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Das histórias e memórias das comunidades quilombolas do Lago Matupiri,
Barreirinha/Amazonas. 1*
O ano de 1985 é visto para alguns como o inicio da nossa recente
democratização com a eleição da chapa presidencial civil Tancredo Neves e José
Sarney. Já o ano de 1988 é visto por outros como o marco inicial da nova fase
democrática, com a promulgação da nova Constituição e o sepultamento do chamado
entulho autoritário, conjunto de leis produzido pela ditadura civil-militar. A
Constituição Brasileira promulgada em 1988 prevê várias medidas cujos objetivos é
garantir a reparação e proteção de direitos aos cidadãos. Um dela desdobrou-se em
reivindicações, do Norte ao Sul do Brasil que remetem a uma memória do cativeiro. O
presente artigo visa recuperar aspectos da história de uma dessas centenas de
reivindicações, que já contam décadas, a saber. As lutas estabelecidas no interior das
comunidades do Lago Matupiri, pelo seu reconhecimento como quilombolas a partir da
análise de fontes orais. Estamos nos referindo as comunidades de Santa Tereza do
Matupiri, São Pedro, Trindade, Boa Fé e Ituquara, situadas as margens do Lago
Matupiri, Distrito de Barreirinha, Amazonas.
A Constituição Federal, de 1988, em seu Artigo 68 prevê o reconhecimento e a
concessão da titulação da posse coletiva das terras às comunidades remanescentes de
quilombos. Diante da demanda das comunidades rurais pela posse de terra, com base na
memória do cativeiro, antropólogos brasileiros propuseram a ressemantização do termo
remanescente de quilombo. Assim um grupo de trabalho da Associação Brasileira de
Antropologia (ABA) em 1994 considerou que o termo quilombo e as expressões
remanescentes de quilombo sofreram um processo de ressemantização, em função de
uma nova autodenominação das comunidades negras face as disposições legais
vigentes. A expressão legal “remanescentes das comunidades dos quilombos” passou, a
designar todas as comunidades negras rurais, estabelecidas em determinados territórios,
sem título de propriedade, que legitimavam seus direitos coletivos às terras ocupadas,
* Apontamentos de pesquisa relativa ao projeto Memória e identidade nas narrativas das comunidades
quilombolas do Baixo Amazonas (Boa Fé, Ituquara, São Pedro, Santa Tereza do Matupiri, Trindade
Barreirinha, Amazonas) 1 Diretrizes Curriculares
na memória de uma origem comum, ligada à experiência da escravidão (MATTOS,
2012; O’DWYER, 2002; MATTOS, 2004; ARRUTI 2001; ALMEIDA, 1996; GOMES,
1996; O’DWYER, 1995).
Segundo o Decreto 4.887/2003, os quilombos são: grupos étnicoraciais
segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de
relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada
com a resistência à opressão histórica sofrida”. (Art. 2º do Decreto 4887, de
20/11/2003). São múltiplas e variadas as características das comunidades quilombolas
no Brasil. Elas se encontram em todo o território nacional, sendo mais ou menos
numerosas de acordo com a região. Encontramos comunidades quilombolas em áreas
rurais e urbanas, constituídas por fortes laços de parentesco e herança familiar ou não.
Para os quilombolas o território é um pedaço de terra de uso coletivo. O território é uma
necessidade cultural e política da comunidade, ligado ao seu direito de se distinguir e
diferenciar das comunidades circunvizinhas e do poder decisório sobre o seu próprio
destino. Dados da Fundação Cultural Palmares, do Ministério da Cultura, indicam que
existem hoje no Brasil mais de três mil e setecentas comunidades remanescentes de
quilombos. A maior concentração dessas comunidades encontra-se nos estados do
Maranhão, Bahia, Minas Gerais. Para outras instituições este quantitativo pode chegar a
cinco mil comunidades2. No Baixo Amazonas, as margens do lago Matupiri,
Barreirinha, Amazonas, localizam-se cinco comunidades quilombolas: Boa Fé, Ituquara,
São Pedro, Tereza do Matupiri, Trindade3.
Nas décadas subsequentes a promulgação da Constituição de 1988, houve uma
tentativa de intervenção profunda na organização do ensino fundamental no Brasil. Uma
delas foi a aprovação e implementação dos PCNs (1997) no final dos anos noventa. Este
2 Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola: algumas informações Câmara
de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação (CNE) Brasília – DF/ 2011
3 A fundação Cultura Palmares através da Portaria Nº 176, de 24 de outubro de 2013 registrou no Livro de
Cadastro Geral nº 16 e certificou, de acordo com a autodefinição e o processo em tramitação, junto à
referida Fundação que as comunidades Comunidade de Boa Fé, Ituquara, São Pedro, Tereza do Matupiri,
Trindade se definem como remanescentes de quilombo. Ver: Diário Oficial da União. Seção 1. Nº 208,
sexta-feira, 25 de outubro de 2013.
documento foi responsável pela introdução de temas transversais, como o da
“pluralidade cultural”. Por ser seu objetivo a formação do cidadão a adoção dos temas
transversais, pode “transformar-se em ferramentas importantes na luta contra a
discriminação racial no Brasil” (MATTOS, 2003).
Um segundo momento deste processo de ampliação da cidadania via educação,
se deu através da alteração do artigo “26-A” da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
(Lei. 9.394/1996) em função de novas atribuições estabelecidas pela lei 10.639 /2003
que estabeleceu o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, na Educação
Básica. Assim os conteúdos programáticos da Educação Infantil à Superior passou a
conter o estudo da História da África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a
cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a
contribuição do povo negro na área social, econômica e política e pertinentes à História
do Brasil.
A História Oral é uma opção metodológica privilegiada para o registro das
memórias e a analise histórica dos temas determinadas pelo artigo 26A da LDB. A
metodologia da História Oral consiste em um conjunto de procedimentos tais como o
estabelecimento do perfil do grupo dos entrevistáveis, gravação em áudio ou vídeo e a
transcrição das entrevistas, o tratamento do produto escrito, armazenamento e análise da
documentação oral produzida. História Oral é uma prática de registro de narrativas feita
através do uso de meios eletrônicos e destinada a recolher testemunhos, promover
análises de processos sociais do presente, e facilitar o conhecimento do meio imediato.
A formulação de documentos através de registros eletrônico é um dos objetivos da
história oral. (MEIHY& HOLANDA, 2011).
Do ser quilombola
O conjunto das legislações que regulamentam os princípios previstos pela
Constituição de 1988, tornou relevante, do ponto de vista da análise histórica dos
processos de construção de memória e de identidade das comunidades quilombolas em
todo território nacional, e em particular no Baixo Amazonas. Vários relatos remetem a
origem da comunidade quilombola de Santa Teresa do Matupiri a uma memória do
cativeiro no século XIX. Segundo memorial sobre o surgimento da comunidade
depositado na Escola Municipal Santa Tereza do Matupiri, em meados do ano de 1878 o
escravo Benedito Rodrigues da Costa chegou ao Médio Amazonas, na região do atual
município de Barreirinha, onde conhecera sua futura esposa, após libertar-se do
cativeiro retornou e casou-se com Dona Belarmina. Esta união gerou seis filhos. Manoel
Rodrigues, Severo Rodrigues, Francisco Rodrigues, Pedro Rodrigues, Cristina
Rodrigues e Corina. Desses atores sociais e seus descendentes originou-se as
comunidades quilombolas do lago do Matupiri, Santa Tereza do Matupiri, São Pedro,
Trindade, Boa Fé e Ituquara. Em entrevista a Senhora Eduarda Trindade de Castro
relata que o seu finado avô teria chegado à região do rio Andirá no inicio de sua
ocupação. Ela localiza este fato no tempo da cabanagem (1835-1840) “essa cabanagem
... nesse tempo”. Seu avô teria lhe contado que era africano, “que ele era ... do ... da
África”. Essa versão de origem é corroborada por uma segunda entrevistada. Dona
Benedita relata que os primeiros habitantes da comunidade do Matupiri, vieram para a
região em fuga “no tempo da cabanagem que eles fugiram de lá”. Vieram e ficaram na
região4. Apesar das memórias serem consideradas individuais, no seu processo de
construção, podem ocorrer conflitos, resultando em memórias conflitantes. As
memórias “conferem segurança, autoridade, legitimidade e, por fim, identidade ao
presente”, por conseguinte, os conflitos de memória podem ser “profundos, frequentes e
ásperos” (THOMSON; FRISCH; HAMILTON, 1998, p.67; 85). Nos conflitos de
memórias sobre o surgimento da comunidade quilombola do Matupiri, surgem outras
narrativas, segunda as quais a comunidade teria surgido com a chegada de escravos que
vieram da África para trabalhar na região. A origem da comunidade liga-se a uma
família de escravos fugidos. A escrava Maria Tereza teria chegado à região
acompanhada de seus filhos Manoel Sisto de Castro, Deolindo Sistro de Castro, Maria
Usolina, Maria Terezita, Normandina, Dudu, Maria do Carmo Lina. Essa versão sugere
ter sido Maria Tereza uma matriarca em torno da qual gravitaria a sua família extensa,
pois além de seus filhos a acompanhavam seus irmãos Manoel Rodrigues, Chico
Rodrigues, Severino Rodrigues e Doudon5. Segundo o depoimento do Senhor João de
Castro Freitas, as histórias contadas por seu avô eram de que os primeiros moradores da
4 Sra. Eduarda Trindade de Castro, em entrevista concedida em fevereiro de 2010. 5 Sr. Raimundo Santarém, em entrevista concedida em fevereiro de 2010.
comunidade vieram fugidos em um navio. Outros negros também teriam fugido pelo
mato, vinham pelo Pará e paravam no Matupiri, as margens do Andirá6.
Iluminar a história das comunidades quilombolas do Baixo Amazonas é uma
ação complementar ao esforço intelectual, coletivo, para se romper com o “Fim do
silêncio da presença negra na Amazônia” (SAMPAIO, 2011). É um contraponto a visão
que considera escravidão de africanos no Amazonas um tema de pouca relevância. O
Historiador Arthur Reis, uma das principais referências na historiografia da Amazônia,
defendeu a tese da inexpressividade da presença africana na Amazônia, do ponto de
vista quantitativo (REIS, 1944; REIS, 1965; REIS, 2001). Esta tese sustentou a
cristalização de algumas memórias sobre a escravidão na Amazônia, a saber. Por um
lado a de que as relações de trabalho na região não teriam se pautado nesta instituição,
facilitando assim a adesão ao movimento abolicionista e a libertação dos escravos, em
julho de 1884. Por outro lado o movimento abolicionista, constituído por intelectuais,
maçons, profissionais liberais e políticos, teria nesses atores sociais os seus
protagonistas.
Esta interpretação resulta em uma História da escravidão e da Abolição sem os
escravos encarnando o papel de protagonistas ou agentes do processo histórico. Uma
questão amplamente explorada pela historiografia da escravidão no Brasil após a década
de 1980 (CHALHOUB, 1990; GOMES, 2005; GOMES, 1996; MACHADO, 1994;
MATTOS, 1995). Na perspectiva lançada por Arthur Reis, os escravos receberam das
mãos de seus senhores redentores a liberdade sonhada. Suas fugas são percebidas como
ações fracassadas que levam a recaptura ou ao castigo por parte dos outros “irmãos de
cor” (ITUASSÚ, 1981). No entanto, nas últimas décadas diversos estudos apontam para
uma história de conflitos e resistências protagonizada por escravos que romperam com
sua condição social ao empreenderem fugas das propriedades senhorias, constituindo
comunidades nos espaços possíveis as margens dos paranãs e lagos do Baixo Amazonas
(ACEVEDO & CASTRO, 1998; ACEVEDO & CASTRO, 1999; DEL PRIORE &
GOMES, 2003; FUNES, 2003; FUNES, 1995; GOMES, 2005; GOMES, 1999).
6 Sr. João de Castro Freitas, em entrevista concedida em fevereiro de 2010.
Do processo de luta pelo reconhecimento como quilombola
A partir das memórias dos moradores da comunidade é possível recuperar alguns
aspectos do processo de luta e mobilização pelo reconhecimento das comunidades do
Lago Matupiri como quilombola. Podemos perceber que uma das primeiras etapas do
processo de obtenção deste reconhecimento, por parte do Estado brasileiro, passou pela
afirmação da identidade quilombola. Em outras palavras antes de mais nada, foi preciso
que os moradores das comunidades do Lago Matupiri, reconhecer-se como
remanescentes de quilombola, para ter os seus direitos constitucionais garantido.
Segundo o relato do Senhor Roberto Belém “no começo ninguém sabia se eles
eram mesmo quilombola de verdade, porque não tinha uma pessoa que indicasse”. Esse
cenário muda a partir do momento que emergem as lideranças capazes de dar inicio ao
processo de mobilização e luta entre os quilombolas do matupiri:
“só já depois de certos anos pra cá com a iniciativa da Cremilda Rodrigues e
pela dona Maria Rosa que começaram a formar um livro que lá no colégio
Maria Belém não tolembrado parece que tem esse livro com o nome dela,
Dona Maria Rosa e foi descoberto essa família quilombola aqui dentro do
Matupiri[,,,]” 7.
Um dos primeiros desafios enfrentados pelos moradores das comunidades do
Lago Matupiri, parece ter sido socializar para todos o conhecimento, no interior da
comunidade, de uma narrativa sobre as suas origens. Bem como a divulgação da lei que
os amparava ao lado do domínio do uso da língua escrita.
Segundo Dona Rosa Lolita os primeiros passos no processo de luta pelo
reconhecimento da comunidade como quilombola teria sido o contato com pessoas
vindas de Manaus que auxiliaram no processo de conscientização dos comunitários.
Bem como na localização espacial da área limítrofes das comunidades.
“o pessoal teve muito sacrifício porque o pessoal vieram de Manaus e
fizeram umas oficinas, ae agente fez o levantamento dessas pessoas ai, dessas
famílias que eram os primeiros habitantes né, ai fizeram uma, tipo assim um
7 Entrevista com o Senhor Roberto Belém, 59 anos feita no ano de 2010.
levantamento ai depois eles fizeram uma medição com GPS ai veio uns
professores de Manaus, registraram tudo ai levaram pra lá que foi que pra ser
reconhecido como quilombo, isso é mais ou menos que eu sei um pouco
disso”. 8.
Provavelmente a entrevistada refere-se ao processo de identificação dos limites
territoriais da comunidade em função ao seu uso histórico por parte dos membros das
comunidades do Lago Matupiri.
Para a senhora Rosa Lolita o mais difícil nesse processo foi de construção de
uma cartografia da região.
“[...] o que eu achei mais foi esse negocio de andar ai pelas
cabeceiras que o pessoal, eu não fui nem uma vez, mas o pessoal
disseram que foi muito difícil [,,,] e ai andavam por lá, e já iam
através do GPS, isso que eu achei mais, que tinha que ir pra lá e
passar dias, tinha que levar alimentação ai foram um bocado de
mulheres pra lá, uns iam pelo mato e outros iam pelo barco pra
fazer a alimentação do pessoal, que tava no mato”.9
No processo de luta pelo reconhecimento das comunidades do Lago Matupiri,
como quilombola destaca-se o protagonismo de lideranças comunitárias femininas e
masculinas.
“[...] olha Carlos aqui foi a Cremilda a Lurdez o compadre
Adelino o outro que tem ai um senhor velho que esta ate hoje
ainda vivo Francisco Carlos que é o professor que já foi
professor também daqui, o Chico Ferro chamado então essas
pessoas ai que lutaram muito para conseguir isso aqui, a
Cremilda foi a pessoa que mais batalhou pra conseguir isso dai,
saiu de Barreirinha pra Manaus gastou muito pra conseguir esse
recurso pra vim a primeira vez o rancho pra e pra conseguir esse
cnpj pra cá pra dentro, o Sidney aqui, presidente da comunidade
também já lutou bastante a Lolita o Sebastião esse professor que
eu to falando pra você, ele já tem ido pra Manaus resolver esses
problemas pra ver se consegue melhorar essa situação
quilombola aqui dentro e ate ai continua ainda um pouco de
baixo”.10 8 Entrevista com a Senhora Rosa Lolita, 46 anos feita no ano de 2010. 9 IDEM. 10 Entrevista com o Senhor Roberto Belém, 59 anos feita no ano de 2010.
Com o passa dos anos a comunidade cresceu naquela região e buscou o
reconhecimento como quilombolas e podemos observa as primeiras iniciativas que
foram tomadas:
“foi à família Rodrigues e a família Castro, eles foram que
lutaram muito sobre esse processo para que, nessa época era a
Cremilda que era a presidente, e lutaram muito que era a família
Rodrigues e a família Castro, foram praticamente quase toda a
comunidade né, que agente se envolveu muito, e graças a Deus
que com a ajuda deles lá de Manaus e agente conseguiu esse
reconhecimento dos quilombolas.” 11.
Ainda sobre os relatos sobre o processo reconhecimento dos quilombolas do
Matupiri
Nos relatos sobre o processo de mobilização e luta pelo reconhecimento das
comunidades do Lago Matupiri como quilombolas destaca-se, entre outros, o nome da
senhora Maria Cremilda Rodrigues, ex-presidente da comunidade de Santa Tereza do
Matupiri.
Maria Cremilda Rodrigues dos Santos, técnica de enfermagem por ofício,
identifica-se como ex-presidente “do movimento da nossa etnia quilombola do
município de barreirinha”. Segundo a entrevistada ela fez parte do movimento que
protagonizou o processo de reconhecimento da comunidade como remanescente de
quilombo, junto a Fundação Palmares. “nós fundamos uma federação pra nós criarmos
né, é pra ver pra fazer o mapeamento todinho e nós passamos três meses fazendo esse
mapeamento pra gente adquirir os conhecimentos que as pessoas antigas fizeram pra
nós conversando conosco fizemos o resumo onde tiramos as partes principais.12
Maria Cremilda Rodrigues dos Santos, na época da entrevista, contava 59 anos
de idade. Ela nasceu na comunidade de Santa Teresa do Matupiri no ano de 1954. Filha
de Silvestre Rodrigues da Costa e Maria Rosa da Silva Conceição, define-se como a
11 Entrevista com a Senhora Rosa Lolita, 46 anos feita no ano de 2010. 12 Maria Cremilda Rodrigues dos Santos. Entrevista feita no ano de 2014.
“filha do rio Andirá”, uma auto declaração que revela o sentimento de pertença a região.
O que talvez aponte para uma reivindicação da legitimidade de suas ações políticas, em
contraponto a outros moradores que eventualmente tenham migrado para a região.13
Segundo a sua narrativa o mapeamento dos dados históricos sobre a
comunidade parece ter precedido a abertura do processo de reconhecimento como
quilombola. O mapeamento teria sido feito por uma equipe com quatro integrantes
durante três meses. Uma professora de nome Osmarina, um sobrinho de Dona Cremilda
Alberto e Mateus e a própria entrevistada.14
O grupo teria saído “de comunidade em comunidade pegando as pessoas mais
de idade”, ou seja, percorrido as cinco comunidade que constituem a comunidade
quilombola do Rio Andirá, Santa Teresa do Matupiri, Ituquara, Trindade, .... A tarefa do
grupo parece ter consistido na coleta de dados, depoimentos e informações partilhada na
memória dos moradores mais idosos da comunidade acerca das origens dos seus
moradores, ou em suas palavras, “pegando como foi pra chegar as pessoas negras dentro
do matupiri”. Referindo-se ao território sobre o qual assentam-se as cinco comunidades,
a entrevistada nos diz ser o Matupiri “é uma área que fica dentro” um lago, ou melhor
em uma das margens de um lago, próxima a “uma cabeceira”, próximo ao lago tem o
caudaloso Rio Andirá “que passa direto”.15
Indagada sobre o processo de luta para o reconhecimento da comunidade como
quilombola Dona Cremilda citou a visita da Doutora Ana Felícia que teria vindo de
Manaus, juntamente com outras duas Professoras da Universidade, provavelmente a
Federal do Amazonas. Ao chegarem ao Distrito Dona Lucia Costa, João Siqueira,
Professor Jerson. Foi quando os membros das comunidades começaram a conscientizar-
se que pertenciam a comunidades quilombolas.
13 Idem. 14 Idem. 15 Idem.
“e ai chegou duas pessoas la em casa que é parente meu tambem
meu primo disse assim Cremilda tem um pessoal lá no matupiri
e você não quer ir lá pra gente ver o que é quilombola”.16
Conclusões provisórias
Nas últimas décadas colonos e posseiros ameaçados pelos processos de
modernização do século XX, ao identificarem-se primeiro como “pretos” e depois
como “quilombolas”, tornaram-se sujeitos políticos coletivos. Assim esses afro-
brasileiros, na condição de descendentes de escravos acionam a memória do cativeiro e
reivindicam acesso as políticas de reparação do estado brasileiro. Esse processo de
identificação coletiva se dá através de um processo que só pode ser entendida a luz dos
contextos históricos e políticos.
Hebe Mattos observou que o Artigo 68 da Constituição Federal de 1988 prevê o
reconhecimento e a concessão da titulação da posse coletiva das terras às comunidades
remanescentes de quilombos. Diante da demanda das comunidades rurais pela posse de
terra, com base na memória do cativeiro, em 1994 a Associação Brasileira de
Antropologia (ABA), considerou que o termo quilombo e as expressões remanescentes
de quilombo sofreram um processo de ressemantização. Outrossim, tais expressões
passam a designar todas as comunidades negras rurais, estabelecidas em determinados
territórios, sem título de propriedade, que legitimavam seus direitos coletivos às terras
ocupadas, na memória de uma origem comum, ligada à experiência da escravidão
(MATTOS, 2012). A analise das narrativas dos quilombolas do Lago Matupiri, nos
permite iluminar as experiências de resistência identitária e cultural, compartilhadas por
homens e mulheres. E processos de lutas por garantias de acesso ao reconhecimento e
posse coletiva dos solo quilombola legado de seus ancestrais.
16 Idem.
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