De Reinados e de Reisados

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    JULIANA APARECIDA GARCIA CORRA

    DE REINADOS E DE REISADOS:FESTA,VIDA SOCIAL E EXPERINCIA COLETIVA EM

    JUSTINPOLIS/MG

    UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

    BELO HORIZONTE

    2009

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    Juliana Aparecida Garcia Corra

    DE REINADOS E DE REISADOS:FESTA,VIDA SOCIAL E EXPERINCIA COLETIVA EM

    JUSTINPOLIS/MG

    Dissertao apresentada ao Programa de

    Ps-graduao em Antropologia Social da

    FAFICH/UFMG como requisito parcial

    para obteno do ttulo de Mestre em

    Antropologia.

    Orientadora: Prof. Dr. La Freitas Perez

    Belo Horizonte, MG

    2009

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    Aos meus mestres.

    Com carinho.

    Ana Lcia Modesto, Capit Luiza, CapitNenzinha(in memoriam), Capito Adelmo,Dona Edinha,Jos Moreira, La FreitasPerez, Pierre Sanchis, Saul Marins,Romeu Sabar, Seu Dirceu e Seu Zez.

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    Agradecimentos

    H alguns anos me propus lanar no desafio de entrar no campo investigativo da

    antropologia e no poderia t-lo feito melhor. Maintenan1, concluindo essa passagem,

    respiro e sinto todo o processo.

    Reconheo primeiramente, s instituies que tornaram possveis a realizao do

    mestrado. Universidade Federal de Minas Gerais, em especial ao Programa de Ps-

    Graduao em Antropologia Social pela aprovao e apoio durante o curso. Prefeitura

    Municipal de Sabar e ao Governo de Estado de Minas Gerais, em especial, pelas suas

    secretrias de educao V.Ex.as Marta DelRio e Wanessa Guimares, pela autorizao

    especial concedida para freqentar o curso. Importante acentuar que a entrada neste curso

    de mestrado foi especialmente possibilitada com o apoio dos pesquisadores e amigos:

    Prof. Jos Moreira, Wanessa Lott, Prof, Lucilene Alencar, Leonardo Jber, Lauro Barbosa que

    atuaram de forma significativa na escolha e definio do lcus de pesquisa.

    De fato, no difcil perceber como o mestrado no se faz s, esta dissertao ,

    pois, fruto de uma experincia partilhada. Falo agora das diferentes pessoas que ao seu

    modo, [estudando ou fazendo festa], ensinaram-me como esse fenmeno deve ser levado

    a srio.

    Agradeo aos professores do curso, La Perez, Pierre Sanhis e Ana Lcia Modesto

    pela dedicao, competncia e prazer na elaborao e execuo das disciplinas. A forma

    como preparam e realizam as aulas colocaram-me diante de uma leitura preciosa e

    fundamental na constituio terica desta pesquisa, afirmando o ambiente de sala de aula,

    lcus privilegiado na produo coletiva do conhecimento. Do outro lado, agradeo aos

    mestres do campo, Seu Zez e Seu Dirceu, em nome de toda irmandade de Nossa Senhora

    do Rosrio que me recebeu de braos abertos aos encontros. Agradeo a eles pelas horasdedicadas nas longas conversas, pela disposio em compartilhar um pouco na infindvel

    sabedoria que possuem sobre a festa e sobre a vida.

    Muitos acompanharam o trabalho de campo, trocando conversas, compartilhando

    imagens e sentimentos. Aline Moraes, Carlinhos Ferreira, Damasceno e Denise Falco

    que, especialmente, acompanhou-me no somente no campo, mas tambm no gabinete,

    realizando conversas dirias, revises cuidadosas na formatao dos textos e das fotos.

    1Neste momento, em francs.

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    Assim tambm toda a famlia, Efignia, Juliano e Luciana que, de perto ou de longe,

    sempre, presentes e dividindo cada experincia vivida.

    Gostaria de agradecer a banca examinadora, a prof Eufrsia, uma figura

    inspiradora, vibrante nos congressos sobre festa. Obrigada pela generosidade em receber

    meu trabalho e por ter se deslocado do litoral para enveredar pelas Minas e Gerais.

    prof Vnia Noronha, companheira de profisso e dos festejos do Rosrio a quem no

    posso deixar aqui de reconhecer, foi uma das culpadas nessa minha incurso ao estudo da

    festa.

    Por fim, e por tudo, prof La, minha orientadora, logo no primeiro contato,

    claro, fui contagiada pela sua magia. Junto com sua filha Helena, acompanhou do comeo

    ao fim o mestrado. [Agradeo a voc, La] no somente pela competncia e coerncia de

    suas reflexes, mas fundamentalmente por fazer o estudo acadmico uma experincia

    com vida, pela orientao nas diferentes dimenses de atuao e pela cuidadosa e valiosa

    leitura que fizestes do meu trabalho.

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    Em todos os tempos e em todas associedades, o homem quer honrar seusdeuses com festas; estabelece, assim dias

    durante os quais somente o sentimentoreligioso reinar em sua alma, sem serchamado a pensamentos ou a trabalhosterrenos. Do nmero de dias que o homemtem pra viver, deu uma parte aos deuses.

    Fustel de Coulanges, 1995

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    Resumo:

    Esta dissertao apresenta uma reflexo antropolgica sobre a festa, que teve como

    inspirao emprica o ciclo e o circuito festivo anual de uma tradicional irmandade do

    congado mineiro. Animados por seus santos de devoo, os membros da irmandade se

    movimentam com um nico fim: o de festejar. Mais do que um fenmeno de lazer, a festa

    aqui se constitui numa obrigao social, sendo movida pela f, ndice marcador de

    temporalidade destas pessoas, constituindo na forma privilegiada da vida social e da

    experincia coletiva do grupo. A periodicidade festiva, tratada sob a tica da variabilidade

    da vida social e da experincia coletiva, remete diretamente ao princpio maussiano da

    alternncia de ritmos da vida social e da experincia coletiva, permitindo pensar como os

    diferentes momentos festivos podem nos dizer sobre o modo como este grupo organiza

    sua vida coletiva. Todavia, o estudo revelou que a variabilidade no corresponde a uma

    simples circularidade, implica num mecanismo de inverso posicional. Por fim, pelas

    contribuies de Van Gennep, o tema nos conduziu ao que est em jogo: a rotatividade

    do sagrado.

    Festa, vida social, sagrado.

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    Resum:

    Cette thse prsente une rflexion anthropologique sur la fte, qui a eu comme

    inspiration empirique le cycle et le circuit festive annuel d'une traditionnelle comunidade

    de la congado minire. Anims par leurs saints de dvotion, les membres de la fraternit

    rencontrent avec seule objectif: de fter. Plus qun phnomne de loisir, la fte ici se

    constitue avec une obligation sociale, en tant motiv par la foi, elle est aussi indicateur

    de le temporalit de ces personnes, en constituant une forme privilgie dela vie sociale et

    de l'exprience collective du groupe. La rgularit de fte, traite sous l'optique de la

    variabilit de la vie sociale et de l'exprience collective nous envoie directement au

    principe maussien de l'alternance de rythmes de la vie sociale et d'exprience collective,

    en permettant de penser comme les diffrents moments de la fte peuvent nous faire

    penser sur la manire comme ce groupe organise sa vie collective. Nanmoins, l'tude a

    rvl que la variabilit ne correspond pas simple circularidade, implique un mcanisme

    d'inversion de position. la fin, avec le contributions de Van Gennep, le sujet nous a

    conduit a sujet central : la rotation du sacr.

    Fte, vie sociale, sacre

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    Lista de Ilustraes

    Figura 1: Mapa da comarca de Belo Horizonte e suas regies vizinhas ............ 26

    Figura 2: Calendrio anual das festas em Justinpolis ...................................... 28

    Figura 3: Ciclos festivos mineiros .................................................................... 32

    Figura 4: Ciclos festivos de Justinpolis .......................................................... 36

    Figura 5: Sequncias rituais das festas de reinado ............................................ 48

    Figura 6: Sequncias rituais das festas de reisado ............................................. 49

    Figura 7: Vista superior do terreiro da festa de congado ................................... 55

    Figura 8: Vista superior da casa de um devoto de Santos Reis .......................... 56

    Figura 9: Cortejo nas festas do congado ........................................................... 64

    Figura 10: Cortejo nas festas de reis ................................................................. 81

    Figura 11: Alternncia dos elementos nos ciclos festivos ............................... 112

    Figura 12: Coroas e reis do reinado (Festa a Nossa Senhora do Rosrio, 2008)118

    Figura 13: Mscaras e reis magos (2008) ....................................................... 119

    Figura 14: Tambores do candombe (acervo da irmandade 2005) .................... 120

    Figura 15: Lapinha, devoto e caravana a Santos Reis (2008) .......................... 121

    Figura 16: Bandeiras e guardas no terreiro (Festa de reinado, 2008) ............... 122

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    Figura 17: Tambores do reinado, em destaque gungas do moambique (2008)123

    Figura 18: Teatro na praa, entrada no terreiro e guarda de congo (Festa a So

    Benedito, 2008)......................................................................................................... 124

    Figura 19: Cozinha da irmandade (Festa a Nossa Senhora do Rosrio, 2007) . 125

    Figura 20: Membros da irmandade de Justinpolis (2007, 2008) .................... 126

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    Sumrio

    1 Parte: Alguma introduo ............................................................................ 14

    1. Questes preliminares .......................................................................... 16

    2. Rastros de uma trajetria ou de como a festa se impe ......................... 20

    3. Justinpolis e suas festas ...................................................................... 26

    2 Parte: Ciclo festivo e alternncia .................................................................. 41

    4. Nota terica 1: primeiras consideraes ............................................... 43

    5. Estrutura ritual e testemunho ................................................................ 58

    5.1. Ciclo do Rosrio ou Reinado..................................................................... 58

    5.1.1. Abertura e fundamento: o candombe ..................................... 58

    5.1.2. Inaugurao: levantamento dos mastros e das bandeiras ........ 62

    5.1.3. Alvorada e coroao dos reis ................................................. 62

    5.1.4. Procisso: conduo e exibio pblica do congado .............. 64

    5.1.5. Preces de entrada no terreiro: pedidos de licena e oraes.....68

    5.1.6. Almoo: banquete aos reis e ao povo ..................................... 69

    5.1.7. Cumprimento de promessas e obrigao da festa ................... 71

    5.1.8. Encerramento e despedida: descoroao dos reis ................... 72

    5.1.9. Descimento das bandeiras e fim da festa ................................ 74

    5.1.10. Fim do ciclo .......................................................................... 75

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    5.2. Ciclo de Reis ou Reisado .......................................................................... 75

    5.2.1. Abertura e fundamento: a lapinha .......................................... 76

    5.2.2. Inaugurao e retirada da bandeira .......................................... 79

    5.2.3. Alvorada: a formao da folia ................................................. 79

    5.2.5. Preces de chegada na casa do devoto: adoraes e passos ....... 81

    5.2.6. Promessas e exibio dos reis ................................................. 87

    5.2.7. Jantar ...................................................................................... 89

    5.2.8. Retirada da caravana e despedida da festa ............................... 90

    5.2.9. Festa de arremate e despedida da festa .................................... 905.2.10. Fim do ciclo .......................................................................... 91

    3 Parte: Alguma Concluso ............................................................................ 93

    6. Sistema ritual e circuito das trocas ....................................................... 95

    7. Nota terica 2 : consideraes finais .................................................. 107

    4 Parte: O ps-texto ou o fim di-certa-ao................................................ 116

    Bibliografia ................................................................................................... 127

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    Ento quem escrever o estudo desses

    atos sem finalidade que no ficamrestritos a normas, mas que ocupam umlugar imenso no curso da vida doshomens, envolvendo o que chamamos dehistria, de uma trama sem a qual a

    histria no passaria de jogo demarionetes?

    Jean Duvignaud, 1983.

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    1. Questes preliminares

    Inauguro esta escritura com uma espcie de apresentao. Apresento aqui [eu,

    Juliana] uma dentre as mltiplas possibilidades de narrativas suscitadas por um encontro.

    No tratamos [ns, antroplogos], de um outro, mas sim de uma experincia partilhada

    com um mundo que encanta e que afeta. Rastros de uma trajetria de pesquisa modelam

    esta escritura, que no tem comeo nem fim, se apresenta em seu desenrolar. Este

    trabalho no se prope a nada alm do que simplesmente : narrar de um modo dentre

    outros possveis, uma hi[e]stria que se descobre pela experincia da alteridade.

    Revelada pela teoria dos autores e pela prtica do campo, ou pelas prticas dos

    autores e pelas teorias do campo, uma experincia que se inscreve em momentos de

    solido e de compartilhamento. A dimenso emprica, elaborada a partir do trabalho

    etnogrfico, ocupa um lugar especial, se insere no para comprovar ou confrontar com a

    teoria previamente admitida. uma experincia disciplinadora da imaginao que se

    projeta, no sentido apresentado por Otvio Velho (2006), como um paraso aberto

    possibilidades mltiplas de reflexo.

    O exerccio da diferena acomete tanto o campo quanto a literatura, que foi

    escolhida de forma interessada, lida e citada categoricamente porque, como qualquer

    escritura, tem algo a nos dizer. A alteridade, ponto detonador deste processo

    antropolgico, se d na relao de diferentes que, no opostos, dialogam em seus

    possveis comuns. Teoria e prtica aqui no tm lugar definido, se fundem e se

    confundem.

    Quero comear esta dissertao compartilhando experincias, algumas alhures ao

    tempo-espao do mestrado e que so recuperadas de um modo outro, agora com reflexes

    pertinentes ao estudo acadmico.Nas festas, participei de diferentes modos. Ao acaso, cheguei a Justinpolis, em

    pouco tempo de contato, tornei-me pesquisadora. De incio, muitos no me conhecendo,

    tomavam-me por uma jornalista ou como produtora de vdeos. Durante este tempo,

    conheci outras pessoas da irmandade e descobri que algumas delas moravam no mesmo

    bairro onde a minha residncia. Desde ento, mudei de status, pois passei a frequentar

    as festas, acompanhada das minhas vizinhas, Dona Aparecida [rainha conga da

    irmandade] e suas filhas, Jocasta [caixeira] e Josiane [danarina]. Esta categoria, nomeadapelos congadeiros acompanhante, indica uma noo de pertencimento irmandade. Deste

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    modo, passei a conversar e a conhecer pessoas mais velhas e reservadas. Os membros da

    irmandade aproximavam-se com outro olhar, deixei de ser visitante, passei a ser

    integrante. Assim repetiu-se comigo a cena cannica da entrada do antroplogo no

    campo... O mito re-encenado!

    Foi nesta dupla existncia, de pesquisadora e de acompanhante, que realizei meu

    trabalho de campo durante os anos de 2007 e 2008. Em maio de 2008, durante a festa de

    So Benedito, recebi um convite do Seu Zez, membro mais velho e bem respeitado na

    irmandade. Ele me convidou a mudar de categoria, parar de brincar e levar a festa a

    srio. Tratava-se de me tornar uma congadeira, integrar-me ao corpo de baile como

    danante na guarda de moambique. Muito representou esse convite, apesar de no ter

    sido aceito. Ainda como pesquisadora, precisava marcar a diferena.

    So a estas pessoas que se dirige este estudo, que o resultado emprico ou a

    epifanizao acadmica de uma experincia de relao. Conhecida como Irmandade de

    Nossa Senhora do Rosrio de Justinpolis, situa-se na regio metropolitana da capital

    mineira, envolvida pelos sopros da modernidade, enquanto vive sua tradio festiva por

    cinco geraes. Seu Dirceu, um dos membros mais antigos da irmandade, capito regente

    das guardas, mestre da folia e um dos interlocutores privilegiados desta pesquisa me

    disse: entre uma festa e outra, a gente procura trabalhar (2005).

    Essas pessoas se movimentam com um nico fim: o de festejar. Mais do que um

    fenmeno de lazer, a festa aqui uma obrigao social, sendo movida pela f, tambm

    ndice marcador de temporalidade dos membros da irmandade.

    Estabeleo ento um recorte para a pesquisa. Trata-se de festas que constituem a

    forma privilegiada de vida coletiva deste grupo: Festa a Nossa Senhora do Rosrio, a So

    Benedito, a So Sebastio, Caravana de Santos Reis e Folia de So Sebastio. Festas

    tradicionais do estado de Minas Gerais.

    Trata-se, portanto, de um ciclo-circuito festivo que corresponde a um calendrioanual. A periodicidade festiva remete diretamente ao princpio maussiano da alternncia

    de ritmos de vida social e de experincia coletiva:A vida social no se mantm no mesmo

    nvel nos diferentes momentos do ano, mas passa por fases sucessivas e regulares de

    intensidade crescente e decrescente, de repouso e de atividade, de dispndio e reparao

    (Mauss, 1974: 324). Nesta perspectiva, o foco de anlise ajustado para pensar como os

    diferentes momentos festivos podem nos dizer sobre o modo como este grupo organiza

    sua vida social e sua experincia coletiva. Poderiam as diferentes festas, consoante a

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    afirmao de Mauss, serem causas ocasionais de um princpio mais geral da vida social

    e da experincia coletiva?

    O ciclo festivo, dado seu carter repetitivo, implica em um movimento no linear,

    que no tem comeo nem fim, pois tem um mesmo ponto de partida e de chegada. Seu

    movimento [espiralado] indica uma rotatividade, implica em mudana posicional, deste

    modo, sendo sempre o mesmo, se faz outro. Como diria Manuel de Barros (2004), repete,

    repete at se tornar diferente. Assim tambm se do estas festas que, sempre se repetindo,

    retornam de outra forma. No fim [de uma] se faz tambm o comeo [de outra].

    A experincia em Justinpolis possibilitou-me compreender algo sobre um ciclo

    outro. Aquele que nos indica e nos conduz ao encontro de ns e dos ns [no duplo

    sentido do tropo] que a vida nos coloca. Num mundo moderno onde, parafraseando

    Marshall Berman (1986), tudo que slido se desmancha no ar, deparei-me com outro

    mundo, no qual no h verdades absolutas,onde no h certo e nem errado, para o qual

    uma coisa uma coisa e outra coisa outra coisa, e, por serem coisas diferentes, podem

    ser a mesma coisa ao mesmo tempo. Busco com esta dissertao firmar o dilogo

    estabelecido entre o mundo acadmico e o mundo emprico, no qual eu, assumindo a

    postura de diferente, de ambos, assumo um lugar nesta relao.

    Importante pontuar que o tratamento que tenho dado ao processo investigativo em

    parte deve-se experincia de danarina, em outra parte teve como inspirao o trabalho

    da antroploga Marisa Peirano (2008), que considera o fazer etnogrfico como

    experincia mente - corporal, ou nas suas palavras, como uma experincia vivida, como

    uma teoria em ao.

    Foi nos meandros dessa experincia, vivida de festa em festa, fazendo e me

    fazendo em hi[e]strias, que fui despertada e atentada para perceber os ciclos de nossas

    vidas. Resolvi ento hi[e]stori-las. J que s nos resta contar hi[e]strias, por que no

    contar mais uma?Sigo a escritura desse modo, alinhavando os rastros da minha trajetria de

    pesquisa, indicando como se deu a minha relao com a festa at se tornar um campo de

    investigao. Apresento, ainda nesta primeira parte, a irmandade de Justinpolis e suas

    festas, introduzindo temas fundamentais do trabalho.

    Aps apresentar as questes que preliminarmente orientaram a pesquisa, a ateno

    se volta para o ciclo festivo. Apresento desse modo, na segunda parte, a minha descrio

    densa da estrutura ritual das festas de Justinpolis, acentuando a composio dassequncias rituais. Antes, entretanto, registro uma nota terica sobre a literatura que me

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    forneceu subsdios para a composio do esteio terico-metodolgico da pesquisa.

    Convido ao dilogo estudos contemporneos realizados por La Freitas Perez (2002,

    2004, 2008), bem como sua interlocuo com Jean Duvignaud (1983), pois apresentam

    um vis emprico-interpretativo que norteia todo este trabalho. Da teoria clssica

    antropolgica, tomo como referncia autores da escola sociolgica francesa que trazem

    contribuies significativas para se pensar o carter de alternncia da festa. Nesta seo

    procuro aproximar-me da teoria da alternncia de Marcel Mauss (1974) para pensar a

    experincia social e coletiva do grupo estudado.

    Ainda no vis da escola francesa, na terceira parte, alinhavando alguma concluso,

    retomo alguns dos autores apresentados na seo anterior; agora para estabelecer um

    dilogo com o circuito festivo. Nesta seo, dou ateno ao mecanismo que atua em

    suspenso espao/temporal na festa e estabeleo trs sistemas rituais.

    Em seguida, lano mo das contribuies tericas dos estudos rituais,

    representadas por Arnold Van Gennep (1978), de modo a pensar a rotatividade das

    sequncias rituais, o sistema ritual e circuito de trocas nas sequncias rituais.

    Por fim, retomo as contribuies discutidas ao longo do texto, sobretudo num

    dilogo entre Mauss e Van Gennep, com consideraes sobre o ciclo-circuito da festa e

    suas implicaes necessrias: a da variabilidade da experincia social e coletiva e a da

    rotatividade do sagrado.

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    2. Rastros de uma trajetria ou de como a festa se impe

    Esta hi[e]stria comea a ser traada a partir de memrias de infncia, poderia

    partir de qualquer ponto, mas se faz deste, no para definir uma trajetria de maturao oude familiarizao com o objeto no decorrer do tempo linear, mas, sobretudo, por outra

    questo que me parece mais plausvel. Recorremos memria de infncia quando

    tratamos daquilo que nos sagrado2. E este texto trata disto: o homem e sua experincia

    instituinte, o sagrado.

    Comecemos por compartilhar cenas que se construram na interao com as ruas

    da cidade. Infncia vivida na capital mineira, nas ruas de um bairro tradicional nas

    proximidades da regio central. As primeiras lembranas chegam-me pela percepoauditiva, sentido to pouco explorado, mas que meio de comunicao e, assim como os

    outros sentidos, manifesta-se no contexto da situao, na expresso de Bronislaw

    Malinowski (1972), ou na composio da cena, como prefere Vincent Crapanzano

    (2005), apresentando ao pesquisador seu fazer etnogrfico3.

    Em algumas noites em casa, depois de chegar da escola, lembro-me da hora em

    que comeava os deveres e meus ouvidos eram despertados pelo som produzido por

    tambores, seguido de vozes e de chocalhos. Comeavam de longe e iam se aproximando

    at chegar rua, do lado de fora de casa. L vem o congado! Era inconfundvel. O som

    se aproximava, o corao acelerava, o corpo se inquietava. Medo e curiosidade tomavam

    conta de mim at que me dispunha a sair ao porto para ver o congado de Seu Bentinho e

    de Dona Conceio passar. Se me perguntassem quem eram aquelas pessoas, no saberia

    dizer muito para alm do que via e ouvia: eram reis e seu cortejo.

    A imponncia da bandeira conduzindo aqueles homens, de cabeas reluzentes seja

    pelo brilho das coroas ou pelo suor das testas, exigia respeito. No tinha como no sair ao

    2 Inspirei-me na leitura de Le sacr dans la vie quotidienne de Michel Leiris(1979). O sagrado qualitativamente caracterizado pelo autor pela via da experinciainfantil.

    3A noo de contexto da situao implica, leva em conta, a interferncia doambiente na linguagem, ou seja, a situao em que os textos (enunciados) so produzidos(Malinowski, 1972: 304-306). A cena tem sua base na intersubjetividade, corresponde aquela aparncia, a forma ou refrao da situao "objetiva" em que nos encontramos,colorindo-a ou nuanando-a e, com isso, tornando-a diferente daquilo que sabemos queela quando nos damos ao trabalho de sobre ela pensar objetivamente (Crapanzano,2005: 359).

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    porto e, no mnimo, me curvar, ainda que sutilmente, sem que ningum percebesse,

    diante da rainha. Digo sem que ningum percebesseporque aquilo tudo ainda era muito

    estranho aos meus olhos, no sabia se silenciava, salvava de palmas ou se me deixava

    levar pela vontade de adentrar pelo cortejo danando e cantando junto a eles. Mas

    enquanto eu no tomava coragem de seguir os homens que batem caixa e cantam ao Seu

    rei e S rainha, dava-me por satisfeita por restar ali, participando ao alcance do que me

    era possibilitado pelo olhar e pela escuta. Intrometia-me s vezes de forma muito

    acanhada, perguntando a um fardado com suas vestes azuis e brancas, ou a outro portando

    roupas comuns, sobre o que faziam, de onde vinham e para onde iam. Sempre passando e

    passando pelo meu porto, seguiam um caminho desconhecido.

    Da curiosidade nasceu uma investigao pueril. A cada vez que eles passavam,

    acumulava mais informao. Com o tempo percebi que havia uma sequncia na festa. Os

    tambores tm dias certos para sair, o cortejo no passa em qualquer lugar e tocam em

    louvor aos seus santos. Dispus-me a segui-los, mantendo distncia. Descobriria assim que

    a rua era lugar de passagem e que o cortejo tinha como destino uma casa do bairro. Ao

    entrarem na casa, mais um mistrio, os tambores silenciavam permanecendo mudos por

    um tempo.Mas o que acontecia dentro daquela casa?Intrigada por desvendar o mistrio,

    mas contida pelo medo atribudo ao silncio, ficava inibida de fazer qualquer movimento

    para entrar. Ademais, para alm do medo, no me sentia autorizada, pois a boa e

    tradicional educao mineira reza que s se deve entrar em casa dos outros quando

    convidado.No entrara na casa, portanto no avanara muito na investigao. O congado

    voltava ao seu lugar e a vida voltava sua normalidade...

    No ano seguinte o evento se repetia. O congado comeava a descida da rua

    novamente, tocando os tambores, passando pela porta da minha casa. Consegui

    estabelecer outra aproximao, j com outros informantes para a pesquisa, descobrindo o

    motivo da passagem. Era uma festa em cumprimento de uma promessa, pois uma crianase curara de uma doena sria. Como graa, durante sete anos, os congadeiros [pagadores

    de promessas, em louvor a So Cosme e So Damio] se deslocavam de suas casas em

    procisso at a casa de Dona Zica, a feitora da promessa. Ela oferecia, em troca, uma

    festa. Acredito hoje que esta descoberta tenha sido um grande avano na minha pesquisa,

    pois permitiu-me deslocar do lugar de observadora recalcada para o de observadora

    participante. Tratava-se de uma festa para todas as crianas!A estava minha permisso

    para acompanh-los.

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    ritual nas danas. Interesse que tomou outra forma logo nos primeiros dias de pesquisa,

    pois tratar dos gestos nas danas implica compreender o contexto de sua efetivao: a

    festa.

    Quem se lana a uma pesquisa antropolgica sabe que, em se tratando de festa,

    no basta somente observ-la, ela nos convida a participar. Nesta atividade investigativa

    somos tomados de tal modo que, participar se impe e acarreta o distanciamento do

    roteiro previamente elaborado. Foi assim que, numa destas conversas, um mestre da folia

    se props a me contar uma hi[e]stria que fugia do roteiro, e, pelo mesmo motivo, no

    deixo escapar aqui.

    Vou contar o mais importante, aquilo quevoc no v,, a histria da primeira folia,a folia de origem. Este um grupo desdeh 210 ano...

    E a histria inicia com So Francisco,quando ainda era embaixador dos

    franciscanos.Na poca, 23 anos depois, na festa dosreis do oriente, ele reuniu algumas

    pessoas que fizeram uma prece promenino Jesus. Formouse assim uma

    conferncia, em que estavam presentes ahumildade e fora e a unio no intuito defazer um canto ao menino Jesus. SoFrancisco convidou a Floriza de Aquino,irm do rei negro, e vestiu a pessoa querepresentou esse rei, cujo nome era

    Belquior. Seguiu outro com o nome do reiGaspar, que era o dono da festa, e vestiuum homem mais moo para representar orei rabe: Baltazar. Naquela poca elesandavam de dia e todos tinha suas

    obrigaes. Apressaram uma viola, umviolo e um chique-chique pr toc. Aoobservar a caravana, Simo Varoapreciou e se ofereceu para compor aletra das msicas que eles tocavam.Foi assim que se formou a caravana daFolia dos Reis na cidade de So Franciscode Assis, formada por So Gonalo, SoVicente de Paulo e So Francisco de

    Assis: o embaixador dos Franciscanos

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    (Mestre Geraldo Gonalo dos Santos,2001) 5.

    Esta experincia na Festa Nacional do Folclore permitiu-me aproximar-me da

    folia de reis. Tradicional manifestao do ciclo natalino, bastante difundida no interior doestado de Minas Gerais e de ocorrncia mais restrita na capital. Em Jequitib, e no seu

    entorno, esto localizadas as folias mais antigas e mais respeitadas do estado.

    Os laos estabelecidos com os grupos das folias durante esta pesquisa

    despertaram-me a vontade do reencontro e fizeram-me retornar nos anos seguintes, e,

    aps trs anos, percebi que a festa ainda acontecia. Notei que muitas mudanas

    ocorreram. Uma outra estrutura foi criada para a recepo de turistas: barraquinhas e

    palcos de apresentao dos grupos. Confesso que, a princpio, pairava um sentimentomelanclico em relao tradio que se dava por finda, na medida em que a apropriao

    da festa pelo mercado resultava numa descaracterizao. assim que, pelo menos, reza a

    doxa. Para alm dos julgamentos de cunho esttico, fato que este acontecimento

    permanece na cidade at os dias de hoje, dez anos depois da minha primeira visita.

    Trato agora de pontuar um terceiro evento que antecede a entrada no mestrado, e

    que participa diretamente da pesquisa. O encontro com a Irmandade de Nossa Senhora do

    Rosrio de Justinpolis em maro de 2000. Este encontro no tinha pretenso nenhuma,

    foi desses que se d por acasos da vida. Na ocasio eu ciceroneava dois msicos paulistas,

    que pesquisavam crianas que cantavam, quando os conduzi at Justinpolis, onde pude

    ouvir a guarda de congo entoar maravilhosamente o Congo da Maria Amada6. No h

    como no ficar deslumbrado com a musicalidade,pois, se, de acordo com a narrativa

    mtica fundadora da festa, Nossa Senhora se encantou e saiu das guas ao ouvir a msica

    e os tambores, como eu, no ficaria encantada com aquela magia que soava, de vozes

    infantis, com f, fora e delicadeza?

    Durante dois dias acompanhei o processo de gravao. Cantei, dancei, fui

    envolvida. Esta experincia semelhante vivida na infncia tomava-me os sentidos do

    5Os registros dos depoimentos, transcritos no momento do relato, oscilam entrelinguagem formal e informal. Durante a escrita, tentei manter-me fiel ao modo de falar,ou melhor, ao modo de contar hi[e]stria, dos mestres. Notei que estes tentam estabelecerum protocolo de narrativa no momento da entrevista, ocorre um discurso que comportasimultaneamente o coloquial e o formal.

    6 A melodia pode ser apreciada na faixa 7 do Livro Cd, Canes do Brasil: oBrasil cantado por suas crianas. Lanado pelo Selo Palavra Cantada, 2000.

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    corpo inteiro. Como uma boa danarina, pensei, se algo faz sentir porque faz sentido. A

    partir desta experincia resolvi ficar mais atenta ao que meus olhos ouviam. No era a

    primeira vez que encontrara o congado, mas o interesse agora despertara de outra forma.

    Ao mesmo tempo em que apreciava aquelas crianas, eu me perguntava por que nunca

    ouvira falar daquele grupo to conhecido pelo meio artstico de So Paulo, mas que em

    Minas passava, ou melhor, dizendo, cantava despercebido. Este duplo lugar de

    centralidade para o distante e de marginalidade para o prximo despertou-me curiosidade

    e interesse.

    Fui convidada por Seu Dirceu, na poca presidente da irmandade, a assistir a uma

    missa conga, durante a festa de So Benedito, no ms de maio. Esta celebrao tem

    elementos que a diferem da liturgia tradicional no ofertrio e nos cnticos, pois estes so

    realizados pelas guardas, conferindo um carter especial missa.

    Aps o encerramento da missa, a festa ainda continuava e outro convite surgira.

    Outra festa j estava sendo preparada para outubro. No dia 27 de outubro, retornando

    irmandade conheci a grande festa de Reinado a Nossa Senhora do Rosrio de

    Justinpolis. Esta festa fez parar a cidade, frequentada por aproximadamente setecentas

    pessoas. Antes mesmo do trmino da festa, fiquei sabendo pelo prprio Seu Dirceu que

    tambm sairia, em dezembro, a folia de reis, mais uma tradio festiva.

    Entre idas e vindas, de festa em festa, comecei a definir e a incorporar o caminho

    investigativo e pude chegar a uma concluso: a festa, modo privilegiado de estabelecer o

    encontro, a estava, pois no h como se esquivar dela, e diante dos olhos, dos ouvidos, do

    tato e da boca, ia se impondo. Sempre passando, sempre retornando, a festa se modifica,

    mas nunca se extingue.

    Essas diferentes experincias rapidamente aqui evocadas possibilitaram-me

    deslocar a festa para outro patamar, o da investigao antropolgica sistemtica e

    acadmica. E assim veio o mestrado, e com ele a dissertao. O resto, claro, [como bemdiria La Perez], so hi[e]strias...

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    3. Justinpolis e suas festas

    Aproximemo-nos, ento, de Justinpolis e sua tradio festiva.

    Saindo da capital mineira, pegamos uma via de acesso sentido norte, a longa

    avenida que recebe o nome de Padre Pedro Pinto, que atravessa o distrito de Venda Nova,

    seguindo at a cidade de Ribeiro das Neves, quando passa a ser chamada de Avenida

    Civilizao. To logo a avenida muda de nome, paradoxalmente, nota-se uma diferena

    no panorama visual. Um estreitamento na pista e um movimento intenso de pessoas e de

    carros vo compondo outra paisagem, marcada pela poeira e pela pobreza. Chegamos

    periferia. Estamos em Ribeiro das Neves.

    Figura 1: Mapa da comarca de Belo Horizonte e suas regies vizinhas

    Cidade de aproximadamente 150 km2 de extenso, localizada ao norte de Belo

    Horizonte, composta aproximadamente por 340.000 habitantes distribudos nos distritos

    de Justinpolis, Areias, Regional Centro e Veneza. Iniciou seu povoamento em fins do

    sculo XVII, s margens do ribeiro, mas somente recebeu este nome em 1953 conforme

    documento da Sesmaria (Carta SC 265 p. 121, 121 v, 122).

    O ribeiro que batizou o municpio compe a bacia do Rio das Velhas/Paraopeba,

    e corta seu territrio no sentido sudeste-norte, passando por Justinpolis e por Areias e

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    seguindo para o municpio de Pedro Leopoldo. Nas vrzeas desse ribeiro, a lavra de

    mineral (areia e argila) grande potencial gerador de renda no ramo ceramista, na

    fabricao de tijolos furados, nas olarias de mdio e de grande porte. Outra fonte de renda

    da regio est no cultivo de hortalias, destinadas ao mercado da Ceasa, bem como

    comrcios especializados do centro de Belo Horizonte, tais como o Mercado Central e o

    Mercado Novo.

    A cidade conhecida por sediar um centro para meninos carentes da sociedade

    So Vicente de Paula e um presdio estadual, a antiga penitenciaria agrcola (PAN). Alm

    dos problemas, como falta de pavimentao, precariedade do transporte pblico, falta de

    estruturao dos servios de sade e de saneamento bsico, Ribeiro das Neves

    constituiu-se como uma cidade dormitrio de Belo Horizonte.

    Durante dois anos de trabalho de campo, fiz vrias vezes o percurso Belo

    Horizonte/Justinpolis/Belo Horizonte. Em tantas idas e vindas, o ambiente que nos

    parece estranho comea a se tornar familiar. Com o tempo, no se percebe mais a sujeira,

    o barulho, a poluio da cidade. Outras coisas passam a ocupar nossa ateno. Foi, pois,

    nesta periferia da periferia, entre a poluio e o perigo, [relembrando Mary Douglas

    (1991) que me acompanhou sempre] neste depsito de impuros da capital, que,

    paradoxalmente, descobri a irmandade de Justinpolis como uma espcie de paraso

    admico aberto a possibilidades mltiplas.

    A irmandade, que recebe o prprio nome do distrito, est instalada h cento e

    quinze anos, quando este local ainda recebia o nome de Campanh. Antecedendo

    criao da prpria cidade de Ribeiro das Neves, a localidade pertenceu inicialmente ao

    distrito de Belo Horizonte chamado de Venda Nova do Vilarinho; em 1911, passou para o

    municpio de Contagem, em 1938 ao municpio de Pedro Leopoldo e somente em 1956

    integrou-se ao municpio de Neves, passando a ser chamada Justinpolis. A maioria das

    informaes que nos possibilitam compreender o processo de migrao, de instalao e deformao da irmandade se encontram em registros escritos ou na memria das pessoas

    mais antigas, fragmentadas em lembranas e em esquecimentos.

    Diferentes rituais do forma vida festiva na irmandade. Obviamente que, como

    espao de experimentao individual e coletiva, h inmeras festas e motivos para

    festejar. Aniversrios, formaturas, casamentos, jantares, visita de antroploga em dias de

    entrevista.

    Entretanto, conforme mencionado na introduo, o que nos servir de recorte paraeste estudo so as festas religiosas conforme descrevo no quadro:

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    Festas Dia do santo Dia da festa

    Festa a Santos Reis

    Festa a So Sebastio

    Festa a Nossa Senhora

    da Luz

    Festa a So Benedito

    Festa a Nossa Senhora

    do Rosrio

    06 de janeiro

    20 de janeiro

    02 de fevereiro

    14 de abril

    06 de outubro

    06 de janeiro

    1 domingo aps dia 20 de janeiro

    02 de fevereiro

    ltimo domingo de maio

    3 domingo de outubro

    Figura 2: Calendrio anual das festas em Justinpolis

    Tais festas aos santos padroeiros, como bem demonstra Alba Zaluar, so

    expresso singular do catolicismo popular brasileiro. Constitui uma religio

    eminentemente prtica na qual a linguagem inserida no conjunto de uma ao ritual,

    onde nos rituais e na maneira de conceber as relaes entre os homens e os santos, est

    simbolicamente expresso o cdigo rege as relaes dos homens entresi (1983: 116-117).

    Diz ela ainda:

    A prtica popular espontnea isto ,fora do controle da igrejano manejo dossmbolos que os santos e as associaesreligiosas constituem sugere qual aqualidade principal desses smbolos: suacapacidade de desdobrar-se ou

    reproduzir-se de acordo com odesdobramento e reproduo dos grupos,

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    redes ou categorias de pessoas pelossantos e associaes religiosasrepresentados (1983: 64).

    Em pequenas conversas com as pessoas durante a pesquisa, foi possvel notar

    como o desdobramento das festas acompanha o desdobramento do grupo fundao da

    localidade, constituio de parentesco, definio de grupo de profissionais. A referncia

    ao ato festivo foi, em primeira instncia, recuperada pela memria dos entrevistados para

    dizer da constituio de uma coletividade. Como mostro a seguir, a vida na festa

    tambm expresso na e da vida coletiva como um todo.

    Numa conversa, Seu Zez, capito mor da irmandade, contou-me da sua

    procedncia de Areias relembrando hi[e]strias que lhe foram contadas e vividas com seu

    av, Manuel Messias. Sua saudosa lembrana revive situaes em que ele, ainda pequeno,

    avistava os capinadores vindos em mutiro das roas para festejar a chegada do milho,

    comemorada na segunda capina em meados de dezembro.

    Antigamente existiam muitas outras festas,muito antes da Irmandade do Rosrio,elas se davam na poca da colheita naroa, as festas eram muito boas: nos dias

    da capina do milho, as mulherescomeavam com a cantiga de roda, depoisos homens chegavam e faziam o rito decapina, a, vinha o batuque, a dana dorecortado, e, mais tarde a dana braba e obatuque paulistana. Eu era bem pequeno,

    saa de casa em dezembro e s voltavadepois da folia de Reis. Essa da bemantiga! Vindo pra cidade essas tradiesque so d roa ia se perdendo, mas aqui,

    foi surgindo outras festas (2008).

    Pelo que me foi dito por Seu Zez, a Irmandade de Nossa Senhora do Rosrio de

    Justinpolis provavelmente provm da Irmandade dos Arturos, uma das mais antigas de

    Minas Gerais. Hoje, fixados na cidade de Contagem, os Arturos ainda mantm a tradio

    do rito de capina, chamada por eles de festas de chegada do milho 7.

    7 Uma etnografia detalhada sobre a festa da primeira capina de milho entre osArturos encontrada no trabalho de Romeu Sabar, 1998.

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    seus mestres. Quando visita outras festas, um bom folio nunca deixa de carregar consigo

    o seu caderno de passo ou, talvez possa dizer, seu caderno de campo.

    Em Justinpolis, a Caravana a Santos Reis e a Folia de So Sebastio, tm duas

    razes familiares, visto que aos Messias, juntaram-se os Vieira. Seu Jos Jorge Messias,

    filho de Manoel Messias e pai de Seu Zez, folio e congadeiro em Areias, fundou a

    Irmandade do Rosrio em Campanh quando emigrou com sua famlia. Entretanto, no

    trouxe a folia de reis, continuou saindo com esta na regio de Areias, pois em Campanh

    j havia uma folia comandada por Francisco Vieira, irmo de Teovina Vieira. Teovina,

    por sua vez, emprestava seu terreiro quando os congadeiros dos Messias ainda no tinham

    lugar para fazer suas festas. Com o tempo as famlias se tornaram uma s: Seu Dirceu

    sobrinho neto de Francisco Vieira casou-se com Luiza, neta de Seu Jorge Messias, e

    tiveram trs filhas. Esta famlia, carro-chefe condutor das festas de Justinpolis, re-uniu

    as duas tradies. Elos festivos e de parentescos que se confundem. Cultura na prtica,

    como diria Marshall Shalins (2004).

    A migrao de uma rea rural para uma rea urbana e industrial corresponde a

    uma diferena quantitativa e qualitativa na substituio e no aumento do nmero de

    festas. Algumas festas so mais antigas, advm do processo de migrao, outras foram

    institudas com a fixao na rea urbana. Enquanto umas deixam de existir, vrias

    surgem, como os festejos juninos de So Joo. Seu Zez ainda guarda um sentimento

    saudosista da poca de infncia, entretanto, mantendo uma impressionante lucidez, ele

    afirma que:

    Mas, a tradio assim, umas coisassaem outras coisas entram...E a vidasegue(2008).

    A frase de Seu Zez quase que, se no totalmente, uma parfrase, no propositalbien sr, da frase de Pierre Sanchis, numa ntida evidncia da possibilidade de encontro

    da prtica dos autores com a teoria de campo:

    Por uma que desaparece, reforam-se dez,e quantas novas festas surgem um pouco

    por toda a parte! As mesmas? Ousemelhantes? No completamente. E, sedesaparecem algumas particularidades,

    criam-se outras e estabelece-se novadiversificao (1992: 16).

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    matriz imaginria e imagtica que orienta a devoo do congadeiro (Alves, 2006)10.

    Como ela ressalta, as festas do ciclo do reinado se concentram nos mistrios gloriosos.

    Nos meses que ns estamos vivendo aquaresma, o Reinado fica parado, o

    Reinado t fechado. No tem nenhuminstrumento rufano, ento, para secelebrar o tero a gente celebra o mistriodoloroso que ns to vivendo a paixo de

    Jesus Cristo morto (Seu Dirceu apudAlves, 2006: 150).

    Observei que em Justinpolis, a lei do rosrio mantida para todo calendrio

    anual: as festas do reisado se concentram nos mistrios gozosos, no perodo quecorresponde aos mistrios dolorosos, a irmandade guarda todos os tambores e permanece

    sem festas. Fato corroborado pela fala de Seu Dirceu quando nos diz:

    Cada tero tem cinco mistrios, cadamistrio so dez ave-marias. O rosriotem o total de 150 ave-marias. Antes noexistia o rosrio, existia o que o negrotinha, ptala de rosa. A igreja inventou o

    tero, mas as rezas do rosrio j existiapros negros. Em cada uma das festas, nsreza um dos mistrios do rosrio (2008).

    Seria muito interessante atentarmos para o perodo de pausa da festa, para qual

    maneira ele nos diz sobre o modo de estabelecer a relao com o sagrado. Entretanto, uma

    reflexo mais desenvolvida sobre a pausa festiva e suas implicaes deixarei para

    aspiraes futuras. Passo agora a compreender a forma como algumas festas ensejam s

    outras, formando camadas de pequenos ciclos at a formao do ciclo-circuito, fococentral desta dissertao, sua razo de ser. Comecemos por uma primeira aproximao.

    O ciclo maior (anual) comporta dois pequenos ciclos (Rosrio e Reis) e cada um

    deles possui trs festas dedicadas aos santos padroeiros. As festas do ciclo do rosrio,

    10 Os mistrios do rosrio de Maria so: gozosos [nascimento de Jesus Cristo,jbilo e glria], dolorosos [sofrimento de Jesus, crucificao, morte], gloriosos[ressurreio de Jesus]. H ainda os luminosos, produto de acrscimo feito por Joo PauloII e refere-se vida do Filho de Deus, seus milagres, suas pregaes e seus feitos

    importantes (Perez, 2009).

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    Segundo Seu Dirceu, o dia 06 de janeiro, no o dia de desmonte da lapinha

    tampouco o dia que marca o fim dos festejos natalinos. Diz ele:

    A histria ensina o contrrio, pois aps o

    dia da chegada dos magos, a coroao e aentrega dos presentes que o povoadocomeou a festa (2008).

    Cada uma das trs festas de Reisado marca uma das trs etapas que corresponde a

    um trecho da caminhada dos reis. Realizada na casa de algum dos devotos, a Festa a

    Santos Reis e a Festa a Nossa Senhora da Luz no tem lugar fixo, variando de ano para

    ano. A festa a So Sebastio, por pertencer simultaneamente ao congado e ao reisado,

    diferentemente das outras duas, acontece sempre no terreiro do congado.

    Durante todo o perodo, a caravana percorre diferentes casas visitando as lapinhas,

    cantando versos e recolhendo doaes. Cada vez que a folia bate numa casa, ela conta

    trechos da hi[e]stria da peregrinao do reis magos, uma narrativa que tem no texto

    bblico sua escritura principal, mas que recebe algumas pinceladas de outros eventos

    mticos, acrescentando uma colorao diferente ao modelo inicial(1994)12.

    A primeira etapa da folia sai no ritmo das batidas de caixa de nome Rei Novo,

    narrando o Ciclo da Boa Nova ou Nascimento. chamado de giro de ida, pois

    corresponde sada dos reis de suas terras at a chegada lapinha. Comea na virada do

    dia 24 para o dia 25 de dezembro, estendendo-se at o dia 06 de Janeiro, quando se

    comemora a Festa de Reis.

    A segunda etapa indica a chegada dos reis na lapinha, o oferecimento de seus

    presentes e suas respectivas coroaes pela Virgem Maria. Nesta etapa, a folia troca de

    bandeira, muda suas batidas de caixa e os versos cantados, seguindo com estes at o dia

    21 de janeiro na Festa a So Sebastio.

    A terceira etapa da folia acompanha os ritmos de nome Rei Velho, comea com aapresentao do menino Jesus ao templo e narra o retorno dos reis magos para suas terras.

    A festa de encerramento do ciclo do reisado chamada, pelos membros da irmandadade,

    de festa depifania, diferentemente do que ocorre no costume cristo, a epifania na

    irmandade no se d no dia de reis, comemorada no dia 02 de fevereiro, em homenagem

    a Nossa Senhora da Luz.

    12 O termo colorao nos remete interferncia da cultura negra na tradioIbrica, tratada por Gomes e Pereira (1994: 61).

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    Segundo Seu Dirceu, a festa da pifania a festa de encerramento, a festa de

    arremate da folia. Ela a maior festa, representa a viagem de volta dos reis, o ltimo

    encontro antes da despedida final do retorno definitivo para suas terras.

    deste modo que a irmandade de Justinpolis segue sua vida, com muita

    festividade e com muito trabalho. Sob a direo de Seu Dirceu, Seu Zez, Edinha, Luiza,

    Adelmo e Nenzinha (in memoriam), eles se quebram e requebram [na festa e fora dela],

    ludibriando os tempos do trabalho e os tempos do lazer. Contando-nos suas hi[e]strias

    mostram-nos tambm, de um modo especial, o jeito que lidam com a prpria hi[e]stria.

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    2 Parte:

    Ciclo festivo e alternncia

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    4. Nota terica 1: primeiras consideraes

    A festa vista como acontecimento coletivo ultrapassa o sentido da comemorao e

    atua na formao dos vnculos que fundamentam a experincia humana. Ao longo dos

    captulos anteriores, procurei esboar como ela marca hi[es]strias, e de um modo

    particular em Justinpolis, pontuando e regulando o curso das vidas das pessoas.

    A festa ndice de temporalidade, marca os tempos fortes, culminantes, para a

    coletividade. Materialidade disso nos nossos calendrios, que colocam em destaque os

    dias de domingo e de feriados [leia-se, dias de festas]. De fato, como nos diz Roberto

    DaMatta (1983), temos um modo especial de sociabilidade, pois somos submetidos s

    regras de um pas carnavalizado, logo, s regras da festa.

    Antes de avanar na questo, quero considerar primeiramente a proposio de

    Perez (2002) de tomar a festa como

    uma forma ldica de sociao e comofenmeno gerador de imagens multiformesda vida coletiva, que busca mostrar comoo vnculo social pode ser gerado a partirda poetizao e estetizao da experincia

    humana em sociedade (2002: 17).

    Assim, o estudo da festa fornece elementos para pensar as bases constitutivas dos

    vnculos que fundamentam a experincia humana nas dimenses da vida social [regra

    estrutural] e da vida coletiva[ordem dos sentimentos]. Admitimos a noo de estrutura da

    vida social, bem entendida, em seu dinamismo, incorporando o termo sociao de

    Simmel,

    como um processo permanente do vir aser social que, no se confunde nem com asocializao nem com a associao, umavez que d conta, no de contedos, masda forma (realizada de incontveis

    maneiras diferentes) pela qual osindivduos se agrupam (Simmel apudPerez 2002: 18).

    Tal proposta aproxima o estudo da festa ao domnio da esttica, do ldico, dosonho, da arte, [en bref], do imaginrio. A teoria seminal de Durkeim nos fornece bases

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    elementares para a compreenso da festa como lugar privilegiado de exaltao dos

    sentimentos coletivos. Para o autor, a festa um agrupamento nico em estado de

    exaltao geral em torno de uma coisa ou algum e gera efervescncia coletiva, exaltao

    das paixes comuns, produzindo a comunho de sentimentos que possibilita a

    transgresso de normas e reforo dos vnculos (1985). Diz ele:

    No seio de uma assemblia que esquentauma paixo comum, encontramo-nos

    suscetveis de sentimentos e de atos de quesomos incapazes quando estamosreduzidos s nossas foras (1985: 300-301).

    De outro modo, podemos acentuar o carter do estar - junto na festa, a partir das

    reflexes trazidas por Mauss (1981) com seus estudos sobre rituais funerrios autralianos.

    A passagem abaixo exibe o carter coletivo e, ao mesmo tempo, obrigatrio da expresso

    fisiolgica dos sentimentos.

    No so somente os choros, mas todos ostipos de expresses orais dos sentimentosque so essencialmente no fenmenosexclusivamente psicolgicos, ou

    fisiolgicos, mas fenmenos sociais,marcados eminentemente pelo signo dano espontaneidade, e da obrigao mais

    perfeita (1981: 325).

    Neste pensamento, o autor indica a centralidade da festa na experincia humana.

    Pela incorporao de trs elementos: corpo, conscincia individual e a coletividade, a

    festa expressa a prpria vida, o homem, sua vontade de viver ele mesmo sua vida (Mauss,

    1981: 334).

    Avanando um pouco mais, necessrio considerar como os trabalhos inaugurais

    de Durkheim e Mauss forneceram ingredientes para Roger Callois (1989) elaborar sua

    teoria que ressalta a alternncia de ritmos que a festa produz.

    A noo de efervescncia coletiva de Durkheim foi incorporada como momento

    que corresponde ao cume do ritual, indicando assim a existncia de um rompimento

    temporal da festa com a vida profana para realizao da experincia plena do sagrado

    (Callois, 1989). Assim, com base no autor, podemos dizer que a amplitude ritual, ou, em

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    Acompanhando as contribuies dos autores, [ainda que falem da festa em relao

    sociedade, diferente do tratamento que tenho dado, pois adoto a verso de Perez (2004),

    que trata a festa como perspectiva], notamos como a festa, em sua multiplicidade de

    formas, evidencia a experincia singular do sagrado, fazendo-se como um perodo

    peculiar de transgresso da ordem e de atividade coletiva intensa. Podemos assumir ento

    que de maneiras inusitadas, a festa atua sobretudo como um operador de ligaes. Como

    bem salientado por Perez, trata-se, portanto, de um mecanismo festivo atuante. Diz ela,

    O fato (leia-se festas institudas) no seconfunde e no se sobrepe aomecanismo. A desconstruo,desrealizao do real institudo e a

    decorrente abertura para o imaginrio,isto , o no institudo, operaofundamental realizada pelo mecanismofestivo, uma virtualidade que podeeclodir ou no no interior das festasinstitudas (2004: 16).

    Creio que chegamos ao ponto que me permite retomar e lanar um outro olhar

    para as questes preliminares da pesquisa. Tomo a liberdade de usar do mesmo

    argumento que foi utilizado por Mauss, Callois, entre outros, de outro modo. Adoto aqui a

    teoria da sazonalidade no como uma ilustrao da vida religiosa, mas como princpio

    geral de alternncia da vida social e da experincia coletiva.

    A passagem a seguir um convite para pensar o princpio da alternncia como via

    de regra para a experincia humana. J mencionada na introduo desta dissertao,

    devido sua importncia, repito-a novamente.

    A vida social no se mantm no mesmo

    nvel nos diferentes momentos do ano, maspassa por fases sucessivas e regulares deintensidade crescente e decrescente, derepouso e de atividade, de dispndio ereparao(Mauss, 1974: 324).

    Sinto-me inclinada a propor que as duas modalidades de festa de Justinpolis,

    alternando-se, possibilitam a variabilidade de experincias e produzem modos distintos de

    estabelecer vnculos. A alternncia pode ser pensada em boa medida se utilizarmos as

    categorias desenvolvidas por Arnold Van Gennep (1978) e Victor Turnner, (2000),

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    autores que inauguram o estudo de rituais, como categoria a autnoma em relao a

    outros domnios14.

    A dinmica da mudana que o ritual favorece se aplica no somente aos ritos de

    passagens, onde ela estrutural, mas a todos os ritos. A ocorrncia do rito destinada a se

    repetir todas as vezes que ocorrem circunstncias que o produzem (Van Gennep, 1978).

    Desse modo, descartamos uma viso esttica de rito, introduzindo um dinamismo a partir

    da considerao de sequncias rituais que compe cada rito.

    Aqui, a ideia de sequncia indica que no se devem tratar as partes do rito

    isoladamente, mas na sua situao lgica, ou seja, no conjunto de seus mecanismos(Van

    Gennep, 1978: 86).

    Seguindo as orientaes do autor, passemos agora para a estrutura ritual tpica das

    festas do catolicismo popular brasileiro, presentes tambm nas festas em Justinpolis,

    examinando suas partes constitutivas, ou seja, suas sequncias rituais: santos, bandeiras,

    reis, procisses, cumprimento de promessas, msicas, danas, comidas, preces.

    Esses elementos compem sequncias rituais que, por sua vez, do forma

    estrutura das festas [reinado, reisado]. Em cada festa, adquirem diferentes atributos,

    podendo se repetir em diferentes sequncias do mesmo ciclo e retornar de outro modo, no

    ciclo seguinte.

    Conforme sugiro a seguir, esta caracterstica que confere o carter de

    alternncia, dando estrutura das festas sua forma cclica. Caracterstica de suma

    importncia a este trabalho.

    14 Rito passa a ser compreendido no como representao, mas como realidadevivida, paradoxo produtivo, como drama social em que comportamentos constituemunidades scio-temporais mais ou menos fechadas sobre si mesmas (Victor Turnner,

    2000).

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    Nas festas de reisado os elementos so acionados de outro modo, configurando

    outras sequncias rituais:

    Elemento Atributo

    Montagem da lapinha Abertura do ciclo

    Retirada da bandeira Inaugurao do perodo festivo

    Alvorada, mascaramento dos reis e formao

    da caravana

    Incio da noite de festa

    Cortejo Conduo dos reis a casa do devoto

    Preces Pedidos de licena para realizao da festa.

    Seqncia celebrativa de entrada na casa do

    devoto

    Alimento sagrado Jantar oferecido pelo devoto

    Promessas Seqncia profana realizada pelos reis aos

    devotos

    Retirada da bandeira Passos de agradecimentos e passos de

    retirada da caravana da casa

    Guarda da bandeira Despedida e mudana do perodo festivo

    Desmontagem da lapinha Fechamento do ciclo

    Figura 6: Sequncias rituais das festas de reisado

    Para compreenso das sequncias importante enfatizar que os elementoscamdombe, lapinha, bandeiras e reis configuram sequncias rituais no incio e no fim das

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    festas. Assim, para cada sequncia de entrada na festa corresponde uma sequncia de

    sada idntica, porm inversa. Sabendo-se que o candombe e a coroao dos reis congos

    e a lapinha fazem referncia aos ciclos [reinado, reisado], que ocorrem desse modo, uma

    vez em cada um dos seus respectivos ciclos. O elemento bandeira recebe atributo em

    relao ao perodo festivo e ocorre no incio e no fim de cada uma das trs festas de

    ambos os ciclos. Os outros elementos fazem referncia ao dia da festa, e se repetem em

    cada dia no caso das festas do congado, e vrias vezes em cada noite de sada da folia.

    O toque do candombe e a montagem da lapinha constituem o fundamento da

    festa, pois evocam a cena fundante, onde tudo comeou. Assim, eles so presena

    obrigatria para a realizao da abertura e do encerramento dos seus ciclos festivos

    correspondentes. Como diz Seu Dirceu, as festas da irmandade falam sobre reis e sobre

    realezas de modos distintos, o candombe evoca o fundamento dos reis congos africanos e

    a lapinha evoca o fundamento bblico dos reis magos (2008).

    A realeza exibida de formas diferenciadas nas festas: no reinado os reis so

    solenes e consagrados pela utilizao da coroa e do cetro; no reisado, os reis so

    reconhecidos pelo uso de suas mscaras.

    O fundamento da festa transmitido pela oralidade, entoado pelos cantos e

    acompanhados das danas que se fazem presentes em toda a sequncia festiva, dando cor,

    calor e agitao cena festiva. Euridiana Souza (2009) nos lembra brilhantemente como a

    msica mana, essa substncia manejvel, mas independente, exatamente pelo poder que

    tem de dar valor s coisas e s pessoas. Acompanhada pelos gestos, responde sobretudo a

    uma experincia que no est servio de nada, se no pelo fato de responder

    necessidade de gesticular e de produzir agitao. A eficcia do gesto, como nos diz

    Duvignaud, se d no s porque ele aparenta um si da existncia e nos engaja na vida

    imaginria, mas, sobretudo porque extrai o mito da linguagem e o substitui na rede de

    uma comunicao (1983:88). Assim canta-se e dana-se muito nas festas. A festa, essedom do nada, movimento corporal. Para alm de tentar decifrar os significados dos

    cantos e das danas, importante frisar a necessidade obrigatria de eles acontecerem.

    o que Perez (2002) toma como significante flutuante.

    Os cantos do reinado so entoados pelos capites e pelas guardas. Cada guarda

    possui seu canto e seu movimento especfico realizado pelos ritmos produzidos pelos

    instrumentos. Alm das caixas de percusso, contam com um reco-reco e um patangome,

    instrumento tpico de congado, que construdo por duas calotas de carro unidas epreenchidas por gros de arroz. Quando tocada, produz um som de chocalho. Os toques

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    podem ser serra acima, serra abaixo, repicado e dobrado. A variao desses toques dada

    pelo tempo empregado na frase rtmica em cada um deles.

    Cada sequncia ritual pede um toque de caixa especfico. Alguns destes so

    definidos previamente, outros determinados pelo capito da guarda na sequncia da festa.

    uma sabedoria que somente os mestres congadeiros possuem. Como diz Seu Dirceu, se

    tem muito morro pra subir, mando um toque mais forte pra ajudar a seguir em frente e

    chegar l em cima, se ns tamo descendo eu mudo pra serra a baixo, se no corre de

    mais(2008).

    No reisado, os cantos so realizados pelo mestre e pela caravana e se dividem em

    hinos de adorao e de passos. Os instrumentos tocados pelos folies de Justinpolis so a

    viola, o violo, o cavaquinho, a sanfona e a caixa. A maioria dos folies tem uma

    hi[e]stria que relaciona seu instrumento com a entrada na folia. Vale dizer que esses

    instrumentos tm mana, sendo utilizados com o nico propsito de tocar na festa. De fato

    o que se nota no relato que foi feito no ano de 1996 por Seu Ado, h quinze anos

    violeiro da folia de reis de Justinpolis.

    Esta viola tem quatro anos que tenho ela,eu fiz um voto de compara especialmente

    para acompanh a folia. Essa como diz,eu j passei a orde l pra casa, que o diaque eu fizer a minha ltima viagem, praessa aqui s doada pr folia (apud KtiaCupertino, 2006: 126)

    Nas festas de reinado as danas ficam a encargo das guardas. A guarda de

    moambique faz danas com gestos mais contidos e solenes, com os troncos curvados e

    os ps firmes no solo. De outro modo, a guarda de congo dana para o alto realizando

    gestos mais soltos e amplos, erguendo-se em direo ao cu. Nas festas do reisado, so osreis que exibem suas danas, variando entre fagote, fagote para lundu e lundu. Eles

    variam entre danas mais lentas e suaves para sapateados firmes e marcados.

    De acordo com Van Gennep, h uma regra geral de ocupao de territrio em que

    os limites territoriais so marcados por um objeto que expressam interdio de carter

    mgico-religioso (1978: 35). Postes, mastros, postios, pedras ou esttuas, no mundo

    clssico, ou outros objetos mais simples que, hoje em dia, so colocados para demarcar

    esses limites e normalmente vm acompanhados por um rito de consagrao. desse

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    O levantamento das bandeiras do congado e a troca de bandeiras da folia so

    realizados sem obrigatoriedade das pessoas estarem com suas fardas, exceto a bandeira do

    dia da festa. No caso dos reis congos, eles no precisam usar suas coroas, e no caso dos

    reis magos eles tambm no precisam usar suas mscaras. na alvorada que as pessoas se

    transformam, vestem suas fardas, pegam seus instrumentos, preparam-se para assumir

    seus respectivos papis, mantidos por todo o dia de festa.

    De fato, a alvorada corresponde a um procedimento de diferenciao, como

    acrescenta Seu Dirceu, as pessoas deixam de ser chamadas pelos seus nomes [Seu Dirceu]

    e passam a ser nominadas pelas funes no ritual [capito regente do congado; mestre da

    folia de reis]. Assim ela nos introduz na performance festiva, esse conjunto de atos de

    mudana de vesturio, exteriorizado pelos materiais impressos no corpo, que integra uma

    sequncia que faz o grupo sair domundo profano e o agregam ao mundo sagrado(Van

    Gennep, 1978: 154).

    Nas festas do congado, as funes esto dispostas numa hierarquia ritual formada

    primeiramente pelos reis, pelas rainhas e pelas princesas do reinado, seguida pelo capito

    mor, pelo capito regente, pelo capito da guarda de moambique e pela capit da guarda

    de congo. Por ltimo, os caixeiros e os danarinos das guardas formam o corpo de baile

    da festa. A hora mais importante da alvorada quando os reis recebem suas coroas. A

    coroao chamada tambm de tirada dos reis (Seu Dirceu 2008).

    Os reis e as rainhas do congado devem portar coroas, cetros e roupas finas. Os

    capites usam fardas e portam bastes e espadas. O modelo das fardas da guarda de

    moambique deve ser branco e azul formado por um saiote, por uma blusa, um leno na

    cabea, pelas gungas nos ps e pelo rosrio, que entrelaado no tronco em forma de X.

    Na guarda de congo no h uma cor definida, nem um modelo fixo, no h gungas, o

    rosrio colocado sobre um dos ombros trespassado at o quadril do lado oposto ao

    ombro.A hierarquia ritual no reisado menos complexa que do reinado. Iniciada pelos

    trs reis magos, seguida pelo mestre, finalizada pelo coro de seis vozes e violas. As

    fardas dos violeiros no tm cores ou desenhos especficos, a uniformidade dada pela

    cala social, sapatos pretos e um chapu que no pode faltar na cabea. J os reis possuem

    uma roupa com cores e mscaras especficas. O Rei Belquior usa mscara negra e veste-

    se de vermelho, o Rei Baltazar usa barba e veste-se de branco e o Rei Gaspar usa mscara

    de jovem e veste-se de preto. Do mesmo modo, a alvorada no dotada de tanto rigor eseriedade como no reinado. De modo mais informal, os integrantes da caravana vo

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    chegando e se reunindo na casa do mestre para aquecer suas vozes e violas. No h na

    sequncia algo que corresponderia coroao dos reis, mesmo porque a ao de colocar e

    de retirar as mscaras realizada em separado, mantendo em segredo a identificao das

    pessoas.

    As procisses exibem o carter pblico da festa, caracterstica peculiar das festas

    do catolicismo popular brasileiro, tido como um catolicismo processional. Reconhecidas

    como atividades urbanas mais antigas, apresentam um rito-espetculo, como nos diz

    Perez. Mostram uma maneira singular de viver em sociedade, de ver o mundo e de com

    ele relacionar, pois (...)

    (...) revelam uma sociedade que desde o

    comeo vive do espetculo, das mudanase da fuso de vrios cdigos e registrosintermutveis, que ri de si mesma, que

    poetiza as relaes dos homens consigomesmo e dos mundos nos quais vivem, ou

    seja, o profano e o sagrado (Perez, 2002:43).

    Podemos ainda considerar que as procisses so um meio conduzir as bandeiras,

    os santos e os reis. Essa sequncia ritual encontrada em todas as festas da irmandade e

    que corresponde ao perodo de transporte do objeto sagrado de um lugar para outro , por

    esse motivo, classificada na categoria dos ritos de margem (Van Gennep, 1978: 155).

    Permanecendo nessa via de anlise, observei um conjunto de sequncias rituais

    que se destacaram pela sua preeminncia celebrativa. So preces de carter obrigatrio,

    realizadas por um procedimento de recitao rgida e solene que corresponde aos pedidos

    de licena para entrada no terreiro do congado e para entrada na casa do devoto de santos

    reis. Segundo Van Gennep, esses procedimentos como passagem material na transio do

    espao da rua para o local sagrado ocorrem pela existncia da interdio de carter

    mgico-religiosa, que normalmente expressa por marcos, muros, imagens, poste, prtico

    e soleira.

    As sequncias rituais de passagem nas festas da irmandade indicam como o rito de

    passagem material se torna um rito de passagem espiritual. Aqui, a margem, ou melhor

    dizendo, as margens, correspondem a uma simples passagem pelo porto de entrada,

    passagem pelos mastros no terreiro do congado, passagem pelas imagens dos santos e das

    bandeiras. O mesmo ocorre nas festas da folia de reis, que tm como interdio o porto

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    de entrada no terreiro do devoto, a porta de entrada e a imagem dos santos reis na

    bandeira e na lapinha consagrada.

    O terreiro apresenta a seguinte espacialidade:

    espao para refeio

    Porto de entrada

    band eiras

    sede

    igreja

    Figura 7: Vista superior do terreiro da festa de congado

    Nas festas do reinado, procedem-se sequncias de licena para passagem pelo

    porto de entrada do terreiro e sequncias de licena para passagem pela cruz e pelos

    mastros. Em seguida h sequncias de oraes na sede em adorao aos tambores do

    candombe e aos outros objetos sagrados e oraes na igreja, ocorrendo na maioria das

    vezes em forma de celebrao pblica de missa.

    No reisado o espao sagrado a casa de cada um dos devotos. Assim, a seqncia

    de pedidos de licena ocorre vrias vezes na noite, o que a torna mais bem percebida pelo

    observador do que a que ocorre no terreiro. De fato, importante ressaltar que a folia de

    reis uma festa de interao mais direta entre os devotos e os folies.

    As casas dos devotos possuem a seguinte diviso espacial:

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    Figura 8: Vista superior da casa de um devoto de Santos Reis

    A sequncia ritual celebrativa de pedidos de licena no reisado correspondem

    passagem pela porta, aos pedidos de licena, entrega da bandeira, adorao lapinha e

    orao ao dono da casa.

    Nota-se que h uma analogia entre as sequncias rituais do reinado e do reisado,

    que comea pela passagem pela porta, em seguida pelo fundamento da bandeira, depois

    pelo local sagrado onde est o fundamento da festa, (a lapinha ou a sede do candombe),

    terminando pelo local onde se realiza o cerimonial pblico (igreja ou a sala da casa do

    devoto). Desse modo, a casa do devoto de Santos Reis e o terreiro do congado

    estabelecem limites entre o mundo estrangeiro e domstico e o mundo sagrado e profano,

    pois, como diz o autor, atravessar a soleira significa entrar num mundo novo(1978: 37).

    A experincia de comer est na ordem da experincia fundamentalmente orgnica

    [corporal] e assim como a msica e a dana sentida no paladar, na escuta, e na ao

    gestual. O alimento, signo digervel, est presente em todas as festas. Como nos diz

    Callois (1989), no h festa que no comporte um elemento de pandega de excesso

    realizado pelo ato que comer. Se na vida cotidiana dos membros da irmandade de

    Justinpolis o alimento regrado conforme as possibilidades econmicas, na festa, como

    tambm observou Zigmund Freud, ele figura um excesso permitido, ou melhor,

    obrigatrio, a ruptura solene de uma proibio (1974: 168).

    Assim, come-se muito em todas as festas. Nas festas de reinado servido caf da

    manh para as guardas visitantes, s vezes um jantar ou um lanche no fim da tarde. Mas o

    Porto de entrada

    espao para refeio

    Lapinha

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    momento em que ocorre a maior distribuio de alimento na sequncia ritual do almoo

    de domingo. No reisado o alimento oferecido pelo devoto, normalmente em forma de

    jantar ou lanche noturno, em cada casa a folia recebe algo para comer.Durante o percurso

    de uma noite da caravana podem ser servidos em torno de cinco lanches no perodo de

    seis horas. a pandega a que se refere Callois. A sequncia ritual do jantar o nico

    momento festivo em que os reis retiram suas mscaras. O ato de alimentar um

    procedimento de aliana e de agregao. Todos se tornam iguais diante do alimento

    sagrado.

    Assim como o alimento, as promessas indicam procedimentos de agregao (Van

    Gennep, 1978). Promessas so elementos fundamentais para a constituio das festas

    religiosas mineiras, como j pontuado por Zaluar (1983) e por Sanchis (1983), e

    evidenciam as relaes de trocas entre os festeiros e os festejados. O cumprimento das

    promessas possibilita o estabelecimento de duplo vnculo: com a ordem divina e com a

    ordem dos homens.

    Constitui-se como a sequncia que mais se diferencia entre os ciclos. No reinado,

    o cumprimento das promessas o cumprimento de uma obrigao, realizada com

    seriedade, revela o plo da magia. As guardas circulam,cantando e danando, em torno

    da igreja, conduzindo o dono da promessa a pagar o pedido realizado ao santo. As

    guardas convidadas que recebem o almoo tm a obrigao de retribuir.

    No ciclo do reisado o cumprimento das promessas realizado pelos reis que

    danam para os devotos recebendo deles um pagamento em troca do espetculo. Sempre

    com muito escrnio, com muito canto, e com muitos versos, essa sequncia revela o plo

    agonstico.

    A sequncia ritual das promessas nos coloca, em ambos os casos, diante de uma

    relao de troca a qual ser mais adiante tratada.

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    5. Estrutura ritual e testemunho

    Seguindo as pistas fornecidas na nota terica, procurei compreender a constituio

    da estrutura ritual das festas em sua dinmica, como indica Turner, ou seja, a funo do

    smbolo em ao ritual (2000). Dito de outro modo: as atuaes nos diferentes perodos

    da festa compondo as sequncias rituais. Para tanto, acompanhei junto irmandade as

    diferentes sequncias, as que antecedem e as que sucedem o dia da comemorao. Tomo

    como referncia a observao pessoal associada ao testemunho nativo. Apresento desse

    modo a estrutura ritual de cada um dos ciclos, colocando em destaque as sequncias

    rituaise suas respectivas cenas.

    5.1. Ciclo do Rosrio ou Reinado

    As trs festas de reinado apresentam as mesmas sequncias rituais. Entretanto,

    conforme se verifica pelo programa anexo, h particularidades que as diferenciam, como,

    por exemplo, o santo homenageado e o horrio da missa. As programaes so feitas e

    distribudas pelos membros da irmandade, tornando a festa pblica. Entretanto, o dia

    principal da festa no traduz toda a experincia festiva do ciclo, como aponta-nos Seu

    Dirceu, afirmando com propriedade:

    As pessoas s vem o resultado final, masmuita coisa j aconteceu at l... (2008).

    5.1.1. Abertura e fundamento: o candombe

    O candombe na Irmandade no de bizarria, de fundamento, ele no sai

    diariamente, no faz batuque em festas de aniversrio, pode at fazer, mas no faz. O

    candombe de firmamento. Ele firma alguma coisa importante(Seu Dirceu, 2007). Ao

    empregar o termo fundamento, Seu Dirceu nos diz do lugar que o candombe ocupa na

    constituio da irmandade de Justinpolis. Mantido por poucos, considerado o que tem

    de mais africano no congado, portanto mais sagrado. Como sequncia ritual fundante, ele

    abre e fecha o ciclo do reinado, assim se fez na abertura do reinado no segundo domingo

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    de janeiro do ano de 2008, iniciado pelas palavras de Seu Zez que, como membro mais

    velho da irmandade, fez as vezes, tirando pontos de licena para se aproximar dos

    tambores sagrados:

    Chego no p de candombe de vera,Peo licena;Peo licena meu SantanaE tambm minha pucaDo Rosrio de Maria, no rosrioPeo licena..

    Com os tambores em suas mos, o mestre Zez tocou em memria de seus mestres

    ancestrais. Dona Edinha tirou outro ponto, depois Seu Dirceu tirou mais um, os mestres se

    revezavam nos cantos, acionando o passado e reconstruindo o tempo da hi[e]stria de um

    modo outro. A festa vai se tornando assim um espao para o exerccio dos sentimentos

    coletivos.

    Toda vez que tocado, os tambores evocam trechos do mito de retirada de Nossa

    Senhora do Rosrio, uma hi[e]stria que fundamenta todas as festas de congado e que me

    foi assim contada por Seu Zez em maio de 2008:

    Isto aconteceu h muitos anos atrsquando negro era escravo dos senhores e

    sinhs de engenho. Eles viviam nasenzala, e ela era o nico lugar quepodiam se divertir, a capoeira e ocandombe era o que faziam depois que oSenhor dormia.

    Importante ressaltar que o candombe j existia. Neste momento, Seu Zez pontuou

    veemente: no princpio era o candombe. Seguiu com sua narrativa:

    Assim como j sabido, no meio de umamultido de cem pessoas, sempre encontraum com mais f, n!? Assim foi nestapoca quando um negro, no meio de cem,viu essa moa bonita na proa do rio

    suspensa pelas plantas aquticas. Nasenzala, no momento da diverso, elecontava a histria pros outros.

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    Outros negros de outras fazendas tambmviam a moa, mas s negro via, osbrancos no conseguiam ver. Os negroseram colocados no tronco, sob a roda debater tocada a gua, pelos carrascos

    porque eram tidos como mentirosos. Masnenhum castigo adiantou e a histria foiespalhando pela regio.

    Todo mundo comentava da moa que osnegros via, mas que os brancos no via!

    Uma outra pausa foi provocada pela esposa de Seu Zez, que me trazia um caf

    com broa de fub. Enquanto tomvamos o caf, o mestre me introduz ao saber/poder que

    os negros possuem. Sem ler nem escrever na lngua de branco, restava ao negro manter apalavra. Seu Zez proferiu algumas palavras que no ouso reproduzir, mostrando-me

    como o saber se converteu em poder e mantido em segredo pelos mestres do congado

    que se comunicam na lngua de negro. Aps a pausa do caf, continuou com a narrativa.

    De tanto insistir, a os senhores reunidosresolveram dar um dia de folga pra todosos negros irem ver a moa deles no rio.

    Na virada na noite de lua minguante dodia 13 de maio, os negros juntaramtambores de tronco ocado, cobriram comcouro de cabrito amarrado com corda decip So Joo e formaram os candombes:Santana, Santina, guai.

    No outro dia de manh, descalos, ospretos velhos seguiram com os candombespra beira do rio e os brancos ficaram do

    alto da colina, longe pra espiar. Quandonegro tocou, a moa apareceu na proa dorio erguida pelas plantas e coberta poruma nuvem azul.

    O poder mgico de outro modo ressaltado na narrativa quando nos conta que

    somente os negros podiam ver a moa e somente eles conseguiram retir-la da gua:

    Branco tocou negros com chicote, pegou

    a santa e levou pra uma emdia [igreja

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    pequena], mas noutro dia quando foraml, a santa no tava, tinha voltado pro rio.

    Os brancos desceram l com banda demsica, tocou bonito com seus

    instrumentos dourados, mas ela nem semexia. Quando negro tocou o candombea moa apareceu e veio em direo amargem. Mais uma vez, os negrosretiraram a Santa, branco tomava,colocava na igreja, mas ela voltava.

    Isto aconteceu trs vezes at que o negrodesafiou seu senhor: se negro conseguisseretirar a santa e deixar na igreja, os

    senhores dariam um dia de folga pronegro festejar. E foi assim que a moasaiu pela terceira vez.

    Seu Zez se levanta da cadeira, toma seu basto nas mos, mostrando-me com gestos ofim dessa hi[e]stria:

    Negro tocou o camdombe, tirou eladgua e beijou sua mo, Com licenamoa bonita.

    A o nego cambeta, preto velho, ofereceuseu cajado [muleta] como pinguela, umapassagem da gua pra terra. Ela saiu dagua, sentou no tambor mais velho, oSantana, e chorou. Assim como diz amsica:

    no santana ela sentou....h ela sentou

    Esperando aquela hora...

    E os negro liberth ela sentouEnquanto ouvia a questoEla chorouE a lgrima engrossouVirando o rosrioO rosrio de Maria.

    Depois ela tomou o cajado em suas mos,beijou trs vezes, assim, e devolveu ao

    negro, nosso basto. Tudo isso o que nstem de magia, o que ns tem de mais

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    sagrado, o que voc ta vendo hoje nasfestas: o nosso basto, o nosso rosrio, eas nossas gungas que possui guardadadentro dela, sete conchas do mar.

    No princpio era o s o camdombe (maiode 2008) [grifos meus].

    5.1.2. Inaugurao: levantamento dos mastros e das bandeiras

    O levantamento das bandeiras inaugural, constitui a sequncia mais ntima para

    o congadeiro, instante onde ele coloca toda a f para o bom prosseguimento dos festejos.

    O perodo festivo tem incio comumente quinze dias antes do dia da festa. O incio formal dado com o levantamento do mastro, que contm a bandeira de aviso, no terreiro. Na

    inaugurao da festa de So Sebastio de 2008, estando porta do terreiro, visualizei essa

    sequncia quando o silncio noturno de Justinpolis foi tomado pelo barulho dos

    foguetes. Tratava-se da bandeira do divino, que era levantada no terreiro da irmandade

    avisando a todos que ela j se encontrava em festa. Neste dia, os capites de guardas,

    guiados por seus bastes e suas espadas, cantaram e ergueram o longo mastro ao cu.

    Esta sequncia que apresenta a f pelo exerccio da fora fsica foi a nica em quevi o capito Adelmo retirar seu chapu de sementes. Com gestos quase imperceptveis, ele

    segurava o chapu fazendo suas rezas, pedindo uma boa realizao da festa, foi

    acompanhado por esta cano que se iniciou aos toques da marcha lenta e terminou, j

    com a bandeira hasteada, com o regozijo da marcha dobrada.

    dobra a marcha o instrumento; para abandeira levantar;

    dobra a marcha o instrumento; para abandeira levantar...Apruma ela bem aprumada,h essa flor.E essa flor... Por ns adorada!

    5.1.3. Alvorada e coroao dos reis

    A alvorada marca o incio dos festejos do dia de domingo. Comea com o nascer

    do sol, de modo que poucos so os visitantes que se animam a levantar to cedo paraparticipar desta sequncia da festa. Participam dela os congadeiros e as pessoas

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    envolvidas diretamente com a preparao da festa. Esta uma sequncia organizacional

    do dia, tal como aconteceu na manh de domingo da festa a So Sebastio em 2008.

    Na porta de entrada da casa do capito Adelmo, eu me encontrava, ainda com

    sono, s seis da manh do domingo de outubro do ano de 2008, quando uma salva de

    fogos reuniu toda a irmandade no quintal. Os adultos se aproximavam, as crianas que,

    desde pequenas participam com a mesma intensidade e responsabilidade adulta da festa,

    aguardavam de forma ansiosa a chegada de suas caixas enquanto eram arrumadas pelos

    maiores. Bebs, ainda de colo, tambm se vestiam de acordo. As fardas cobriam a pele, as

    gungas colocadas nos ps, os rosrios entrelaados no peito, aos capites restavam seus

    bastes e suas espadas. Esses objetos, na medida em que foram sendo colocados,

    imprimiam na pele marcas da memria simultnea de um corpo negro escravizado e

    acorrentado e de um corpo que carrega as lgrimas e a cor azul da virgem que os libertou.

    Ao som do apito os tambores romperam o silncio, lanando o primeiro repique.

    Aos poucos, o quintal da casa foi se transformando, o terreiro, normalmente ocupado pelo

    movimento das galinhas e pela preguia dos cachorros, se modificou com a concentrao

    das guardas. Os corpos comearam a se aquecer e a se mexer em conjunto num mesmo

    compasso de dois pra l, dois pra c. Comea o caminho crescente de agitao coletiva.

    Cor, movimento e som do outra forma ao terreiro que agora se torna festivo. o sinal de

    que a festa comeava.

    Muita ansiedade para quem se atrasava pois, o capito soprando o apito vrias

    vezes, indicava o comando, convocando a todos para buscar o rei. Como manda o

    fundamento do congado, a guarda de moambique assumiu seu papel de buscar os

    coroados cantando sob o solo do capito mor Seu Zez. Comeou assim o primeiro de

    uma centena de cantos que seriam entoados ao longo do dia:

    de vera minha me, que eu quero pedirlicena, pra sarava o capitoSarava rei e rainha, o rosrio de Maria.

    S rainha (eu) quero sua beno.Sob a licena de seus reis congos, as guardas se juntaram imagem do santo,

    preparado no andor e retirado da igreja desde a noite anterior. Neste dia, aps a alvorada,

    todos ali presentes seguiram em cortejo at a sede.

    Diferentemente do dia de So Sebastio, a alvorada da Festa a Nossa Senhora do

    Rosrio conta com a recepo de algumas das guardas visitantes. Desse modo, forma-se

    um cortejo mais extenso. Aps a busca dos seus reis congos, seguem para a casa dos reis

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    festeiros para tambm busc-los. Estes, aps receberem a coroao do dia, juntam-se aos

    outros para continuar a festa.

    5.1.4. Procisso: conduo e exibio pblica do congado

    De fato, a festa tambm espetculo, assim as coroas com seu brilho necessitam

    ser exibidas, por isso a forma processional marca das fest