanto a Dissertação de Souza (2006) analisou 1.480 topônimos, das áreas rural (915) e urbana (565) de quatro municípios sul-mato-grossenses: Bela Vista, Jardim, Guia Lopes da Laguna e Nioaque6. As duas pesquisas foram orientadas, fundamentalmente, pelo modelo teórico de Dick (1990; 1992).

Este texto, como já assinalado, discute a aplicação do modelo de Dick (1992), no que diz respeito à categoria dos corotopônimos, designativos de lugares que recuperam nomes de grandes espaços geográficos, como cidades, países, estados, regiões e continentes, ou melhor, nomes transplantados que passam a identificar acidentes físicos e humanos de outras paragens, geralmente motivados pela intenção do denominador de homenagear a sua terra de origem e/ou os primeiros povoadores da região. O estudo, pautando-se em dados da toponímia sul-mato-grossense, examina dificuldades geradas na classificação de topônimos dessa categoria, sobretudo em casos de topônimos que, dependendo do olhar do pesquisador e das informações disponíveis acerca da história do nome e/ou do processo de povoamento ocorrido na localidade e a respectiva localização geográfica do acidente geográfico nomeado, podem suscitar impasses de interpretação. Assim, a exemplificação apresentada neste artigo serve para abonar as afirmações feitas e demonstrar que um mesmo nome pode assumir mais de uma classificação se as características

II reúne seis estudos realizados pelos pesquisadores acerca de tendências marcantes evidenciadas pela toponímia de Mato Grosso do Sul.4 Dissertação de Mestrado Toponímia e Entrelaçamentos Históricos na Rota da Retirada da Laguna, orientada pela Drª. Aparecida Negri Isquerdo e defendida no Programa de Pós-graduação stricto sensu da UFMS - Campus de Três Lagoas (2006). Pesquisa desenvolvida com bolsa da FUNDECT. 5 Consulta realizada no dia 22/11/2011.6 A seleção dessas áreas administrativas foi pautada na localização desses lugares/espaços na rota da Retirada da Laguna, episódio bélico de significativa importância para a história regional de Mato Grosso do Sul. Os quatro municípios pertencem à Microrregião de Bodoquena.

Page 94: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

94

Aparecida Negri Isquerdo / Carla Regina de Souza Figueiredo [85-106]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

históricas, geográficas, sociais e ambientais que permeiam um acidente físico e/ou humano forem observadas. Para tanto, são considerados dados da toponímia rural extraídos do Banco de Dados do ATEMS e da toponímia urbana, estudados por Souza (2006).

4. Corotopônimos na toponímia sul-mato-grossense

Tomando-se como parâmetro os topônimos dos dois corpora mencionados, a análise aqui apresentada focaliza as dimensões quantitativa e qualitativa dos dados examinados. O mapa, na sequência, demonstra a distribuição da produtividade dos corotopônimos nos 78 municípios do Estado de Mato Grosso do Sul.

Fonte: ATEMS (2011)7.

7 A cor original do mapa foi formatada para a escala cromática em tons de cinza por Luciene Gomes Freitas Marins, para este trabalho.

Page 95: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

95

Corotopônimos na toponímia sul-mato-grossense [85-106]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Observando-se o Mapa 28 do ATEMS (2011), percebe-se que o município de Corumbá, oeste de Mato Grosso do Sul, concentra o maior contingente de corotopônimos na toponímia sul-mato-grossense já catalogada pelo ATEMS – 05 acidentes geográficos são nomeados com 03 topônimos dessa categoria: Coimbra que designa um porto, uma vila e um morro; Brasil que motivou o nome de um porto; Fortaleza, nome transplantado para dar nome a um córrego. Nota-se a marca do colonizador luso na corotoponímia pantaneira materializada na produtividade do corotopônimo Coimbra que, além de nomear esses três elementos geográficos, designa um forte colonial, também situado no município de Corumbá, às margens do rio Paraguai. O Forte de Nossa Senhora do Carmo de Coimbra, topônimo que sofreu redução ao longo da história, resultando no designativo Forte Coimbra, foi construído pela Coroa Portuguesa como estratégia de defesa de território, no final do século XVIII, tendo se constituído um dos mais importantes pontos de defesa do território brasileiro e importante ponto de expansão deste na época do império. Na atualidade, o topônimo Forte Coimbra nomeia, além do forte propriamente dito, um pequeno vilarejo situado às margens do rio Paraguai, pertencente ao município de Corumbá-MS, quase na fronteira do Brasil com a Bolívia e o Paraguai.

Dentre os corotopônimos atualmente cadastrados no Banco de Dados do ATEMS, figuram topônimos que representam nomes transplantados de espaços geográficos distantes e de diferentes dimensões (continentes, países, cidades de países distantes), como Europa, América, Israel, Bolívia, Peru, México, Brasil, Canadá, Coimbra, Flórida, Canaã; nomes de estados, de capitais de estados, de cidades brasileiras situadas em diferentes regiões do Brasil, como: Pernambuco, Fortaleza (CE), Medianeira (PR)8, Altamira (PA), Pirinópolis (GO), Xavantina (SC), Nova Xavantina (MT), Santa Fé (SP), Pelotas (RS); nomes

8 Medianeira também nomeia um bairro das seguintes cidades do Rio Grande do Sul: Porto Alegre; Cachoeira do Sul; Eldorado do Sul.

Page 96: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

96

Aparecida Negri Isquerdo / Carla Regina de Souza Figueiredo [85-106]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

de municípios de Mato Grosso do Sul: Brasilândia, Sonora, Ladário, Douradina, Costa Rica.

Já o Gráfico I, a seguir, ilustra a produtividade dos corotopônimos na toponímia rural (nomes de córregos, rios, serras, fazendas...) e urbana (bairros, ruas...) das cidades sedes dos 04 municípios estudados por Souza (2006): Bela Vista, Guia Lopes da Laguna, Jardim e Nioaque.

Gráfico I - Distribuição dos corotopônimos nas áreas rural e urbana nos municípios inventariados por Souza (2006).

Na toponímia urbana dos municípios pesquisados por Souza (2006), os corotopônimos que retomam nomes de estados brasileiros e suas capitais foram os mais produtivos, seguidos, respectivamente, por aqueles que homenageiam municípios sul-mato-grossenses, países e outras localidades situadas no território nacional. Jardim foi a cidade que mais rendeu condolências aos migrantes responsáveis pela construção de sua história por meio da toponímia. Das vinte e sete designações referentes aos estados e capitais do Brasil, 26 foram encontradas no mapa urbano de Jardim, assim como 10 entre os 14 nomes de municípios de Mato Grosso do Sul. O Quadro I, a seguir, traz a relação dos topônimos coletados por Souza (2006) na área urbana dos municípios estudados, que resgatam nomes de estados e capitais do território brasileiro.

Page 97: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

97

Corotopônimos na toponímia sul-mato-grossense [85-106]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

TOPÔNIMO ACIDENTE/MUNICÍPIO

Amazonas Rua/ Jardim

Bahia Rua/ Jardim

Belém Bairro/ Nioaque

Campo Grande Rua/ Jardim

Rua/ Guia Lopes da Laguna

Ceará Rua/ Jardim

Cuiabá Rua/ Bela Vista

Rua/ Guia Lopes da Laguna

Espírito Santo Rua/ Jardim

Maceió Rua/ Jardim

Manaus Rua/ Jardim

Maranhão Rua/ Jardim

Mato Grosso Avenida/ Jardim

Minas Gerais Rua/ Jardim

Pará Rua/ Jardim

Paraíba Rua/ Jardim

Paraná Rua/ Jardim

Pernambuco Rua/ Jardim

Piauí Rua/ Jardim

Porto Velho Rua/ Jardim

Recife Rua/ Jardim

Rio Branco Rua/ Jardim

Rio Grande do Norte Rua/ Jardim

Rio Grande do Sul Rua/Bela Vista

Rua/ Jardim

Santa Catarina Rua/ Jardim

São Luiz Rua/ Jardim

São Paulo Rua/ Jardim

Sergipe Rua/ Jardim

Vitória Rua/ Jardim

Quadro I- Topônimos da área urbana dos municípios de Bela Vista, Jardim, Guia Lopes da Laguna e Nioaque, referentes a nomes de estados e capitais do território brasileiro (SOUZA, 2006).

Page 98: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

98

Aparecida Negri Isquerdo / Carla Regina de Souza Figueiredo [85-106]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Acredita-se que o processo de povoamento ocorrido em Mato Grosso do Sul tenha interferido na escolha dos nomes elencados. A alta incidência de homenagens prestadas aos migrantes provenientes das regiões Norte e Nordeste se justifica por terem se fixado, na sua maioria, no sul do Estado, onde se localizam os municípios estudados. O tributo aos municípios sul-mato-grossenses também chama a atenção pelo fato de valorizar cidades pertencentes ao mesmo Estado que, de alguma forma, tiveram as histórias e conquistas correlacionadas. É o que se observa nos dados relativos às cidades de Jardim e de Guia Lopes da Laguna que recuperam nomes de municípios, na maioria das vezes, circundantes aos seus territórios, como atestam os dados do Quadro II:

TOPÔNIMO ACIDENTE/MUNICÍPIO

Aquidauana Rua/ Guia Lopes da Laguna

Bataguassu Rua/ Jardim

Bela Vista Rua/ Jardim

Bonito Rua/ Guia Lopes da Laguna

Corumbá Rua/ Jardim

Iguatemi Rua/ Jardim

Jardim Rua/ Guia Lopes da Laguna

Maracaju Rua/ Jardim

Rua/ Guia Lopes da Laguna

Ponta Porã Rua/ Jardim

Rua/ Guia Lopes da Laguna

Porto Murtinho Rua/ Guia Lopes da Laguna

Rio Verde Rua/ Guia Lopes da Laguna

Sidrolândia Rua/ Guia Lopes da Laguna

Tacuru Rua/ Jardim

Três Lagoas Rua/ Jardim

Quadro II – Topônimos da área urbana dos municípios de Bela Vista, Jardim, Guia Lopes da Laguna e Nioaque, referentes a nomes de cidades sul-mato-grossenses (SOUZA, 2006).

Page 99: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

99

Corotopônimos na toponímia sul-mato-grossense [85-106]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

5. Corotopônimos sul-mato-grossenses: casos da toponímia rural e da toponímia urbana

Conforme o exposto nos itens anteriores, o universo de topônimos em análise considera duas categorias de topônimos em termos de área geográfica do designativo: rural e urbana. Assim, a discussão do assunto neste tópico parte dos dados do ATEMS, relativos à toponímia rural, estabelecendo-se os devidos paralelos com os da toponímia urbana analisados por Souza (2006). Conforme já assinalado, o Banco de Dados do ATEMS tem armazenados um montante de 7.513 (sete mil quinhentos e treze), dentre os quais, 44 (quarenta e quatro) foram, a princípio9, classificados como corotopônimos, o que representa, aproximadamente, 0,6% do montante de nomes da toponímia sul-mato-grossense. Mesmo que quantitativamente essa taxe pareça pouco representativa, tem suscitado muitas discussões haja vista a dificuldade de se confirmar se um determinado topônimo representa realmente, no espaço em que se localiza, um nome transplantado.

O princípio básico definidor da taxe corotopônimo é o fato de um nome ser transplantado de um lugar para outro. Mas qual seria afinal o “alcance” do conceito de transplantar? Aplicando-se esse conceito ao modelo de classificação taxionômico de Dick (1992), só seriam considerados corotopônimos os nomes de cidades, estados e regiões, oriundos de outros países que não o Brasil. Nomes como Bolívia, Canadá, México e Peru, por exemplo, utilizados para denominar acidentes físicos em Mato Grosso do Sul, adequar-se-iam sem problemas ao modelo em questão. Constatou-se, no entanto, ao longo da pesquisa que boa parte dos topônimos, a princípio, assim classificados careceria de maior aprofundamento. A inquietude dos pesquisadores do Projeto ATEMS tem proporcionado estudos e reflexões sobre o assunto, por entenderem que na toponímia sul-mato-grossense havia casos perceptíveis de que o denominador de um determinado acidente físico ou humano “transplantou” nomes de espaços circunscritos ao território

9 Diz-se, a princípio, porque os dados estão sendo rigorosamente revisados pelos pesquisadores do Projeto ATEMS, o que poderá eventualmente alterar o quadro atual de classificação dos topônimos catalogados no Banco de Dados.

Page 100: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

100

Aparecida Negri Isquerdo / Carla Regina de Souza Figueiredo [85-106]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

brasileiro, ao batizar um córrego, por exemplo, com nomes de Estados do Brasil de onde migraram muitas pessoas para o território sul-mato-grossense10. O corotopônimo Pernambuco (córrego/Paranaíba) é um exemplo típico de homenagem prestada por migrantes à sua terra natal.

Além da dificuldade de estabelecer, frente às especificidades do território sul-mato-grossense, a amplitude do conceito de transplantar, passou-se a perceber o desafio de estratificar o nome de um lugar, sobretudo quanto à sua classificação como corotopônimo, a partir da área (espaço rural ou urbano), onde se situa o elemento geográfico nomeado, dada à evidência de comportamentos muitas vezes distintos entre essas duas categorias de designativos. Assim, é necessário sopesar não apenas o tipo de acidente, se físico ou humano, mas também a área em que ele se localiza.

Souza (2006), em sua Dissertação de Mestrado, analisou topônimos tanto da área rural quanto da urbana dos quatro municípios estudados e constatou, por exemplo, que várias ruas da cidade de Guia Lopes da Laguna faziam referência às capitais dos Estados de Mato Grosso e de Mato Grosso do Sul e a municípios que circundavam aquele território: rua Aquidauana, rua Bonito, rua Campo Grande, rua Cuiabá, rua Jardim, rua Maracaju, dentre outros. Nesses casos são evidentes as homenagens prestadas aos municípios que de alguma forma influenciaram a história da localidade. A mesma relação não se estabelece quando se trata de um acidente físico como, por exemplo, Serra de Maracaju. Esse não poderia ser classificado como corotopônimo, já que a criação do município de Maracaju foi posterior à existência e à própria nomeação desse acidente (serra). Historicamente se confirma que a nomeação de acidentes geográficos precede, na maioria das vezes, a de acidentes humanos.

Sublinhe-se ainda que, diante do complexo quadro de dificuldades que envolvem a classificação dos corotopônimos, tem-se buscado uma reflexão acerca do conceito de corotopônimo com base nos dados disponíveis no recorte toponímico estudado, principalmente, no diz

10 Um primeiro estudo sobre a taxe dos corotopônimos foi realizado por Figueiredo (2009). Essa versão do trabalho foi recuperada e ampliada para este texto.

Page 101: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

101

Corotopônimos na toponímia sul-mato-grossense [85-106]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

respeito aos nomes de cidades, de estados e de regiões pertencentes ao território brasileiro. No entanto, a prática tem demonstrado que a questão exige muita cautela, para que não se classifique equivocadamente um nome com essa taxe. Topônimo bem ilustrativo nesse sentido é Belo Horizonte, que nomeia um córrego em São Gabriel do Oeste – MS, microrregião do Alto Taquari, e outro córrego em Iturama – MG. Sabendo-se que no município mineiro de Iturama também existe um córrego denominado Viçosa (outra cidade mineira), a classificação de Belo Horizonte como corotopônimo nesse território parece mais coerente do que no Estado de Mato Grosso do Sul.

Vale pontuar, nesse contexto, que no modelo classificatório proposto por Dick (1992) figura em primeiro plano o conteúdo semântico perceptível nos topônimos, enquanto signos linguísticos e, em segundo plano, a intenção do denominador no ato da nomeação visando, por meio de uma investigação sem muito recuo ao passado histórico, a buscar as causas motivadoras, os pressupostos semânticos que dão vida aos designativos geográficos. Todavia, a toponimista não descarta a possibilidade de muitas vezes haver necessidade de um recuo no tempo em busca, não só da apreensão do significado do item lexical do vocabulário comum da língua elevado à categoria de topônimo, como também identificar registros na cartografia histórica e/ou em obras produzidas em sincronias pretéritas, na tentativa de elucidar o uso contemporâneo do topônimo. Assim, uma vez não confirmados indícios reais e esclarecedores de que a relação entre a denominação do acidente esteja ligada a uma homenagem prestada, no caso analisado à cidade de Belo Horizonte, capital de Minas Gerais, o topônimo sul-mato-grossense poderia ser classificado como animotopônimo, já que parece recuperar uma impressão do denominador frente ao acidente11.

Como as pesquisas toponímicas procuram classificar, descrever e explicar os topônimos, parte-se do que está mais próximo e tenta-se recuperar a visão etnolinguística do grupo responsável pela atribuição

11 Reforça essa posição o fato de Belo Horizonte nomear um córrego no município de São Gabriel do Oeste, que foi povoado por gaúchos.

Page 102: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

102

Aparecida Negri Isquerdo / Carla Regina de Souza Figueiredo [85-106]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

do nome. Assim, no decorrer da investigação, o pesquisador deve ponderar que estudos desta natureza seguem um percurso indutivo > dedutivo, ou seja, partem do nome do acidente para depois descobrirem os condicionantes que o envolvem. Nesse sentido, vale registrar que, assim como Belo Horizonte, o topônimo Fortaleza – o mais recorrente entre aqueles classificados como corotopônimos no Banco de Dados do ATEMS (10,4%) –, pelos mesmos motivos, poderia ser considerado um animotopônimo. Todavia, a representativa incidência desse topônimo em diferentes pontos geográficos do Estado12; o grande contingente de nordestinos, incluindo os cearenses, que migraram para o Mato Grosso do Sul, durante diferentes fases de povoamento da região, somados à falta de informações acerca da motivação do batismo desses seis acidentes físicos e de um acidente humano corroboram a decisão de manter a classificação desses designativos como corotopônimos.

5.1. Paraguai e Uberaba: pseudos corotopônimos?

Dentre os dados inventariados no Projeto ATEMS, Paraguai e Uberaba estão entre os que, numa primeira instância, poderiam ser classificados como corotopônimos, mas que, ao mesmo tempo, geram dúvida quanto a essa classificação, se consideradas razões de natureza histórica. No caso do topônimo Paraguai que nomeia o principal rio da bacia hidrográfica do Paraguai, a equipe de pesquisadores do ATEMS considerou a proximidade geográfica entre Mato Grosso do Sul e o país vizinho Paraguai e a consequente interinfluência linguístico-cultural característica dessa faixa de fronteira; a nomeação anterior do rio e informações de natureza histórica para subsidiar a sua não classificação como um corotopônimo. É preciso considerar que os relatos de viagens de conquistadores europeus confirmam que o rio em questão já era batizado com o topônimo Paraguay desde o século XVI.

Magalhães (2008), pautando-se em consulta de vasta bibliografia sobre relatos de viajantes que percorreram as terras do continente sul-americano no século XVI, registra que o português Aleixo Garcia foi “o

12 Fortaleza aparece nos municípios de Ribas do Rio Pardo, Rochedo, Campo Grande, Camapuã, Rio Verde de Mato Grosso e Ponta Porã.

Page 103: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

103

Corotopônimos na toponímia sul-mato-grossense [85-106]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

primeiro homem branco a navegar o rio Paraguay [...] O aventureiro luso teria penetrado selvas sul-americanas em 1526, atrás de tesouros nas mágicas montanhas andinas...” (MAGALHÃES, 2008, p. 27). Ainda conforme o mesmo pesquisador, o “segundo branco a comandar uma expedição que subira o grande rio [...] foi Juan de Ayolas (1536) que levava consigo como companheiro Domingo Martinez de Irala. Ambos tinham o encargo recorrente de consolidar os domínios espanhóis e encontrar riquezas para a Cesárea Majestad Catolica” (MAGALHÃES, 2008, p. 27). Todavia, a obra Naufragios y Comentarios [1555], de Álvar Núñez Cabeza de Vaca (1540-1545) foi a primeira a noticiar ao mundo moderno o grande rio, ou seja, o rio Paraguai13. Especificamente a parte intitulada Comentarios14 narra a viagem realizada pelo conquistador espanhol em rumo a Assunção, percorrendo o rio Paraguay. Ilustram isso, dentre outras, as referências a esse rio contidas no excerto a seguir:

Y de esta manera caminando (según dicho es), fue nuestro Señor servido que a 11 días del mes de marzo, sábado, a las nueves de la mañana, del año 1542, llegaron a la ciudad de la Ascensión, donde hallaron residiendo los españoles que iban socorrer, la cual está asentada en la ribera del río del Paraguay, en veinte y cinco grados de la banda del sur […] (grifo nosso) (NÚÑEZ CABEZA DE VACA, 2005 [1555], p. 160).

Já com relação ao topônimio Uberaba, encontram-se em Magalhães (2008) diferentes menções a essa lagoa, dentre elas, a transcrição de excertos do Diário de Viagem, de Francisco José de Lacerda e Almeida, apontamentos escritos por volta de 1786 e pela primeira vez publicados em 1944. Reza o texto de Almeida (1944 apud MAGALHÃES, 2000, p. 97):

Perto desse monte corriam as águas muito e com muita largura; e supondo que por este novo rio (que assim se pode chamar pelo fundo e largura) se comunicaram a lagoa Uberaba com a Gaíba [...] Seguimos o sangradouro que saía no grande lago de que tenho tratado, e que hoje assento ser a Lagoa Uberaba... (grifo nosso).

13 É por meio desses relatos que a região do Pantanal torna-se conhecida no Ocidente, sob a designação Laguna del Xarayés. Cf. Isquerdo (2006): De Laguna de los Xarayes a Pantanal: mito e realidade impressos na Toponímia. 14 As crônicas da aventura do adelantado, governador e capitão geral da Província do Rio da Plata, Cabeza de Vaca (1540-1545), foram escritas provavelmente por Pero Hernández, secretário da província.

Page 104: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

104

Aparecida Negri Isquerdo / Carla Regina de Souza Figueiredo [85-106]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Também Casal, na Corografia Brasílica [1817] (1976), destaca o rio Paraguai como o “mais celebrado”, na Província de Mato Grosso e registra as seguintes informações que incluem a menção à lagoa Uberaba:

[...] vinte léguas abaixo da Ponta Escalvada começa a margem ocidental [do rio Paraguai] a ser bordada por uma serra de outras tantas, ou mais léguas de comprido, mas estreita, e cortada em várias paragens para dar saída às águas de 3 lagos, que ficam por detrás dela [...] A porção setentrional desta serra é designada com o nome de Insua, a meridional com o de Chainez, e a central com o da Serra dos Dourados. Uberaba, Guaíba, e Mandioré são os nomes dos mencionados lagos” (CASAL, 1976, p. 136). (grifo nosso).

Nota-se que os relatos introduzem o topônimo Uberaba como designativo de um lago/lagoa do Pantanal. Esse topônimo também é citado por Souza (1973, p.29): “A oeste estende-se o cordão das grandes lagoas, regionalmente conhecidas por “baías” e que se comunicam com o rio através de sangradouros, sendo por eles alimentadas. Destacam-se as de Uberaba, Gaíva, Mandioré e Cáceres, escalonadas de norte sul...” (SOUZA, 1973, p. 29) (grifo nosso). Nos mapas contemporâneos, o topônimo Uberaba continua a nomear a maior das três grandes lagoas do Pantanal, ao lado das lagoas Guaíba e Mandioré, todas localizadas na região da serra do Amolar, na confluência entre os Estados de Mato Grosso do Sul e Mato Grosso e a Bolívia.

O nome Uberaba, de acordo com Sampaio (1987, p.338), é de origem tupi “Y-beraba, a água brilhante, clara, transparente, cristalina”. Logo, o topônimo Uberaba deve ter sido motivado pelas características da água. O mesmo se aplica ao rio Uberaba que motivou o surgimento da próspera cidade mineira do mesmo nome. Esse designativo nomeia, pois, uma grande lagoa no município de Corumbá – MS (microrregião do Baixo Pantanal) e um rio e um município do Estado de Minas Gerais (Triângulo Mineiro). Pela documentação histórica, nota-se o registro desse topônimo em diversos relatos de viajantes dos primeiros séculos da colonização do Brasil, o que confirma não se configurar o nome da lagoa do Pantanal um nome transplantado, mas sim um nome descritivo motivado pela riqueza hídrica, típica dos pantanais, os hidrotopônimos. O mesmo raciocínio se aplica ao topônimo Paraguai que, também segundo Sampaio (1987, p. 294), deriva do tupi “Paraguá-y, o rio dos papagaios. Pode também significar o rio dos cocares ou das coroas”. Paraguá, segundo o mesmo

Page 105: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

105

Corotopônimos na toponímia sul-mato-grossense [85-106]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

tupinólogo, vem de “Para-guá, a coroa de plumas variegadas, o cocar. Significa também seio de mar, baía, golfo. Significa ainda papagaio”. Magalhães (2000, p. 28) também pontua a polêmica existente quanto à etimologia do “rio dos Papagaios”: “Para – mar, no sentido de parecer um oceano e gua’a, papagaio”. Pelo exposto, conclui-se que os topônimos Paraguai e Uberaba, no âmbito da toponímia sul-mato-grossense, não se configuram como corotopônimos enquanto os topônimos Paraguai (país) e Uberaba (cidade de Minas Gerais) são motivados pelos nomes dos rios homônimos, respectivamente, o rio Paraguai e o rio Uberaba.

Considerações finais

A partir dessa amostragem, objetivou-se discutir o estatuto da taxe dos corotopônimos (DICK, 1990), com base em dados da toponímia sul-mato-grossense. Os resultados deste estudo apontam para os seguintes encaminhamentos teórico-metodológicos: i) necessidade de ser considerado o sentido lato do formante trans-, «para além», na definição de corotopônimos, o que permite um repensar do raio de extensão do sentido do verbo transplantar, considerando também nomes que migram dentro de um mesmo território; ii) valorização de informações registradas em obras de sincronias pretéritas, para fins de classificação dos corotopônimos; iii) identificação do topônimo em exame em mapas representativos da cartografia histórica; iv) consideração das variáveis “toponímia rural” e “toponímia urbana” no exame dos corotopônimos; exame dos processos migratórios ocorridos na área investigada, informações essas que podem fornecer pistas para a identificação de corotopônimos no âmbito de um sistema onomástico regional. Os resultados aqui apresentados não têm ainda caráter conclusivo, carecendo de aplicação dos princípios adotados no exame de novos dados. Todavia, uma coisa é certa: “o interesse e a necessidade da pesquisa superam todos os empecilhos perturbadores do processo de análise, principalmente se se considerar que uma Toponímia científica, sólida e eficaz só se consolida pelo conhecimento seguro das fontes documentais que a amparam” (DICK, 1996, p. 41).

ReferênciasATEMS – Atlas Toponímico de Mato Grosso do Sul. Banco de Dados. Campo Grande: UFMS, 2011 (acesso restrito).

BIDERMAN, Maria Tereza Camargo. Dimensões da Palavra. In: Filologia e Lingüística Português. n. 2. Araraquara: UNESP, p.81-118, 1998.

Page 106: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

106

Aparecida Negri Isquerdo / Carla Regina de Souza Figueiredo [85-106]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

CARDOSO, Armando Levy Toponímia brasílica. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editôra, 1961.

CASAL, Manuel Aires, de. Corografia Brasílica. Belo Horizonte: Editora Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, [1817], 1976.

DICK, Maria Vicentina de Paula do Amaral. A motivação toponímica e a realidade brasileira. São Paulo: Edições Arquivo do Estado, 1990.

_______ Toponímia e Antroponímia no Brasil. Coletânea de Estudos. São Paulo: FFLCH/USP, 1992.

_______. Atlas toponímico: um estudo de caso. In: Acta Semiotica et Lingvistica. SBPL. São Paulo: Plêiade, v. 6, p. 27-44, 1996.

DRUMOND, Carlos. Contribuição do bororo à toponímia brasílica. São Paulo: USP/IEB, 1965.

FIGUEIREDO, Carla Regina de Souza. Um estudo dos corotopônimos no Projeto ATEMS. Comunicação apresentada no XIX Seminário do Centro de Estudos Linguísticos e Literários do Paraná - CELLIP, realizado em Cascavel no ano de 2009.

ISQUERDO, Aparecida Negri et al. ATEMS – Atlas Toponímico do Estado de Mato Grosso do Sul. Vol. I. Campo Grande: UFMS, 2011 (inédito).

ISQUERDO, Aparecida Negri. De Laguna de los Xarayes a Pantanal: mito e realidade impressos na Toponímia. In: SEABRA, Maria Cândida Trindade Costa de. O léxico em estudo. Belo Horizonte: Editora da Faculdade de Letras – UFMG, 2006, p. 119-135.

MACHADO, José Pedro. Dicionário etimológico da língua portuguesa. 4. ed. Lisboa: Livros Horizonte, Ltda, 1987.

MAGALHÃES, Luiz Alfredo Marques. Rio Paraguay – Da Gaíba ao Apa. Campo Grande - MS: Editora Alvorada, 2008.

MENEZES, Paulo Márcio Leal de; SANTOS, Claudio João Barreto dos. Geonímia do Brasil: pesquisa, reflexões e aspectos relevantes. Revista Brasileira de Cartografia. N. 58/02, agosto, 2006.

NÚÑEZ CABEZA DE VACA. Álvar. Naufragios y Comentarios. Madrid: Editorial Espasa Calpe, S. A. [1555] 2005.

SAMPAIO, Teodoro. O tupi na geografia nacional. São Paulo: Editora Nacional, [1901], 1987.

SANTOS, Claudio João Barreto dos. A retomada da pesquisa da Geonímia do Brasil: algumas reflexões e aspectos relevantes. Geo UERJ - Ano 9, nº 17, vol. 2, 2º semestre de 2007.

SOUZA, Carla Regina de. Toponímia e entrelaçamentos históricos na rota da Retirada da Laguna. 2006. 000 p. Dissertação (Mestrado em Letras). Campus de Três Lagoas – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Três Lagoas, 2006.

SOUZA, Lécio Gomes. História de uma região: Pantanal e Corumbá. São Paulo: Editora Resenha Tributária Ltda, 1973.

Page 107: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

Linguística Indígena

Page 108: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido
Page 109: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

109Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Os processos de nominalização na língua matis (família Pano)The nominalization processes of matis language (Panoan family)

Resumo: O presente trabalho busca uma reflexão sobre a nominalização em uma língua indígena da família Pano, a saber, a língua Matis. Segundo Sautchuk (2004, p. 11), “as palavras existentes em qualquer língua são agrupadas em várias classes, conforme a semelhança de formas que apresentam, ou, para alguns autores, conforme o tipo de funções que podem desempenhar ou, ainda, conforme o sentido que podem expressar”. Diante disso, procuraremos compreender como funciona na língua Matis o processo de nominalização. Também como tal processo ocorre em outras línguas da família, por exemplo, Shanenaua, Marubo, Cashinauá, Shipibo-Konibo, entre outras.

Palavras-chave: Família Pano. Nominalização. Língua Matis.

Abstract: The present study attempts a reflection on the nominalization in an indigenous language of the Pano family, namely the Matis language. According to Sautchuk (2004, p. 11) “The existing words in any language is grouped into several classes, according to the similarity of structures they have, or, for some authors, according to the type of functions that they can play, or even as the sense that they can express”. Therefore, we try to understand how this nominalization process works in the Matis language. Also as this process occurs in other languages of the Pano family, for example, Shanenaua, Marubo Cashinawa, Shipibo-Konibo, among others.

Keywords: Panoan family. Nominalization. Matis language.

Rogério Vicente Ferreira Universidade Federal de Mato Grosso do Sul/ Três Lagoas

[email protected]; [email protected]

Page 110: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

110

Rogério Vicente Ferreira [109-116]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Introdução

A família pano é constituída por vinte e nove línguas, cujos falantes habitam as regiões fronteiriças entre Brasil (doze línguas), Peru (quatorze línguas) e Bolívia (três línguas). No Brasil, os falantes de línguas Pano estão concentrados nos estados do Acre, Rondônia e Amazonas. Este trabalho terá como fonte dados coletados e analisados de um grupo indígena localizado no Amazonas, habitantes do rio Ituí.

Os Matis habitam a região norte do país, no Amazonas, vivendo 250 pessoas em várias casas na mesma aldeia. Sua língua pertence à família linguística Pano. As línguas dessa família estão distribuídas no Brasil, no Peru e na Bolívia. No Brasil, os falantes vivem no Amazonas e no Acre.

A língua Matis como todas as outras línguas da família Pano é de ordem SOV, aglutinante e de sistema ergativo/absolutivo, sendo os alomorfes {-n} ~{-n} a marca ergativa (FERREIRA, 2005).

Da mesma forma que em Matsés (também conhecidos como mayorunas) os morfemas nominalizadores, em Matis, possuem funções de agente, paciente, objeto e instrumento. Fleck (2003) vai um pouco mais adiante na análise da língua matsés, pois além dos verbos nominalizados por vários sufixos nominalizadores, tais sufixos também podem nominalizar toda uma sentença, incluindo os argumentos e qualquer oblíquos/advérbio.

1. Nominalização

A nominalização tem sido objeto de investigação linguística há mais de trinta anos nas mais diferentes perspectivas teóricas. Em cada uma das corretes teóricas as respondem diferentes questões aos mais diferentes dados e apresentando resultados que ora divergem quanto à sua classificação, generalização, regras, fórmulas, configurações e argumentações (HOPPE, 2003, p. 145).

Payne (2001, p.223) aponta que as línguas têm caminhos para ajustar a categoria gramatical de uma determinada raiz, por exemplo, o verbo passa a função de nome, ou seja, nominalização, [v] à [v]N.

Page 111: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

111

Os processos de nominalização na língua Matis (família Pano) [109-116]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Tendo isso em vista, apresentaremos quais estratégias a língua Matis utiliza para o processo de nominalização, como Payne descreve, encontraremos em Matis a nominalização de agente; de particiente; de instrumental; de locação, entre outros.

A língua Matis tem como nominalizadores os morfemas {-kid}, {-akid}, {-bokid}, {-bondakid}, {-anpikid}, {-esma} e {-te}, diferentemente da língua matsés que, apesar de apresentar morfemas de nominalização semelhantes aos do Matis, apresenta também o morfema {-tequid}, que funciona como “instrumento específico”(FLECK, 2003, p.1101).

1.1 Nominalizador {-kid}

Os nomes formados a partir do morfema {-kid} podem ser semanticamente caracterizados como “ator” ou “agente”. Comrie & Thompson (2007, p. 348) referem-se a esse processo como “nominalização agentiva”, na qual os verbos nominalizados por esse morfema tornam-se nomes atributivos, do tipo “cozinheiro, nadador, atirador, matador”. Assim sendo, quando estão em posição atributiva, como em “Antônio enfermeiro”, eles estarão na função predicativa “ser algo”. No exemplo 01 (a), o verbo nominalizado se encontra em posição de argumento de verbo intransitivo, isto é, está em função de S. Já em 01 (b), o verbo nominalizado se encontra em função de A, em argumento de verbos transitivos e em 01 (c) e (d) está em função atributiva. Em qualquer uma dessas situações, o que colabora para a afirmação que esse morfema é um nominalizador é o fato de o verbo nominalizado passar a receber a mesma morfologia nominal e a fazer parte da mesma função dentro da sintaxe, aquela que determina a classe de Nome.(1) S Va) tike- -kid -bo -O kapu- -e -emen ter.preguiça -ag.nzr -col. -abs. caçar- -n.pass. -neg.n.pass. “Os preguiçosos não vão caçar.”

b) kodoka- -kid -n awad -O kodoka- -e -k cozinhar- -ag.nzr -erg. anta -abs. cozinhar- -n.pass. -decl.

Page 112: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

112

Rogério Vicente Ferreira [109-116]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

“O cozinheiro cozinha a carne de anta.”

c) café tsinid- -kid an- toka- -ta café sobrar- -ag.nzr dentro- jogar- -imp.afirm.

“Jogue o resto de café!”

d) nden bi [ta tik- -kid ] ik- -bonda -k antes 1sg.abs. [dente tirar- -ag.nzr] aux.- -pass.dist. -1/2:decl.

“Antes eu era dentista.” ( lit.: “Antes eu era tirador de dente.”)

1.2 Nominalizador {-akid}, {-bondakid} e {-anpikid}

A nominalização feita pelos morfemas {-akid} “nominalizador de passado recente paciente”, {-bokid} “nominalizador de passado não recente paciente”, {-bondakid} “nominalizador de passado distante paciente” e {-anpikid} “nominalizador de passado remoto paciente” forma nomes que participam como objeto, diferenciando-se somente na referência temporal. Podem, ainda, nominalizar sentenças, formando as relativas.

(2)a) sinkuin tamo- -akid -n bi banana assar- - nzr.pass.rec.pac. -erg. 1sg.abs

m- taman- -bo -S mão- queimar- -pass.n.rec. -3.exp.

“A banana, aquela que é assada, me queimou na mão”.

b) gabrieu -n dadawa -akid tanawa- -e -k Gabriel -erg. escrever - nzr.pass.rec.pac. saber- -n.pass. -decl.

bkatsk dadawa- -ek nbi tudemen dadawa- -e -k vagaroso escrever- -n.pass. 1sg.erg. rápido escrever- -n.pass. -decl.

“O Gabriel sabe escrever, mas ele escreve devagar e eu escrevo rápido.”

c) dunu -n pe- -bondakid bi ne- -e -k cobra -erg. morder- - nzr.pass.dist.pac. 1sg.abs. ser- -n.pass. -decl.

Page 113: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

113

Os processos de nominalização na língua Matis (família Pano) [109-116]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

“Eu tenho uma velha mordida de cobra. (Lit. Eu sou alguém que foi mordido por uma cobra há muito tempo.)”

d) i -n tk- -anpikid bi ne- -e -k arraia -erg. ferrar- - nzr.pass.rem.pac. 1sg.abs. ter- -n.pass. -decl.

“Eu tenho uma velha ferroada de arraia.(Lit. Eu sou alguém que tem uma cicatriz muito velha feita por uma ferroada de arraia)”.

1.3 {-esma} nominalizador negativo

Em Matis há, ainda, um nominalizador negativo para S ou A. Uma forma livre de tradução seria “nunca” e “raramente”. Para notarmos que esse é realmente um nominalizador negativo, podemos observar os exemplos 03 (a) e (b): em (a) há a forma afirmativa e em (b) a forma negativa, sendo a única diferença entre os dois exemplos a presença de -akid e de -esma.(3)

a) jose kodoka- -akid ik- -bonda -k José cozinhar - nzr.pac. aux.- -pass.n.rec. -decl.

“José era cozinheiro. (Lit. José era aquele que cozinha).”

b) jose kodoka- -esma ik- -bonda -k José cozinhar- -nzr.neg. aux.- -pass.n.rec. -decl.

“José nunca foi cozinheiro. (Lit. José foi aquele que não cozinha)”

c) paulo -n nawa wtsi -O tonka- -esma Paulo -erg. não-índio outro -abs matar c/ arma- -nunca

“Paulo nunca matou um não-índio. (Lit. Paulo é aquele que não mata não-índio)”

d) rogeru -O u- -esma Rogério -abs. dormir- -nunca

“O Rogério nem sempre dorme. (Lit. Rogério é aquele que não dorme.)”

Forma afirmativa

Forma negativa

Page 114: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

114

Rogério Vicente Ferreira [109-116]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Com os verbos onke- “falar”, kuak- “ouvir”, is- “ver” a sufixação de {-esma} tem um sentido ambíguo, isto é, dependendo do contexto, pode significar, respectivamente, “mudo”, “surdo”, “cego”.(4)a) tanpi -O onke- -esma

menina -abs. falar- -nunca

“A menina nunca fala. (Lit. A menina é aquela que não fala, ou fala pouco)”

a1) tanpi onkesma “A menina é muda”

b) dadasibo -O kuak- -esma velho -abs. ouvir- -nunca

“O velho nunca ouve. (Lit. O velho é aquele que não ouve, ou ouve pouco)”

b1) dadasibo kuakesma “O velho é surdo.”

1.4 Nominalizador {-te} e {-tekid}

O nominalizador {-te}, quando sufixado ao verbo, forma um nome significando “aquilo que é usado para”, denominado ‘nominalizador de instrumento’. Dos sufixos nominalizadores, esse é o mais produtivo por estar sempre formando novos itens lexicais, como vários instrumentos inseridos na cultura: nunte “canoa”, anundante “anzol”, tonkate “espingarda”, datonkete “camisa”. (5)a) nbi Gabrieu -O te- -te ak- -me -e -k

1sg.erg. Gabriel -abs engolir- -nzr. O beber- -caus. -n.pass. -decl.

“Eu fazendo o Gabriel beber o remédio.”

b) Antonio -n tonka- -te bi

Antônio -erg. matar c/ arma- -instr.nzr. semente 1sg.abs.

Page 115: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

115

Os processos de nominalização na língua Matis (família Pano) [109-116]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

bed -un -bo - comprar -benef. -pass.n.rec. -3.exp.

“Antônio comprou cartucho (semente de espingarda) para mim”

c) nukun an- ud- -an- -te iksamadap 1p.poss. boca- fisgar- -antipass. -instr.nzr. ruim

“Meu anzol não presta”.

1.5 {-tekid}

O morfema {-tekid}, semelhantemente ao {-te}, também é um nominalizador de instrumento, mas a diferença semântica que há entre eles é com respeito à especificidade. O morfema {-te} indica um instrumento que realiza uma função instrumental, por exemplo, “canoa” e “vassoura”: nun- “nadar” > nunte “canoa”, beska- “limpar varrendo” > beskate “vassoura”; enquanto {-tekid} indica uma ação intrumental, como em: nes- “tomar banho” > neste > “algo utilizado para tomar banho” > nestekid > “algo utilizado para banhar com função de remédio”.(6)a) mibi nes -tekid 2sg.abs. tomar banho - nzr.esp.instr.

“Aquele com que você toma banho [para curar].”

b) bi dadawa- -tekid 1sg.abs. escrever- - nzr.esp.instr.

“Aquele com que eu escrevo.”

c) beskate beskatekid

vassoura em geral vassoura esp.

d) kueste kuestekid

pau utilizado para bater pau utilizado para bater em algo específico,

como o utilizado no ritual do madiwin.

Page 116: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

116

Rogério Vicente Ferreira [109-116]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Conclusão

Os estudos sobre a nominalização na língua Matis ainda são recentes, um motivo é por essa família linguística ainda não possuir um grande leque de estudos descritivos. Outro motivo a ser levado em consideração é que este é o primeiro ensaio sobre esse tema na língua. Nota-se que o processo de nominalização tem sua complexidade, visto que existem sete morfemas de nominalização, os quais serão utilizados dependendo da formação de palavra e de seu contexto. Ainda falta-nos estudar com mais detalhes tal processo de formação de palavras no contexto semântico, principalmente no que refere aos neologismos, pois o contato recente com a língua portuguesa tem elevado o número de itens lexicais novos que são realizados também por meio desses morfemas nominalizadores. Assim, deseja-se que este breve estudo contribua para o conhecimento de mais uma língua da família pano e desperte interesse em novos pesquisadores sobre o processo de formação de palavras, particularmente no que se trata das línguas indígenas brasileiras.

ReferênciasCOMRIE, Bernard; THOMPSON, Sandra Annear. ‘Lexical nominalization’. In Timothy Shopen, ed.: Language Typology and Syntactic Description, volume III: Grammatical Categories and the Lexicon, 349–398. Cambridge: Cambridge University Press. [Revised version in 2nd edition, 334–381. Cambridge: Cambridge University Press, 2007.

FERREIRA, Rogério Vicente. Língua Matis (Pano): uma descrição gramatical. Campinas, 2005. 341 f. Tese (Doutorado em Lingüística) - Instituto de Estudos da Linguagem. Universidade Estadual de Campinas, 2005.

FLECK, David W. A Grammar of Matses. 2003. 1217 f. Tese (Doutorado em Lingüística). Houston: Departamento de Lingüística, Rice University, 2003.

HOPPE, Paulette M. The structure of nominalization in Burmese. 2003, 326 p. Tese (Doutorado em Lingüística). Department of Linguistic - The University of Texas at Arlington, 2003.

SAUTCHUK, Inez. Prática de morfossintaxe: como e por que aprender análise (morfo) sintática. Bareri-SP: Manole, 2004.

PAYNE, Thomas Edward. Morphosyntax: a guide for fiel linguistics. Cambridge: Cambridge University Press, 1997.

Page 117: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

Linguística Aplicada

Page 118: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido
Page 119: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

119Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Quanto a mim, tudo o que ouço são vozes e relações dialógicas entre elas

Mikhail Bakhtin

Resumo: Neste texto, apresentamos alguns achados iniciais de dados coletados pelo Grupo de Pesquisa Estudos Linguísticos e de Letramento em Mato Grosso. Neste recorte, discutiremos alguns aspectos do discurso de professores de língua portuguesa à luz das considerações do Círculo de Bakhtin sobre linguagem (1992; 2002) e as discussões de Fairclough (1989; 1992; 2003; 2001) que toma o discurso como modo de ação, como uma forma pela qual as pessoas podem agir sobre o mundo e especialmente sobre os outros.

Palavras-chave: Professor. Discurso. Linguagem.

Abstract: In this paper, we present some initial findings of data collected by the Research Group of Language and Literacy Studies in Mato Grosso. In this paper, we discuss some aspects of the speech of portuguese-speaking teachers in the light of the considerations about language Bakhtin Circle (1992; 2002) and discussions of Fairclough (1989; 1992; 2003; 2001) that takes the speech as a mode of action as a way in which people can act upon the world and especially about others.

Keywords: Teacher. Speech. Language.

Discursos do professor de língua materna: um olharMother Language Teacher´S Discourse: A Look

Cláudia Graziano Paes de Barros Universidade Federal de Mato Grosso - Cuiabá

[email protected]

Page 120: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

120

Cláudia Graziano Paes de Barros [119-128]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Este texto tratará de alguns dados relacionados a pesquisas realizadas pelo Grupo de Estudos Linguísticos e de Letramento em Mato Grosso, que congrega pesquisas que tratam de formação de professores de língua materna, abordando questões que vão, desde o ensino-aprendizagem de línguas e transposição didática dos gêneros discursivos, à escolha e uso de livros didáticos.

Revendo o título deste texto, refletimos que talvez devesse ter colocado, ao invés de ‘olhar’, no singular, olhares, com um plural bem marcado, que revelasse não somente o olhar que lançamos para os discursos dos professores que têm nos ajudado a traçar caminhos para as nossas pesquisas, que também envolvem a formação de Professores da rede pública do Estado de Mato Grosso, mas também porque, ao selecionar algumas de suas falas para este nosso encontro, acabamos por perceber outros fios discursivos, que desvelam outros olhares: o olhar do ‘outro’, o professor de português, olhando para os discursos que outros proferem sobre sua prática. Outros olhares também que encaminham o recorte de dados e o enquadre teórico e metodológico sobre o qual construímos este texto: tomando o discurso do professor de língua materna como parte de práticas sociais historicamente situadas.

A partir dessa perspectiva, buscaremos como aporte teórico as considerações do Círculo de Bakhtin sobre linguagem (1926; 1992; 2002) e as discussões de Fairclough (1989; 1992; 2001; 2003) que toma o discurso como modo de ação, como uma forma pela qual as pessoas podem agir sobre o mundo e especialmente sobre os outros.

Nesse ponto de vista, compreender o uso da linguagem como prática social implica compreendê-lo como uma forma de ação historicamente situada que se constitui socialmente e é constitutiva de relações sociais, identidades, sistemas de conhecimento e crenças.

Volochinov/Bakhtin (1926), na obra “Discurso na Vida e Discurso na Arte”, defende que o discurso verbal, tomado no seu sentido mais largo como um fenômeno de comunicação cultural, deixa de ser alguma coisa auto-suficiente e não pode mais ser compreendido independentemente da situação social que o engendra (VOLOCHINOV/BAKHTIN, 1926, p.03).

Page 121: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

121

Discursos do professor de língua materna [119-128]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Em Bakhtin, vemos que a palavra veicula, de um modo privilegiado, a ideologia; a ideologia é uma superestrutura em que as transformações sociais da base se refletem na língua que as veicula. Nessa perspectiva, a palavra serve como um “indicador” das mudanças.

Tendo como pontos de partida esses pressupostos, temos buscado a interlocução com professores da rede pública do Estado de Mato Grosso, procurando ouvir suas vozes, de modo que sua palavra possa ser indicadora de mudanças no contexto do ensino-aprendizagem de Língua Materna. O que pretendemos nesses encontros é criar um espaço para uma reflexão crítica das práticas docentes a partir de seu ponto de vista, suas impressões, seu discurso. Nas palavras de Magalhães (2004, p. 25),

Ao apontar a natureza social e dialógica constitutiva da linguagem o quadro da pesquisa sócio-histórica/cultural pressupõe um conceito de ensino-aprendizagem que aponta para um diálogo permanente entre os discursos dos participantes da interação, que, em geral, não é simétrico ou harmonioso, uma vez que configura significações de comunidades, de culturas, e de experiências diferenciadas.

Para este texto, selecionamos algumas dessas vozes, que dividimos em três grupos: “As imagens e a Língua Portuguesa”, “Valor da Disciplina” e “O que ensinar”?

1. As imagens e a Língua Portuguesa

[...] Eu cuido da minha postura, eu cuido da minha aparência, cuido do meu jeito de andar, do meu jeito de expressar, da minha mímica, e eu procuro assim... ver se tá coordenando meus movimentos, eu acho que é importante a harmonia em seu corpo com aquilo que você fala, com suas idéias, tem que tá ligado (Prof. A. A)[...] eu sempre cobrei uma postura dos meus colegas, uma postura profissional, a partir do momento que você se dá... é... não é ao luxo... mas que você se oferece para trabalhar com a língua, como profissional dela, você tem que ter uma postura de profissional, de uma criticidade, de um avanço, de uma modernidade... (Prof. J.A.)[...] acontece que eu não me encontro atualizada pra pisar numa sala do 2º grau pra dar inglês, não me encontro atualizada e não vou pisar lá pra queimar a minha imagem de professor de português que eu demorei anos pra construir, num dia, você queima sua imagem, num dia, numa aula... (Prof. G. A.)

Page 122: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

122

Cláudia Graziano Paes de Barros [119-128]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

[...] Olha, eu me preocupo sim, porque a gente tá dentro de um sistema, né, então a gente tem que se preocupar com certas coisas, mas não faço disso uma coisa constante na minha cabeça: tenho que ser assim porque sou professora de português. Pra mim, o objetivo, tem que ser natural o mais natural possível, né?[...] primeiro eu sou uma pessoa, eu sou gente, então de repente eu não vou ser um computador que vai ser perfeito, mas eu procuro passar uma imagem, né de que eu tenho conhecimento daquilo com que eu trabalho, com que eu me propus trabalhar, né, eu procuro... os alunos precisam disso... (Prof. A. A.).

Nesses excertos, observa-se que, quando se trata da imagem do professor, aparece a palavra ‘postura’ que em alguns relatos remetem à apresentação física, em outros, relaciona-se com postura profissional. Tanto na acepção de apresentação física, quanto na de atitude profissional, pode-se notar um traço comum em ambas: ensinar a Língua Portuguesa traz responsabilidades, é preciso se apresentar ‘bonito’ ou ‘bem’, que, no dizer de Padilha (1997, p. 67), confunde-se com um chamamento a “uma postura profissional”, que denota uma cobrança em “Tom maior”, não só do fazer e do saber, mas do como mostrar esse saber e esse fazer.

Refletindo, com Bakhtin (2000, p. 50-51), sobre o assunto, encontramos:

Para dar vida à minha imagem externa e para fazê-la participar do todo visível [...], o da validação emotivo-volitiva da minha imagem a partir do outro e para o outro; porque, dentro de mim mesmo, tenho apenas a minha própria validação interna, uma validação que não posso projetar sobre minha expressividade externa, pois esta é separada da minha percepção interna, o que faz com que me pareça ilusória, num vazio absoluto de valores. Entre minha percepção interna – de onde procede minha visão vazia – e minha imagem externa, é absolutamente necessário introduzir, tal como um filtro transparente, o filtro da reação emotivo-volitiva – amor, espanto, piedade etc. – que um outro pode ter para comigo.

É essa validação emotivo-volitiva da imagem a partir do olhar do outro que parecem buscar os professores entrevistados: a apreciação estética do outro sobre o professor traduz-se em apreciação ética sobre a sua competência profissional. Para os professores entrevistados, essa ‘postura’ (física ou de atitude profissional) é fundamental quando se trata de ensinar a língua portuguesa:

Page 123: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

123

Discursos do professor de língua materna [119-128]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

[...] eu sempre cobrei uma postura dos meus colegas, uma postura profissional, a partir do momento que você se dá... é... não é ao luxo... mas que você se oferece para trabalhar com a língua, como profissional dela, você tem que ter uma postura de profissional, de uma criticidade, de um avanço, de uma modernidade... (Prof. J. A.).

A partir dessas considerações, procuramos investigar o valor da disciplina para os professores e os outros que lhes lançam olhares.

2. Valor da Disciplina

Uma vez a gente estava conversando, na época eu dava língua, eu disse que a colega me perguntou: O que é que você leciona? Eu disse – Língua portuguesa – ela disse: “Eu acho esse nome muito pomposo, eu digo que dou só português”... (Prof. R. A)

O valor atribuído ao professor de língua portuguesa na escola, vamos dizer assim, é um mega-valor, eles veem você como uma pessoa diferente, inclusive quando eles vêm dialogar com você, ele se preocupa de se manter uma postura que não é o hábito dele, correto? [...] há um certo forjar de vocabulário na fala, na maneira de falar, na postura, na procura das palavras, de léxico, de vocabulário... (Prof. J. A)

[...] a gente percebe mesmo até a maneira [...] as pessoas se dirigem a você diferente, já tenho experiências diversas assim das pessoas às vezes falando normalmente uma com a outra, tal, e de repente fala comigo, já muda de tom, muda de entonação usa outras expressões [...] eu já tive experiências com diretores de escola, é, supervisores, que vão falar comigo toda hora fica assim: - Eu não sei se falei certo, você que é professor de língua portuguesa, eu não sei se essa expressão está certa, a senhora deve saber mais porque a senhora é professora de português... então eu fico assim, falá o que? Eu não tô preocupada com a maneira com que ele tá falando, mas ele tá, assim se justificando tudo o que ele tá falando pra mim [...].

[...] Depois eu não sei o que eu escrevi e faltou, acho que uma crase, ela, minha colega, falou assim: PRO-FES-SO-RA M.! Quando chama de “Professora M.”, você já percebe a bronca, aí tem... (Prof. M. A).

A questão da tradução de termos, dentro de radicais gregos e latinos, dentro da biologia, da matemática [...] toda aquela questão técnica da disciplina, ele acha que o professor de português não pode esquecer, e, além de não poder esquecer naquele momento, o professor de português tem que guardar inclusive os nomes de livros e autores pra tá indicando [...] (Prof. J. A).

Page 124: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

124

Cláudia Graziano Paes de Barros [119-128]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

[...] talvez o professor de português se sinta envaidecido porque tá tendo o privilégio, a oportunidade de ensinar a língua, o vernáculo... (Prof. J. B.).

[...] vejo até com um pouco de tristeza o estigma que tem em volta do professor de língua portuguesa, sabe, que língua portuguesa é o bicho de sete cabeças, que é ruim que gramática é péssima... Professor de português é um horror, matemática a mesma coisa [...] (Prof. S. A).

O papel social do professor de língua portuguesa está vinculado, na concepção dos professores, ao valor da disciplina, desvelado nas falas dos professores “J. A.” – um mega-valor, eles veem você como uma pessoa diferente – e “J. B.” – é o papel de quem tem o privilégio de ensinar a língua, o vernáculo...

A partir dessa perspectiva de valor, em que o ensinar a língua materna traduz ‘mais responsabilidade’, mais exigências que partem dos colegas professores, da instituição escolar, dos pais dos alunos, colocando o professor ora como alguém bastante avaliado, observado pelos outros como detentor (protetor, cuidador) de um “saber privilegiado”, veículo de poder e ideologias, a quem, nesse posto de guardião, não é permitido errar, esquecer, se ausentar da guarda nem por instante; caso um erro ou esquecimento, um deslize gramatical ocorra, como exprime a Prof. C., “já tem bronca...”. Refletindo sobre esses relatos, observamos a expressão língua portuguesa, traduzida nos excertos apenas como a variante culta da língua que o professor tem de conhecer e expressar em todas as circunstâncias da vida social, a língua como veículo de poder e autoridade...

Observamos, nesses excertos, a expressão língua portuguesa denotando aquilo que Bakhtin (1992) traduz como a palavra enquanto signo ideológico por excelência; que registra as menores variações das relações sociais, não somente para os sistemas ideológicos constituídos, mas também para o que denominou de “ideologia do cotidiano”, que se exprime na vida corrente, a palavra como o cadinho onde se formam e se renovam as ideologias constituídas.

Essa renovação das ideologias constituídas que relegam formas de falar variadas a uma redução da variante culta como única forma aceitável e permitida ao professor de português, uma variante que ele

Page 125: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

125

Discursos do professor de língua materna [119-128]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

não pode esquecer ou deixar de usar em quaisquer outras esferas da vida, não somente a escolar, ocasiona, algumas vezes, o que apontou o Prof. J. A.: um certo forjar de vocabulário na fala, na maneira de falar, na postura, na procura das palavras, de léxico, de vocabulário...

Emprestando o conceito de ideologia da Análise do Discurso Crítica, fundamentada na Teoria de Thompson (1995), vemos que a ideologia, por natureza, é hegemônica, no sentido de que estabelece e sustenta as relações de dominação e, por essa razão, serve para reproduzir a ordem social que favorece indivíduos e grupos dominantes.

Em Fairclough (2003), encontramos a explicação de que ideologias são, em princípio, representações, que podem ser legitimadas em formas de ação social e inculcadas nas identidades de agentes sociais. Essas legitimações são desveladas nas falas dos professores, em expressões que per si denotam tristeza, estigma, um horror, bicho de sete cabeças...

Tais contextos, aliados a uma formação deficitária, carente de um bom embasamento teórico, não somente de teorias de ensino-aprendizagem de línguas, mas do conhecimento mesmo da língua enquanto sistema, ocasionam uma série de confusões (ou problemas) no contexto do ensino-aprendizagem de língua materna.

Na seção que segue, apresentamos uns poucos excertos que procuram retratar o professor frente ao que deve ensinar.

3. O que ensinar?

Eu vou falar a verdade, professora, fico muito confusa, porque tem muita gente que diz que num tá mais na moda ensinar gramática... aí eu pergunto... como vou mostrar pra eles que aquele verbo está errado, a conjugação está mal empregada? (Prof. G. A).

[...] Na minha escola, o pessoal tava falando que era pra gente ensinar através de projeto, daí a gente sentava, planejava projetos interdisciplinares, botava os meninos pra fazer a pesquisa, tipo, uma pesquisa de ciências, que a professora de ciências definia o tema, eles pesquisavam, escreviam, aí eu corrigia os textos para eles prepararem os cartazes, mas o pai vinha e dizia, num tem aula mais de português? Quando a senhora vai ensinar verbo, professora? É difícil, entende?... Então, paramos de fazer os projetos

Page 126: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

126

Cláudia Graziano Paes de Barros [119-128]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

e cada um tá fazendo do seu jeito, eu vou seguindo meus livros, um que trabalha bem os temas dos textos, a interpretação, umas regrinhas... assim...

Olha, esse negócio de fazer cursinhos de reciclagem vai dando um cansaço na gente... Por que uma hora, tá na moda ensinar texto, outra hora ninguém mais tá falando em texto por que tá na moda ensinar gênero [...] (Prof. J. B. A).

Se observarmos as recomendações dos Parâmetros Curriculares Nacionais (1998) sobre o ensino língua portuguesa, vemos que este deve ocorrer a partir de uma visão e de uma dimensão discursiva, em que se tome o texto como unidade de ensino a partir da qual se realizam as atividades de ensino-aprendizagem em um eixo USO - REFLEXÃO – USO:

Tomando-se a linguagem como atividade discursiva, o texto como unidade de ensino e a noção de gramática como relativa ao conhecimento que o falante tem de sua linguagem, as atividades curriculares em Língua Portuguesa correspondem, principalmente, a atividades discursivas: uma prática constante de escuta de textos orais e leitura de textos escritos e de produção de textos orais e escritos, que devem permitir, por meio da análise e reflexão sobre os múltiplos aspectos envolvidos, a expansão e construção de instrumentos que permitam ao aluno, progressivamente, ampliar sua competência discursiva (PCN, 1998, p. 27).

O que se observa, no entanto, no discurso dos docentes é uma profunda distância entre o que preconizam os Parâmetros Curriculares e a prática dos docentes. Utilizar-se dos gêneros discursivos, desenvolver projetos, deixar de ensinar gramática... Todas essas noções disseminadas em breves cursos de capacitação, muitas vezes ministrados por pessoas mal preparadas, que não promovem conhecimento ou mesmo discussões e reflexões sobre as atividades que se devem ensinar na escola, acabam por criar confusão e um esvaziamento das aulas de língua portuguesa, que muitas vezes se reduzem, hoje, a leitura de textos descontextualizados, a projetos interdisciplinares em que se perde o foco dos tópicos de desenvolvimento linguístico que se deveria trabalhar, ocasionando, dessa forma, a perda dos objetivos e do objeto de seu trabalho.

Os trechos selecionados das falas dos professores são parte dos dados que coletamos para pensar sobre a organização do curso de formação

Page 127: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

127

Discursos do professor de língua materna [119-128]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

de professores de Língua Portuguesa para o trabalho com os gêneros discursivos em salas de aula do Ensino Fundamental, em convênio do Grupo de Estudos linguísticos e de Letramento em Mato Grosso, vinculado ao Mestrado em Estudos de Linguagem da Universidade Federal de Mato Grosso e a rede municipal de Várzea Grande, MT. Procuramos, através dos relatos, entrevistas, depoimentos e diários “ouvir as suas vozes”, buscando estabelecer as relações dialógicas entre elas. Estamos, neste momento, entrando nesse diálogo, ora com reconhecimento de cenários e situações semelhantes aos que já vivenciamos como professoras de português, ora com espanto, frente à profusão de idéias sobre o que deve (ou pode) ser ensinado nas aulas de língua materna.

Em Volochinov/Bakhtin (1926, p. 10) os autores defendem que na poesia, como na vida, o discurso verbal é o um “cenário” de um evento. No âmbito dessa investigação, procuramos entender o evento, para que o cenário se descortinasse com mais clareza aos nossos olhos.

Refletimos, com Bakhtin (2000, p. 86) que

O enunciado existente, surgido de maneira significativa num determinado momento social e histórico, não pode deixar de tocar os milhares de fios dialógicos existentes, tecidos pela consciência ideológica em torno de um dado objeto de enunciação, não pode deixar de ser participante ativo no diálogo social. Ele também surge desse diálogo como seu prolongamento, como sua réplica [...].

Não pretendemos, neste momento, fechar as possibilidades de análises e discussões possíveis, nem apresentar respostas para questões acerca da formação e das crenças docentes sobre si, sua prática e seu papel social, fechamos as nossas reflexões neste texto, o qual, como parte dessa corrente discursiva, não pretende encerrar, mas sim tocar os infinitos fios dialógicos que têm sido tecidos nas últimas três décadas.

Diante de uma profusão de teorias de ensino-aprendizagem, de modismos, de falas apressadas de alguns agentes institucionais que, muitas vezes, nem têm uma formação em um curso de Letras ou Linguística e procuram impor o que deve ou não ser feito nas aulas de língua materna, observamos um professor procurando encontrar saídas, respostas...

Page 128: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

128

Cláudia Graziano Paes de Barros [119-128]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Retomando, nesta conclusão, a perspectiva teórico-metodológica que traçamos do discurso do professor de língua materna como parte de práticas sociais historicamente situadas, nossa próxima etapa de trabalho é refletir sobre esses discursos com os professores, de forma a situarem seu discurso e sua prática enquanto agentes de transformação social.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. /VOLOCHINOV, Valentin. Discurso na vida e discurso na arte (sobre poética sociológica). Tradução de Carlos Alberto Faraco e Cristóvão Tezza. Circulação restrita, 1926.

______. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Editora Hucitec, 1992.

BAKHTIN, Mikhail. M. O autor e o herói. In Bakhtin, Mikhail. M. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, p. 23-220, 2000.

______ O discurso na poesia e o discurso no romance. In: Questões de Literatura e Estética – a teoria do romance. São Paulo: Editora UNESP- Hucitec, 2002. p.85-106.

______ Os gêneros do discurso. In: Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, p. 277-326, 2000.

_________ Apontamentos In: Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, p. 369-397, 2000.

BRASIL SEF/MEC. Parâmetros Curriculares Nacionais, Língua Portuguesa, 1998.

FAIRCLOUGH, Norman. Language and Power. New York: Longman, 1989.

________ Discourse and social change. Cambridge: Polity Press, 1992.

________ A análise crítica do discurso e a mercantilização do discurso público: as universidades. In: MAGALHÃES, Cecília. (Org.) Reflexões sobre a análise crítica do discurso. Belo Horizonte: Faculdade de Letras, UFMG, p. 31-82, 2001.

________ Analysing discourse. Routledge: Taylor & Francis Group. London and New York, 2003.

MAGALHÃES, Cecília. (Org.) A formação do professor como um profissional crítico: linguagem e reflexão. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2004.

PADILHA, Simone. J. Olhares sobre o Professor de Língua Portuguesa: um estudo de Representações Sociais. 1997.

THOMPSON, John. B. Ideologia e cultura moderna. Petrópolis: Vozes, 1995.

Page 129: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

129Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Resumen: Este trabajo tiene como objetivo general discutir algunos aspectos de la enseñanza de los fraseologismos a aprendices brasileños de español como lengua extranjera desde una perspectiva cognitiva. Situado en el marco teórico de la Teoría Cognitiva sobre la Metáfora y la Metonimia (TCMM), desarrollada inicialmente por Lakoff y Johnson (1980), buscamos aplicar sus principios al análisis de algunas unidades fraseológicas del español y del portugués y, acto seguido, mostrar la importancia de esa teoría para la enseñanza de los fraseologismos a aprendices brasileños de E/LE. Los resultados indican que la visión que ofrece la TCMM puede facilitar la enseñanza y el aprendizaje de muchas unidades fraseológicas. La motivación metafórica subyacente a los fraseologismos permitirá al profesor no sólo agruparlos en torno a las imágenes que suscitan, sino también establecer paralelismos (metafóricos, léxicos, morfológicos y sintácticos etc.) entre los fraseologismos de la lengua materna y los de la lengua meta, contribuyendo a su memorización.

Palabras-clave: Enseñanza. Lengua. Cognitivismo. Metáfora. Fraseologismos.

Abstract: The objective of this paper is to discuss some aspects of the teaching of phraseology units of the Spanish language from a cognitive perspective, as our theoretical point of view is based on the Cognitive Theory of Metaphor and Metonymy (CTMM), initially developed by Lakoff and Johnson (1980).

La enseñanza de lenguas desde una perspectiva cognitiva: foco sobre los fraseologismosLanguage teaching from a cognitive perspective: focusing on phraseology

Elizabete Aparecida Marques Centro de Ciências Humanas e Sociais

Universidade Federal de Mato Grosso do Sul/ Campo [email protected]

Page 130: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

130

Elizabete Aparecida Marques [129-141]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Specifically, we have tried to apply the principles of this theory to the analysis of some phraseological units of Spanish and Portuguese to show the importance of this theory to the teaching of phraseology units to Brazilian learners of Spanish as a foreign language. Our discussions indicate that the vision that the CTMM offers can facilitate the teaching/learning of phraseology, as the metaphorical motivation of meaning of these units will make possible to group them according to the images they raise, enabling the learners to establish parallels (metaphorical, lexical, morphosyntactic, etc.) between the phraseology of their mother tongue and target language.

Keywords: Teaching. Language. Cognitivism. Metaphor. Phraseology.

Introducción

En nuestra labor docente en la enseñanza de Español como Lengua Extranjera (E/LE) en Brasil nos hemos encontrado muchas veces con las dificultades que presentan los aprendices en su proceso de adquisición/aprendizaje1 de las unidades fraseológicas. Esas dificultades se evidencian y son más acentuadas cuando se trata, principalmente, de aquellas unidades que tienen un alto grado de idiomaticidad. Es decir, las expresiones que parecen reflejar en su formación léxico-semántica, factores históricos, sociales y culturales de la lengua meta2. En este sentido, Kövecses & Szabó (1996, p. 326-331) ya señalaban que los fraseologismos3 constituyen una de las áreas más difíciles del aprendizaje de una lengua extranjera, tanto para el alumno como para el profesor, debido a razones prácticas y teóricas.

Podemos decir, incluso, que existe un sentimiento generalizado de frustración cuando, después de muchas horas de clases y de ejercicios

1 Cf. Krashen (1981).2 En la literatura sobre enseñanza/aprendizaje de lenguas se emplean también los términos “lengua de llegada”, “segunda lengua” o “L2”.3 Unidades fraseológica, expresiones fijas, formas plurilexicales, entre otros términos. En los estudios fraseológicos del portugués generalmente se usa el término expresión idiomática.

Page 131: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

131

La enseñanza de lenguas desde una perspectiva cognitiva [129-141]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

que objetivan posibilitarle al aprendiz la asimilación de las unidades fraseológicas, nos sorprendemos con la escasez de su ocurrencia en las producciones tanto orales como escritas de los alumnos, que generalmente, emplean las siguientes estrategias:

- el uso de estructuras libres;- el intento de traducción literal de la expresión correspondiente en portugués; - la inadecuación de la construcción sintáctica;- la solicitación de interferencia al profesor, que a veces desconoce o no se acuerda de la expresión española, y tiene que investigar en los diccionarios, lo que le hace aplazar su presentación para otro momento, cuando la necesidad comunicativa del aprendiz ya no está en foco.

Relacionamos, anteriormente, la escasez de ocurrencia de las unidades fraseológicas a las producciones orales de los aprendices porque entendemos que el uso de los fraseologismos es más bien pertinente y más abundante en el discurso oral, dadas las condiciones que favorecen su empleo, es decir, el habla coloquial y espontánea, propias de este nivel de la lengua.

No obstante, los planteamientos antes expuestos nos han conducido a una reflexión acerca del tema con el fin de encontrar posibles respuestas que pudieran arrojar luz a algunas indagaciones iniciales y que, evidentemente, tienen que ver con las dificultades de nuestros aprendices:

1. ¿Qué mecanismos utilizan las lenguas en el proceso de formación de las unidades fraseológicas?2. ¿Qué hacer para que el aprendizaje de las unidades fraseológicas ocurra de manera más efectiva?

Para dar cuenta de estas cuestiones, pensamos que la lingüística cognitiva, especialmente la teoría cognitiva sobre la metáfora y la metonimia, puede explicar el mecanismo de formación de las UFs y contribuir a la enseñanza y el aprendizaje de las mismas.

Page 132: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

132

Elizabete Aparecida Marques [129-141]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

1. La lingüística cognitiva

La lingüística cognitiva es una rama de la lingüística que surge a finales de los años ochenta de la mano de algunos disidentes de la gramática generativa, concretamente, Lakoff y Langaker. Desde el inicio, se presenta como un modelo integrador y heterogéneo, pues resulta de la confluencia de distintos enfoques de investigación que comparten principios comunes sobre el lenguaje y el estudio de las lenguas, por lo que se puede decir que se trata de un paradigma interdisciplinario.

En líneas generales, los fundamentos principales que definen este paradigma consisten en la concepción del lenguaje como un fenómeno de naturaleza cognitiva y simbólica de carácter no autónomo, por lo que las estructuras lingüísticas están intrínsecamente conectadas con el conocimiento y el pensamiento y deben entenderse en relación con la función comunicativa del lenguaje. El conocimiento, a su vez, se fundamenta en modelos de la experiencia corporal, creados a través de la actividad sensorial y motora. Así, pues, la lingüística cognitiva plantea cómo interactúan el cuerpo, la mente y el lenguaje y, en consecuencia, este último refleja, en cierta medida, la estructura de la experiencia, incluida la experiencia del mundo. La lingüística cognitiva da mucha importancia a la interrelación de la semántica y la pragmática, lo que, entre otras implicaciones, conlleva la idea de que existe una relación entre los componentes de la gramática, que, a su vez, se concibe como una entidad de carácter dinámico, siempre cambiante por el uso.

1.1. Metáfora y metonimia: fenómenos fundamentales de motivación fraseológica

Para el estudio de las unidades fraseológicas, resulta de especial interés los conceptos de metáfora y de metonimia. La semántica cognitiva define la metáfora como un mecanismo cognitivo de organización e interpretación del mundo, por lo que, según Lakoff y Johnson (1980), forma parte de la vida cotidiana del ser humano. Por medio de este mecanismo, el individuo organiza el mundo a partir un proceso de relaciones de similitud, analogía y transferencia semántica entre los dominios del conocimiento, estableciendo para ello, correspondencias de tipo ontológico, estructural y espacial

Page 133: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

133

La enseñanza de lenguas desde una perspectiva cognitiva [129-141]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

entre un dominio denominado fuente y otro dominio denominado meta, mientras que la metonimia es un mecanismo referencial que establece relaciones dentro de un mismo dominio.

Gran parte de los significados figurados de muchas unidades fraseológicas (UFs) son parcialmente motivados (y no enteramente arbitrarios) por diferentes metáforas conceptuales que proyectan la información desde un dominio conceptual (dominio fuente) hasta otro dominio (dominio meta). Así, los significados literales e idiomáticos interactúan en el lexicón mental de los hablantes, de manera que se establece una estrecha relación entre la base de motivación metafórica y el significado unitario de la unidad fraseológica. Por eso, una unidad fraseológica no se configura únicamente como una expresión que tiene un significado especial con relación al significado de sus partes constituyentes. Surge del conocimiento general del mundo (corporeizado en nuestro sistema conceptual).

En consecuencia, las personas deben de tener un conocimiento tácito de la base metafórica de las expresiones, puesto que los significados idiomáticos están motivados por imágenes convencionales y metáforas conceptuales, lo que guía el proceso interpretativo. La motivación metafórica y metonímica permite la agrupación de las unidades fraseológicas pertenecientes a un campo –dominio meta- de acuerdo con sus ámbitos conceptuales figurativos –dominios fuentes-.

De esta manera, la metáfora es pertinente al modelo cognitivo ya que constituye generalmente creaciones personales del hablante que se han establecido en la lengua o están en vías de hacerlo como estructura de discurso repetido, convirtiéndose en combinación fija de palabras, es decir, en unidad fraseológica. En otras palabras, procedimientos como la metáfora y la metonimia han posibilitado la fosilización de un enunciado figurado.

A continuación presentaremos algunos tipos de metáfora que están en la base de la constitución fraseológica. Los ejemplos de unidades que ofrecemos se han extraído del Diccionario Fraseológico Documentado del Español Actual y de los diccionarios Houaiss y Aurelio de la lengua

Page 134: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

134

Elizabete Aparecida Marques [129-141]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

portuguesa. Entre la tipología metafórica, propuesta por Ruiz Gurillo (2001), podemos encontrar muchas locuciones que se estructuran en torno a:

1. Metáforas orientacionales: generalmente se construyen en torno a la idea de movimiento en sentido “hacia arriba/abajo”, “hacia la derecha/izquierda”. Específicamente, en torno a la noción de que “más es arriba”; “menos es abajo”, como ocurre en las locuciones adverbiales hasta las narices, hasta la coronilla, hasta el gorro, hasta el culo, hasta la polla, hasta la coña etc., que según Ruiz Gurillo (2001), “conceptualizan la idea como espacio físico en términos de más o menos”.

Así, la idea de “hartazgo” aparece a partir de la señalización de un límite físico encontrado en la parte superior del cuerpo en términos de más o menos. Si contrastamos con la locución equivalente en portugués “estar até o pescoço”, “estar de saco cheio”, se nota que hay también una idea de cuerpo como espacio físico para señalar, en el primer ejemplo, hasta que punto uno soporta determinada situación o que este espacio (“los cojones”) ya está lleno, es decir, ya ha agotado su límite, idea que prevalece en el segundo ejemplo.

2. Metáforas conceptuales: en este grupo se encuentran las unidades fraseológicas que constituyen formas de considerar acontecimientos, actividades, emociones, ideas etc., como entidades y sustancias. De esta manera, muchas locuciones se construyen a partir de la noción del campo visual como un recipiente, pues conceptualizamos lo que vemos como parte integrante del espacio que dominamos con la vista. Son ejemplos las locuciones a un tiro de piedra, a la vuelta de la esquina (para expresar proximidad espacial o temporal), pasar de largo (con el sentido de ignorar algo), que en portugués se construyen a partir del empelo de otras imágenes que no coinciden con ésas.

Por otro lado, hay locuciones que comportan una imagen esquemática que permite establecer o reconocer semejanzas entre los

Page 135: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

135

La enseñanza de lenguas desde una perspectiva cognitiva [129-141]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

objetos o hechos físicos y las situaciones. Así, en las locuciones sin tapujo, sacar la lengua (a uno), que expresan, respectivamente, las ideas de claridad y burla tienen un hecho físico como mecanismo originario e instrumento motivador del nuevo sentido figurado, cuya interpretación puede estar garantizada por el proceso de inferencia del interlocutor. Es decir, en las expresiones originarias de procedimientos metafóricos y metonímicos, el trasvase semántico puede resultar de procedimientos inferenciales posibilitados por el conocimiento de mundo, el conocimiento del contexto sociolingüístico y cultural compartido por los interlocutores. Esta perspectiva se basa en la idea general de que parte de nuestras creencias, conocimientos e ideas son producto de nuestra experiencia perceptual y de nuestro desarrollo conceptual y verbal. De esa manera, la formación de las unidades fraseológicas es, por un lado, producto de nuestra experiencia perceptual del mundo, y por otro, producto de construcciones discursivo-culturales que interiorizamos a partir de nuestras prácticas discursivas ligadas a entornos y contextos diversos.

En esta misma línea, Iñesta Mena y Pamies Bertrán (2002) crean un modelo metodológico, denominado modelos icónicos y archimetáforas. Aplicando este modelo a ejemplos más concretos, la metáfora particular “estar hasta las narices” tiene un dominio meta, en este caso, la idea de “hartazgo”, o en términos más generales, la idea de ira, y está basada en un modelo icónico, en este caso, una combinación de dominios fuente (movimiento + cuerpo), es decir, en una archimetáfora cuyo movimiento corporal va hacia arriba.

Para demostrar que los modelos icónicos como las archimetáforas se repiten en el análisis de otros dominios y en otras lenguas, se presentan ejemplos en los que el modelo icónico (movimiento + cuerpo) es aplicable a otros dominios meta, como por ejemplo, el miedo, la ira y el trabajo. Estableciendo comparaciones entre el español y el portugués tendríamos los dominios conceptuales que se presentan a continuación.

Page 136: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

136

Elizabete Aparecida Marques [129-141]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

1. El miedo

Entre las imágenes que suscita el miedo destaca la que relaciona esa emoción a un movimiento corporal vibratorio. Este modelo metafórico se apoya en la idea de descontrol desde una motivación natural, es decir, la metonimia efecto-causa. Aunque las lenguas pueden diferir en qué partes anatómicas eligen para simbolizar el miedo a través del movimiento involuntario, lo que sí es común y muy productivo en todas ellas es la pérdida de control sobre la motricidad. Ocasionalmente, a dicha metonimia se le añade otra metáfora que proyecta la forma de vibrar de ciertos objetos o sustancias (vibrar como un flan, por ejemplo), como puede observarse en las siguientes unidades:

ESPAÑOL PORTUGUÉS

Temblar de miedo Tremer de medo

Estremecerse de miedo Tremer de susto

Temblarle las piernas (a alguien) Tiritar de susto

Temblarle las carnes (a alguien) Tremer nas bases

Dar diente con diente Tremer as pernas

Temblar como un azogado Sentir o coração aos pulos

Temblar como un flan Tremer como vara(s) verde(s)

Estar como un flan Tremer como un ramo

Temblar como un azogue

2. La ira

El segundo modelo icónico que estudian Iñesta Mena y Pamies Bertrán (2002, p.129-150) es la expresión de la ira, cuyos dominios fuente son en buena medida los mismos que intervienen en la expresión del miedo. No obstante, la ira va casi siempre relacionada con la temperatura. De esta manera, el cuerpo se ve como un recipiente cuyo contenido se calienta a causa de la ira y que, si se calienta hasta cierto punto límite, se produce explosión o fuego. Este mecanismo se verifica incluso por simetría en expresiones antónimas. Es decir, la imagen del

Page 137: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

137

La enseñanza de lenguas desde una perspectiva cognitiva [129-141]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

frío se usa para describir el control de los sentimientos, especialmente el de la ira. Obsérvense como la relación cuerpo-temperatura se manifiesta en las expresiones abajo:

ESPAÑOL PORTUGUÉS

Ponerse a cien Explodir de raiva

Estar que arde (alguien) Ficar esquentado

Echar rayos y centellas Deitar fogo pelos olhos

Echar fuego por los ojos Soltar faíscas pelos olhos

Echar chispas Cuspir fogo*

Echar centellas/chiribitas

3. El trabajo

Según Iñesta Mena y Pamies Bertrán (2002, p.209), existe una gran cantidad de unidades fraseológicas relacionadas con el concepto de trabajo. Dichas expresiones aluden a la idea de esfuerzo, sea físico o mental. Dentro de este concepto, aparece el modelo icónico según el cual el trabajo, en este caso de la mente, es un calentamiento del cuerpo:

ESPAÑOL PORTUGUÉS

Cocerse los sesos Cozinhar os miolos

Calentarse los sesos Esquentar os miolos

Calentarse los cascos Esquentar o cérebro

Calentarse la cabeza Esquentar a cabeça

1. La enseñanza de los fraseologismos desde una perspectiva cognitiva

Tras abordar ciertos aspectos cognitivos relacionados a los mecanismos de construcción y fijación de las unidades fraseológicas a partir de los presupuestos teóricos de la teoría cognitiva sobre la metáfora, nos parece útil e interesante reflexionar sobre el proceso de enseñanza/aprendizaje de dichas unidades.

Partimos del supuesto de que en el proceso de adquisición lingüística, los seres humanos van adquiriendo gran cantidad de

Page 138: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

138

Elizabete Aparecida Marques [129-141]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

estructuras fraseológicas que se van integrando a su conocimiento enciclopédico cultural, social y del medio en que viven. Según Levorato y Cacciari, citadas por Ruiz Gurillo (2001), las etapas de adquisición de las estructuras idiomáticas están condicionadas por el desarrollo del lenguaje y por el desenvolvimiento de otras capacidades cognitivas. En su estudio, las autoras demostraron que a los siete años, aproximadamente, el niño ya es capaz de comprender y usar expresiones idiomáticas. Tal estudio, referente principalmente a las locuciones verbales, demuestra que el contexto es el elemento más importante para su correcta interpretación y producción. Otros factores como la familiaridad con la estructura, actúan de forma secundaria.

De hecho, como postula Ruiz Gurillo (2001), “el niño procurará una interpretación coherente usando las diversas formas de interpretación que se encuentran a su alcance como el contexto, la familiaridad, etc”. Cuando no se puede interpretar una estructura de forma literal se procurará su interpretación a partir del contexto. En este proceso, la estructura semántica y la transparencia de la combinación figurada desempeñan un importante papel.

De la misma manera que las metáforas, la ironía o los chistes, las expresiones idiomáticas son construcciones, generalmente, ambiguas que pueden provocar dificultades de comprensión y producción, tanto oral como escrita, a los aprendices de lenguas extranjeras (LE). Ya que la mayoría de las expresiones idiomáticas se constituyen en sintagmas fijos que forman parte del acervo cultural de un pueblo, cuesta mucho aprender las expresiones de una lengua, su forma, su significado y sus condiciones de uso.

En lo que se refiere a la enseñanza/aprendizaje de lenguas son frecuentes las referencias a las dificultades, como también apuntamos anteriormente, que supone aprender las unidades fraseológicas de una lengua extranjera. El carácter definitorio y, a la vez, peculiar de las unidades fraseológicas: ser una combinación fija de palabras y, en muchas ocasiones, presentar un significado que no se puede desprender del significado de los elementos que la constituyen, justifica la dificultad que tiene, por ejemplo, el aprendiz brasileño de español como lengua

Page 139: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

139

La enseñanza de lenguas desde una perspectiva cognitiva [129-141]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

extranjera para incorporar a su competencia comunicativa tales unidades. No obstante, como destaca Penadés Martínez (1998, p. 7),

las dificultades no existen solamente en la parte discente y no se relacionan de modo exclusivo al carácter intrínseco de las unidades fraseológicas. Según la autora, para el profesor de ELE resulta muy complejo enseñarlas no sólo por la fijación formal por su idiomaticidad, sino también por la carencia de investigaciones que indiquen que expresiones se deben enseñar en cada nivel, por la escasez de material específico sumada a la falta de conveniencia que presentan, en general, los libros de texto y diccionarios y, finalmente, por la falta de adecuación de algunos procedimientos didácticos empleados en la presentación de estas unidades a los alumnos.

Nos surgen algunas propuestas que podrían arrojar luz a la cuestión. Primeramente, planteamos la enseñanza/aprendizaje de lenguas dentro de un modelo comunicativo que posibilite al aprendiz vivenciar, experienciar la lengua meta a partir de situaciones reales de comunicación. Es decir, poner el alumno en contacto con muestras discursivas que contextualicen el sistema lingüístico que está aprendiendo. De ahí surge también la necesidad de materiales auténticos que posibiliten el trasvase de informaciones sociolingüísticas y socioculturales, que generalmente son transmitidas por medio de las situaciones de uso de la lengua meta.

En lo que se refiere al aprendizaje de las unidades fraseológicas, aparte de materiales adecuados para su presentación, se hace necesario que el profesor sensibilice al alumno acerca de los factores históricos, sociales y culturales que han colaborado para la formación de las tales unidades, principalmente cuando éstas reflejan la visión de mundo, convertida en imágenes mentales, de los hablantes que las utilizan. Quizás el confronto de las unidades fraseológicas de la lengua meta con las unidades de la lengua materna del aprendiz pueda contribuir para su concienciación lingüística/cultural.

Consideraciones finales

A modo de conclusión, la realización de este trabajo indica que la teoría cognitiva de la metáfora y la metonimia se revela como un instrumento de gran utilidad para explicar el origen de muchas unidades fraseológicas.

Page 140: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

140

Elizabete Aparecida Marques [129-141]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

En gran medida, este paradigma consigue explicar algunos fenómenos, como, por ejemplo, la relación entre el significado literal y el significado fraseológico. De ahí que podamos apuntar la metáfora y la metonimia como dos fenómenos fundamentales de motivación fraseológica.

Al observar la motivación metafórica de unidades de diferentes lenguas, en este caso el español y el portugués, se nota la existencia de un principio metafórico bastante similar que da lugar al origen de unidades parecidas en las dos lenguas. De este modo, establecer las leyes universales del pensamiento imaginativo y asociativo del hombre, pues el mundo se encuentra reflejado en el lenguaje a través de imágenes. Por eso, los conceptos podrían ser universales y esta universalidad de los conceptos constituiría la base de la inferencia fraseológica.

Sin embargo, como advierten algunos investigadores, este mecanismo sufre también la influencia de factores socioculturales.

Desde el punto de vista aplicado, estamos de acuerdo en que la visión que ofrece la semántica cognitiva puede facilitar la enseñanza y el aprendizaje de muchas unidades fraseológicas. La motivación metafórica subyacente a los fraseologismos permitirá al profesor no sólo agruparlos en torno a las imágenes que suscitan, sino también establecer paralelismos (metafóricos, léxicos, morfológicos y sintácticos etc.) entre los fraseologismos de la lengua materna y los de la lengua meta, contribuyendo a su memorización por parte de los aprendices. Estudios empíricos orientados a averiguar los resultados de la enseñanza-aprendizaje de las unidades fraseológicas, a partir del marco cognitivo, a aprendices brasileños de español como lengua extranjera podrían comprobar o falsear la eficacia del modelo en este ámbito.

ReferênciasCUENCA, María José; HILFERTY, José. Introducción a la lingüística cognitiva. Barcelona: Ariel, 1999.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda Dicionário Aurélio eletrônico – século XXI. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

Page 141: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

141

La enseñanza de lenguas desde una perspectiva cognitiva [129-141]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

FORMENT FERNÁNDEZ, María del Mar. La didáctica de la fraseología ayer y hoy: del aprendizaje memorístico al agrupamiento en los repertorios de funciones comunicativas. In: MORENO Francisco; GIL, María; ALONSO, Kira. (Eds.). La enseñanza del español como lengua extranjera: del pasado al futuro. Actas del VIII Congreso Internacional de ASELE. Alcalá de Henares: Publicaciones de la Universidad de Alcalá de Henares, pp. 339-347, 1998.

HOUAISS, Antonio. Diccionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa, Rio de Janeiro, Objetiva, 2002.

IÑESTA MENA, Eva María; PAMIES BERTRÁN, Antonio. Fraseología y metáfora: aspectos tipológicos y cognitivos, Granada: Método Ediciones, 2002.

KÖVECSES, Zoltán; SZABÓ, Péter. Idioms: a view from cognitive semantics. Applied Linguistics, 17, 3; 326-355, 1996.

KRASHEN, Stephen. Second language acquisition and second language learning. Oxford: Pergamon Press, 1981.

LAKOFF, George; JOHNSON, Mark. Metaphors we live by, Chicago. Chicago: The University of Chicago Press, 1980.

PENADÉS MARTÍNEZ, Inmaculada. Materiales para la didáctica de las unidades fraseológicas: estado de la cuestión. Revista de Estudios de Adquisición de la Lengua Española, 9-10, pp. 125-145, 1998.

RUIZ GURILLO, Leonor. La fraseología como cognición: vías de análisis. Lingüística Española Actual, XXIII/1, pp. 107-132, 2001.

SECO, Manuel; ANDRÉS, Olimpia; RAMOS, Gabino. Diccionario fraseológico documentado del español actual, Madrid: Aguilar, 2004.

Page 142: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido
Page 143: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

Análise do Discurso

Page 144: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido
Page 145: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

145Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Melhor jeito que achei para me reconhecer foi fazendo o contrário(Manoel de Barros)

Resumo: O objeto deste estudo é a construção de imagens como parte de uma teoria semiótica de análise do discurso, especificamente a construção de imagens do Índio, através de textos e de discursos. O objetivo deste trabalho é realizar uma investigação das formas de representação do índio da Reserva Indígena Kaiowá de Dourados - Mato Grosso do Sul (MS). Como foco da análise, procura-se estabelecer uma relação entre imagem e fala, ou seja, a trajetória narrativa das imagens e identificar as representações que os discursos configuram. A palavra imagem, mais do que uma representação visual, deve ser entendida também como representação ideológica, como um conjunto de ideias. Diferentes formações sociais produzem diferentes formas de representação e interpretação de imagens; ainda não há uma imagem universal como ícone das representações e interpretações. É como se ela fosse a síntese de tudo o que estamos tentando representar ou interpretar. Como uma representação, a imagem provoca os sentidos; como a interpretação, ela catalisa.

Palavras-chave: Discurso do Índio. Identidade. Alteridade. Transculturalidade.

Discurso indígena: imagens projetadas pelo imaginárioAboriginal speech: projected images by the imaginary one

Rita de Cássia Pacheco Limberti Faculdade de Comunicação, Artes e Letras Universidade Federal da Grande Dourados

[email protected]

Page 146: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

146

Rita de Cássia Pacheco Limberti [145-157]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Abstract: The object of this study is the construction of images as part of a theory semiotics of analysis of the speech, specifically the construction of images of the Indian, through texts and of speeches. The objective of this paper is to carry through an inquiry of the forms of representation of the indian of the Reserva Indígena Kaiowá de Dourados - Mato Grosso do Sul (MS). As focus of the analysis, it is looked to establish a relation between image and speaks, that is, the trajectory narrative of the images and to identify the representations configured by the speeches. The word image, more than what a visual representation, must also be understood as ideological representation, as a set of ideas. Different social formations produce different forms of representation and interpretation of images; not yet has a universal image as icon of the representations and interpretations. It is as if it was the synthesis of everything what we are trying to represent or to interpret. As a representation, the image provokes the directions; as the interpretation, it catalysis.

Keywords: Speech of the Indian. Identity Alterity. Transculturality.

Considerações semânticas

Identidade - [Do lat. escolástico identitate] s.f. 1. Qualidade de idêntico: Há entre as concepções dos dois perfeita i d e n t i d a d e. 2. Conjunto de caracteres próprios e exclusivos de uma pessoa: nome, idade, estado, profissão, sexo, defeitos físicos, impressões digitais etc. 3. Reconhecimento de que um indivíduo morto ou vivo é o próprio. 4. Carteira de identidade. 5. Mat. Relação de igualdade válida para todos os valores das variáveis envolvidas (FERREIRA, 2010, p. 815).

Identificação - s.f. 1. Ato ou efeito de identificar (-se). 2. Reconhecimento duma coisa ou dum indivíduo como os próprios (FERREIRA, 2010, p. 815).

Identificar - [Do lat. Identicu + -ficar) V.t.d. 1. Tornar idêntico, igual: A individualidade é tão forte que é impossível i d e n t i f i c a r duas pessoas. 2. Determinar a identidade (2) de: Tentava-se i d e n t i f i c a r os acidentados. 3. Fazer de (várias coisas) uma só: Um raciocínio rigoroso

Page 147: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

147

Discurso indígena [145-157]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

não pode i d e n t i f i c a r categorias diferentes. T. d. e i. 4. Tornar idênticos: Sua atuação o i d e n t i f i c a aos desonestos P. 5. Tomar o caráter de. 6. Confundir o que é seu com o alheio; compenetrar-se do que outrem sente ou pensa. 7. Conformar-se, afazer-se, ajustar-se (FERREIRA, 2010, p. 815).

Identificável - Adj. 2. g. Que pode ser identificado. (FERREIRA, 2010, p. 815). Muito interessantes as relações de contraste semântico entre os significados dessas palavras. Ao mesmo tempo em que idêntico significa “perfeitamente igual”, identidade é sinônimo de “2. conjunto de caracteres próprios e exclusivos de uma pessoa: nome, idade, estado, profissão, sexo, defeitos físicos, impressões digitais etc ou 5. Mat. Relação de igualdade válida para todos os valores das variáveis envolvidas” (FERREIRA, 2010, p. 815).

Guardadas as condições contextuais em que tais vocábulos são empregados, ainda assim, por se tratar de um termo tão marcadamente empregado para designar individualidade (curiosamente gerada pela coletividade) e diferenciação, torna-se, no mínimo, estranho que a palavra identificar possa significar “P. 5. Tomar o caráter de 6. Confundir o que é seu com o alheio; compenetrar-se do que outrem sente ou pensa. 7. Conformar-se, afazer-se, ajustar-se” (FERREIRA, 2010, p. 815). É como se as próprias palavras perdessem a identidade para identificarem-se com as situações de uso, como se o contexto fosse o meio social e a significação fosse a identidade.

Interessante, no entanto, é notar que a construção de identidade (enquanto conjunto de caracteres próprios e exclusivos) se dá através da identificação (enquanto P. 5. Tomar o caráter de 6. Confundir...) grupal que, intensificada, assume proporções tais que identidade passa a ser um traço comum.

É exatamente essa forma de identidade que será abordada, mais exatamente a discursivização da perda desse conjunto de características que distingue o agrupamento humano que vive na Reserva Indígena de Dourados- MS como povo Kaiowá. Esse conjunto de características constitui um traço distintivo em relação a outras comunidades e, por oposição, um traço comum entre os elementos da própria comunidade Kaiowá.

Page 148: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

148

Rita de Cássia Pacheco Limberti [145-157]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Os conceitos de identidade começam a se delinear no interior de cada grupo étnico: significados 5 e 6 do dicionário, quais sejam, 5. Tomar o caráter de. 6. Confundir o que é seu com o alheio; compenetrar-se do que outrem sente ou pensa (FERREIRA, 2010). Existem fortes traços pertinentes, de toda ordem, físicos ou culturais, a tal ponto que o uso do artigo definido para designar índio perde seu valor restritivo para adquirir um caráter globalizante e grupal, ou seja, todo e qualquer elemento do grupo é designado por ele da mesma maneira que é designado pelo artigo indefinido. O referente de índio é uma figura única e bem definida, que qualquer elemento daquele grupo étnico pode preencher.

Podemos conceber o termo identidade dividido em dois conjuntos: o conjunto das similaridades e o conjunto das diferenças.

1. Identidade e cultura

Em primeiro lugar é importante observar que, em se tratando de identidade relacionada à cultura, se lida simultaneamente com dois sujeitos: um sujeito individual, um homem, um exemplar unitário do grupo (cada um dos membros da tribo); e um sujeito coletivo, o Kaiowá, que mais que uma pessoa é um conceito, um simulacro que deve ser preenchido individualmente pelos membros do grupo.

As estratégias de que esses membros lançam mão para configurar sua identidade individual são baseadas em escolhas (querer) enquanto aquelas que configuram sua identidade kaiowá, coletiva, baseia-se em imposições (dever).

No primeiro caso, o índio conduz-se por um comportamento relativamente universal, de que cada ser humano se serve toda vez que, em presença do outro, destaca algumas de suas características, formando um bloco identificador de sua personalidade, de seu modo próprio de ser que, por sua vez, deverá pontuar a sua relação com o outro e vice-versa.

No segundo caso, o da identidade coletiva, existe uma conduta pré-estabelecida, a ser seguida como uma norma. Algumas particularidades, entretanto, desautorizam, hoje, tanto a conduta quanto a norma.

Page 149: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

149

Discurso indígena [145-157]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Explicando: a formação do conjunto de princípios que configuram o padrão do modo de ser kaiowá deu-se no seio da comunidade e, durante séculos, foi acatado por seus membros e reforçado pela prática por parte de cada um deles. A partir do momento em que travaram contato com a cultura branca, de padrão cultural muito diferente, a posição de contrariedade produziu em seus hábitos e costumes e no universo filosófico-religioso um sentido de exotismo que, mediante a exposição contínua e prolongada aos hábitos e costumes e ao universo em oposição, foi ganhando aos poucos conotações pejorativas.

A partir dessa situação, o padrão do modo de ser kaiowá começa a sofrer desacato por parte de seus membros e, ao invés de ser praticado, passa apenas a ser reproduzido de maneira acentuadamente artificial. Desse modo, sua indumentária, suas danças, seus rituais, seus mitos e crenças e suas estórias passam a ser o texto da cultura cujo código se perdeu, um texto sem língua (LANDOWSKI, 1997, p.1-2). O sujeito erigido coletivamente perde seu referencial, deixa de ser definido por ele para ser definido pelo outro. Antes, o outro para ele era seu espelho, com quem ele se identificava (conjunto de similaridades), hoje o outro “é outro”, seu oposto contraditório, que golpeia, com o conjunto das diferenças, sua identidade kaiowá que aquele outro define por oposição.

Essas relações intersubjetivas de identidade manifestam-se essencialmente no discurso, onde tiveram sua origem, pois ele representa o acesso às especificidades, à identidade, porque a palavra é a materialização desse processo, que se espelha no próprio discurso. Então se tem um discurso em português, que mesmo em situação de especificidade, onde o sujeito é portador de outra língua materna e se dirige ao portador da língua em que ele está enunciando, mesmo assim, contendo esse fator limitante, estão presentes duas vozes, a voz do índio e a voz do branco, que particularizam o modo de significação desse discurso, transcendendo seu modo de funcionamento ao sincretizar formações ideológicas e referenciais culturais diferentes.

Page 150: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

150

Rita de Cássia Pacheco Limberti [145-157]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Observar como o índio apresenta a identidade kaiowá nos discursos para o branco é um dos meios de poder-se aquilatar o grau de comprometimento em que ela se encontra e a partir daí fazer relações com a manifestação das duas vozes nos referidos discursos.

2. As marcas da identidade

Não se pode falar de identidade sem falar de relações do mesmo modo que não se pode falar de relações sem falar de papéis sociais. O contato entre os indivíduos estabelece uma relação de injunção mútua, não restrita à individualidade, demarcando um campo de referências, como um tabuleiro de xadrez. À medida que essas demarcações configuram campos de referências diferentes, os indivíduos, que são naturalmente sujeitos e metaforicamente “peças do jogo”, vão adquirindo valores, papéis e limitações diferentes, de acordo com a formação ideológica em que estejam inseridos (“regras do jogo”). Analogamente, o conjunto de peças de cada tipo de jogo pode ser considerado um grupo cultural diferente, com ideologia e valores próprios.

A partir do contato intercultural, a identidade passa a possuir vários tipos de assimetrias: étnicas, sociais, políticas, que se hierarquizam segundo seu grau de legitimidade. Um processo de remessa de valores e pontos de vista desencadeia-se em mão dupla, transportando significações e recortes, que vão sendo internalizados pelos grupos em diferentes proporções. O patrimônio cultural de cada grupo coloca-os, um em relação ao outro, em posição de resistência e defesa a partir de um pré-julgamento que tende a desqualificar os valores do outro em benefício da constituição de um padrão ideal a partir de si mesmo. Não considerando que a outra interage da mesma maneira, cada formação social reserva-se o direito exclusivo de permanecer autêntica, sem qualquer forma de interferência, o que vai se acentuando e definindo, por meio desse jogo de forças entre o grupo dominador e o grupo dominado. Paralelamente ao programa de dominação, que é um programa de manipulação constante, um processo de estranhamento desenvolve-se em graus crescentes, de modo a configurar aos olhos de ambos os grupos uma visão ridicularizada do grupo dominado e uma visão de padrão exemplar do grupo dominador (LANDOWSKI, 1997, p. 2).

Page 151: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

151

Discurso indígena [145-157]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

As identidades, postas em oposição, revelam-se, uma à outra, evidenciando seus traços característicos, que passam a ser distintivos. O conjunto de estereótipos que cada identidade encerra determina, ao mesmo tempo, o modo de ser do “um” (portador da referida identidade) e do “outro” (sujeito que se opõe a ela), transformando-se num referencial. Considerando-se, contudo, que semioticamente toda relação implica uma manipulação, observa-se o estabelecimento de uma assimetria desencadeada por uma situação econômica, política e social díspar, em que a própria condição privilegiada cultua e alimenta, de um lado, um padrão de vida ideal a ser seguido e, de outro lado, um modus vivendi que tão mais negativamente será avaliado quanto mais se afastar do eixo de normalidade estabelecido a partir do referencial oponente.

Não se pode deixar de observar, entretanto, que o grupo discriminado por sua alteridade, manipulado para reproduzir o padrão do dominador, não deixa de repudiá-lo ao internalizá-lo. Então, isso que a princípio pode parecer uma contradição passa a ser interpretado como a gênese de um processo de adaptação que se justifica pelo que se poderia chamar de “instinto de preservação da cultura”, ou seja, é preciso aceitar e adotar alguns novos hábitos para não sucumbir. Para que tudo permaneça é preciso que tudo mude (LAMPEDUSA).

Um dos fatores sobre o qual o índio se alicerça é a posse do território, que legitima sua presença e sua origem e coloca o “outro” na incômoda e desfavorável posição de intruso. Além disso, cada um dos caracteres de sua identidade forma um patrimônio de valor inestimável, capaz de suportar a pressão exercida pelas disparidades já citadas entre as situações políticas, econômicas e sociais. O processo histórico em que tudo isso se deu criou um ambiente de coesão grupal, em que cada elemento compõe e vê com os demais uma realidade praticamente imutável. Essa é a força de resistência que mantém a voz do índio na superfície do discurso, quebrada, eventual, porém sistematicamente pela força de penetração da voz do branco. Essa força mantém, ainda, a identidade como um todo na superfície, na exterioridade (origem genética e territorial), porque é mantida na interioridade pelos elementos básicos de sua formação: o idioma e a ideologia.

Page 152: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

152

Rita de Cássia Pacheco Limberti [145-157]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Toda essa manifestação exterior, que abrange desde o aspecto físico até as múltiplas formas de comportamento mediante as variadas situações, foi engendrada no interior da convivência por um processo de espelhamentos e ressonâncias, de modo que cada um represente para o outro o que representa para si mesmo. Assim, pelo princípio de alteridade, um índio tão mais evidentemente parecerá índio aos outros quanto se aproximar de seus iguais. Existe um padrão, como uma caricatura, cristalizado no ideário da sociedade circundante a partir dos primeiros contatos, que controla esse quadro de referências e a que o próprio índio recorre ao sentir seu reconhecimento ameaçado. A identidade é um simulacro que cada um faz a si mesmo a partir do outro e vice-versa. A identidade é um jogo de simulacros (LANDOWSKI, 1997, p. 1).

3. O sujeito e as circunstâncias

O aspecto dinâmico da relação sujeito - discurso — o outro tende a cristalizar as posições polarizadas com certa rigidez, mascarando a condição de existência circunstancial, que cada um desses elementos tem.

Em se focalizando especialmente a identidade, a fixação das posições e da forma de existência do sujeito, do discurso e do outro apresenta uma rigidez maior porque existe uma ideia de imutabilidade implícita no conceito de identidade, principalmente em se tratando da identidade do índio.

Muitas vezes a fala do índio enfoca particularmente o eu, muitas vezes colocado em 3ª pessoa, o que conota o estranhamento inerente ao exercício da subjetividade. Em situações de enunciação, ocorre de o sujeito passar durante todo o tempo entre a 1ª e a 3ª pessoas para falar de si mesmo. Vários caminhos poderiam proporcionar uma abordagem bastante interessante sobre a questão, como o da psicanálise, o da antropologia, o da sociologia, ou o da história, entretanto elegemos a teoria semiótica como o farol do que se poderia chamar de a captura desse sujeito camaleônico (LANDOWSKI, 1997, p. 8).

Entenda-se por isso a circunscrição de um ambiente teórico com a intenção de, ao mesmo tempo, controlar a interpretação dos dados e

Page 153: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

153

Discurso indígena [145-157]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

dilatar a abrangência dessa interpretação, posto ser a Semiótica capaz de trilhar todos os outros caminhos teóricos citados sem sair de seu campo de atuação: a significação.

O ponto de partida desta análise é apontado pela existência de um sujeito (índio) cuja produção discursiva é exposta a outro (branco), que se opõe a ele para defini-lo como índio, ao mesmo tempo em que desencadeia um processo de anulação de sua condição existencial de ser índio. Esse processo pauta-se pelas alterações provocadas no conjunto de características próprias do modo de ser do índio, a que se chama identidade.

O ponto crucial desse processo parece ser a transcodificação idiomática que seu discurso sofre, refletindo nas demais alterações em cascata, partindo da visão de mundo e da construção da realidade que a linguagem proporciona a partir de um código linguístico.

Há, ainda, outros pontos. O primeiro ponto a ser considerado é a refração que a visão da realidade sofre com a mudança de idioma e com o próprio contato intercultural. Ao enunciar-se, expor sua situação, o índio aponta os passos do processo aculturativo e seus autores. Sob o ponto de vista linguístico, enunciar-se a si mesmo é a oportunidade de construir-se como sujeito e de compor sua própria identidade, a despeito de causar, no próprio sujeito, algum estranhamento. Homologar ou rejeitar esse sujeito que se configura externamente pelo ato enunciativo é uma forma de tecer, implicitamente, uma alusão à autoria desse processo, bem como de legitimar sua existência. Enunciar-se é ainda uma alternativa de “des-repressão”, porque o “calar-se” é uma forma de ser oprimido.

A discursivização que o índio faz do processo aculturativo, organizado cronologicamente e disposto passo a passo na enunciação, é a oportunidade de o sujeito mostrar-se a si mesmo e, independentemente de reconhecer-se ou estranhar-se, demarcando esse processo e visualizando-o com o distanciamento necessário à focalização de seus danos e da necessidade de denúncia.

Page 154: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

154

Rita de Cássia Pacheco Limberti [145-157]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

O segundo ponto a ser considerado é a posição da identidade em xeque mediante a exposição constante ao processo aculturativo. O distanciamento que o ato de falar proporciona, além de permitir que a identidade seja avaliada pelo próprio sujeito, oferece a ele a oportunidade de detectar as relações avariadas, dando maior mobilidade a seu ponto de vista, condição única, segundo esta abordagem, para a busca do restabelecimento da ordem na própria relação. O ato do enunciador, de colocar-se no discurso, é uma auto-referencialização. Na discursivização, o eu é um produto de si mesmo e assume essa autoria. O exercício da enunciação pode revelar os mecanismos alienantes do processo aculturativo.

O terceiro ponto a ser considerado é a exposição a que as condições de produção e o interesse da opinião pública expõem o enunciador. Leia-se condições de produção como sendo a relação ideológica contida na relação face a face entre elementos de culturas diferentes. Quando estes se comunicam, não é o sujeito individual que fala, mas o sujeito portador de uma voz coletiva. Leia-se opinião pública como sendo o conjunto de sujeitos da outra cultura, mais os sujeitos da própria cultura, que desempenham o controle sobre a atuação dialógica do sujeito enunciador.

O ‘dialogismo’ do círculo de Bakhtin, como se sabe, não tem como preocupação central o diálogo face a face, mas constitui, através de uma reflexão multiforme, semiótica e literária, uma teoria da dialogização interna do discurso. As palavras são, sempre e inevitavelmente, ‘as palavras dos outros’: esta intuição atravessa as análises do plurilinguismo e dos jogos de fronteiras constitutivas dos ‘falares sociais’, das formas linguísticas e discursivas do hibridismo, da bivocalidade que permitem a representação no discurso do discurso do outro [...] (AUTHIER-REVUZ, 1990, p. 27) (grifo do autor).

A enumeração desses pontos leva à inferência de que o sujeito constitui-se como seu próprio objeto, que ele parte de si em direção a si mesmo por um caminho sem retorno, porque muitas vezes ele se encontra no outro.

É o sujeito em busca de sua complementação, que na verdade nunca chega a termo.

Page 155: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

155

Discurso indígena [145-157]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

4. O mosaico ideológico

Em todos os pontos abordados, existe a ênfase do eu por parte do sujeito. Quer em 1ª pessoa, quer em 3ª pessoa, seja centrado no eu ou no outro, o que o sujeito faz o tempo todo é discursivizar-se, buscando compor-se. O discurso passa a ser o próprio sujeito, anulando-se as fronteiras entre o quem diz e o que é dito.

Em uma macro-narrativa, pequenos episódios vão sendo narrados como se fossem peças de um mosaico, cuja representação dá a medida da significação de cada uma delas. Há uma releitura dos pequenos atos cotidianos, que isoladamente não teriam o mesmo sentido. A relação de umas peças com as outras e de cada uma com o todo estabelece esse sentido. Cada ato contido na formação discursiva se reveste de uma significação ideológica porque é narrado e, assim, compõe a identidade.

Muitas vezes, a legitimidade desses atos, enquanto indícios de identidade, é questionada. Entretanto, como o mosaico (discurso) é visto como um bloco único, é tomado como um todo significativo. O que emerge dele como uma dissidência da significação são as duas vozes em alternância, que, como uma clave, vão estabelecendo escalas de sentido. Todas as nuances de conotações que vão se acumulando em camadas dão origem a outra formação multifacetada, o discurso aculturado, que é o discurso em que duas vozes, provenientes de culturas distintas, mesclam-se. Essa é a questão mais importante: o discurso aculturado é um discurso com duas vozes.

A identificação da manifestação da outra voz se faz basicamente de duas maneiras: por meio de pontos fragmentários de constituição diferente na regularidade da sequência discursiva e por meio da alteridade a que esses pontos aludem. As características formadoras dessa alteridade apresentam-se mais ou menos precisas, de acordo com o campo temático e o contexto linguístico em que se encontram inseridas. Por outro lado, todo o restante da sequência enunciativa que não apresenta essas características de alteridade considera-se, por oposição, como sendo a voz própria do sujeito da enunciação. A proporção em que uma e outra voz se manifesta varia em relação aos

Page 156: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

156

Rita de Cássia Pacheco Limberti [145-157]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

fatores temáticos e linguísticos, ressaltando-se, no discurso indígena, a situação de enunciação em outra língua, o que potencializa a capacidade de inserção da outra voz, se não invertendo, pelo menos alterando a proporção direta entre a voz do índio, do próprio sujeito, em relação ao predomínio de presença no discurso e a voz do outro, do branco, em relação à menor incidência durante a enunciação.

A presença de outra voz no discurso é bastante sutil, posto não apresentar marcas externas de qualquer ordem, exceto se fosse discurso direto ou indireto. Por apresentar-se assim, tão implicitamente, a detecção da outra voz fica por conta da interpretação, da apreensão do sentido produzido de modo diferente, da elaboração operada para produzi-lo e do ambiente ideológico a que ele pertence (AUTHIER-REVUZ, 1990, p. 32).

Outras observações interessantes podem-se depreender dessas ocorrências. Existe uma transposição de pessoas para traduzir cada uma delas: a 1ª pessoa pode ser colocada para falar da 3ª, do mesmo modo que a 3ª pode estar representando a 1ª, ou ainda, a 1ª pessoa referindo-se francamente a si mesma. Dependendo do efeito de sentido a ser criado, o discurso veicula essas combinações sem que fique claro qual delas está sendo privilegiada.

A identidade pode, porém, ser vista sob outra perspectiva. Antes de conhecer o “homem branco”, o índio não se sabia índio, não se percebia como índio. Somente a partir do momento em que o conheceu estabeleceu-se uma relação de oposição, fazendo com que suas características passassem a significar características e o conjunto delas passasse a conformar sua identidade. A identidade do índio o é por oposição à identidade do branco. E antes, o que era? Todo o sentido da vida anterior ao contato com o branco é dado pela oposição que o contato cultural estabelece. Os conceitos de quantidade e de posse de terra, de liberdade, de mobilidade, foram todos formados a partir das modificações que as coisas sofreram, fazendo-as parecer, antes de diferentes, as coisas que são (ou eram). Sendo assim, o sujeito, para saber-se, precisa saber o outro.

Investigar o sujeito é, portanto, investigá-lo no interior das circunstâncias. Investigar sua identidade é investigar as circunstâncias em seu interior.

Page 157: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

157

Discurso indígena [145-157]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

ReferênciasAUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Cadernos de Estudos Linguísticos 19. Campinas: Editora da UNICAMP, jul./dez. 1990, p. 25-42.

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1986.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 5ª ed. São Paulo: Editora Positivo, 2010.

LANDOWSKI, Eric. Presencies de l’autre. Paris: P.U.F., 1997.

Page 158: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido
Page 159: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

159Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Discurso da exclusão: a construção do ethos de adolescentes da unidade educacional de internação (UNEI) na cidade de Campo Grande-MSDiscourse of exclusion: the construction of the ethos of adolescents in the “unidade educacional de internação” (UNEI) in the city of Campo Grande – MS

Resumo: Este trabalho reflete sobre a construção do Ethos de adolescentes da UNEI na cidade de Campo Grande, baseando-se no rastreamento das manifestações linguísticas da suas identidades, uma vez que a identidade do sujeito passa por representações sociais. Trata-se de uma pesquisa de base qualitativa, para a qual recorremos a entrevistas e questionários semiestruturados. Observamos que os ethé da credibilidade e da exclusão foram mais presentes no discurso dos adolescentes. E, ainda, a identidade construída por esses sujeitos é a de “excluído”, “impotente”, que um dia já fora “normal”, ou seja, era tido por todos como uma pessoa igual às outras e hoje se encontra sob os estereótipos sociais de ex-internos que podem voltar a praticar delitos a qualquer momento, fato que conduz à rejeição.

Palavras-chave: Identidade. Adolescentes infratores. Exclusão.

Celina Aparecida Garcia de Souza Nascimento Universidade Federal de Mato Grosso do Sul/Três Lagoas

[email protected]

Heloísa Rení da SilvaLicenciada em Letras pela Universidade Federal de

Mato Grosso do Sul/Três LagoasPIBIC/UFMS, 2007/2008 [email protected]

Lidiane Campos Salazar da SilvaLicenciada em Letras pela Universidade Federal de

Mato Grosso do Sul/Três LagoasPIBIC/UFMS, 2008/2009

[email protected]

Page 160: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

160

Celina A. G. de Souza Nascimento / Heloísa Rení da Silva / Lidiane C. S. da Silva [159-174]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Abstract: This work reflects about the construction of the Ethos of the adolescents of UNEI in the city of Campo Grande, based on the trace of the linguistics manifestation of their identities, once the identity of the subject goes through social representations. It’s about a qualitative research in which we used interviews and questionnaires half structured. We watch that the credibility and exclusion ethé were more present in the adolescents speech. And the identity build by those persons is the one of ‘excluded’ and ‘impotent’, that one day was normal, that means one day was considered normal like the others and today is under the social stereotype of ex-inners that can go back to practice felony any time, fact that leads to rejection.

Keywords: Identity. Adolescents-contravencioners. Exclusion.

Introdução

A identidade do sujeito apresenta-se no centro das discussões do mundo pós-moderno como algo que se encontra em crise constante, conforme observa Silva (2005), visto que as entidades responsáveis pela sua consolidação até hoje têm sido povoadas por novos grupos que vêm tentando afirmar seu espaço. Ao refletirmos sobre as manifestações identitárias atuais, com base nos estudos desenvolvidos por Hall (2005), observamos que a antiga visão de indivíduo estável que tornava o mundo social também estável, encontra-se em decadência, já que esse, antes unificado, desaparece com o surgimento do mundo moderno, dando lugar a um sujeito com identidade fragmentada. Trata-se da “crise de identidade”, fator tão pouco discutido ou desenvolvido pela ciência social, mas que abala as sólidas localizações dos indivíduos sociais modernos, aliada ao ethos que se situa nas formações imaginárias presentes na identidade.

Com a finalidade de fundamentar as mudanças observadas na identidade do sujeito, aludimos à globalização, fator de distinção entre as sociedades tradicionais e as sociedades modernas, visto que essas últimas encontram-se em constante mudança, tida como uma desarticulação das identidades estáveis do passado, de forma a acender possibilidades para a criação de novas identidades.

Page 161: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

161

Discurso da exclusão [159-174]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Objetivamos interpretar como o adolescente constrói seu ethos e quais representações fazem de si e sobre a UNEI. Para refletir sobre o quadro até então delineado, esta pesquisa, de campo e de base qualitativa, pretende rastrear as manifestações linguísticas presentes no discurso dos internos da UNEI de Campo Grande-MS, uma vez que a identidade do sujeito passa por representações sociais.

Para a coleta dos dados, adotamos como procedimentos a descrição e a interpretação por meio da aplicação de questionário1 e de entrevistas. Os temas abordados foram: a) opinião dos adolescentes sobre os pais; b) opinião dos adolescentes sobre o uso e venda de drogas; c) noções de justiça, amor, abandono, indignidade, exclusão social; d) opinião em relação à sociedade; e) opinião sobre a UNEI. Além do questionário, optamos pela entrevista semiestruturada por avaliarmos, em outras coletas, que os adolescentes sentem-se mais à vontade dialogando do que respondendo a questionários, sendo que nossa pretensão foi a de manter um diálogo interativo e não propriamente uma entrevista com respostas concisas e estruturadas.

Assim, a entrevista, ao privilegiar a fala dos adolescentes, “permite atingir um nível de compreensão da realidade humana que se torna acessível por meio de discursos, sendo apropriada para investigações cujo objetivo é conhecer como as pessoas percebem o mundo” (FRASER; GONDIM, 2004, p. 2). Ela favorece o acesso às opiniões, às crenças, aos valores e significados que as pessoas atribuem a si e aos outros. Desta forma, procuramos dar voz ao adolescente, a fim que falasse sobre os temas variados e de seu interesse, numa constante busca interativa do discurso compartilhado.

A Unidade Educacional de Internação (UNEI) de Campo Grande é dirigida por um diretor e um inspetor de ações socioeducativas, composta, até fevereiro de 2008, por um número considerado alto

1 O roteiro do questionário e da entrevista foi retirado da dissertação de Mestrado da pesquisadora Vânia Cristina Torres de Almeida (2007) e do mestrando Douglas Pavan Brioli, que também integram o grupo de pesquisa “Grupo Sul-Mato-Grossense de Estudos do Discurso e Identidade da Criança e Adolescente da UNEI – Rede Latino-americana”.

Page 162: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

162

Celina A. G. de Souza Nascimento / Heloísa Rení da Silva / Lidiane C. S. da Silva [159-174]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

pelo diretor, visto que os internos só são aceitos, a partir do doze anos de idade e a maior incidência das infrações praticadas por eles, incide sobre a prática de roubos e tráfico de drogas.

Conforme a fala do diretor, a função da Unidade é a “recuperação total dos adolescentes”, dado seu regime rígido e de conscientização, ao lado de uma “ótima rotina que os ajuda a refletir sobre os atos praticados”, além de se sentirem “capazes” pelo fato de aprenderem profissões que poderão incentivar estes a deixarem a vida do crime por uma existência digna. Segundo ele, a maior reclamação dos jovens advém da falta que sentem dos familiares, apesar de receberem visitas das mães, pais e avós, regularmente aos sábados e domingos. O regimento interno, apesar de não ter sido explicitado pelo diretor, é uma minuta baseada no ECA e no Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), sendo que o momento da saída de um interno é submisso a um alvará de soltura, expedido pela promotoria, após uma audiência com o juiz.

1. Fundamentação teórica – Sobre a noção de Ethos

Nossa pretensão é pesquisar as formações imaginárias presentes na identidade daqueles que, em um dado momento histórico, ajudam a moldar os rumos da linguagem e da identidade, ao lado da distinção, feita por Charaudeau (2006) dos variados ethos relacionados aos discursos, procurando interpretar a sua diversidade, visto que esse se situa na aparência do ato da linguagem, naquilo que o sujeito falante diz ou escreve, ou seja, trata-se da presença dos ideais do enunciador que se mostra implícita ou explícita no discurso, transmitindo, assim, seus estereótipos culturais.

Segundo Eggs (2005), pode-se dizer que o ethos constitui a mais importante das três provas engendradas pelo discurso: logos, ethos e pathos. Aristóteles, ao trabalhar com esses conceitos, discute-os vinculados à persuasão, o que o distancia dos retóricos de sua época que entendiam que o ethos não contribui para a persuasão, sendo que as escolhas vão variar entre as diversas possibilidades linguísticas e estilísticas.

Page 163: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

163

Discurso da exclusão [159-174]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Já Maingueneau (2006, p. 61) discute sua concepção pelo viés da análise do discurso, explicando que sua perspectiva vai além do nível da argumentação:

[...] a noção de ethos é interessante por causa do laço crucial que ela mantém com a reflexividade enunciativa, mas também porque permite articular corpo e discurso em uma dimensão diferente da oposição empírica entre oral e escrito. A instância subjetiva que se manifesta por meio do discurso não pode ser concebida como um estatuto, mas como uma “voz” historicamente especificada.

Assim, o Ethos é tido aqui como um “enunciador encarnado”, como observa Maingueneau (2001, p.97-99), presente até mesmo em discursos escritos, isto é, uma voz de um sujeito para além do texto, atribuindo ao discurso a capacidade de “encarnar” o mundo que ele representa, evocando suas propriedades e provocando uma adesão dos leitores que se identificam com o discurso. Cada enunciação traduz o estilo do enunciador, encarnando o ritmo e a figura que este deseja representar por meio de uma instância subjetiva, denominada “fiador”, à qual são atribuídos um “caráter” – traços psicológicos – e uma “corporalidade” – vivência social – mostrando-se mediante a identidade discursiva que ele constrói para si, propiciando a aderência do enunciatário ao ideal transmitido. Sobre isso, Charaudeau (2006, p. 116) comenta:

O sentido veiculado por nossas palavras depende ao mesmo tempo daquilo que somos e daquilo que dizemos. O ethos é o resultado dessa dupla identidade, mas ele termina por se fundir em uma única. [...] ‘Eu sou o que desejo ser, sendo efetivamente o que digo que sou’. Identidades discursiva e social fusionam-se no ethos.

Diante do exposto, o sentido no discurso resulta da união ethos + ideias que têm por destino promover um poder de persuasão perante o enunciatário e o tipo do ethos remete à imagem do enunciado que, a partir da fala, constrói uma identidade compatível com o mundo de seu enunciado; fato que confirma a interdependência da organização de conteúdos e legitimação da cena de fala. E ainda, em se tratando da ação do ethos sobre o enunciatário, observamos que a incorporação do

Page 164: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

164

Celina A. G. de Souza Nascimento / Heloísa Rení da Silva / Lidiane C. S. da Silva [159-174]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

enunciador envolve uma correspondência deste com um estereótipo de uma comunidade imaginária, ou seja, o ethos do fiador do discurso deve corresponder aos anseios do enunciatário, proporcionando ao discurso a capacidade de encarnar aquilo que ele evoca, tornando-o mais sensível.

Maingueneau (2001) define o ethos como sendo um fenômeno pelo qual a personalidade do enunciador é revelada, ao realizar uma enunciação e a eficiência desse depende de alguma forma do seu envolvimento com a enunciação, sem transparecer no enunciado. Afirma que o “tom” pode ser percebido num texto escrito, dando autoridade ao que é dito, e por meio dele, o leitor é capaz de criar uma representação “do corpo do enunciador (e não, evidentemente, do corpo do autor efetivo). A leitura faz, então, emergir uma instância subjetiva que desempenha o papel do fiador do que é dito” (p. 98). (grifos do autor).

Já em obra mais recente, Maingueneau (2006), ao tratar do ethos retórico, comenta que “a prova pelo Ethos consiste em causar boa impressão pela forma como se constrói o discurso, a dar uma imagem de si capaz de convencer o auditório, ganhando confiança” (p. 53). E que o enunciatário deve apropriar-se de certas propriedades no momento que é posta como fonte do acontecimento enunciativo. Envolve tom de voz, modulação da fala, escolha das palavras e dos argumentos, gestos, mímicas, olhar, postura, adornos etc, imagens psicológicas e sociológicas transmitidas pelo enunciador, a fim de emitir ao enunciatário a sua imagem em questão. E esse constrói de forma dinâmica a representação do enunciador por intermédio da própria fala, não sendo esse, um processo estático.

Enfim, Maingueneau (2006) afirma que “o ethos retórico está ligado à própria enunciação, e não a um saber extra-discursivo sobre o locutor”. Acrescenta que “a eficácia do ethos tem a ver com o fato de que ele envolve de alguma forma à enunciação, sem ser explicitado no enunciado” (p.55). O ethos também está ligado à construção da identidade, sendo que a cada tomada da palavra, um indivíduo constrói a representação do outro e a sua estratégia discursiva incita certa identidade.

Page 165: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

165

Discurso da exclusão [159-174]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

A concepção adotada neste texto, na esteira de Charaudeau (2006, p. 114-116), é a de uma concepção discursiva em que o ethos perpassa o sujeito falante. Entende-se o “ethos enquanto imagem que se liga àquele que fala, não é uma propriedade exclusiva dele” (p. 115). Assim, a identidade do enunciador se desdobra em dois componentes: i) identidade social do enunciador, em função do lugar social que lhe é atribuído pela situação de comunicação; e ii) o enunciatário constrói para si uma figura daquele que enuncia, que é a identidade discursiva do enunciador que se atém aos papéis que ele se atribui em seu ato de enunciação, resultado das coerções da situação de comunicação que se impõe a ele e das estratégias que ele escolhe seguir. O Ethos é, segundo o pesquisador, o resultado dessa dupla identidade, mas se funde em uma única.

2. Interpretação dos dados – Sobre o Ethos dos adolescentes “infratores”

2.1 Ethos da credibilidade: competência e virtude

De acordo com Charaudeau (2006), os Ethé que envolvem a credibilidade dizem respeito a identidades discursivas produzidas pelo enunciador, com o intuito de que os outros o considerem digno de crédito, formando uma imagem que corresponda a essa qualidade. Aqui é necessário que aquilo que o falante diz corresponda sempre ao que ele pensa (condição de sinceridade ou de transparência), que ele seja capaz de pôr em prática o que anuncia (condição de performance) e que isto seja seguido de efeito (condição de eficácia). Para corresponder a essas condições, é necessária a virtualidade e a competência.

Seq. 01: [...] pensei2 “se eu mudar... aí minha mãe vai ver que eu não sou esse menino”... todo mundo vai ver que eu não sou essa pessoa ruim que todo mundo pensa. Eu quero mudá e ficá de boa... sussegado. Eu vou mudá, eu vou mudar meu pensamento, ai o pessoal lá fora vai continuar pensando isso né, mas quando vê que eu tô com um serviço, com um emprego bom, que eu tô subindo na vida não com dinheiro de roubo, mas sim com dinheiro do meu suor... aí o pessoal vai pensá diferente (grifo nosso)3 (Aluno 1).

2 A solicitação foi “Comente um acontecimento que marcou a sua vida”.3 Os trechos destacados nas sequências discursivas foram feitos pelos pesquisadores.

Page 166: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

166

Celina A. G. de Souza Nascimento / Heloísa Rení da Silva / Lidiane C. S. da Silva [159-174]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Na sequência (01), os Ethé que compõem o da “credibilidade” aparecem reunidos, sendo o trecho “mas quando vê que eu tô com um serviço, com um emprego bom, que eu to subindo na vida não com dinheiro de roubo, mas sim com dinheiro do meu suor” correspondente à competência; “se eu mudar [...] Eu quero mudá e ficá de boa, sussegado”, demonstra o ethos de “virtuoso”, já que reconhece que é necessária uma mudança de conduta, conduzindo à hipótese que praticou atos ilícitos, no entanto anseia mudança. Todo o trecho corresponde ao arrependimento para ter credibilidade, visto que o adolescente demonstra demandar o saber e a habilidade necessários para alcançar seus objetivos, obtendo resultados positivos, fato representado pela presença da partícula “se” (“se eu mudar”), que indica condição, ou seja, ele tem conhecimento das qualidades necessárias para ser crível e, ao proferir as condições correspondentes ao ethos da “virtude”, demonstra essas qualidades. Desta forma, observamos que o adolescente pretendeu que o seu interlocutor o considerasse como digno de crédito, já que, além de conhecer os fatores necessários para que isto ocorresse, diz pretender mudar sua postura. Note que são representações de um jovem-adolescente que talvez necessite de crédito.

O ethos de credibilidade, conforme Charaudeau (2006), “repousa sobre um poder fazer, e mostrar-se crível é mostrar ou apresentar que a prova de que se tem esse poder”, ou seja, a própria condição atual em que o sujeito encontra-se num determinado contexto sociocultural. Esse surge em diversos trechos dos dizeres dos adolescentes, especialmente, quando se veem arrependidos pelo ato infracional, ao ser influenciado por má companhia:

Seq.02: “rapaz4... entrou porque que, não é não, você vê os outros fazendo assim, “poxa, eu sou o único bóió da turma... eu vou fazê também... aí os muleque fica te influenciando ”vamu faze, vamu faze” e tal aí você vai e acaba fazendo também... coisa de errado” (A 3).

Esse adolescente representa sua identidade representada entre os que cometem ato infracional e os que não cometem que, por sua vez, são designados por “boiolas” pelos companheiros. Portanto, para eles cometer 4 Foi perguntado: “Como você avalia sua vida?”.

Page 167: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

167

Discurso da exclusão [159-174]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

uma infração representa heroísmo, motivo de admiração e respeito. Significa, ainda, não ser diferente, não ser o “boiola”, vindo à tona identidades contraditórias ou não definidas historicamente (cf. HALL, 2005).

A “virtude”, conforme Charaudeau (2006), está ligada à demonstração de sinceridade e fidelidade, a que se deve acrescentar uma imagem de honestidade pessoal; trata-se de uma pessoa capaz de reconhecer a validade do julgamento do outro e mesmo seus próprios erros, sem jogos fantasiosos, respectivamente. Vimos em alguns trechos, especialmente quando abordam sobre os pais, que são tidos como pessoas capazes de aceitá-los, mesmo depois de seus atos impensados.

Seq.03: Pelo que eu aprontei5... eu acho que eles tão sendo bom demais né, eu acho que [...] eles nunca deixaram... nunca faltaram em nenhuma visita, sempre eles tavam aqui pra [...], sempre na quinta-feira eles vêm e traz as coisa pra mim... o que eu preciso eu ligo quarta-feira e eles me ajudam [...]. (A 8).

Em (03), o sujeito-adolescente constrói uma imagem de sinceridade e honestidade ao assumir que sua postura não era digna de aceitação por parte dos pais, assim, representa a identidade discursiva de quem reconhece os atos praticados. A “virtude” emerge também em situações em que os adolescentes narram seus feitos antes da internação na UNEI, embora apresentem desvio de conduta, sabem que os atos cometidos são “errados”, na sua concepção de cidadão digno, no entanto, continuam a praticá-los.

Seq. 04: [...] Ah [...]6 eu acho errado roubá [...] roubá, mas eu faço coisa errada... mas eu acho errado.[...]. (A 2)Seq. 05: [...] Eu acho que eu tinha que fazê diferente, fazê o que eu acho certo... às vezes eu faço. (A 7)

Na sequência (04), o adolescente vê o roubo como algo considerado “errado”, no entanto, afirma que continua fazendo, embora admita ser um “erro”; a repetição do item lexical “eu acho errado” enfatiza sua representação em relação às atitudes, reforçando o ethos de “virtude”. Quando enuncia: “mas eu faço coisa errada”, prevalece o “erro”, em

5 A questão aqui foi: “Qual sua opinião sobre seus pais?”.6 Resposta dada à questão: “Você acredita que há justiça?.

Page 168: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

168

Celina A. G. de Souza Nascimento / Heloísa Rení da Silva / Lidiane C. S. da Silva [159-174]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

seguida, reafirma “mas eu acho errado”, permanecendo, enquanto argumento final e definitivo, o reconhecimento do “erro”, vindo reforçar o ethos da credibilidade.

Já em (05), diferentemente da anterior, o sujeito-adolescente assume que “tinha que fazê diferente, fazê o que eu acho certo”, representando seu fazer como algo lícito, no entanto, assume uma postura que talvez seja influenciada pelo outro, porém diz: “às vezes”, na pretensão de justificar-se em direção a uma conduta ética e moral.

2.2 Ethos de sério

O ethos de sério, para Charaudeau (2006), é construído a partir de índices corporais e mímicos, observados a partir da postura corporal e expressiva, e de índices verbais, relacionados ao tom e à escolha de palavras ou frases, evitando o exagero de alcançar a austeridade, fundado em um discurso da razão. Esse ethos, embora pouco observado na fala dos adolescentes, ocorre quando abordam a possibilidade de mudança de suas vidas, tornando, assim, a UNEI como um local para reflexão.

Seq. 06: [...] Quando você puxa cadeia7, você pensa de NOVO, você pensa o quê que você fez, cê se arrePENde, você[...] pensa em muDAR, você pensa em caÇAR um serviço [...]” (A 7).

Em (06), o sujeito se vê arrependido pela condição de interno da UNEI, alegando que, “quando você puxa cadeia, você pensa de novo, se arrepende, você [...] pensa em mudar”, pois estar privado de liberdade o faz refletir e desejar mudança de vida. Esse discurso indica que até a sua ida para a UNEI, talvez não se visse enquanto pessoa séria, o que o torna, após refletir sobre a atual condição, comprovado pelo desejo de trabalhar, caracterizado como o ethos de sério, de pessoa que pretende ser responsável e respeitada.

Outro trecho semelhante, pertencente ao mesmo sujeito:

7 A pergunta foi: “Você acredita que há justiça?”.

Page 169: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

169

Discurso da exclusão [159-174]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Seq. 7: Porque AQUI8 é um luGA pra você refletir... o quê que você fez refleti melhor... pra você saí daqui com outra cabeça... caÇÁ um serviço aqui já deu curso de bicicletaria pra gente... deu diploma e tudo mais, saí daqui a gente vai pra outro curso no Senai... vai dá o curso e de lá[...] talvez, vai dá uma profissão pra gente. Cê sai daqui com OUTRA MENtalidade, não sei eu né ((querendo dizer que não sabe sobre a opinião dos outros)), eu saio daqui com essa mentalidade, não sei os outros, que vai e volta (A 7).

Esse sujeito-adolescente se vê novamente na necessidade de corresponder à responsabilidade adquirida enquanto interno da UNEI, no entanto, acrescenta que, embora veja o lugar como uma forma de fazê-lo refletir, existem outros que não apresentam a mesma imagem, segundo o qual, o fato de estar lá não interfere em nada na sua conduta, particularizando sua situação: “Cê sai daqui com outra mentalidade, não sei eu né, eu saio daqui com essa mentalidade, não sei os outros, que vai e volta”.

Uma observação relevante é que esse sujeito-adolescente, antes de estar privado de liberdade, embora pudesse não possuir o ethos de sério, ao relatar o acontecimento que desencadeou a sua ida para a UNEI, apresenta manifestações de uma conduta de seriedade, observado no trecho a seguir:

Seq. 8: Aí meu padrasto9 queria me levar pro Ceará que lá... depois dos dezoito ano ninguém ia perguntá e num ia dá nada e eu falei: “NÃO é melhor eu me apresentar agora”... porque eu tenho SONHO de servir o quartel eu tenho mais de quarenta colega meu que é da base aérea eu tenho um padrinho que é da base aérea e eu SONHO entrá no quarTEL, aí eu tô de BOA. Ai eu falei “não, eu tenho que me apresentar conforme dezoito ano eu [...]” ai minha advogada falou “não, você vai pegá três anos [...]” que num sei o que lá “você que sabe de todas as coisa” ai eu falei “NÃO... eu vou me apresenTÁ” (A 7).

Em (8), o mesmo adolescente se mostra perpassado pela seriedade, comprovada pelos trechos destacados, pois se manifesta capaz de reconhecer seus erros e suportar as consequências, mesmo sob a influência de pessoas que tentaram convencê-lo a fugir da

8 Este trecho se refere à questão: “Descreva o que pensa sobre a UNEI e como se sente enquanto interno desta instituição?.9 A resposta é referente à questão: “Como você avalia sua vida?”.

Page 170: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

170

Celina A. G. de Souza Nascimento / Heloísa Rení da Silva / Lidiane C. S. da Silva [159-174]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

responsabilidade: “Aí meu padrasto queria me levar pro Ceará, que lá, depois dos dezoito ano ninguém ia perguntá e num ia dá nada [...] aí minha advogada falou ‘não, você vai pegá três anos [...]’ que num sei o que lá ‘você que sabe de todas as coisa’”.

O ethos de sério nos trechos mostrados é tido como uma representação de uma imagem que o sujeito constrói a partir de um desejo de transformação de sua vida, conforme enfatiza Charaudeau (2006), “o ethos de sério depende evidentemente, das representações que cada grupo social faz de quem é sério e de quem não é”, desta forma, para o grupo social ao qual o sujeito em questão pertence, ser sério está intrinsecamente ligado ao fato de ter ou não um “emprego digno” que resulte em um capital “limpo” e honesto. Isso transparece nos momentos em que os adolescentes foram interrogados a respeito do que desejavam ser no futuro, confirmando ainda mais a asserção, como nos trechos a seguir, em que eles representam-se com desejos de mudanças, em busca de um trabalho e prosperidade.

Seq. 9: Eu pretendo terminar meus estudos né, fazê uma faculdade fazê uma complementação e me tornar um empresário (A 4).

Seq. 10: Com certeza trabalhá, procurá outra coisa, estudá, terminá meus estudo... ficá de boa, minha mulher tá grávida (A 10).

O tom assumido por esses adolescentes sugere seriedade e compromisso com o futuro, o trabalho e a família, a fim de adquirir a adesão do pesquisador, que naquele momento lhe dá a voz e a “vez” e passa a ouvi-lo, emergindo aí diferentes vozes que visam à (re)inserção à vida social e a seriedade.

2.3 Ethos da exclusão

Enfim, observamos que o ethos da exclusão foi o mais recorrente nos discursos dos sujeitos analisados, em diferentes questões:

Seq. 11: [...] vive muito discriminado10, que às vezes vai preso e tudo mais e agente vai fora aí a gente é muito discriminado... aí é injustiça... isso daí é injustiça... pelo menos da minha parte eu acho isso (A 12).

10 A questão aqui foi: “Você acredita que há justiça? Por quê?”.

Page 171: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

171

Discurso da exclusão [159-174]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Seq. 12: Cê sai lá fora11 os outro vai ter preconceito “ah já puxou cadeia, ah é malandro”. Eu vou caçar um serviço apresenta a ficha “aí você matou você roubô... você fez isso [...]” (A 13).

Seq. 13: Muita discriminação12... esses tipo de coisa assim... a gente andando assim a polícia parava e cê já apanhava só porque você tem passagem... esses tipo de coisa. Andando... tipo, você pára num lugar... tipo numa festa e tá indo embora... a polícia já pára... puxa teu nome e já vê já, ai cê já apanha essas coisa (A 14).

Os adolescentes das sequências (11), (12) e (13) veem-se como pessoas que passam por preconceitos, pelas privações tidas, principalmente, após o internato na UNEI. Os efeitos de sentido aparecem pela ênfase dada por eles ao abordarem sobre “discriminação, injustiça e falta de respeito”, de forma que o preconceito é latente, pelo fato de serem ex-internos. A imagem que eles fazem de si é que torna difícil uma vida livre de preconceito em relação à UNEI, por ser um “espaço de docilização do corpo”, que acaba proporcionando a exclusão desses internos da sociedade. Acrescentamos, aqui, a reflexão feita por Woodward (2005), na qual a autora aborda a importância particular da diferença na construção dos significados e de identidades. Para a pesquisadora, a diferença pode ser construída negativamente para a exclusão ou a marginalização ou como fonte enriquecedora e marca de diversidade e, a partir de oposições binárias, observa que uma sempre se sobressai à outra. Nesse caso, salta aos olhos do outro, a exclusão.

Seq.14: “Que [...]13 devia ter um pouco mais de respeito, não é porque a gente sai daqui, igual puxamos aí uns seis... sete meses e saímos daqui que continua a mesma mentalidade” (A 20).Seq.15: “Ah!14 Isso daí é a mesma coisa da injustiça... a sociedade é aquelas pessoas, igual a gente na gíria “é o Zé povinho... a sociedade”. Se acontece uma coisa ali [...] o pessoal já tá na boca do povo, já aumentaram, já fizero isso. Bom... pelo menos no meu ponto de vista é esse” (A19).

11 Resposta dada à questão: “O que significa ser cidadão para você?”.12 A pergunta foi: “Qual sua opinião sobre a sociedade?”.13 Resposta dada à questão: “Você acredita na justiça? Por quê?”.14 Trecho obtido a partir da pergunta: “Qual sua opinião sobre a sociedade?”.

Page 172: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

172

Celina A. G. de Souza Nascimento / Heloísa Rení da Silva / Lidiane C. S. da Silva [159-174]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Seq.16: “Se15 sai lá fora os outro vai ter preconceito “ah já puxou cadeia... ah é malandro. Eu vou caçar um serviço... apresenta a ficha “aí você matou você roubou, você fez isso [...]” aí eu num sei como é lá fora entendeu só saindo lá fora mesmo pra sabe mais tem muitas pessoa que chegaram aqui aí voltaram e falaram assim que ia procurá emprego chegava lá [...] puxava ficha criminal do menino... achava que o menino ia roubá, ia ter problema dentro do serviço, acabava num contratando... aí o muleque no mundo do crime... daí acontece isso” (A 17).

Os adolescentes das sequências (14), (15) e (16) veem-se perpassados pela discriminação e preconceito, por estarem na condição de internos ou ex-internos. Surge a discriminação quando dizem sair à procura de um recomeço e, segundo eles, a sociedade os intitula e rotula como incapazes, além da desconfiança ao empregar esses jovens, vistos pela sociedade como “menores” infratores. Em (14), o adolescente reconhece a sociedade como excludente, por não mudar a imagem negativa que tem dele, em consequência, ele será sempre rejeitado. Em (15), para ele, a sociedade é um “Zé povinho”, talvez composta por pessoas medíocres e que só veem o lado negativo desses adolescentes. Em (16), os sentidos são de que a “ficha” é como um banco de dados enquanto instrumento de identificação, separação e exclusão, controlada pela UNEI, que marca a sua identidade, pois serão sempre os que cometeram algum “delito”. A representação que fazem de si é que desejam integrarem-se à sociedade, porém, a partir do momento que deixam a UNEI, são automaticamente excluídos por ela, por serem ex-internos, o que não condiz com o Estatuto da Criança e do Adolescente –ECA (1990), ao tratar dos direitos dos adolescentes enquanto cidadãos:

“ART. 17 - O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, idéias e crenças, dos espaços e objetos pessoais”, o adolescente sendo amparado pela lei em diversas circunstâncias.

O ethos construído por esses sujeitos é o de “excluído”, da “impotência”, que um dia já foram “normais”, ou seja, eram considerados

15 A solicitação feita foi: “O que significa ser cidadão para você?”.

Page 173: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

173

Discurso da exclusão [159-174]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

pelos seus próximos como pessoas nas mesmas condições às outras e hoje se encontram sob os estereótipos sociais de ex-internos, que podem voltar a praticar atos infracionais a qualquer momento, desconforto esse que conduz à rejeição pelo outro. Trata-se de identidades que, na visão de Hall (2005), não se apresentam como prontas e acabadas, por estarem, constantemente, sendo “reconstruídas”, ocasionando a descentralização do sujeito.

Vemos que os dizeres desses adolescentes vão ao encontro do conceito de “crise de identidade”, discutido por Hall (2005, p. 13), sendo que a maioria dos adolescentes é caracterizada por várias identidades, algumas vezes, contraditórias e em formação, definidas historicamente, visto que, embora se apresentem enquanto adolescentes infratores, que praticam tais atos por necessidades financeiras ou mera satisfação, às vezes reconhecem sua própria conduta como inadequada e até anseiam por mudanças. Porém, a maioria vivencia um histórico de reincidência na UNEI, fato que demonstra a crise em que vivem, trata-se de identidades construídas sob o domínio da exclusão; ou nas próprias palavras de Hall (2005), “[...] à medida que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante [...] de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente”.

Assim, conforme postula Laclau (1990, apud HALL, 2005), o que ocorre é uma desarticulação das identidades estáveis do passado, de forma a instigar possibilidades para a criação de novas identidades. Trabalhar com ela é, nas palavras de Rajagopalan (2003, p. 126), “necessariamente intervir na realidade social da qual ela faz parte. Linguagem [e linguística são] [...] uma prática social [...] repleta de conotações ideológico-políticas que as práticas sociais acarretam”.

Considerações finais

Este trabalho pretendeu interpretar as formações imaginárias presentes no ethos dos adolescentes. Observamos a presença dos ethé da credibilidade, de sério e, com maior incidência, o da exclusão. É importante ressaltar que tais resultados estão estritamente ligados, de forma que a ocorrência da credibilidade pode ser justificada pela existência da seriedade. Já o ethos da exclusão aparece relacionado

Page 174: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

174

Celina A. G. de Souza Nascimento / Heloísa Rení da Silva / Lidiane C. S. da Silva [159-174]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

ao sistema de coerção e repressão da sociedade que não os reconhece enquanto cidadãos dignos, após passarem pela UNEI.

Notamos que os sujeitos-adolescentes apresentam-se com identidades de excluídos do meio social em que vivem, ou seja, de indivíduos marginalizados, que pela voz buscam convocar o outro para ouvir-lhes e dar-lhes créditos, a fim de que o outro (a sociedade) os veja como indivíduos críveis e merecedores de maior atenção da sociedade atual. Enfim, eles são silenciados, não têm voz, são marginalizados pelo poder.

Referências

BRASIL. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Brasília, 1990.

CHARAUDEAU, Patrick. Discurso Político. Trad. Fabiana Komesu e Dílson Ferreira da Cruz. São Paulo: Contexto, 2006.

EGGS, Ekkehard. Ethos aristotélico, convicção e pragmática moderna. In: Ruth Amossy (org.). Imagens de si no discurso: a construção do ethos. São Paulo: Contexto, 2005, p.29-56.

FRASER, Márcia Tourinho Dantas; GONDIM, Sônia Maria Guedes. Da fala do outro ao texto negociado: Discussões sobre a entrevista na pesquisa qualitativa. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 2004.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. 10 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.

MAINGUENEAU, D. Análise de Textos de Comunicação. Trad. Maria Cecília Perez de Souza e Silva; Décio Rocha. São Paulo-SP: Cortez, 2001, p. 95-112.

_________. Problemas de Ethos. In: Cenas da Enunciação. Trad. Maria Cecilia Perez de Souza e Silva et. al. Curitiba – PR: Editora Criar, 2006, p.52-71.

RAJAGOPALAN, Kanavillil. Por uma lingüística crítica: linguagem, identidade e a questão ética. São Paulo: Parábola Editorial, 2003.

SILVA, Tomaz Tadeu da. (Org.) Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005.

WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual; In: SILVA, Tomaz T. (org.) Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2005, p.07-72.

Page 175: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

Semiótica

Page 176: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido
Page 177: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

177Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Resumo: Este artigo toma como objeto de estudo a significação em um campo específico de linguagem: o da arquitetura. Após uma breve introdução sobre a questão em sentido amplo, aborda uma semiótica específica da arquitetura. Adota como referencial metodológico a Semiótica de Charles S. Peirce (1839-1914), com ênfase na segunda parte, chamada de Lógica Crítica. Nesta, esse filósofo estudou os modos de raciocínio, denominados abdução, dedução e indução. Esta abordagem aponta para uma análise da significação do ponto de vista do interpretante do signo e, além disso, para a arquitetura tomada nos seus aspectos simbólicos. Isso é feito sem deixar de observar, contudo, as contribuições dos signos icônicos e indiciais no processo de significação. As conclusões apontam para diferentes modos de entender o como os signos arquitetônicos são interpretados, embasados nas potencialidades das obras para estimular um ou mais dentre os modos de raciocínio.

Palavras-chave: Significação. Arquitetura. C.S. Peirce. Semiótica. Lógica Crítica.

Abstract: The object of this communication is the meaning in a specific field of language: architecture. After a small introduction about this question in a large sense, approach a specific semiotic of architecture. This paper adopts, as its methodological reference, the Semiotics of Charles S. Peirce (1839-1914), especially part two, called Critical Logic. In this part of his work, the

O significado em arquitetura: considerações baseadas nos modos de raciocínio em peirceThe meaning in the architecture: considerations based on kinds of reasoning in peirce

Eluiza Bortolotto Ghizzi Centro de Ciências Humanas e Sociais/Campo Grande

Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - UFMSE-mail: [email protected]

Page 178: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

178

Eluiza Bortolotto Ghizzi [177-193]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

philosopher studied the three kinds of reasoning: abduction, deduction and induction. This approach points towards an analysis of signification from the point of view of the sign’s interpreter and, in addition to that, towards architecture taken in its symbolic aspects. This is done, however, without disregarding the contributions made by the iconic and indexical signs in the process of meaning. The conclusions point to different ways of understanding how architectonic signs are interpreted, based on the potentialities of the works to stimulate one or more kinds of reasoning.

Keywords: Signification. Architecture. C.S. Peirce. Semiotics. Critical Logic.

A questão da significação em arquitetura extrapola o sentido que damos ao “como se parece” e ao “como age”. Questões sobre o como se parece remetem, de um lado, àquelas sobre a forma que alguma coisa assume, considerado aqui o significado que esse termo – forma – adquiriu no campo das artes em geral e da arquitetura; ou seja, da forma como a aparência visual das obras, enquanto existentes. De outro lado, questões sobre forma têm permitido abordagens sobre as artes e a arquitetura, quer estéticas, fenomenológicas, semióticas, ou outras, para as quais o significado desse termo abarca experiências mais amplas que as limitadas ao sentido da visão. Questões sobre como age, por sua vez, remetem ao funcionamento de alguma coisa. No sentido mais usual, são aplicadas às coisas animadas (casos em que a ação ou o funcionamento envolvem algum tipo de movimento físico). A arquitetura não se caracteriza como coisa animada (exceção feita aos recentes experimentos com arquitetura móvel). Para se falar do funcionamento ou da ação da arquitetura, é preciso que se recupere o sentido geral de “ação” como “influência (sobre alguém ou alguma coisa)”; ou o sentido filosófico de ação como “processo que decorre da natureza ou da vontade de um ser, o agente, e de que resulta criação ou modificação da realidade”; e, ainda, o próprio “resultado ou efeito desse processo” (FERREIRA, 2000). Esses são sentidos afeitos aos adotados pela semiótica.

Page 179: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

179

O significado em arquitetura [177-193]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Tanto a significação de forma como algo que não se limita ao que é percebido pelo sentido da visão, como a de ação como também não-física, são pertinentes ao problema da abordagem semiótica da arquitetura. Pode-se dizer que a relação entre o como parece e o como age, embora nem sempre com esses termos, tem permeado as discussões sobre arquitetura ao longo da sua história.

Em sentido amplo, as preocupações relativas à significação da arquitetura podem ser encontradas, já, em Vitrúvio1 (que viveu na época da Roma antiga). No tratado de sua autoria Os Dez Livros de Arquitetura, lemos:

Em tudo na verdade, máxime certamente na arquitetura, essas duas coisas estão presentes: o que é significado e o que significa. O que é significado é algo proposto do qual se fala; o que significa é a demonstração explicada pelas regras das doutrinas (POLIÃO, 1999, p. 49-50).

Nesse tratado Vitrúvio cita os vínculos do ofício do arquiteto com outros da sua época, não específicos da arquitetura, mas, dos quais o arquiteto deveria se inteirar para atingir seus objetivos satisfatoriamente, tanto na teoria quanto na prática. São eles o desenho, a geometria, a história, a filosofia, a música, a medicina, as leis e a astrologia, além dos conhecimentos da leitura e da escrita. Alguns conhecimentos específicos desses ofícios integram o Tratado e, enquanto uma parte (a das técnicas) é associada à execução (concreção) da obra (a o que é significado), outra é vinculada a um universo imaterial (a o que significa), que é relacionado às doutrinas, ao conhecimento teórico. Assim, de um lado, no Tratado, temos os textos dedicados às águas, aos sons e ao movimento solar, tudo relacionado com a atividade construtiva; de outro, a história e a filosofia, por exemplo, são associadas àquilo que justifica essa atividade.

Séculos depois do livro de Vitrúvio, já no período da construção do Movimento Moderno, final do século IX e início do XX, a profissão do arquiteto não envolve mais o mesmo tipo de correlação entre teoria

1 Trata-se de Marco Vitrúvio Polião, arquiteto da Roma antiga e autor do primeiro tratado de arquitetura de que se tem conhecimento até então, amplamente citado na bibliografia simplesmente como Vitrúvio; daí adotarmos esse nome também neste texto.

Page 180: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

180

Eluiza Bortolotto Ghizzi [177-193]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

e prática. Mas a questão da significação permanece em pauta e ganha um tratamento particular dado pelo racionalismo funcionalista, que desenvolve a ideia de uma correlação estrita entre forma e função, com primazia da primeira sobre a segunda.

Os adeptos dessa formulação particular da ação da arquitetura partilhavam do ideal de que a forma deveria (e poderia) traduzir sua função de modo verdadeiro. Consideravam a possibilidade de se chegar a formas que fossem as mais apropriadas ou naturais para cada função. A forma é, desse ponto de vista, regida por uma determinante ética. E o usuário é compreendido como mero reconhecedor da forma enquanto organização espacial do programa (conjunto de funções).

Decorre daí um sentido limitado de função. A casa, por exemplo, é responsável pela necessidade de habitar, entendida como pertinente a todo homem comum, o que se constitui na sua função. As necessidades que são atendidas, de abrigo, dormitório, refeitório, mais as de conforto ambiental (insolação e ventilação) e as da relação com a cidade (proximidade de áreas de lazer, serviços etc.) são concebidas para o homem em geral. Tais necessidades ou funções são caracterizadas, pelo funcionalismo, por uma universalidade. Essa ideia de arquitetura tipo para um homem tipo é um importante aspecto dessa doutrina destacado pela crítica, que reclamou atenção às diferenças, às necessidades simbólicas e a uma dimensão estética para além do vínculo com a ética.

Mas a crítica ao funcionalismo ou ao modernismo dito ortodoxo foi além. Na prática, como Robert Venturi (1995) bem observou, em seu texto manifesto “Complexidade e Contradição em Arquitetura”, entre alguns dos mais importantes arquitetos modernistas - Le Corbusier e Alvar Aalto são exemplos desse autor -, os edifícios são portadores de inúmeras contradições internas (que se opõem à formulação idealizada de que a forma segue a função em sentido estrito). Isso, para Venturi (1995), é exemplo de como a arquitetura de qualidade não se submete à simplificação proposta.

Durante a segunda metade do século XX, principalmente, o sentido de função foi discutido e incluiu significados psicológicos e culturais, associados aos modos de vida dos indivíduos ou famílias. Uma nova

Page 181: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

181

O significado em arquitetura [177-193]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

corrente funcionalista se formou; todavia, ainda defendendo uma predominante técnica e objetiva para a arquitetura, no tratamento da função, na medida em que o arquiteto deveria ser capaz de interpretar isso em termos de formas tecnicamente apropriadas a cada caso. Esse novo entendimento de função, portanto, embora legítimo como corrente de pensamento que define para si mesma um ideal/um fim, ainda nos parece insuficiente para resolver o problema do significado na arquitetura.

Mas, se a forma não segue meramente a função, o que mais ela pode seguir? Em muitos casos, como constatou Robert Venturi (1995, p. 33), mais do que seguir uma função e especializar-se nela, “forma evoca função”. Além disso, pode-se dizer que no funcionalismo a forma estabeleceu outros vínculos, que não os estritamente funcionais. A abstração geométrica e cromática, as composições que excluíam aparatos decorativos (baseadas em linhas ortogonais, volumes brancos, paredes lisas, panos de vidro), acabaram identificadas pela crítica como resultando em formas-tipo, que na origem não decorrem estritamente do programa2. Seu propósito era o de opor-se às formas da tradição arquitetônica; de significar uma ruptura. Com isso se pretendia que ela fosse verdadeira em outro sentido, no de significar o “espírito da época”, nas palavras de Le Corbusier. Mesmo isso, contudo, é questionado.

Veja-se o caso da crítica que Peter Eisenman3 faz à ideia de que o modernismo representou uma ruptura em relação à arquitetura pré-industrial. Para Eisenman (2006), o funcionalismo está em relação de continuidade (não de ruptura) com cinco séculos de história da arquitetura e se caracteriza mais como uma fase tardia do humanismo. A ideia de ruptura, segundo o autor, se deve a uma espécie de ilusão da forma. Nas palavras dele:

2 É essa forma-tipo que, na prática, se descola das questões programáticas (e funcionais) e passa a ser tomada como mais um estilo (entre outros registrados ao longo da histó-ria); isso, contrariando a proposta do modernismo de que a correlação entre forma e função deveria agir como um método e não como estilo.3 Arquiteto da atualidade, autor de importantes textos e obras (projetos) teóricos sobre arquitetura.

Page 182: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

182

Eluiza Bortolotto Ghizzi [177-193]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

De fato, o funcionalismo, não importa quais sejam suas pretensões, levou adiante a ambição idealista de produzir arquitetura como um processo eticamente constituído de ‘doação de forma’. Mas, por revestir essa ambição idealista com as formas radicalmente desnudas da produção tecnológica, o funcionalismo deu a impressão de representar uma ruptura com o passado pré-industrial (EISENMANN, 2006, p. 99).

A ilusão da forma a que Eisenman se refere (de que não só a forma não segue estritamente a função, como engana ao significar o rompimento com a tradição), independente de se a crítica dele ao funcionalismo procede ou não, aponta para um modo de agir possível a toda forma, dada sua abertura significante.

Outra linha de pensamento relacionada à significação da arquitetura – ainda em sentido amplo - coloca o foco da questão na experiência das pessoas com os edifícios e não na produção da arquitetura. Trata-se da corrente fenomenológica (que se apóia em leituras de Edmund Husserl, Martin Heidegger e Gaston Bachelard). Mais precisamente, essa corrente vai considerar a experiência das pessoas com os lugares, tal como pode ser observada na dimensão da consciência. Essa linha de pensamento, ainda, toma as questões de forma como importantes, todavia, trata a experiência da arquitetura para além da visualidade.

Um autor que trabalha a abordagem fenomenológica, Kenneth Frampton (2006, p. 476), recorre a Heidegger, particularmente à distinção (no inglês, verificada, também, no português) entre as palavras espaço [space] e lugar [place]4. Analisa a opção que fazemos pelo termo espaço (em detrimento de lugar) e pelo entendimento da arquitetura em um sentido abstrato, desvinculado da experiência social, portanto, da ideia de lugar.

Norberg-Schulz (2006), autor que trabalha com base em Heidegger e na distinção entre espaço e lugar, acrescenta que a arquitetura como lugar5 teria uma natureza dual, que contém, de um lado, o sentido abstrato de espaço (este mais ligado à geometria e à matemática) e, de

4 O que não ocorre na palavra alemã Raum.5 Ou Raum, no alemão.

Page 183: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

183

O significado em arquitetura [177-193]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

outro, o sentido decorrente das vivências. Essa arquitetura reconhecida como lugar das vivências sociais seria a verdadeira Arquitetura. Para esse ponto de vista a mera existência das coisas enquanto materialidade – mesmo que apropriada a certos funcionamentos de ordem geral – não lhes garante significação. Para oportunizar a verdadeira vivência ela precisa ter vínculos com a memória.

Outro teórico dessa corrente, Juhani Pallasmaa (2006, p.481), vai se deter no problema de muitos terem enfatizado a dimensão visual da arquitetura. Ele analisa que isso é decorrente dos “princípios do elementarismo e do reducionismo [que] têm dominado o progresso da ciência moderna [para o qual] Todo fenômeno estudado é dividido em seus elementos e relações básicas e visto como a soma desses elementos” (2006, p. 483). Ele escreve:

A visão elementarista também predomina na teoria, no ensino e na prática da arte da arquitetura. Estas últimas foram ao mesmo tempo reduzidas exclusivamente a artes do sentido da visão. Com base na ideologia da escola Bauhaus, a arquitetura é ensinada e analisada como um jogo de formas que combina diversos elementos visuais de forma e espaço. Acredita-se que esses elementos adquirem uma qualidade peculiar que estimula nossos sentidos da visão a partir da dinâmica da percepção visual, conforme estudada pela psicologia da percepção. Considera-se um edifício como uma composição concreta construída a partir de uma seleção de elementos básicos dados, mas não mais em contato com a experiência fora de si mesma, isso para não mencionar o esforço consciente de descrever e articular a esfera de nossa consciência (PALLASMAA, 2006, p. 483).

O que essa abordagem (elementarista) deixa de lado, na visão do autor, é a essência artística da arquitetura, para a qual não são as partes ou qualquer soma delas que importa, mas, uma visão do todo, que integra e não, meramente, soma.

Além dos estudos sobre a significação da arquitetura em sentido amplo, que podem ser localizados em diferentes épocas e sob enfoques variados, desde a segunda metade do século XX temos autores que se dedicam a uma semiótica da arquitetura em sentido estrito. Broadbent (2006) faz uma síntese das teorias principais,

Page 184: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

184

Eluiza Bortolotto Ghizzi [177-193]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

provenientes de Peirce (1839-1914) e de Saussure (1857-1913), bem como dos desenvolvimentos a partir dessas, conduzidos por outros teóricos. Renato de Fusco e Maria Luiza Scalvini, além de Umberto Eco, são citados como tendo se perguntado, com base nos conceitos de “significante” e “significado” de Saussure, o que pode ser entendido como um ou outro na arquitetura:

[Renato] De Fusco e [Maria Luiza] Scalvini, por exemplo, comparam o exterior de um prédio (a Rotunda de Palladio em Vicenza), com o significante de Saussure e o interior com o significado, um esquema simples que eles elaboraram com sutileza. Contudo, [Umberto] Eco seguiu uma linha bem diferente de pensamento. O significante poderia ser uma escada, significando o ato de subir – o qual se torna, então o significado (BROADBENT, 2006, p. 154).

O próprio Broadbent (2006) acrescenta a essas duas interpretações uma terceira, acompanhando os conceitos de Ogden e Richards que, segundo esse autor, em um desenvolvimento teórico a partir de Saussure, “tomaram o significante (que chamaram de símbolo) e o significado (que denominaram de pensamento ou referência) e acrescentaram um terceiro elemento, o referente, que é o objeto, pessoa ou fato a que nos referimos” (BROADBENT, 2001, p. 143). Para essa terceira interpretação de Broadbent (2006) qualquer edifício pode ser considerado tanto em termos de significante, quanto de significado e de referente.

Os conceitos de ícone, índice e símbolo de Peirce (1977) também são parâmetros teóricos para investigações na arquitetura. Conforme Broadbent (2006, p. 156), referindo-se à noção peirceana de ícone e às muitas definições de Peirce acerca do conceito, ele próprio, além de “Eco, Voli, [Tomás] Maldonado [...] e outros têm feito contribuições para esse debate”.

Ainda segundo Broadbent (2006), os conceitos de sintática, semântica e pragmática de Charles Morris, provenientes de desenvolvimentos a partir dos conceitos peirceanos, também têm sido aplicados à arquitetura. Apoiado nesses conceitos Broadbent (2006, p. 158) afirma que todo edifício tem uma sintática, uma semântica e uma pragmática e que, portanto, uma vez que “aceitamos isso como inevitável, podemos tratar de garantir que seja feito de maneira correta”.

Page 185: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

185

O significado em arquitetura [177-193]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Tratando da pragmática arquitetural – que observa a experiência das pessoas com a arquitetura nos efeitos do signo arquitetônico manifestos nos usos, na esfera do comportamento – Broadbent observa que

[...] a arquitetura afeta inevitavelmente vários sentidos ao mesmo tempo: visão audição, olfato, sensação de calor e frio (através da pele), para não falar de sentidos mais esotéricos como os de equilíbrio e das posturas e movimentos de nossos músculos e articulações (cinestesia) (BROADBENT, 2006, p.146).

Embora isso possa parecer óbvio para alguns, esse modo de ver a arquitetura não é sempre reconhecido, ou valorizado, mesmo pelos que adotam uma abordagem semiótica, como constatou o próprio Broadbent:

Alguns arquitetos estudiosos da semiótica tendem a “ler” a arquitetura como uma questão inteiramente visual, ignorando todos os outros modos pelos quais a arquitetura nos “transmite” significado e, dessa maneira [...] acabam por banalizá-la (2006, p.146).

Dentre os teóricos no Brasil que trabalharam sobre uma semiótica da arquitetura e, também, do urbano, tomando por base a semiótica de Peirce, destacam-se Décio Pignatari (1981) e Lucrécia D’Aléssio Ferrara (1981; 2000; 2002). Esta última autora, que trabalha a semiótica do urbano, distingue entre “visualidade” e “visibilidade”, para o que faz uso, também, do conceito de “lugar”. Ela escreve:

Do espetáculo à experiência da cidade passa-se às diferenças entre visualidade e visibilidade, passa-se da cidade ao lugar e, de uma semiótica visual da cidade à semiótica do lugar invisível. Entre as duas cognições processa-se a complexidade da semiótica da cidade que, em sua raiz, é obrigatoriamente, uma semiótica visual (FERRARA, 2002, p. 121).

Na linha dessa semiótica, elaboramos a seguir algumas considerações sobre a significação da arquitetura. De início, cabe dizer que a semiótica de Peirce está fundamentada na sua fenomenologia, na qual os fenômenos que nos aparecem à mente são classificados em três grandes classes. Da primeira à terceira há um sentido de evolução; em outras palavras, de passar da experiência meramente qualitativa com as coisas (meras formas, cores, sons, odores) à experiência de significação propriamente dita (racional).

Page 186: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

186

Eluiza Bortolotto Ghizzi [177-193]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

De acordo com Peirce (1977), as qualidades são mais proeminentes na chamada consciência qualitativa (ou de primeiridade), de pura presentidade, anterior ao nosso contato com a materialidade das coisas ou com os fatos; estes desencadeiam outro tipo de consciência caracterizada como de alteridade (de confronto com o que é outro/segundo para a consciência). Ambas são distintas de um terceiro estágio da consciência, o responsável pela mediação (que se traduz na experiência de significação). Este inclui os anteriores e é influenciado por eles, em maior ou menor grau, conforme as características da relação entre o signo, o objeto de representação e o que Peirce chamou de interpretante do signo (que em uma de suas nuances – a do interpretante dinâmico - pode ser entendido como interpretação).

Para essa semiótica, embora todas as coisas que têm qualidades e materialidade tenham potencial significante, para participarem de um processo que Peirce (1977) chamou de genuíno de significação, devem envolver mais do que forma e matéria, devem incluir a ação de certas leis, hábitos ou convenções. Estes permitem correlacionar uma experiência sígnica de tipo meramente qualitativa (como uma impressão, uma sensação), ou um fato em particular, com categorias ou classes gerais de coisas.

Na gramática especulativa – primeira parte da semiótica peirceana – o autor elabora algumas tríades de signos (correlacionadas com as categorias fenomenológicas) e relações triádicas entre os tipos de signo, as quais resultam em classes de signos logicamente possíveis. Os três tipos de signos supracitados (ícone, índice e símbolo) compõem uma das tríades mais conhecidas, dentre as desenvolvidas por Peirce (1977). A que toma por base os modos de relação entre o signo e seu objeto dinâmico, respectivamente, por similaridade, contiguidade ou convenção.

A semiótica da arquitetura se apóia grandemente nas qualidades formais que são percebidas visualmente; e para compreender a significação com base nelas uma semiótica visual, principalmente, tem sido aplicada. Mas um estudo pleno da significação na arquitetura deve

Page 187: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

187

O significado em arquitetura [177-193]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

considerar, também, uma semiótica do espaço, do caráter tectônico, dos usos e do lugar (este último tomado como o espaço impregnado de valores históricos, culturais, sociais). Para tanto deve levar em consideração diferentes tipos de signo.

Abaixo abordamos rapidamente o ícone, o índice e o símbolo, apontando aspectos da arquitetura que remetem ao seu modo próprio de estabelecer relação com um objeto. Em seguida, ainda brevemente, abordamos o modo próprio do símbolo genuíno de gerar um interpretante argumental, adentrando nos tipos de argumento. Com isso damos continuidade a uma linha para a qual temos direcionado nossos estudos, que busca compreender a significação na arquitetura com base nesses tipos de argumento. Desta vez, todavia, tomando como referência principal a relação da arquitetura com o usuário; enquanto outras vezes abordamos os modos de raciocínio (especialmente o dedutivo) no processo de elaboração do projeto.

O ícone é um signo cuja natureza significante está apoiada em uma relação entre signo e objeto regida por mera similaridade formal entre qualidades de um e de outro. E esta é a origem do seu potencial para representar um objeto na mente. E, dado que tudo deve ter alguma qualidade, tudo pode funcionar como ícone e remeter a outras coisas por semelhança. O que o ícone faz é representá-los qualitativamente, por semelhança.

As qualidades da arquitetura incluem formas visuais, cores, texturas, composição, volume. Entre outros modos de funcionamento, essas podem evocar objetos possíveis: outras obras de arquitetura, coisas externas à arquitetura, sentimentos ou pensamentos. Se apoiadas em meras relações de semelhança elas não fazem mais do que apontar para um poder ser. Todavia, embora de um baixo grau de definição, esse tipo de significação é dotado de um apelo que chamamos de estético, capaz de causar forte impressão. Esse é um tipo de significação muito valorizado por quem considera a arquitetura uma linguagem artística.

O índice é um signo cuja natureza significante está apoiada em uma relação entre signo e objeto regida por contiguidade. Daí resulta seu potencial para significar um objeto em uma mente. O que ele faz

Page 188: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

188

Eluiza Bortolotto Ghizzi [177-193]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

é fornecer informação sobre as singularidades de alguma coisa ou fato que existe. E, dado que tudo o que existe deve ter um modo específico de se constituir materialmente, todos os existentes podem vir a ser representados por meio de um índice.

A arquitetura gera representações dessa natureza, as quais permitem ultrapassar o recorte icônico (das meras qualidades) para adentrar na sua natureza existencial e concreta. Essa concretude carrega informações de fato sobre materiais, técnicas e outros. Mas o mais importante para a arquitetura é, talvez, que certas relações indiciam sob a forma de uma referência. É o caso dos signos que são reconhecidos como indicadores de funções estabelecidas culturalmente; ou, de modo mais básico, o de que a natureza concreta da arquitetura é fundamental à indicação de sua função de abrigo. Os interpretantes dos índices, todavia, geram meros reconhecimentos de algo positivo ou negativo, sem serem capazes de justificar suas proposições.

O símbolo, por sua vez, é um signo cuja natureza significante está apoiada em uma relação entre signo e objeto regida por uma convenção, regra ou lei. O que o símbolo representa é a generalidade das coisas. Esse tipo de interpretação exige que a mente interpretante tenha acesso, por meio de aprendizado, aos conceitos que incorpora, o que a prepara para reconhecê-los em ocorrências particulares. Sua significação é tida como genuinamente triádica e como contendo a própria estrutura do raciocínio.

A arquitetura tem uma natureza simbólica desde que cada obra é produto de elaboração conceitual. Esta tem vínculos tanto com a subjetividade quanto com a formação erudita do autor (quando é o caso), a história, a cultura, a sociedade. Sempre que se apreendem informações culturais, por exemplo, sobre o modo como a obra organiza sua proposta de espaço e de vivência, se está interpretando por meio de relações simbólicas.

O interpretante do símbolo genuíno é um argumento, forma de raciocínio estudada por Peirce na segunda parte da sua semiótica, a lógica crítica. Nesta Peirce classifica os raciocínios em três tipos:

Page 189: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

189

O significado em arquitetura [177-193]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

abdução, dedução e indução. A subdivisão, à semelhança das categorias fenomenológicas, bem como dos tipos de signo (ícone, índice e símbolo), implica em diferentes graus de definição para cada tipo de raciocínio. Mas, principalmente, cada um deles é responsável por uma espécie de método do nosso pensamento para significar em situações diferentes. E cada um desses, por sua vez, exerce um papel único e insubstituível na nossa busca por dar significado às coisas de modo a podermos agir com base neles.

O raciocínio abdutivo é também chamado de originário; seu processo é o da formação de uma hipótese. Ele se aplica especialmente às situações nas quais buscamos entender algo novo. Mais especificamente, quando somos levados a interpretar um caso particular com base no que conhecemos (regra ou lei); todavia, sem que o caso esteja previsto na regra ou decorra diretamente da observação. Configuram-se aí os casos em que o raciocínio é levado a considerar relações meramente possíveis entre caso e regra. A legitimidade desse modo de raciocínio para uma mente científica está apoiada na validade do que Peirce (1977, p. 221) chamou de introvisão ou insight, que é semelhante ao instinto animal para sobreviver; no nosso caso, para aprender coisas novas.

Pode-se dizer que o modo de raciocinar por abdução é estimulado no usuário da arquitetura por aqueles designers que a defendem como algo que se renova constantemente. Tal arquitetura é concebida como arte; e o que ela propõe é um interpretante predominantemente estético. Seus arquitetos defendem-na justamente como um tipo de signo novo e, portanto, estranho; que na relação com o usuário deve, no máximo, funcionar como uma sugestão hipotética. Defendem a novidade da experiência, usos não-automatizados; uma arquitetura que não prioriza, ou mesmo rejeita, significações gerais, consolidadas, quaisquer que sejam. Uma arquitetura em defesa da constante renovação dos modos de viver, ou do constante aprendizado das nossas possibilidades de viver. Em termos desta semiótica, estimulam um agir por abdução, um descolar-se – na medida do possível – das crenças; um aprender arriscando-se e criando possibilidades em meio a incertezas.

Page 190: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

190

Eluiza Bortolotto Ghizzi [177-193]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Essa arquitetura está altamente apoiada em uma semiótica visual que enfatiza as relações icônicas mais puras; suas formas rejeitam os padrões formais constituídos. No que se refere às opções formais, é fundamental para Eisenman (um importante arquiteto da atualidade) a não-perspectiva, a não linearidade; a forma cujo interpretante não remete a algo que na base é simples e facilmente identificável como caso de aplicação de uma regra (a exemplo da unidade ético-estética do funcionalismo), mas, a algo que é, na base, necessariamente fragmentado, múltiplo por natureza.

O raciocínio dedutivo, por sua vez, extrai consequências de uma regra qualquer para casos particulares, meramente pelo fato de se vincular o caso à regra. Se visto desse, modo parece mero reconhecimento do caso como aplicação da regra, de outro a dedução ganha uma perspectiva evolutiva. Nas palavras de Peirce (1977, p. 215), a dedução “desenvolve as consequências necessárias de uma hipótese pura”. Nesse caso seu processo é o das ações explicativas da hipótese; o que transcende o mero caso.

Algumas das hipóteses formuladas arquitetonicamente tendem a influenciar processos que bem podem ser entendidos como dedutivos. No âmbito da prática da arquitetura isso deve ocorrer sempre que um modo novo de ver a arquitetura é proposto – conceitualmente ou por meio de projetos ou obras – e, a partir disso, os próprios proponentes, ou outros, passam a experimentar suas consequências. Esse é o caso das variações dos princípios da arquitetura moderna, praticadas por arquitetos da primeira metade do século XX. Aponta-se como experiências mais puramente vinculadas às hipóteses modernistas as obras arquitetônicas de Le Corbusier, Mies van der Rohe, Rietveld, entre outros.

No âmbito do usuário, ainda em uma perspectiva evolutiva, podem-se localizar como procedimentos dedutivos os casos em que esse é estimulado a agir segundo uma hipótese já elaborada e em função do que decore dela; por exemplo, diante de arquiteturas inovadoras, logo após esse usuário ter formulado uma hipótese de uso. Mas procedimentos dedutivos também podem ocorrer mais desvinculados

Page 191: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

191

O significado em arquitetura [177-193]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

da intenção de testar uma ideia; por exemplo, diante de arquiteturas cujo tipo ou padrão já é bem conhecido do usuário, de modo que ele meramente reconhece ali o caso de aplicação de uma regra e age com base nisso. Neste último caso meramente se aplica uma regra geral a um caso particular.

A indução, por outro lado, nas palavras de Peirce (2008, 173), é o modo de raciocínio por meio do qual “generalizamos a partir de um número de casos nos quais algo é verdade e inferimos que a mesma coisa é verdade para uma classe inteira”; nas palavras de Ferrara (1981, p.59), que segue a base teórica peirceana, a indução “oferece uma implicação repetitiva, redundante, quantitativa do conhecimento. Pela observação e pela experimentação, a indução registra uma concordância regular entre alguns fatores e propõe hipóteses de generalização para a realidade objetiva”. Ela vai dos casos à regra.

No âmbito da arquitetura pode-se dizer que tal procedimento foi adotado, por exemplo, quando, elaboradas as hipóteses funcionalistas e as suas primeiras deduções, se propôs adotar o funcionalismo como modelo ideal de arquitetura social. Também quando se acordou entre os arquitetos em geral que sua combinação ético-estética era apropriada para a época e se adotou seus princípios, generalizando a prática. No âmbito do usuário esse é o processo pelo qual ele elabora seu conhecimento sobre a arquitetura, generalizando, de modo a estar preparado para as vivências futuras.

Segundo a hipótese de Peirce, esses raciocínios não agem isoladamente, mas, todos ao mesmo tempo. Daí que toda arquitetura, mesmo a mais tradicional, deve permitir um agir hipoteticamente, na medida em que não está fechada a novas possibilidades de uso e de viver. De outro lado, mesmo a arquitetura mais exótica deverá permitir seu reconhecimento como arquitetura e, além disso, estar comprometida com certas regras e ter certo grau de redundância, o que permitirá agir em relação a ela com base em um mínimo de certeza.

Todavia, o modo como os signos estão organizados pode estimular mais o proceder segundo um modo de raciocínio ou outro. Um modo

Page 192: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

192

Eluiza Bortolotto Ghizzi [177-193]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

de entender isso é pensando que os arquitetos podem estimular tanto a preservação quanto a diversificação dos modos de viver. Aqui não se está apontando o certo ou o errado. O que importa a esta linha de estudos é apontar para essa parte da semiótica de Peirce como uma importante ferramenta para investigação da arquitetura como linguagem; ou como a linguagem se manifesta em termos de arquitetura; ou para a investigação dos modos como a arquitetura age em relação com o nosso raciocínio, o que nos parece mais atraente do que o estudo de aspectos meramente formais, de composição ou tecnológicos ou outros.

Quando aplicamos isso à compreensão de como a arquitetura se manifesta na contemporaneidade, é impossível não notarmos a tendência da arquitetura chamada digital ou da chamada genética para romper com as regras tradicionais no interior da linguagem, tanto em forma e composição, quanto nas relações entre forma e função – prática ou simbólica. Isso ocorre de um modo muito mais radical do que ocorreu no período entre–guerras. Ainda que essa arquitetura mantenha, em muitos casos, o caráter monumental, tão tradicional, nos parece inegável que provoca no usuário muito mais um estar diante de algo novo e estranho do que um mero reconhecimento.

Isso diz algo não meramente sobre a arquitetura, mas, sobre nossa época. Fala de uma valorização do incerto; não apenas nas imagens da publicidade, do cinema, das artes plásticas e digitais, mas, na parte do ambiente com a qual interagimos espacialmente, não como em uma instalação artística, de onde se pode sair como se sai de um sonho, mas na vivência do dia-a-dia.

ReferênciasBROADBENT, Geoffrey. Um guia pessoal descomplicado da teoria dos signos na arquitetura. In NESBIT, Kate (Org). Uma Nova Agenda para a Arquitetura – Antologia Teórica (1965 – 1995). Tradução Vera Pereira. São Paulo: Cosac Naify, 2006.

EISENMAN, Peter. O pós-funcionalismo. In NESBIT, Kate (Org). Uma Nova Agenda para a Arquitetura – Antologia Teórica (1965 – 1995). Tradução Vera Pereira. São Paulo:

Page 193: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

193

O significado em arquitetura [177-193]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Cosac Naify, 2006.

FERRARA, Lucrécia D’Alessio. A Estratégia dos Signos. São Paulo: Perspectiva/Secretaria de Estado da Cultura SP, 1981.

FERRARA, Lucrécia D’Alessio. Os Significados Urbanos. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; FAPESP, 2000.

FERRARA, Lucrecia. Design em Espaços. São Paulo: Edições Rosari, 2002.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. Aurélio Eletrônico (CD-ROM), V 5.0. 40. Curitiba: Positivo Informática, 2000.

FRAMPTON, Kenneth. Uma leitura de Heidegger. In NESBIT, Kate (Org). Uma Nova Agenda para a Arquitetura – Antologia Teórica (1965 – 1995). Tradução Vera Pereira. São Paulo: Cosac Naify, 2006.

IBRI, Ivo Assad. Kósmos Noetós: a arquitetura metafísica de Charles S. Peirce. São Paulo: Perspectiva/Hólon, 1992.

NESBIT, Kate (Org). Uma Nova Agenda para a Arquitetura – Antologia Teórica 1965 – 1995. Tradução Vera Pereira. Revisão Técnica José Tavares Correia de Lira e Joana Mello. São Paulo: Cosac Naify, 2006.

NORBERG-SCHULZ, Christian. O fenômeno do lugar. In NESBIT, Kate (Org). Uma Nova Agenda para a Arquitetura – Antologia Teórica (1965 – 1995). Tradução Vera Pereira. São Paulo: Cosac Naify, 2006.

NÖTH, Winfred. Panorama da semiótica: de Platão a Peirce. São Paulo: ANNABLUME, 1995.

PALLASMAA, Juhani. A geometria do sentimento: um olhar sobre a fenomenologia da arquitetura. In NESBIT, Kate (Org). Uma Nova Agenda para a Arquitetura – Antologia Teórica (1965 – 1995). Tradução Vera Pereira. São Paulo: Cosac Naify, 2006.

PEIRCE, Charles S. Semiótica. Trad. José Teixeira Coelho Neto. São Paulo: Editora Perspectiva, 1977.

PEIRCE, Charles S. Ilustrações da Lógica das Ciências. Trad. E Intr. Renato Rodrigues Kinouchi. Aparecida, São Paulo: Idéias e Letras, 2008.

PIGNATARI, Décio. Semiótica da arte e da arquitetura. São Paulo: Cultrix, 1981.

POLIÃO, Marco Vitrúvio. Da Arquitetura. Tradução e notas Marco Aurélio Lagonegro. São Paulo: Hucitec, Fundação Para a Pesquisa Ambiental, 1999.

SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de linguística geral. 12. ed. São Paulo: Cultrix, 1985.

VENTURI, Robert. Complexidade e Contradição em Arquitetura. Tradução Álvaro Cabral. São Paulo: Livraria Martins Fontes, 1995.

Page 194: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido
Page 195: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

195Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Resumo: O objetivo deste texto é mostrar a evolução do objeto de estudo da Semiótica de linha francesa no que diz respeito ao seu nível narrativo. Em um primeiro momento, serão apresentadas as fases do desenvolvimento da disciplina, iniciando pela ação transformadora do sujeito até chegar à Semiótica das Paixões. Em um segundo momento, esse modelo clássico será contrastado criticamente com os quatro regimes de interação e de sentido concebidos por Eric Landowski (C.N.R.S/Paris), a saber: o regime da programação, da manipulação, da união e do acidente.

Palavras-Chave: Semiótica. Interação. Regime da União. Regime do Acidente. Objeto-Valor.

Abstract: The objective of this text is to show the evolution of the object of study of the French Semiotics concerning the narrative level. Firstly, the phases of its development will be presented, starting from the transforming action of the subject and finishing with the Semiotics of the Passions. Secondly, this classic model will be contrasted critically with the four regimens of interaction conceived by Eric Landowski (C.N.R.S/Paris): the programming, the manipulation, the union and the accident.

Keywords: Semiotics. Interaction. Regimen of the Union. Regimen of the Accident. Object Value.

A evolução do objeto de estudo da sintaxe e da semântica narrativasThe evolution of the object of study of syntax and semantics of narratives

Luiz Carlos Migliozzi Ferreira de Mello Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas

Centro de Ciências HumanasUniversidade Estadual de Londrina [email protected]

Page 196: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

196

Luiz Carlos Migliozzi Ferreira de Mello [195-210]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Introdução

O modelo de análise da Semiótica prevê três níveis de investigação, a saber: o nível profundo ou fundamental, o narrativo e o discursivo. É na etapa narrativa (sintaxe e semântica narrativas) que o analista encontra seu porto seguro. É ali que a Semiótica mais avançou. Contudo, o modelo existente é aquele que já havia sido concebido pelo próprio Greimas em Semântica Estrutural (1976)1. Mais recentemente, Eric Landowski propõe um desdobramento teórico do modelo tradicional. Não se trata de substituir a abordagem anterior por outra, mas sim de acrescentar algo novo ao arcabouço teórico já existente para poder dar conta de explicar diferentes formas de interação.

A finalidade deste texto é mostrar a mudança de paradigma proposta por Landowski ao propor dois novos regimes de interação e de sentido, a saber: o regime da união e do acidente. Antes disso, faz-se uma síntese das diferentes fases da Semiótica no que diz respeito ao desenvolvimento do seu nível narrativo de análise.

1. A ação transformadora do sujeito

A primeira fase da Semiótica, dos anos sessenta e início dos setenta, relaciona-se à análise estrutural da narrativa, desenvolvida em torno da sintaxe da ação. Nesse aspecto, o nascimento da Semiótica deve muito aos trabalhos desenvolvidos por Propp e por Lévi-Strauss. Ainda em relação à estrutura da narrativa, Fiorin (1995, p. 72) observa que tanto Greimas como Propp queriam revelar o que havia de constante e sistemático nas mais diferentes variedades de narrativas. Buscaram, assim, perceber o que havia de invariável na imensa variedade de manifestações narrativas (oral, escrita, gestual, pictórica etc.) e nos mais diferentes tipos de narrativas, como, por exemplo, nos mitos, nos romances, nas epopeias, nas tragédias, nas comédias, nas fábulas etc.

1 Cf. especialmente o capítulo intitulado “Estrutura elementar da significação”, subitens “Continuidades e descontinuidades” e “Conjunção e Disjunção”.

Page 197: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

197

A evolução do objeto de estudo da sintaxe e da semântica narrativas [195-210]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Com isso, a Semiótica dava um salto qualitativo muito importante, uma vez que extrapolava os limites da análise da frase, que era, até aquele momento, a unidade última da análise linguística estrutural. Barros (1995, p. 83) lembra que a narratividade, nesse momento, era concebida como uma transformação de estados, feita por meio da ação de um sujeito que quer entrar em conjunção com o seu objeto-valor. Os conflitos entre os sujeitos estão relacionados à conjunção ou à disjunção com os objetos-valores.

A Semiótica sofreu muitas críticas nessa fase, visto que muitos a viam como uma coisa já “acabada” e “definitiva”, portanto, como reducionista. Além dessa abordagem estruturalista, as análises, nessa fase, restringiam-se a determinados tipos de textos, a saber: o verbal, figurativo e da chamada “pequena literatura”, como folclore, conto etc.

2. A competência modal do sujeito

A segunda fase da Semiótica coincide com o aprofundamento nos estudos sobre as modalizações. Na primeira fase, falava-se de uma ação transformadora de um sujeito. Agora, fala-se das condições necessárias para a realização da ação desse sujeito. Enfatizam-se, nesse momento, estudos sobre a competência modal do sujeito. Se, na primeira fase, a ênfase recaía sobre a ação, agora, o foco de atenção se volta para os programas narrativos que modalizam o sujeito pelo querer fazer, pelo dever fazer, pelo poder fazer e pelo saber fazer. Em outras palavras, quer-se saber como o sujeito se torna competente para uma ação.

Com os estudos sobre a modalização do sujeito, a partir da qual o sujeito se instaura como sujeito do fazer, a Semiótica começa a percebe os modos de existência dos sujeitos. O modo de existência do sujeito leva em consideração a relação que o sujeito mantém com o querer fazer, o dever fazer, o poder fazer e com o saber fazer. Foi nesse momento que a Semiótica estabeleceu três modos para a existência modal do sujeito:

a. sujeito virtual – aquele que quer e/ou que deve fazer. Na sua relação com o objeto, trata-se de um sujeito não-conjunto, mas que tem as condições mínimas necessárias para executar o fazer.

Page 198: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

198

Luiz Carlos Migliozzi Ferreira de Mello [195-210]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

b. sujeito atualizado – aquele que pode e que sabe fazer. Trata-se de um sujeito disjunto com o seu objeto.

c. sujeito realizado – aquele que executou a ação, que foi responsável pela transformação de estado da narrativa. O sujeito está conjunto com o seu objeto.

Greimas e Fontanille (1993, p. 52-53) falam, ainda, de uma quarta existência modal para o objeto. Trata-se do sujeito potencializado: um estado intermediário entre o sujeito realizado e o sujeito atualizado. Na verdade, fala-se de uma pré-disposição do sujeito para executar a ação. Dessa forma, é uma existência modal pressuposta a partir da existência de um sujeito conjunto com seu objeto, isto é, realizado.

Ao tratar dos modos da existência do sujeito, a Semiótica analisa não apenas o sujeito que tem sua competência modal alterada, mas pensa também no sujeito operador dessa mudança modal. Nesse sentido, a Semiótica envereda para o exame da manipulação. Com isso, a mudança foi extraordinária: a Semiótica, agora, não só pensa no sujeito em relação ao seu objeto, mas também se aprofunda no exame das relações entre os sujeitos, que estabelecem e rompem contratos. Com isso, o esquema narrativo canônico passou a abranger três percursos: o da manipulação, o da ação e o da sanção.

Ainda nessa segunda fase, busca-se analisar os contratos e os conflitos entre os sujeitos. Contudo, diferentemente da primeira fase dos estudos semióticos, o conflito, agora, advém porque os sujeitos possuem sistema de valores diferentes e, portanto, assumem diferentes papéis contratuais. Dessa forma, o conflito entre sujeitos da narrativa não se resume às polêmicas entre diferentes sujeitos que querem os mesmos objetos, o que acontecia na primeira fase.

Outro avanço dessa segunda fase diz respeito ao processo da comunicação entre os sujeitos. Em razão do percurso do sujeito destinador manipulador, aquele que faz querer, a comunicação entre os sujeitos deixou de ser um fazer saber e passou a ser compreendido como um fazer crer. Com isso, a comunicação deixou de ser vista como uma

Page 199: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

199

A evolução do objeto de estudo da sintaxe e da semântica narrativas [195-210]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

mera troca de informação entre os sujeitos (destinador e destinatário). Fala-se, agora, do fazer persuasivo do destinador e do fazer interpretativo do destinatário. Em relação a esse assunto, Fiorin (1989, p. 52) observa:

A finalidade última de todo ato de comunicação não é informar, mas é persuadir o outro a aceitar o que está sendo comunicado. Por isso, o ato de comunicação é um complexo jogo de manipulação com vistas a fazer o enunciatário crer naquilo que se transmite. A linguagem é sempre comunicação (e, portanto, persuasão), mas ela o é na medida em que é produção de sentido. Nesse jogo de persuasão, o enunciador utiliza-se de certos procedimentos argumentativos visando a levar o enunciatário a admitir como certo, como válido o sentido produzido.

Isso abriu novas perspectivas no tratamento do processo da comunicação, nas relações interacionais entre os sujeitos, nas estratégias de argumentação etc. A comunicação, mais do que um fazer saber, passa a ser entendida como um fazer crer. A respeito disso, Fiorin (1988, p. 53) escreve:

A comunicação não deve ser entendida apenas como um fazer informativo, mas também e principalmente como uma estrutura complexa de manipulação, em que o enunciador exerce um fazer persuasivo e o enunciatário, um fazer interpretativo. [...]. O primeiro, dotado de um querer/saber/poder fazer-crer, faz o segundo crer em seu discurso.

Soma-se a isso o fato de que, com essa nova abordagem, a sintaxe narrativa começa a ser aplicada não somente a textos de ação (como era característico da primeira fase), mas também a textos temáticos. Alarga-se, dessa forma, o campo de ação da Semiótica.

3. A existência modal do sujeito

Se com as modalizações que instauram o sujeito do fazer a Semiótica viveu sua segunda etapa, com a modalização do ser, ela inaugura sua terceira fase.

Como se sabe, as modalizações (querer, dever, poder e saber, com todas as suas sobremodalizações) estão diretamente ligadas ao relacionamento entre o sujeito e seu objeto. Essas modalidades podem ser “intencionais” ou do fazer (modalização do fazer) ou, então,

Page 200: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

200

Luiz Carlos Migliozzi Ferreira de Mello [195-210]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

“existenciais” ou do ser (modalização do ser). As modalizações do fazer são aquelas que qualificam o sujeito para a ação.

Por outro lado, a modalização do ser marca a relação que o sujeito mantém com o objeto. Ou seja, o tipo de relacionamento que o sujeito mantém com o objeto determina sua “existência modal”.

As modalidades que caracterizam o sujeito de estado são determinadas pela conversão das categorias de tensão ou de relaxamento. Fica claro que é necessário pensar não só na relação do sujeito com o objeto, mas também na relação do sujeito com o valor. Ou seja, é necessário analisar o investimento de valor que o sujeito faz no objeto e a natureza desse valor.

A primeira coisa a esclarecer é que o investimento semântico que se faz no objeto é determinado pela relação que o sujeito mantém com esse objeto. Isso equivale a dizer que o valor investido no objeto modaliza o sujeito de estado. Com isso, fica claro que a modalização do sujeito de estado passa pela modalização do objeto.

Se a modalização do sujeito do fazer é caracterizada por um querer fazer, dever fazer, poder fazer e saber fazer, a modalização do sujeito de estado, em relação ao objeto, descreve-se pelo querer ser, dever ser, poder ser e saber ser, entendendo-se o “ser” como uma relação juntiva entre sujeito e objeto. Em outras palavras, o sujeito de estado concebe sua relação com o objeto investindo-lhe um determinado valor, definindo, assim, uma “existência modal” para o objeto e, consequentemente, para si mesmo. Nesse sentido, se o valor investido por um sujeito num objeto desejável, mas, ao mesmo tempo, impossível, diz-se que o sujeito de estado tem sua existência modal marcada pelo querer ser e pelo não poder ser. Por outro lado, se a relação que o sujeito mantém com o objeto é indesejável, mas impossível de ser rompida, tem-se, então, um sujeito de estado que caracteriza sua existência modal pelo não quer ser e pelo não poder não ser, e assim por diante.

Page 201: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

201

A evolução do objeto de estudo da sintaxe e da semântica narrativas [195-210]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Barros (2007) observa que os termos escolhidos servem para caracterizar o objeto. Dessa forma, um objeto poderá ser desejável, indispensável, possível ou verdadeiro quando a relação do sujeito com o valor investido no objeto for marcada pelo querer-ser, dever-ser, poder-ser e saber-ser.

Em síntese, há três tipos de modalização dependendo do local onde a modalização incide no enunciado: modalização da junção, modalização do sujeito do fazer e modalização do objeto. Como se mostra, a modalização do enunciado caracteriza-se pelas modalidades veridictória e epistêmica. A modalização do sujeito do fazer prepara o sujeito para a ação, atribuindo-lhe um querer, dever, poder e saber fazer. A modalização do objeto é determinada pelo valor que o sujeito de estado atribui ao objeto. Nesse caso, o sujeito é modificado pelo tipo de investimento modal que marca seu relacionamento com o objeto.

4. O estado de alma do sujeito

É somente a partir dos estudos sobre esses três tipos de modalização que a Semiótica aventura-se no campo das paixões: sua quarta fase. Mais especificamente, é a partir dos estudos sobre a modalização do ser (modalização da junção e modalização do objeto) que a Semiótica encontra um campo fértil para investigar e descrever as emoções humanas. A paixão surge como o resultado do jogo entre as modalidades do querer ser, do dever ser, do saber ser e do poder ser. Cada uma dessas modalidades pode desdobrar-se em quatro posições modais, já que se pode negar cada um dos predicados ou os dois ao mesmo tempo. A partir da modalidade do querer ser, por exemplo, pode-se chegar ao querer ser, ao não querer ser, ao querer não ser e ao não querer não ser. Uma paixão é, então, o fruto de arranjos modais, que determinam certos “estados de alma”. A literatura sobre o assunto mostra que um “estado de coisas” leva a um “estado de alma”.

Assim, se a Semiótica estuda a busca do sujeito por objetos-va-lores, pode-se dizer que os “estados de alma” aparecem, porque es-ses sujeitos, tentando entrar em conjunção com seus objetos-valores, criam “conflitos”, “polêmicas” entre si ou, então, estabelecem entre si

Page 202: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

202

Luiz Carlos Migliozzi Ferreira de Mello [195-210]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

“situações de cumplicidade”, “de benevolência”. As paixões podem, então, ser definidas como modalizações do ser dos sujeitos de esta-dos narrativos que, no nível discursivo, aparecem concretizadas por lexemas.

Com os valores investidos pelo sujeito no objeto, podem-se reconhecer determinados “estados de alma” desses sujeitos. Assim, se ele não quer ser, mas não pode não ser, pode-se entrever aí o desespero, a angústia, o medo, a vergonha. No entanto, uma investigação sobre paixões não deve restringir-se apenas às investigações dos arranjos modais, embora essa atitude seja indispensável. Um estudo sobre paixão que se limita à análise dos arranjos modais não consegue explicar o fato de uma mesma sequência modal poder produzir diferentes efeitos passionais. Por exemplo, um não querer ser, associado a um não poder não ser, pode levar o sujeito ao desespero, à angústia, ao medo, à vergonha. Torna-se claro, assim, que o estudo sobre as paixões deve ir além dos arranjos modais.

E ir além dos arranjos modais significa analisar não fragmentos do discurso (sobretudo daquelas partes relacionadas ao sujeito de estado), mas ao discurso como um todo. E, para isso, faz-se necessária uma investigação sobre as relações actanciais do discurso, dos programas e dos percursos narrativos e não apenas dos arranjos de modalidades, que, de forma mais direta, constituem a existência dos sujeitos. Ou seja, para uma investigação e descrição das paixões complexas, não basta uma análise das modalidades que constituem o sujeito patêmico. Faz-se necessário organizar os percursos em estados passionais e verificar as transformações modais que determinaram aquele estado passional. Com isso, (re)constrói-se a organização modal e passional da narrativa.

5. A contribuição landowskiniana

Todas as situações descritas até este ponto mostram a busca do sujeito por seu objeto-valor e a polêmica que se instaura na narrativa. É o que Eric Landowski denomina “regime da junção”, porque se trata de uma situação mediatizada por um objeto-valor. A partir disso, Landowski desenvolve dois regimes de interação: o regime da manipulação e o da programação.

Page 203: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

203

A evolução do objeto de estudo da sintaxe e da semântica narrativas [195-210]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

6. O regime da programação

Landowski explica que a programação está baseada em princípios empíricos, como as leis da Física, por exemplo. Como se enquadra dentro do regime da junção, a programação conta com a atuação de três actantes: o sujeito, que realiza ações na busca do valor investido num objeto; o objeto-valor, fim último das ações do sujeito; e o destinatário, aquele que “deseja” o objeto e entra em conjunção ou disjunção com ele. Cabe ressaltar, porém, que os papéis de sujeito e de destinatário podem ser desempenhados por um mesmo indivíduo: situação essa quando ocorre o sincretismo de sujeitos.

Como as ações decorrentes desse regime – como o próprio nome o diz – são programadas, há uma sequência predeterminada a ser seguida, objetivando-se certo resultado, já esperado. Em outras palavras, o sujeito, ao “querer” entrar em conjunção com determinado objeto-valor, realiza procedimentos ordenados para que sua performance seja alcançada. Entende-se como performance, segundo Barros (2007, p. 26), a “ação do sujeito com vistas à apropriação dos valores desejados”.

Para deixar tal conceito mais claro, pode-se tomar como exemplo um homem (o sujeito) que queira estacionar seu carro numa vaga qualquer de um estacionamento, entre dois outros veículos. Para entrar em conjunção com seu objeto-valor, representado aqui pelo “carro devidamente estacionado”, o motorista deve realizar uma série de manobras específicas para. Ele, evidentemente, sabe o momento de troca das marchas, a direção para a qual o volante deverá voltar-se, enfim, o sujeito está programado para executar sua performance.

O mesmo aplica-se a situações em que pessoas querem, por exemplo, congelar água ou fervê-la. Tais pessoas sabem o que devem fazer, baseando-se em resultados de experiências anteriores, que já se tornaram espécies de “regras” a serem seguidas para a concretização de determinadas atividades.

Assim sendo, é possível dizer, segundo os estudos de Landowski, que o regime da programação também é o da certeza, uma vez

Page 204: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

204

Luiz Carlos Migliozzi Ferreira de Mello [195-210]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

que, caso os procedimentos forem realizados de modo correto, dificilmente o resultado será diferente do esperado pelo sujeito. Por isso, a programação leva à performance do sujeito, à (quase) perfeição, a menos que fatores externos (como o acidente, que será discutido posteriormente) interfiram no curso de suas ações.

7. O regime da manipulação

Assim como a programação, a manipulação, explica Landowski, enquadra-se no regime da junção, também com a participação de três actantes. Porém, Landowski mostra que aqui a certeza dá lugar à dúvida ou à incerteza, porque o resultado não depende de fatores empíricos.

Como já foi dito, um mesmo sujeito pode assumir diversos papéis, agindo sobre si mesmo ou, então, trabalhando para que o outro faça o que ele quer, colocando-o em conjunção com seu objeto-valor. No entanto, para convencer/persuadir, como explica Barros (2007, p. 28), é preciso que “o destinador doe ao destinatário-sujeito os valores modais do querer-fazer, do dever-fazer, do saber-fazer e do poder-fazer”, modalizações indispensáveis para a efetivação da performance. É justamente nisso que reside a dúvida, a incerteza da interação, característica desse regime, como ressalta Landowski. Explica, ainda, o pesquisador que sujeito manipulado, dotado do livre-arbítrio, é quem decide se realizará ou não a performance. Em outras palavras, a mudança de estado daquele que manipula (sujeito manipulador-destinador), daquele que deseja o objeto, fica nas mãos do sujeito do fazer.

Para o sucesso da ação, para que seu objetivo seja alcançado, o manipulador pode lançar mão de algumas estratégias2. A manipulação pode dar-se de quatro maneiras: por provocação, por sedução, por intimidação ou, ainda, por tentação. O modo de ação dependerá da relação estabelecida entre os sujeitos, o que manipula e o que é manipulado. Para tanto, faz-se necessário que o manipulador conheça bem o manipulado, para que, com base nesse conhecimento, possa persuadi-lo com sucesso.

2 Landowski prefere a utilização do termo “estratégia” para designar os atos de mani-pulação.

Page 205: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

205

A evolução do objeto de estudo da sintaxe e da semântica narrativas [195-210]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Desse modo, Landowski mostra que a manipulação é o regime da intencionalidade por existir sempre uma intenção por trás das ações do sujeito que manipula, que quer ter a posse do seu objeto-valor por intermédio da performance de um outro sujeito.

Landowski salienta que, embora sejam distintas, cada um com suas peculiaridades, a programação e a manipulação são regimes em que objetos, revestidos por valores, circulam entre os sujeitos e podem ser considerados os principais “agentes” mediatizadores das interações entre esses indivíduos. Contudo, nem todas as relações interativas podem ser descritas por esses dois modelos, com será demonstrado a seguir. E é justamente nesse ponto que, mais uma vez, se destacam as contribuições de Eric Landowski.

8. O regime da união

Eric Landowski envereda-se pelo campo das interações sociais, visto que é ali que ocorrem as significações em ato, as significações em situações vividas. É ali, portanto, que o “sentido é sentido” (LANDOWSKI, 1996, p. 39). Em 2004, ele publica Passions sans nom no qual desenvolve o “regime da união”.

Há situações específicas em que o tipo de interação desenvolvido não pode ser descrito pelo modelo clássico, isto é, em que um sujeito busca a junção com um determinado objeto-valor. Existem situações em que a situação é bem mais complexa de ser descrita e exige do analista um novo desdobramento do modelo clássico (regime da junção). O regime de sentido deixa de ser baseado na existência de objeto-valor e alicerça-se na co-presença sensível dos actantes. Isso dá início ao que se convencionou chamar de semiótica da presença. A esse propósito, ressalta Landowski (2005b, p. 19):

Ao lado da lógica da junção entre sujeitos e objetos, que fundamenta a abordagem dos fenômenos de interação pensados em termos de estratégias de persuasão e de fazer fazer, devemos prever uma problemática do fazer ser que ponha em jogo um outro tipo de relações entre actantes, da ordem do contato, do sentir e, em geral, daquilo que chamaremos de união.

Page 206: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

206

Luiz Carlos Migliozzi Ferreira de Mello [195-210]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Esse “fazer fazer”, próprio do regime da junção, mais especificamente com a manipulação, em que sujeitos agem sobre si mesmos ou sobre outros, para atingir determinado fim, dá lugar ao “fazer ser”, em que corpos interagem por meio da estesia.

Diferentemente do regime da junção (programação e manipulação), no regime da união, além de não haver mais a circulação de objetos, não se fala mais em sujeitos, mas sim em corpos que entram em contato, criando valores no ato da interação. A esse respeito, Landowski (2005b, p. 19) afirma:

enquanto é próprio do regime da junção fazer circular entre os sujeitos, objetos que têm uma significação e um valor já definidos, segundo o regime de união, no qual os actantes entram estesicamente em contato dinâmico, é sua co-presença interativa que será reconhecida como apta a fazer sentido, no ato, e a criar valores novos.

Desse modo, as ideias de regularidade e de intencionalidade, características da programação e da manipulação, dão lugar a novas formas interativas, baseadas sobretudo na sensibilidade. A relação entre os sujeitos caracteriza-se por um ajustamento constante em que a estesia rege as relações entre os corpos.

No ajustamento, ocorre um ajuste entre os corpos. Eles entram em contato e, também por meio da sensibilidade, compartilham características, sensações, experiências. Um casal que faz uma exibição de dança necessita desse “ajuste” para que o resultado do espetáculo seja satisfatório aos olhos de quem assiste. Cada passo conduzido por um deles deve levar o outro a se posicionar de modo reativo e adequado.

Não há mais aqui a intencionalidade de “fazer o outro fazer” (descrição típica do regime da junção), porquanto há o “fazer junto”, numa concomitância de intenções, com corpos que agem por meio da reciprocidade. É essa concomitância que justifica a criação do “valor em ato”, já que os corpos trabalham juntos na construção do sentido.

Ainda ao discorrer sobre esse regime, Landowski (2005b) desenvolve o conceito de contágio e toma a gargalhada como exemplo. Ele explica que a gargalhada pode ter início em um corpo e passar a outro, apenas por se presenciar o fato, já que, como ele explica

Page 207: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

207

A evolução do objeto de estudo da sintaxe e da semântica narrativas [195-210]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

(2005b, p. 24), “estar presente para outrem já é comunicar”, não sendo necessário, portanto, haver discurso, pois o efeito é apreendido estesicamente pelos sentidos.

9. O regime do acidente

Em 2005, dando sequência ao desdobramento teórico do nível narrativo da Semiótica, Landowski publica Les interactions risquées no qual apresenta as premissas teóricas do regime do acidente. Segundo ele, o princípio fundador deste regime é o “elemento aleatório”, manifestado pela figura do “acaso” e, por consequência, do risco. Este não possui regularidade ou, pelo menos, esta não é conhecida. Explica que o acaso ainda não tem uma competência definível dentro do quadro teórico da Semiótica, nem de ordem modal nem de ordem estética. Do ponto de vista modal, isso significa que ele não é motivado, isto é, ele age sem razão. Se existe nele uma intencionalidade, esta não é conhecida. Do ponto de vista estésico, o acaso é indeterminado, não possui corpo; não é, portanto, da ordem do sensível.

Ainda segundo Landowski (2005a, p. 70), os acidentes podem ser “desastrosos” (valores disfóricos) ou “encantadores” (valores eufóricos), dependendo dos sujeitos envolvidos no julgamento dos resultados. Ganhar na loteria, por exemplo, pode ser considerado um acidente, visto que é algo incerto, mas muito diferente de um acidente de trânsito, pois, em princípio, não traz danos negativos.

Essa dualidade da natureza de um acidente, ora desastroso, ora encantador, dá margem para uma breve discussão acerca do risco, princípio fundador desse regime de interação. Landowski (2005a, p. 70) diz que há duas formas de risco: aquele resultante de uma “probabilidade matemática” e aquele resultante de uma “probabilidade mítica”. No primeiro caso, tem-se o acaso como fenômeno “imanente e vazio de sentido”. Por isso mesmo o risco é percebível apenas enquanto probabilidade matemática calculável a partir de manifestações supostas, como o “ganhar na loteria”, por exemplo. No segundo caso, o risco está vinculado à fatalidade, que é um fenômeno “transcendente e impenetrável”, como uma catástrofe natural.

Page 208: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

208

Luiz Carlos Migliozzi Ferreira de Mello [195-210]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Os demais regimes de interação (a programação, a manipulação e o ajustamento), cujos princípios definem a regularidade, a intencionalidade e a sensibilidade, também apresentam riscos, ou melhor, graus de risco, porque a relação estabelecida entre os sujeitos, mesmo que numa possibilidade remota, pode ter resultados inesperados. No regime do acidente, os riscos aparecem em intensidade maior do que nos outros regimes. Na programação, por exemplo, o risco é quase nulo; trata-se do campo da segurança. Na manipulação, os riscos são limitados, são, portanto, maiores do que na programação. Já o ajustamento caracteriza-se pela insegurança da relação. E, finalmente, o acidente, que se caracteriza pela total falta de segurança, é risco puro. Landowski explica, ainda, que a programação e a manipulação caracterizam prudência nas interações, enquanto o ajustamento e o acidente configuram-se como aventura.

Considerações Finais

Sem dúvida alguma, a abordagem landowskiniana sobre os regimes de interação e de sentido amplia o conhecimento sobre o nível narrativo e contribui para a consolidação de uma epistemologia semiótica sobre os processos de interação. Ao contrapor o regime da união ao da junção, Landowski retorna aos prolegômenos da estrutura narrativa canônica proposta em Semântica estrutural e propõe uma análise mais criteriosa da questão.

A bem da verdade, nos últimos vinte anos, sempre em busca dos processos de interação, Landowski forja uma fundação teórica e uma metodologia de investigação que se concretizam em lexemas, tais como: regime; regime de sentido; regime de interação; regime de junção; regime da programação; regime da manipulação; regime do ajustamento; regime do acidente; regime da aleatoriedade; regime de risco; princípio da regularidade; princípio da sensibilidade; princípio da intencionalidade; princípio da aleatoriedade; interações mediatizadas e não mediatizadas por objetos; competência estésica; papel catastrófico; ajustamento sensível; contágio estésico; reciprocidade; presença, dentre outros.

Page 209: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

209

A evolução do objeto de estudo da sintaxe e da semântica narrativas [195-210]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Com isso, é fundamental destacar a originalidade, a importância e a contribuição da abordagem de Landowski no quadro epistemológico da Semiótica atual. O modelo por ele apresentado aprofunda-se e, ao mesmo tempo, faz um prolongamento do arcabouço teórico da Semiótica.

A abordagem landowskiana dos quatro regimes de interação e de sentido constitui uma metodologia de trabalho que permite explicar como os sentidos do texto foram criados e como os sujeitos interagem socialmente no mundo, e isso permite compreender como o homem vive em sociedade e como ele percebe as coisas do seu cotidiano. Contudo, a existência de um arcabouço teórico apenas não basta. É preciso que o analista conheça em profundidade o seu objeto. Faz-se necessário também ultrapassar limites, enxergar aquilo que não havia sido percebido antes, promover rupturas e continuidades. Urge perceber que o sentir do sentido é anterior ao método e que este serve para explicar o sentido, e não o inverso. Os modelos de análise não podem ser concebidos como uma estrutura rígida, que se transforma em uma “camisa de força” e que impede o sentir do sentido.

Quando se analisa a trajetória percorrida pela Semiótica Discursiva ao longo de sua curta história, ficam evidentes que suas preocupações e seu método de trabalho foram sendo repensados e reformulados. Mais importante do que isso é perceber o salto qualitativo que houve. Se em sua origem a Semiótica Discursiva ainda trazia em seu bojo um ranço estruturalista, isso foi abandonado ao longo de sua história, sobretudo com os trabalhos desenvolvidos por Eric Landowski. Dessa forma, se há trabalhos estruturalistas dentro da linha semiótica, a falha não está no método, mas sim no analista.

ReferênciasBARROS, Diana Luz Pessoa de. Sintaxe narrativa. In: OLIVEIRA, Ana Claudia; LANDOWISKI, Eric (orgs.). Do inteligível ao sensível: em torno da obra de Algirdas Julien Greimas. São Paulo: EDUC, 1995, p.81-97.

_______________ Teoria semiótica do texto. 4 ed. São Paulo: Ática, 2007.

Page 210: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

210

Luiz Carlos Migliozzi Ferreira de Mello [195-210]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

FIORIN, José Luiz. As figuras de pensamento: estratégia do enunciador para persuadir o enunciatário. Alfa. São Paulo: UNESP, 1988. [vol. 32 N. 1, p.53-67]

_______________ Elementos de análise do discurso. São Paulo: Contexto-Edusp, 1989.

_______________ Greimas e Propp: conjunções e disjunções. In: OLIVEIRA, Ana Claudia, LANDOWISKI, Eric (orgs.). Do inteligível ao sensível: em torno da obra de Algirdas Julien Greimas. São Paulo, Educ, 1995, p. 71-79.

GREIMAS, Algridas Julien. Semântica estrutural. São Paulo: Cultrix, 1976.

GREIMAS, Algridas Julien & FONTANILLE, Jacques. Semiótica das paixões. São Paulo: Ática, 1993.

LANDOWSKI, Eric. Viagem às nascentes do sentido. In: SILVA, Ignácio Assis (Org.). Corpo e sentido: a escuta do sensível. São Paulo: EDUNESP, 1996, p. 21-43.

_______________. Passions sans nom. Paris: PUF, 2004.

_______________. Les interactions risquées. Limoges: Pulim, 2005a.

_______________ Aquém ou além das estratégias, a presença contagiosa: In: Documentos de Estudo - Centro de Pesquisas Sociossemióticas. São Paulo: Edições CPS, 2005b, p.07-50.

Page 211: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

211Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Resumo: A masculinidade é, antes de tudo, um efeito de sentido – ser homem depende das conotações sociossemióticas que o fazem assim. Investigar tais conotações, portanto, redundaria em descrever os valores semânticos definidores da hombridade em determinada época e em determinada cultura, e os modos de existência semiótica do sujeito que se define em relação a eles. Outro modo de descrever a masculinidade, porém, diz respeito à articulação da competência do sujeito masculino, o que permite indagar: uma vez homem, como ele pode se comportar ao realizar suas performances? O estudo “A construção da masculinidade – uma abordagem semiótica” vem ao encontro desse último questionamento, trata-se de uma análise da competência modal do sujeito que já se definiu homem em suas conotações sociossemióticas. Para tanto, é utilizado como corpus material recolhido nas linguagens do cinema e da história em quadrinhos.

Palavras-chave: Masculinidade. Semiótica. Semiótica tensiva. Cinema. História em quadrinhos.

Abstract: Masculinity is, primarily, an effect of meaning – to be a man depends on the sociosemiotic connotations that make him a man. To investigate such connotations, therefore, would result in describing the defining semantic values of masculinity in a pre-determined time and in a pre-determined culture, and the forms of semiotic existence of the subject who defines himself in relation to them. Another form of describing

A construção da masculinidade – uma abordagem semióticaThe building of the masculinity - a semiotic approach

Antonio Vicente Pietroforte Departamento de Lingüística

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Universidade de São Paulo

[email protected]

Page 212: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

212

Antonio Vicente Pietroforte [211-226]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

masculinity, however, involves the articulation of the competency of the male subject, which allows us to question: how must he, as a man, behave at his performances? The study “The construction of masculinity – a semiotic approach” answers the latter question; it is an analysis of the modal competence of the subject who has defined himself as male and his sociosemiotic connotations. In order to do so, material collected in the language used in movies and in comic strips is used as corpus.

Keywords: Masculinity. Semiotcs. Tensive semiotics. Movies. Comic strips.

Ser homem, à revelia do código genético, é estar de acordo com determinada orientação ideológica. Não se trata apenas de ser humano, ser do sexo masculino XY, possuir pênis etc. – ser homem é, antes de tudo, uma questão semiótica. Uma vez definido no discurso que o realiza, qualquer sistema de valores semânticos está pronto para ser atualizado pelos co-enunciadores que se valem dele; o sujeito narrativo homem, portanto, entra em junções com os valores desse sistema que definem a masculinidade e pode ser descrito, em relação a esses valores, em estados de conjunção, não-conjunção, disjunção e não-disjunção, de modo que a junção garante a existência semiótica daquele sujeito narrativo.

Na medida em que ser homem depende da junção com tais valores, a masculinidade se torna um processo narrativo, em que o sujeito realiza a performance de manter sua existência semiótica, indo ora ao encontro de, ora de encontro a ela. Desse ponto de vista, a performance masculina pode ser definida, pelo menos, em relação à articulação modal da competência para realizar a performance – ou seja, determinar como estão articulados o saber e o poder desse sujeito – ou em relação aos objetos de valor determinados pelo discurso.

Esses valores, ditos descritivos, variam de acordo com o processo histórico. Ser como Aquiles implica considerar Pátroclo entre os valores descritivos na formação da masculinidade grega daquele período histórico; ser como Jesus implica no sacrifício próprio de homens como Pedro, Paulo, João. Insistir em análises semióticas da masculinidade

Page 213: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

213

A construção da masculinidade [211-226]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

baseada nesse tipo de conotação social redunda em descrever tais conotações e elaborar paradigmas de comportamento, que dependem antes de análises históricas que semióticas. Se a análise dos valores descritivos pouco tem a oferecer além de determinar os objetos descritivos da performance masculina, de ordem histórica, a análise da articulação dos valores modais da competência tem a vantagem de, em sua abstração, verificar formas de ser masculinas baseadas em como o homem faz para realizar a performance, independentemente dos valores descritivos considerados. Trata-se da analisar, dessa vez, como se faz quando se é ou pretende-se ser homem.

1. Os fortes e os ardilosos

Uma vez em conjunção com os valores que definem o que é considerado ser homem, o sujeito narrativo está pronto para agir como tal; se competente, esse homem deve saber-fazer e poder-fazer; na articulação dos objetos modais saber e poder, portanto, é possível definir a competência masculina. Como está dito antes, de acordo com a semiótica, a existência do sujeito narrativo é descrita em relações juntivas estabelecidas com os valores determinados: se está em disjunção, é chamado sujeito virtualizado; se está em não-disjunção, é chamado sujeito atualizado; se está em conjunção, é chamado sujeito realizado; se está em não-conjunção, é chamado sujeito potencializado. Colocadas no quadrado semiótico, as relações são estas:

disjunçãosujeito virtualizado

não conjunçãosujeito potencializado

conjunçãosujeito realizado

não-disjunção sujeito atualizado

Page 214: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

214

Antonio Vicente Pietroforte [211-226]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

O homem em questão já está em conjunção com os valores masculinos determinados por sua cultura; trata-se, por isso, do sujeito realizado com a hombridade e, uma vez homem, está pronto para agir como se espera dele. Colocado em programas narrativos, esse homem está apto a realizar outras performances, em que o estatuto adquirido faz parte de sua disposição modal – é justamente nesse modo de agir em suas performances que se pretende analisar a construção da masculinidade.

Uma vez competente, o homem deve articular saber e poder em sua disposição masculina. Nessa articulação há, pelo menos, dois regimes básicos do fazer masculino: ou o saber determina o poder, o homem é ardiloso; ou o poder determina o saber, o homem é musculoso. Comparar os fazeres de dois modelos masculinos do imaginário cinematográfico exemplifica as formas de ser desses dois regimes; são bons exemplos as imagens masculinas realizadas por George Clooney em Onze homens e um segredo e por Vin Diesel em Triplo XXX, nos dois filmes os heróis são competentes, ambos são belos, bons e verdadeiros. Atenção, não é o caso de analisar atores e atrizes, mas de papéis vividos por eles; o George Clooney de Um drink no inferno é outro homem, já Vin Diesel varia bem menos em suas atuações.

Onze homens e um segredo é uma história de trapaceiros. Depois de quatro anos de prisão, Daniel Ocean, interpretado por George Clooney, obtém liberdade condicional; fora das grades, seus primeiros passos são formar uma quadrilha e executar o roubo de três cassinos, em Las Vegas. A vítima é o empresário Terry Benedict, vivido por Andy Garcia; além de dono dos cassinos, Benedict vive com a ex-esposa do trapaceiro, o que faz do golpe assalto e disputa pela recuperação do amor e da admiração da dama.

Daniel Ocean é um cavalheiro distinto, em nenhuma passagem do filme ele se vale de violência; antes furtos que roubos, é sempre por meio de ardis que o herói realiza suas façanhas, inclusive a da reconquista amorosa. Não há uma luta no filme – o único espancamento, sofrido por Daniel, é também outra farsa – nenhum dos atores aparece

Page 215: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

215

A construção da masculinidade [211-226]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

mostrando os bíceps ou os punhos, todos vestem paletós e gravatas, ninguém morre ou se fere gravemente na história. O furto é realizado mediante planejamentos engenhosos, nos quais as personagens lançam mão de esquemas, mapas, gráficos, máquinas e acrobacias; enfatizando o cérebro no lugar dos músculos, nos homens de Ocean o saber determina o poder.

Utilizando algumas das propostas de Fontanille e Zilberberg (2001, p. 15-37), é possível descrever esse tipo de regência modal. Em seus encaminhamentos teóricos, ambos os autores recuperam conceitos da glossemática, de Hjelmslev, entre eles, os conceitos de constituintes e caracterizantes da forma linguística. Os constituintes são os componentes descontínuos dos planos da linguagem: no plano de expressão, são os fonemas e, no plano de conteúdo, são os significados dos radicais e afixos; os caracterizantes são os componentes contínuos desses dois planos: no plano de expressão, trata-se da curva entoativa e de seus acentos tônicos enquanto, no plano de conteúdo, são as desinências verbais e nominais.

Os componentes descontínuos podem ser descritos em centrais e marginais, uma vez que podem ser isolados uns dos outros. Desse modo, no plano de expressão as vogais são centrais, pois há sílabas de uma só vogal, e a consoantes, são marginais; no plano de conteúdo, os radicais são centrais e os afixos, marginais. Entretanto, os componentes contínuos, diferentes dos componentes anteriores, justamente porque não podem ser divididos em unidades discretas, como fonemas ou sememas, devem ser tratados em termos de extensidade e intensidade. No plano da expressão, a curva entoativa é extensa e os acentos tônicos, intensos; no plano de conteúdo, as desinências verbais são extensas e as nominais, intensas.

A extensidade, grosso modo, dá conta de descreve grandezas que cuidam da totalidade do objeto enfocado, como a curva entoativa, que se coloca sobre os segmentos fonológicos, ou as desinências verbais, que cuidam de relacionar, por meio da concordância e da regência, todas as palavras enunciadas nas frases. A intensidade, por sua vez,

Page 216: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

216

Antonio Vicente Pietroforte [211-226]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

descreve ocorrências pontuais na extensidade, como os acentos tônicos, no plano de expressão, ou os nomes, no plano de conteúdo.

Recuperando os conceitos de extensidade e intensidade para tratar de grandezas contínuas envolvidas nos processo de significação, Fontanille e Zilberberg propõem uma articulação deles entre dois eixos, representada assim:

Voltando à questão da regência modal, no caso de Onze homens e um segredo é possível afirmar que o saber é da ordem da extensidade, pois acompanha o herói em suas performances, fazendo com que as manifestações do poder sejam pontuais. Em pelo menos dois momentos da história, o poder surge com intensidade, pois, modalizado pelo saber-fazer, Daniel Ocean recruta, entre seus comparsas, duas figurativizações dessa modalidade: o amigo Reuben, que financia a farsa; e o acrobata chinês, que salta sobre os sensores do piso do cofre.

No modelo dos eixos extensidade vs. intensidade, há a previsão de dois tipos de curvas na relação entre as grandezas: ou extensidade e intensidade crescem e diminuem juntas, formando a curva conversa; ou enquanto uma cresce, a outra diminui, formando a curva inversa:

Page 217: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

217

A construção da masculinidade [211-226]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Em Onze homens e um segredo, trata-se de uma relação conversa pois, à medida que o saber cresce, cresce também o poder – quanto mais conhecimento eles adquirem do funcionamento dos cassinos e do comportamento previsível de Benedict, maior a capacidade para realizar a performance.

No universo das histórias em quadrinhos, uma personagem que se comporta de acordo com esse tipo de modalização é o super-herói Batman, que também já foi interpretado por George Clooney em uma de suas versões cinematográficas. Batman não tem super poderes, Bruce Wayne é apenas um homem fantasiado; sua mente analítica e engenhosa, no entanto, garante seu saber fazer extensamente, enquanto seu poder fazer é regido por ela em ações pontuais, quando se vale do cinto de utilidades, do batmóvel, dos computadores e laboratórios da batcaverna. Assim são o Homem de Ferro e o Arqueiro Verde, dois homens comuns que contam primeiro com a inteligência, inclusive para construir suas super armas, respectivamente, a armadura e as flechas especiais.

Triplo XXX é uma história de espionagem internacional em que, mais uma vez, os valores democráticos devem vencer o autoritarismo ou a anarquia; no filme, o inimigo é o grupo Anarquia 99, que pretende dominar o mundo com armas biológicas e Vin Diesel é Xander Cage, um rebelde recrutado para se infiltrar no grupo terrorista e resolver o problema.

X, como gosta ser chamado, é o novo modelo de homem e de agente secreto. Em uma paródia bem articulada com os filmes de James Bond, um agente secreto bem arrumado, de smoking, limpinho e penteado, fracassa ao tentar se contrapor ao Anarquia 99. Perdido em uma danceteria em plena Praga, mal sabe como fazer cercado por homens e mulheres vestidos de couro, tatuados, bem menos arrumados que ele; visível na multidão devido ao estilo de ser, é facilmente baleado e morto.

Esse 007 “bundinha” deve ser substituído por Vin Diesel: careca, musculoso, coberto de tatuagens, metrossexual. Saudável – pois não bebe, não fuma, faz surfe, snowboard, paraquedismo, automobilismo,

Page 218: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

218

Antonio Vicente Pietroforte [211-226]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

motociclismo, joga vídeo games – Xander Cage não respeita autoridades, sua primeira ação é desafiar um senador reacionário, combatente do rap, da Internet, dos videogames. Rouba-lhe a Corvette e a lança de uma ponte, tudo é filmado e colocado na Internet; uma vez preso, X deve trabalhar para o governo Norte Americano pela anistia de suas contravenções. Vai parar na República Tcheca, conhece Yelena, vence o Anarquia 99.

Longe dos brutamontes abobalhados, X é inteligente e bem articulado quando argumenta; submetido a várias provas qualificantes, passa por todas porque não se deixa enganar. A cena da falsa lanchonete é exemplar: X mostra que lê jornais, conhece armas, conhece garçonetes; nas cenas nas plantações de coca na Bolívia e contra o Anarquia 99, em Praga, Xander Cage sempre se salva ao articular conhecimento e poder, mas não como o herói de Onze homens e um segredo.

X é, antes de tudo, forte e musculoso; modalizado antes pelo poder, é por meio dele que determina o saber. Contrariamente ao herói anterior, em heróis como X o poder é da ordem da extensidade, ele acompanha o herói, em sua competência, ao longo da realização da performance. O saber, por sua vez, é pontual, ocorre intensamente em função da extensidade do poder. Ainda na relação tensiva conversa, o saber cresce à medida que cresce o poder: quando mais pode, mais o herói sabe como fazer. Entre os super-heróis das histórias em quadrinhos, Super-Homem, Lanterna Verde, Flash, Capitão América, Thor, Homem Aranha, os X-Mem, Surfista Prateado, entre muitos, são modalizados assim.

O que há de comum nos super-heróis citados é a relação com o super poder. Não importa se são alienígenas vivendo na Terra -– Super-Homem, Surfista Prateado; se possuem objetos mágicos, que somente eles podem usar – Lanterna Verde, Thor; ou se adquiriram poderes em mutações, acidentes ou experiências científicas – os X-Men, Flash, Homem Aranha, Capitão América. Todos eles são super humanos quando poderosos, nenhum deles é apenas um homem habilidoso e fantasiado, como são o Batman, o Arqueiro Verde ou o Homem de Ferro.

Page 219: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

219

A construção da masculinidade [211-226]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Tanto Daniel Ocean quanto Xander Cage são sujeitos narrativos competentes, articulam tanto saber quanto poder em suas competências masculinas. Realizados com valores masculinos determinados em conotações sociais, ambos agem como homens e, quando são convocados a realizar outras performances, continuam competentes, são heróis sempre realizados ou em vias de se realizar. De acordo com a articulação extensiva do saber ou do poder, podem ser chamados, respectivamente, herói realizado cognitivamente e herói realizado pragmaticamente.

2. Os fortes ou os ardilosos

O herói realizado age quase sempre sozinho ou, quando em grupo, exerce a liderança; há, no entanto, outro tipo de herói, que sempre precisa de ajuda, sem deixar de cumprir com as expectativas do que se espera de um homem. Ainda no universo do cinema, há dois filmes em que esses heróis, quase incompetentes, realizam outras performances além daquela que os faz homens: Silvester Stalone, em Rocky, um lutador, e Matthew Broderick, em Godzila – respectivamente, o “gigante bonzinho” e o “nerd sensível”, também são heróis belos, bons e verdadeiros, no entanto, um é um pouco ingênuo, e o outro, meio franzino.

Em Godzila, o biólogo Dr. Niko Tatopoulos, interpretado por Matthew Broderick, estuda os efeitos da radioatividade em minhocas mutantes; obstinado, enfrenta chuvas torrenciais nas vizinhanças dos destroços da usina nuclear de Chernobyl para realizar suas pesquisas. Não é bruto nem frio, é um cientista bonzinho, como é o professor Antonio, do desenho das Meninas Super Poderosas; longe do gênio deformado pela feiura, pela velhice e pela misantropia, como Fausto, Niko Tatopoulos é “bonitinho” – sua colega cientista, a paleontóloga Drª Elsie Chapman, em uma passagem do filme, refere-se a ele como sendo cute.

Para vencer o monstro, contudo, suas qualidades não bastam; falta-lhe o poder fazer, por isso ele precisa da ajuda do agente do serviço secreto francês, Philippe Roach, interpretado por Jean Reno – Sem sua ajuda, não há poder para derrotar Godzila. Como o herói realizado cognitivamente,

Page 220: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

220

Antonio Vicente Pietroforte [211-226]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

esse tipo de homem tem o saber da ordem da extensidade e o poder da ordem da intensidade, a curva tensiva, porém é inversa: quanto mais saber fazer, menos poder fazer; à medida que sabe como fazer, o sujeito narrativo sabe também o quanto não pode.

Em Godzila, quando Niko Tatopoulos é desligado das forças armadas americanas, é quando ele sabe o quanto é necessário derrotar o monstro – ele acaba de descobrir que o réptil está “grávido”, pronto para gerar dezenas de outros gigantes. Sem poder algum, nesse momento do filme o agente Phillipe Roach aparece como seu aliado e para garantir a performance. Unidos pelo mesmo objetivo, a cena da fuga no táxi, em que os heróis são perseguidos pela criatura, é o melhor exemplo dessa relação semiótica; enquanto o agente secreto dirige o automóvel, partem do biólogo as orientações para derrotar o inimigo: Niko Tatopoulos consegue estabelecer comunicação com os soldados, jogando para um deles o número de registro do táxi, que permite localizar as chamadas de rádio; ele liberta o automóvel das garras do monstro no túnel, com a ideia da utilização de faróis altos para confundir Godzila; liberta o automóvel da boca do monstro, quando se vale de cabos elétricos; vem dele o plano de enredar o gigante nos cabos de aço da ponte do Brooklyn, que torna possível sacrificar a fera. Entretanto, sem o motorista, habilidoso na condução do táxi, nada disso seria realizado.

No universo das histórias em quadrinhos há homens assim. Geralmente, em suas identidades secretas, alguns super-heróis são nerds sensíveis e simpáticos: Peter Parker, o Homem Aranha, e Bruce Banner, o Hulk. Mas, quando são reveladas suas identidades, não se trata do herói propriamente dito, por isso, talvez o melhor exemplo seja o adolescente chamado Cifra, dos Novos Mutantes, cujo super poder é decodificar sistemas, seu poder é falar todas as línguas por meio do conhecimento de apenas algumas palavras – em termos linguísticos, Cifra é um herói saussuriano. Cifra decodifica não apenas línguas, mas quaisquer sistemas; em suas aventuras, quanto mais sabe do problema, menos é capaz de resolvê-lo pragmaticamente, por isso, nas histórias dos Novos Mutantes, Cifra depende sempre da ajuda de Warlock,

Page 221: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

221

A construção da masculinidade [211-226]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

um ser alienígena que se incorpora a ele e, nessa simbiose, ambos realizam a performance. Em termos semióticos, Cifra entra com o saber e Warlock, com o poder.

O modelo masculino em Rocky, um lutador é diferente; de modo contrário, Rocky Balboa é um homem simplório, por pouco não seria bobalhão. Contudo, trata-se do homem bom: Rocky começa sua história trabalhando como cobrador para agiotas, mas, ao invés de surrar os devedores, negocia com eles sem intimidações violentas, além de distribuir conselhos para as crianças e adolescentes do bairro, como não fumar, não dar moleza aos meninos etc. Lutador de box amador, Rocky é a imagem do looser; modalizado unicamente pelo poder, pois é um brutamontes, basta um bom treinador para delegar a ele o saber necessário para vencer, ainda que apenas moralmente, a luta final.

Como o herói realizado pragmaticamente, esse tipo de homem tem o poder da ordem da extensidade e o saber da ordem da intensidade; a curva tensiva, porém, é inversa como no caso anterior: quanto mais poder fazer, menos saber fazer; à medida que pode fazer, o sujeito narrativo não sabe como fazer com o quanto pode.

Enquanto o poder de Rocky Balboa cresce, pois ele pára de fumar, muda a alimentação e começa a se concentrar cada vez mais nos treinos, o lutador mal sabe o que fazer com a técnica em crescimento. Nesse momento, aumenta a necessidade das orientações de Mickey, o velho e experiente treinador, interpretado por Burgess Meredith. No universo das histórias em quadrinhos, o melhor exemplo de heróis modalizados assim é o incrível Hulk: quanto mais forte, mais insano o Hulk se torna; quanto mais poder, menos saber – sem as manipulações da noiva Beth Ross e do amigo Rick Jones, o gigante verde só causaria destruição.

Ou fortes ou ardilosos, esses homens não são como os homens fortes e ardilosos descritos anteriormente. Embora realizados com valores masculinos determinados em conotações sociais, pois ambos agem como homens, quando são convocados a realizar outras performances são incompetentes. Apenas atualizados por meio do saber ou do poder, esses homens só se realizam quando outra pessoa do discurso funciona

Page 222: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

222

Antonio Vicente Pietroforte [211-226]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

para completar sua competência sempre incompleta; de acordo com a articulação extensiva do saber ou do poder, podem ser chamados, respectivamente, herói atualizado cognitivamente e herói atualizado pragmaticamente.

3. Homens, heróis e mulheres

Nas descrições anteriores, é possível determinar quatro tipos de homens, independentemente das conotações sociais que os tornam assim, mas de acordo com o tipo de herói narrativizado, definido em sua competência para realizar performances de homem.

Recapitulando, há o homem realizado cognitivamente, em que o saber é da ordem da extensidade e se articula com o poder, da ordem da intensidade, em uma curva conversa; e há o homem realizado pragmaticamente, em que o poder é da ordem da extensidade e se articula com o saber, da ordem da intensidade, em uma curva também conversa.

homem realizado cognitivamente homem realizado pragmaticamente

não saber saber não poder poder

extensidade extensidade

Há ainda o homem atualizado cognitivamente, em que o saber é da ordem da extensidade e se articula com o poder, da ordem da intensidade, em uma curva inversa; e há o homem atualizado pragmaticamente, em

Page 223: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

223

A construção da masculinidade [211-226]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

que o poder é da ordem da extensidade e se articula com o saber, da ordem da intensidade, em uma curva também inversa.

Ao longo de todas as descrições anteriores, os termos herói e homem são tomados quase sem distinções; com os dados baseados em personagens masculinas que figurativizam o sujeito narrativo em todas as ocorrências estudadas, é impossível não assimilar a figura do homem ao papel temático do herói.

De cunho ainda predominantemente patriarcal, a maioria das culturas humanas está baseada em feitos de homens e heróis; mesmo algumas mulheres, como Joana D’Arc, são semiotizadas com valores masculinos, basta lembrar que Ingrid Bergman e Milla Jovovich atuam nos filmes a respeito da Santa vestidas com armaduras de guerreiros.

Os tipos de homens realizados pragmática e cognitivamente propostos são inspirados nos heróis homéricos Aquiles e Ulisses, respectivamente; tanto um quanto o outro são deveras homens, nenhum dos dois é néscio, nenhum é franzino, tampouco precisam de ajuda. Embora amigos – é a Ulisses a quem Agamenão recorre para convencer Aquiles a voltar aos campos de batalha – enquanto Aquiles é o homem que age além da retórica, modalizado extensamente pelo poder, Ulisses é hábil na técnica de persuadir, modalizado que é, extensamente, pelo saber.

não saber saber não poder poder

extensidade extensidade

homem atualizado cognitivamente homem atualizado pragmaticamente

Page 224: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

224

Antonio Vicente Pietroforte [211-226]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Há na literatura, ainda, homens atualizados pragmática e cognitivamente. O rei Artur é um homem atualizado pragmaticamente, falta-lhe saber; Artur é deveras homem, apesar de Lancelot e Guinevere, mas, não fossem as instruções de Merlim, mal saberia o que fazer com a espada e a administração do reino. José, filho de Jacó, por sua vez, é um homem atualizado cognitivamente: amoroso, belo, profeta; contudo, falta-lhe poder, pois é subjugado com facilidade pelos irmãos e, sem o faraó, não passaria da condição de escravo com que foi vendido.

Gilgamesh, Aquiles, Ulisses, Perseu, Arjuna, Artur, Sansão, José, Davi, Jesus etc são todos homens. Alguns têm suas mulheres: Circe, Calipso, Penélope, Andrômeda, Draupedi, Guenevere, Dalila, Betsabá, Madalena, Marta e Maria etc; mas, quando não são mães, são esposas, nem sempre fiéis; sempre adjuvantes, raramente as mulheres assumem o papel de heroínas nas tradições mitológicas e literárias tanto ocidentais quanto orientais.

Há textos perdidos? A cultura patriarcal se encarrega de veicular apenas discursos em que a mulher não passa de algo em função do homem? Quando Charles Moulton, pseudônimo do psicólogo Willian Moulton Marston, foi encarregado de conceber uma super heroína que conquistasse leitoras para as histórias de super heróis, então exclusivas do público masculino, surgiu a Mulher Maravilha; no entanto, embora inspirada nos mitos gregos das Amazonas, Diana Prince é antes fruto do imaginário masculino que do feminino, basta ver o busto e os quadris da Mulher Maravilha – herdeiras dela, a Moça Invisível, Jean Grey, Tempestade, Vampira, Lara Croft, Mulher-Hulk etc são todas frutos antes do onanismo que da emancipação feminina.

Quais são os atuais modelos de mulher para mulher? Frida Kalo, Rosa de Luxemburgo, Isadora Duncan, Virgínia Wolf, Valerie Solanas? Como seriam uma condessa de Monte Cristo, uma Dona Dulcinéia de La Mancha, uma Beatriz nos infernos? E se ao invés de Moisés, Zéfora tivesse guiado o povo de Sara através do deserto? Como seria a semiótica se, no lugar de Greimas, Teresa tivesse proposto o percurso gerativo do sentido?

Fora da história virtual, somente pesquisas são capazes de estabelecer a construção da feminilidade. Potencialmente possíveis,

Page 225: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

225

A construção da masculinidade [211-226]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

uma vez que a mulher seja identificada ao papel temático de heroína, há mulheres realizadas ou atualizadas pragmatica e cognitivamente. No entanto, resta verificar se essa identificação entre mulher e heroína se dá do mesmo modo que com os modelos masculinos, uma vez que o próprio conceito de herói é próprio dos patriarcados.

4. Nem fortes, nem ardilosos

Nas relações tensivas propostas para a descrição da masculinidade, há algumas possibilidades que não foram analisadas.

Recapitulando, no homem atualizado, o poder ou o saber modalizam sua competência de modo extensivo. Nos casos descritos, apenas foi examinado o que se dá quando a modalidade extensa cresce e a intensa, em relação inversa, diminui. O que se passa, porém, quando a extensidade diminui e a intensidade cresce?

Como o homem atualizado depende da modalidade extensa para se definir, a tendência é, com o decréscimo da extensidade, que o crescimento da modalidade intensa faça que ela se torne extensa e o homem mude de atualização pragmática para cognitiva, ou vice versa. Atualizado cognitivamente, o doutor Bruce Banner, ao se transformar no incrível Hulk, vê seu saber extenso diminuir e seu poder intenso aumentar em relação inversa; uma vez monstro, o Hulk é atualizado pragmaticamente, seu poder é extenso e o saber intenso em relação inversa; em contra partida, basta o gigante se acalmar para que o poder diminua e o saber aumente, ressurge o doutor Banner atualizado extensivamente pelo saber.

Por fim, no homem realizado, tanto pragmática quanto cognitivamente, só é examinado o crescimento converso entre poder e saber. Cabe perguntar, portanto, como se dá masculinidade na diminuição conversa?

Se o poder diminui com o saber ou vice-versa, não há homem competente, sua competência é sempre virtual; trata-se do trapalhão, do desajeitado, do néscio. Podem até ser belos, como Páris, filho de Príamo, ou feiosos, como as personagens neuróticas criadas por Woody

Page 226: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

226

Antonio Vicente Pietroforte [211-226]

Papéis, Campo Grande, MS, v.16, n.31, Especial ABRALIN 2012

Allen; contudo, ao invés de só necessitarem de saber ou de poder alheios, como os homens atualizados, esses homens sempre precisam de outros, mais homens que eles, para realizar as performances em que sempre fracassam. Sem poder e saber, Páris precisa de Heitor e Woody Allen, do fantasma de Hunfrey Bogart.

ReferênciasFONTANILLE, Jacques; e ZILBERBERG, Claude. Tensão e significação. São Paulo:

Humanitas, 2001.

Page 227: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

Projeto Editorial e Normas para Publicação

Projeto editorial

PAPÉIS: Revista do Programa de Pós-graduação em Estudos de Linguagens tem como objetivo a divulgação de ensaios inéditos, resenhas, entrevistas, elaborados por professores, pesquisadores e estudantes de pós-graduação, voltados para a grande área de Letras, Linguística e Artes, mais especificamente para as linhas de pesquisa do Programa, e que apresentem contribuições relevantes para a ampliação e o aprofundamento do debate teórico, da análise de questões estéticas e culturais.Os trabalhos que atendam à linha editorial da revista são submetidos ao conselho editorial e encaminhados para análise por dois pareceristas ad hoc.A partir de 2006, ano de implantação do Programa de Pós-Graduação - Mestrado em Estudos de Linguagens, a revista Papéis aceita contribuições com a seguinte temática:As edições de número par se dedicam aos estudos da literatura e as de número ímpar, aos estudos linguísticos e de semiótica. Para os estudos literários, aceitam-se artigos sobre:Poéticas modernas e contemporâneas, em abordagens individuais ou inter-relacionadas; comparações entre objetos de linguagens diferentes (artes visuais, artes plásticas, música, por exemplo); poesia ou narrativa.Literatura e memória cultural, compreendendo o estudo de textos literários em suas relações com outros textos, tratando as questões memorialistas como manifestações de uma dada cultura.Para os estudos linguísticos e de semiótica, aceitam-se artigos sobre:Constituição do saber linguístico: estudos relativos às várias dimensões do saber linguístico, tendo a língua como complexo fenômeno de natureza sociocultural e histórica. Produção de sentido no texto/discurso: estudos sobre os procedimentos de organização textual, as variáveis sócio-históricas ou condições de produção que engendram o sentido do discurso em relação ao contexto.

Normas para publicação

O artigo deve ter extensão máxima, preferencialmente, de quinze laudas e vir acompanhado de resumo, contendo de três a cinco palavras-chave, e de abstract e keywords.Formatação: papel A4, margens de 3 cm, fonte Times New Roman, corpo 12, parágrafos justificados, primeira linha com recuo de 0,8 cm, espaçamento 1,5 entre linhas.

Page 228: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)papeis.ufms.br/Revista_Papeis_V16_N31.pdf · verbal – apresentados no evento ABRALIN: em cena Mato Grosso do Sul, promovido

Estrutura: título alinhado à esquerda na primeira linha, nome do autor alinhado à direita na segunda linha, subtítulos das seções alinhados à esquerda, em negrito e sem recuo de parágrafo.

Citações: o sobrenome aparece apenas com a primeira letra em maiúscula - Ex.: Hernandes (2006, p. 30) - ou com todas as letras maiúsculas - Ex: (HERNANDES, 2006, p. 30).Notas: se necessárias, devem constar do rodapé, com corpo 10 e espaçamento simples.

Referências: apresentadas ao final do texto, de acordo com as normas da ABNT. (Ver exemplos abaixo).

Livro:HERNANDES, Nilton. A mídia e seus truques. São Paulo: Contexto, 2006.Ensaio em periódico:NOLASCO, Edgar César. A pobreza é feia e promíscua. Revista Cerrados, Brasília, n. 21, p. 47-59, 2006.Capítulo de livro:SOUZA, Eneida Maria de. Crítica cultural em ritmo latino. In: MARGATO, Izabel & GOMES, Renato Cordeiro (orgs.) Literatura/Política/Cultura. (1994-2004). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005, p. 239-252.Documentos eletrônicos:CAMPOS, Haroldo de. Uma leminskiada barrocodelica. Disponível em: www.planeta.terra.com.br/arte/PopBox/Kamiquase/ensaios.htm. Acesso em 08 mai. 2007.

Os autores deverão encaminhar, separadamente, sua identificação (nome do artigo, nome do autor, instituição de vínculo, cargo, últimas publicações, etc) em texto que não ultrapasse 6 linhas; endereço, telefones para contato e e-mail.

Envio dos originais: os textos devem ser enviados por e-mail, em dois arquivos diferentes; o primeiro contendo identificação (nome, função, instituição e endereço); o segundo, o texto sem identificação de autoria.Para: [email protected]: Revista Papéis

Obs.: 1. O nome dos arquivos a serem enviados à revista devem iniciar sempre com o último nome do autor, seguido de outras informações para identificação do mesmo. Ex: no caso de o nome do autor ser Maria Fernanda Pereira, o nome do primeiro arquivo poderá ser ‘pereira_identificação’ e o do segundo ‘pereira_texto’.

2. No caso de o texto ser acompanhado de imagens essas deverão ser encaminhadas em arquivo separado (nomeado com o último nome do autor, seguido do número da figura, conforme citada no texto), com largura mínima de 10 cm e resolução mínima de 300x300 dpi.