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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X DE “RAZÕES DE GÊNERO” A “RAZÕES DE CONDIÇÃO DO SEXO FEMININO”: DISPUTAS DE SENTIDO NO PROCESSO DE CRIAÇÃO DA LEI DO FEMINICÍDIO NO BRASIL Clara Flores Seixas de Oliveira 1 Resumo: Esta pesquisa analisa o processo de criação da Lei nº 13.104/2015, que inseriu a categoria feminicídio no código penal brasileiro, como uma modalidade de homicídio qualificado. Proposta pela CPMI que investigou a situação da violência contra a mulher no país, esta lei foi fruto de uma construção coletiva de ONGs e movimentos feministas, órgãos do executivo, organizações internacionais, grupos acadêmicos e setores do sistema de justiça. Seguindo uma tendência internacional, o projeto de lei inicial definia o feminicídio como a forma extrema de violência de gênero que resulta na morte da mulher, selecionando determinadas circunstâncias que caracterizam este crime e o diferenciam dos demais homicídios. No decorrer do processo legislativo, contudo, houveram algumas alterações no projeto inicial, que revelam processos de disputa em torno do alcance e do significado das categorias contidas na lei. Este artigo apresenta algumas reflexões sociológicas em torno das disputas de sentido que se deram neste processo, com ênfase na transição de “gênero” para “sexo”, operada a partir de uma “emenda de redação”, na Câmara de Deputados. Toma-se como aporte as diversas teorias feministas que discutem a distinção sexo/gênero, a literatura específica sobre femicídio/feminicídio e os crimes de gênero, considerando também as especificidades da atual conjuntura do Congresso Nacional brasileiro, em que o gênero traduzido pejorativamente como “ideologia de gênero” – figura como verdadeiro tabu. Palavras-chave: Feminicídio. Criação de lei. Disputas de sentido. Sexo e gênero. INTRODUÇÃO Em março de 2015, foi sancionada no Brasil a Lei nº. 13.104, que inseriu a categoria feminicídio no código penal como uma nova modalidade de homicídio qualificado. O projeto de lei (PL) tipificando o feminicídio foi uma das proposições da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) criada em 2013 para investigar a situação da violência contra a mulher no país, e o processo de elaboração da lei envolveu diversos setores, como órgãos do executivo e do sistema de justiça, organizações internacionais, pesquisadoras, ONGs e movimentos feministas. Ao aprovar a lei, o Brasil segue orientações expressas das Nações Unidas e acompanha uma tendência internacional de tipificação do feminicídio, sobretudo no contexto da América Latina.No decorrer do processo legislativo, houveram algumas modificações no texto da lei, quanto à definição de feminicídio e das circunstâncias que o identificam, além da introdução de algumas causas de aumento de pena. 1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciência Sociais da Universidade Federal da Bahia, Salvador. Pesquisadora do Laboratório de Estudos sobre Crime e Sociedade (LASSOS/UFBA).

DE ³RAZÕES DE GÊNERO A ³RAZÕES DE … · literatura específica sobre femicídio ... Ao longo do relatório final da CPMI da violência doméstica ... não haveria um nome pra

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13thWomen’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

DE “RAZÕES DE GÊNERO” A “RAZÕES DE CONDIÇÃO DO SEXO

FEMININO”: DISPUTAS DE SENTIDO NO PROCESSO DE CRIAÇÃO DA

LEI DO FEMINICÍDIO NO BRASIL

Clara Flores Seixas de Oliveira1

Resumo: Esta pesquisa analisa o processo de criação da Lei nº 13.104/2015, que inseriu a categoria

feminicídio no código penal brasileiro, como uma modalidade de homicídio qualificado. Proposta

pela CPMI que investigou a situação da violência contra a mulher no país, esta lei foi fruto de uma

construção coletiva de ONGs e movimentos feministas, órgãos do executivo, organizações

internacionais, grupos acadêmicos e setores do sistema de justiça. Seguindo uma tendência

internacional, o projeto de lei inicial definia o feminicídio como a forma extrema de violência de

gênero que resulta na morte da mulher, selecionando determinadas circunstâncias que caracterizam

este crime e o diferenciam dos demais homicídios. No decorrer do processo legislativo, contudo,

houveram algumas alterações no projeto inicial, que revelam processos de disputa em torno do

alcance e do significado das categorias contidas na lei. Este artigo apresenta algumas reflexões

sociológicas em torno das disputas de sentido que se deram neste processo, com ênfase na transição

de “gênero” para “sexo”, operada a partir de uma “emenda de redação”, na Câmara de Deputados.

Toma-se como aporte as diversas teorias feministas que discutem a distinção sexo/gênero, a

literatura específica sobre femicídio/feminicídio e os crimes de gênero, considerando também as

especificidades da atual conjuntura do Congresso Nacional brasileiro, em que o gênero – traduzido

pejorativamente como “ideologia de gênero” – figura como verdadeiro tabu.

Palavras-chave: Feminicídio. Criação de lei. Disputas de sentido. Sexo e gênero.

INTRODUÇÃO

Em março de 2015, foi sancionada no Brasil a Lei nº. 13.104, que inseriu a categoria

feminicídio no código penal como uma nova modalidade de homicídio qualificado. O projeto de lei

(PL) tipificando o feminicídio foi uma das proposições da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito

(CPMI) criada em 2013 para investigar a situação da violência contra a mulher no país, e o processo

de elaboração da lei envolveu diversos setores, como órgãos do executivo e do sistema de justiça,

organizações internacionais, pesquisadoras, ONGs e movimentos feministas. Ao aprovar a lei, o

Brasil segue orientações expressas das Nações Unidas e acompanha uma tendência internacional de

tipificação do feminicídio, sobretudo no contexto da América Latina.No decorrer do processo

legislativo, houveram algumas modificações no texto da lei, quanto à definição de feminicídio e das

circunstâncias que o identificam, além da introdução de algumas causas de aumento de pena.

1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciência Sociais da Universidade Federal da Bahia, Salvador.

Pesquisadora do Laboratório de Estudos sobre Crime e Sociedade (LASSOS/UFBA).

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Destaca-se a substituição, no plenário da Câmara de Deputados, da expressão “razões de gênero”

por “razões de condição do sexo feminino”.

Apresento aqui as primeiras análises daminha pesquisa de mestrado, que tomou como objeto

de investigação sociológica o processo de criação da lei do feminicídio, buscando compreender

como o sistema político recepcionou, traduziu e processou a demandapela tipificação do

feminicídio e como, no decorrer do processo de elaboração da lei, foram construídos sentidos em

torno das categorias legais. Para este trabalho, o objetivo é discutir algumas disputas de significado

que se deram neste processo, com ênfase na transição de gênero para sexo.

Os métodos utilizados foram análise documental e entrevistas qualitativas. O corpus

empírico foi composto basicamente de documentos legislativos referentes ao processo de tramitação

da lei, como o relatório final da CPMI da Violência contra a Mulher, o PL e seus substitutivos; os

pareceres; as notas taquigráficas das discussões em plenário e em audiência pública etc. Foram

realizadas 12 entrevistas qualitativas semiestruturadas com interlocutoras que participaram do

processo de criação da lei, sendo 5 parlamentares (3 deputadas e 2 senadoras); 3 militantes

feministas; 2 pesquisadoras do tema e 2 juristas do sistema de justiça. A utilização da entrevista

como método de pesquisa parte da compreensão de que, embora o processo legislativo seja, a priori,

de ordem pública e documentado, existem nuances que não se deixam apreender pela leitura dos

documentos oficiais, sendo necessário combinar a análise documental com outros métodos para ter

uma melhor visão do processo. Quanto aos compromissos éticos da pesquisa, ressalto que foi

assinado termo de consentimento livre e esclarecido e garantido o anonimato a todas as

participantes, de modo que estas são identificadas, neste trabalho, pela categoria a que pertencem

(parlamentares, militantes etc.) seguida por letras (A, B, C etc.).

É importante explicitar que todas as pessoas entrevistadas são mulheres e que têm, em maior

ou menor grau, um histórico de atuação voltada para as questões de gênero e de combate à violência

contra as mulheres. Tentei agendar entrevistas com parlamentares que se posicionaram contrários à

lei e que apresentaram contrapropostas, porém não obtive sucesso. Assim, as minhas entrevistadas,

embora falem desde lugares diferentes, de experiências profissionais e de vida diversas, são pessoas

que compartilham de alguns sentidos e visões de mundo comuns quanto aos problemas enfrentados

nessa pesquisa. Nos documentos, por outro lado, consigo ouvir vozes que não compartilham

necessariamente esses sentidos.

A PRODUÇÃO DE SENTIDOS EM TORNO DO FEMINICÍDIO

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Não cabe, nesta exposição, falar sobre o surgimento do conceito de feminicídio e as suas

diferentes acepções. O que nos interessa aqui é perceber como, no decorrer do processo político de

elaboração da lei no Brasil, são construídos significados em torno desta categoria. Varikas (2016,

p.26) diz que “as ideias, quando viajam, emprestam itinerários manifestamente mais tortuosos e

imprevisíveis do que os humanos”. Assim, busco acompanhar a viagem percorrida pela palavra

feminicídio pelo parlamento brasileiro, até chegar à formulação final do texto legal, para perceber

como se dá o processo de construção de sentidos, ou, como propôs Jenness (1999) no seu estudo

sobre crimes de ódio no congresso norteamericano, as formas como determinadas ideias são

montadas, reunidas, apresentadas e processadas dentro da arena da produção de leis.

Ao longo do relatório final da CPMI da violência doméstica (BRASIL, 2013), tomado como

marco inicial desta viagem da palavra feminicídio, pode-se encontrar diferentes concepções de

feminicídio, como: “o assassinato de mulheres pelo fato de serem mulheres” (p.7); “termo cunhado

para denominar a eliminação sistemática de mulheres” (p.975); “forma extrema de violência de

gênero contra as mulheres” (p.998); “mortes de mulheres baseadas no gênero” (p.564); “assassinato

relacionado a gênero” (p.1003); “instância última de controle da mulher pelo homem” (p.1003);

“prática [...] antecedida pela clássica ameaça ‘se não ficar comigo, não ficará com mais ninguém!’,

que compõe um sentimento de poder masculino.” (p.975); ou, apenas, “homicídios de mulheres”

(pp. 339; 341; 342). Da leitura do documento, então, depreendem-se entendimentos diversos do

feminicídio, que vão desde interpretações amplas, em que se toma como feminicídio qualquer

assassinato de mulheres; passando pela compreensão do feminicídio como fenômeno relacionado ao

gênero, até interpretações mais restritas, que parecem compreender como feminicídio apenas os

feminicídios íntimos, isto é, praticados no contexto de relações afetivas. De toda sorte, é possível

observar que expressões que compõem a semântica feminista – como gênero; (des)igualdade de

gênero; dominação masculina; sexismo; misoginia; patriarcado – são mobilizadas para conferir

sentido ao feminicídio e justificar a importância de ter um nome próprio para esse fenômeno.

No PL que se encontra ao final do relatório – PL do Senado nº. 292/2013 –, juntamente com

outros projetos relacionados à questão da violência contra a mulher, o feminicídio foi definido

como “a forma mais extrema de violência de gênero que resulta na morte da mulher”, quando

presentes alguma das seguintes circunstâncias: relação íntima entre vítima e agressor, prática de

violência sexual e/ou mutilação ou desfiguração da vítima. Nessa primeira operação de seleção de

significado, então, optou-se por vincular nominalmente o tipo penal à expressão ‘violência de

gênero’, seguindo o exemplo da lei mexicana (Ley General de Acesso de lasMujeres a uma Vida

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Libre de Violencia), que também definea violência feminicida como uma forma extrema de

violência de gênero contra as mulheres. As circunstâncias escolhidas para caracterizar este crime

estão em consonância com o diagnóstico apresentado pela CPMI, que afirma que a maior parte das

mulheres morre no contexto das relações afetivas e que, muitas vezes, a crueldade dos crimes se

inscreve nos corpos violentados das mulheres.

O PL foi enviado à Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado (CCJ), onde,

após a realização de uma audiência pública, recebeu parecer favorável da relatora, acompanhado

por uma emenda substitutiva, que definiu o feminicídio como o homicídio “cometido contra a

mulher por razões de gênero”, compreendendo-se que há razões de gênero quando presentes

algumas das seguintes circunstâncias: violência doméstica ou família, nos termos da legislação;

violência sexual; mutilação ou desfiguração da vítima e/ou emprego de tortura ou qualquer meio

cruel ou degradante. A legislação de referência para a primeira circunstância é a Lei Maria da

Penha, que define violência doméstica e familiar contra a mulher como qualquer ação ou omissão

baseada no gênero que cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual, psicológico, dano moral ou

patrimonial, ocorridas no âmbito da unidade doméstica, da família, ou de qualquer relação íntima de

afeto (art.5º).

Ainda na CCJ, foi apresentada outra emenda, de autoria do senador Aloysio Nunes (PSDB-

SP), que, ao invés de tipificar apenas e expressamente o feminicídio, propôs a inserção de uma

circunstância qualificadora ampla para o crime de homicídio, quando cometido “por preconceito de

raça, cor, etnia, orientação sexual e identidade de gênero, deficiência, condição de vulnerabilidade

social, religião procedência regional ou nacional, ou por outro motivo torpe; ou em contexto de

violência doméstica ou familiar”. O argumento utilizado foi de que a proposta deveria ser ampliada

para abranger a proteção a crimes cometidos contra outros setores da sociedade que também se

encontram desprotegidos pela legislação defasada. A proposta, contudo, não foi bem aceita pelos

setores empenhados na aprovação da lei, que a encararam como uma forma de resistência à

necessária visibilização específica do feminicídio e acentuaram a necessidade de ter a palavra no

código penal:

[...] o que se discutiu na época é que essa proposta novamente colocaria na

invisibilidade a questão do gênero, que era o que se queria desde o início que

fosse trabalhado com o nome feminicídio. O que tava em questão não era um

aumento de pena, ou um agravamento da pena para a morte de mulheres pro

homicídio de mulheres, mas que se pudesse associar o nome feminicídio à

violência decorrente da desigualdade de gênero e que isso era importante constar

no texto legislativo. E a proposta do Aloysio fazia justamente com que isso se

perdesse novamente, né, não haveria um nome pra chamar essa violência, e

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gênero se diluiria aí novamente junto com as outras categorias de diferença

social, de discriminação e diferença social. Então foi bastante debatido na época

por essa razão, e se fixou muito a importância de se adotar o nome. O nome,

desde sempre, foi muito importante [...]. (Pesquisadora A, entrevista, 2017).

A importância dada ao ato de nomeação – através da legislação, veículo por excelência de

produção de discursos oficiais – do assassinato de mulheres enquanto feminicídio nos remete a

Bourdieu (1998, p.142), quando afirma que, diante da pluralidade de visões de mundo existentes, os

grupos sociais travam lutas simbólicas pela produção e imposição de uma visão de mundo legítima.

[...] o conhecimento do mundo social e, mais precisamente, as categorias que o

tornam possível, são o que está, por excelência, em jogo na luta política, luta ao

mesmo tempo teórica e prática pelo poder de conservar ou de transformar o mundo

social conservando ou transformando as categorias de percepção desse mundo.

Nesta disputa, prevaleceu a posição que garantia a inserção do termo feminicídio, sendo

rejeitada a emenda do senador Aloysio Nunes e aprovado o PL na CCJ nos termos do parecer. No

retorno ao plenário do Senado, foi apresentada uma nova emenda, que manteve a definição geral de

feminicídio e agrupou as circunstâncias “violência sexual” e “mutilação ou desfiguração da vítima”

sob a fórmula “menosprezo ou discriminação à condição de mulher”. A justificativa foi que essa

expressão abarca as duas circunstâncias, além de descrever “outras situações de violência de gênero

em que a mulher é discriminada ou tratada como mero objeto”. Foram adicionadas também causas

de aumento de pena, para os casos em que o crime for praticado durante a gestação ou nos 3 meses

após o parto; contra pessoa menor de 14 anos ou maior de 60, ou com deficiência, ouna presença de

descendente ou ascendente da vítima. Os objetivos das causas de aumento de pena seriam proteger a

vítima que se encontra em situação de vulnerabilidade e preservar a integridade psicológica da

família da vítima, sobretudo das crianças. Esta versão foi aprovada no Senado e, então, a matéria foi

remetida à Câmara de Deputados.

Por fim, no plenário da Câmara, o PL sofreu uma emenda de redação – emenda que visa

sanar vício de linguagem, incorreção de técnica legislativa ou lapso manifesto da proposição2 – que

substituiu a expressão “razões de gênero” por “razões de condição do sexo feminino”. Mas como a

palavra gênero, que esteve no centro da rede de significados que acompanhou as definições em

torno do feminicídio durante todo o processo de elaboração da lei foi excluída “aos 45 do segundo

tempo”, por uma emenda de redação, sem que houvesse maiores discussões sobre o tema? Para

entender melhor este processo, é necessário compreender um pouco a atual conjuntura do congresso

nacional brasileiro.

2 De acordo com o art. 118 do Regimento Interno da Câmara de Deputados.

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A “GENEROFOBIA” NO PARLAMENTO BRASILEIRO

Em 2014, no contexto de discussão no parlamento sobre o Plano Nacional de Educação

(PNE) – lei que institui as metas e diretrizes para a educação–, instaurou-se uma forte polêmica em

torno da menção às questões de gênero e sexualidade no texto legal. Setores assumidamente

conservadores, sobretudo ligados a igrejas católicas e evangélicas, articularam-se para barrar a

utilização da palavra gênero na lei, sob o argumento de estarem combatendo a “ideologia de

gênero”. Houve diversas mobilizações, com abaixo-assinados, distribuição de vídeos e cartilhas e os

termos acabaram sendo retirados do PNE, mas essa resistência à palavra gênero se estendeu a

diversos outros projetos de lei que tramitam na casa. Foi nesse contexto que se deu a retirada do

termo gênero da lei do feminicídio, em 2015. As parlamentares entrevistadas relatam este cenário,

descrevendo-o como uma “guerra contra a palavra gênero” ou como uma “generofobia”, uma “nova

fobia morfológica”.

As interlocutoras relatam que essa interdição à palavra gênero foi imposta pelo então

presidente da Câmara, o deputado Eduardo Cunha(PMDB-RJ), como uma condição para a

aprovação da lei: “[...] ele seria retirado de pauta, que foi assim a ameaça que o Cunha fez, ‘eu

retiro de pauta, não aprovo’.” (Parlamentar B, entrevista, 2017). A solução pela substituição de

gênero por sexo feminino teria sido, assim, fruto de uma negociação entre esses setores e a bancada

feminina, como forma de garantir a aprovação da lei.

A contínua resistência à palavra gênero levou à realização de uma audiência pública, em

agosto de 2016, especificamente para debater seus significados, solicitada pela Comissão de Defesa

dos Direitos da Mulher da Câmara de Deputados. O registro em áudio desta audiência, disponível

no site da Câmara, compôs o corpus empírico da pesquisa, sendo de fundamental importância,

tendo em vista que a retirada da palavra gênero, operada por uma emenda de redação em plenário,

não se encontrava justificada em nenhum documento referente ao processo legislativo da lei do

feminicídio. Como já explicitado, não pude entrevistar os parlamentares empenhados em retirar a

palavra gênero, logo, a análise deste documento pôde fornecer pistas acerca dos sentidos atribuídos

a gênero e a sexo por parte destes sujeitos e quais os objetivos pretendidos com essa retirada.

Busquei, então, analisar o corpus empírico guiada pelas seguintes questões: que sentidos ambos os

lados deste confronto atribuem às categorias de gênero e sexo? O que exatamente se está

negociando quando se negocia a substituição de gênero por sexo feminino?

O Padre Paulo Ricardo de Azevedo, na audiência pública sobre a palavra gênero, descreve o

processo através do qual a palavra sexo foi sistematicamente substituída por gênero, no contexto

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internacional, como um “[...] vírus que foi introjetado na agenda da verdadeira defesa do direito das

mulheres, de uma forma que ela foi raptada para fazer uma outra coisa, que é desconstruir a família

natural, nessa complementariedade de homem e de mulher que gera a vida [...]” (BRASIL, 2016). A

palavra gênero é vista como portadora de um significado oculto que revela um projeto de destruição

da família e de negação das diferenças sexuais entre homens e mulheres que sustentam a “família

natural”:

Numa aparente vontade de defender o direito da mulher, o que se estava fazendo

era uma outra coisa: destruir a família. E aqui que está a realidade, e aqui que está

o problema. Então querem defender o direito das mulheres? Façam o seguinte:

quando querem defender o direito das mulheres, usem a palavra ‘mulher’, usem a

palavra ‘sexo’, mas por que que os ideólogos e os militantes não vão aceitar que as

senhoras legisladoras coloquem a palavra mulher, coloquem a palavra sexo e não a

palavra gênero? Por que?! Porque a finalidade não é defender a mulher! A

finalidade é raptar a causa da mulher para uma outra agenda, uma agenda

escondida: a agenda de gênero. A agenda de destruição da família natural.

(ibidem).

É interessante notar como a oposição entre quem defende e quem contesta o uso da palavra

gênero é representada pela distinção entre “ideólogos e militantes” e “senhoras legisladoras”. Na

estratégia discursiva de deslegitimar o uso do gênero, a representação daqueles que são contrários à

palavra como defensores da família parece ser atualizada aqui na figura das “senhoras legisladoras”.

Essa identificação dos estudos de gênero como ideologia aparece também na fala do professor

DomênicoSturiale:

Me parece que esses estudos tenham um certo viés ideológico, por isso, é até certo

ponto justificável chamá-los de ideologia ou ideologias, quem sabe, de gênero.

Afinal de contas, o que é uma ideologia? É um sistema de ideias sem base

científica, sem suporte empírico experimental, que se apresenta como uma visão

abrangente, exaustiva da realidade, que tem um sonho, tem uma utopia, e quer

revolucionar o presente para chegar a essa utopia. [...] Na realidade, os estudos de

gênero não têm nenhuma evidência empírica experimental. Não só não têm, como

eles fazem questão de não ter né, que possa sustentar a teoria deles. E por que

fazem questão de não ter? Porque a maior parte deles tem uma procedência

foucaultiana, e o que que diz Foucault? Foucault diz que tudo é discurso, que não

há realidade, ou se há, não há como ter acesso a ela. Então, tudo se resolve no

discurso, na narrativa, e o discurso dos cientistas, falo dos cientistas das áreas

naturais, são os discursos a serviço de um sistema opressor, né. Então não adianta

eu aqui vir com pesquisas que demonstram, que coloquem evidências contra os

estudos de gênero. (BRASIL, 2016).

O professor utiliza, então, a distinção ciência/ideologia para diferenciar sexo de gênero. Essa

parece ser uma distinção central para esta maneira de observar o problema, visto que a expressão

“ideologia de gênero” é recorrente nos discursos contrários ao uso da palavra. Sendo um “sistema

de ideias sem base científica”, os estudos de gênero são compreendidos como uma ideologia a

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serviço de uma utopia de revolucionar o presente. Aqui, a ideia de ciência é identificada com um

paradigma das ciências naturais, como fica bem claro nos trechos: “suporte empírico experimental”,

ou, ainda, “falo dos cientistas das áreas naturais”. Às ciências humanas em geral parece ser negado

o próprio status de ciência. Essa distinção é retomada, embora de forma diversa, na fala da deputada

Soraya Santos (PMDB-RJ):

Nós temos alguns projetos de lei que precisam ser avançados, mas que acabam

esbarrando nessas questões de discussão ideológica e discussão ideológica que não

podem estar sendo tratadas aqui. Discussão ideológica tem que ser tratada lá na

universidade. Aqui nós temos que ter leis muito claras. (BRASIL, 2016).

Aqui, a identificação das questões de gênero enquanto ideologia é uma forma de justificar a

exclusão desse tema dos debates parlamentares, relegando-o ao espaço da universidade. Além de

representar um projeto de destruição da família, a “ideologia de gênero” também serviria para negar

as diferenças sexuais:

Então, em que acredita a ideologia de gênero? Acredita que a minha natureza, o

meu sexo, não sejam importantes para definir a minha identidade, minha orientação

ou opção sexual, e acredita também que a diferença sexual entre homem e mulher

não seja importante, necessária, fundamental, condição sinequa non para a

constituição de uma família [...].(ibidem, fala do Professor DomênicoSturiale).

Nessa fala, é possível identificar aproximações nos sentidos de gênero atribuídos pelos lados

opostos desta “polêmica”. De fato, para aqueles setores que defendem a utilização da categoria

gênero, biologia não é destino; logo, o sexo biológico do nascimento não vincula a pessoa à

identidade ou à orientação sexual, assim como a família não é vista como necessariamente

composta por homens e mulheres. Contudo, neste outro trecho, é possível observar uma distorção

dessa ideia:

Então esse tipo de estudos mais recentes, criticam tudo que é considerado natural

ou normal, e exaltam todo tipo de sexualidade diferente da heterossexualidade.

Então, exalta a homossexualidade, bissexualidade, panssexualidade, assexualidade,

intersexualidade, polissexualidade, né. Nessas outras formas de sexualidade, a

idade dos envolvidos, o número dos envolvidos, o gênero dos envolvidos, as

relações parentais dos envolvidos nestas relações sexuais, tudo isso não conta mais

nada. (ibidem).

Nesse trecho, há uma passagem de um reconhecimento da desvinculação do sexo biológico

à orientação sexual para uma crítica ou uma recusa à heterossexualidade, e uma identificação com

fenômenos como a pedofilia (“a idade dos envolvidos”) e o incesto (“as relações parentais dos

envolvidos”). Gênero é uma palavra que, a um só tempo, parece associada a todos esses aspectos:

destruição da família; pedofilia; incesto; negação das diferenças biológicas etc. Aqui, os sentidos

atribuídos a gênero parecem confirmar as previsões de algumas das entrevistadas, quando dizem

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que: “[...] na hora que você fala gênero, na cabecinha deles vem o quê? A população LGBT!”

(Jurista B, entrevista, 2017).

Por outro lado, nos discursos que defendem a utilização da palavra gênero, acentua-se o

caráter de construção social, cultural dos papeis tidos como masculinos e feminismos na sociedade,

em contraposição a uma noção puramente biológica das diferenças entre os sexos. Gênero aparece

vinculado a expressões como: regime político; estrutura de poder; relações desiguais de poder;

desigualdades estruturais; vivências generificadas; identidades de gênero, forma como a pessoa se

enxerga e quer ser vista. A violência fatal que atinge as mulheres deve ser entendida então, sob esse

ponto de vista, no marco destas relações sociais desiguais. O feminicídio é, portanto, uma violência

de gênero. É possível observar, na fala de algumas entrevistadas, a preocupação em distinguir o

gênero do sexo no contexto da motivação da violência sofrida pelas mulheres:

[...] que é difícil eles entenderem que nós não somos discriminadas porque

nascemos mulher. Nós somos discriminadas porque existe uma construção de

gênero que subalterniza a mulher. (parlamentar B, entrevista, 2017).

Não é por questão de sexo feminino, entendeu, a construção sobre nossos corpos,

essa construção social que coloca alguns corpos mais vulneráveis que outros é

maior que o sexo, né, em si... (militante A, entrevista, 2017).

Isto é, por essa forma de observar, a violência não é resultado da mera diferença biológica

entre homens e mulheres, mas justamente desta construção social em torno das diferenças. A

mulher que “morre por ser mulher” – fórmula muito utilizada para descrever o fenômeno do

feminicídio –, não é assassinada porque nasceu biologicamente mulher, mas porque vive num

contexto social em que vigoram relações de poder desiguais entre homens e mulheres. Aqui, a fala

das interlocutoras se alinha com as discussões teóricas que deram origem ao termo feminicídio: ao

fim e ao cabo, tratava-se de dar um nome próprio para este fenômeno como forma de situá-lo num

contexto de violência de gênero, conferindo a ele um sentido político. Ou, nas palavras de Diniz et

al. (2015, p.227): “nomear o marco político da matança”.

É interessante notar que aparece, nas falas de algumas entrevistadas, o argumento de que a

resistência à palavra gênero se deve ao fato das pessoas não saberem o significado da palavra, seria

uma palavra “amaldiçoada pela ignorância”, pela desinformação, pelo desconhecimento. Contudo,

contrariando essas expectativas, os discursos em oposição ao gênero na audiência pública fazem

referência a diversos teóricos: de Marx e Engels a feministas radicais norte-americanas, como Kate

Millet e Shullamit Firestone, chegando à filósofa contemporânea Judith Butler. Não seria exato

falar então, de uma ignorância ou completo desconhecimento do tema, mas mais propriamente de

uma interpretação diferente que se dá a esses escritos. Enquanto os “contrários à ideologia de

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gênero” são acusados de ignorância, estes acusam o outro lado de ocultar o verdadeiro significado

da categoria gênero.

O quadro abaixo apresenta a síntese de alguns sentidos associados à palavra gênero,

percebidos nos discursos contrários e a favor à sua utilização:

Quadro 1 - Sentidos de gênero

Contrários ao uso

A favor do uso

Ideologia

Vírus que roubou a agenda do verdadeiro direito

das mulheres

Destruição da família natural

Negação das diferenças sexuais

Desconstrução da heterossexualidade e de todas as

identidades

Livre-arbítrio, decisão fluída, líquida, transitória

Conceito

Construção social, cultural

Regime político

Relações desiguais de poder

Desigualdades estruturais

Atribuições associadas a papeis

Identidade de gênero, forma como a pessoa se

enxerga, como quer ser visto

É possível percebe que, salvo algumas aproximações, quando os parlamentares cristãos

negociam com a bancada feminina a substituição de gênero por sexo, as partes acordantes não estão

negociando a mesma coisa, posto que partem de significados diferentes. Alvarez (2014) relata como

o gênero serviu, para o campo feminista, como um “brindingdiscourse”, um discurso que “faz

ponte”, fornece uma gramática compartilhada e facilita as traduções feministas, possibilitando a

articulação das agendas com outros atores políticos. No caso do parlamento brasileiro, contudo, há

um movimento contrário: gênero se torna a palavra que ergue muros, que dificulta a tradução das

demandas. A discussão parlamentar se descola do debate sobre a pertinência ou não do crime de

feminicídio e sobre qual a melhor maneira de caracterizá-lo e toma a forma de uma polêmica que

parte da recusa irrevogável da utilização da palavra gênero.

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13thWomen’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

REFERÊNCIAS

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From “gender reasons” to “female sex’s condition reasons”: disputes of meaning in the

creation process of the femicide’s law in Brazil

Abstract:This research analyzes the creation process of the femicide’s law (nº 13.104/2015), that

placed the “femicide” category in the brazilian criminal code, as a modality of qualified homicide.

Proposed by the parliamentary committee that inquired about the situation of violence against

women at the country, this law was the result of a collective construction of feminists NGO sand

movements, government and judiciary agencies, international organizations and academics groups.

Following an international trend, the original bill defined femicide as the extreme form of gender

violence tha tresults in the woman’s death, determining the circumstances that characterize this

crime and distinguishhes it from other homicides. However, in the course of the legislative process,

there have been some changes in the initial bill, which reveal processes of dispute over thes cope

and mening of the categories contained in the law. This article presents some sociological

reflections on the disputes of meaning that have occurred in this process, with emphasis on the

transition from "gender" to "sex", operated from an "editorial amendment" in the Chamber of

Deputies. The feminists theories that discuss the sex/gender distinction and the specific literature

about femicide and gender crimes are taken into account, as well as the specificities of the current

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13thWomen’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

Brazilian Congress, where the gender - pejoratively converted into "genderideology" - figures as a

real taboo.

Keywords: femicide; lawmaking; disputes ofmeaning; sex andgender.