12
De Pury a Caboclo: Transformação social e fragmentos de memória na paisagem do território de Santo Antônio do Muriahé – atual cidade de Mirai/MG. Sergio Antonio de Paula Almeida * Introdução A ancestralidade é objeto de discussões por parte dos grupos sociais. Exibe-se com orgulho a origem familiar resgatada das raízes provenientes do colonizador - portugueses, espanhóis, italianos - que ocupam o cenário de nossas mentes à busca de justificativas a respeito da posse e domínio das terras tardiamente ocupadas no final do século XVIII até meados do século XIX. A sociedade não questiona sua formação e a origem de suas raízes. O distanciamento temporal existente entre o inicio da ocupação territorial da Zona da Mata no atual Estado de Minas Gerais até o momento que inicia nossas pesquisas proporcionaram visível esvaziamento da memória pertencente aos nativos que habitavam a região. As narrativas da ocupação territorial deixam a impressão que o “colonizador” havia encontrado uma terra praticamente desabitada. Os sertões, aqui apresentados na porção da Zona da Mata Leste das Minas Gerais, mais precisamente o atual município de Mirai-MG, antiga Santo Antônio do Muriahé, foi certamente é um desses cenários bucólicos romantizados pela sociedade e que não percebe a ancestralidade nativa em sua formação e cotidiano. O silêncio e a timidez herdada das mães, que são avós e bisavós “pegas no laço” 1 dos descendentes dos índios Purys 2 , esconderam a presença étnica entrelaçada à sociedade. Nos registros paroquiais suas raízes adormeceram por mais de um século. A secularização social potencializou o silêncio. A ocupação territorial e a imposição cultural não permitiram reflexão por parte dos novos habitantes, fruto da miscigenação. Entretanto, notamos junto ao silêncio as permanências do tempo. O passado vive através de seus ecos no presente, quando nos deparamos com os nomes próprios utilizados no lugar. *Mestrando em Patrimônio Cultural, Paisagens e Cidadania pela Universidade Federal de Viçosa/MG. Especialista em História do Brasil e em História e Cultura Afro-brasileira. [email protected]. 1 Expressão utilizada na pesquisa realizada por Marcos Veroneze para identificação dos ancestrais nativos. 2009/2010. 2 A grafia é referente à mesma encontrada em pesquisa realizada nos livros de batismo da paróquia Santo Antonio em Mirai-MG pelo professor Sérgio Antônio de Paula Almeida. Agradecimentos a Maria Inêz Vane Loures, Terezinha Murito e Pe. Antonio Luiz da Silva pelo apoio nas pesquisas.

De Pury a Caboclo: Transformação social e fragmentos de ... · 11 Darcy Ribeiro apresenta a formação dos povos latino-americanos ... avô perdeu as terras colocadas ... principalmente

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De Pury a Caboclo: Transformação social e fragmentos de memória na paisagem do

território de Santo Antônio do Muriahé – atual cidade de Mirai/MG.

Sergio Antonio de Paula Almeida*

Introdução

A ancestralidade é objeto de discussões por parte dos grupos sociais. Exibe-se com

orgulho a origem familiar resgatada das raízes provenientes do colonizador - portugueses,

espanhóis, italianos - que ocupam o cenário de nossas mentes à busca de justificativas a

respeito da posse e domínio das terras tardiamente ocupadas no final do século XVIII até

meados do século XIX. A sociedade não questiona sua formação e a origem de suas raízes.

O distanciamento temporal existente entre o inicio da ocupação territorial da Zona da

Mata no atual Estado de Minas Gerais até o momento que inicia nossas pesquisas

proporcionaram visível esvaziamento da memória pertencente aos nativos que habitavam a

região. As narrativas da ocupação territorial deixam a impressão que o “colonizador” havia

encontrado uma terra praticamente desabitada. Os sertões, aqui apresentados na porção da

Zona da Mata Leste das Minas Gerais, mais precisamente o atual município de Mirai-MG,

antiga Santo Antônio do Muriahé, foi certamente é um desses cenários bucólicos

romantizados pela sociedade e que não percebe a ancestralidade nativa em sua formação e

cotidiano.

O silêncio e a timidez herdada das mães, que são avós e bisavós “pegas no laço”1 dos

descendentes dos índios Purys2, esconderam a presença étnica entrelaçada à sociedade. Nos

registros paroquiais suas raízes adormeceram por mais de um século. A secularização social

potencializou o silêncio. A ocupação territorial e a imposição cultural não permitiram reflexão

por parte dos novos habitantes, fruto da miscigenação. Entretanto, notamos junto ao silêncio

as permanências do tempo. O passado vive através de seus ecos no presente, quando nos

deparamos com os nomes próprios utilizados no lugar.

*Mestrando em Patrimônio Cultural, Paisagens e Cidadania pela Universidade Federal de Viçosa/MG. Especialista em História do Brasil e em História e Cultura Afro-brasileira. [email protected]. 1 Expressão utilizada na pesquisa realizada por Marcos Veroneze para identificação dos ancestrais nativos. 2009/2010. 2 A grafia é referente à mesma encontrada em pesquisa realizada nos livros de batismo da paróquia Santo Antonio em Mirai-MG pelo professor Sérgio Antônio de Paula Almeida. Agradecimentos a Maria Inêz Vane Loures, Terezinha Murito e Pe. Antonio Luiz da Silva pelo apoio nas pesquisas.

2

Assim, de reconstrução impossível, esse mesmo passado nos apresenta apenas uma

alternativa: preservar os fragmentos de sua memória e garantir às futuras gerações um pouco

da herança cultural deixada pelos antepassados regionais. Os povos antigos se vêm retratados

nos topônimos locais, muitas vezes testemunhas do silêncio. Testemunhas de um período em

que longe da “civilização”, aromas e paisagens3 se confundiam, para mais tarde aliados a fé

cristã deixar evidências da luta pela sobrevivência e adaptação diante a nova ordem social

imposta nos idos dos oitocentos e cosolidada pela lavoura cafeeira.

Ocupação territorial e as transformações na História: Batizei Firmino, pury em meados

do século XIX. Agostinho, o caboclo atravessou as janelas do tempo.

Santo Antônio do Muriahé, atual cidade de Mirai - MG, na Zona da Mata Leste de

Minas Gerais pertenceu ao território de São Paulo do Muriahé no último quarto do século

XIX (1865)4 e a partir de 1875, após breve anexação ao município de Ubá5, o distrito de Santo

Antônio6, por força de Lei da Assembleia Mineira7 passa a pertencer ao território da Villa de

Cataguazes. Região de montanhas e provavelmente um dos últimos refúgios dos índios

denominados Purys, do troco linguístico Macro-Jê.

“A região da atual Zona da Mata era toda conhecida pelo nome de sertões de leste”

(RODRIGUES, 2003). Nesta área “os montes e os morros eram ainda encobertos pela mata

virgem8” (GUIMARÃES, 2006:199). De acordo com Marcia Amantino, “com o inicio da

3 As paisagens tomadas como verdadeiras de nossas vidas cotidianas estão cheias de significado. Grande parte da Geografia mais interessante está em decodificá-las. (...) Porque a geografia esta em toda parte, reproduzida diariamente por cada um de nós. A recuperação do significado em nossas paisagens comuns nos diz muito sobre nós mesmos. Uma geografia efetivamente humana crítica e relevante, que pode contribuir para o próprio núcleo de uma educação humanista: melhor conhecimento e compreensão de nós mesmos, dos outros e do mundo que compartilhamos. (Cosgrove, 1999, p. 121) 4 As referencias são confusas, contudo, ao que nos parece, o pequeno povoado foi anexado em 16 de maio de 1855, pela “Lei nº. 724” com a criação da vila de São Paulo do Muriahé desmembrada de São João Batista do Presídio. 5 No ano de 1871 o distrito foi elevado à categoria de “Freguesia” passando a pertencer por força da lei nº 1.901 publicada a 19 de julho de 1872 ao município de Ubá. 6 Em 1859 por decreto da Lei nº 998 o pequeno povoado, até então denominado Arraial do Brejo, é elevado à categoria de Distrito de Paz adota o nome de “Santo Antonio”, padroeiro da localidade. 7 Foi criada a villa de Cataguazes em 1875 , pela lei da assembleia mineira nº 2180 de 25/11/1875, aparecendo constituído de 3 (três) distritos sendo Cataguazes, Santo Antônio do Muriahé e Espírito Santo do Empossado. 8 Segundo Warren Dean, a ocupação destas áreas, anteriores à chegada da colonização desbravadora já não possuiria uma manta original da primeira Mata Atlântica. Para saber mais, “A Ferro e Fogo”.

3

diminuição das jazidas auríferas, houve um contínuo, porém lento, deslocar populacional para

essa região em busca de melhores condições de vida”. E acrescenta:

(...) é importante destacar que, durante o século em questão, novas áreas foram

desbravadas e ocupadas por fazendeiros que abandonaram o Vale do Paraíba

Fluminense e se estabeleceram na Zona da Mata Mineira, ou mesmo deslocaram de

uma região de Minas Gerais para essa mesma área de colonização mais recente e,

consequentemente, com terras disponíveis. (AMANTINO, 2012:13)

Portanto, as incursões denominadas “centrifuga” (ANDRADE, 2012:77) no final do

século XVIII e inicio do XIX dá inicio a ocupação das terras e consequente ampliação de

fronteiras9 para o plantio de lavouras pelos “novos controladores”10 ocasionando na região a

aproximação das etnias formadoras da futura sociedade do local, que, segundo Darcy Ribeiro,

no caso do Brasil, se insere no conjunto dos “povos novos”11, onde o nativo, o negro e o

branco livre ou senhorio, se ajuntam no mesmo espaço, sendo que ao primeiro restou o

domínio e perda de suas terras12. Haruf Salmen Spindola reforça a condição propícia desta

aproximação. Segundo o autor:

Os Puri habitavam também os vales dos rios Muriaé, Casca e Matipó e o sul do

Espirito Santo (...). Em 1815, foi nomeado o primeiro subdiretor para esses índios,

dando-se inicio ao trabalho de contato e atração. Foram criados os aldeamentos de

Manoelburgo, Meia Pataca, Abre Campo, entre outros, abrindo-se caminho para a

ocupação econômica mais intensa da região. Esses grupos entraram em processo de

aculturação, porém continuaram resistindo a viver somente da agricultura, pois

esta os condenava ao sedentarismo. (ESPINDOLA, 2005:147)

De acordo com o decreto Imperial nº 42613, “o direito a terra não provinha da condição

nativa, de primeiro ocupante” (MACHADO, 2007:331). A chegada do novo sitiante na região

começa a alterar as estruturas socioculturais da população nativa da região do Meia Pataca,

núcleo formador da então Villa de Cataguazes, e nova sede administrativa do distrito de Santo

9 Marcia Amantino apresenta definições a respeito. “O Mundo das Feras”. Págs. 166-167. 10 Amantino se refere às regiões ocupadas pelo colonizador como regiões controladas – “O Mundo das Feras”. 2008 11 Darcy Ribeiro apresenta a formação dos povos latino-americanos reservado atenção especial ao Brasil. 12 Vitória Schettini apresenta relato de Sebastião Fontoura, nascido em 1929 e descendentes de índios purys, cujo avô perdeu as terras colocadas à venda e terminou a vida dependendo do novo dono. ANDRADE, 2012. Pág. 102. 13 Decreto nº 426. Marina Monteiro Machado discute sobre a questão das terras indígenas no Império Brasileiro. Págs. 321-347.

4

Antônio do Muriahé. Famílias vindas das regiões em declínio da extração aurífera iniciaram

as atividades agrícolas na área ocupada organizando a essência formadora da sociedade local,

uma vez que:

A fazenda constitui a instituição básica modeladora da sociedade brasileira. Em

torno dela é que se organiza todo o sistema social como um corpo de instituições

auxiliares, de normas, de costumes e de crenças destinadas a preencher suas

condições de existência e de persistência. Até mesmo a família, o povo e a nação

surgem e se desenvolvem como resultantes da fazenda e, nessa qualidade, por ela

conformados. (RIBEIRO, 2007:210)

A historiografia descreve a situação geográfica, social e econômica da região da Mata

Leste de Minas Gerais durante e após o período de ocupação no século XIX. As historiadoras

Vitória Fernanda Schettine Andrade e Márcia Amantino em recente obra14 bibliográfica nos

apresentam a configuração destas paragens Mineiras. Amantino apresenta a formação das

estruturas vindouras com as famílias e seus patriarcas se instalando em uma região por fim

habitada15. Vitória Schettini entende ser “perceptível que, tão logo as fronteiras do leste

mineiro fossem abertas para a ocupação, o numero de tensões entre índios e brancos

aumentariam, principalmente nas áreas demarcadas para os nativos” (ANDRADE, 2012:91).

Entretanto, as relações de convivência logo se estabeleceram “no processo de

desbravamento e alargamento da fronteira agrícola” (CONSENZA; MELO, 2008:54). Para

região não tardaria a majestosa cultura do café. Necessários à força de produção da lavoura

cafeeira no Império do Brasil, o escravo negro se insere na conjuntura socioeconômico.

Gilberto Freire em Casa Grande e Senzala reflete a miscigenação ocorrida quando diz que

“todo brasileiro, mesmo o alvo de cabelo louro, traz na alma, quando não na alma e no corpo,

a sombra ou pelo menos a pinta do indígena ou do negro...”. (FREIRE, 2006:5). A região de

Santo Antônio do Muriahé, não foge a observação do autor. Com a chegada do posseiro

(colonizador) e a aquisição de terras, o trabalho escravo se coloca ao lado da presença nativa.

14 Zona da Mata Mineira: escravos, família e liberdade. apicuri. 2012. 15 Referência à existência dos grupos nativos existentes na região que pode ser constada nos registros de batismo da Paróquia Santo Antônio, na atual cidade de Mirai – MG.

5

Márcia Amantino apresentando as novas estruturas formadas na região traz em seu

trabalho a organização da família Resende16, no território da Villa de Cataguazes no século

XIX. Remanescentes dos gentios do Sertão, os nativos da região se inserem no espaço social

aproximando-se de cativos e proprietários de terras. Aproximação em particular da família

Vieira Resende que nos registros de batismos realizados na então Capela de Santo Antônio do

Muriahé se apresentam em 22 oportunidades segurando nos braços o que havia “no ventre das

mulheres indígenas” (RIBEIRO,1986 apud NEVES; KAUSS, 2011:85). Assim, “(...)

começavam a surgir seres que não eram índios (...). O que era? Era uma gente “ninguém”, era

uma gente vazia. O que significavam eles do ponto de vista ético? Eles seriam a matéria com

a qual se faria no futuro os brasileiros...” (RIBEIRO,1986 apud NEVES; KAUSS, 2011:85).

Derivada da contribuição de todos os seus membros e na constante

deculturação/aculturação (RIBEIRO, 1996: 34-36) a sociedade busca novos valores e se

distancia de suas raízes. Na luta pela sobrevivência, os grupos nativos da localidade começam

a trilhar os caminhos que os levariam à nova formação social.

Ano

TABELA 01 – REGISTROS DE BATISMO – CAPELA DE SANTO ANTÔNIO DO MURIAHÉ – 1866 A 1900 – LIVRO 01 A 05

Natural

Ex-escravos

Não id.

Legitimo

Escravos

Libertos

Escravo

c/liberto

Nativo

Expurgado

Enjeitado

Mãe Pai/mãe Mãe Pai/mãe Mãe Pai/mãe Mãe Pai/mãe Mãe Pai/mãe

1866 - - - - - 27 4 1 - - - - 1 - -

1867 6 5 - - - 93 13 3 - - - 4 - - -

1868 3 2 - - - 30 8 7 - - - 3 - - -

1869 5 - - - - 39 4 6 - 1 - - 1 - -

1870 2 - - - - 35 7 3 1 - - 3 - - -

1871 3 3 - - - 47 15 4 1 - - 4 - - -

1872 3 12 - - - 37 11 10 - - - 3 1 - -

1873 2 36 - - - 9 11 7 - - - 3 2 - -

1874 2 62 - - - 2 9 11 - - - 9 - - 1

1875 5 69 - - - 13 - 10 9 - - 3 - - -

1876 2 61 - - - - 8 10 - - - 4 - - -

1877 2 81 - - - 1 21 9 1 - - 4 1 - -

1878 1 26 - - - 4 - - - - - 1 - - -

1879 16 129 - - - - - - 2 - - 8 4 - -

1880 3 83 - - - - - 1 4 1 - 5 - - -

1881 3 98 - - - - 1 1 9 1 - 7 - - -

1882 21 88 - - - - 3 5 - 1 - 2 - - -

1883 14 106 - - - 1 17 12 - - - 7 - - -

1884 12 112 - - 1 1 15 10 - - - 3 - - 3

1885 5 128 - - - - 15 11 - 1 - 7 - - 2

1886 5 108 - - 1 4 40 9 1 - 1 10 - - 1

16 Nos livros de batismo encontramos “Resende” no lugar de Rezende.

6

1887 15 151 - - 4 1 14 4 - - 1 5 - - -

1888 7 156 9 6 - 5 3 - 12 8 - 9 - - -

1889 5 234 5 3 4 - - - 4 4 - 6 - - -

1890 13 205 - - - 6 - - - 4 - 1 - - -

1891 20 214 - - 3 - - - - 2 - 2 - - -

1892 19 248 - - 1 1 - - - 1 - 2 - - -

1893 24 235 - - - 11 - - - 2 - 2 - - 1

1894 17 165 - - - 93 - - 1 - - - - - -

1895 22 146 - - - 140 - - - - - 4 - - -

1896 20 145 - - - 138 - - - - - 1 - - -

1897 23 150 - - 1 105 - - - - - - - - 1

1898 23 145 - - 2 153 - - - - - - - - -

1899 18 5 - - 1 274 - - - - - - - - -

1900 18 2 - - - 292 - - - - - 1 - - -

Total 359 3.410 14 9 18 1.562 219 134 45 26 2 122 10 - 9

% 6,04 57,45 0,23 0,15 0,3 26,5 3,6 2,25 0,7 0,45 0,03 2,05 0,1 - 0,15

Data: 13/04/2014 Total geral 5.939 100 %

Primeiros habitantes da localidade e inseridos ao novo sistema socioeconômico, a

A presença dos índios Purys e Croatos no inicio da formação da sociedade do Arraial

do Brejo17 é evidenciada duas décadas mais tarde pelos registros de batismo da Capela de

Santo Antônio (ver tabela 1). Embora de proporção pouco representativa na tabela se

comparada a itens como natural, escravos e legítimo, seus números são notados por

praticamente três décadas (1866 a 1893) e depois fragmentada em pequenos espaços (1894;

1897-1899) com ausência de registros. Os assentos batismais contribuem para marcar o

compasso do tempo e ajudam a demonstrar a transformação sofrida pela sociedade local

durante o período de desenvolvimento rural e urbano. Os registros ainda sugerem o

desaparecimento dos Croatos da região, tão logo o primeiro livro de batismo demonstre

necessidade de cópia devido a deterioração das folhas. A identificação Croatá torna-se

praticamente inexistente. Nota-se a generalização do termo “pury” na identificação dos pais

ou somente da mãe das crianças no momento do registro do termo de batismo.

17 O “Brejo”, como fora conhecido em sua formação após a compra e doação de 10 alqueires de terra da fazenda das Três Barras em honra ao Oráculo de Santo Antônio em 1840.

Tabela 1: construída a partir da catalogação e análise dos registros de batismo e jurisdição da Capela de Santo Antônio do Muriahé – o nome Capela de Santo Antônio do Muriahé fora mantido devido ao longo período de denominação encontrado nos livros de batismo do século XIX.

7

Toponímia e a memória do tempo. Elo de sobrevivência.

Na tentativa de localizar os remanescentes ou os descendentes destes grupos nativos, o

professor Marcos José Veroneze Soares insere em sua busca o que para muitos seria apenas

uma expressão dos tempos dos avós, principalmente das bisavós, onde a memória dos

cabelos18 é fator comum usado para designar os descendentes de Purys na região: a expressão

“pega no laço” (VERONEZE, 2009). Astor Antônio Diehl, assim como Veroneze destaca a

importância da memória, segundo Diehl:

(...) a memória está intimamente ligada às tradições familiares, grupos com suas

idiossincrasias peculiares (...) expressando assim continuidade e identidade

daquelas tradições (...). A memória, por também ter características coletivas,

assume funções tais como de identificação cultural... (DIEHL, 2002:116-117)

Para Marcos Veroneze, o resgate da memória se junta à expressão, trazendo ao

presente os fragmentos da luta pela sobrevivência dos grupos nativos ancestrais que ao longo

do tempo foram apresentados como objeto de conquista, em condição de total submissão

frente à nova ordem. Entre o espaço temporal de ocupação e as pesquisas de Veroneze esses

atores sociais integraram-se à formação das bases que formaram a sociedade contemporânea

local por se fazerem presentes antes do inicio da colonização do espaço territorial. Perfazendo

18 A expressão usada para designar a imagem presente nas memórias dos descendentes. Cabelos negros, longos e lisos.

De Firmino, filho dos índios purys Antonio e Rita,

batizado na Capela de Santo Antônio a 11 de novembro de 1866 à

imposição dos santos óleos em Silvina, a indiazinha filha de

Maria pury, na Fazenda Barro Branco em 17 de dezembro de

1883 evidenciamos a transformação imposta pela nova ordem

local, quando no apagar das luzes do século XIX encontramos o

termo de registro de Agostinho, batizado e ungido em 08 de

setembro de 1900, filho de Umbelina, apresentada no registro pelo

termo genérico de “cabocla”.

Foto 1: A capela de Santo Antônio apresenta a torre ainda sem o relógio. Data incerta.

8

os caminhos ancestrais, Marcos Veroneze apresenta o personagem obscuro que se tornou o

indígena da região da atual cidade de Mirai - MG.

Segundo o professor Marcos a identidade já frágil dos grupos étnicos considerados

inferiores pelas camadas dominantes leva à criação de uma imagem irreal dos antepassados da

terra, que devido à exposição da mídia se tornou distante da realidade, sendo comum a

associação do nativo e seus descendentes às áreas de preservação e florestas. Em suas

pesquisas ocorreram casos de pessoas entrevistados, descendentes de nativos, que apontaram

diferenças entre Purys e índios.

A sociedade de Santo Antônio do Muriahé se formou sobre as bases visíveis da

colonização e expansão territorial do século XIX. Em sua constituição e desenvolvimento a

contribuição dos nativos do Leste Mineiro. Em sua formação as tensões, as esperanças na

busca de melhores condições de vida para os colonizadores, a busca pela sobrevivência dos

“índios que existiam e ocupavam o espaço físico” (MACHADO, 2007: 333) deixando sua

marca na nova sociedade. Assim, “a urbanização, apesar de criar muitos modos citadinos de

ser, contribuiu para ainda mais uniformizar os brasileiros no plano cultural, sem, contudo,

borrar suas diferenças” (RIBEIRO, 1995: 21).

Das antigas tradições ancestrais muito se perdeu. Costumes e afazeres se confundem, e

não se apresentam conforme existiram a pouco mais de um século de ocupação. De resto nos

instiga o som proferido pela sociedade ao apontar para as formações naturais da localidade

com seus topônimos19. Situada entre as montanhas mineiras, a pequena Mirai guarda em seu

seio o que de mais modesto poderia sobreviver da memória dos primeiros ocupantes locais.

Seus habitantes atuais guardam na memória a paisagem da montanha mais alta da localidade.

O coração ancestral ali sobrevive, e o tempo mesmo de forma turva se reconstrói à sua

sombra.

Considerações Finais

A formação da sociedade brasileira pode ser definida como um mosaico cultural.

Assim é natural encontrar vestígios de grupos, os mais diversos, em suas origens.

19 Sobre a formação dos topônimos locais, Kênia Mara de Freitas Siqueira apresenta a motivação local para a formação e identificação com os nomes do lugar. ReVEL, v. 9, n. 17, 2011

9

Naturalmente esse legado é atualmente para região apresentada um dueto: o negro escravo e o

branco livre ou senhorio. À figura nativa, do pury da região, se entrega o esquecimento, a

indiferença e o esvaziamento de suas raízes.

Possuidores da terra e sendo os primeiros a plantar sobre o solo roxo na Zona da Mata

Mineira, uma das regiões que viria a ser uma das maiores produtoras de café do inicio do

século XX, o nativo se fez submisso. Sua condição selvagem aos olhos do colonizador se

tornou fator de domínio. Um sufrágio de silêncio que atravessou o tempo e ainda repousa,

mesmo que deturpada na memória de seus descendentes. O jeito simples, o olhar cálido e o

pensamento no passado à busca das fragmentadas lembranças de seus ancestrais são marcas

indeléveis impostas pelo tempo e pela necessidade de sobrevivência.

A historiografia brasileira ainda traz em sua concepção de formação social para muitos

grupos a visão elitista do heroico, do dominante. A sociedade acostumada à construção do

imaginário dos grupos dominantes é incapaz de perceber em seu meio um dos elementos de

sua formação na região da Mata Mineira: o índio. Esse personagem mítico se constrói no

imaginário com suas penas e cores, com suas danças e crenças, mas não é capaz de transmitir

a seus descendentes a identidade de seus antepassados. Ela se apresenta nos modos e

costumes, no trato da terra e no conhecimento que fora transmitido no seio da família nativa.

A família indígena, tornada cabocla e transformada em homem moderno. Detentora do

cientificismo moderno, mas vazia de seu passado por mais próximo que ele esteja. Mirai -

MG é ainda uma cidade bucólica, aprazível e acolhedora e seus ancestrais ainda vivem nos

topônimos locais.

O monte existente na localidade, em seu

silêncio é uma testemunha do tempo. Mero

espectador da transformação ocorrida em sua

sociedade e o único que, fosse possível

argumentar poderia desvendar as incertezas de

sua gente. Se na sociedade humana sobrevive

quem conta sua história, os povos nativos da

região podem ter se modificado, mas deixaram a Foto 2: Monte Camapuã – Mirai/MG Acervo – IAPED – Mirai/MG

10

sua existência encravada no monte20Camapuã. Nome de origem indígena, que significa “peito

redondo”21.

Fontes eletrônicas/digitais

Biblioteca IBGE. Mirai – Minas Gerais. Histórico. <

http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/dtbs/minasgerais/mirai.pdf>. Acesso em 04 de abril de 2014. Arquivo Público Mineiro.<

http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/modules/leis_mineiras/brtacervo.php?cid=2884>. Acesso em 04 de abril de 2014. JM1-Jornal das montanhas.< http://www.jm1.com.br/7-cidades/muriae/>. Acesso em 04 de abril de 2014 Ponto de Informação Histórica – Mirai. <http://www.pontodeinformacao.org.br/index_cidade.php?id_cid=7&lin=1>. Acesso em 04 de abril de 2014. Prefeitura Municipal de Mirai. De Arraial do Brejo a Mirai. Histórico do município. Disponível em: <http://www.mirai.mg.gov.br/conhecer_historia.asp?page_target=CONHE%C7A%20MIRA%CD.>. Acesso: 04 de abril 2014. Bibliografia

AMANTINO, Márcia. O mundo das Feras: os moradores do Sertão Oeste de Minas Gerais – Século XVIII – São Paulo: Annablume, 2008.

________________. A Escravidão em Cataguases e os cativos da família Vieira. In: Zona da Mata Mineira: escravos, família e liberdade. Orgs. Jorge Prata de Souza e Rômulo Garcia de Andrade. apicuri. 2012.

ANDRADE, Vitória Fernanda Schettini. Um olhar sobre o espaço historiográfico e geográfico de São Paulo do Muriahé: conflitos e redes de sociabilidades. In: Zona da Mata Mineira: escravos, família e liberdade. Orgs. Jorge Prata de Souza e Rômulo Garcia de Andrade. apicuri. 2012.

COSGROVE, Denis. A geografia está em toda parte: Cultura e simbolismo nas paisagens humanas. In: CORRÊA, Roberto Lobato & ROZENDAHL, Zeny (orgs.). Paisagem, Tempo

e Cultura. Rio de Janeiro: Eduerj, 1998.

20 De acordo com a drª Ana Paula de Paula Loures de Oliveira, os povos nativos da região habitavam ao redor destes montes (pontões) que eram reverenciados e elevados à condição de sagrado pelos nativos. 21 Embora o termo seja sempre classificado como proveniente da língua Tupi, Ambrosio Pereira da Silva Neto em sua dissertação de mestrado pela UNB/2007 apresenta a distribuição geográfica das línguas Macro-Jê. Os puris de acordo com Ambrosio são do tronco linguístico do leste. (SILVA NETO, 2007:13)

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