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Das histórias e memórias das comunidades quilombolas do Lago Matupiri, Barreirinha/Amazonas. 1* O ano de 1985 é visto para alguns como o inicio da nossa recente democratização com a eleição da chapa presidencial civil Tancredo Neves e José Sarney. Já o ano de 1988 é visto por outros como o marco inicial da nova fase democrática, com a promulgação da nova Constituição e o sepultamento do chamado entulho autoritário, conjunto de leis produzido pela ditadura civil-militar. A Constituição Brasileira promulgada em 1988 prevê várias medidas cujos objetivos é garantir a reparação e proteção de direitos aos cidadãos. Um dela desdobrou-se em reivindicações, do Norte ao Sul do Brasil que remetem a uma memória do cativeiro. O presente artigo visa recuperar aspectos da história de uma dessas centenas de reivindicações, que já contam décadas, a saber. As lutas estabelecidas no interior das comunidades do Lago Matupiri, pelo seu reconhecimento como quilombolas a partir da análise de fontes orais. Estamos nos referindo as comunidades de Santa Tereza do Matupiri, São Pedro, Trindade, Boa Fé e Ituquara, situadas as margens do Lago Matupiri, Distrito de Barreirinha, Amazonas. A Constituição Federal, de 1988, em seu Artigo 68 prevê o reconhecimento e a concessão da titulação da posse coletiva das terras às comunidades remanescentes de quilombos. Diante da demanda das comunidades rurais pela posse de terra, com base na memória do cativeiro, antropólogos brasileiros propuseram a ressemantização do termo remanescente de quilombo. Assim um grupo de trabalho da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) em 1994 considerou que o termo quilombo e as expressões remanescentes de quilombo sofreram um processo de ressemantização, em função de uma nova autodenominação das comunidades negras face as disposições legais vigentes. A expressão legal “remanescentes das comunidades dos quilombos” passou, a designar todas as comunidades negras rurais, estabelecidas em determinados territórios, sem título de propriedade, que legitimavam seus direitos coletivos às terras ocupadas, * Apontamentos de pesquisa relativa ao projeto Memória e identidade nas narrativas das comunidades quilombolas do Baixo Amazonas (Boa Fé, Ituquara, São Pedro, Santa Tereza do Matupiri, Trindade Barreirinha, Amazonas) 1 Diretrizes Curriculares

Das histórias e memórias das comunidades quilombolas do ......O conjunto das legislações que regulamentam os princípios previstos pela Constituição de 1988, tornou relevante,

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Page 1: Das histórias e memórias das comunidades quilombolas do ......O conjunto das legislações que regulamentam os princípios previstos pela Constituição de 1988, tornou relevante,

Das histórias e memórias das comunidades quilombolas do Lago Matupiri,

Barreirinha/Amazonas. 1*

O ano de 1985 é visto para alguns como o inicio da nossa recente

democratização com a eleição da chapa presidencial civil Tancredo Neves e José

Sarney. Já o ano de 1988 é visto por outros como o marco inicial da nova fase

democrática, com a promulgação da nova Constituição e o sepultamento do chamado

entulho autoritário, conjunto de leis produzido pela ditadura civil-militar. A

Constituição Brasileira promulgada em 1988 prevê várias medidas cujos objetivos é

garantir a reparação e proteção de direitos aos cidadãos. Um dela desdobrou-se em

reivindicações, do Norte ao Sul do Brasil que remetem a uma memória do cativeiro. O

presente artigo visa recuperar aspectos da história de uma dessas centenas de

reivindicações, que já contam décadas, a saber. As lutas estabelecidas no interior das

comunidades do Lago Matupiri, pelo seu reconhecimento como quilombolas a partir da

análise de fontes orais. Estamos nos referindo as comunidades de Santa Tereza do

Matupiri, São Pedro, Trindade, Boa Fé e Ituquara, situadas as margens do Lago

Matupiri, Distrito de Barreirinha, Amazonas.

A Constituição Federal, de 1988, em seu Artigo 68 prevê o reconhecimento e a

concessão da titulação da posse coletiva das terras às comunidades remanescentes de

quilombos. Diante da demanda das comunidades rurais pela posse de terra, com base na

memória do cativeiro, antropólogos brasileiros propuseram a ressemantização do termo

remanescente de quilombo. Assim um grupo de trabalho da Associação Brasileira de

Antropologia (ABA) em 1994 considerou que o termo quilombo e as expressões

remanescentes de quilombo sofreram um processo de ressemantização, em função de

uma nova autodenominação das comunidades negras face as disposições legais

vigentes. A expressão legal “remanescentes das comunidades dos quilombos” passou, a

designar todas as comunidades negras rurais, estabelecidas em determinados territórios,

sem título de propriedade, que legitimavam seus direitos coletivos às terras ocupadas,

* Apontamentos de pesquisa relativa ao projeto Memória e identidade nas narrativas das comunidades

quilombolas do Baixo Amazonas (Boa Fé, Ituquara, São Pedro, Santa Tereza do Matupiri, Trindade

Barreirinha, Amazonas) 1 Diretrizes Curriculares

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na memória de uma origem comum, ligada à experiência da escravidão (MATTOS,

2012; O’DWYER, 2002; MATTOS, 2004; ARRUTI 2001; ALMEIDA, 1996; GOMES,

1996; O’DWYER, 1995).

Segundo o Decreto 4.887/2003, os quilombos são: grupos étnicoraciais

segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de

relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada

com a resistência à opressão histórica sofrida”. (Art. 2º do Decreto 4887, de

20/11/2003). São múltiplas e variadas as características das comunidades quilombolas

no Brasil. Elas se encontram em todo o território nacional, sendo mais ou menos

numerosas de acordo com a região. Encontramos comunidades quilombolas em áreas

rurais e urbanas, constituídas por fortes laços de parentesco e herança familiar ou não.

Para os quilombolas o território é um pedaço de terra de uso coletivo. O território é uma

necessidade cultural e política da comunidade, ligado ao seu direito de se distinguir e

diferenciar das comunidades circunvizinhas e do poder decisório sobre o seu próprio

destino. Dados da Fundação Cultural Palmares, do Ministério da Cultura, indicam que

existem hoje no Brasil mais de três mil e setecentas comunidades remanescentes de

quilombos. A maior concentração dessas comunidades encontra-se nos estados do

Maranhão, Bahia, Minas Gerais. Para outras instituições este quantitativo pode chegar a

cinco mil comunidades2. No Baixo Amazonas, as margens do lago Matupiri,

Barreirinha, Amazonas, localizam-se cinco comunidades quilombolas: Boa Fé, Ituquara,

São Pedro, Tereza do Matupiri, Trindade3.

Nas décadas subsequentes a promulgação da Constituição de 1988, houve uma

tentativa de intervenção profunda na organização do ensino fundamental no Brasil. Uma

delas foi a aprovação e implementação dos PCNs (1997) no final dos anos noventa. Este

2 Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola: algumas informações Câmara

de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação (CNE) Brasília – DF/ 2011

3 A fundação Cultura Palmares através da Portaria Nº 176, de 24 de outubro de 2013 registrou no Livro de

Cadastro Geral nº 16 e certificou, de acordo com a autodefinição e o processo em tramitação, junto à

referida Fundação que as comunidades Comunidade de Boa Fé, Ituquara, São Pedro, Tereza do Matupiri,

Trindade se definem como remanescentes de quilombo. Ver: Diário Oficial da União. Seção 1. Nº 208,

sexta-feira, 25 de outubro de 2013.

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documento foi responsável pela introdução de temas transversais, como o da

“pluralidade cultural”. Por ser seu objetivo a formação do cidadão a adoção dos temas

transversais, pode “transformar-se em ferramentas importantes na luta contra a

discriminação racial no Brasil” (MATTOS, 2003).

Um segundo momento deste processo de ampliação da cidadania via educação,

se deu através da alteração do artigo “26-A” da Lei de Diretrizes e Bases da Educação

(Lei. 9.394/1996) em função de novas atribuições estabelecidas pela lei 10.639 /2003

que estabeleceu o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, na Educação

Básica. Assim os conteúdos programáticos da Educação Infantil à Superior passou a

conter o estudo da História da África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a

cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a

contribuição do povo negro na área social, econômica e política e pertinentes à História

do Brasil.

A História Oral é uma opção metodológica privilegiada para o registro das

memórias e a analise histórica dos temas determinadas pelo artigo 26A da LDB. A

metodologia da História Oral consiste em um conjunto de procedimentos tais como o

estabelecimento do perfil do grupo dos entrevistáveis, gravação em áudio ou vídeo e a

transcrição das entrevistas, o tratamento do produto escrito, armazenamento e análise da

documentação oral produzida. História Oral é uma prática de registro de narrativas feita

através do uso de meios eletrônicos e destinada a recolher testemunhos, promover

análises de processos sociais do presente, e facilitar o conhecimento do meio imediato.

A formulação de documentos através de registros eletrônico é um dos objetivos da

história oral. (MEIHY& HOLANDA, 2011).

Do ser quilombola

O conjunto das legislações que regulamentam os princípios previstos pela

Constituição de 1988, tornou relevante, do ponto de vista da análise histórica dos

processos de construção de memória e de identidade das comunidades quilombolas em

todo território nacional, e em particular no Baixo Amazonas. Vários relatos remetem a

origem da comunidade quilombola de Santa Teresa do Matupiri a uma memória do

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cativeiro no século XIX. Segundo memorial sobre o surgimento da comunidade

depositado na Escola Municipal Santa Tereza do Matupiri, em meados do ano de 1878 o

escravo Benedito Rodrigues da Costa chegou ao Médio Amazonas, na região do atual

município de Barreirinha, onde conhecera sua futura esposa, após libertar-se do

cativeiro retornou e casou-se com Dona Belarmina. Esta união gerou seis filhos. Manoel

Rodrigues, Severo Rodrigues, Francisco Rodrigues, Pedro Rodrigues, Cristina

Rodrigues e Corina. Desses atores sociais e seus descendentes originou-se as

comunidades quilombolas do lago do Matupiri, Santa Tereza do Matupiri, São Pedro,

Trindade, Boa Fé e Ituquara. Em entrevista a Senhora Eduarda Trindade de Castro

relata que o seu finado avô teria chegado à região do rio Andirá no inicio de sua

ocupação. Ela localiza este fato no tempo da cabanagem (1835-1840) “essa cabanagem

... nesse tempo”. Seu avô teria lhe contado que era africano, “que ele era ... do ... da

África”. Essa versão de origem é corroborada por uma segunda entrevistada. Dona

Benedita relata que os primeiros habitantes da comunidade do Matupiri, vieram para a

região em fuga “no tempo da cabanagem que eles fugiram de lá”. Vieram e ficaram na

região4. Apesar das memórias serem consideradas individuais, no seu processo de

construção, podem ocorrer conflitos, resultando em memórias conflitantes. As

memórias “conferem segurança, autoridade, legitimidade e, por fim, identidade ao

presente”, por conseguinte, os conflitos de memória podem ser “profundos, frequentes e

ásperos” (THOMSON; FRISCH; HAMILTON, 1998, p.67; 85). Nos conflitos de

memórias sobre o surgimento da comunidade quilombola do Matupiri, surgem outras

narrativas, segunda as quais a comunidade teria surgido com a chegada de escravos que

vieram da África para trabalhar na região. A origem da comunidade liga-se a uma

família de escravos fugidos. A escrava Maria Tereza teria chegado à região

acompanhada de seus filhos Manoel Sisto de Castro, Deolindo Sistro de Castro, Maria

Usolina, Maria Terezita, Normandina, Dudu, Maria do Carmo Lina. Essa versão sugere

ter sido Maria Tereza uma matriarca em torno da qual gravitaria a sua família extensa,

pois além de seus filhos a acompanhavam seus irmãos Manoel Rodrigues, Chico

Rodrigues, Severino Rodrigues e Doudon5. Segundo o depoimento do Senhor João de

Castro Freitas, as histórias contadas por seu avô eram de que os primeiros moradores da

4 Sra. Eduarda Trindade de Castro, em entrevista concedida em fevereiro de 2010. 5 Sr. Raimundo Santarém, em entrevista concedida em fevereiro de 2010.

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comunidade vieram fugidos em um navio. Outros negros também teriam fugido pelo

mato, vinham pelo Pará e paravam no Matupiri, as margens do Andirá6.

Iluminar a história das comunidades quilombolas do Baixo Amazonas é uma

ação complementar ao esforço intelectual, coletivo, para se romper com o “Fim do

silêncio da presença negra na Amazônia” (SAMPAIO, 2011). É um contraponto a visão

que considera escravidão de africanos no Amazonas um tema de pouca relevância. O

Historiador Arthur Reis, uma das principais referências na historiografia da Amazônia,

defendeu a tese da inexpressividade da presença africana na Amazônia, do ponto de

vista quantitativo (REIS, 1944; REIS, 1965; REIS, 2001). Esta tese sustentou a

cristalização de algumas memórias sobre a escravidão na Amazônia, a saber. Por um

lado a de que as relações de trabalho na região não teriam se pautado nesta instituição,

facilitando assim a adesão ao movimento abolicionista e a libertação dos escravos, em

julho de 1884. Por outro lado o movimento abolicionista, constituído por intelectuais,

maçons, profissionais liberais e políticos, teria nesses atores sociais os seus

protagonistas.

Esta interpretação resulta em uma História da escravidão e da Abolição sem os

escravos encarnando o papel de protagonistas ou agentes do processo histórico. Uma

questão amplamente explorada pela historiografia da escravidão no Brasil após a década

de 1980 (CHALHOUB, 1990; GOMES, 2005; GOMES, 1996; MACHADO, 1994;

MATTOS, 1995). Na perspectiva lançada por Arthur Reis, os escravos receberam das

mãos de seus senhores redentores a liberdade sonhada. Suas fugas são percebidas como

ações fracassadas que levam a recaptura ou ao castigo por parte dos outros “irmãos de

cor” (ITUASSÚ, 1981). No entanto, nas últimas décadas diversos estudos apontam para

uma história de conflitos e resistências protagonizada por escravos que romperam com

sua condição social ao empreenderem fugas das propriedades senhorias, constituindo

comunidades nos espaços possíveis as margens dos paranãs e lagos do Baixo Amazonas

(ACEVEDO & CASTRO, 1998; ACEVEDO & CASTRO, 1999; DEL PRIORE &

GOMES, 2003; FUNES, 2003; FUNES, 1995; GOMES, 2005; GOMES, 1999).

6 Sr. João de Castro Freitas, em entrevista concedida em fevereiro de 2010.

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Do processo de luta pelo reconhecimento como quilombola

A partir das memórias dos moradores da comunidade é possível recuperar alguns

aspectos do processo de luta e mobilização pelo reconhecimento das comunidades do

Lago Matupiri como quilombola. Podemos perceber que uma das primeiras etapas do

processo de obtenção deste reconhecimento, por parte do Estado brasileiro, passou pela

afirmação da identidade quilombola. Em outras palavras antes de mais nada, foi preciso

que os moradores das comunidades do Lago Matupiri, reconhecer-se como

remanescentes de quilombola, para ter os seus direitos constitucionais garantido.

Segundo o relato do Senhor Roberto Belém “no começo ninguém sabia se eles

eram mesmo quilombola de verdade, porque não tinha uma pessoa que indicasse”. Esse

cenário muda a partir do momento que emergem as lideranças capazes de dar inicio ao

processo de mobilização e luta entre os quilombolas do matupiri:

“só já depois de certos anos pra cá com a iniciativa da Cremilda Rodrigues e

pela dona Maria Rosa que começaram a formar um livro que lá no colégio

Maria Belém não tolembrado parece que tem esse livro com o nome dela,

Dona Maria Rosa e foi descoberto essa família quilombola aqui dentro do

Matupiri[,,,]” 7.

Um dos primeiros desafios enfrentados pelos moradores das comunidades do

Lago Matupiri, parece ter sido socializar para todos o conhecimento, no interior da

comunidade, de uma narrativa sobre as suas origens. Bem como a divulgação da lei que

os amparava ao lado do domínio do uso da língua escrita.

Segundo Dona Rosa Lolita os primeiros passos no processo de luta pelo

reconhecimento da comunidade como quilombola teria sido o contato com pessoas

vindas de Manaus que auxiliaram no processo de conscientização dos comunitários.

Bem como na localização espacial da área limítrofes das comunidades.

“o pessoal teve muito sacrifício porque o pessoal vieram de Manaus e

fizeram umas oficinas, ae agente fez o levantamento dessas pessoas ai, dessas

famílias que eram os primeiros habitantes né, ai fizeram uma, tipo assim um

7 Entrevista com o Senhor Roberto Belém, 59 anos feita no ano de 2010.

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levantamento ai depois eles fizeram uma medição com GPS ai veio uns

professores de Manaus, registraram tudo ai levaram pra lá que foi que pra ser

reconhecido como quilombo, isso é mais ou menos que eu sei um pouco

disso”. 8.

Provavelmente a entrevistada refere-se ao processo de identificação dos limites

territoriais da comunidade em função ao seu uso histórico por parte dos membros das

comunidades do Lago Matupiri.

Para a senhora Rosa Lolita o mais difícil nesse processo foi de construção de

uma cartografia da região.

“[...] o que eu achei mais foi esse negocio de andar ai pelas

cabeceiras que o pessoal, eu não fui nem uma vez, mas o pessoal

disseram que foi muito difícil [,,,] e ai andavam por lá, e já iam

através do GPS, isso que eu achei mais, que tinha que ir pra lá e

passar dias, tinha que levar alimentação ai foram um bocado de

mulheres pra lá, uns iam pelo mato e outros iam pelo barco pra

fazer a alimentação do pessoal, que tava no mato”.9

No processo de luta pelo reconhecimento das comunidades do Lago Matupiri,

como quilombola destaca-se o protagonismo de lideranças comunitárias femininas e

masculinas.

“[...] olha Carlos aqui foi a Cremilda a Lurdez o compadre

Adelino o outro que tem ai um senhor velho que esta ate hoje

ainda vivo Francisco Carlos que é o professor que já foi

professor também daqui, o Chico Ferro chamado então essas

pessoas ai que lutaram muito para conseguir isso aqui, a

Cremilda foi a pessoa que mais batalhou pra conseguir isso dai,

saiu de Barreirinha pra Manaus gastou muito pra conseguir esse

recurso pra vim a primeira vez o rancho pra e pra conseguir esse

cnpj pra cá pra dentro, o Sidney aqui, presidente da comunidade

também já lutou bastante a Lolita o Sebastião esse professor que

eu to falando pra você, ele já tem ido pra Manaus resolver esses

problemas pra ver se consegue melhorar essa situação

quilombola aqui dentro e ate ai continua ainda um pouco de

baixo”.10 8 Entrevista com a Senhora Rosa Lolita, 46 anos feita no ano de 2010. 9 IDEM. 10 Entrevista com o Senhor Roberto Belém, 59 anos feita no ano de 2010.

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Com o passa dos anos a comunidade cresceu naquela região e buscou o

reconhecimento como quilombolas e podemos observa as primeiras iniciativas que

foram tomadas:

“foi à família Rodrigues e a família Castro, eles foram que

lutaram muito sobre esse processo para que, nessa época era a

Cremilda que era a presidente, e lutaram muito que era a família

Rodrigues e a família Castro, foram praticamente quase toda a

comunidade né, que agente se envolveu muito, e graças a Deus

que com a ajuda deles lá de Manaus e agente conseguiu esse

reconhecimento dos quilombolas.” 11.

Ainda sobre os relatos sobre o processo reconhecimento dos quilombolas do

Matupiri

Nos relatos sobre o processo de mobilização e luta pelo reconhecimento das

comunidades do Lago Matupiri como quilombolas destaca-se, entre outros, o nome da

senhora Maria Cremilda Rodrigues, ex-presidente da comunidade de Santa Tereza do

Matupiri.

Maria Cremilda Rodrigues dos Santos, técnica de enfermagem por ofício,

identifica-se como ex-presidente “do movimento da nossa etnia quilombola do

município de barreirinha”. Segundo a entrevistada ela fez parte do movimento que

protagonizou o processo de reconhecimento da comunidade como remanescente de

quilombo, junto a Fundação Palmares. “nós fundamos uma federação pra nós criarmos

né, é pra ver pra fazer o mapeamento todinho e nós passamos três meses fazendo esse

mapeamento pra gente adquirir os conhecimentos que as pessoas antigas fizeram pra

nós conversando conosco fizemos o resumo onde tiramos as partes principais.12

Maria Cremilda Rodrigues dos Santos, na época da entrevista, contava 59 anos

de idade. Ela nasceu na comunidade de Santa Teresa do Matupiri no ano de 1954. Filha

de Silvestre Rodrigues da Costa e Maria Rosa da Silva Conceição, define-se como a

11 Entrevista com a Senhora Rosa Lolita, 46 anos feita no ano de 2010. 12 Maria Cremilda Rodrigues dos Santos. Entrevista feita no ano de 2014.

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“filha do rio Andirá”, uma auto declaração que revela o sentimento de pertença a região.

O que talvez aponte para uma reivindicação da legitimidade de suas ações políticas, em

contraponto a outros moradores que eventualmente tenham migrado para a região.13

Segundo a sua narrativa o mapeamento dos dados históricos sobre a

comunidade parece ter precedido a abertura do processo de reconhecimento como

quilombola. O mapeamento teria sido feito por uma equipe com quatro integrantes

durante três meses. Uma professora de nome Osmarina, um sobrinho de Dona Cremilda

Alberto e Mateus e a própria entrevistada.14

O grupo teria saído “de comunidade em comunidade pegando as pessoas mais

de idade”, ou seja, percorrido as cinco comunidade que constituem a comunidade

quilombola do Rio Andirá, Santa Teresa do Matupiri, Ituquara, Trindade, .... A tarefa do

grupo parece ter consistido na coleta de dados, depoimentos e informações partilhada na

memória dos moradores mais idosos da comunidade acerca das origens dos seus

moradores, ou em suas palavras, “pegando como foi pra chegar as pessoas negras dentro

do matupiri”. Referindo-se ao território sobre o qual assentam-se as cinco comunidades,

a entrevistada nos diz ser o Matupiri “é uma área que fica dentro” um lago, ou melhor

em uma das margens de um lago, próxima a “uma cabeceira”, próximo ao lago tem o

caudaloso Rio Andirá “que passa direto”.15

Indagada sobre o processo de luta para o reconhecimento da comunidade como

quilombola Dona Cremilda citou a visita da Doutora Ana Felícia que teria vindo de

Manaus, juntamente com outras duas Professoras da Universidade, provavelmente a

Federal do Amazonas. Ao chegarem ao Distrito Dona Lucia Costa, João Siqueira,

Professor Jerson. Foi quando os membros das comunidades começaram a conscientizar-

se que pertenciam a comunidades quilombolas.

13 Idem. 14 Idem. 15 Idem.

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“e ai chegou duas pessoas la em casa que é parente meu tambem

meu primo disse assim Cremilda tem um pessoal lá no matupiri

e você não quer ir lá pra gente ver o que é quilombola”.16

Conclusões provisórias

Nas últimas décadas colonos e posseiros ameaçados pelos processos de

modernização do século XX, ao identificarem-se primeiro como “pretos” e depois

como “quilombolas”, tornaram-se sujeitos políticos coletivos. Assim esses afro-

brasileiros, na condição de descendentes de escravos acionam a memória do cativeiro e

reivindicam acesso as políticas de reparação do estado brasileiro. Esse processo de

identificação coletiva se dá através de um processo que só pode ser entendida a luz dos

contextos históricos e políticos.

Hebe Mattos observou que o Artigo 68 da Constituição Federal de 1988 prevê o

reconhecimento e a concessão da titulação da posse coletiva das terras às comunidades

remanescentes de quilombos. Diante da demanda das comunidades rurais pela posse de

terra, com base na memória do cativeiro, em 1994 a Associação Brasileira de

Antropologia (ABA), considerou que o termo quilombo e as expressões remanescentes

de quilombo sofreram um processo de ressemantização. Outrossim, tais expressões

passam a designar todas as comunidades negras rurais, estabelecidas em determinados

territórios, sem título de propriedade, que legitimavam seus direitos coletivos às terras

ocupadas, na memória de uma origem comum, ligada à experiência da escravidão

(MATTOS, 2012). A analise das narrativas dos quilombolas do Lago Matupiri, nos

permite iluminar as experiências de resistência identitária e cultural, compartilhadas por

homens e mulheres. E processos de lutas por garantias de acesso ao reconhecimento e

posse coletiva dos solo quilombola legado de seus ancestrais.

16 Idem.

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