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134 13 2008 * Professor na Universidade Jean Monnet de Saint-Étienne/França, pesqui- sador no Modys/CNRS, integrante da associação anarquista La Gryffe de Lyon, autor de Petit lexique philosophique de l’anarchisme. De Proudhon à Deleuze. Paris, LGF, 2001; Trois essais de philosophie anarchiste. Islam, histoire, monadologie. Paris, Léo Scheer, 2004. nietzsche e o anarquismo 1 daniel colson* A obra de Nietzsche, por sua coerência consigo pró- pria, com suas figuras provocadoras e suas explosões contraditórias, autoriza um grande número de leituras e interpretações: por exemplo, uma leitura de extrema direita, a mais grosseira e comum; mas também, mui- to cedo e de modo aparentemente surpreendente, uma leitura e uma interpretação operária, anarquista e re- volucionária. Durante muito tempo, o Nietzsche dos anarquistas foi interpretado ao lado de Stirner se- gundo o modelo do individualismo contemporâneo. Como se o eu anarquista e stirneriano, vivido e pensado a partir de uma “singularidade irredutível, sempre dife- rente dos outros e sempre remetido a si próprio em seu comércio (...) com os outros” 2 pudesse, mesmo que por um instante, ser confundido com os indivíduos unifor- mes e sem qualidades da modernidade, esses indivíduos verve, 13: 134-167, 2008

Daniel Colson Nietzsche e o Anarquismo

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Anarquismo

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    * Professor na Universidade Jean Monnet de Saint-tienne/Frana, pesqui-sador no Modys/CNRS, integrante da associao anarquista La Gryffe deLyon, autor de Petit lexique philosophique de lanarchisme. De Proudhon Deleuze.Paris, LGF, 2001; Trois essais de philosophie anarchiste. Islam, histoire, monadologie.Paris, Lo Scheer, 2004.

    nietzsche e o anarquismo1

    daniel colson*

    A obra de Nietzsche, por sua coerncia consigo pr-pria, com suas figuras provocadoras e suas explosescontraditrias, autoriza um grande nmero de leiturase interpretaes: por exemplo, uma leitura de extremadireita, a mais grosseira e comum; mas tambm, mui-to cedo e de modo aparentemente surpreendente, umaleitura e uma interpretao operria, anarquista e re-volucionria. Durante muito tempo, o Nietzsche dosanarquistas foi interpretado ao lado de Stirner se-gundo o modelo do individualismo contemporneo. Comose o eu anarquista e stirneriano, vivido e pensado apartir de uma singularidade irredutvel, sempre dife-rente dos outros e sempre remetido a si prprio em seucomrcio (...) com os outros2 pudesse, mesmo que porum instante, ser confundido com os indivduos unifor-mes e sem qualidades da modernidade, esses indivduos

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    dos estdios, dos dias de eleio, das grandes reas, dasviagens s Seychelles e dos loteamentos dos subrbios,essas bolas de bilhar patticas s quais se refere GillesChtelet, dizendo que cada esforo para se diferenciarprovoca um maior soterramento numa grande equiva-lncia.3 verdade que essa interpretao estreitamenteindividualista do Nietzsche dos libertrios poderia, pelomenos para a Frana no incio do sculo XX, valer-se deum certo nmero de figuras aparentemente sem gran-de relao com a dimenso coletiva e social do anar-quismo e da histria operria: Libertad e seu jornalLAnarchie, por exemplo, com sua violenta denncia dosindicalismo, das greves e dos movimentos operrios,mas tambm o filsofo Georges Palante, ou mais ampla-mente ainda toda uma vertente artstica, bomia e dndique, entretanto, seria equivocado reduzir de modo exces-sivamente fcil s manipulaes e aos engodos irrisrios,mas eficazes, do individualismo moderno.4 Na falta de umaleitura atenta dos textos ou da compreenso da naturezadessa estranha mistura esttica e poltica da Paris dofim do sculo XIX, a interpretao malvola do anarquis-mo nietzscheano poderia, ao menos, espantar-se com omodo pelo qual os escritos de Nietzsche sob sua dupladimenso amoral e brbara tambm atravessavam oconjunto das prticas e dos movimentos libertrios dapoca, fazendo-lhes eco e sendo por eles retomado. Elapoderia ter se espantado ao ver Louise Michel associar afigura do super-homem s idias de justia social e derevoluo,5 o socialista germanista Charles Andler per-ceber na classe operria uma classe de mestres6, mastambm Fernand Pelloutier, o secretrio das Bolsas dotrabalho, conceber-se ao mesmo tempo como revolucio-nrio, partidrio da supresso da propriedade individu-al, e como amante apaixonado da cultura de si mes-mo7, ou ainda, como, um pouco por todo o mundo, umcerto nmero de militantes operrios, os mais engaja-

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    dos na ao coletiva, reconheceram-se to cedo nos es-critos de Nietzsche e, com a fora da evidncia, exorta-ram os revolucionrios a promover a apario de super-homens, de homens-deuses, capazes de tirar o povode sua letargia, de libertar as potncias revolucionri-as das quais o portador.8

    Mas esse encontro efetivamente surpreendente en-tre revolta operria e elitismo nietzscheano, desejo dejustia e recusa do humanismo, dio da autoridade ehierarquizao dos seres, movimentos coletivos e des-prezo pela multido e pela massa, era sem dvida im-provvel demais para sua ocorrncia ser evidente. Como,de fato, imaginar, por um s momento, que anarquistase sindicalistas revolucionrios possam se reconhecerem textos que no hesitam em denunciar violentamentereivindicaes sociais e greves operrias, socialismo eanarquismo e, por meio deles, qualquer movimento co-letivo ou individual que pretenda lutar pela igualdade ea justia social? Como supor que anarquistas e sindica-listas possam fazer suas formulaes onde, contra asinterpretaes morais e populistas mais aceitas,Nietzsche toma sempre o partido dos fortes e dos mes-tres contra os fracos e os escravos que, a seu ver econtra qualquer evidncia, teriam (em qualquer poca)a supremacia sobre os mestres?9 Como, face ao car-ter ofuscante de suas imprecaes polticas, no redu-zir a um estreito individualismo a solido de Nietzschee sua viso aristocrtica do mundo?

    Sem dvida, apenas o anarquismo de ento pode-ria, ele prprio, dizer porque tantos operrios e sindi-calistas reconheceram-se to cedo, e contra qualquerverossimilhana, nos escritos e na pessoa de Nietzsche,onde, a seus olhos, ele repetiria, de outra maneira e comnova intensidade, a idia prtica e terica inventada cin-qenta anos mais cedo por Proudhon e Bakunin, e de

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    que maneira eles todos, apesar de tantas diferenas eincompatibilidades aparentes, participariam de um mes-mo movimento de desconstruo das distines moder-nas entre indivduo e coletivo, teoria e prtica, domi-nantes e dominados, etc. em proveito de uma nova ecomum percepo daquilo que . No foi o caso, por trsrazes principais:

    1) A primeira, mais precoce, tem a ver com os escri-tos de Nietzsche e com a histria de sua primeira re-cepo. Conhecidos muito cedo, eles foram objeto denumerosos comentrios, em ligao com a redescober-ta de Stirner.10 Mas essa acolhida foi essencialmentede ordem literria, esttica e moral. Sua forma provo-cativa e potica se prestava mal, num primeiro momen-to, a uma leitura poltica e filosfica. E foi apenas demodo relativamente tardio, a partir do entre-guerras no momento do desmoronamento dos movimentos ope-rrios libertrios, e com os trabalhos de Jaspers, Lwith,Heidegger na Alemanha, por exemplo, ou a interpreta-o de Bataille na Frana que uma leitura filosficadeveria aparecer, uma leitura capaz de produzir umainterpretao mais ampla e, mais particularmente, deultrapassar uma abordagem estrita e imediatamenteindividualista.

    2) A segunda refere-se histria do prprio anarquis-mo, maneira pela qual ele expressou seu projeto. Semdvida, retrospectivamente, e como mostra ClaudeHarmel, os principais tericos, precursores ou fundado-res do anarquismo Stirner, Proudhon, Dejacque,Coeurderoy, Bakunin so infinitamente mais prxi-mos de Nietzsche que de qualquer outro filsofo de seutempo.11 Mas eles necessariamente ignoravam tudo deuma obra que iria ainda nascer. Ao contrrio, os inte-lectuais anarquistas ulteriores Kropotkin, Reclus ouGuillaume, por exemplo tiveram a possibilidade de

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    ler Nietzsche, e uma anlise mais fina de seus escritose de seus centros de interesse no deixaria, alis, demostrar a forma pela qual, implicitamente, eles lhe fi-zeram eco e se inscrevem, tambm eles, num percursoe numa percepo comuns do homem, da natureza e domundo. Mas gegrafos, etnlogos ou pedagogos, eles notinham nem a preocupao, nem os meios de percebera dimenso poltica e terica de um pensamento que,por sua novidade e a originalidade de sua forma, igual-mente escapava, no mesmo momento, de uma filosofiaprofissional que teria sido a mais capaz, normalmente,de explicitar seu sentido. Quanto ao anarquismo mili-tante, autodidata e ecltico que se seguiu, marcado comdemasiada freqncia (na Frana) pelas pobrezas redu-toras da escola republicana de Jules Ferry essa esco-la na qual, segundo a frmula do sindicalista PierreMonatte ensinando o povo a ler, tinha desaprendido apensar durante muito tempo, inclusive em sua di-menso mais individualista, ele se restringiu a umaviso estritamente racionalista e cientificista, to dis-tante de Nietzsche quanto o era de Stirner, de Bakunine de Proudhon, ou claro, dos mltiplos movimentosde revolta e de emancipao que se desenvolveram napoca um pouco por todo mundo. Nesses crculos res-tritos, o anarquismo limitou-se pouco a pouco, e du-rante muito tempo, a um ideal utpico e humanitrio,uma moral poltica seca e rida, um projeto doutrin-rio, abstrato e intemporal, quer se tratasse somentede aplic-lo a si mesmo ou aos outros, ao modo dasantigas e persistentes prescries morais, religiosas ecvicas, privilegiando sempre a explicao, a educao,a adeso, a conformidade ideolgica e comportamental,e, mais tarde, a organizao: segundo o modelo das sei-tas e dos partidos religiosos ou marxistas.12

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    3) A essas duas primeiras razes da dificuldade doanarquismo perceber suas afinidades de fato com a obrade Nietzsche, de dizer aquilo que s ele poderia dizer,podemos acrescentar uma terceira, mais tardia, que serefere, desta vez, aos massacres de massa do primeiroconflito mundial, auto-destruio fsica e tica queeles produziram e, durante todo o perodo do entre-guer-ras, transformao em mquinas de guerra (verme-lha e negra) das esperanas emancipadoras. Incapazesde explicitar, terica e politicamente, o modo pelo qual ti-nham podido se reconhecer na violncia nietzscheana,no super-homem, nos aristocratas, no eterno retorno, navontade de potncia e, atravs deles, no jogo infinito eemancipador das composies de foras e vontades, osanarquistas encontraram-se, alm disso, desprovidosdas figuras literrias e estticas que, em sua novidade,tinham inicialmente permitido esse encontro e essereconhecimento. Transformados em slogans, em posese pompas teatrais, rebaixados s encenaes e aos trom-petes das peras de Wagner, relacionados ao povo indife-renciado das trincheiras, depois s multides vociferan-tes e impotentes dos meetings e das manifestaes demassa, os conceitos e os personagens de Nietzsche nopassavam de despojos mentirosos, de bandeiras de umalgica de dominao e de auto-destruio que fascis-ta ou nacional-socialista pretendia claramente, con-tra o cinismo pequeno-burgus e no menos assassinodo comunismo russo, colocar-se definitivamente no lu-gar da violncia emancipadora dos movimentos oper-rios anteriores, faz-los esquecer como e porque estaviolncia emancipadora tinha um dia sido possvel.

    Foi somente muito mais tarde, com a renovao dopensamento libertrio do fim do sculo XX, que final-mente tornou-se possvel liberar Nietzsche dos desviose dos travestimentos de que tinha sido objeto, mas, so-

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    bretudo, compreender o alcance filosfico e emancipa-dor de seus escritos, e assim apreender por que, intui-tivamente, eles puderam to cedo ser compreendidospor tantos anarquistas e operrios revolucionrios. Comautores como Gilles Deleuze, Michel Foucault ou SarahKofman, por exemplo, super-homem, vontade de potn-cia ou eterno retorno, novamente podiam estender suafora e repetir sua inspirao primeira, exprimir suacarga explosiva e emancipadora. Aps os inventores doanarquismo e nos termos mais prximos, finalmentese tornara possvel compreender como a dimenso indi-vidualista do pensamento de Nietzsche s adquiria senti-do numa abordagem radicalmente plural da realidade,numa apreenso das coisas onde, como mostrou Proudhon,qualquer pessoa um grupo, um composto de foras,onde todo grupo, todo coletivo, por mais vasto ou efme-ro que seja, tambm uma pessoa, um eu, uma sub-jetividade, uma vontade. Ali onde, para Nietzsche destavez e como explica Michel Haar, toda fora, toda ener-gia, qualquer que ela seja, vontade de potncia, nomundo orgnico (pulses, instintos, necessidades), nomundo psquico e moral (desejos, motivaes, idias), eno prprio mundo inorgnico, na medida em que a vida apenas um caso particular da vontade de potncia.13Com a renovao do pensamento libertrio, a afinidadeentre Nietzsche e os movimentos operrios libertriosdeixava de depender unicamente de uma suposta origi-nalidade de alguns militantes autodidatas e revoltados,ou do equvoco de frmulas mal compreendidas. No eramais proibido perceber como, para alm da fugacidadede seu encontro, essa transtornante afinidade tinha aver com a natureza histrica de um pensamento e demovimentos emancipadores que as situaes e os acon-tecimentos do fim do sculo XX permitiam enfim perce-ber, repetir, e portanto compreender.

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    O pensamento de Nietzsche e o movimento operriolibertrio

    O anarco-sindicalismo e o sindicalismo revolucionrioteorizaram muito pouco suas prticas, tendo evocado, afortiori, referncias filosficas das quais seus militantesestavam muito distantes. Mas, apesar da indiferena oudas incompreenses que os acompanharam por tanto tem-po, eles deixaram traos suficientes nos arquivos oficiais,ou sob a forma de um grande nmero de falas e textosfragmentados e circunstanciais (cartazes, artigos, brochu-ras, proclamaes, discursos de manifestaes, moesde congressos), para tornar perceptvel o que no eravisto, para entrar novamente em ressonncia com umNietzsche redescoberto por outra via, para fazer eco,quase um sculo depois, ao sentido que os acontecimen-tos presentes davam a seu encontro.

    preciso proteger os fortes contra os fracos, dizNietzsche. sem dvida com essa frmula paradoxal, eem razo mesmo do escndalo que ela constitui para ohumanismo e a viso social do mundo, mas tambm esobretudo em razo do paradoxo de sua reverso (os for-tes so vulnerveis, eles tem que ser protegidos!), quepodemos melhor apreender onde se d a afinidade en-tre Nietzsche e os movimentos operrios libertrios,exatamente ali onde a distncia parece maior, o divr-cio mais evidente. Hoje percebemos melhor, e no semrecorrentes polmicas, como, para Nietzsche, mestrese escravos constituem ao mesmo tempo tipos e modos deser mais ou menos fugidios, aplicveis a um grande n-mero de situaes e exigindo a cada instante uma grandefineza de avaliao e interpretao. Para Nietzsche, osmestres e escravos raramente esto onde pensaramosencontr-los; e seu ser pouco tem a ver com os signos,lugares, papis e representaes que habitualmente pre-

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    tendem fix-los e travest-los. Not-los exige-se umapercepo, um julgamento e um senso prtico aguadose sutis, sempre alertas, capazes de apreender a reali-dade incessantemente mutante das relaes das alian-as e dos confrontos, dos equilbrios e das composiesde foras, das revoltas e das hierarquias que os produ-zem e transformam, em tal ou tal situao e a respeitode tal ou tal problema. No entanto, verdade que, paraNietzsche, o povo, a multido e as massas, que ele as-socia democracia e ao igualitarismo das urnas, souma expresso particularmente flagrante da figura ne-gativa e moderna do escravo, da fora do nmero, reati-va e invejosa, e no mais das vezes submetida ao dio eao ressentimento. Mas, como o conhecimento mesmomais superficial dos movimentos libertrios d a perce-ber, esse julgamento poltico e polmico no tem nadaque possa chocar os anarquistas, mas ecoa diretamen-te sua prpria viso de mundo e seu modo de conceber ecolocar em prtica as relaes humanas que eles dese-jam fazer surgir. Esse encontro e essa comunidade depontos de vista, que agora convm estabelecer, poderi-am ser formulados da seguinte forma: contrariamentes aparncias, se as massas da modernidade, indiferen-tes e passivas, submetidas aos polticos e freqentemen-te fascinadas pelos chefes carismticos (de Mussolini aMao Tse-Tung), esto indiscutivelmente ligadas ao queNietzsche chama os escravos, os movimentos oper-rios ditos anarco-sindicalistas, sindicalistas revolucio-nrios ou de ao direta, como alis aquilo que asociologia e a histria mostram dos valores e do gnerode vida das classes ou dos meios profissionais que os vi-ram nascer, ligam-se tambm indiscutivelmente ao tipodos mestres e dos aristocratas, tais como Nietzscheos concebe. Para apoiar essa tese, poderamos multipli-car os pontos de convergncia: do lado do proudhonismoe de Proudhon, claro, na maneira pela qual este lti-

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    mo pensa a fora e as fraquezas do povo;14 mas tam-bm atravs da abordagem histrica e sociolgica de umcerto nmero de setores profissionais operrios dos s-culos XIX e XX, dos valores que eles desenvolveram desua relao com o mundo e com os outros; ou ainda, apropsito dos movimentos operrios ditos anarco-sindi-calistas, das minorias ativas, to desacreditadas, damistura de individualismo e de ao coletiva que as ca-racteriza, passando por sua concepo da mesma formamal compreendida da greve como afirmao da fora eda vontade proletrias. Sem pretender desenvolver umaanlise exaustiva, podemos sublinhar aqui trs gran-des pontos de convergncia entre o pensamento deNietzsche e os movimentos operrios libertrios.

    O separatismo e a luta de classes

    Lembremos rapidamente um ponto importante dasposies nietzscheanas. Quando Nietzsche distingue osmestres e os escravos, essa tambm uma maneira deopor-se a Hegel, a sua forma de unir dialeticamente osdois termos. Para Nietzsche, o antagonismo entre mes-tres e escravos apenas o efeito secundrio de umadiferenciao primeira, ou (seno) um simples ponto devista de escravo. Suas relaes no tm nada de dial-tico, onde o princpio ativo estaria do lado da negao,daquele que nega para se afirmar. Como uma afirma-o poderia nascer de uma negao, do nada? ParaNietzsche, este seria claramente um pensamento deescravo. Para ele, convm, ao contrrio, adotar o pon-to de vista dos mestres (no sentido que ele d ao termo),apreendendo que aquilo que os distingue dos escravos justamente uma separao, uma diferenciao. O an-tagonismo entre os mestres e os escravos supe inici-almente uma relao de diferenciao dos mestres, no

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    como uma luta que une e liga, mas como uma separa-o que desliga e distingue. Mas justamente aqui, edesse ponto de vista, que podemos compreender porqueos movimentos operrios libertrios sempre foram toradicalmente estrangeiros ao marxismo (uma variantedo hegelianismo) e de sua concepo da luta de classes,na medida mesma em que eles obedeciam ao movimen-to de diferenciao dos fortes e dos mestres.

    Com efeito, na concepo anarco-sindicalista ou sin-dicalista revolucionria, e contrariamente ao que fre-qentemente se afirma, a classe operria, consideradado ponto de vista de sua emancipao, no inicial eprincipalmente definida pela luta de classes, pela ex-plorao, a opresso e a misria psquica e moral queestas necessariamente provocam; com todo seu cortejorepugnante de humanismo, de miserabilidade e de fi-lantropia interessada. Sua potncia emancipadora de-pende essencialmente de sua capacidade, histrica elocalmente produzida, de se constituir como fora aut-noma, independente e afirmativa, fundada sobre o or-gulho e a dignidade, e dispondo de todos os servios, detodos os valores, de todas as razes e de todas as insti-tuies necessrias a sua independncia, que no de-pendem seno dela e daquilo que ela assim se torna, desua capacidade de fazer nascer um outro mundo. Estaconcepo no inicialmente de ordem terica. Ela aexpresso de um grande nmero de atitudes e de prti-cas efetivas, no sentido da convergncia, do imediato eda evidncia daquilo que as produz, como mostra, porexemplo, para a Frana, o estudo de qualquer Bolsa dotrabalho minimamente conseqente.15 Para o anarco-sindicalismo e o sindicalismo revolucionrio, a classeoperria deve em primeiro lugar separar-se de modo omais radical, no ter mais nada em comum com o res-to da sociedade, inclusive e sobretudo com aqueles que

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    socialistas, humanitrios e filantropos incli-nam-se sobre sua sorte e pretendem defender e repre-sentar seus interesses. No discurso prprio a este com-ponente libertrio do movimento operrio, mas queultrapassa amplamente fronteiras ideolgicas muitasvezes incertas, esse movimento de diferenciao leva onome completamente lmpido, de um ponto de vista ni-etzscheano, de separatismo operrio. O movimentooperrio deve se separar do resto da sociedade. O queProudhon explica da seguinte forma: a separao queeu recomendo a condio mesma da vida. Distinguir-se, definir-se, ser: assim como se confundir e absor-ver-se, perder-se. Fazer uma ciso, uma ciso legti-ma, o nico meio que temos de afirmar nosso direito(...). Que a classe operria, caso ela se tome a srio,caso ela busque algo diverso de uma fantasia, conside-re como definitivamente dito: preciso antes de tudoque ela no seja mais tutelada, e (...) que a partir deento aja exclusivamente por ela mesma e para elamesma.16

    Nessa maneira de ver, a luta de classes no estevidentemente ausente, mas ela no tem nada maisde dialtico, numa relao em que a sociedade mori-bunda sempre ameaa arrastar os movimentos numabrao mortal e anestesiante, obrigando-os a aceitar asregras comuns de combate, a adotar as formas de lutase negociaes pertencentes ordem que pretendemabolir. Para os sindicalistas revolucionrios e os anar-co-sindicalistas, a greve, expresso privilegiada da lutade classes, de incio um ato fundador intempestivo eincessantemente repetido, um conflito sempre singu-lar e circunstancial, um rasgo no tempo, uma rupturados laos e entraves anteriores, que por meio do grandenmero de conflitos parciais e seu prprio movimento,contribui de modo decisivo para transformar o ser do

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    operrio.17 Ela o modo pelo qual os operrios educam-se, curam-se e preparam-se para movimentos cadavez mais gerais, at a exploso final da greve geral.18Nessa repetio incessante da greve, as organizaesproletrias no deixam de se propor objetivos imedia-tos, de fazer acordos. Mas esses objetivos so sempresecundrios e esses acordos sempre provisrios. Emrelao ao que os constitui como foras revolucionrias,os movimentos operrios no visam qualquer compromissorazovel, porque definido pelo contexto em que foi fir-mado, nenhuma satisfao que viria da ordem eco-nmica e social da qual obtida, que dependeria daquiloque ele prprio pode. Mesmo e sobretudo quando assinamconvenes, os operrios no esto em situao de de-manda. Eles se contentam em obter uma parte de seudireito provisoriamente, esperando obter tudo, livre-mente, sem outros respondentes alm deles prpri-os.19 Se os operrios no pedem nada, porque eles nosentem qualquer inveja do velho mundo, que eles des-prezam e ignoram. Sua revolta uma pura afirmaodas foras e do movimento que os constituem, e so-mente de modo derivado que so obrigados a combateras foras reativas e reacionrias que se opem a essaafirmao. Eles no pedem nada a ningum, mas tudo aeles mesmos, a sua capacidade de expressar e desen-volver a potncia de que so portadores. Sua relao como mundo exterior uma relao tripla, de seleo, depretenso (no sentido primeiro e fsico do termo) e derecomposio daquilo que :

    1) Uma seleo, na ordem existente, a partir daquiloque a constitui, dos meios necessrios de afirmaodessa nova potncia;

    2) A pretenso de ocupar um dia a totalidade do espa-o social, por meio de uma transformao radical da or-

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    dem burguesa como valores, moral, sistema econmicoe poltico;

    3) Uma nova recomposio da totalidade daquilo que .

    Esse triplo movimento de seleo, de pretenso e derecomposio, formulado por Victor Griffuelhes, secre-trio da CGT francesa de 1901 a 1910, da seguinte for-ma: a classe operria, no devendo nada esperar deseus dirigentes e seus mestres, negando seu direito agovernar, buscando o fim de seu reino e de sua domina-o, organiza-se, agrupa-se, proporciona-se associaes,fixa as condies de seu desenvolvimento e, por inter-mdio delas, estuda, reflete, trabalha para preparar eestabelecer a soma das garantias e direitos a seremconquistados, depois se apropria dos meios para garan-tir essas conquistas emprestando-os do meio social, uti-lizando os modos de atividade que esse meio social trazem si, rejeitando tudo aquilo que tende a fazer do traba-lhador um assujeitado e um governado, permanecendosempre o mestre de seus atos e de suas aes e o rbi-tro de seus destinos.20

    De forma diversa, encontramos assim, nessa vonta-de de secesso e de recomposio daquilo que o per-curso de Nietzsche, perceptvel desde Zaratustra e maistarde na sua vontade de transvalorar os valores (no nosentido de transform-los em seu contrrio, mas no sen-tido de uma destruio das tbuas da lei), de cortar ahistria em duas e de instaurar um mundo inteiramentenovo. Como em Nietzsche, o projeto libertrio, afirmativoe diferencial, inscreve-se num trajeto de tipo messinico,que encontrado um pouco em toda parte nas socieda-des em via de industrializao, do anarquismo espanholao messianismo libertrio do pensamento judaico daEuropa central descrito por Michael Lwy.21 O tema dagreve geral, ou de sua expresso popular da Grande

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    Noite, ilustra bem essa concepo radical da luta revo-lucionria do movimento operrio libertrio. Com a grevegeral que d sentido repetio das greves parciais,a classe operria pra tudo, cruzando os braos. Comoas trombetas de Jeric, esse seu modo prprio de der-rubar as muralhas da ordem existente, mostrando a for-a imensa dos trabalhadores. Nessa concepo da Revo-luo, a classe operria no tem efetivamente nada parapedir, nada a dizer a qualquer outro, pois ela pretendeser tudo e, sobretudo, algo inteiramente novo que nin-gum pode lhe dar, pois ela que o traz.22

    O federalismo

    Outro ponto de encontro entre Nietzsche e o movimentooperrio libertrio: o federalismo. Afirmativo, o procedi-mento de Nietzsche necessariamente mltiplo poisfaz parte essencial da afirmao ser ela prpria mlti-pla, pluralista, e da negao ser una, ou densamentemonista.23 A vontade de potncia nietzscheana nodesigna uma fora unificada, nem um princpio centralde onde tudo emanaria.24 Como mostra Michel Haar, elaremete a uma pluralidade latente de pulses, ou a com-plexos de foras se unindo ou se rejeitando, associando-se ou dissociando-se.25 Determinando-se, a vontade depotncia tende a unir e a hierarquizar as mltiplas for-as do caos. Ela no as destri, no as reduz, no resol-ve suas diferenas ou seus antagonismos maneira dadialtica hegeliana. Afirmativa e forte, a vontade depotncia assumir a variedade, a diferena e a plurali-dade.26 Essa concepo da vontade de potncia parti-cularmente esclarecedora para se compreender as for-mas com as quais se revestiram os movimentosoperrios de tipo anarco-sindicalista ou sindicalista re-volucionrio.

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    De fato, significaria um grande contra-senso interpre-tar no registro anacrnico de uma concepo totalitria apretenso do sindicalismo revolucionrio de bastar a simesmo, de no esperar de ningum o cuidado de ga-rantir o advento de um mundo novo do qual se conside-ra o nico portador. Essa pretenso estreitamente li-gada ao federalismo social e operrio. Se o sindicalismopretende ser tudo, por ser mltiplo, infinitamentemltiplo e diferente em seus componentes. O outro,ele o carrega exatamente em si prprio, e a diferenapor mais radical que seja, ele a experimenta no prpriomovimento que o conduz a pretender ocupar toda a re-alidade social. nesse sentido, entre outros, que osindicalismo revolucionrio e o anarco-sindicalismoso proudhonianos. Proudhon no apenas o terico so-cialista que mais insiste sobre a necessidade, para osdiferentes componentes da classe operria, de autono-mizar-se radicalmente do resto da sociedade (separa-tismo). Ele sem dvida o nico a pensar a pluralidadedas foras que compem a classe operria, a conceb-lacomo uma realidade mltipla. Contrariamente a Marx,Proudhon fala o mais das vezes das classes operriase no da classe operria, ou do proletariado. Enquan-to para Marx a classe operria somente o momentoabstrato, porque instrumentalizado, de uma razo ope-rante na histria, para Proudhon, as foras operriasso sempre foras concretas e vivas, diferentes e emdevir, que podem sempre desaparecer e ressurgir soboutras formas, mudar de natureza, fazer-se absorver,dominar outras foras ou serem dominadas por elas,num incessante movimento de transformao, ondenada definitivo. Na concepo do sindicalismo revolu-cionrio e do anarco-sindicalismo, a classe operriaorganizada um efeito de composio, uma resultan-te, dizia Proudhon,27 uma composio instvel de for-as mltiplas, diversas e autnomas, at mesmo con-

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    traditrias, que se reconhecem como necessrias umass outras para fazer surgir um novo mundo.

    Freqentemente compreendeu-se mal porque o sin-dicalismo revolucionrio fazia tanta questo, nos votos,que cada sindicato tivesse a mesma representao, in-dependentemente do nmero de seus associados. A t-tica procedimental e subalterna, no seio dos congres-sos, sem dvida no era ausente dessa exigncia. Masessa ltima remetia sobretudo a uma concepo revo-lucionria mais fundamental, uma concepo qualita-tiva e no quantitativa, diferencial e no abstrata ougeral da realidade. Extremamente diversos, dependendodas regies e pases, o desenvolvimento e funcionamen-to dos movimentos operrios ditos de ao diretacorrespondem perfeitamente anlise de Proudhon e deNietzsche sobre as modalidades de afirmao da potn-cia (Proudhon) ou da vontade de potncia (Nietzsche).De fato, e para nos atermos apenas s experincias sin-gulares do movimento operrio francs (em particularno contexto das Bolsas de trabalho), o federalismo ope-rrio caracteriza-se sempre pela unio conflituosa deforas extremamente diversas, preciosas demais em suasingularidade para que o ponto de vista de uma nicaentre elas seja esmagada pela lei do nmero, pela falsaavaliao da quantidade e da medida. Associao demineiros, de msicos, de marceneiros, de tipgrafos, decarpinteiros, trabalhadores braais sem qualificao,encanadores que trabalhavam com zinco etc., estas to-das so foras especficas lutando para se unir e se afir-mar em uma fora mais vasta, retirando ela prpria suapotncia daquilo que assim a constitui como combina-o de foras distintas.

    Diversas, as foras sindicais no o so apenas umasem relao s outras, entre ramos de atividade e fede-raes de ofcios ou de indstria, por exemplo (minas,

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    metalurgia, msica, servios postais etc.), ou no interiorde um dado ramo industrial.28 Cada fora constitutivado movimento operrio como potncia maior ela pr-pria uma composio de foras, tambm mltiplas e sin-gulares: geografia dos lugares onde ela se desenrola,modalidades de organizao, tipos de militantes, nme-ro de associados, ritmos e modalidades de funcionamen-to, vnculos com o resto da profisso, parte relativa dossindicalizados, natureza dos savoir-faire profissionais,tipos de instrumentais, tipos de empresas, de organi-zao do trabalho, origens da mo de obra etc. Cada or-ganizao de base de uma federao local ou de umaBolsa de trabalho (que admite apenas uma por tipo) no apenas uma fora especfica, diferente de todas asoutras. Ela prpria a resultante sempre em desequi-lbrio, de uma parte, de uma composio e de uma sele-o de foras igualmente autnomas, que podem, emgraus diversos, no jogo das relaes no seio da Bolsa detrabalho, compor-se (ou opor-se) diretamente com ou-tros componentes ou compostos de componentes destaBolsa; de outro lado, so foras ao mesmo tempo sociaise tcnicas, humanas e no-humanas, simblicas emateriais que, com Bruno Latour, poderamos qualifi-car de hbridas,29 e que turvam incessantemente a fal-sa oposio entre natureza e cultura, mundo e sociedade,numa relao com o mundo onde o menor agrupamen-to, por sempre evocar, para existir, a totalidade do real, constitutivo, como diz Proudhon, de uma sociedadeparticular, ali onde, segundo a frmula de Nietzsche, omenor detalhe implica o todo.30

    De fato, extremamente prxima de Nietzsche e Leibniz,uma das caractersticas essenciais dos movimentos li-bertrios ir residir na sua capacidade de permitir quetodas as suas foras constituintes tambm possam pre-tender bastar a si prprias, que possam possuir, sob um

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    certo ponto de vista, a totalidade daquilo que , e pos-sam assim fundar seu direito absoluto autonomia. sob esta condio (ontolgica) que todas as foras cons-titutivas dos movimentos operrios (indivduos, seestcnicas, sindicatos, unies locais etc.) tm o direito dese expressar, de se afirmar e de modo radicalmenteigualitrio, quaisquer que sejam sua natureza e seu peso de sempre buscar avaliar o sentido de sua associao,de experimentar e lutar entre elas para determinar ahierarquia dos valores que sua composio sustenta.Da, negativamente, ou seja, do exterior, esse sentimen-to de caos, de conflitos, e de reviravoltas contnuos, pro-vocado pelo exame dos arquivos policiais e dos traosdeixados pela menor associao operria um pouco con-seqente. Numa Bolsa de trabalho como a da cidade deSaint-tienne, por exemplo, tudo objeto de discusses,de conflitos, de paradoxos, de cises e de reconciliaes,de afirmaes diferenciais. A respeito dos problemasmais graves, a questo da guerra e da Unio Sagradaem 1915, por exemplo. Mas tambm, problemas aparen-temente os mais fteis, como em 1902, quando o con-selho de administrao discute por muito tempo e demodo muito disputado, sobre o direito de um dos secre-trios da Bolsa surpreendido beijando a zeladora dese entregar ou no a suas inclinaes amorosas.31 Da,igualmente, para as associaes operrias com carterlibertrio, essa impresso de caos, de agitao de ten-ses e conflitos, de reviravoltas imprevistas e contnu-as dos pontos de vistas expressos, ou ainda, no terrenodo direito, a grande dificuldade dos acordos, dos pactos edos regulamentos a serem fixados ou regulados, a mul-tiplicidade e a mudana incessantes das relaes queos constituem a um dado momento, obrigando, por exem-plo, imediatamente aps a Primeira Guerra Mundial aBolsa do trabalho de Saint-tienne a rejeitar semanal-mente, durante mais de dois anos, a impresso de seu

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    novo regulamento interior, recusado e modificado an-tes mesmo que uma verso tivesse tempo de chegar grfica.32

    A ao direta

    Para o anarco-sindicalismo e o sindicalismo revolu-cionrio, as foras operrias devem sempre agir direta-mente, sem intermedirios, sem representantes esem representao. A noo de representao deve serentendida aqui em seu sentido mais amplo. De fato, doponto de vista libertrio, no se trata somente de recu-sar a representao poltica, mas qualquer forma de re-presentao social, simblica ou cientfica percebi-da como necessariamente abstrata e manipuladora,distinta das foras em nome de quem ela fala, que elaordena e hierarquiza, de quem ela se apropria limitandosuas possibilidades. assim que podemos compreenderuma outra dimenso, freqentemente difcil de sercompreendida, porque aparentemente contraditria, dosmovimentos operrios libertrios: seu anti-intelectua-lismo. vidos de cultura, de leituras, de cincias e desaberes, os militantes anarco-sindicalistas e sindica-listas revolucionrios, por avaliarem (com Proudhon)que a idia nasce da ao e no a ao da reflexo,33tendem sempre a recusar qualquer formulao tericaou cientfica que, a partir do exterior, a partir de suasprprias razes de ser e de modo lgico e unificado, pre-tenderia dizer (ou redizer em seu lugar) aquilo que soe o que querem. Como mostra o menor catlogo das bi-bliotecas operrias ou ainda os suplementos literriospublicados na virada dos sculos XIX e XX, por uma re-vista como Les Temps Nouveaux, o carter fragmentriodas obras reunidas ou utilizadas, a ausncia de precon-ceitos sobre a origem dos autores e das correntes de

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    pensamento de que provm, a heterogeneidade dos do-mnios abordados (tcnica, literatura, filosofia, poltica),no so resultado apenas do ecletismo autodidata e con-fuso com o qual se desacredita, com excessiva freqn-cia, a cultura dos militantes anarco-sindicalistas e sin-dicalistas revolucionrios. Anlogo diversidade dasidentidades profissionais e das formas que elas podemassumir no interior dos diferentes movimentos oper-rios existindo em tal ou tal momento, em tal ou tal lu-gar ou situao, o carter heterogneo e aberto da cul-tura militante operria, assim como a diversidadeinterna e externa dos movimentos onde ela toma senti-do, nunca deixa, sob a superficialidade aparente de seusensaios e experimentaes, de realizar uma seleoexigente que no pode ser reduzida s nicas e gros-seiras referncias ao campo republicano, s aprendiza-gens da escola primria ou aos temas mais visveis dopensamento libertrio.34 E justamente nesse sentidoque modalidades da cultura operria revolucionria emodalidades do desdobramento dos movimentos oper-rios podem no somente em profundidade, maior oumenor responder-se e repetir-se, mas tambm sereconhecer de outra forma mas com a mesma evi-dncia, na forma e contedo da obra de Proudhon oude Nietzsche, por exemplo, obras que tambm, cadauma a seu modo, so sempre taxadas de heterogenei-dade, de palindias e contradies insuperveis, ca-pazes de desencorajar qualquer desejo de ordenaounvoca e lgica.

    De fato, no modo pelo qual as prticas operrias recu-sam qualquer exterioridade formalizada ou simblica,qualquer representante (poltico, relativo linguagem oucientfico) que pretenda dizer ou ordenar aquilo que elasso e fazem, na sua vontade de tratar da mesma ma-neira formas e contedos, lutas e organizaes, pensa-

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    mento e ao, relatos e acontecimentos, literaturas epassagens ao ato, essas prticas so homlogas, nosomente com as formas dos escritos de Nietzsche, mastambm com aquilo que eles dizem, com o pensamen-to que essa forma exprime, e mais particularmente noque diz respeito ao que nos ocupa aqui, com a crticanietzscheana do Estado, da Igreja ou do Conhecimento.Atravs de Nietzsche, as prticas dos movimentos liber-trios podem revelar mais uma vez o carter reativo dacincia, da religio ou do poltico, sua capacidade de se-parar as foras ativas daquilo que elas podem, e de tor-n-las impotentes, de neg-las enquanto tais sujeitan-do-as a outros fins.35 verdadeiro sobre a cincia ousobre o conhecimento, que, de simples meio subordi-nado vida (....) erigiu-se como fim, como juiz, comoinstncia suprema.36 Mas isso igualmente verdadei-ro quanto poltica e religio, Estados e Igrejas, essesoutros modos de fixar e de representar as foras ativaspara melhor sujeit-las a um arranjo reativo mentiro-so. Estado, de todos os monstros frios, assim chama-seo mais frio, e tambm com frieza que ele mente edestila de sua boca esta mentira: Eu, o Estado, sou opovo. O Estado (...) um co hipcrita (...) ele ama dis-correr para fazer crer que sua voz sai do ventre dascoisas. Quanto Igreja, uma espcie de Estado, e amais mentirosa.37 Cincia, Igreja, Estado, trata-se sem-pre de sujeitar o real mentira dos signos e da repre-sentao, o movimento substncia, as foras ati-vas s foras reativas.38 Como afirma Deleuze a respeitodo carter hegeliano e utilitarista das cincias do ho-mem: nessa relao abstrata, qualquer que ela seja,somos sempre levados a substituir as atividades reais(criar, falar, amar) pelo ponto de vista de um terceirosobre essa atividade: confundimos essncia da ativida-de com o benefcio de um terceiro, sobre o qual se supeque ele o desfrute, ou que ele tenha o direito de reco-

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    lher seus efeitos (Deus, o esprito objetivo, a humanida-de, a cultura, ou mesmo o proletariado).39 Alusiva emDeleuze, mas virulenta no prprio Nietzsche (em suacrtica ao socialismo e ao anarquismo), essa refernciaao carter mistificador do proletariado ou da classeoperria, no tem nada (pelo menos desse ponto de vis-ta), que pudesse surpreender um leitor de Proudhon, ecom ele, os numerosos militantes que, no fogo da ao,tentaram pensar o anarco-sindicalismo e o sindicalis-mo revolucionrio. Pelo contrrio, poderamos dizer, poisde certo modo e por menos que olhemos de forma medi-anamente atenta ao que ambos afirmam, ela justamentefornece, contra qualquer evidncia aparente, uma lti-ma indicao daquilo que pde aproxim-los.

    Para o Nietzsche de Deleuze, a cultura uma ati-vidade genrica, uma pr-histria, do homem que lhepermite falar e no mais responder, ser seu prpriomestre, seu prprio direito, mas que, historicamen-te, foi capturada por foras estrangeiras de naturezatotalmente diversa. Em vez da atividade genrica, a his-tria apresenta-nos raas, povos, classes, Igrejas e Es-tados. Sobre a atividade genrica implantam-se organi-zaes sociais, associaes, comunidades de carterreativo, parasitas que vm recobri-la e absorv-la.40Essa atividade genrica, essa atividade do homemcomo ser genrico41, que raas, povos, classes Igrejas,Estados e outras formas individuantes e identitriasconseguem to bem recobrir e absorver, Deleuze irremet-la, em outra parte, de modo mais amplo e sobre-tudo mais ofensivo, ao que ele chama de ser unvoco.Potncia irredutvel s formas sociais e aos indivduosque ele contribui a produzir, o ser unvoco age nelescomo princpio transcendental, como princpio plstico,anrquico e nmade, contemporneo do processo de indi-viduao e to capaz de dissolver e destruir os indivduos

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    quanto de constitu-los temporariamente.42 Deleuze temrazo de ressaltar a dimenso anrquica dessa concep-o do ser como potncia, de pensar o ser unvoco sobo signo plstico de uma anarquia de seres, e, seguindoArtaud, de uma anarquia coroada, ali onde, na afirma-o de sua existncia, cada ser singular o igual detodos, por que imediatamente presente para todas ascoisas, sem intermedirio nem mediao.43 Realmen-te, em Proudhon, quase em termos idnticos que re-encontraremos essa distino. De um lado, h a ao,origem de toda idia e de toda reflexo e que se re-veste com o semblante duplo da guerra e do trabalho: 1)a guerra, sem a qual o homem teria perdido (...) suafaculdade revolucionria e reduzido sua vida a uma co-munidade pura, a uma civilizao de estbulo44; 2) otrabalho, fora plstica da sociedade, um e idnticoem seu plano, e infinito em suas aplicaes, como aprpria criao.45 De outro lado, h a apropriao dasforas coletivas e da potncia de ao dos seres huma-nos por uma sucesso de formas de individuaes soci-ais que se colocam como absoluto, uma apropriaoque Proudhon descreve assim: encarnado na pessoa, oabsoluto, com uma crescente autocracia, vai se desen-volver na raa, na cidade, na corporao, no Estado, naIgreja; ele se institui rei da coletividade humanitria eda universidade das criaturas. Chegando a essa altura,o absoluto torna-se Deus.46

    Mas essa oposio entre a ao, fora plstica, in-finita em suas aplicaes, e as mltiplas formas deabsoluto que buscam fix-la e assujeit-la, no exclu-siva nem de Nietzsche, nem de Proudhon. Iremos reen-contr-la, de modo igualmente incisivo, sob a plumados lderes do sindicalismo revolucionrio, em textosescritos, entretanto, s pressas e para atingir um gran-de nmero, e num contexto onde todas as razes esta-

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    riam aparentemente reunidas para que eles engrandeces-sem e tornassem absolutos a classe operria, o prole-tariado, o sindicalismo. Escutemos Victor Griffuelhes,quando ele se entrega a um exerccio perigoso (do pontode vista de Nietzsche e de Proudhon): definir o sindica-lismo. O que diz Grifuelhes? O sindicalismo o movi-mento da classe operria que quer chegar plena pos-sesso de seus direitos sobre a fbrica e a oficina; eleafirma que essa conquista com vistas a realizar a eman-cipao do trabalho ser o produto do esforo pessoal edireto, exercido pelo trabalhador.47 Frase espantosa soba usura das palavras e do olhar, que, em duas proposi-es, consegue condensar um grande nmero de carac-tersticas do sindicalismo revolucionrio e do anarco-sindicalismo, sem nunca sujeit-los a uma identidade,uma representao ou uma organizao. Esforo pes-soal e direto, conquista, emancipao, afirmao,tenso em direo plena possesso de seus direitos:a atividade genrica da qual falava Deleuze a respeitode Nietzsche encontra aqui um contedo e uma formu-lao que determinam logo a definio do sindicalismo.Para Griffuelhes o sindicalismo no nem uma coisa,nem a fortiori, um representante ou uma organizao(no caso, da classe operria). O sindicalismo um mo-vimento, o movimento da classe operria.

    Sob a pluma de Griffuelhes, essa formulao no temnada de conveniente, nem de maquinal, como mostra aseqncia imediata do texto. De modo muito proudhoniano(e sempre da mesma forma espantosa), Griffuelhes logoencadeia no sobre o capitalismo, os patres ou os bur-gueses, contraponto dialtico aparentemente obrigat-rio dos objetivos que o sindicalismo se estabelece, massobre a questo de Deus e do Poder. confiana noDeus dos padres, confiana no Poder dos polticos in-culcados no proletariado moderno, o sindicalismo subs-

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    titui a confiana em si mesmo, a ao rotulada tutelarde Deus e do Poder substituda pela ao direta.48 Omovimento da classe operria inicialmente, de ante-mo e em eco ao que j dissemos sobre o separatismooperrio, a fora que permite colocar-se em movimen-to, a confiana em si oposta confiana em uma ou-tra fora, a de Deus e dos padres e do Poder dos polticos.Mas o movimento da classe operria tambm a aodireta que Griffuelhes, de modo um pouco obscuro, opea um outro tipo de ao, uma ao rotulada tutelar deDeus e do Poder, ou (uma outra significao possvel)rotulada porque tutelar de Deus e do Poder, porquesubmetida sua sombra e a sua dominao.

    A continuao tambm muito interessante. Duran-te quatro pargrafos, Griffuelhes continua a denunciarDeus e a Igreja, o Poder e o Estado. E depois, brusca-mente, ele se interrompe, confrontado a uma dificulda-de aparentemente menor porque concreta e prtica.Qual deve ser a atitude do sindicalista diante dos tra-balhadores imbudos de idias religiosas ou confiandono valor reformador dos dirigentes?49 Em outros termos,o que fazer com os trabalhadores rotulados como cris-tos ou reformistas? Aqui, ainda uma resposta eviden-te parece impor-se, aquela popularizada pelo clebrehino do Komintern: Voc um operrio, sim? Venhaconosco, no tenha medo! identidade e ao rtulo cris-tos preciso opor uma outra identidade e um outrortulo, a identidade e o rtulo operrios. preciso fazervaler a anterioridade e a superioridade (do ponto de vis-ta da histria e das determinaes econmicas) da con-dio de operrio. No entanto, Griffuelhes no escolheessa resposta, evidente e tranqilizadora, mas na or-dem passiva das coisas, das identidades e das repre-sentaes. Melhor ou pior, ela a recusa firmementecomo contrria ao objetivo buscado e principalmente ao

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    que pode o sindicalismo revolucionrio. Se o sindicalis-mo no deve rechaar os operrios cristos e reformis-tas, no em primeiro lugar por eles serem operrios,mas pelo contrrio, ou de modo diferente, porque con-vm fazer uma distino cuidadosa entre movimento,ao, de um lado, e classe operria de outro.50 O per-tencimento classe operria no garante nada, pois,justamente, operrios podem ser cristos ou socia-listas, pois identidade e rtulos podem se sobrepor bus-cando apenas impor sua precedncia, sua maior pro-fundidade ou essencialidade. A diferena d-se em outrolugar, e de outra maneira. Ela tem a ver com a ao eo movimento, os nicos capazes de agir sobre as coi-sas e os rtulos, de embaralhar suas referncias e seuslimites, de arrastar operrios, cristos, socialistas,anarquistas, mas tambm pedreiros, fundidores edoceiros, ou ainda gregos, alemes e espanhis,mas tambm operrios, empregados, intelectuais,ou policiais num processo em que se estabelecem ob-jetivos diferentemente rduos, pois ele pretende trans-formar a oficina, a fbrica, os escritrios, as delegaciase a sociedade inteira. E como se fosse preciso martelaressa idia essencial no somente a superioridade domovimento e da ao prprias ao sindicalismo sobre aidentidade operria e suas representaes, mas suadiferena de natureza , Griffuelhes volta carga: osindicalismo, vamos repetir, o movimento, a ao daclasse operria; ele no a prpria classe operria.51

    Griffuelhes, nesse texto, no define o que ele enten-de por ao direta, esse movimento e essa ao,que diferem to nitidamente de todas as identidades,quer sejam elas de classe, de ofcio, de nacionalidadeou de convico religiosa. Mas um outro lder da CGT,Emile Pouget, d uma definio que confirma em todosos pontos a afinidade que a liga fora plstica de

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    Proudhon e de Deleuze, ao ser unvoco de Deleuze, atividade genrica de Nietzsche. O que a ao diretapara Pouget? A ao direta, manifestao da fora e davontade operria, materializa-se, segundo as circuns-tncias e o meio, por aes que podem ser muito andi-nas, como tambm podem ser muito violentas. (...) Noh (...) forma especfica ao direta.52 Manifestaoda fora e da vontade operria, a ao direta no temforma especfica. Sua nica materialidade so osatos to mutveis quanto as circunstncias e o meio.De modo propriamente dito, e como o ser unvoco deDeleuze ou a atividade genrica de Nietzsche, ela no passvel de ser fixada, num duplo sentido: espacial-mente, a tal ou tal prtica, tal ou tal forma organizacio-nal, tal ou tal grupo que dela se reclamem; mas tam-bm do ponto de vista do tempo, escapando ordem eaos limites dos relgios e calendrios, das estratgias edas aes planificadas, das distines entre presente efuturo, entre o que possvel e o que no . Como escre-ve ainda Pouget: a superioridade ttica da ao direta justamente sua incomparvel plasticidade; as organi-zaes vivificadas por sua prtica no precisam confi-nar-se na espera, em pose hiertica, da transformaosocial. Elas vivificam a hora que passa com toda a com-batividade possvel, no sacrificando nem o presente aofuturo, nem o futuro ao presente.53

    Colocar em evidncia a grande proximidade entreNietzsche e o anarquismo no algo novo. Desde 1906,Franz Overbeck, um amigo ntimo de Nietzsche, podiaexplicar como esse ltimo lera Stirner, e como dele re-tirara uma impresso forte e totalmente singular, con-firmando assim o encontro entre Nietzsche e a dimen-so mais individualista do anarquismo. Mas ele tambmpodia, de modo aparentemente mais surpreendente, res-saltar a grande afinidade existente entre Nietzsche e

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    Proudhon, exatamente na medida em que o aristocratis-mo e anti-socialismo muito particulares do primeiro emnada eram um sinal de divergncia com o segundo, cujodemocratismo e socialismo eram, eles prprios, muitoparticulares.54 Sem dvida, foi preciso esperar o fim dosculo XX para que esse encontro adquirisse sua verda-deira significao. Foi preciso esperar que o nietzschea-nismo de Foucault ou de Deleuze, a releitura de Spinozaou de Leibniz que ele autoriza, mas tambm a redesco-berta de Tarde, de Simondon ou ainda de Whitehead, fi-nalmente revelassem a significao e a amplitude de umprojeto poltico e filosfico durante muito tempo ignorado edesprezado, e que, por suas implicaes prticas e filosfi-cas, ultrapassam amplamente os limites histricos doanarquismo propriamente dito.

    Traduo do francs por Martha Gambini.

    Notas

    1 Daniel Colson. Nietzsche et lanarchisme in A Contretemps. Bulletin decritique bibliographique. Paris, n. 21, outubro/2005.2 Eugne Fleischmann. Le rle de lindividu dans la socit pr-revolutionnaire: Stirner, Marx, Hegel in Diederik Dettmeijer. Max Stirner oula Premire confrontation entre Karl Marx et la pense anti-autoritaire. Lausanne,Lge dHomme, 1979, p. 172.3 Gilles Chtelet. Vivre et penser comme des porcs. De lincitation lenvie et lennui dans les dmocraties-marchs. Paris, Exils, 1998, p. 135.4 De Albert Libertad ver a coletnea de artigos: Le culte de la charogne. Textosescolhidos e anotados por Roger Langlais. Paris, ditions Galile, 1976. DeGeorges Palante ver: La sensibilit individualiste. Prfacio e notas de MichelOnfray. Romill, ditions Folle Avoine, 1990.5 Queremos a conquista do po, a conquista da moradia e de vestimentaspara todo mundo... Ento, o texto soberbo de Nietzsche, que profetizava o

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    advento do super-homem, ir se realizar. Cf. Xavire Gauthier in LouiseMichel. Je vous crit de ma nuit. Correspondance gnrale 1850-1904. Paris, Lesditions de Paris, 1999, p. 668.6 Cf. Jacques Le Rider. Nietzsche en France: de la fin du XIX sicle au temps prsent.Paris, PUF, 1999, p. 8.7 Sobre a formao individualista de Pelloutier, em particular no momentode sua colaborao com a revista internacional La socit nouvelle, editada emBruxelas, ver Jacques Julliard. Fernand Pelloutier et les origines du syndicalismedaction directe. Paris, Seuil, 1971, p. 98.8 Ver, por exemplo, no interior do movimento operrio brasileiro, Elysio deCarvalho, Asgarda, n 1, 18/03/1902 in Jacy Alves de Seixas. Mmoire etoubli. Anarchisme et syndicalisme rvolutionnaire au Brsil. Paris, ditions de laMaison des Sciences de lHomme, 1989, p. 66.9 Sem falar dos violentos ataques de Nietzsche contra o anarquismo, assimi-lado a uma simples variante do socialismo. Sobre este ponto, ver adiante.10 Sobre a recepo de Nietzsche na Frana, desde o incio dos anos 1890, verJacques Le Rider, 1999, op. cit. Para Max Stirner, ver Roger Caratini. MaxStirner et son temps in Diederik Dettmeijer, 1979, op. cit., pp. 63ss.11 Claude Harmel. Histoire de lanarchie: des origines 1880. Paris, Champ libre,1984, pp. 159 e 435.12 Sobre o carter sectrio e os limites dos agrupamentos anarquistas deento, como eram percebidos pelos militantes dos movimentos operrios,ver o texto da Carta de Amiens. Esse modo de ser ideolgico no eviden-temente prprio ao anarquismo especfico que, em outros lugares e segundoas circunstncias, nunca se deixou arrastar pelos ventos da histria e a loucu-ra realista e desestabilizadora de suas idias. um paradoxo aparente encon-trarmos essa rigidez sectria, sobretudo e duravelmente, em correntes ane-xas e particulares, mas muito prximas dos crculos anarquistas especficos(pacifismo, vegetarismo, vegetalismo, antiespecismo, naturismo etc.) sob aforma de ideomanias (ou as to bem denominadas idias fixas) que Prou-dhon denunciava desde a metade do sculo XIX.13 Michel Haar. Nietzsche et la mtaphysique. Paris, Gallimard, 1993.14 Sobre esse ponto, cf. Alain Pessain. Proudhon et les contradictions dupeuple in Simone Bernard-Griffiths; Alain Pessain. Peuple, mythe et histoire.Toulouse, Presses Universitaires du Mirail, 1997.15 Cf. Daniel Colson. Anarcho-syndicalisme et communisme: Saint-tienne, 1920-1925. Saint-tienne, Centre dtudes Forziennes, 1986.

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    16 Pierre-Joseph Proudhon. De la capacit politique des classes ouvrires. Oeuvrescompletes, v. 3. Paris, Marcel Rivire, 1924, pp. 237; 244. Uma frmula queecoa diretamente ao pensamento de Gilles Deleuze. Diffrence et rptition.Paris, PUF, 1968, p. 137, afirma sobre a distino em Nietzsche: O queNietzsche com freqncia chama de distino o carter interno daquiloque se afirma (que no precisa ser buscado), daquilo que se coloca em ao(que no encontrado), daquilo que se goza (que no pode ser perdido).17 Victor Griffuelhes. Le syndicalisme rvolutionnaire. Paris, ditions CNT-AIT,s.d. [1909], p. 11.18 Idem, p. 13. Ver tambm Georges Yvetot. ABC syndicaliste. Paris, ditionsCNT-AIT, s.d. [1908], p. 40: A greve parcial um treinamento, uma gins-tica salutar que fortalece o proletariado em vista de uma luta suprema queser a greve geral revolucionria.19 Sobre a oposio entre o direito operrio, interno ao operria, expres-so consciente das foras que o constituem, e o direito do Estado e da socie-dade burguesa exterior vida operria, transcendente, cf. no que se refere aopensamento de Proudhon, Pierre Ansart. Naissance de lanarchisme. Paris,PUF, 1970, pp. 128ss, e, do mesmo autor, Marx et lanarchisme. Paris, PUF,1969, pp. 314ss.20 Victor Griffuelhes, op. cit., [1909], pp. 19-20.21 Michael Lwy. Rdemption et utopie. Le judaisme libertaire en Europe Centrale.Paris, PUF, 1988.22 Em presena de qualquer usurpao de direitos, que prpria ao Estado,ergue-se o sindicalismo que proclama para o proletariado o direito absoluto depensar, de agir, de lutar segundo as regras estabelecidas por ele, e de no levarem conta aquelas editadas pelo Estado, seno na medida em que essas regraslegais o favorecem e auxiliam. Victor Griffuelhes, 1909, op. cit., p. 8.23 Gilles Deleuze. Nietzsche. Paris, PUF, 1965, p. 25.24 Sobre esse ponto, cf. tambm Wolfang Muller-Lauter. Nietzsche, physiologiede la volont de puissance. Paris, Editions Allia, 1998.25 Michel Haar, 1993, op. cit., p. 12.26 Idem, p. 29.27 Sobre a noo proudhoniana de resultante, cf. Pierre-Joseph Proudhon.De la justice dans la Rvolution et dans lglise. Tomo III. Paris, Marcel Rivire,1932, pp. 409ss.28 assim que, numa bacia industrial de porte mdio como a de Saint-tienne, pode-se, entre 1880 a 1914, e somente para a metalurgia, recensearmais de quarenta formas sindicais especficas, efmeras e durveis, distintas

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    ou implicadas umas nas outras, associadas ou no (dependendo do momento) Bolsa da cidade, e cada uma portadora de modos de ser e de lgicas reivin-dicativas e de funcionamento prprias.29 Bruno Latour. Nous navons jamais t modernes, essai danthropologie symtrique.Paris, La Dcouverte, 1997.30 Para Proudhon, cf. Jean Bancal. Proudhon, pluralisme et autogestion. Tomo II.Paris, Aubier-Montaigne, 1970, p. 41. E para Nietzsche, Michel Haar, 1993,op. cit., p. 186. Uma posio encontrada sem surpresa em Gabriel Tarde.Monadologie et sociologie. Le Plessis-Robinson, Institut Synthlabo pour le progrsde la Connaissance, 1999, p. 58, quando ele explica que qualquer coisa uma sociedade, que qualquer fenmeno um fato social.31 Como circunstncia agravante, o fato de que o marido da zeladora, ummineiro, estava na poca sendo tratado num sanatrio administrado pelosindicato dessa corporao. Foi, portanto, por uma pequena maioria que osecretrio foi finalmente demitido de suas funes.32 Em dois anos, seis verses sucessivas, sempre prestes a obter visto paraimpresso, so abruptamente recolocadas para discusso sem que um con-senso e uma estabilizao da situao interior e exterior cheguem a autorizaruma verso suficientemente fixada para ter minimamente tempo de serlevada grfica.33 Pierre-Joseph Proudhon, 1932, op. cit., p. 71.34 Sobre essa anlise a ser feita, ver Yves Lequin. Classe ouvrire et idologiedans la rgion Lyonnaise la fin du XIXme sicle. In Le mouvement social,Paris, n. 69, outubro-dezembro/1969, pp. 3-20.35 Gilles Deleuze, 1965, op. cit., p. 98.36 Idem, p. 114.37 Friedrich Nietzsche. Ainsi parlait Zarathoustra. Oeuvres philosophiques compltes,t. IV. Paris, Gallimard, 1975, pp. 61; 152.38 Por toda parte o pensamento introduz de modo fraudulento o Ser enquan-to causa. Ele v por toda parte apenas aes e seres atuantes, ele cr navontade enquanto causa; ele cr no eu, no eu enquanto Ser, no euenquanto substncia. Friedrich Nietzsche. Le crpuscule des idoles, op. cit., p.78.39 Gilles Deleuze, 1965, op. cit., p. 84.40 Idem, pp. 157-158.41 Ibidem, p. 153.42 Gilles Deleuze, 1968, op. cit., p. 56.

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    43 Idem, p. 55.44 Pierre-Joseph Proudhon. La guerre et la paix. Oeuvres completes, v. 6. Paris,Marcel Rivire, 1924, p. 32.45 Pierre-Joseph Proudhon. De la cration de lordre dans lhumanit ou principedorganisation politique. Oeuvres completes, v. 5. Paris, Marcel Rivire, 1924, p.421. Tambm: 1932, op. cit., p. 89.46 Pierre-Joseph Proudhon, 1932, op. cit., p. 175.47 Victor Griffuelhes, [1909], op. cit., p. 2.48Idem.49 Ibidem, p. 3.50 Ibidem: Se ele os rechaasse, haveria a confuso de fatores diferentes:movimento, ao, de um lado, classe operria de outro.51 Ibidem.52 Emile Pouget. Laction directe. Paris, Editions CNT-AIT, s.d. [1910], p. 23,grifos nossos.53 Idem, p. 11, grifos nossos.54 Franz Overbeck. Souvenirs sur Nietzsche. Paris, Allia, 1999, pp. 660-66.

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    RESUMO

    Nietzsche e a reflexo anarquista como encontro improvvel, pro-

    vocador e contraditrio no final do sculo XIX e comeo do XX,

    atravs do sindicalismo anarquista e suas potencialidades de dis-

    tino, ao-direta e federalismo; mas tambm por meio da reflexo

    de Pierre-Joseph Proudhon e de Max Stirner.

    Palavras-chave: anarquismo, sindicalismo, ao-direta.

    ABSTRACT

    Nietzsche and the anarchist reflexing like an improbable meeting,

    provocar and contradictary by the end of the 19th century and the

    beginning of the 20th century, through the sindicalist anarchism

    and its distincious potential, direct action and federalism, but

    also through the reflection of Pierre-Joseph Proudhon and Max

    Stirner.

    Keywords: anarchism, sindicalism, direct action.

    Recebido para publicao em 2 de outubro de 2007. Con-firmado em 17 de fevereiro de 2008.