7
Dalcídio Jurandir por Ramiro Costa Júnior

Dalcidio Jurandir

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Revista sobre o escritor paraense Dalcidio Jurandir

Citation preview

Page 1: Dalcidio Jurandir

Dalcídio Jurandirpor Ramiro Costa Júnior

Page 2: Dalcidio Jurandir

Minha paixão pela língua portuguesa, afinal a única que me acalanta, despreza e satiriza, não veio da Gramática, de quem sempre fui inimigo renitente e ínfimo conhecedor. Ela nasceu da Leitura, ainda dos tempos de infância, em uma casa rural no Paraná, onde sem televisão ou outras quinquilharias “modernas”, eu lia partes de jornal velho, que embrulhava compras vindas dos mercadinhos da

cidade. Logo depois minha família mudou-se para a cidade, todavia o protestantismo tenaz e interiorano não permitiu que a tela pequena chegasse a nossa casa. A ausência de tão popular objeto me fez buscar outros caminhos para saciar minha imaginação, sempre voraz de fantasias, dores e amores. Foi através de sua intransigente e sedutora presença que eu descobri no quarto de madeira da Rua Mauá-320 a série vaga-lume, Agatha Christie, Sir Arthur Conan Doyle, os livros de bolso de

Dalcídio Jurandir, obrigado

“Eu não tenho saudade de você porque a minha imaginação me traz a sua presença tão real como você em carne e osso...

Mamãe por exemplo, não morreu, vive comigo, idealmente, transubstanciada em pensamento. Toda ela cabe inteira na minha alma. Eu vivo pelo milagre de minha imaginação.” Dalcídio Jurandir

Page 3: Dalcidio Jurandir

“faroeste ou bang bang” e Jorge Amado e sua Tieta. Só algum tempo depois, nas mesmas paredes de tábua e ripa e de cama de colchão envelhecido, um adolescente descobria Rubião e Cristiano palha, o cortiço do senhor Aluísio, a normalista, o corvo e a casa do senhor Edgar Allan Poe, as velas de Dario e o vampiro que em Curitiba deixaram Dalton atento, a secura de Fabiano e a casa dos mortos onde Dostoievski e Raskólnikov foram jogar suas idéias e vícios. Daquelas noites em diante, nunca mais consegui escapar do encanto e das dores da palavra escrita.

O tempo, a coragem, o medo e a fuga me levaram à Amazônia. Numa noite de dezembro de 1999 eu cheguei, depois de uma odisséia pelas rodoviárias e estradas do Brasil. Quando desci do ônibus, eram 03h15min da madrugada na rodoviária de Belém, e quem chegava era um sulista arrogante, amargo, pessimista, pretensioso e absolutamente determinado que precisou que um funcionário do Hospital Adventista, que voltava das férias em Goiânia, encontrasse um hotel para o soberbo pé vermelho na Cipriano Santos.

Muitas noites e dias se passaram, desde aquela madrugada em São Braz, mais daquela tarde de 2006 jamais me esquecerei. Eu e meu amigo Marques estávamos indo ao sepultamento da mãe de um outro ente fraterno, quando começamos a falar de literatura. No meio da conversa o leitor generoso, afetuoso e amigo me indicou um autor chamado Dalcídio Jurandir. Respondi, que ao mudar de residência, meu sogro tinha deixado alguns livros para mim, entre eles talvez estivesse o que ele me indicava, "Chove nos Campos de Cachoeira”. Ao chegar em casa pude confirmar, pois no guarda-roupa de meu quarto encontrei o livro. A capa era vermelha, o canto posterior à esquerda indicava 2ª edição, ano de 1976, editora Cátedra e bom estado de conservação. Naquele mesmo dia comecei a ler, já não era mais o

Page 4: Dalcidio Jurandir

Tâmisa, a Rua do Ouvidor, a Rússia, Curitiba ou Baltimore, eram os campos de Cachoeira do Arari. Naquela madrugada viajei pelos Campos Queimados, e como nos ensinou Tolstoi, ao descrever sua aldeia ou seria ilha? Dalcídio estava descrevendo o mundo.

Naquela noite eu descobri um autor absolutamente genial, de técnica apurada e surpreendente, além de um grande arquiteto, construtor e artesão de tipos absolutamente humanos, por isso mesmo, trágicos, sedentos e grandiosos. Como tenho a imensa sorte de conhecer algumas pessoas de grande generosidade, como o poeta e médico Ary Guilliod, pude ler outros livros do autor. E foi mesmo muita sorte, pois conhecer a obra desse grande escritor é um elixir e uma experiência humana absolutamente enriquecedora e essencial para enfrentarmos as dores, a mediocridade, as fragilidades que em nós habitam e os inexoráveis percalços do cotidiano.

Com Dalcídio eu conheci uma nova galeria de personagens, tão rica e profunda como a criada por Dostoievski. Os tipos dalcidianos estão imortalizados em minha mente, com eles eu passeio, escuto e troco palavras. Suas buscas, dores, medos e feridas me fascinam, assim como o ancião Zósima encantava Aliócha Karamazov.

O fio condutor dos romances de Dalcídio Jurandir é o personagem Alfredo, dos seus onze livros de prosa ele só não aparece em Marajó(Marinatambalo) e Linha do Parque. E é em torno dele que o autor vai criar fantásticos personagens, seres providos de todos os encantos, fraquezas, avarezas, força e loucura que permeiam a natureza humana. O primeiro que eu

Page 5: Dalcidio Jurandir

destaco, presente em Chove nos campos de Cachoeira é o meio-irmão de Alfredo, Eutanázio. Atormentado, cansado e angustiado sempre está em busca de Irene, na casa pobre do velho Cristóvão. Mas Irene nunca será dele, ela é uma força bruta da natureza, uma indomável Marajoara. Nesse livro inúmeros outros personagens se destacam, alguns reaparecem em outras obras do autor, como por exemplo, o Dr. Campos, que com sua soberba intelectual reacionária e atitudes hediondas, indigna o povo de Cachoeira, que por isso lhe tiram suas orelhas.

Ainda nesse primeiro romance, podemos destacar dona Amélia, mãe de Alfredo, uma negra dotada de uma infinidade de virtudes, que a vida teima em testar. Há também o Major Alberto, eterno e correto secretário, sempre a folhear seus catálogos. Dionízio e Felícia, bêbado e prostituta, párias de um mundo sufocante e Lucíola, que amava Alfredo e era irmã siamesa da solidão. E como esquecer dona Duduca, proprietária de uma língua do tamanho da ilha do Marajó.

Nas demais obras novos personagens são magistralmente criados, como a menina Andreza, Edmundo e o fantasmagórico latifúndio Marinatambalo, o amarelinho Antônio, a gorda Emília, o advogadinho Porco Prenha, Roberta, Mãe Ciana, Luciana, seu Seruaia, o coronel Cássio, o Espantalho, Belerofonte, a parteira

do Chão dos Lobos, seu Dó e o mestre Parijó, entre tantos outros.Para o leitor, carente da obra desse autor, apenas nomes, mas para quem os conhece, seres dotados de inexprimível carga humana, ou parafraseando Nietsche, humanos, demasiadamente humanos.

Quanto ao personagem Alfredo, suas virtudes, buscas e agruras, em muito lembram seu criador. Assim como ele, Dalcídio Jurandir veio de Cachoeira do Arari, com muitas dificudades,

Page 6: Dalcidio Jurandir

estudar em Belém, ambos tratados na capital como agregados, caboclos ou mulatos. Adversidades financeiras é um traço em comum entre eles, por exemplo, em um determinado momento de sua vida, Alfredo, cada vez mais desiludido com os estudos e com o amor, parte para o Rio de Janeiro. A viagem e a estadia na cidade maravilhosa revelam-se um verdadeiro calvário. Mesmas dificuldades que Dalcídio enfrentou em sua primeira viagem ao Rio de Janeiro, quando teve que lavar pratos no navio, como forma de ajudar no pagamento da passagem de volta. Mesmo depois, quando passou a morar definitivamente no Rio, a falta de dinheiro era sua eterna companheira. Outro traço marcante do menino do carocinho de tucumã, nitidamente uma característica do escritor-ser humano Dalcídio é a grande generosidade com que via e tratava as pessoas do povo.Os diálogos e atitudes de Alfredo com alguns personagens, como Mãe Ciana ou a prostituta Sebá Manjerona e a forma como alguns personagens são retratados, revelam o profundo humanismo que habitava o tímido, íntegro, discreto e genial autor do ciclo do extremo norte.

Exímio prosador, do porte de um Machado Assis ou Graciliano Ramos, dono de uma maneira de escrever genuína e esteticamente rigorosa, a leitura da obra dalcidiana nos leva a um fascinante painel humano, que transforma Cachoeira, Marinatambalo, as ilhas, as Ribanceiras, enfim, a Amazônia , um “imenso recanto”, em exuberante universo. De sua imaginação prodigiosa,

transubstanciada em escrita, sai o colégio Barão do Rio Branco, onde Alfredo sentado em uma fria carteira não pensa no latim, mas no chalé, nos azulejos dos casarões, em Mariinha ou no pessoal da Areinha. Dela também sai a São Jerônimo com a

Page 7: Dalcidio Jurandir

Quintino, onde Maga vende tacacá, a solidão da Passagem dos Inocentes, as águas e campos do Marajó, a retinta e nobre Dona Amélia na dispensa e as cicatrizes, tragédias e sonhos dos habitantes do Chão dos Lobos.

Em 2009 comemoram-se os cem anos de nascimento de Dalcídio Jurandir, além das homenagens de praxe, que com certeza ocorrerão, espera-se uma nova publicação de sua obra. Espero que isso ocorra, para que novos leitores possam ter acesso aos seus livros. Pois só assim, outras pessoas apaixonadas pela Leitura e pela Literatura, terão a oportunidade de conhecer o grande escritor Marajoara, Amazônico e Universal nascido na Vila de Ponta de Pedras.