203
UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS FACULDADE DE HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA MESTRADO DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS REPRESENTAÇÕES DE DIONISO NO IMAGINÁRIO ÁTICO (SÉCULOS VII a V a.C.) LEANDRO MENDONÇA BARBOSA GOIÂNIA 2010

DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS

FACULDADE DE HISTÓRIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

MESTRADO

DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS REPRESENTAÇÕES DE DIONI SO NO

IMAGINÁRIO ÁTICO (SÉCULOS VII a V a.C.)

LEANDRO MENDONÇA BARBOSA

GOIÂNIA

2010

Page 2: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

Livros Grátis

http://www.livrosgratis.com.br

Milhares de livros grátis para download.

Page 3: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

2

LEANDRO MENDONÇA BARBOSA

DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS REPRESENTAÇÕES DE DIONI SO NO

IMAGINÁRIO ÁTICO (SÉCULOS VII a V a.C.)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás como requisito para obtenção do grau de Mestre em História. Área de Concentração: Culturas, Fronteiras e Identidades Linha de Pesquisa: História, Memória e Imaginários Sociais Orientadora: Profª. Dr.ª Ana Teresa Marques Gonçalves

GOIÂNIA

2010

Page 4: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

3

LEANDRO MENDONÇA BARBOSA

DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS REPRESENTAÇÕES DE DIONI SO NO

IMAGINÁRIO ÁTICO (SÉCULOS VII a V a.C.)

Dissertação defendida pelo Programa de Pós-Graduação em História, nível Mestrado, da

Faculdade de História da Universidade Federal de Goiás, aprovada em ____ de

______________ de ______, pela Banca Examinadora constituída pelos seguintes professores:

Professora Doutora Ana Teresa Marques Gonçalves – UFG

Presidente

Professora Doutora Maria Beatriz Borba Florenzano – USP

Membro Externo

Professora Doutora Luciane Munhoz de Omena – UFG

Membro Interno

Professor Doutor Carlos Oiti Berbert Junior – UFG

Suplente

Page 5: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

4

AGRADECIMENTOS

É hora de agradecer. Por vezes isto é uma coisa clichê. Por vezes é algo emocionante. O

caso é que é necessário. Sem a ajuda e o apoio de algumas pessoas este trabalho não aconteceria.

A primeira e primordial ajuda foi sem dúvida de minha família. Financeiramente e moralmente

ela me apoiou em todas as fases do meu estudo; sem ela o término deste trabalho seria incerto.

Em igual relevância devo agradecer minha orientadora: Profª Dr.ª Ana Teresa Marques

Gonçalves. Nossa relação pode ser resumida em uma palavra: confiança. Confiança por aceitar a

orientação, dando-me a oportunidade de trabalhar com a área que eu realmente gostaria, mesmo

que muitos historiadores que respeito me dissessem que isto não aconteceria, pois muitos eram

os empecilhos. Confiança também por aceitar me orientar a quase mil quilômetros de distância.

Obrigado Ana, por toda a confiança depositada em mim.

Como bom historiador, sei que jamais poderia me desvencilhar de meu próprio passado;

desta forma a Universidade Federal de Mato Grosso do Sul constitui-se o ponto de partida de

minha carreira, e conseqüentemente alguns professores que nela estiveram ou ainda estão. Ao

Prof. Dr. Paulo Marcos Esselin devo, sem sombra de dúvidas, a função de meu ofício de

historiador. Obrigado professor por, ainda na graduação, me oportunizar ensinamentos que me

moldaram como profissional e como pessoa. Da mesma forma agradeço ao Prof. Dr. Cesar

Campiani Maximiano, que me proporcionou a oportunidade de escrever um trabalho realmente

histórico. Ao Prof. Dr. Gonçalo Santa Cruz de Souza, devo o auxilio para elaboração de meu

pré-projeto de Mestrado, que muito me ajudou quando do processo de seleção, e também por

sempre ter me prestigiado como profissional. Faz-se necessário agradecer também o Prof. Dr.

José Carlos Ziliani, por toda a ajuda concedida nestes tantos anos de convivência.

Já a vivência na UFMS como professor foi, apesar de bem diferente da vivência como

acadêmico, tão gratificante quanto. Agradeço aos meus alunos e orientandos pela compreensão

de, muitas vezes, ter de me ausentar por compromissos com a Pós-Graduação. Agradeço também

a todo o corpo docente do curso de História do CPTL, principalmente ao Prof. Dr. Fortunato

Pastore, pela amizade, companheirismo, pelas várias dicas acerca de meu tema e pelas tubaínas

de limão.

O tempo que passei na Universidade Federal de Goiás foi um momento ímpar em minha

vida, assim como o tempo na inesquecível cidade de Goiânia. Alguns mestres serão lembrados

para sempre em minha vida profissional: Prof. Dr. Élio Cantalício Serpa, Prof. Dr. Carlos Oiti

Berbert Junior e Prof. Dr. Luiz Sérgio Duarte da Silva, meus professores durante o cumprimento

Page 6: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

5

de créditos, foram imprescindíveis para uma visão mais madura deste ainda jovem historiador.

Às integrantes de minha banca – tanto de qualificação quanto de defesa – Prof.ª Dr.ª Maria

Beatriz Borba Florenzano (USP) e Prof.ª Dr.ª Luciane Munhoz de Omena (UFG), meu especial

agradecimento pela atenta leitura e pelos apontamentos, essenciais para o aperfeiçoamento do

trabalho. As falhas contidas neste são de inteira responsabilidade minha. Aos colegas da pós,

agradeço as trocas de experiências e o apoio nos momentos de angústia, seja no corredor da

Faculdade de História ou nas mesas da Pamonharia e do Mercado Popular. Agradeço também a

minha colega de orientação, Alice Maria de Souza, pela ajuda constante, sempre necessária para

alguém que mora longe. Como última menção a querida Goiânia, devo agradecer a alguém

muito especial, a grande amiga Luana Neres de Sousa. Graças ao seu incentivo, meu sonho foi

possível; naquela fria Londrina, em 2005, vi a primeira chama da antiguidade nascer com as

nossas conversas.

Devo agradecer a secretaria da Pós-Graduação, em especial à Neuza, pelo

profissionalismo e compreensão para comigo. Da mesma forma agradeço os funcionários da

biblioteca do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo, por abrirem seu

acervo para minha pesquisa, sem nenhuma restrição. De muita valia foi o site do Laboratório de

Estudos sobre a Cidade Antiga – LABECA: www.mae.usp.br/labeca, que proporcionou diversas

traduções de textos aqui utilizados. Ao amigo lusitano Manoel, também meu agradecimento, por

fazer o original do Hino Homérico a Dioniso atravessar on line o Atlântico e chegar até mim.

Devo agradecer também os funcionários da Universidad de Salamanca, por permitirem a

consulta em seu acervo de antiguidades.

Encerrando estes agradecimentos, que julgo tão importante como todo o resto do

trabalho, cabe aqui um agradecimento especial à Jaque, à Karina e ao Dente, família por algum

tempo e companheiros para toda a vida. Agradeço a todos os meus amigos – historiadores ou

não; com vocês tenho a certeza de que mesa de bar também é lugar de se fazer história. Termino

agradecendo ao povo brasileiro, pois tenho consciência de que pagaram muito caro para que eu

pudesse realizar meu trabalho. À Dona Maria Antônia, catadora de latinha, meu muito obrigado.

Page 7: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

6

SUMÁRIO

RESUMO................................................................................................................................08

ABSTRACT............................................................................................................................09

INTRODUÇÃO......................................................................................................................10

CAPÍTULO 1 – A REPRESENTAÇÃO DIVINA DURANTE O PERÍODO HOMÉRICO E

SUA INSERÇÃO NA POLÍTICA E NA SOCIEDADE........................................................13

1.1. A questão da representação.............................................................................................13

1.2. O imaginário e o mito: inter-relações e características conceituais.................................19

1.3. Os períodos micênico e homérico: organização e política...............................................30

1.4. Dioniso no Mediterrâneo..................................................................................................38

1.5. O Hino Homérico a Dioniso.............................................................................................56

CAPÍTULO 2 – PISÍSTRATO E AS TRANSFORMAÇÕES RELIGIOSAS NO PERÍODO

ARCAICO: O CASO DA DIFUSÃO DO DIONISISMO PELO PODER

TIRÂNICO..............................................................................................................................63

2.1. Pisístrato, o tirano demagogo da obra Histórias, de Heródoto.........................................63

2.2. Pisístrato, o tirano moderado da Constituição de Atenas, de Aristóteles.........................80

2.3. A difusão da memória religiosa através da questão artística: as representações

dionisíacas na cerâmica ática do período arcaico....................................................................89

2.4. Os Pisistrátidas, o fim da tirania ateniense e o governo de Clístenes.............................112

CAPÍTULO 3 – DIONISO NO PERÍODO CLÁSSICO: A FORMATAÇÃO DA IMAGEM

E DO CULTO NA TRAGÉDIA ATENIENSE....................................................................118

3.1. Ascensão de Péricles e apogeu da democracia...............................................................118

3.2. A questão do rito............................................................................................................125

3.3. O teatro democrático do século V e a imagem de Dioniso............................................139

3.4. As Bacantes e a imagem do deus Dioniso......................................................................148

CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................................184

Page 8: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

7

BIBLIOGRAFIA...................................................................................................................189

A) Documentação Textual.....................................................................................................189

B) Obras de Referência.........................................................................................................189

C) Obras Gerais.....................................................................................................................189

D) Sites..................................................................................................................................200

Page 9: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

8

RESUMO

O presente trabalho tem como intuito investigar como as representações de um deus

grego – Dioniso – foram se modificando conforme o passar dos séculos e dos momentos

históricos. A escolha em Dioniso se deu, primordialmente, por se tratar de um deus sem uma

definição clara: ora deus das festas, ora deus violento; ora um homem selvagem e ruralizado;

ora um efebo efeminado. Toda esta ambigüidade faz de Dioniso um deus com características

únicas, capaz de aparecer tanto em ocasiões religiosas e de celebrações, sempre com seu

vinho, quanto em momentos políticos e de grandes transformações sociais, como no caso da

tirania ateniense.

São diversos e variados os tipos de documentos que utilizaremos nesta dissertação.

Desde um Hino Homérico, passando por obras clássicas como a Ilíada e a Odisséia; relatos

históricos como Histórias e Constituição de Atenas, terminando em uma obra teatral, As

Bacantes. Além de documentação textual, trataremos também de documentos iconográficos:

os vasos e ânforas que representaram o deus Dioniso em diversas épocas distintas da história

ateniense.

Palavras-Chave: Dioniso; Pisístrato, teatro grego; As Bacantes; Eurípides

Page 10: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

9

ABSTRACT

Key-words:

Page 11: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

10

INTRODUÇÃO

Passados seis anos da publicação no Brasil do clássico sobre Dioniso, intitulado

Dionisismo, poder e sociedade na Grécia até o fim da época clássica, de autoria do

professor José Antonio Dabdab Trabulsi, poucas coisas sobre Dioniso foram discutidas neste

intervalo de tempo. O chamado deus do vinho, que ganhou grande notoriedade no meio

historiográfico brasileiro com os estudos de Trabulsi, vem sendo pouco ou quase nada

estudado desde então por outros especialistas da Antiguidade.

Este trabalho, seis anos depois, propõe uma leitura acerca de Dioniso, seu culto e as

suas representações imagéticas que, ora se assemelham, ora se distanciam das conclusões

apresentadas por Trabulsi. Queremos deixar claro que a obra Dionisismo, poder e sociedade

na Grécia até o fim da época clássica serviu como ponto norteador dos nossos estudos desde

o início, e a excelente pesquisa que esta obra apresenta elucidou muitos aspectos

completamente desconhecidos por nós. Não é nossa intenção nem esgotar o debate, muito

menos realizar uma tentativa de ultrapassar esta obra em qualidade e competência teórica; o

que pretendemos é uma outra abordagem historiográfica, com um aporte teórico distinto e

algumas fontes que não foram contempladas pela obra de Trabulsi, o que é normal quando se

pesquisa um assunto tão rico historicamente.

Dioniso e seu culto foram assuntos estudados pela mais diversa gama de

especialistas, nos mais distintos espaços de tempo – inclusive pelos próprios gregos. Porém,

foi com a obra O Nascimento da Tragédia, de Friedrich Nietzsche, nos tempos modernos,

que uma imagem una de Dioniso foi colocada e assim reverenciada. Dioniso muitas vezes

torna-se até mais nietzscheniano do que grego. As características exaltadas por Nietzsche

acabam por “modelar” uma só faceta do deus, como se as divindades gregas possuíssem

somente uma face, uma máscara. A proposta contida no trabalho é a de perceber que o deus

não é tão “moderno”, como às vezes os leitores de Nietzsche querem perceber. O deus é

grego e possui muito mais especificidades da Antiguidade do que a imagem que se formou a

partir do que Nietzsche apresenta.

Alguns são os nossos objetivos com esta pesquisa. O principal deles é realmente

perceber como se configurava esta religião em Atenas e, como um culto que antes era tão

misterioso, se transforma em uma grande festa para os habitantes da Ática. Da mesma forma,

como um deus que em períodos remotos era representado com uma imagem passa a adquirir

uma imagem distinta. Queremos constatar como o poder político influência no imaginário,

Page 12: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

11

por meio das manifestações religiosas.

Da mesma forma, diversos aspectos da cultura grega são por nós abordados neste

trabalho. Desde a religiosidade até as manifestações teatrais estão analisadas como forma de

compreender as especificidades deste imaginário helênico. Pretendemos estudar o poder não

de uma forma fechada, mas de uma forma ampla. Neste trabalho, abarcaremos as diversas

relações de poder com a sociedade, e deste com a cultura e com o cotidiano, isto é, de que

forma a política influencia os costumes e de que forma esta é influenciada por estes.

No capítulo um – que se subdivide em cinco partes – tratamos de algumas questões

conceituais pertinentes à nossa temática e às nossas fontes. Conceitos como representação,

mito e imaginário são tratados por meio de uma discussão teórica que facilite a compreensão

destas categorias como métodos de análise. Também situamos o contexto histórico do século

VII e como Dioniso aparece neste momento. O Hino Homérico a Dioniso, além da Ilíada e

da Odisséia, são as fontes tratadas neste primeiro capítulo. O Hino configura-se como uma

rica fonte acerca do imaginário helênico a respeito de Dioniso. Das obras Ilíada e Odisséia,

de autoria de Homero, estão analisadas as passagens particulares que remetem a Dioniso.

No segundo capítulo, que está subdivido em quatro tópicos, trataremos do período

seguinte: o arcaico. No século VI, várias transformações políticas e sociais ocorreram na

Ática; estas transformações afetaram sensivelmente os aspectos religiosos de Atenas. A

tirania de Pisístrato e, posteriormente, a de seus filhos, faz com que Dioniso e seu culto

adentrem no civismo da polis, junto com os seguidores do deus. Heródoto, em sua obra

Histórias e Aristóteles, na obra Constituição de Atenas, narram a nova forma de governo que

transfigurou vários aspectos de Atenas. Pretendemos analisar como a imagem de Dioniso

era retratada no início da tirania e como ela se transformou com o passar das décadas. Oito

imagens de cerâmica da época foram selecionadas por nós para percebemos como estas

transformações ocorreram, no que se refere as questões imagéticas.

No terceiro capítulo, que também está subdividido em quatro partes, tratamos do

período democrático. A hegemonia de Atenas com a vitória na Guerra Greco-persa faz com

que a economia da Ática conheça seu momento mais pujante, e isto permitiu que o governo

de Péricles tenha tido tanto sucesso. Junto com a democracia, surge também uma nova forma

de cultuar Dioniso. O deus, que anteriormente era ruralizado, é introduzido na cidade pela

tirania e, na democracia, o culto dionisíaco passa a fazer parte do calendário oficial de festas

atenienses. O capítulo conta ainda com uma discussão teórico-conceitual acerca do rito, e

com a análise de duas fontes. A primeira é a obra Poética, também de autoria de Aristóteles,

Page 13: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

12

na qual o filósofo tece uma análise do teatro ateniense. A última fonte é a peça As Bacantes,

escrita no finalzinho do século V, pelo tragediógrafo Eurípides. Esta peça, que é a principal

obra que aborda Dioniso e seu culto, possui inúmeros elementos caros ao dionisismo, e

pretendemos realizar uma leitura que possa elucidar aspectos do deus e de sua religiosidade

no período clássico.

Por último, vale ressaltar que não utilizaremos a sigla a.C – antes de Cristo – após os

séculos por tratarmos somente de períodos anteriores ao nascimento de Cristo. Quando for

necessário citar algum século depois do nascimento deste, utilizamos a sigla d.C – depois de

Cristo. Devemos deixar claro também que as citações de obras em inglês, espanhol, francês e

italiano foram traduzidas para o português por este autor. Da mesma forma, nos apoiando em

traduções já reconhecidas de vários documentos textuais, somos responsáveis por sua citação

em português.

Page 14: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

13

CAPÍTULO 1

A REPRESENTAÇÃO DIVINA DURANTE O PERÍODO HOMÉRICO E SUA

INSERÇÃO NA POLÍTICA E NA SOCIEDADE

1.1 A questão da representação

Tratar deste novo campo historiográfico – a chamada História Cultural – mostrou-se

um desafio com a expansão dos trabalhos com esta temática, ao contrário do que poderia

parecer à primeira vista. Com o desenvolvimento cada vez maior de pesquisas neste campo,

muita coisa passou a ser denominada de História Cultural, acabando por banalizar este novo

viés historiográfico. Não é nossa intenção neste trabalho realizar uma exaustiva análise sobre

a trajetória da escrita da história até culminar na História Cultural, nem pontuar as

contribuições deste campo para as ciências humanas, haja vista que vários autores já se

debruçaram nestas temáticas com maestria. A intenção é compreender como o conceito de

representação surgiu dentro dos trabalhos de História Cultural e de que forma ele serviu as

necessidades de nossa pequisa.

Krzysztof Pomian caracteriza esta chamada História Cultural como uma história dos

semióforos. Os semióforos, simplificadamente, são qualquer objeto que possa representar

signos deixados por um indivíduo ou uma sociedade, desde um lápis e um livro até um ídolo

religioso ou uma construção tecnológica, aproximando-se assim da teoria semiótica. O autor

também utiliza a linguagem como semióforo e parte de uma análise estrutural, unindo cultura

e linguagem para a compreensão do conjunto de sistemas de signos que formam uma

sociedade (POMIAN, 1998:89). São estas representações materiais que passaram a ser

agregadas pela História Cultural, como atenta Carlo Ginzburg:

Pomian, por sua vez, para entender o que unifica os objetos tão díspares que encontramos nas coleções, partiu das ofertas funerárias: nelas reconheceu, assim como nas relíquias, nas curiosidades, nas imagens, “intermediários entre o aquém e o além, entre o profano e o sagrado [...] objetos que representam o distante, o escondido, o ausente [...] intermediários entre o espectador que os mira e o invisível de que provêm [...]” (GINZBURG, 2001:93).

Page 15: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

14

O termo representação1 foi utilizado no final do século XIX, dentro dos estudos de

Émile Durkheim e Marcel Mauss sobre os povos ditos primitivos, nos quais estes pensadores

analisavam as formas integradoras de vida social por meio das pistas deixadas pelas

representações imagéticas, discursivas, ritualísticas e normativas (PESAVENTO, 2005:39).

As representações coletivas da obra de Durkheim mais tarde foram substituídas por novas

formas de análise, como as representações sociais formadas através da psicologia social,

mais flexíveis do que as representações coletivas, por facilitarem a comunicação e

garantirem os interesses comuns entre os membros de um mesmo grupo (SANTOS,

2008:20). Porém, com a ascensão da já citada História Cultural, a representação toma outras

formas, principalmente com os estudos de Jacques Le Goff e Roger Chartier. O termo

representação social substitui o termo mentalidades, do início do século. Como afirma

Sandra Pesavento:

Representar é, pois, fundamentalmente, estar no lugar de, é presentificação de um ausente; é um apresentar de novo, que dá a ver uma ausência. A idéia central é, pois, a da substituição, que recoloca uma ausência e torna sensível uma presença (PESAVENTO, 2005:40).

A representação engloba o simbólico de uma sociedade. É o que ela deixa

representado – muitas vezes sem intenção – em seu corpo social:

A cruz significa o Cristo. Ela não o substitui, mas é uma parcela dele, ou seja, é o Cristo que se significa na cruz e não o inverso. Em termos lingüísticos e da questão do todo representado na parte, Cristo está inteiramente presente nesse objeto. Assim também, o machado de Xangô faz presente para os seus adeptos a divindade Xangô. Essa divindade está no machado (LAPLANTINE & TRINDADE, 2003:14 – 15).

Entretanto, deixemos claro que a representação não se trata de mentira ou fantasia. O objeto

representado é a presença que torna a ausência palpável, material. A cruz torna a ausência

material de Cristo presente, assim como o martelo de Xangô, a estátua de Minerva na Roma

antiga ou a máscara de Dioniso no teatro grego.

Na definição de Carlo Ginzburg, na obra Olhos de Madeira: nove reflexões sobre a

distância, a representação é um termo que traz em sua essência ambigüidades, por tornar real 1 Não iremos discorrer sobre a questão filológica da palavra representação, para isto ver: SANTOS, Dominique Vieira Coelho dos. As representações da cristianização da Irlanda Celta: uma análise das cartas de São Patrício (V séc.d.c.). Goiânia: Universidade Federal de Goiás; Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia; Departamento de História, 2008. (Dissertação de Mestrado)

Page 16: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

15

algo ausente: “a representação faz as vezes da realidade representada e, portanto, evoca a

ausência; por outro, torna visível a realidade representada e, portanto, sugere a presença”

(GINZBURG, 2001:85). Com esta presença, podemos entender os semióforos de Pomian;

por meio dos objetos – os signos – que uma sociedade nos lega – no nosso caso a sociedade

grega antiga – é que podemos compreender de que forma a ausência, no caso o deus Dioniso,

é representada para tornar o deus presente no corpo de cidadãos helênicos. Todavia, a

representação de que tratamos aqui não é o real – e muito menos a mentira, como já

elucidamos. A representação é parte do real e não existe sem ele: “a representação e o real

são interdependentes, um não existe sem o outro, criando-se uma aproximação com uma

espécie de voz média do pensamento.” (SANTOS, 2008:34).

Atualmente, o maior nome da História Cultural quando se trata de representação –

principalmente as representações sociais – é sem dúvida o historiador Roger Chartier.

Chartier faz parte da terceira geração da Escola dos Annales, integrando a chamada Nova

História. Discípulo do sociólogo Pierre Bourdieu e crítico da teoria semiótica do etnólogo

Cliffor Geertz, Chartier está preocupado em refletir como uma realidade social é construída e

de que forma esta sociedade a representa; a representação para o historiador parte de um

objeto ausente que é substituído por uma imagem material, que por sua vez irá reconstituir

uma memória (SANTOS, 2008:22). Chartier será um grande crítico, tanto da visão

tradicional de história, quanto da história pautada em análises economicistas. O autor lega à

História Cultural a retomada das análises da História Social:

Trabalhando sobre as lutas de representações, cujo objetivo é a ordenação da própria estrutura social, a história cultural afasta-se sem dúvida de uma dependência demasiado estrita em relação a uma história social fadada apenas ao estudo das lutas econômicas, mas também faz retorno útil sobre o social, já que dedica atenção às estratégias simbólicas que determinam posições e relações e que constroem, para cada classe, grupo ou meio, um “ser-percebido” constitutivo de sua identidade (CHARTIER, 2002:73).

Contudo, Roger Chartier será muito criticado por esta posição. Para Ciro Flamarion

Cardoso, Chartier é um pós-moderno reducionista que recusa a “tirania do social”, mas

propõe uma “tirania do cultural”. Cardoso considera que Chartier critica um reducionismo

propondo outro reducionismo (CARDOSO, apud: SANTOS, 2008:23). Concordamos com

Ciro Flamarion Cardoso no que tange às análises de Roger Chartier. Compreendemos que

considerar somente a História Cultural – e especificamente este campo, chamado de Nova

Page 17: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

16

História – para realizar uma análise do termo representação e abordá-lo em nossa pesquisa

seria simplificar demasiadamente esta discussão que adentra no campo filosófico e

sociológico. É por isso que lançamos mão das teorias do filósofo Henri Lefebvre2, que noz

traz pontos que divergem das análises mais utilizadas, quando tratamos de representação,

para conceder o devido crédito à complexidade deste conceito e às diversas reflexões que ele

abarca.

Estamos interessados nesta dissertação em uma obra de Lefebvre que está longe de

ser um clássico – como as obras que citamos em nota – aliás, é uma obra pouco conhecida e

pouco citada e quase completamente desconhecida pelos estudiosos brasileiros das ciências

humanas, haja vista que não é utilizada e nem mesmo citada nos estudos no Brasil. Tão

desconhecida que não obteve tradução para o português e os principais historiadores que

tratam do conceito de representação, como Sandra Jatahy Pesavento, sequer a citam. Trata-

se do livro La Presencia y La Ausência: Contribuición a la teoria de las representaciones. A

geografia, que é a ciência base de Lefebvre, também pouco a utiliza. A exceção são os

trabalhos relacionados à educação. Em um breve levantamento de artigos, conseguimos um

número significativo de trabalhos pedagógicos que tratam das representações em sala de aula

a partir da perspectiva de Henri Lefebvre. A edição francesa desta obra foi publicada em

1980, porém desde 1983 existe uma edição em espanhol.

Lefebvre foi leitor dos principais pensadores dos séculos XVIII e XIX, que vão de

Nietzsche a Schopenhauer, passando por Freud, Lukács, Durkheim e outros. O filósofo

francês, em sua obra, nos escreve sobre uma crise do próprio termo representação, que

emerge de um conceito histórico e tem um caráter dinâmico e mutante, conforme o próprio

curso da história se modifica. Pautado na idéia de uma “teoria crítica das representações”, o

filósofo propõe uma discussão filosófica sobre o termo, sem caracterizá-lo como imutável –

como muitos marxistas até então haviam feito – impedindo assim uma análise aprofundada

da essência filosófica deste conceito, sem a idéia reducionista de verdadeiro e falso. A

alienação não está na representação como essência, mas sim como esta representação é

manipulada e falseada. Henri Lefebvre aponta que as primeiras manifestações de poder

2 Henri Lefebvre pertenceu a um grupo de marxistas franceses integrantes da resistência francesa, intelectuais que lutaram contra o nazismo na Europa da primeira metade do século XX, além de filiado ao Partido Comunista Francês. Professor de filosofia em várias universidades, desfilia-se do partido comunista em 1958 e passa a ser professor na Universidade de Estrasburgo e posteriormente na Universidade de Nanterre – Paris X. Embora muito lido na Europa, Lefebvre torna-se conhecido no Brasil um pouco tardiamente, com o aumento de estudos sobre a cidade, o urbanismo e o espaço, assuntos que tratam seus principais clássicos, como A Cidade do Capital, A Revolução Urbana e O Direito à Cidade.

Page 18: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

17

através de uma manipulação das representações acontecem nas tragédias – desde os gregos –

por lançarem mão de mitos que se formam na mente individual e coletiva e padronizá-los,

pasteurizando o imaginário. Esta manipulação também se dá por meio de arquiteturas

pomposas, estátuas dos deuses e espaços construídos para a prática do sagrado:

Onde se encontra com o mesmo título que na arquitetura uma representação do poder? Na tragédia. Desde os trágicos gregos até os do século XVII na França, passando pelos isabelinos, a tragédia é uma tragédia do poder. Marca o fim dos mitos e símbolos do poder e o início das representações (LEFEBVRE, 2006:90).

Crítico de Heidegger, que considerava a representação uma apresentação debilitada do real,

Lefebvre lança mão de suas leituras de Hegel e considera este conceito como um nível a ser

superado, porém jamais desprezado:

Entre os filósofos, provavelmente foi Hegel quem elaborou a teoria mais sutil das representações. Para ele (...) a representação é uma etapa, um nível, um momento do conhecimento. É preciso passar por ela, para sair dela superando-a. A reflexão sempre pode voltar a cair neste nível médio (...) entre o sensível e a abstração verdadeira, conceito e idéia (...) (LEFEBVRE, 2006:23).

Embora Lefebvre credite a Hegel este reconhecimento por suas reflexões, este

discorda do filósofo em relação à simples superação da representação. Para Lefebvre, o

problema não é a superação do representado, mas a inclusão deste como parte de um todo, já

que a representação ocupa um lugar entre a presença e a ausência. O que torna presente a

ausência é a representação deste ausente. É o que representa que torna palpável o

representado. Está formado o signo, o objeto que leva à representação ou a anula, pois a

substitui em nome da linguagem e faz a representação perder o sentido.

Na obra A Interpretação das Culturas, o antropólogo Clifford Geertz lança mão de

uma teoria muito difundida nas ciências sociais: a semiótica. Não faremos neste trabalho um

aprofundamento na análise do conceito de semiótica por entendermos que não é o foco de

nossa pesquisa a teoria da história como categoria de análise. Iremos aqui somente elucidar

como Geertz compreende a relação dos indivíduos com o símbolo. Simplificadamente, os

sistemas simbólicos em uma sociedade são aquilo que ela deixa de vestígio material. Em

uma religião, seu conjunto de símbolos sagrados é que forma o sistema religioso (GEERTZ,

1989:95). Os símbolos não são simplesmente imagens projetadas, eles partem de um

Page 19: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

18

significado próprio de interpretação hermenêutica. Um crucifixo, um tirso ou uma inscrição

africana são os símbolos deixados por uma religião como pistas para o pesquisador analisar

sua composição. A análise de símbolos será, em partes, utilizada neste trabalho como auxilio

à leitura da religiosidade grega, em seus vasos e seus documentos escritos. Lefebvre

reelabora este conceito de Geertz e refuta a afirmação de que o signo está associado

estritamente à linguagem; se o signo for encerrado na linguagem, a representação perde o

sentido. Propõe então uma nova abordagem para o significado do signo:

O signo e a significação em nível da palavra desprendem-se das coisas e do conhecimento em geral, para voltarem autônomos. O signo não é senão a representação de uma representação. Quando se olha um objeto como representando outro, esse objeto se chama signo e tem função de signo. (...) (LEFEBVRE, 2006:25).

Como marxista, Lefebvre procura a essência do conceito que estuda no próprio Karl

Marx. Entretanto, o filósofo irá discordar categoricamente da maioria das reflexões acerca do

termo representação elaboradas por Marx, todavia, sem ignorar o econômico, como faz, por

exemplo, Chartier. A representação em Marx configura-se como um produto ideológico da

mente humana, manipulada pelas forças de produção para mutilar a práxis, ou seja, uma

simples dissimulação do real elaborada por uma classe dominante, produzindo assim a

alienação. Este conceito foi revisto por Lefebvre, já que a representação não é uma

“mentira” de classes, como a ideologia. Filosoficamente – e é este o campo de Lefebvre mais

se preocupa – a representação não parte da dualidade verdadeiro X falso. A racionalização

excessiva dos marxistas acaba por trancafiar a representação em uma redoma de ideologia e

alienação. A relação com o real e a definição deste por imagens – o que forma o imaginário,

como veremos no tópico a seguir – é que cria na memória individual ou coletiva subsídios

para uma possível manipulação. Contudo, a imaginação por meio de um simples objeto

representado está presente em todos os indivíduos e é a partir desta noção que queremos

analisar as representações dionisíacas. Como o poder se utilizou destas representações nos

interessa e muito. Destarte, temos que ter como certo que a imagem e as representações de

Dioniso existiam independentemente de quaisquer artimanhas dos quais o poder iria lançar

mão para modificar sua representação.

A representação não é, portanto, um objeto sólido, mas uma teia de dinâmicas sociais

mutáveis e transformadoras que ocupam os intervalos entre a presença de um objeto ou de

uma idéia – como no caso das divindades – e a ausência deste mesmo objeto. Somente com

Page 20: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

19

uma reflexão do conceito é que o estudioso pode identificar representações enganosas que se

formam e ganham força.

A formatação do termo representação que tentamos elucidar neste primeiro tópico

pode ser visto, por exemplo, nas palavras de Clarice Lispector no livro A Hora da Estrela –

ou a do narrador misterioso que Clarice toma forma. A alagoana Macabea nunca mais

conseguiu se alimentar como deveria após, ainda em sua infância, ter comido gato frito. Ela

adorava gatos e não concebia ter comido um; um anjinho frito, com as asas entre os dentes.

Para Macabea não importavam as crenças religiosas – o próprio narrador afirma que a

nordestina jamais entrou em uma igreja após a morte de sua tia beata – pois “ela acreditava

em anjo e, porque acreditava, eles existiam” (LISPECTOR, 1995:56).

Pretendemos com esta citada elucidar que a representação existe como um caráter

psicológico do indivíduo e que, independente das relações de poder vindas de cima – seja o

estado, a religião ou os diversos discursos – a mente humana está suscetível à imaginação. O

que percebemos ao longo da história é como estes poderes podem transformar este

psicológico individual, mas não o determinam. Vemos isto também com a outra categoria de

análise por nós estudada: o imaginário.

1.2. O imaginário e o mito: inter-relações e características conceituais

Nossa intenção com esta dissertação é analisar alguns mitos que englobam o deus

Dioniso e compreender como ele se configura na sociedade helênica. Para isto, definirmos

um conceito é primordial: o imaginário. Porém, para entendermos o conceito de imaginário

não basta analisar a historiografia que tratou desta problemática; se faz necessário definir um

outro conceito, o de mito, que por sua vez deve ser entendido como estruturas complexas,

por meio do método estruturalista3. Esta teia teórica nos dá subsídios para a análise da

conjuntura estudada, bem como um aporte para a análise das diversas fontes que esta

dissertação abarca.

Comecemos com a questão do estruturalismo, por entendermos que é um conceito

que permeia as discussões historiográficas realizadas neste tópico em quase toda sua

3 Em poucas palavras, podemos dizer que este método, surgido primordialmente na França, tem como base a análise de estruturas sociais. Estas estruturas são abstratas, mas se interligam socialmente, cirando uma teia de relações. Os estruturalistas analisam as estruturas sociais em um caráter dinâmico, com suas diferenças e suas ordens. Algumas destas estruturas, como a linguagem e o mito, se relacionam. Os mitos são estruturados como linguagem.

Page 21: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

20

totalidade. Os dois principais autores que trabalharemos para conceituar mito – o filólogo

Marcel Detienne e o historiador Jean-Pierre Vernant – partem de uma análise estrutural para

o estudo da religiosidade grega.

O termo estrutura designa um conjunto de elementos solidários em si; os elementos se

relacionam mutuamente, formando uma totalidade. Não há uma esfera determinando outra –

encontra-se neste ponto uma forte negação do marxismo, não existe a infra determinando a

super, elas se inter-relacionam; a estrutura é mais um todo que uma soma. A abordagem

estrutural também exclui a práxis; é a própria estrutura que explica os processos e não a ação

que os determina. Esta idéia do fim do termo práxis e da infra e da superestrutura em uma

relação de mutualismo encontrou grande aceitação em todas as ciências sociais – inclusive de

muitos marxistas – tendo como Louis Althusser4 um dos únicos e solitários representantes

contra esta nova idéia. Atualmente esta questão é revista por alguns historiadores críticos da

cultura, que não conseguem ver uma sociedade sem práticas culturais: “(...) a cultura não é

apenas estrutura simbólica, mas, também, sistema de práticas (...) (SILVA, 2007:87). As

novas correntes das ciências humanas passaram a não mais compreender a história como uma

linearidade evolutiva, como propunha Marx, no reducionista esquema escravismo –

feudalismo – capitalismo – socialismo – comunismo.

Não é sem motivos que o estruturalismo atinge os historiadores da Antiguidade e

estudiosos dos mitos gregos tardiamente. Uma ciência que em sua elaboração primária nega a

História e os processos históricos não poderia soar bem aos historiadores. Georges Dumézil

foi um dos únicos estruturalistas que, no final da década de 30, estudava as religiões com um

aporte histórico, comparando sistematicamente mitos antigos celtas, gregos e romanos

(DOSSE, 2007:70), creditando assim um valor que outros pensadores do método estrutural

não legaram à História e contrapondo as afirmações de Lévi-Strauss. Dumézil analisa os

mitos indo-europeus como uma estrutura “trifuncional”, diferentemente das analises de infra-

estrutura influenciando a superestrutura:

Sua proposta inicial foi a de que os mitos (...) remetiam a uma estrutura segundo a qual essas mesmas sociedades se imaginavam constituídas pela hierarquia de três funções – mediação sagrada, ímpeto guerreiro e fecundidade laboriosa (...) (PATLAGEAN, 1988:296).

4 Filósofo argelino naturalizado francês, Althusser foi grande crítico do estruturalismo como uma ideologia burguesa, por entender que os aparelhos ideológicos do estado são repressores determinantes em uma sociedade e não estão em relação mútua com outras forças, como afirmavam os estruturalistas. Althusser será muito criticado não só pelos estruturalistas, mas também pelos próprios marxistas ingleses, sobretudo E. P. Thompson.

Page 22: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

21

O pensador Dumézil propõe uma nova “mitologia comparada” – já que um antigo

método comparativo entre mitologias já existia – que não possui o intuito de tentar uma

comprovação de que uma mitologia seria melhor ou mais elaborada que a outra, através de

campos lingüísticos e etimológicos. O autor vai creditar à particularidade de cada povo a

formação de sua própria mitologia, como nos informa Marcel Detienne:

O empreendimento intelectual de Dumézil começa com deuses articulados, deuses em agrupamentos, assembléias de potências divinas. Esses deuses dos quais a antiga “mitologia comparada” queria apreender a essência e a etimologia sobre a base de equações lingüísticas, o novo comparativismo, também ele estabelecido no circuito do mundo indo-europeu, privilegia neles a ordem de sua enumeração, suas relações hierárquicas, as formas de oposição e de complementaridade, que permitem explorar os dados “teológicos”, como a tríade pré-capitolina (Júpiter, Marte, Quirino), a tríade dos deuses de Upsala (Odhinn, Thörr, Freyer), a lista dos Âditya na Índia antiga, a das Entidades (os Amasa Spanta) do zoroastrismo no antigo Irã (DETIENNE, 2004:96-97).

Dumézil iria influenciar uma gama de historiadores e estudiosos a partir dos anos 70,

que iniciaram uma análise histórico-estrutural: Pierre Vidal-Naquet, Jean-Pierre Vernant e

Marcel Detienne para a Antiguidade e Jacques Le Goff e Georges Duby para o Medievo. A

aceitação por parte de Le Goff e Duby favorece um vasto prolongamento de descobertas do

estruturalismo para a terceira geração da Escola dos Annales. Embora Vernant fosse

discípulo de Louis Gernet e Marcel Mauss, este enxerga em Dumézil uma análise estrutural

com um pensamento histórico, ideal para as análises históricas da sociedade e do mito grego.

Com suas análises comparativas entre mitos helênicos e védicos, Dumézil converte-se em um

arqueólogo do imaginário indo-europeu (DOSSE, 2007: 70). Entretanto, o autor será

criticado por outros autores que utilizam métodos comparativos diferentes. Carlo Ginzburg

afirma que o método comparativo dumeziliano é insuficiente, porém o próprio Ginzburg se

contradiz, por utilizar deste comparativismo em seu clássico O queijo e os vermes: o

cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição, quando compara a

cosmogonia do moleiro Menocchio com outras cosmogonias similares, como a dos pastores

da Ásia central (BARRERA e PLATAS, 2002:7). As críticas ao modelo de Dumézil

mostraram-se insuficientes.

Pretendemos com estas elucidações partir de uma análise estrutural dos mitos gregos

e do imaginário helênico. Discordamos de vários pontos do estruturalismo clássico, como o

Page 23: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

22

caráter atemporal creditado aos mitos e contestado somente por Dumézil. Contudo, temos

como certo que os pesquisadores estruturalistas que utilizamos para analisar tanto as

categorias do imaginário como as do mito não devem ser seguidos unicamente; eleger o

método estruturalista como única categoria de análise – coisa que nem Vernant nem Detienne

realizaram – seria perigoso; a história correria um sério risco de ser legada a mera ilustração.

Possuímos plena consciência das falhas deste método estrutural quando das questões

estritamente históricas e, conseguindo adaptá-lo a uma realidade mais histórica, cotejando

com outros métodos como o próprio marxismo, a lingüística e o culturalismo, acreditamos

que poderemos chegar a uma centrada análise de nosso objeto; ele essencialmente histórico.

Iremos então para esta categoria tão difundida por muitos e ainda criticada por alguns:

o imaginário. Assim como já foi elucidado acerca do conceito de representação, o

imaginário não deve ser visto como mentira ou ilusão. O imaginário e as imagens partem de

um pressuposto real. As imagens projetadas exercem uma função na mente do indivíduo que

as enxerga – como veremos na cerâmica grega, no segundo capítulo – criando assim uma

imaginação que influenciará o indivíduo. Destarte, o imaginário não vem somente ligado a

alguma espécie de poder para influenciar um grupo, ele existe independente das estruturas

dominantes.

O homem cria suas imagens, que ora são influenciadas pelo poder, ora não: ao construir os deuses, o homem toma como referência uma realidade dada que caleidoscopicamente reordena, reestrutura e recria. Nesse processo, o imaginário tem como referência o real, dando-lhe outros sentidos fornecidos pelo material simbólico que utiliza (LAPLANTINE & TRINDADE, 2003:37).

O positivismo difundiu a tendência de que o imaginário e a imaginação se pautavam

em argumentos falsos e passa a ser desvalorizada pelos campos da ciência em voga até então

(DURAND, 2001:10). Evelyne Patlagean elucida-nos que o imaginário como objeto da

história nasce com o enfraquecimento do positivismo pautado na idéia de progresso, da

racionalização proposta pelas Luzes e do romantismo estético nacionalista (PATLAGEAN,

1988: 292). As obras de Michelet, da segunda metade do século XIX, abrem um caminho

para uma reflexão diferenciada na historiografia. Embora o autor esteja pautado na idéia

positivista de nação – estudando os movimentos do povo francês – Michelet analisa o “povo

miúdo” da França em várias especificidades, incluindo a personagem da bruxa, a visão de

natureza e a feminilidade. Porém é no século XX – entre as duas guerras mundiais – que o

Page 24: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

23

imaginário como conceito histórico começa a ganhar forma:

O imaginário nele encontra seu lugar na jovem história das mentalidades e instrui-se com os trabalhos dessa última: o além do homem medieval em Marc Bloch, a representação do mundo dos contemporâneos de Rabelais em Lucien Febvre. E, sobretudo, o imaginário de uma época, em todo o seu contexto mental, cultural e social, torna-se objeto essencial de uma história da arte em que se destacam os trabalhos citados adiante, de Émile Male e do maior, Henri Focillon (PATLAGEAN, 1988:293).

Contrariando alguns marxistas que insistem em afirmar que o imaginário foi um

conceito conservador criado para a valorização de uma superestrutura alienante, temos no

próprio Karl Marx algumas importantes reflexões sobre o conceito, como nos mostram

François Laplantine e Liana Trindade:

O conceito de imaginário em Karl Marx explica, através da noção de alienação, a autonomia das instituições econômicas ou religiosas, como produtos independentes das ações humanas, expressando as contradições reais entre o produtor e o produto que passa a ser reificado. O imaginário seria, então, a solução fantasiosa das contradições reais (LAPLANTINE & TRINDADE, 2003:24).

Esta relação de imaginário como um projeto de alienação pelas instituições de poder

já foi revista pelos estruturalistas. A superestrutura marxista – no caso o imaginário – não é

necessariamente produto da infra-estrutura – no caso as instituições econômicas, políticas e

religiosas – mas sim integrante de um sistema estrutural global, podendo influenciá-lo ou ser

influenciado; sobre isto já tratamos. O marxismo enxerga o imaginário em constante

mutualismo com a ideologia. São as ideologias dominantes que influenciam as imaginações

humanas. Embora concordemos que por diversas vezes o imaginário esteja ligado à ideologia

de um grupo, acreditamos que este independe de uma ideologia dominante para existir:

Encontra-se na ideologia, como no imaginário, uma filiação do real, mas no imaginário não há uma imposição de sentidos na representação do social, dirigida a interesses de grupos ou classes sociais (LAPLANTINE & TRINDADE, 2003:26).

Percebemos ao longo da história que diversas vezes este ideológico transformou o imaginário

de um grupo de indivíduos de acordo com os valores que interessam ao grupo social

dominante e de acordo com o que deve ser transmitido para seus adeptos, como é o caso da

Page 25: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

24

estrutura religiosa.

Outra espécie de análise do imaginário que obteve grande importância, porém hoje já

está em muitos aspectos superada, é a psicologia analítica de Jung. Jung, juntamente com

outros pensadores como Gilbert Durand e Mircea Eliade, aproximam-se do estruturalismo

nas análises dos mitos imaginários, haja vista que não creditam importância às diversas

especificidades históricas e reduzem as diferentes culturas a uma mesma natureza universal

de fenômenos culturais. Jung acrescenta uma nova categoria na análise do imaginário: os

símbolos. Entretanto, há uma indiferenciação conceitual entre imagens e símbolos

(LAPLANTINE & TRINDADE, 2003: 17); estas duas noções são, para Jung, a mesma coisa,

arquétipos inconscientes que se encontram igualmente nas diversas sociedades.

Georges Balandier apresenta-nos um elaborado panorama do imaginário na

modernidade e na contemporaneidade. Deixemos um pouco de lado a História linear e

façamos o movimento de começarmos a compreender como o imaginário se configura na

sociedade contemporânea para somente então traçarmos esta categoria na Grécia antiga.

Balandier inicia o sexto capítulo de sua obra O Contorno: poder e modernidade afirmando:

“A modernidade parece abolir o imaginário: pelo menos, subverte suas paisagens.”

(BALANDIER, 1997:227). Balandier, quando chega a essa afirmação, está se referindo ao

mundo tecnológico em que estamos inseridos, que movem e modificam rapidamente as

imagens projetadas e nossos referenciais desta, modificando assim o nosso próprio

imaginário. A imaginação de um indivíduo ou de um grupo fica comprometida, pois

passamos a ter o que o autor chamou de “visão instrumental”; tudo passa a ser avaliado em

termos de funcionamento, pela sua eficácia tecnológica (BALANDIER, 1997:227). O

capitalismo muito auxiliou nesta manutenção da modernidade, mas não somente ele. O

contemporâneo tende a desvalorizar as relações interpessoais de imaginação e fantasia entre

os indivíduos de uma mesma estrutura:

Além das dificuldades de ordem econômica, o homem moderno submete-se à dificuldade das organizações e burocracias, das tecnoestruturas. Ele define suas atividades, sua relação com as instituições, sua moradia, determina seu espaço no interior dos grandes complexos urbanos, gerencia seu cotidiano (BALANDIER, 1997:228).

As freqüentes descrenças do homem moderno afetam seu caráter mental que produz o

imaginário. As religiosidades populares são substituídas por religiosidades oficias que já

mostram em que o homem deve crer, como ele deve crer e o que ele deve pedir as suas

Page 26: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

25

divindades, empobrecendo assim sua capacidade de dialogar com seus deuses e,

conseqüentemente, com seu imaginário. A banalização cultural que homogeniza as culturas e

a empobrecem apaga as raízes mais significativas da criatividade e produção imaginária de

um grupo. A cultura cria a novidade. Esta novidade entra no cotidiano do homem moderno

com sua excessiva produtividade e provoca a rápida desvalorização dos objetos modernos,

mascarado por uma ideologia de mudança e confecção do que é novo (BALANDIER,

1997:231). Esta ideologia seria a tecnoideologia, que contribui para o desaparecimento de

sistemas de pensamentos tradicionais

Segundo o autor, todas estas mudanças ocorridas na modernidade e fixadas na

contemporaneidade não se mostram capazes de aniquilar completamente o imaginário. Os

indivíduos continuam a criar imagens que exercem a manutenção de uma vida pessoal e

coletiva. O homem moderno vive em um dualismo e assume esta divisão. Laplantine e

Trindade afirmam que de um lado existe a subjetividade, do outro a objetividade. De um lado

a paixão, do outro a razão; o indivíduo passa a se dividir entre o imaginário fantástico que

festeja e a ciência racional que trabalha (LAPLANTINE & TRINDADE, 2003:71). As

pessoas continuam, a partir de suas apreensões, a terem desejos e aspirações. Todavia, a

modernidade transforma o conceito no que o autor chamou de “tecnoimaginário”

(BALANDIER, 1997:233). O “tecnoimaginário” diferiria-se do conceito de imaginário

clássico por unir imaginário e tecnologia, aliando a força das imagens à “magia” das

máquinas modernas. A informática é o melhor exemplo. Mesmo com uma tecnologia que

reforçaria o pensamento racional, a magia desta tecnologia mexe com as fantasias e a

projeção de imagens de um computador – cada vez mais perfeitas – parece reafirmar ainda

mais o encanto do homem por imagens que este não conseguiria explicar tecnicamente. Em

outra obra – O Dédalo: para finalizar o século XX – Balandier aponta que este

“tecnoimaginário” faz do imaginário um refém das imagens. O imaginário só pode traçar um

caminho próprio a partir do momento que se alia às imagens projetadas pela modernidade

(BALANDIER, 1999:133).

Já o imaginário na Antiguidade não parte das mesmas premissas do imaginário na

modernidade. O imaginário na Antiguidade inicia-se com um princípio: o mito – seja ele

religioso, político ou ideológico. Não é preciso dizer que o “tecnoimaginário” ainda não

vigorava nas sociedades antigas; então o imaginário ficaria ligado a categorias míticas e

imagens que permitiriam a manutenção de um poder sobre um determinado grupo. Aqui nos

interessam primordialmente os mitos religiosos e como as esferas políticas e ideológicas

Page 27: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

26

manipularam este imaginário religioso como manutenção de suas relações de poder, por

entendermos que, diferentemente da nossa sociedade, a religião permeava todas as outras

esferas sociais, estando em constante mutualismo, sem determiná-las: “uma sociedade, como

a grega, em que a religião estava totalmente imbricada em todos os campos da vida pública e

social” (ZAIDMAN & PANTEL, 2002:5).

A noção de imaginário era conhecida pelos antigos da mesma forma que pelos

modernos, embora os antigos creditassem uma função diferente a este conceito, como Platão.

Não iremos aqui discorrer sobre a noção de imaginário para a filosofia antiga, por sabermos

que isto implicaria na confecção de uma nova dissertação. Vemos aqui somente de que

forma o imaginário e o mito5se relacionavam. Podemos perceber que os gregos possuíam

uma análise própria de seu imaginário contemporâneo – além dos escritos filosóficos – pelas

obras literárias escritas que chegaram até nós e estudadas pelos atuais pensadores:

Apesar das diferenças a respeito da atualidade e as épocas em que o conflito social foi objeto de observação teórica, os antigos também eram capazes de percebê-lo dentro de suas condições, como enfatizou Lukács (1966-67, III, 51), estudando a astúcia de Odisseu e, sobretudo, a tragédia grega, forma privilegiada de percepção do conflito, com projeção coletiva na manifestação cultural que se produziu na antiguidade (PLÁCIDO, 1995:28).

Os diversos mitos interligar-se-iam com várias de suas personagens e com múltiplas

esferas de utilidade:

(...) Assim, no mito de Hermes, o mitema do mediador emerge da bastardia do deus das encruzilhadas, das trocas e do comércio. Filho de Zeus e uma mortal, Hermes é o protetor do bastardo Dioniso, o intermediário de Zeus junto a Alcmena, o intérprete entre Zeus e as três deusas, e o pai de um ser ambíguo: Hermafrodita... (DURAND, 2001:86).

Gilbert Durand chamou de “mitema” esta teia de divindades e suas funções, que estão em

itálico na citação – grifadas pelo próprio autor – que se entrelaçam nesta pequena análise do

mito de Hermes. Lançando mão da idéia estrutural de comparação, analisamos os mitos

religiosos – primordialmente o de Dioniso – em um entrelaçamento de divindades que

variam conforme sua importância na narrativa mítica do deus, mas nunca uma sobressaindo-

5 Para ver a noção de imaginário em Platão e em outros filósofos ver: DURAND, Gilbert. O Imaginário: ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem. Trad. René Eve Levié. São Paulo: Difel Editora, 1999.

Page 28: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

27

se sobre a outra.

O mito passa a ser analisado pelas humanidades, como nos coloca Ernest Cassirer,

pelos campos tradicionais da filosofia e da antropologia do século XIX (CASSIRER,

1976:23). Kant irá creditar ao mito uma posição de importância que não era creditado pelos

cientistas até então e irá influenciar os estudos antropológicos de James Frazer e E. B. Tylor

e, posteriormente, será criticado por Lévy-Bruhl. As teorias do animismo de Tylor

consideravam o homem primitivo e seus mitos como puristas e ingênuos. Tylor terá suas

teorias reelaboradas pelos estruturalistas ao longo do século XX, por considerarem que as

análises positivistas de Tylor – que consistiam na tradicional análise investigador X objeto –

e por acreditarem que os mitos são interligados e se relacionam, se manipulam e se

transformam psiquicamente e não simplesmente acontecem pela mente primitiva de

sociedades selvagens. Os estudos realizados por positivistas durante o século XIX levou à

conclusão de que o mito não passava de uma reunião de histórias absurdas e extraordinárias,

estranhas ao ideal cristão ou científico dos intelectuais da época. O próprio Jean-Pierre

Vernant, em entrevista concedida à revista francesa L’Histoire, aponta que desde a

Renascença os mitos gregos vem sofrendo releituras para legitimar as ações humanas:

O erro constante poderia ser o de incluí-los tão perto. Graças à Renascença, na verdade, uma boa parte da cultura européia, cansada da hegemonia cristã quis acreditar ser filha direta da Grécia antiga. Disso surgiu o tema do “milagre grego”, que teve duas expressões sucessivas e complementares. A razão foi inventada pela Grécia antiga, disseram os homens do século XVIII. A invenção do individualismo democrático, acrescentaram algumas mentes dos séculos XIX e XX (VERNANT, 1989:85).

Na primeira metade do século XX, muitas das ações do homem foram legitimadas

por um resgate e uma releitura feitas da Antiguidade, como o fascismo italiano de Mussolini

pautado na soberania do exército romano de outrora. Alguns grupos anticristãos franceses

também realizaram releituras da religiosidade greco-romana para contestar o cristianismo em

voga (BELEBONI, 2000:70). Já a segunda metade do século XX vê florescer estudiosos que

realizam primordiais estudos da Antiguidade e da religião grega6. Um deles é Jean-Pierre

Vernant, historiador francês nascido em 1914. Vernant inicia seus estudos altamente

6 No Brasil, os estudos acerca do conceito de mito e da mitologia acontecem tardiamente, no final da década de 1970. Eudoro de Souza, da Universidade de Brasília, passa a publicar obras com uma reflexão filosófica sobre a mitologia; como exemplo tem-se: SOUZA, Eudoro de. Mitologia. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1980.

Page 29: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

28

influenciado pelo antropólogo Marcel Mauss. Mauss, discípulo de Durkheim, estuda os

mitos como um sistema simbólico institucionalizado e formado caleidoscopicamente,

englobando a língua, a maneira de classificação, de coordenação e agrupamento dos fatos,

formando um “sistema dinâmico” e uma totalidade. Embora esta teoria se assemelhe ao

posterior estruturalismo, Levi-Strauss será um ferrenho crítico de Mauss, alegando que o

antropólogo “não tenha ultrapassado o limiar que permitiria completar suas próprias

‘descobertas’” (ANDRADE, 2007:244).

Embora Mauss tenha ido somente até um primeiro ponto nas análises míticas, este vai

ascender em Vernant os estudos da Antiguidade e, juntamente com a teoria de Louis Gernet

– da reciprocidade na Grécia antiga7 – Vernant iniciará seus estudos sobre a antropologia

grega e o papel da filosofia antiga nesta antropologia. Os estudos das obras de Meyerson

fazem Vernant definir um novo ponto de vista, o da psicologia histórica, que vê no mito uma

forma de pensar do homem e como este lida com o que fantasia e não conhece, fazendo-o

também abandonar suas antigas correntes de análise, como o marxismo8. Nos anos finais da

década de cinqüenta, Vernant entra em contato com Dumézil e Levi-Strauss e arraiga

definitivamente seu interesse pelos mitos. Dumézil será o principal teórico a influenciar

Vernant no estudo da religiosidade grega, com a sua já falada estrutura “trifuncional”,

analisando o mito hesiódico das raças9. A inserção no método estruturalista faz com que

Vernant rompa com o Partido Comunista Francês e abandone completamente os estudos

marxistas, integrando-se no campo das estruturas, porém com várias críticas a este. Vernant

cria um método próprio para enxergar as estruturas míticas e antropológicas:

Estruturalista, é verdade, mas avesso às “gramáticas gerais”, como faz questão de lembrar em mais de uma ocasião. Se a compreensão do material mítico, sua lógica e mecanismos de funcionamento, aproxima o analista das formulações da lingüística estrutural e de Lévi-Strauss – sobretudo em função das noções de sistema, de sincronia, das relações de oposição e da idéia de homologia – a perspectiva meyersoniana ao lado da pesquisa

7 Para compreender a teoria da reciprocidade ver: ANDRADE, Marta Mega de. “Jean – Pierre Vernant à Vizinhança de Marcel Mauss”. In: Phoînix – Laboratório de História Antiga/UFRJ. Rio de Janeiro: Mauad Editora; ano XIII, 2007. 8 Seu encontro com Marx dará ainda na juventude, com o engajamento na Associação Internacional dos Ateus Revolucionários, na Resistência e posteriormente ao Partido Comunista Francês (PEIXOTO, 2002:246). Sua aproximação com as teorias marxistas levam o autor a dedicar uma longa pesquisa sobre a noção de trabalho em Platão. 9 Para ver a aplicabilidade prática nos mitos gregos feita por Jean-Pierre Vernant da teoria de Dumézil ver: VERNANT, Jean-Pierre. Mito e pensamento entre os gregos: estudos de psicologia histórica. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.

Page 30: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

29

histórica contribuem para dar ao estruturalismo de Vernant feições sui generis. A compreensão dos sistemas simbólicos e de suas estruturas não elimina o desafio de perceber como esses sistemas nascem, transformam-se e desaparecem (PEIXOTO, 2002:247).

Para Vernant, o mito é uma manifestação humana que independe de sua bagagem de

vida privada ou social. Este conceito é a forma mais eficaz de se estudar uma sociedade,

principalmente a grega, em que a religião – diferentemente dos dias de hoje – ocupava todas

as esferas sociais. As análises que se iniciam em Mauss encontram em Vernant uma

complementaridade. Grande parte da obra do autor é desconstrutora, pois compara aspectos

da contemporaneidade com o mundo antigo. Vernant acredita que somente partindo desta

noção totalizadora podemos compreender o mundo grego com propriedade sem assimilá-lo,

como fazem alguns autores que analisamos mais à frente:

Recorda ele [Vernant] nessa ocasião que o historiador não pode construir um modelo interpretativo a partir de arquétipos, mas deve adaptar a cada caso singular um modelo construído a partir dos diversos elementos documentais de que se dispõe para articulá-los “num conjunto significativo” (DOSSE, 2007:446).

O mito não é uma fantasia – assim como a representação e o imaginário, como já foi

visto – de poetas antigos que escreviam conforme suas concepções, nas palavras do próprio

Vernant: “Já não é mais tempo de falar dos mitos como se tratassem da fantasia individual de

um poeta, da fabulação ficcional, livre e gratuita.” (VERNANT, 2001:25). Como ele sempre

se encontrou muito mais interessado no aspecto mental do que na atitude ritual, creditava

muito mais valor ao mito do que ao rito (BELEBONI, 2001:81). O mito é a manifestação

imaginária da mente humana, enquanto o rito configura-se antropologicamente, com danças,

ornamentos, etc. O mito em Vernant depende de um emaranhado de fatores que vão se

agregar para formar este complexo pensamento. Em suma, “o mito na perspectiva de Jean-

Pierre Vernant é compreendido como relato, tradição, fato social total, obra do espírito

humano e manifestações de uma civilização” (BELEBONI, 2000:74).

Já o filólogo belga Marcel Detienne – que junto com Jean-Pierre Vernant e Pierre

Vidal-Naquet formam a tríade de estruturalistas franceses dedicados à Antiguidade –

valoriza em suas obras muito mais o aspecto ritual do que o mítico psíquico. Durante toda

essa dissertação lançaremos mão das obras tanto de Vernant quanto de Detienne; o trabalho

neste tópico é somente construir uma panorâmica geral dos trabalhos e das influências destes

Page 31: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

30

dois estudiosos.

Detienne foi influenciado, sobretudo, pelo estruturalismo de Lévi-Strauss. Destarte

difere um pouco do pensamento de Vernant em relação ao mito; Detienne encara o mito de

uma forma mais antropológica e antropomórfica, creditando a ele uma função de

sociabilização em uma civilização por meio de seu ritual. Enquanto Vernant analisa as

questões mentais e psicológicas de um mito, Detienne enxerga nele uma forma antropológica

de socialização, quando este se funde ao rito, que por sua vez é compartilhado por um

segmento social (DETIENNE, 1987:60). Desta forma os dois autores se complementam e

ambos são de suma importância para os estudos míticos.

Para Detienne, o mito foi diversas vezes ao longo da história produto do poder. A

transformação da memória religiosa foi de suma importância para a manutenção deste, como

vemos no segundo capítulo deste trabalho. Diversos rituais foram utilizados como

instrumento de dominação e, nesta condição, enxerga-se a invasão cultural européia sob

sociedades americanas ou até a invasão em ilhas da Polinésia Francesa:

No poema etnográfico de Victor Segalen, dedicado ‘aos maoris dos tempos esquecidos’, é o próprio Térii, ‘aquele que esquecera as palavras’, por culpa de pálidos estrangeiros que chegaram em grandes barcos, quem se torna diácono e recita o Livro, cujos sinais aprendeu na escola das missões protestantes. Uma civilização da memória torna-se totalmente amnésica sob o efeito do mais poderoso dos venenos: as Escrituras de uma religião certa da verdade encerrada em um Livro, o seu (DETIENNE, 1998:60).

As hibridizações e os diálogos culturais entre sociedades diversas sempre ocorreram

na história da humanidade, como nos apontou Detienne. No tópico seguinte tentamos

compreender como estas interações religioso-culturais deram o tom na formação de uma

religiosidade grega e no cotidiano destes indivíduos híbridos.

1.3. Os períodos micênico e homérico: organização e política

Após estas elucidações conceituais, precisamos realizar uma breve análise do

primeiro período a ser estudado cronologicamente, bem como sua estrutura organizacional e

suas facetas políticas. Somente compreendendo historicamente o período homérico é que

podemos ver como Dioniso se encaixa na religiosidade deste período – ou como não se

encaixa. Não é nosso propósito neste trabalho realizar uma análise profunda dos poemas

épicos Ilíada e Odisséia – as obras escritas mais significativas deste período que chegaram

Page 32: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

31

até nós. Também não é nossa intenção a proposta de um cotejamento entre as duas obras.

Nosso propósito é mais modesto, até porque estas obras pouco nos dizem em relação a

Dioniso. Este tópico consiste somente em situar o período homérico e suas especificidades,

para termos condições de analisarmos as estruturas sociais da época e como Dioniso

encontrava-se ou ausentava-se dentro delas.

O período homérico é – em sua quase totalidade – fruto de controvérsias entre seus

próprios especialistas, a começar por sua delimitação temporal. Alguns historiadores

colocam a formação do período ainda na Idade do Bronze, de XII a VIII a.C. (GLOTZ,

1946:23); outros preferem colocar o período homérico como uma mescla do período

micênico – anterior – e o período posterior ao micênico (MOSSÉ, 1993:13) desconhecido em

sua quase totalidade pela ausência de fontes escritas. O próprio período micênico só se torna

conhecido com a decifração do Linear B, a escrita da época. Resgates arqueológicos de

tabletes com este tipo de escrita nos proporcionaram novas interpretações sobre o período

dos palácios.

As principais fontes do período homérico que chegaram até nós são os poemas Ilíada

e Odisséia, elaborados por Homero, além dos resgates arqueológicos. As características de

um mundo que Homero coloca em seus poemas, ora se parecem com o mundo micênico, ora

se distanciam dele. José Antonio Dabdab Trabulsi, na obra Ensaio sobre a mobilização

política na Grécia Antiga, elucida esta dúvida entre os especialistas em relação ao período de

Homero e aos escritos deste:

Para alguns, não há dúvida, trata-se do mundo micênico. É claro que as descrições da epopéia nem sempre correspondem ao que a arqueologia e as tabuinhas indicam. (...) Para outros, as diferenças são grandes demais entre o que a arqueologia mostrou e que os poemas descrevem para que nós possamos aceitar a tese da historicidade completa. Ainda que as reminiscências micênicas sejam muito importantes, globalmente trata-se de um outro mundo (TRABULSI, 2001: 21).

Em sua obra O Mundo de Ulisses, Moses Finley situa o período homérico entre os

séculos X e IX a.C., ou seja, posterior ao micênico. Pierre Vidal-Naquet, no livro O Mundo

de Homero, data até o início do século VIII. Concordamos com a opinião destes autores, que

é partilhada também por Trabulsi, por entender que a Ilíada e a Odisséia, embora possuam

características micênicas, como a supremacia de uma realeza, também possuem

características posteriores a ela, o que nos faz pensar que o referido período seja uma mescla

Page 33: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

32

do anterior e do atual, como propõe Claude Mossé, com traços dos quatro séculos anteriores,

dos quais não temos fontes escritas.

Falemos um pouco sobre o maior nome deste período: o já citado poeta Homero.

Existem diversas especulações sobre sua vida e a autoria de seus poemas. Muitos estudiosos

seguem a tendência de que não existia apenas um Homero, e sim vários Homeros

responsáveis pela escrita dos poemas Ilíada e Odisséia, sendo a Odisséia um pouco

posterior:

Já se sonhou bastante – a às vezes até se delirou – sobre o poeta cego. Existiu um Homero, dois Homeros e até, como alguns pensaram, uma multidão de Homeros? Na ilha de Quios havia os chamados homéridas, que se diziam descendentes de Homero e constituíam um grupo de rapsodos que cantavam os poemas de seu pretenso antepassado (VIDAL-NAQUET, 2002: 14).

Sabe-se que o Homero que aparece no busto10era um aedo11. Se existiram vários

Homeros ou se a Ilíada e a Odisséia foram escritos por um ou vários autores é uma discussão

que pouco acrescenta. O que realmente importaria seriam as influências destes poemas na

sociedade grega do período homérico e de períodos posteriores e as pistas que aqueles dão ao

historiador de como vivia e se estruturava esta sociedade. A importância que Homero

exerceu na sociedade leitora de seu épicos – mesmo a posterior a sua época – é atestada por

Marcel Detienne: “Desde o século VII antes de nossa era, Homero pertence à cultura grega, e

faz parte dela e, muito rapidamente, vai representar o saber cultural dos gregos. Aprende-se a

ler e a escrever com Homero. Ele diz a tradição.” (DETIENNE, 2004:87).

Homero retrata em suas obras o cotidiano dos homens e também dos deuses.

Percebemos nos poemas que os deuses são como os homens: passionais, sentem raiva, amor,

alegrias, tristezas e fraquezas. Assim como os homens, os deuses têm opiniões próprias e

tomam partido conforme seus interesses. Embora os deuses sintam emoções semelhantes às

dos humanos, a vontade destes sempre prevalece; nenhuma cidade é construída ou uma

guerra conhece seu vencedor sem a intervenção deles (DETIENNE & SISSA, 1990). Na

Ilíada, percebemos claramente que o soberano Zeus é quem decide o destino da batalha;

10 De acordo com Pierre Vidal-Naquet (2002), por causa deste busto, que o representava sem o globo ocular, é que se postulou a tradição de Homero ser cego; porém este busto não é um retrato e sim uma representação romana que, provavelmente, tenha sido inspirada nas artes do século V a.C., o apogeu da arte grega. 11 Cantores áticos que recitavam poemas em praças e festividades. Como é sabido que Homero foi um aedo, podemos dizer que os poemas Ilíada e Odisséia seguem uma tradição oral.

Page 34: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

33

porém os outros deuses usam de persuasão e de seu poder divino para também manipularem

a guerra conforme seus interesses. Os deuses de Homero estão longe de habitarem o Olimpo

perfeito da Teogonia de Hesíodo; de serem tranqüilos e onipotentes quanto ao que acontecia

no mundo dos mortais.

Apesar disso, temos de deixar claro uma constatação: Homero não era um teólogo,

muito menos um estudioso da religião; Homero era um aedo12. Um aedo tem de seduzir seu

público. Homero não estava interessado quando escreveu sua epopéia em realizar um estudo

teológico dos costumes religiosos de seu povo. Seus épicos foram escritos para agradar o

ouvinte e não para realizar uma discussão científica. O estudo crítico da religiosidade grega

só viria mais tarde, com Tales, Parmênides e principalmente o pensamento racional de

Platão. Tampouco Homero foi fundador de uma religião ou de uma seita; o aedo sofreu

influências de várias correntes religiosas distintas da grega, já que o híbrido Mediterrâneo

propiciava uma série de conceitos diversos:

Dantes, a história da religião tendia a considerar o mundo dos deuses olímpicos como algo único, como uma criação de “Homero”, ou seja, dos primeiros gregos e dos seus poetas. A redescoberta d literatura oriental antiga refutou esta visão das coisas. Sobretudo nas áreas mais próximas da Grécia, nas regiões hitita e ugarita, surgiram paralelos surpreendentes do mundo “homérico” (BURKERT, 1993:356).

Outra discussão que permeia a historiografia contemporânea é a de um Homero

historiador. Pierre Vidal – Naquet formula a tese que transforma Homero em um historiador

do mundo micênico (VIDAL-NAQUET, apud: MOSSÉ, 1993: 23). François Hartog discorda

categoricamente da idéia de que Homero seja um historiador. No máximo a história pode ter

nascido através da epopéia homérica:

Por que começar pela epopéia, que positivamente não é uma forma de história? Porque na Grécia tudo começa com a epopéia, que marcou a cultura grega de modo profundo e duradouro, sem dúvida – mas também porque a história, em todos os sentidos do termo, procede da epopéia: vem dela e dela se separou. O dispositivo da palavra épica, a memória do aedo, uma certa descoberta da historicidade são as condições que possibilitam o que, alguns séculos mais tarde, será nomeado, por Heródoto, história (historíe). Embrenhar na questão da história na Grécia pela epopéia (séculos VIII – VII) é esboçar uma pré-história do conceito de história (HARTOG, 2001: 21).

12 De acordo com Elaine Hirata (2009), o nome Homero não passou a se referir somente ao nome do poeta, mas tornou-se um “rótulo” para toda a criação épica oral que culminou com a elaboração das duas obras.

Page 35: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

34

Concordamos com os dizeres de Hartog. Considerar Homero um historiador seria cair em um

anacronismo, já que o termo foi formulado somente por Cícero: historia magistra vitae13.

Cícero nos coloca que o primeiro historiador da humanidade foi Heródoto, pois este tinha

uma preocupação com a “verdade histórica” e com uma descrição fiel do que este havia

presenciado em suas viagens. A epopéia homérica fornece ao historiador elementos para a

análise histórica e não pode ser visto como uma narrativa histórica e sim como uma fonte

histórica.

Este período é marcado por algumas peculiaridades organizacionais e políticas. O

século VIII foi um século de suma importância para a história do povo helênico, pois foi

neste século que teve fim o período micênico e se configurou a conhecida polis. Nas palavras

de Pierre Vidal – Naquet:

O século VIII é um período muito importante na história do mundo grego e, aliás, do mundo mediterrâneo em geral (Roma, por exemplo, foi fundada em 753 a.C.). Trata-se de uma época na qual se consolida, na Grécia européia, insular e asiática, uma forma original de vida em sociedade, a pólis. Um grupo de homens livres diz ‘ nós’ ao falar em nome de todos. Os reis já não existem ou então têm apenas papel simbólico. As cidades são governadas não pelo povo, mas por homens (relativamente) ricos, possuidores de terras mas também, as vezes, entregam-se ao grande comércio marítimo (VIDAL-NAQUET, 2002: 15).

Analisando as palavras de Vidal-Naquet, têm-se a impressão de que, em um curto

espaço de tempo, a sociedade grega se viu sem reis, com outra forma de governo e de

organização. Sabermos que as transformações políticas e sociais não ocorreram desta forma

é primordial. Segundo Jean-Pierre Vernant, um dos fatores que contribuíram para a

dissolução do estado monárquico foi a invasão dórica que pôs fim aos palácios micênicos e

rompeu por longos séculos o vínculo entre a Grécia e o Oriente (VERNANT, 1986: 24).

Neyde Theml, em sua obra Público e Privado na Grécia do VIIIº ao IVº séc: o modelo

ateniense, acrescenta que divergências políticas entre os próprios reis causaram o

enfraquecimento do que ela chamou de Estados Palácios (THEML, 1988: 25) facilitando

assim a conquista dórica. Este período micênico anterior a polis, de acordo com Gustave

13 “História mestra da vida”

Page 36: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

35

Glotz, compreendia principalmente três segmentos sociais14 (GLOTZ, 1980: 30 – 31). O

primeiro segmento seria formado pelos nobres: reis descendentes de deuses, como podemos

constatar nos épicos homéricos. O segundo seria os demiurgos, trabalhadores que viviam em

sua maioria nos aglomerados urbanos. Eram cantores, médicos, adivinhos, arautos ou

artesãos. Finalmente os thêtes compõem a multidão, não possuem trabalho fixo, alguns

mendigam, outros se tornam mercenários, porém não possuem moradia fixa nem segurança.

Contudo os thêtes não podem ser confundidos com escravos. Eram homens livres – no

sentido literal da palavra – que recebiam por seus serviços.

Já foi visto no início deste tópico que a opinião de Glotz diverge da nossa em relação

à datação do período homérico e também sobre a organização urbana vigente na época em

que Homero viveu. Para o autor, a cidade retratada por Homero era o mundo micênico; o

autor até chama de “cidade homérica” as cidades micênicas (GLOTZ, 1980: 29). Já vimos

em Trabulsi (2004) que a realidade retratada nos épicos homéricos não é a micênica; embora

existam semelhanças, como os palácios e os templos que, em Tróia, situam-se no alto da

acrópole, evocando mais as cidades micênicas do que a polis do século VIII (MOSSÉ, 1989:

82). A arqueologia já tratou de mostrar como a realidade das cidades no período em que os

poemas foram escritos – séculos VIII e VII – já era bastante diferente do período micênico,

como acreditava Glotz. A descrição supracitada da organização social realizada por Glotz

ainda é relevante, desde que tenhamos a consciência de usá-la para o período micênico. Foi

toda esta organização social que ruiu com a expansão dórica no Peloponeso, em Creta e até

em Rodes.

Todavia, a transformação mais significativa foi sem dúvida no campo político. Todas

as questões que antes eram de interesse geral do soberano, são agora submetidas a uma arte

oratória e somente se resolverão com a conclusão de um debate. Para isto se faz necessária a

formulação de discursos e argumentações (VERNANT, 1986:35). A polis torna-se então um

espaço essencialmente político e “do” político. E a política é pública. Pode-se entender então

que através das discussões que outrora não se faziam necessárias, agora emergem de todos os

lados, transformam a Grécia em uma pátria da oratória e do diálogo e os indivíduos em

indivíduos políticos capazes de formularem seus próprios questionamentos. Os indivíduos

igualam-se e se enxergam unidos por interesses comuns ao grupo, a philia (VERNANT,

14 Usaremos “segmento” por acreditarmos que o termo “classe” faz-se desapropriado para o período, já que esta noção de classe vem carregada de outro sentido, muito mais ligado ao capitalismo industrial ocorrido a partir do século XIX.

Page 37: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

36

1986: 42). A partir da formação da polis acontece uma relação recíproca, substituindo a

relação hierárquica de submissão do período real micênico. Até o herói homérico da Ilíada,

sempre nobre e divinizado, é substituído pelo hoplita, o soldado-cidadão. A façanha

individual dos heróis da guerra de Tróia é substituída pelo valor militar de lutar pelo

coletivo.

Contudo, mesmo na Ilíada, vemos passagens em que o interesse coletivo vai além da

individualidade: “E é precisamente por os heróis formarem uma sociedade de iguais que a

realeza exercida no seio da cidade pelo mais ‘real’ dentre eles nunca poderia ser uma realeza

tipo monarquia absoluta” (MOSSÉ, 1989: 85). Podemos perceber que, nestes momentos, os

épicos homéricos distanciam-se da monarquia vivida pela sociedade micênica. Destarte, não

podemos cair no equívoco de pensarmos que todos os indivíduos possuíam direitos políticos

igualitários e o mesmo espaço nas discussões. A política era uma coisa para a aristocracia e

os homens abastados; artesãos, comerciantes e principalmente escravos não dispunham de

tempo para se dedicarem à política (SOUSA, 2008: 45).

Um livro relativamente recente (2007) foi lançado com outra espécie de abordagem

do conceito e da noção de polis aqui discutida por nós. Trata-se da obra Unthinking the

Greek Polis: ancient greek history beyond eurocentrism , de Kostas Vlassopoulos, ainda sem

tradução para o português. Nesta obra, Vassopoulos discute o conceito de polis mediterrânica

que é tido como certo pela historiografia atual. Para ele, a polis é uma clara fronteira política

e as noções de liberdade política e civil são tidas como incertas pelo autor. Nossa intenção

neste trabalho não é aprofundar além do que já adentramos na discussão sobre o conceito de

polis, porém é realmente válido conhecermos o que há de mais novo nesta discussão e como

este autor argumenta esta nova idéia.

O autor começa o livro discutindo a noção de polis para o próprio grego, para isto

retoma a obra Política, de Aristóteles. O filósofo grego compreende que a polis não é

somente uma reunião de cidadãos politizados, de metecos, de trabalhadores e de escravos e

somente estas esferas sociais é que desenhavam o cotidiano políade. A polis deve ser

compreendida como um sistema amplo e altamente influenciável pelo sistema mediterrânico

como um todo. Assim a polis seria um organismo vivo – Aristóteles sempre manteve uma

estreita relação com a biologia – que sofre de causas externas e sofre com enfermidades,

possui vontades e necessidades:

Page 38: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

37

Aristóteles parece ter uma definição biológica da polis em dois aspectos: por um lado a polis é como um organismo que vem para a vida em forma elementar, mas já com as sementes de seu crescimento futuro, por outro lado, como um organismo é um todo composto de várias peças em diferentes relacionamentos. A razão biológica para este modelo é a filosofia aristotélica e seus polêmicos objetivos: a sua filosofia de telos necessitando de um exame das coisas de acordo com o seu suposto objetivo, sua concepção da physis como o desenvolvimento das coisas de acordo com a sua inerente predisposição e sua clara tentativa de negar a teoria do contrato social e provar que relações “sociais” são baseadas em necessidades biológicas e, portanto, são naturais (VLASSOPOULOS, 2007:78).

A polis é um mundo sistemático influenciado por relacionamentos “inter-polis”.

Existe um quadro analítico proposto pelo autor que consiste em três elementos básicos para

um novo paradigma do conceito de polis: a polis faz parte de um sistema maior; existe uma

multiplicidade temporal e espacial dentro deste sistema e que a polis deve ser analisada no

âmbito de “ambiente”, criado pelo sistema e por seus múltiplos níveis (VLASSOPOULOS,

2007:145). Discordamos neste ponto de Louise Bruit Zaidman e Pauline Schmitt Pantel. As

autoras, no livro La religión Griega em la polis de la época clásica, acreditam que a polis se

configura como um conjunto político autônomo e independente (ZAIDMAN & PANTEL,

2002:8). A cidade-estado seria sim um organismo com uma autonomia política própria,

porém esta autonomia é quebrada com as diversas influências que esta sofre durante seu

percurso.

A discussão da parte dois de seu livro é a mais surpreendente e inovadora.

Vlassopoulos nega a dicotomia Ocidente – Oriente; mesmo para o mundo antigo15.

Pensarmos em questões como identidade, magistrados, assembléias, democracia e política

partindo de uma perspectiva teleológica grega – e que a polis grega seria a líder para a

solução de todas as outras polis – é enganosa. As cidades-estado orientais possuiríam uma

estrutura complexa capaz de influenciar as cidades-estado gregas e vice-versa, em uma

relação de mutualismo:

É bem entendido que alguém possa reconhecer o que Hansen determinou como culturas da cidade-estado em muitas partes do antigo Oriente Próximo, especialmente Mesopotâmia, Síria e Fenícia. A referência à cidade fenícia em documentos Neo-assírios do primeiro milênio é um bom exemplo. Algumas vezes as referências a uma cidade fenícia são dadas por meio do nome da cidade ou a etnia (Tiro, Tyrians), mais um sinal determinante para o conceito de cidade, em outros casos por meio de

15 Já que esta dicotomia na modernidade e na contemporaneidade vem sendo questionada por vários pensadores, como Edward Said (2001).

Page 39: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

38

especificidades étnicas, mais a marca permanente para as pessoas. Temos aqui os conceitos de cidade-estado e comunidade, em grego polis. Nestas regiões, a principal unidade política foi uma cidade (alume em acadiano), funcionando como um centro político e controlando uma maior ou menor faixa territorial (VLASSOPOULOS, 2007: 106).

Percebemos que nas narrativas de Heródoto existe uma relação entre as polis em um

“ambiente mediterrânico”. Os gregos enxergavam isto. Esta noção de polis grega como um

sistema onipotente e autóctone é uma abordagem dos historiadores contemporâneos. Vemos

isto quando analisamos o mito que retrata o nascimento e a vida de Dioniso. Se atendermos

ao pedido de Vlassopoulos e depositarmos olhares mais atentos às raízes gregas e tentarmos

compreender como eles próprios se entendiam dentro do sistema políade, veremos, por

exemplo, que a construção identitária grega se deu opondo-se aos persas, o que gerou vários

discursos, como o de liberdade e o de soberania.

A constatação de que as polis sofriam influências mutuamente não é nenhuma

novidade. O que Vlassopoulos nos traz de novo é pensar as polis mediterrânicas como um

ambiente orgânico retomando as teorias de Aristóteles, pensando que estas são um

organismo vivo que pode morrer dependendo das influências externas. O autor tenta realizar

uma reflexão de como os próprios cidadãos da polis a compreendiam como um ambiente

plural e influenciável.

Após estas constatações da polis como um organismo híbrido, veremos no tópico que

se segue que Dioniso também é uma divindade híbrida e seu mito ilustra brilhantemente o

que discutimos neste tópico: a interação cultural entre sociedades distintas.

1.4 Dioniso no Mediterrâneo

Após esta breve análise das épocas micênica e homérica, vamos analisar como

Dioniso se configurou nestas sociedades e quais as influências que este sofreu e nelas

exercem. É preciso saber que o deus já possuía uma longa trajetória antes de Homero

(TRABULSI, 2005:14) e que a os épicos do aedo pouco mostram Dioniso; para ser mais

preciso, são duas aparições na Ilíada – cantos VI e XIV – e duas na Odisséia – cantos XI e

XXIV, que analisaremos a seguir. Embora sem grande relevância, podemos comprovar que

Dioniso já era conhecido no período da escrita destas obras. Eudoro de Souza nos pontua que

as primeiras fontes arqueológicas que fazem menção aos deuses datam do II milênio

(SOUZA, 1973:9), no período minóico, anterior ao período micênico. Comecemos com a

Page 40: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

39

definição do deus, ou a falta de definição, segundo Jean-Pierre Vernant. Para o autor, o deus

é de difícil enquadramento. Afrodite é a deusa da paixão; Atena, do saber; Hefesto deus

ferreiro; já Dioniso não se define. É o deus vagabundo que está sempre de passagem, não

cria raízes em lugar algum, está sempre viajando (VERNANT, 2000:145). Dioniso é um

deus de mil faces, um deus caleidoscópico. Em diferentes regiões e diferentes épocas, o deus

toma uma forma distinta da anterior e “troca a máscara”. Dioniso é o deus da máscara. A

divindade que se transforma conforme a ocasião, transformação percebida pelos próprios

contemporâneos:

Aristófanes recorda (fr. 131 Koch) a afinidade de Dioniso com o mundo das máscaras e dos espantalhos (mormolukeía), o que faz dele verdadeiramente o deus da máscara do panteão grego (VERNANT, 1991: 163-164).

Diversas fontes arqueológicas fazem menção a Dioniso como um deus mascarado. Podemos

constatar esta relação no segundo capítulo deste trabalho.

Walter Burkert também relata-nos que em muitos casos a forma de representação do

deus consiste em pendurar uma máscara em uma coluna e muni-la de um pedaço de tecido,

assemelhando-a a um espantalho (BURKERT, 1993:327). Podemos ver que o conceito de

representação, por nós elucidado anteriormente, se amarra à questão do Dioniso mascarado.

A presença de máscaras cria novas representações que trazem o deus às diversas realidades

distintas:

Por suas virtudes epifânicas, o deus que chega conhece intimamente as afinidades da presença e da ausência. Quer caminhe sorrindo ou salte irritado, Dioniso se apresenta sempre sob a máscara do estrangeiro (DETIENNE, 1988:19).

Existem diversas representações míticas distintas de Dioniso e, dependendo da

tradição em que se insere e do local do culto, o deus modifica seu nome e sua funcionalidade

divina:

Dionysos Ctonios evoca o mundo subterrâneo dos mortos e das sombras, enquanto Dionysos Iakchos é criança: evoca o jogo e a inocência; contudo, na alternância da morte sombria e da vida inocente, Dionysos Meilichios, Zagreus, Sabazios, todos os Dionisos se opõem à rigidez objetiva (ALBORNOZ, 1999:5).

Page 41: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

40

A própria formação etimológica do nome grego Dioniso é sem definição certa.

Marlene Fortuna toma como exemplo um composto do genitivo dio (nome do céu em trácio),

com nysa (filho ou jovem); Dioniso seria então “o filho do céu” (FORTUNA, 2005:36). Esta

construção etimológica poderia identificá-lo como o filho de Zeus, rei do céu e do Olimpo,

morada dos deuses. O que compreendemos é que Dioniso é um deus incomodativo na

medida em que é diferente e indiferente à autoctonia grega:

A um só tempo vagabundo e sedentário, ele representa, entre os deuses gregos, segundo a forma de Louis Gernet, a figura do outro, do que é diferente, desnorteante, desconcertante, anômico. É também, como escreveu Marcel Detienne, um deus epidêmico. Como uma doença contagiosa, quando ele aparece em algum lugar onde é desconhecido, mal chega e se impõe, e seu culto se espalha como uma onda (VERNANT, 2000:144).

Uma das maiores obras referente à representação das divindades helênicas – tanto na

questão das imagens em caráter imaginário quanto em caráter da cultura material, como

vestígios arqueológicos – é o Lexicon Iconographicum Mythologiae Classicae16, redigido em

1981, que reúne vários especialistas sobre cada deus grego17. Defendemos que o LIMC é de

suma importância para o estudo das representações divinas gregas. Dentro do volume I,

Alina Veneri nos mostra um apanhado geral da imagem e do culto a Dioniso, enquanto Carlo

Gasparri realiza um detalhado estudo descritivo dos vestígios arqueológicos que representam

Dioniso encontrados em várias partes da Península Balcânica e de ilhas do Mediterrâneo e do

Egeu, totalizando mais de oitocentas e cinqüenta imagens.

Esta obra é utilizada algumas vezes durante este trabalho, numa tentativa de

construção da representação imagética do deus. Vemos no começo do LIMC que Dioniso é

uma divindade rural. Na definição de Walter Burkert, no livro Religião Grega na Época

Arcaica e Clássica, é uma divindade cthônica (BURKERT, 1993:436), um deus das florestas

e das pastagens. É o deus da vinha e da fertilidade; esta fertilidade não é somente de caráter

sexual – mas também dele – como também no que tange à fertilização dos vegetais e dos

produtos encontrados em ambiente rural:

16 A partir de agora quando a obra for citada, nos referimos com a sigla LIMC, usada na própria obra. 17 Curiosamente não vemos nem sequer índícios da referência desta obra no principal livro sobre o dionisismo publicado no Brasil – que já foi citado várias vezes nesta dissertação – de autoria de José Antonio Dabdab Trabulsi.

Page 42: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

41

A caracterização de Dioniso como deus do elemento úmido (que continua a ser uma parte significativa da memória do mar e da água dentro do mito dionisíaco) e da natureza exuberante, principalmente os vegetais e, portanto, responsável pelo crescimento e pela maturação dos frutos, é o aspecto mais importante da essência desta divindade (VENERI, 1981: 415).

Marcel Detienne considera que Dioniso e o dionisismo apresentam-se na forma epidêmica

(DETIENNE, 1988:12). O culto ao deus adentra-se na periferia grega e posteriormente na

Ática; primeiramente nos meios rurais e campestres – a chora – e posteriormente nas

camadas urbanas e sociedades urbanizadas, no seio da ásty.

Após esta definição poderíamos pensar que Dioniso poderia ser um deus estrangeiro?

Um deus não grego? Vemos as evidências, iniciando pelo mito que traz o deus ao cenário

próprio dos mortais e retrata seu nascimento e seu crescimento: o mito fundador da cidade de

Tebas, que se mistura ao mito do nascimento de Dioniso. Jean Pierre-Vernant, na obra Os

deuses, o universo, os homens, nos diz que este mito começa com o rapto de Europa – irmã

de Cadmo, um fenício – por Zeus, que se encantou com a beleza da jovem e se transfigurou

em touro para copular com a moça. Cadmo foi à busca da irmã e, em Delfos, o oráculo lhe

disse que deveria seguir uma vaca e, na hora que o animal parasse, deveria ali fundar uma

cidade. Quando a vaca finalmente para, Cadmo mata o dragão, filho do deus Ares, que

guardava uma fonte naquele local e, a mando da deusa Atena, joga seus dentes na terra,

fazendo germinar guerreiros adultos inteiramente armados, os Spartoí18. Depois de trabalhar

sete anos a serviço de Ares para se redimir do assassinato do filho do deus, Cadmo funda a

cidade de Tebas juntamente com estes guerreiros autóctones, nascidos na própria terra e se

casa com Harmonia, filha de Afrodite. Com a deusa tem várias filhas: Sêmele, Autônoe, Ino

e Ágave. O soberano Zeus encanta-se por Sêmele e se deita com ela com a imagem de um

mortal. Esta já grávida do deus pede para ele se mostrar com todo seu esplendor de

divindade; Sêmele é desintegrada por toda a luminosidade do deus, já que um mortal não

suporta a luz de um ser divino. Zeus então tira do corpo de Sêmele o filho, o pequeno

Dioniso e faz um corte em sua própria coxa, a coxa uterina que abriga Dioniso até seu

nascimento19. Sobre o nascimento através da coxa faz-se importante observar a constatação

de Burkert, quando o autor compara o mito de nascimento da deusa Atena com o mito de

nascimento de Dioniso: 18 Semeados 19 Existe um outro mito – provavelmente muito mais antigo – que narra o nascimento do deus. Dioniso – sob o nome de Zagreus – é morto e despedaçado por Hera. Zeus enão engole seu coração e posteriormente dá a luz ao deus. Este lenda não era tão conhecida do povo grego quanto o mito da coxa de Zeus.

Page 43: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

42

No lugar da via “superior” do nascimento da virgem armada aparece uma parte do corpo com associações eróticas e homoeróticas. Em ambos os casos é pressuposto um ferimento do deus pai. A ferida na coxa encontra-se ligada à morte a à castração, manifestamente no contexto de iniciações. Explicar o nascimento a partir da coxa como um mero mal-entendido lingüístico, significa desconhecer que, justamente, o paradoxo provoca o efeito desejado (BURKERT, 1993:325).

Para protegê-lo do ciúme de sua irmã e esposa Hera – que durante toda a vida de

Dioniso vai persegui-lo – após seu nascimento, Zeus entrega a criança aos cuidados de

Hermes. O pequeno Dioniso é criado por ninfas em uma caverna, ou segundo outra tradição,

vive no palácio do rei Orcómeno (GRIMAL, 2000:121). Durante sua infância e adolescência,

sofre diversas hostilidades de reis e deuses, e percorre toda a Ásia, chegando à Índia e

assumindo os costumes deste povo. O ódio acumulado por tanta perseguição faz Dioniso

retornar à terra de sua família, Tebas, onde seu primo Penteu, filho de Agave, reina. O deus

retorna com traços asiáticos, tanto físicos como nas vestimentas. Como o soberano tebano

não aceitou o culto a esse deus com características estrangeiras, Dioniso lega à cidade uma

maldição, destruindo o palácio e o reinado de Penteu e enlouquecendo as mulheres da

cidade, que saíam errantes pelos montes e florestas. A parte do mito que se inicia a partir de

sua chegada a Tebas é tratada em detalhes no terceiro capítulo desta dissertação, pois o

tragediógrafo Eurípides trata exatamente deste episódio em sua peça As Bacantes.

Carl Kerényi traz-nos outros mitos que retratam o nascimento de Dioniso, porém a

maioria deles são hinos órficos20 que o trazem como filho de Deméter ou de sua filha

Perséfone (KERÉNYI, 2002: 194). Kerényi, em sua obra Os Deuses Gregos, não faz

distinção entre os mitos21. Nas palavras de José Antonio Dabdab Trabulsi:

Mais grave é o caso de C. Kerényi que, influenciado por Jung, dedicou a maior parte de sua vida intelectual a estabelecer “arquétipos” do mundo antigo. Dioniso foi, para ele, “o arquétipo da vida indestrutível”. É a velha história de buscar na Antiguidade modelos para nossa própria vida (...) (TRABULSI, 2005: 13).

Optamos por continuar com a versão do mito fundador de Tebas por compreender que este

está mais próximo do mundo grego e do povo grego e também porque os diversos

20 Hinos escritos por mitólogos da religião em honra ao deus Orfeu. 21 Kerényi apenas apresenta-os, não os analisa, em uma análise jungiana pautada em arquétipos que explicariam nossa vida contemporânea.

Page 44: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

43

pensadores gregos, posteriores a estes mitos, concordam com o mito fundador de Tebas e o

usam em suas obras, como é o caso da peça As Bacantes. O LIMC também corrobora com

esta versão quando trata do nascimento e da infância do deus: “Na tradição mais antiga

Dioniso é concordadamente considerado filho de Zeus e Sêmele.” (VENERI, 1981:416).

Porém, os autores do LIMC admitem que outras versões existem e também foram difundidas

durante a história da humanidade

Dioniso é o deus nascido duplamente. O nascimento é o momento mais emblemático

de todo deus, mas o de Dioniso foi particularmente atípico. E não há paz após este

conturbado nascimento; Hera vai persegui-lo, e este é obrigado a ficar escondido nos campos

de Nisa. Lá cresce em meio à vegetação e torna-se um deus de dotes rurais, cultivando

principalmente a vinha. Dioniso também se configura como o deus do transe, da loucura. É o

deus da manía – um estado entre a doença mental e a infâmia. É o deus beberrão que vagueia

errante, com um cortejo de homens e mulheres em estado de transe incontrolável.

Algumas pistas sobre o imaginário dos deuses nos são dadas por este mito fundador.

Na passagem em que Sêmele é fulminada pela luminosidade divina de Zeus, podemos

perceber como as figuras divinas eram temidas e que o humano não tem capacidade de

receber o divino em sua presença (FORTUNA, 2005:27). Podemos analisar também o ódio

mortal de Hera por Dioniso. Para isso precisamos ter clara qual era a formatação imaginária

de Hera e qual sua função no panteão dos deuses. De acordo com Pierre Grimal, Hera é a

protetora das mulheres casadas (GRIMAL, 2000:204). É a deusa dos matrimônios perfeitos;

esposa legítima do adúltero Zeus. Já Dioniso é o filho bastardo, aquele nascido de uma

traição de seu marido. Percebemos que a perseguição de Hera ao menino deus é uma alegoria

da dicotomia entre um matrimônio perfeito permeado por relações extraconjugais.

Neste mito que introduz Dioniso no panteão divino, a relação autóctone X estrangeiro

se faz presente desde o início. O próprio fundador da cidade é um asiático estrangeiro. Já a

alegoria dos viris guerreiros armados que nascem da terra representa os autóctones nascidos

no local e feitos para defenderem a pátria onde nasceram (DETIENNE, 2008:103). Dioniso

possui uma estreita relação com o Oriente. É o deus que conquista a Índia com seu exército

de sacerdotes, que empunham tirsos e tambores ao invés de armamento de guerra. O deus –

de acordo com o mito fundador de Tebas – é tebano mas, com seu distanciamento forçado,

este adquiriu características orientalizadas, inclusive na vestimenta e nas feições. O Oriente

sempre foi o exótico, o atípico, e nunca um deus com características orientais seria aceito

pelo poder grego:

Page 45: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

44

Dioniso é considerado estrangeiro pelos gregos porque cresceu em outras terras e foi levando seu culto a outras paragens longe da Hélade, sempre passando por elas e permanecendo pouco nelas: chegando e rapidamente partindo. Daí afirmar-se ser Dioniso o deus que nunca conseguiu um lugar fixo, um altar eterno, um templo, um centro, um omphalós. Era o vadio, o vagante, o bêbado errante, de pouco valor para uma Atenas aristocrática, racional e implacável (FORTUNA, 2005:39).

Concluímos finalmente que Dioniso é um deus grego. E os gregos nunca negaram

Dioniso (DETIENNE, 1988:21), embora algumas de suas atitudes possam ser vistas como

bárbaras. Marcel Detienne denomina o deus como o “Estrangeiro do interior” (DETIENNE,

1988:37); aquele que mesmo sendo gerado dentro da pátria torna-se um bárbaro,

irreconhecível pelos seus iguais. Barbara Cassin, Nicole Louraux e Catharine Peschanski, na

obra Gregos, Bárbaros, Estrangeiros: a cidade e seus outros, nos dão a idéia da noção de

bárbaro para os gregos. São considerados bárbaros não aqueles que não nasceram em

território grego, mas aqueles que não adeririam aos costumes helênicos (CASSIN;

LOURAUX; PESCHANSKI, 1993:107). O barbarismo não é tratado pelo determinismo

geográfico, mas sim pelos costumes culturais; o que tornava o indivíduo grego não era sua

etnia e sim o seu conhecimento e sua aderência à cultura grega. Dioniso é considerado de

costumes bárbaros não por não haver vivido a maior parte de sua vida na Grécia, mas sim

por ter aderido a costumes e culturas “não gregas”. É a divindade estrangeira, pois embora

nascido em terra grega, torna-se um desconhecido de sua própria cultura. É um deus

misterioso sempre coberto com uma máscara. Um deus que viajou a um mundo exótico e tão

sombrio quanto ele próprio; é um deus a ser desvendado, a ser descoberto: “Através da

máscara que lhe confere sua identidade figurativa, Dioniso afirma sua natureza epifânica de

deus que não para de oscilar entre a presença e a ausência” (DETIENNE, 1988:23).

Muitos autores de obras sobre o dionisismo, no século XIX e início do XX – como

Sabatucci – acreditavam em um deus nascido de cultos trácios ou lídios. Porém, como atesta

Jean-Pierre Vernant:

A ‘inversão’ de perspectiva operada por Sabatucci (...) de um Dioniso vindo do estrangeiro, da Trácia ou da Lídia, ou de ambas, se viu arruinado pela presença nos documentos micênicos em linear B do nome de Dioniso, que, portanto, parece não ser menos ancestralmente grego do que os outros deuses do panteão (VERNANT, 1991:172).

Como vimos, o período micênico é o da realeza e o homérico da aristocracia. Ambos

são governados por homens nobres. Dioniso representa a ruralidade, os campos e as camadas

Page 46: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

45

populares. Podemos concluir então o porquê do deus quase não ser retratado nos poemas

homéricos e não haver imagens do deus em vasos destes períodos. Dioniso não poderia

figurar no panteão divino oficial porque não retratava a ideologia dominante, estritamente

urbana e aristocrática. O mito supracitado mostra isso. O rei Penteu, representante da

aristocracia vigente, não aceitou este culto transgressor.

Aproveitemos que já estamos tratando dos período remotos para ver as passagens que

tratam de Dioniso na Ilíada. São duas: a primeira está no canto VI, intitulado O encontro de

Heitor com Andrômaca. Esta passagem é a mais longa das duas obras que retratam o deus:

Nem mesmo o filho de Driante, Licurgo valente, mui longa vida alcançou, por haver contra os deuses celestes lutado. Ébrio, uma vez, de Dioniso ele as amas, violento, repele do sacro monte de Nisa. Tomadas de medo indizível, quando o homicida Licurgo, contra elas, brandiu a aguilhada, os tirsos jogam no chão. Aterrado, nas ondas marinhas corre Dioniso a lançar-se, onde, trêmulo, Tétis ao seio o recolheu, que assaz medo sentia do herói com seus gritos. Mas, depois disso, contra ele irritaram-se os deuses felizes, tendo-o cegado Zeus Crônida. A vida bem curta ele teve, por se ter feito odioso aos eternos que moram no Olimpo. (Homero. Ilíada, VI, 130-140)

Esta primeira passagem narra o ainda jovem Dioniso, após ser perseguido por sua madrasta

Hera. O rei Licurgo persegue o deus e suas “amas”, que seriam as mulheres que tomaram

conta do deus após seu nascimento e, possivelmente, se tornaram suas primeiras seguidoras.

Embora a palavra mênade não tenha sido utilizada, em um outro canto Andrômaca corre

loucamente, e é comparada a uma mênade (TRABULSI, 2004:38). É praticamente certa a

hipótese de que Homero conhecia as adoradoras do deus, e que neste antigo ritual era comum

no período homérico a palavra “ébrio” – mainómenos – que aparece para definir Dioniso, e

que também pode ser traduzida por embriagado, alucinado ou ainda delirante. Mesmo com a

discussão entre vários especialistas de que Dioniso já era o deus do vinho no período

homérico – como pode ser conferido no LIMC – enquanto outros acreditam que o deus

tornou-se tardiamente, é fato que Dioniso já era conhecido – mesmo que não unanimemente

– como deus da loucura e da embriaguez. A relação de Dioniso com o elemento úmido pode

ser constatado pelo seu refúgio ao mar.

A outra passagem contida na Ilíada é bem breve, está no canto XIV, intitulado O

engano de Zeus, e trata da ancestralidade de Dioniso:

Page 47: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

46

nem a princesa de Tebas, Alcmena, nem Semele, ainda – Heracles forte, de peito leonino, proveio daquela; Desta, Dioniso, chamado na Terra Delícia dos Homens – (Homero. Ilíada, XIV, 323-325)

Constatamos que o mito de fundação de Tebas era conhecido por Homero e seus

contemporâneos e, ao julgarmos pela narração acima, o aedo concordava com o fato de

Dioniso ter sido gerado por Sêmele. A “Delícia dos Homens” – chárma brotoisin – é a

alegria que Dioniso concede aos homens que provam de sua loucura.

Também na Odisséia temos duas passagens que se referem a Dioniso. A primeira está

no canto XI, que tem como título Consultando os Mortos. Nela temos o nome de Ariadne e a

menção ao amor:

Fedra, também, se apresenta, com Prócris e a bela Ariadne, filha de Minos, de mente funesta, que outrora de Creta levar Teseu pretendeu para o monte sagrado de Atenas, sem que conseguisse; em Dia, envolvida por água, primeiro Ártemis a fez morrer, sendo ela acusada por Dioniso. (Homero. Odisséia, XI, 321-325)

A última referência a Dioniso na Odisséia está no último canto, XXIV, que tem como título

Segunda descida ao Hades e o Tratado de Paz. Aqui temos os nomes de Hefesto e Dioniso,

duas divindades que representavam, respectivamente, os artesãos e os camponeses:

E, quando as chamas de Hefesto já haviam teu corpo destruído, teus ossos brancos, Aquiles, ao vir a manhã, depusemos em vinho puro e óleo fino; que uma ânfora de ouro deixara Tétis, tua mãe, de Dioniso valioso presente nos disse, e obra imortal e famosa de Hefesto, o notável artífice (Homero. Odisséia, XXIV, 71-75)

Percebemos que a imagem de Dioniso está muito pouco presente tanto na Ilíada quanto na

Odisséia, haja vista a extensão de ambas e a quantidade de divindades que são retratadas.

Homero certamente conhece Dioniso, mas a não importância que o poeta concede ao deus

pode ser entendida pela estranheza do deus perante os nobres guerreiros (TRABULSI,

2004:40). A mesma desatenção é percebia em relação à Deméter. Ela, também uma

divindade cthônica, era incompatível com uma nobreza que almejava os olímpicos. Em

suma, de acordo com Trabulsi:

Page 48: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

47

O “momento homérico” – que pode não ser o momento cronológico da elaboração do episódio de Licurgo – é, portanto, para a história do dionisismo, o de um singular apagamento. Alguns aspectos de segundo milênio estão ainda presentes; outros aspectos, mais típicos do arcaísmo, tal como a aproximação com Hefesto, estão talvez em preparação. Mas o brilho e a estabilidade da sociedade aristocrática fazem com que suas manifestações não apareçam, qualquer que tenha sido o seu papel no “vivido” religioso, e no das massas populares, em especial (TRABULSI, 2004:43).

Não queremos afirmar que não havia rituais em honra ao deus neste período, pelo

contrário. O que afirmamos é que Homero, representando a ideologia predominante na

época, não se importou com Dioniso. Isto não quer dizer que a população em geral – ainda

rural – partilhava desta mesma ideologia. Ressaltamos que até os oikoi das famílias

aristocráticas eram ruralizados e admitiam costumes campestres; por esta constatação fica

evidente um possível culto a Dioniso por parte destes oikoi. O que temos como indício é que

a aristocracia não queria e deus em seu cotidiano, como percebemos pela a ausência de

imagens de Dioniso nas cerâmicas. Este tipo de produto era comercializado para uma elite –

e grande parte era comercializado em outras pátrias – então cabe aos artistas o retrato de

imagens caras a esta aristocracia. Não termos Dioniso nas representações de cerâmica não

nos ajuda em nada para provar que o deus não era referenciado pelo período homérico; nos

ajuda somente na elaboração de uma reflexão acerca da negação do dionisismo por uma

elite, e não pela população de modo geral, inclusive grande parte da população aristocrática,

que era ruralizada.

Muitos especialistas do dionisismo atrelam a representação do deus com a de outras

divindades, algumas do panteão principal dos deuses olímpicos, como um método

comparativo estrutural. Faremos aqui uma breve elucidação destas divindades que partilham

a representação dionisíaca por acreditarmos que é de suma importância a constatação de que

a idéia da divindade Dioniso não se constrói sozinha, mas sim traz para perto do deus um

conjunto de outras divindades que o complementam. Marlene Fortuna afirma que faz parte

da genealogia de Dioniso a companhia de outras divindades:

Sempre envolto, desde pequenininho, por grupos, Dioniso nunca conheceu a solidão; ou pior que isso, e talvez exatamente por ser assim Dioniso seja o deus da mais obscura solidão que há no Olimpo. No entanto, “por fora”, desde pequeno esteve sempre sob os cuidados de muita gente: as ninfas que o retiraram do meio das cinzas maternas, se encarregando de sua educação;

Page 49: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

48

as Híades, as Horas que auxiliaram sua tia Ino na vigilância de seu crescimento; as musas e Sileno – “paizão beberrão do cortejo” –, os que pegaram Dioniso na adolescência (FORTUNA, 2005:128).

Várias destas representações podem ser conferidas nas imagens da cerâmica ática – que

analisamos no segundo capítulo desta dissertação – ou em estátuas e monumentos.

Dividiremos as divindades que aparecem atreladas a Dioniso em três grupos de afinidades:

por afinidade cthônica; por afinidade afetiva e por afinidade de ritual.

No primeiro grupo, temos de imediato a figura de Deméter. Deméter pertence à

segunda geração divina, a dos Olímpicos. Filha de Réia e Cronos, irmã de Zeus e

conseqüentemente tia de Dioniso, Deméter é a deusa da terra fértil; do trigo. Foi cultuada em

todas as regiões que cultivavam este cereal. Seus principais locais de culto são as planícies

de Elêusis e da Sicília, embora seu culto fosse praticado em diversos locais (GRIMAL, 2000:

114 – 115). A relação cthônica entre Deméter e Dioniso é facilmente percebida, pois estas

duas divindades estão ligadas à vegetação e à fertilidade: “(...) Dioniso pode estar associado

a Deméter, assim como o fruto de uma árvore ao do campo, o vinho ao pão.” (BURKERT,

1993:431). Entretanto, também existem distinções entre estas duas divindades: enquanto

Deméter é a deusa vegetal que alimenta os homens com o trigo necessário para sobreviver,

Dioniso é o deus vegetal que alimenta os homens com a vinha, essencial para o gozo humano

e para a capacidade de embriagar-se divinamente, juntamente com um deus. Dioniso também

é ligado à filha de Deméter, a jovem Perséfone. Como já foi citado, alguns hinos órficos

colocam Dioniso como sendo filho desta deusa. Então Deméter seria sua avó. Embora estes

hinos não façam parte da tradição dionisíaca, está aí registrada mais uma ligação deste deus

com Deméter, sem diminuir nenhuma espécie de fonte.

Uma hipótese plausível da imagem de Dioniso ser aliada à de Deméter pode ser as

relações políticas e econômicas que os dois deuses representavam. Enquanto Dioniso

representa a ruralidade mais empobrecida, aquela dos camponeses e das pessoas campestres,

Deméter representaria as grandes porções de terras, a grande agricultura que abastece a polis,

representa também a grande aristocracia rural que detinha o poder econômico na ática. Se

concordarmos com esta hipótese, Deméter foi utilizada pelo poder – provavelmente o poder

tirânico do período arcaico – para conceder à aristocracia a sensação de se sentir

contemplada. Desta forma, a política ática trazia para perto as camadas menos abastadas da

sociedade ateniense, sem perder de vista a elite, tão importante para a manutenção do poder

político.

Page 50: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

49

Outra divindade importante é o deus dos pastores e dos rebanhos Pã. Esta divindade

também cthônica habitava os bosques e era representado semi-humano, com pés e pernas de

bode, todo peludo e com o rosto barbudo. Pã é um deus de caráter sexual, persegue ninfas e

mancebos com igual paixão, agride as pessoas com ameaças de penetração e dizia-se que se

suas incursões amorosas fossem infrutíferas este procurava um meio de se resolver sozinho

(GRIMAL, 2000:345). São várias as contradições de seu nascimento. Seu nome vem de παν,

que significa “tudo”. Esta alusão ao seu nome pode significar a lenda que coloca o deus

como filho de Hermes; quando este o levou até o Olimpo, agradou a todos, sobretudo

Dioniso (GRIMAL, 2000: 345). Foi através da alegria de Dioniso ao ver aquele deus que Pã

passa a compor os cortejos desta divindade. Dioniso e Artemis são aproximados por uma

festa em Patras (BURKERT, 1993:432). O ritual dos dois deuses é semelhante em alguns

aspectos: enquanto as mênades acompanham Dioniso em seu thíasos, as ninfas virgens

dançam junto a Artemis durante o ritual. Artemis representa a noite enluarada, a caça e a

força feminina, todos os aspectos ligados também a Dioniso.

Temos no segundo grupo os deuses que são representados em diversos mitos junto a

Dioniso e possuem com este deus uma afinidade afetiva. Comecemos pelos amores de

Dioniso: Afrodite e Ariadne. Afrodite é a deusa do amor, nascida da espuma dos testículos

de Urano atirados ao mar, quando da castração por seu filho Cronos. Casado com o deus

ferreiro Hefesto – que era coxo e muito feio – a deusa teve vários amantes. A maioria das

tradições refere-se ao deus da guerra Ares como principal amante da deusa, mas também é

sabido que esta se uniu com Dioniso. Pelos seus diversos casos adúlteros, Platão irá

classificá-la mais tardiamente como Afrodite Pándemia – Afrodite popular – deusa do amor

vulgar (GRIMAL, 2000:10). A tradição mais aceita é que Dioniso teve um filho com

Afrodite: Priapo, protetor das pastagens e plantações; um deus asiático venerado

primordialmente em Lâmpsaco (GRIMAL, 2000: 395). Com um descomunal falo ereto –

castigo de Hera, por sua mãe, Afrodite, ter se deitado com Zeus – o filho do deus

representava a fertilidade sexual e passou a fazer parte das representações do culto

dionisíaco. De acordo com alguns pesquisadores, como Marlene Fortuna (2005), Priapo

chegou a ser representado como o ciúme da virilidade, o ciúme e a insegurança que os

homens sentiam – e sentem – de suas mulheres com outros homens de falo maior que o dele.

Marlene Fortuna dos relata um mito, que faz parte do nascimento de Priapo em Lâmpsaco,

após Afrodite ter dado à luz a este verdadeiro monstrinho e o ter abandonado:

Page 51: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

50

As senhoras de Lâmpsaco, no entanto, adoram-no, só tem olhos para ele e seu membro. O jovem Priapo, desejando pôr seu “grande instrumento” à prova, se sente todo entusiasmado a responder à solicitação delas. Os maridos se opõem e exigem o exílio de Priapo. As esposas, aos prantos, suplicam o auxílio dos deuses. E daí, por uma maldição dos deuses, uma doença grave abate-se sobre o sexo dos cidadãos de Lâmpsaco. Priapo tem de ser chamado de volta à pátria para o infortúnio acabar e os cidadãos voltarem à normalidade (FORTUNA, 2005:136).

Contudo, Priapo jamais conheceu o gozo, seu falo desproporcional é inútil para o seu prazer.

O segundo amor de Dioniso foi Ariadne. Abandonada na Ilha de Naxos por seu amor

Teseu, Ariadne presenciou o culto de Dioniso e se fascinou com a beleza do deus (GRIMAL,

2000: 45). Este a desposou e a levou até o Olimpo onde, segundo a tradição mais aceita,

tiveram quatro filhos: Toas, rei de Mirina, que se vestia como Dioniso; Estáfilo, pastor que

inventou a mistura de vinho e água; Enópion, rei de Quios, introduziu o vinho em seu reino e

seu nome vem do grego οινοπιων, que significa “o que bebe vinho” e Pepareto, epónimo da

Ilha de Pepareto. Percebemos que tanto Priapo como os outros filhos de Dioniso mantêm a

raiz de poder cthônica do pai, assim como o apelo sexual no caso de Priapo, como uma

forma de continuísmo das tradições.

Outro deus ligado a Dioniso por afinidades faz parte do primeiro panteão olímpico,

trata-se do deus dos mares Poseidon. As duas divindades são relacionadas ao elemento

úmido. Marcel Detienne, na obra A Invenção da Mitologia, chama este poder fecundo da

água como o poder do jorro (DETIENNE, 1991:47), embora este poder seja diferente nos

dois deuses. Enquanto Poseidon jorra a água de seus mares com maremotos para destruir

cidades ou ondas gigantescas para confundir os marinheiros – como fez com Odisseu – o não

menos poderoso e destrutivo jorro de Dioniso faz crescer a vinha e a uva, que se transforma

na bebida que embebeda e enlouquece os homens, podendo torná-los tão destrutivos como

um maremoto. Dioniso possui relação também com seu irmão mais velho Hermes, o

mensageiro dos deuses, que a mando de Zeus levou Dioniso até as ninfas. Hermes também é

um deus itifálico, representado sobre a forma de um pilar com um falo em ereção

(DETIENNE & SISSA, 1990:268) e durante o terceiro dia das festas das Antestérias em

honra a Dioniso – que são abordadas no terceiro capítulo – os sacrifícios são dedicados a

“Hermes cthônico” (BURKERT, 1993:432). A ligação de Hermes com o mundo dos mortos

– ele é o deus mensageiro que conduz as almas ao mundo subterrâneo – faz com que Dioniso

também se ligue a este mundo; o deus vai até o reino de Hades buscar sua mãe Sêmele para

Page 52: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

51

ser levada ao Olimpo como deusa. Algumas festas dionisíacas – como é elucidado no

terceiro capítulo – também celebram a relação do mundo dos vivos com o mundo dos

mortos.

Haiganuch Sarian aponta-nos algumas cerâmicas do século VI que representam

Dioniso junto a Héracles. Embora os mitos tradicionais não façam relação aos dois deuses –

excluindo o fato de serem meio irmãos, ambos filhos de Zeus – Sarian afirma que estas

representações acontecerem somente após a ascensão do poder tirânico – principalmente o

ateniense – que aproxima o anti-social Dioniso do herói cívico Héracles, desta forma

atenuando as distinções de Dioniso e o mundo religioso oficial (SARIAN, 2005:127). A

cerâmica no período arcaico também representará Dioniso junto a Hefesto; sobre isto

tratamos no segundo capítulo. Um caso distinto destes é a relação entre Dioniso e Hera.

Classificamos esta relação de anti-afinidades, porém não com menor importância. Já foi

colocado no mito fundador que Hera perseguiu Dioniso por onde o jovem deus andou. Estes

relatos ligam-se aos rituais dionisíacos: “No ritual, a polaridade das duas divindades é

sublinhada pelo facto de as suas respectivas sacerdotisas não se saudarem, e pelo facto de

não ser levada hera para o santuário de Hera.” (BURKERT, 1993:433)

Todavia, a mais polêmica relação de Dioniso com um deus, sem dúvida, é a com seu

outro irmão Apolo; relação que influenciou até a filosofia do século XIX. Para Burkert: “A

antítese entre Dioniso e Apolo, entre o aspecto dionisíaco e o aspecto apolínio, foi a que se

tornou mais famosa.” (BURKERT, 1993:434). Ao contrário do que acredita parte do senso

comum, as relações entre Dioniso e Apolo não surgem na obra de Friedrich Nietzsche.

Nietzsche possuía um pleno conhecimento dos mitos gregos, principalmente no que dizia

respeito à relação entre estes dois irmãos – como no mito que Dioniso desce do berço e

rouba as cabras sagradas de Apolo – contudo Nietzsche não foi o primeiro a realizar uma

comparação reflexiva entre os dois. Marcel Detienne, com exímio conhecimento das fontes

clássicas, aponta que hinos órficos já tratavam das crenças apolíneas e dionisíacas, no que o

autor chamou de “Orfeu apolonizado” (DETIENNE, 1991:92). O que Nietzsche realizou em

O Nascimento da Tragédia (1999) foi uma tentativa de aproximar os cultos gregos pagãos da

modernidade como uma afronta ao cristianismo, contra o qual o filósofo tanto pregava. Não

pretendemos aqui realizar um exaustivo estudo sobre a filosofia do século XIX, nem sobre a

Page 53: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

52

obra O Nascimento da Tragédia, pois vários autores já se dedicaram a isso22. Nossa intenção

aqui foi somente de elucidar como o dionisismo sofreu e sofre apropriações com as

transformações de pensamentos através dos séculos e tornar claro que o cotejamento entre

Apolo e Dioniso nasceu com os próprios gregos e não na contemporaneidade.

Apolo e Dioniso são representações da contraposição. Apolo é o deus da luz, o deus

da música e da harmonia, do conhecimento, da temperança e da sabedoria individualista; esta

arte representa a individualização, conseguida através da glória (MACHADO, 2006:204). Já

Dioniso é um deus noturno, que se manifesta através do que é desordenado e misterioso;

ambos são deuses que, embora irmãos, representam a diferença e a contraposição:

O culto dionisíaco, em vez de delimitação, calma, tranqüilidade, serenidade apolíneas, impõe um comportamento marcado por um êxtase, um entusiasmo, um enfeitiçamento, um frenesi sexual, uma bestialidade natural constituída de volúpia e crueldade, de força grotesca e cruel (MACHADO, 2006:214).

Contudo, os deuses não são rivais e muito menos são representados desta forma dentro da

sociedade ática, haja vista que sempre próximo a um espaço teatral – na sua essência um

espaço dionisíaco – existia um templo dedicado a Apolo. As representações de ambos

constroem a idéia de contraposição na sociedade, como o claro e o escuro, a serenidade e o

êxtase, a temperança e o frenesi, que não necessariamente se contrapõem, mas se

complementam. Nas palavras de Roberto Machado, a alegoria entre Dioniso e Apolo “(...)

postula a divisão entre uma Grécia marcada pela serenidade, ou simplicidade, (...) e uma

Grécia arcaica, sombria, violenta, selvagem, mística, extática (...)” (MACHADO, 2006:215).

O terceiro grupo seria o das divindades que são representadas juntamente com

Dioniso durante seu ritual. Trata-se dos sátiros e de Sileno. Os primeiros acompanham

Dioniso em seu cortejo, tomando vinho e perseguindo as mênades e as ninfas. Os sátiros

eram extremamente itifálicos e sexualizados, pelo menos em um primeiro momento: “E

como se masturbavam! Eram bestiais em suas investidas às Mênades ou Bacantes, (...). Mas

tudo isso eles faziam mais de uma forma jocosa, para se divertirem, do que de uma forma

erótica para aproveitarem os prazeres do sexo.” (FORTUNA, 2005:132). Estas divindades

sofrem diversas mudanças em sua representação. Nas figuras mais antigas, a parte inferior do 22 Ver ALBORNOZ, Suzana. “Os ideais morais segundo Ernst Bloch – a união de Dioniso e Apolo”. In: Seminário sobre os Pensadores Alemães. Santa Cruz do Sul: Universidade de Santa Cruz do Sul, 1999. Ver também: BENCHIMOL, Márcio. Apolo e Dionísio: arte, filosofia e crítica da cultura no primeiro Nietzsche. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2002.

Page 54: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

53

corpo era a de um cavalo ou um bode, enquanto a superior era humana. Em outras

representações possuíam cauda e um falo ereto de proporções sobre-humanas (GRIMAL,

2000: 413). Estas figuras bestiais não são aceitas de início pelos ceramistas áticos do período

homérico, que em muitos vasos representavam o herói cívico em detrimento das figuras

rústicas não cívicas (BÉRARD, 1974:43) por motivos de poder real ou aristocrático que já

elucidamos anteriormente. Pouco a pouco as imagens vão se atenuando e se tornando menos

bestiais, provavelmente com a ascensão das tiranias. Sobre isso discutimos no segundo

capítulo. Alguns autores vão até forjar outro nome para estes sátiros transformados: faunos.

Já Sileno tinha a aparência de um sátiro envelhecido, era muito feio, com nariz anduco,

calvo, com lábios grossos e olhar taurino (GRIMAL, 2000: 418); estava quase sempre

embriagado. Algumas tradições colocam-no como filho de Hermes e de uma ninfa

(VENERI, 1981: 416), outras como nascido das gotas de sangue de Urano, quando este foi

castrado por seu filho Cronos; ainda há a tradição que o coloca como filho de Pã. Sileno era

marido da ama-de-leite de Dioniso (FORTUNA, 2005: 129) e passa a ser o conselheiro do

deus em toda a sua adolescência. A questão central é que estas figuras – os sátiros e Sileno –

são primordialmente bestiais, mas vão se abrandando conforme o poder necessitava,

adentrando gradativamente na oficialidade da polis. Thomas Carpenter elucida que até

meados do século IV as duas palavras – sátiros e Sileno – tornaram-se quase que sinônimos;

na obra Symposium de Platão pode-se perceber que Alcibíades utiliza os dois termos como

sendo a mesma coisa, quando descreve as mudanças de Sócrates (CARPENTER, 1986:78).

Toda a difusão destas imagens obteve a colaboração dos artistas e ceramistas para “criar”

representações próprias para as divindades, como nos aponta Claude Bérard, em sua obra

Anodoi: essai sur l’imagerie des passages chthoniens:

A presença de criaturas demoníacas, longe de nos remeter para um determinado gênero teatral, anuncia o nível de experiência religiosa em que a cena se desenrola. Associados a essa divindade, eles a caracterizaram em função de suas prerrogativas essenciais: colocam em evidência o aspecto "selvagem", muitas vezes cthônico; algumas vezes originariamente não-grego. (BÉRARD: 1974, 41)

Onde efetivamente o culto a Dioniso se instaurou? Precisamos ter clareza de que esta

não é uma inquietação nossa. Os gregos já possuíam esta inquietação, sobretudo no século V,

onde a dicotomia grego X bárbaro se acentuou. Trabulsi coloca-nos até que a suposta origem

estrangeira de Dioniso seja um discurso construído nas diversas polis, em uma tentativa de

Page 55: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

54

colocar Dioniso no lado do abismo bárbaro, já que seu culto consistia em um certo lado de

êxtase irracional (TRABULSI, 2005:35).

Eudoro de Souza responde-nos que já no período minóico existem vestígios

arqueológicos que remetem a um possível culto de um antiqüíssimo Dioniso (SOUZA,

1973:18). O período minóico assistiu ao apogeu da cultura cretense e de várias cidades que

buscavam autonomia, sendo a principal delas Cnossos, a cidade do lendário Minotauro. É

sabido que após o ano 1900 Creta passa a ter relações estreitas com o Oriente, tanto

econômicas quanto culturais. O autor então conclui que Dioniso surgiu nesta região e por

volta desta época, e segundo ele isto explicaria o porquê do deus ter tantas características

orientais, sendo um deus em parte cretense e em parte asiático. Carl Kerényi também parte

da idéia de um Dioniso cretense e em uma de suas obras, intitulada Dioniso: imagem

arquetípica da vida indestrutível, elucida vários vestígios arqueológicos que provam que a

divindade era cultuada já neste período (KERÉNYI, 2002:50)

Porém, ter o deus em imagens cretenses não nos ajuda em nada a provar que Dioniso

começou a ser cultuado nesta época e, ao contrário de ambos os autores, não acreditamos que

estes vestígios sejam uma prova de que o culto nasceu em Creta e era praticado por

habitantes das cidades cretenses. Esta afirmação que Dioniso surgiu especificamente em

Creta já foi descartada pelos historiadores do dionisismo (TRABULSI, 2005:32). Uma

tentativa plausível utilizada pelos historiadores é o de reconstruir a etimologia do nome

Dioniso – trabalho que já expusemos aqui – e aliá-la à filologia. Trabulsi coloca, em sua

obra, que a parte final do nome no original grego, nysos é um equivalente traço-frígio do

grego kouros (jovem rapaz) (TRABULSI, 2005:33). Se concordarmos com a questão

filológica, Dioniso é um deus aliado à Ásia. Trabulsi dá-nos algumas outras semelhanças

entre o deus e os cultos asiáticos: “os traços comuns entre o culto de Dioniso e os da Grande

Mãe da Ásia; a associação com o pinho, ligado a vários cultos na Ásia Menor” (TRABULSI,

2005:34). Entretanto, afirmar ao certo não nos é possível e nem temos a pretensão de esgotar

estes questionamentos.

Quando o culto se instaura? Antes da decifração da escrita Linear B, os historiadores

datavam o culto a Dioniso no século VIII, pois Homero o conhecia e cita-o em quatro

passagens em seus poemas, embora, como já foi dito, o deus pouco ou quase nada foi

representado antes do século VI. Posteriormente a decifração da escrita minóica, esta data

retrocede muito porque o nome de Dioniso é encontrado em dois tabletes de argila cozida,

em Pilos, mostrando o deus já como uma divindade do vegetal e do vinho (TRABULSI,

Page 56: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

55

2005:22). Trabulsi coloca, também, que Dioniso se torna popular na maioria das polis desde

a invasão dórica que propiciou a desagregação do mundo micênico:

(...) no que se refere ao sincretismo dionisíaco, o momento capital pode ter sido o do contato dos grupos indo-europeus com as populações autóctones ou, mais precisamente ainda, o da estruturação das soberanias palacianas. (...) no segundo momento, quando, depois da constituição do trifuncionalismo na época da comunidade indo-européia, veio o momento, com a diáspora, da incorporação de elementos das ideologias das populações submissas (TRABULSI, 2005:28).

Não existem vestígios arqueológicos que representam a imagem concreta de Dioniso

que datem de antes do século VI. As primeiras imagens em cerâmica do deus são vasos

coríntios (TRABULSI, 2005: 110) já deste século. Uma hipótese bem provável, que já foi

elucidada neste trabalho para esta escassez de imagens materiais, seria a elite aristocrática

que predominava até o século VI; para isso é preciso compreender a configuração política e

social desta época. Primeiramente, vamos citar uma informação e guardá-la: Ciro Flamarion

Cardoso aponta-nos que a aristocracia que ascendeu com a queda da monarquia micênica era

detentora da maior parte das terras, controlando grande parte do motor econômico grego

(CARDOSO, 1987:21). Vamos a uma segunda constatação: Dioniso era um deus rural, deus

da vegetação, um deus essencialmente popular, um deus dos habitantes que viviam nos

campos. Juntando as duas informações não é difícil percebermos o motivo de o dionisismo

ter sofrido uma enorme resistência por parte da elite do período homérico. Não era

interessante aos aristocratas detentores do poder que um culto popular se difundisse na polis.

Dioniso até o século VI era um deus marginalizado pela elite aristocrática, cultuado somente

por festejos populares rurais, longe das oficialidades religiosas de parte da elite:

Dos festejos populares até sua utilização pelos tiranos como solvente da religião aristocrática, sistema alternativo promovido ao mesmo tempo que controlado e integrado no novo equilíbrio, despojado da rudeza “primitiva” que podia ameaçar a polis, onde, apesar do alargamento da base política, os nobres conservavam um papel dominante e onde a ideologia aristocrática, ainda que reelaborada, continuava a garantir a reprodução das estruturas sociais. (TRABULSI, 2005:118)

Dioniso será difundido na oficialidade da polis somente após a ascensão das tiranias,

já no século VI; mas isto é assunto para o próximo capítulo.

Page 57: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

56

1.5 O Hino Homérico a Dioniso

Uma série de documentos é particularmente intrigante quando estudamos as

religiosidades gregas. Trata-se dos Hinos Homéricos. Estes hinos foram redigidos em épocas

diferentes da Antiguidade e estão espalhados por diversas obras; inclusive em obras

modernas, como a Epístola crítica 1, datada de 1781 de David Ruhnken, que reuniu vários

destes hinos. São trinta e sete hinos redigidos em hexâmetros, cada um honrando uma

divindade distinta; foram atribuídos a Homero pela tradição manuscrita. Todavia, os

estudiosos de filologia e lingüística não atribuem mais estes hinos a Homero, já que as

formas de escrita diferem, sugerindo que as épocas em que foram escritos os hinos diferiam

umas das outras. Acreditamos que os hinos foram atribuídos ao aedo porque estes também

detinham uma tradição oral, com rapsodos que os recitavam na ágora, como uma referência

à antiga recitação pública dos épicos homéricos:

Na maioria dos casos, tratava-se provavelmente de autênticos cantos, em metro lírico, dedicados aos deuses, mas sem dúvida que também outros hinos como aquele com que Hesíodo triunfou (Erga, 657), estavam redigidos à maneira dos que se atribuíam a Homero. Com estes achamo-nos por completo dentro da tradição rapsódica, que reflecte uma dependência da linguagem homérica, verificável até nas locuções. O mesmo se diga da esfera das idéias, se bem que, neste aspecto, a margem de variação é ainda consideravelmente maior nos diferentes poemas do que no aspecto formal. O facto de se cantar em estilo épico perante um público e acerca de temas que, no fundo, são alheios ao mundo da grande poesia heróica confere a alguns destes poemas um encanto especial (LESKY, 1995: 106 – 107).

Na introdução de sua tese de doutorado, José Marcos Mariani de Macedo aponta-nos que os

Hinos Homéricos eram utilizados como prefácio à récita dos épicos (MACEDO, 2007:1);

esta tese reforçaria a tradição oral destes hinos.

Albin Lesky foi um dos poucos historiadores a fazer alguma referência a esses hinos,

já que eles não são muito utilizados pelos historiadores da Antiguidade. José Antonio

Dabdab Trabulsi, em sua obra, nem sequer menciona este Hino Homérico a Dioniso que será

por nós analisado. Consideramos que o hino é uma fonte importante para o estudo do

dionisismo, já que retrata alguns aspectos essenciais da representação do deus durante a

Antiguidade. Embora não se saiba quem o escreveu e em que época foi escrito, não deve ser

ignorado. Também é de extrema dificuldade a datação da compilação que chegou até nós.

Contudo, os autores chegaram a certo consenso da data na qual os hinos foram recitados pela

Page 58: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

57

primeira vez:

Burkert e Janko, de forma independente, chegaram à mesma conclusão, e sugerem a data de 523 ou 522 a.C., quando Polícrates, tirano de Samos, celebrou em Delos – com o aval do oráculo de Delfos – um festival chamado ao mesmo tempo pítico e délico (...) (MACEDO, 2007:7).

Percebemos em alguns hinos que a tradição de outros povos é muito forte, dado todos

os processos migratórios no Mediterrâneo. No Hino a Apolo Délio, existe um forte apelo

jônico, descrevendo festas e rituais deste povo (LESKY, 1995:107). Embora estes hinos

sejam de difícil datação, é dada como certa a possibilidade de que foram redigidos na

Antiguidade, pois Tucídides faz referência ao Hino a Apolo Délico em seus escritos e chega

até a discutir sobre a tradição hínica:

Tucídides também nos testifica que hinos deste tipo eram atribuídos a Homero. Numerosos testemunhos, que se estendem até ao ocaso da Antiguidade, afirmam o mesmo acerca de alguns destes poemas, ou acerca de uma colecção deles, que não tem necessariamente que coincidir com a nossa (LESKY, 1995:107).

Existem também outras séries de hinos que possuem passagens que retratam Dioniso.

Alguns deles são os hinos órficos. Estes hinos foram escritos por integrantes do orfismo,

religião dedicada a Orfeu, que conseguiu muitos adeptos através de uma resistência aos

cultos oficiais. Os manuscritos foram encontrados em 1962 na Tesalónica e datavam

provavelmente do século IV (ZAIDMAN & PANTEL, 2002:136). Estes cultos órficos

ocorriam em determinadas regiões da Grécia. Marcel Detienne é um dos poucos autores que

realizaram um estudo sobre estes rituais, já que quase não nos chegaram fontes que os

retratam, por não se tratarem de cultos oficiais. Em sua obra Dionysos Mis à Mort, o autor

afirma que os discípulos de Orfeu exerceram, em dada época, um radical questionamento das

religiões oficiais da cidade (DETIENNE, 1998:167). Alguns autores acreditam que os hinos

órficos surgiram como resistência às teogonias hesiódicas, já que estas foram adotadas como

oficiais:

A teologia órfica se forma em oposição ao relato hesiódico e a sua ambição fundadora, e realmente serve de apoio aos contestadores que recorrem à figura de Orfeu para contestar e rechaçar as normas político-religiosas da polis (...). (ZAIDMAN & PANTEL, 2002:136)

Page 59: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

58

Não iremos analisar os hinos órficos neste trabalho, primeiramente pela questão do

tamanho da dissertação e também porque, de acordo com os estudos, estes seriam mais

recentes que os hinos homéricos. Os órficos datariam já do período helenístico, período não

compreendido pela nossa dissertação: “Na era helenística, cresce um pouco o número de

documentos graças aos hinos destinados a cultos locais ou a determinados eventos do

calendário litúrgico” (MACEDO, 2007:1). Já o hino homérico teria várias características do

período anterior – o clássico – e até de períodos anteriores ao clássico, que nos ajudariam a

pensar um imaginário dionisíaco dos períodos abarcados por este trabalho. Destarte nossa

intenção – como já foi dita – não é dar menos importância a fonte, já que os hinos órficos

subversivos tiveram seu papel na sociedade, como afirma Detienne: “Como o orfismo é uma

literatura inseparável de uma espécie de vida, uma ruptura com o pensamento oficial conduz

a pequenas diferenças nas práticas e comportamentos” (DETIENNE, 1998:169). Somente a

título de conhecimento, os hinos órficos tratam de um Dioniso diferente do conhecido por

nós nos períodos arcaico e clássico. O Dioniso órfico não é orgiástico nem liberal23.

A seguir analisaremos o Hino Homérico a Dioniso, de autor e época desconhecidos,

porém certamente da Antiguidade, pois nele percebemos a proximidade destes poemas em

relação à arte jônica da época arcaica – assim como no Hino a Apolo Délio. Vários frisos e

frontispícios das casas délficas representavam Dioniso tal qual a representação do hino

(LESKY, 1995:110). Teremos de deixar claro que este não é o único hino homérico que trata

de Dioniso. Alguns outros hinos atribuídos a Homero também citam o deus24.

O hino que trataremos aqui narra a captura de Dioniso por piratas25 salteadores que,

pensando que o deus seria algum príncipe, planejaram pedir o resgate ao rei seu pai. Já no

primeiro verso do hino temos os dizeres: “Em volta de Dioniso, de Sêmele magnissigne o

filho” (v. 1) aí temos mais um indício que vem a somar com a versão de Dioniso filho de

Semele, a mais aceita pelo imaginário helênico. Os últimos versos do hino também tratam da

23 Para ver a descrição de alguns hinos órficos ver: ZAIDMAN, Louise Bruit e PANTEL, Pauline Schmitt. La religión Griega en la polis de la época clásica. Madri: Ediciones Akal, 2002. 24 Para conhecer outros hinos em honra a Dioniso ver: MACEDO, José Marcos Mariani de. A Palavra Ofertada: uma análise retórica e formal dos hinos gregos e da tradição hínica grega e indiana. São Paulo: Universidade de São Paulo; Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas; Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, 2007. (Tese de Doutorado) 25 Yvon Garlan (1991) aponta-nos a diferença no conceito de pirata na Modernidade e na Antiguidade. Oriundo do grego peirataï, os piratas foram comuns na Antiguidade pela impossibilidade de fiscalização do Mediterrâneo por parte dos Impérios. Estes homens mercenários possuíam uma função social, pois por várias vezes foram contratados em tempos de guerra por conhecerem bem a costa marítima. Porém, não eram deixados de serem vistos como bandidos e não-cidadãos.

Page 60: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

59

mãe do deus em forma de um diálogo entre Dioniso e o piloto da nau; curioso é o hino

iniciar-se e encerrar-se tratando da mesma questão:

sou eu Dioniso magnifremente que gerou mãe Cadméia Sêmele de Zeus em amor desposada. - Saudações, filho de Sêmele formosa, nem há como de ti esquecido com doçura mundificar-se o cantar (v. 56 – 59)

A relação que já foi elucidada de Dioniso com o deus dos mares Poseidon pode ser

encontrada já a partir do segundo verso da narrativa:

Lembrar-me-ei como luziu na praia do sal infatigável Sobre o quebra-mar na imagem de jovem homem no primeiro viço e bela circunvolvia a cabeleira (v. 2 – 4)

A alegoria de Dioniso com o mar, além de nos remeter a Poseidon, nos vincula

também ao elemento úmido que permeia as representações de Dioniso. A imagem de

Dioniso é jovem e não condiz com a representação do deus em sua origem, no período

arcaico26; esta conclusão reforçaria a datação do hino do período clássico ou até do helênico,

quando o deus passou a ter uma imagem jovial e muitas vezes até infantil. Dos versos

dezenove ao vinte e um podemos comprovar que Dioniso não é um deus do primeiro panteão

e pouco lembrado pelos mortais; quando um dos marinheiros percebe que capturaram um

deus, este avisa os companheiros remetendo-se a outras divindades, mesmo vendo Dioniso à

sua frente, parecendo não conhecê-lo:

pois ou Zeus é este, ou o de argênteo arco Apolo ou Poseidon,, porque não aos mortais homens é símil, mas aos Deuses que têm o palácio Olímpio. (v. 19 – 21)

Uma questão curiosa aparece no verso onze. Vamos à análise: trata-se do momento

da captura do deus pelos marinheiros. Quando estes avistam o jovem na água, clamam:

“parecia-lhes ser filho dos nutridos por Zeus reis” (v. 11). Já discutimos que, com o

nascimento de um corpo político na polis no período arcaico, os governantes deixaram de ser

encarados como divinos, como acontecia nos períodos micênico e homérico. Sabemos

também pelos estudos que já foram realizados que estes hinos foram escritos no período

26 No período arcaico, Dioniso é representado como um homem maduro, barbudo e cabeludo, por vezes rústico. Sobre estas imagens trataremos no segundo capítulo deste trabalho.

Page 61: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

60

clássico ou até no início do período helênico. Então, deveríamos concluir que esta questão do

governante como não divino já deveria estar muito bem enraizada no imaginário destes

períodos, vários séculos após. Porém, não é o que percebemos neste hino, pois os

marinheiros acreditam que seja algum nobre descendente de alguma linhagem divina. Parece

que em algumas regiões da Grécia ou para alguns autores de hinos, esta idéia do governante

como não divino não estava completamente arraigada, como afirmam muitos historiadores

que tratam de política grega.

No sétimo verso temos: “piratas adiantaram-se velozes sobre o víneo mar” (v. 7),

aliando elemento úmido – o mar – com o elemento vegetal – o vinho produzido pela vinha.

Do trigésimo quinto verso ao trigésimo sétimo percebemos outra relação de Dioniso com o

vinho:

vinho primeiro através do veloz navio negro suavipotável soniflui bem olente e erguia-se odor imortal e a miração pegou a todos os nautas ao virem (v. 35 - 37)

Dos versos trinta e oito a quarenta e dois, temos a principal representação do deus

com o elemento vegetal – ligando-se a Deméter, por exemplo, como já foi elucidado –

quando Dioniso exala o ódio pelos marinheiros que haviam prendido-o junto ao mastro do

navio:

e já no ápice da vela estendeu-se toda a videira aqui e ali e suspendiam-se muitos cachos e em volta da vela enrolou-se a negra hera luxuriosa de flores e gracioso o fruto sobre-ergueu-se e todas as cavilhas tinham coroas e quando viram (v. 38 – 42)

Percebemos nesta passagem que Dioniso não usa o vegetal somente para fecundidade e

alegria, mas também como forma de ataque àqueles que não lhe querem bem. Veremos que

esta atitude violenta de Dioniso com quem não o respeita será retratada por Eurípides na

peça As Bacantes, que analisaremos no terceiro capítulo deste trabalho. Entretanto, Dioniso é

bondoso com aqueles que o respeitam. O deus transforma os marinheiros em golfinhos, mas

poupa o piloto da nau, pois este desde o início dizia-se contra o rapto do jovem e belo rapaz:

“- Coragem!, divino guia, grato ao seu ânimo” (v. 55).

Um ato curioso no hino é o zoomorfismo. No verso quarenta e quatro, Dioniso

transforma-se em leão para castigar os marujos: “levar para a terra e ele leão se lhes fez no

Page 62: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

61

navio” (v. 44). A relação de Dioniso com o leão nos é estranha; embora o deus em alguns

lugares fosse representado como um touro (VENERI, 1981:414) – uma alusão a um possível

zoomorfismo – desconhecemos outra fonte que alia a representação dionisíaca com a

imagem de um leão, embora Marcel Detienne na obra Dioniso a Céu Aberto cita o leão como

uma das metamorfoses de Dioniso, juntamente com o touro27 e o leopardo (DETIENNE,

1988:31). Temos em outra obra de Detienne, a já citada Dionysos mis à mort, Dioniso aliado

à imagem de uma pantera28 (DETIENNE, 1998:51). Podemos então concluir que a imagem

do leão nesta fonte seria talvez uma representação imagética isolada em algum local

específico ou em certa época – já que não temos como definir o local nem a data exata de

escrita do hino – que se perdeu por algum motivo e que poderia haver muitas outras fontes

com outros animais – como nos aponta Detienne – que não chegaram até nós. Outra

passagem que reflete a transformação zoomórfica se dá quando o deus castiga seus raptores,

transfigurando-os em golfinhos29. Possivelmente o zoomorfismo permeava o imaginário da

época e do local onde o hino foi redigido:

e agarrou o chefe e para fora ao evitarem a má parte todos à uma pularam, quando viram, no sal divino e golfinhos nasceram, mas do piloto teve piedade (v. 51 – 53)

Sabemos que em uma festa do século VI é celebrada a chegada de Dioniso após

salvar-se do rapto dos piratas. Uma procissão transporta um barco, que às vezes também é

puxado sobre rodas (BURKERT, 1993:325). Esta festa não nos ajuda muito para saber da

idade do hino, já que tanto a festa pode ter passado a acontecer por influência do hino quanto

o hino só foi escrito como relato para imortalizar este aspecto da festa. O caso é que os

gregos conheciam efetivamente esta passagem.

Agora que já vimos o dionisismo – ou a ausência dele – nos primórdios da

27 O touro é utilizado como animal de sacrifício em inúmeras festas dionisíacas, presentes em todas as regiões da Grécia. 28 No LIMC é encontrada a imagem de um vaso do período helênico – datado de 200 a 150 a.C. – onde vemos Dioniso sentado no lombo de uma pantera, segurando um tirso. Embora a imagem não mostre uma metamorfose é perceptível que, mesmo em uma representação tardia, Dioniso possui uma relação com o animal. 29 Também no LIMC pode-se conferir um artefato de cerâmica que mostra sete golfinhos em volta de um navio cercado por uma vinha com cachos, e Dioniso deitado em seu convés. Este vaso foi encontrado em Vulci e datado provavelmente de 530. De acordo com Walter Burkert (1993) trata-se da taça de exéquias, hoje em Munique. Com estas informações é passível a conclusão que a lenda de Dioniso e os piratas é mais tardia que este hino – se concordarmos que o hino foi redigido no período clássico ou helênico – e o escritor se apropriou de uma lenda que, talvez, fosse muito difundida em sua época ou em seu local de convívio.

Page 63: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

62

religiosidade grega, trataremos no capítulo que se segue de entender como este dionisismo

anteriormente negado adentra a polis com a ascensão dos tiranos e passa a fazer parte do

calendário oficial de quase todas as cidades-estado helênicas, sobretudo Atenas.

Page 64: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

63

CAPÍTULO 2

PISÍSTRATO E AS TRANSFORMAÇÕES RELIGIOSAS NO PERÍOD O ARCAICO:

O CASO DA DIFUSÃO DO DIONISISMO PELO PODER TIRÂNICO

2.1. Pisístrato, o tirano demagogo da obra Histórias, de Heródoto

Neste segundo capítulo, pretendemos discorrer sobre as transformações políticas e

sociais que ocorreram com o fim da época homérica e o início da chamada época arcaica e

pontuar as transformações políticas e sociais que aconteceram em constante relação com as

transformações culturais e religiosas. Assim como no primeiro capítulo – no qual analisamos

as transformações ocorridas nas passagens do período micênico para o homérico –

estudaremos brevemente as transformações que propiciaram o surgimento da época arcaica.

Centramos nossa pesquisa na cidade de Atenas, primeiro por ser a cidade-Estado que

mais documentos nos legou e também por uma questão de espaço na dissertação. Porém, é

imprescindível ressaltarmos que muitas outras tiranias aconteceram em todo o território

grego30 e seria errôneo de nossa parte creditar menos importância a estes governos. A

questão de adentrarmos na tirania de Pisístrato e de seus filhos foi uma opção por

entendermos que esta tirania foi de extrema importância para o dionisismo, pois foi a forma

de governo que mais o difundiu. Quando se faz necessário, citamos outras tiranias em nível

de comparação31. É essencial elucidarmos que na época arcaica Atenas ainda não conhecia

seu apogeu, pelo contrário, antes das guerras Greco-Pérsicas, Atenas era muito mais atrasada

do que a maioria dos centros helênicos (LEVI, 1991:30). De acordo com Norberto

Guarinello, é com esta guerra que Atenas se tornará a cidade-estado mais importante e,

conforme o autor, exercer seu imperialismo (GUARINELLO, 1994:14).

Nossa intenção é elucidar brevemente a transição do período anterior para o período

arcaico. É fundamental para a compreensão desta transição entendermos os fatores

econômicos que modificaram a estrutura políade e propiciaram a formação de um novo

30 Para conhecer as outras tiranias, tanto no período arcaico como em outros períodos da história grega ver: MOSSÉ, Claude. La Tyrannie dans la Grèce antique. Paris: Quadrige/PUF, 2004. Mossé inova os estudos da tirania nesta obra. As tiranias mais conhecidas e estudadas são efetivamente as do mundo arcaico. A historiadora analisa profundamente outras tiranias de outros períodos, que tradicionalmente não são analisadas, como o clássico e até o helênico. 31 Faz-se importante deixar claro de que as tiranias não predominaram como forma política no espaço geográfico da Grécia. Pelo contrário: somente vinte e sete cidades-estado passaram por uma tirania e cidades importantes, como Esparta, jamais conheceram um governo tirânico

Page 65: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

64

campo político. Entendemos que no período homérico a aristocracia exerceu amplo poder

social, contudo transformações econômicas ocorridas na passagem do século VIII para o

século VII fizeram com que outros segmentos sociais também enriquecessem:

A crescente riqueza das comunidades no século VII era, em parte, distribuída entre homens que estavam fora das aristocracias dominantes e que se ressentiam de sua falta de influência (JONES, 1997:5).

Mas como este segmento social que até então estava subjugado à aristocracia

enriqueceu na passagem de um século para outro? Os historiadores apontam-nos alguns

fatores que foram determinantes. O primeiro deles seria a origem da colonização grega que,

embora tenha muitas versões, transformou os valores e conceitos econômicos até então

vigentes na sociedade. A aristocracia, que já não poderia depender exclusivamente da terra,

foi comercializar com outras sociedades, abrindo assim espaço para as rotas comerciais.

Claude Mossé diz que um número de homens que não fazia parte da aristocracia lançou-se

ao mar para comercializar materiais da qual a Grécia não possuía ou era muito pobre, como o

ferro, imprescindível para o fabrico de armas e utensílios (MOSSÉ, 1989:103), ou o trigo

trazido do Egito. Desta forma, a aristocracia já não possuía o monopólio das rotas

comerciais. Entretanto, falar em economia para o período arcaico é demasiadamente

complexo, pois os pensadores antigos não haviam formado este conceito até antes do século

IV e é com os filósofos deste período que surge uma reflexão sobre a moeda e a atividade

mercantil32. Por este motivo não faremos uma longa reflexão do porquê os indivíduos que

não faziam parte desta aristocracia lançaram-se ao mar em busca de novas riquezas33.

Posteriormente vieram juntar-se a estes mercadores muitos integrantes do

campesinato que foram arruinados por esta nova prática mercantil, enfraquecendo os

privilégios aristocráticos (MOSSÉ, 1989:122). Este campesinato se moderniza e modifica o

conceito de sociedade pastoril:

No entanto, temos provas concretas de que o século VIII assistiu ao desenvolvimento de uma economia agrícola e expensas das formas de

32 A moeda no período arcaico não se popularizou, sendo um artigo utilizado em alguns locais e, de acordo com os estudiosos, não interferiu nas relações comerciais por muito tempo. 33 Alguns autores tratam esta expansão comercial como um capitalismo antigo. É o caso de Gustave Glotz, que afirma que “Um capitalismo cada vez mais audacioso domina o mundo grego, deixando para trás a vida mesquinha dos velhos tempos.” (GLOTZ, 1980:84) Como sabemos que aplicar a noção de capitalismo para a Antiguidade é um anacronismo e que a noção de economia para os gregos não surge no período arcaico, este tipo de afirmação se torna infundada.

Page 66: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

65

economia pastoril dominantes no decurso dos séculos obscuros. (...) E o grande poema de Hesíodo, Os Trabalhos e os Dias, composto em fins do século VIII, chegou inclusive a ser considerado como a primeira obra de agronomia grega digna desse nome. O aumento demográfico, revelado pelo estudo das necrópoles, dá igualmente testemunho desse crescimento da produção agrícola, que deve ter derivado, se não de melhores técnicos (não se sabe ao certo quando é que o arado vem a surgir, e a própria charrua irá continuar a ser um instrumento relativamente primitivo até época bastante tardia), pelo menos do arroteamento das eschatiai, das zonas fronteiriças (MOSSÉ, 1989:123).

Esta evolução agrícola tirou grande parte da influência comercial da antiga aristocracia

pastoril, que começa a ver seu patrimônio definhar.

Todavia, está claro para os estudiosos deste período que um outro grupo ascendeu

com o enfraquecimento da antiga aristocracia: trata-se dos artesãos. A cerâmica passa a ser

um produto acalentado pelo consumo – haja vista o número de centros de produção – pela

multiplicidade de formas e pelo aperfeiçoamento da técnica e do estilo (MOSSÉ, 1989:124).

Estes artefatos passam a ser usados tanto por comerciantes – como recipiente de transporte

de trigo, azeite ou vinho, ou mesmo como utensílio a ser comercializado – como pelo oikos,

para função cotidiana. Com a popularização da cerâmica – que causou também o

barateamento da mesma – as famílias passaram a utilizá-la como primeiro utensílio para o

cozimento e armazenamento alimentar. Já a família aristocrática se vê obrigada a diminuir

seus filhos, pois a terra era cada vez menor e a partilha em muitos filhos acabaria por tornar

ínfimo o território herdado por cada um (MOSSÉ, 1989:134-135). Assistimos nesta época o

começo do endividamento campesino – que culminará com as reformas de Sólon, como

veremos à frente – e do declínio aristocrático e da mão-de-obra que para ela trabalhava.

Mossé não elucida com precisão as causas deste endividamento, mas acredita que um dos

motivos seria a exportação de cereais de outras localidades, resultando em um colapso da

produção local (MOSSÉ, 1989:137).

Outra causa de extrema importância – para alguns de principal importância – para a

transformação ocorrida no início do arcaísmo não é econômica, mas social. Trata-se da

chamada reforma hoplítica. A primeira representação de uma falange hoplítica trata-se do

vaso corinto oinochoe Chigi, datado do século VII (MOSSÉ, 1989:141). Podemos concluir

então que no século VII a falange já existia e, como até este momento não se encontrou

nenhuma representação anterior a este século, temos de dar como certo que a falange surge

aí.

Page 67: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

66

Uma parte da população helênica, que transformou de forma significativa suas

finanças com o comércio, passou a investi-las na compra de armamentos e panóplias e

compuseram um exército de conquistas; eram os hóplitas, que compravam o metal trazido

por mercadores para seus armamentos e ofereciam seus serviços em guerras e batalhas,

exercendo assim uma manutenção do novo sistema vigente. Este exército colaborou para o

esfacelamento da já arruinada aristocracia pastoril, uma vez que ajudou no estabelecimento

das tiranias em toda a Grécia:

Para começar, digamos apenas que a falange não criou uma situação revolucionária, mas que ela deu aos descontentes – pelo menos a uma parte dos descontentes – um meio de se fazer ouvir. Ao mesmo tempo, ela eliminava, no nível das consciências, uma das justificações do monopólio aristocrático. Nesse sentido, ela foi uma condição sine qua non para uma mudança política importante. Temos vários indícios do controle dos hóplitas por parte de tiranos quando de seus “golpes de Estado”, e depois deles (TRABULSI, 2004:59).

Como foi dito no capítulo anterior, o hóplita substituiu a idéia do herói homérico,

nobre e descendente direto dos deuses. Contudo, para integrar este novo exército o indivíduo

deveria ser abastado e com renda suficiente para custear seu próprio armamento de guerra.

Trabulsi alerta-nos que não podemos pensar a falange como “classe hoplítica” ou “classe

consciente de si própria” (TRABULSI, 2004:60); eles foram, na maioria dos casos,

utilizados por manobras de tiranos para a tomada do poder. Para o dionisismo, a reforma

hoplítica propiciou o enfraquecimento das bases aristocráticas, que por sua vez perdeu o

poder de controle sobre a religiosidade da polis, fazendo os cultos rurais – como o de

Dioniso – adentrarem no seio das cidades e serem apropriados pelos tiranos, que tinham

intenção de alargar suas bases entre os populares e as camadas mais pobres. A falange

hoplítica foi solidária no sentido de contribuir para este processo.

Com este colapso na estrutura vigente, o momento se torna maduro para uma tomada

de poder por um tirano, pois os antigos governantes estava arruinados e os novos governos,

por sua vez, ainda encontravam-se desarticulados. Algumas tentativas ocorreram – como o

caso de Cílon, em Atenas – porém a maioria fracassou. Com o medo de uma tomada de

poder, a nova elite que se formou passa a adotar um sistema de leis e convoca alguns

membros desta elite para tornarem-se legisladores. Surgem aí às primeiras figuras realmente

históricas conhecidas na política grega. Peter V. Jones afirma que por volta de 621-20 o

primeiro legislador ateniense conhecido por nós, Drácon, publica um código de leis que veio

Page 68: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

67

a tornar-se proverbial por sua severidade – daí o termo draconiano – baseado em regularizar

os procedimentos que tratam de homicídio. Suas leis fundamentaram-se especificamente em

dar uma resposta ao descontentamento dos eupátridas após a possibilidade de uma possível

tirania de Cílon (JONES, 1997:6).

Destarte a questão mais complexa e profunda que nasceu deste colapso – a crise no

sistema econômico agrário – não conseguiu ser nem sequer amenizada por Drácon; é daí que

surge o principal legislador ateniense: Sólon34. Este, ainda segundo Peter Jones, foi nomeado

árkhon35 em Atenas por volta de 594-93, já no século VI (JONES, 1997:7). Por sua tentativa

de legislar para todos, alguns autores crêem que foi de Sólon que nasceu a democracia

(BIGNOTTO, 1998:33) ou que durante a legislação deste a Grécia viveu a própria

democracia (GLOTZ: 1989:87). Não partilhamos da idéia de que Sólon instalou a

democracia ateniense ou que o mesmo foi um democrata. A democracia trilhou um relativo

lento processo após a tirania dos Pisistrátidas, que parte de Clístenes até chegar ao seu

principal nome, Péricles.

Tratando rapidamente da legislatura de Sólon – já que nosso objetivo com este

período é somente o de compreender o processo que propiciou a tomada de poder por

Pisístrato – podemos ter como certo que este legislador modificou as bases da política e da

sociedade ateniense, porém sem a capacidade de transformá-las. O legislador diminuiu os

poderes da então nova aristocracia que havia se instalado no campo e elaborou leis para os

trabalhadores destas terras: os hectémoroi36 e os pelatai37 (MOSSÉ 1999:19), creditando

maior direito aos trabalhadores, em uma tentativa de diminuir os descontentamentos e evitar

o estouro de um conflito na sociedade, que a desestruturaria e acarretaria na tomada de poder

por uma tirania: “Fica claro, portanto, (...) que Sólon foi chamado para tentar acalmar uma

disputa, que não mais podia ser contida nos quadros constitucionais, sem levar a uma guerra

interna de terríveis conseqüências” (BIGNOTTO, 1998:26). Os hectémoroi passaram a ser

donos da parte de terras que ocupavam e a principal lei de Sólon – Seisachtheia – abolia as

34 Algumas são as fontes que tratam deste personagem político; além das Histórias e da Constituição de Atenas, temos uma série de poemas escritos do próprio punho do legislador, além da obra Vida de Sólon, de Plutarco. Não iremos trabalhar com as fontes que retratam Sólon, pois não é este o centro da discussão em nosso trabalho. Para ver uma discussão sobre como Heródoto representou Sólon em sua obra ver: BACELAR, Aghata. “A Representação de Sólon nas Histórias.” In: Revista do Laboratório de História Antiga. Rio de Janeiro. 35 Elaborador de leis. 36 Espécies de rendeiros obrigados a dar um sexto da colheita aos que controlavam a terra no qual trabalhavam; por isso o nome, que significa sextaneiros. 37 Camponeses pobres que se viam forçados a endividar-se, ficando sob a ameaça de serem reduzidos à condição de escravos caso não pagassem a dívida.

Page 69: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

68

dívidas contraídas até aquele momento, embora a escravidão por dívidas tenha continuado.

As mudanças ocorridas durante a legislatura de Sólon mudaram até a noção de areté. A

virtude aristocrática que antes era um brilho divino, agora deve ser conquistada com um

longo e penoso caminho traçado com trabalho, disciplina e esforço (VERNANT, 1986:58).

A virtude pode ser conquistada por qualquer um que tenha o dom para o trabalho e o

crescimento social e intelectual.

Também é importante ressaltar a organização social que as leis de Sólon vão

modificar. O legislador divide a cidade em quatro segmentos sociais conforme sua fortuna e

influência no corpo da sociedade: os pentakosiomedimnoi – possuidores de uma renda

elevada – os hippeis – cavaleiros – os zeugitai – hoplitas – e os thetes – trabalhadores

(BIGNOTTO, 1998:28). Embora somente os três primeiros tenham direitos políticos, os

thetes poderiam recorrer aos tribunais e votar medidas que interessavam a eles. Dessa forma,

Sólon quebra com a estrutura tradicional de poder então vigente, embora ainda mantenha os

ghéne38. A legislação de Sólon também propiciou mudanças mais lentas que viram seu

apogeu somente em fins do século, como “a orientação da agricultura para as culturas

arbustivas, a busca de um abastecimento regular de cereais e o desenvolvimento da indústria

cerâmica.” (MOSSÉ, 1982:16). Sólon certamente deveria ter a consciência que, ao alterar

significativamente a política social de Atenas, poderia trazer consigo conflitos por parte dos

insatisfeitos:

Sólon fundamentou suas concepções políticas na idéia de sacralidade da terra, e também na apropriação abusiva, por parte de poucos, das terras sagradas e públicas, o que evidentemente era considerado ilícito e suscitava protestos no momento em que o regime dos ghéne entrava em dificuldades e se encaminhava para uma situação de crise (...) (LEVI, 1991:32).

Newton Bignotto nomeia Sólon como o antitirano. Para o autor, o legislador

ateniense era temperante e sábio em suas decisões e a tentativa de governar para todos partiu

desta sabedoria. A opção por não se tornar ele mesmo um tirano, ainda na opinião de

Bignotto (1998), faz com que suas bases não se tornem sólidas e este não seja capaz de

continuar seu legado. Sólon somente elaborou as leis, não deu a sustentação social necessária

para que elas funcionassem. Tal como acontece com homens moderados como ele, que

38 Famílias que controlavam parte do poder estatal. Esta reunião de famílias – sinoecismo – cunhava moedas com seus próprios símbolos, armavam tropas e possuíam fortunas que os faziam capazes de ditar os rumos de parte da vida econômica políade.

Page 70: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

69

possuem o intuito de agradar a todos, Sólon não agradou ninguém e “Viveu apenas o

bastante para ver que fracassara” (JONES, 1997:8). Porém, é nesta época que percebemos

mudanças bruscas nas idéias da polis. Além da transformação política – a lei como fator de

diferenciação nas sociedades humanas – também foi filosófica, à medida que propiciou “a

rebelião contra a tradição; a procura de novos princípios de explanação; a ascensão da dúvida

como estímulo intelectual para as novas descobertas.” (MOMIGLIANO, 2004:56).

Antes de adentrarmos na descrição histórica do período da tirania, devemos refletir

sobre o conceito de tirano. Já de antemão devemos ressaltar que o conceito de tirano

moderno não se aplica ao tirano antigo:

A palavra týrannos se difundiu na Grécia (...) na primeira metade do século VII a.C. O termo foi empregado pela primeira vez pelo poeta Arquíloco para se referir a Giges, usurpador do trono lídio. O termo pode tanto estar relacionado a uma cidade lídia da qual Giges era originário, quanto ao tirrenos que, para Heródoto entre outros, seriam de origem lídia (CONDILO, 2008:19).

A estudiosa Arlene W. Saxonhouse, em artigo publicado no The American Political Science

Review, concorda com a idéia de alguns especialistas em lingüística quando do uso da

palavra tirano. Para a autora, a idéia de tirano foi sendo modificada ao longo dos anos até

culminar em um conceito negativo utilizado para denegrir governos ou indivíduos

participantes da política contemporânea ou até para dar a entender que o indivíduo é mal e

totalitário, seja na política, em sua vida particular ou profissional. Já o tirano grego provém

de outro sentido:

A palavra tirania, no entanto, (...) é muito mais rica do que a popular imagem de um indivíduo que abusa do poder poderia sugerir. Na verdade, ela revela-nos o significado do Estado se limites, sejam eles morais, físicos ou históricos. O tyrannos é o novo governante, o indivíduo que chegou ao poder na cidade por outros meios que não o nascimento ou acordo precedentemente estabelecido (SAXONHOUSE, 1988:1261).

Reinhart Koselleck é um dos estudiosos que acredita que conceitos não podem ser

engessados semanticamente; como o de revolução ou estado, que chegam a se tornar um

clichê (KOSELLECK, 1992:137), tantas são as ocasiões em que são utilizados. A tirania

seria o rompimento com velhas tradições limitantes para a liberdade de ação,

independentemente de limites biológicos de sucessão. Sendo assim, o impulso tirânico não

Page 71: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

70

foi necessariamente algo mal; poderia indicar uma criatividade e uma liberdade de

transcender os limites herdados do passado (SAXONHOUSE, 1988:1261)

José Antonio Dabdab Trabulsi coloca o tirano como um “homem providencial”

(TRABULSI, 2001:59). Com a crise no sistema sócio-econômico, a polis sente-se na

necessidade de buscar uma nova estabilidade; é nesta hora que o “homem providencial” se

mostra. Os tiranos gregos foram homens que se aproveitaram da situação instável para

propor uma nova forma de ação governamental para transformar a sociedade. Entretanto, o

que se constata é que estes tiranos – eles próprios membros de uma aristocracia – não se

comportaram como revolucionários e conservaram a situação já existente, porém com outras

formas de ação, se aproveitando dos meandros culturais e religiosos, principalmente. Claude

Mossé, já na primeira página de sua obra La Tyrannie dans la Grèce Antique, classifica os

tiranos como demagogos (MOSSÉ, 2004:1), indivíduos que chegam ao poder se utilizando

de artimanhas. Veremos passagens destas artimanhas relatadas por Heródoto e Aristóteles.

Moses Finley, como exemplar adaptador da teoria weberiana, caracteriza estes tiranos como

políticos profissionais; estes fazem da política um modo de vida, todavia esta é uma

atividade de segunda ordem, pois é utilizada somente como instrumento para realizar

objetivos que, em sua essência, não são políticos (FINLEY, 1985:119).

Uma das principais – e únicas, diga-se de passagem – fontes que tratam sobre a

tirania, sobretudo a de Pisístrato, é a obra Histórias, do historiador grego Heródoto39,

redigida no século V a.C., por isso posterior ao período arcaico. Heródoto foi considerado o

“pai da história”, o primeiro historiador já no período romano pelo orador Cícero40 – embora,

ao contrário do que afirma Hannah Arendt (2003), o termo que denominava historiador já

existisse em grego: historikôs – por ser o primeiro escritor a coletar dados precisos sobre

lugares, pessoas e fatos, com uma preocupação de deixar seu legado escrito para as próximas

gerações. Lyvia Vasconcelos Baptista aponta para esta questão do legado que Heródoto

intencionava imortalizar: “Heródoto almejava a imortalização dos feitos, pelo poder da

escrita (...)” (BAPTISTA, 2008:81). Para ressaltar a importância que Heródoto creditava à

memória e o perigo da ausência de história, Jeanne Marie Gagnebin aponta:

“(...) ele [Heródoto] toma para si a tarefa sagrada do poeta épico,

39 Nascido em Halicarnassos, na Caria – atualmente Turquia – aproximadamente em 480 a.C., Heródoto viaja todo o Mediterrâneo e vai até a Ásia, após ser exilado de Atenas por questões políticas. Durante essa viagem coleta abundante material para redigir sua obra, que recita posteriormente na ágora ateniense. 40 “pater historiae”

Page 72: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

71

transformando-a ao mesmo tempo pela busca de causas verdadeiras: lutar contra o esquecimento, mantendo a lembrança cintilante da glória (kleos) dos heróis, isto é, fundamentalmente, lutar contra a morte e a ausência pela palavra viva e remorativa (GAGNEBIN, 2006:45).

Embora muito se tenha discutido sobre Heródoto se aproximar muito mais de outras

áreas das humanidades, como a geografia e a etnologia (HARTOG, 2002:290), pois muitas

das impressões deixadas em suas obras tratam de um caráter mais antropológico do que

propriamente histórico, esta foi considerada a primeira obra com uma preocupação histórica.

Esta opinião de um Heródoto etnólogo também é partilhada por Arnaldo Momigliano, que

coloca que somente depois de um tempo o escritor se interessou em redigir a história das

guerras Greco-Pérsicas (MOMIGLIANO, 2004:60). Em um artigo publicado na metade da

década de quarenta do século passado, no The American Historical Review, Truesdell S.

Brown analisa Aristóteles e conclui que o filósofo já chegara à conclusão de uma “ciência

história”, ao afirmar que a poesia fala em termos gerais, enquanto a história se preocupa com

detalhes (BROWN, 1945:829). Esta reflexão de Aristóteles será melhor analisada no terceiro

capítulo deste trabalho.

O livro um de sua obra, intitulado Clio41 – todos os livros da obra de Heródoto

tinham por título o nome de uma Musa presente na religião grega42 – possui uma descrição

da formação política e social do período arcaico ateniense, e nas partes cinqüenta e nove a

sessenta e quatro o historiador descreve a tomada do poder por Pisístrato e as articulações

políticas que este teve de elaborar para manter-se neste poder. Torna-se complexo analisar o

momento das tiranias em Atenas e em toda a Grécia de uma forma geral porque as fontes que

a relatam são tardias. Além das Histórias, redigida no período clássico, temos a Constituição

de Atenas do período helenístico, ambas após o acontecimento das tiranias. Embora

saibamos que todas as fontes são parciais, é necessário um extremo cuidado ao lançar mão

das afirmações contidas nestas obras por estarem repletas de juízos de valor de uma época

distinta daquela do momento que relatam.

Um dos maiores clássicos publicados até nossos dias que tratam da fonte por nós

utilizada é o livro O Espelho de Heródoto: ensaio sobre a representação do outro, do

francês François Hartog. Nesta obra, o autor trata da questão da representação que Heródoto

41 A Musa que representa a glória. Segundo Pierre Grimal (2000) é tardiamente que são atribuídas funções às Musas, e Clio acaba tornando-se a Musa da História. 42 Contudo, esta divisão em livros, bem como o próprio nome da obra, foi estabelecida por convenção posterior e não pelo próprio Heródoto. Vale ressaltar também que Heródoto em muitas ocasiões de sua obra colocou as diversas divindades participando do curso da história grega.

Page 73: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

72

faz do que viu e ouviu em suas viagens e como este tratou de transcrever suas impressões

para sua obra:

(...) com efeito, quando Heródoto investiga sobre as guerras médicas, elabora para os gregos uma representação de seu passado próximo; mesmo assim, quando investiga sobre os confins do mundo e sobre povos estranhos, constrói uma representação do mundo. Em ambos os casos, o discurso transmite um efeito análogo (HARTOG: 2002:291).

Temos de ter a consciência que, tratando desta obra como fonte, não devemos acreditar que

estaremos conhecendo veridicamente os fatos históricos gregos; o que devemos saber é que

estaremos analisando como Heródoto viu essas veridicidades históricas e quais impressões

particulares este deixou quando descreveu o que viu e ouviu. Mas temos de ter ciência que

Heródoto não era desprovido de uma crítica sobre os depoimentos que colheu, crítica que

não parte somente dele, mas de muitos pensadores da época. A crítica histórica surge na

Grécia no século VI (MOMIGLIANO, 2004:55) – este que estamos analisando

historicamente – e embora Homero, por exemplo, não possa ser considerado um pensador da

construção de uma historiografia grega, é certo que seus poemas influenciaram as reflexões

posteriores de escritores na construção de suas narrativas históricas.

Não podemos cometer o grave equívoco de acreditarmos que os gregos não possuíam

uma noção histórica e uma reflexão do que era a história. Os gregos possuíam sim sua

própria noção do que é história e de como aplicá-la, mesmo que os estudos da história

tradicional fechassem os olhos a isso: “A noção de que a mente grega era a-histórica tem, é

claro, um pedigree respeitável. Recua através de Collingwood e Reinhold Niebuhr a Hegel.”

(MOMIGLIANO, 2004:53). Estes estudiosos citados por Arnaldo Momigliano possuíam

uma vasta leitura da filosofia grega, e acabaram por generalizar a opinião destes filósofos –

como Platão – acerca da inutilidade da história para todas as matizes do pensamento grego:

Boa parte desta argumentação esta fundamentada em uma vaga generalização a respeito da mente grega, generalização que demonstra maior familiaridade com Pitágoras, Platão e Zenão, o Estóico, do que com Heródoto, Tucídides e Políbio. Se você identificar Platão com a mente grega, você chegará à conclusão de que a mente grega não se interessava por História. Da mesma forma você também conclua que a mente francesa não se interessava por História porque Descartes era francês. Sustentar que Platão é um representante mais típico da civilização grega do que Heródoto é uma generalização arbitrária (MOMIGLIANO, 2004:54).

Page 74: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

73

Destarte, o “pai da história” de Cícero sofreu inúmeras críticas de seus

contemporâneos e de pensadores posteriores acerca de seus relatos e de suas opiniões

históricas. Escritores influentes como Ctesias, Diodoro, Estrabão, Plutarco e até Aristóteles

não mediram esforços na missão de enlamear o nome de Heródoto e diversos foram os

panfletos distribuídos alertando sobre suas mentiras. “Heródoto não teria tido este destino se

Tucídides não tivesse dado uma reviravolta nos estudos históricos; reviravolta que envolvia o

repúdio ao seu predecessor.” (MOMIGLIANO, 2004:67). O historiador Tucídides, ao

contrário de seu antecessor Heródoto, estava muito mais preocupado com um fato e um local

específicos; enquanto Heródoto divagava por fatos e nomes históricos de diversos locais,

Tucídides aplicava seu método na Guerra do Peloponeso, e da parte dos atenienses, como

bom patriota. O método tucidideano acaba por negar as afirmações de Heródoto, acusando-o

de não comprometimento com os fatos históricos. Heródoto só irá voltar à tona no século

XVIII, para ser novamente colocado em questão no século XIX.

O século XVIII, ainda deveras influenciado pelas idéias da renascença, mas já com

um ideal em construção de nação, considera Heródoto como o “cosmopolita sábio”

(MOMIGLIANO, 2004:82). A história da civilização, muito valorizada no século em

questão, permeava a obra Histórias, o que agradou os eruditos setecentistas. Já no século

XIX, temos o auge das chamadas ciências positivas, e a História Política conhece seu apogeu

– sobretudo na Alemanha, onde Tucídides foi reverenciado. Tucídides agradava muito mais

os oitocentistas por ter um método definido de análise e por se importar tanto com a

“verdade histórica”. Porém, Heródoto nunca mais foi esquecido, já que muito mais sobre

história grega e oriental estes eruditos do século XIX compreendiam.

Heródoto parte de uma narrativa elaborada para descrever os fatos em uma

cronologia. Aí está outro problema e outra discussão: a questão da narrativa. Hartog aborda

este tema aplicando-o à obra Histórias. Para o autor por muito tempo essa fonte foi

considerada como ficção pelos campos mais tradicionais da história (HARTOG, 2002:289)

não por se tratar de uma obra redigida através de relato nem por muitas passagens contarem

com a menção aos deuses do panteão. Ela foi considerada ficção por ser uma obra narrativa,

que se assemelhava aos livros de fantasia e poesia. Luiz Costa Lima possui duas obras – A

aguarrás do tempo: estudos sobre a narrativa (1989) e História. Ficção.Literatura (2006) –

que discutem a questão da narrativa histórica. Vamos analisá-las brevemente para termos

uma idéia substancial do conceito de narrativa para aplicá-lo na análise da fonte.

Costa Lima nos apresenta, em sua obra A aguarrás do tempo: estudos sobre a

Page 75: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

74

narrativa, um panorama do conceito através dos séculos, desde o surgimento do campo

tradicional da historiografia. O positivismo não negava a narrativa em sua totalidade,

considerava-a essencial para uma reconstituição cronológica dos fatos e para um relato de

como efetivamente fora a história (LIMA, 1989:20). O sonho iluminista de uma

cientificização evolutiva acaba por engessar a narrativa. Os positivistas lógicos do Círculo de

Viena, já no século XX, tratam a narrativa como uma parte das leis gerais hempelianas,

formuladas em 194243. Estas leis aplicadas à narrativa ganham força com representantes da

filosofia analítica – tendo como principal nome nesta discussão Danto44 – que, assim como o

Círculo de Viena, propunha um modelo unitário de ciência (LIMA, 1989:40). Percebemos aí

uma tentativa de construção da identidade do historiador através da alteridade. O historiador

se apropria da narrativa para confrontar aquilo que ele não é: um matemático ou,

principalmente, um literato (BAPTISTA, 2008:127).

O estruturalismo também seguiu o mesmo padrão de cientificidade dos annales. Lévi-

Strauss atacava a História por ser particularizante e não dispor de resultados universais. A

narrativa seria então o travestimento ideológico que a História necessitaria para mascarar

suas particularizações. Como a Antropologia estrutural analisava mitos, Lévi-Strauss não

poderia ignorar o caráter narrativo do mito. Então, para não deixar de acusar a História,

afirma que esta não consegue ultrapassar seu regime narrativo e que desta maneira não

conteria suas projeções ideológicas (LIMA, 1989:24).

Embora os neo-positivistas e os positivistas lógicos não tivessem criado um campo

aberto para a narrativa – ao aplicá-la dentro de um processo de leis, acabaram por fechá-la –

é inevitável que estes possuíssem uma discussão muito mais fundamentada e elaborada que

outras correntes das ciências humanas como a Escola dos Annales e os estruturalistas.

Mas sem dúvida a narrativa é mais utilizada pelos historiadores atualmente do que no

passado. Por ela, entendemos partir do pressuposto de uma reunião de dados organizados em

um trabalho; uma forma de passar como as transformações ocorreram através de um método

da escrita da História. É o “que Danto denomina sentenças narrativas: elas caracterizam-se

por articular no mínimo dois acontecimentos distintos no tempo e encaminhar a descrição de

um deles pela cobertura e pela referência ao outro.” (SILVA, 2007:84). A narrativa é esta

reunião de dados expostos em uma forma escrita. Nas palavras de Costa Lima: “Ela visa, não

43 Para uma reflexão das leis gerais hempelianas ver: HEMPEL, Carl G. “Explicação e Leis”. In: GARDINER, Patrick (org.). Teorias da História. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1964. 44 Filósofo analítico estadunidense, crítico de arte e estudioso da estética.

Page 76: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

75

à inserção em uma lei geral ou a revelar as categorias que indicassem as propriedades e

fronteiras de um objeto, senão que a constituir o significado de uma mudança.” (LIMA,

1989:60). É o que Heródoto fez em seu trabalho no século V a.C. e o que – mesmo que isto

possa se tornar passível de negações – os historiadores ainda fazem no século XXI, a partir

de critérios de escolha do que será relatado condizente com cada época de produção da

escrita.

Não podemos pasteurizar todos os tipos de fontes narrativas em uma única análise

conceitual. A narrativa realizada por Homero em seus épicos não é a mesma narrativa

histórica realizada por Heródoto e, de certo forma, Tucídides. Os historiadores gregos

creditavam uma abordagem historiográfica em suas obras – mesmo uma diferindo da outra –

e embora o critério de seleção dos acontecimentos também se aplique a uma obra ficcional, a

noção de uma escrita da História esta intrinsecamente ligada a uma consciência histórica e a

um método analítico das fontes, o que não vemos nos épicos homéricos e já percebemos

claramente nas obras dos historiadores do período clássico. Não se pode negar que Heródoto

e Tucídides foram leitores de Homero e o aedo muito influenciou na escrita de suas obras,

porém ambos os historiadores negavam a exatidão histórica de Homero: “Tampouco é

novidade que, discordantes entre si, Heródoto e Tucídides atacam em comum a base

homérica.” (LIMA, 2006:38)

Após refletirmos consideravelmente sobre nossa fonte, vamos à discussão das

passagens, para podermos traçar uma coerente análise dos processos históricos. Já foi aqui

elucidado por nós o processo de crise econômica e social que Atenas e a maioria das cidades-

estado gregas sofreram. Aproveitando-se deste momento, diversos grupos de aristocratas

uniram-se com a intenção de juntarem forças para viabilizar a chance de colocarem um

representante de sua facção no governo ateniense. Em Atenas, o arconte Damásias ficou no

poder por dois anos, mas acusado de ilegalidade foi obrigado a deixar o cargo. Claude Mossé

nos diz que Tucídides sublinha o fato de que os tiranos começaram a surgir em cidades ricas

e com poderosa armada (MOSSÉ: 1989:166), pois muitos destes tiranos dialogaram com as

falanges militares quando da intenção de chegar ao poder.

Com uma Atenas sem governante, três líderes criaram suas facções para a disputa do

poder na polis, sendo Mégacles o representante das pessoas do litoral (paralianos) – do

ghéne dos Alcmeônidas e representando a parte moderada dos habitantes, afeitos ao

comércio e os artesãos ricos da costa – Licurgo, o representante das pessoas da planície

(pedionomós) – do ghéne dos Eteobutades e representante da aristocracia tradicional

Page 77: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

76

(MOSSÉ, 1982:16-17) e a terceira com Pisístrato45, representante dos habitantes da

montanha (diácrios)46. É encontrada demasiada dificuldade em definir o que seriam estas

facções, por tratarem-se de conceitos políticos desconhecidos pela política contemporânea;

debruçar-se na tentativa de defini-las seria um caminho fácil e perigoso para o anacronismo.

Nas palavras de Jean-Pierre Vernant, eles: “Traduzem um conjunto complexo de realidades

sociais que nossas categorias políticas e econômicas não encobrem exatamente.”

(VERNANT, 1986:70)

Pisísitrato ganhara grande renome na guerra contra Mégara47 e foi colocado como um

exemplo de soldado ateniense. Era um representante da oligarquia embora fosse filho de pai

pouco abastado, como aponta-nos Heródoto (I, 59); porém já elucidamos que as relações de

poder na Antiguidade não eram determinadas pelos fatores econômicos. Percebemos em

Heródoto como Pisístrato aproveitou a oportunidade quando da desavença entre as duas

primeiras facções:

Anos depois houve uma desavença entre os atenienses da costa e os da planície, os primeiro chefiados por Megaclés filho de Alcmáion, e os da planície chefiados por Licurgos filho de Aristolaídes. Então Pisístrato, aspirante ao poder soberano, organizou uma terceira facção, reuniu adeptos e se apresentou como defensor dos habitantes da montanha (Heródoto. Histórias, I, 59).

José Antonio Dabdab Trabulsi aponta que, ao contrário de Sólon, que agiu em uma situação

que motivou a sua chamada, Pisístrato teve de “criar” uma situação para dar condições de

suas ações (TRABULSI, 2001:62); está aí um claro exemplo de “homem providencial”.

Na mesma parte, temos a representação do tirano demagogo sobre o qual Mossé

teorizou: “Ele [Pisístrato] recorreu ao seguinte estratagema: ferindo-se a si mesmo e aos seus

mulos, ele levou seu carro até a ágora, onde contou que havia escapado de seus inimigos,

desejosos, segundo disse, de matá-lo enquanto ia para o campo” (I, 59). Pisístrato foi

demagogo desde o começo de sua vida política, aproveitando-se de instabilidade econômica

e social da população: “Com efeito, é evidente que, embora Pisístrato recrute seus primeiros

45 Dependendo da tradução também podemos encontrar Peisístratos. 46 Jean-Pierre Vernant (1986) define os participantes das facções: os paralianos são provavelmente mercadores que habitavam as regiões marítimas; os pedionomós são os ricos proprietários de terras que cercam a aglomeração urbana e os diácrios – que são os mais populares – compostos de pequenos aldeões, thêtas, lenhadores, carvoeiros, todos habitantes dos dêmos periféricos mais afastados do centro urbano. 47 Mégara foi uma promissora cidade-Estado até o início do século VI. Após esta guerra é anexada à Atenas e passa a ser uma colônia desta.

Page 78: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

77

partidários entre as pessoas da Diacria – onde se localizavam seus bens patrimoniais – muito

cedo vai granjear o apoio de todos os descontentes, independentemente de sua origem

geográfica.” (MOSSÉ, 1982:17)

Após a atitude de se ferir, Pisístrato ganhou do povo uma guarda pessoal armada com

bordões48. Com esta guarda de homens escolhidos, Pisístrato tomou pela primeira vez a

cidade, aproveitando-se da desarticulação entre as duas outras facções e de todo o apoio das

camadas menos abastadas. Porém – embora nossas fontes nada digam sobre isso – Pisístrato

ganhou esta guarda possivelmente porque exercia algum poder oficial, haja vista seu papel

na guerra contra Mégara (MOSSÉ, 1982:18).

Entretanto, após um tempo, as duas outras facções unem-se para destituí-lo do poder,

pois o tirano ainda não havia tido tempo de se estabilizar: “Assim Pisístrato, senhor de

Atenas por um primeiro período, foi despojado do poder soberano, cujas raízes ainda não

estavam firmes.” (I, 60). Exilado de Atenas, Pisístrato volta pela segunda vez ao poder, para

mais uma vez governar por um curto espaço de tempo. As duas facções que se uniram para

derrubar Pisístrato novamente entraram em confronto e Mégacles tirou Pisístrato de seu

exílio, fazendo este se casar com sua filha.

Heródoto nos dá, na parte sessenta da obra, a única informação sobre manipulação

popular através da religiosidade grega – o historiador estava muito mais preocupado com as

questões políticas em si, e embora tivesse conhecimento das transformações religiosas que

ocorreram neste período, Heródoto não se atenta para estes acontecimentos – e é perceptível

sua indignação quando o povo ateniense é manipulado tão facilmente. Mégacles traça um

plano para colocar Pisístrato dentro da polis ateniense:

(...) tal plano, em minha opinião, era tão ridículo que é estranho (diante do fato de desde os tempos mais remotos os helenos se terem distinguido sempre dos bárbaros por seu maior talento e por sua menor credulidade) que aqueles homens o tenham imaginado para enganar os atenienses, considerados os mais perspicazes de todos os helenos. Havia no distrito Paianieus uma mulher chamada Fia, com uma estatura apenas três dedos mais baixa que quatro côvados, e quanto ao resto muito formosa. Eles a vestiram com uma couraça completa e a puseram em uma carruagem, dando-lhe todos os parâmetros capazes de torná-la ainda mais agradável à vista, e assim a introduziram na cidade; precediam-na alguns arautos, que ao chegar à cidade fizeram uma proclamação, de acordo com instruções recebidas, dizendo o seguinte: “Atenienses! Proporcionai uma acolhida favorável a Pisístrato, o mais honrado entre os homens pela própria Atena,

48 Os bordões relatados por Heródoto também podem ser traduzidos por bastões de madeira ou até paus. Possuíam a função de armamentos de guerra.

Page 79: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

78

que o traz de volta à acrópole.” Foi essa proclamação dos arautos a toda a cidade. Imediatamente passou-se a dizer em todos os distritos que Atena estava trazendo Pisístrato de volta, e os habitantes da cidade, convictos de que a mulher era realmente a deusa, prosternaram-se diante daquela criatura humana e acolheram favoravelmente Pisístrato (Heródoto. Histórias, I, 60).49

Duas são as hipóteses mais plausíveis sobre a dúvida de Heródoto: ou ele não

confiava na fonte da qual coletou esta informação – pois o próprio Heródoto declarou que

havia fontes mais confiáveis que outras – ou Momigliano (2004) está equivocado ao afirmar

que Tucídides era o patriótico e que Heródoto era um cosmopolita. Heródoto enaltece os

helenos em detrimento dos bárbaros; e os atenienses em detrimento dos outros helenos, quem

sabe em uma exacerbada opinião patriótica, mesmo ele não sendo ateniense por nascimento.

O caso é que percebemos como a religiosidade estava presente no cotidiano grego e

que, diferente da modernidade, os gregos acreditavam que os deuses estavam materialmente

presentes entre a população. Percebemos também que a ajuda de Megacles representava que

parte da aristocracia apoiava um alargamento da política na polis. Porém, Pisístrato não

demorou muito para ser exilado novamente. Um oráculo consultado pelo tirano disse que

uma maldição estava presente entre os Alcmeônidas e este não poderia ter um filho

descendente deste ghéne, pois seu governo também seria amaldiçoado. Por isso o tirano não

manteve relações sexuais normais com sua esposa. Esta situação causou a ira de Mégacles, o

que ocasionou o exílio do tirano pela segunda vez:

Como ele tinha filhos já grandes e se dizia que pesava uma maldição sobre os alcmeônidas, ele não queria filhos se sua nova mulher, e por isso tinha relações anormais com ela. A princípio a mulher ocultou o fato, mas depois o revelou à sua mãe (não sei se interrogada ou não pela mesma), e a mãe o contou para o próprio marido. Mégaclés ficou indignado com a afronta que lhe estava sendo feita, e em sua cólera esqueceu a desavença com a outra facção. Tomando conhecimento dessa atitude contrária a ele, Pisístrato abandonou o território da Ática e foi para Eretria, onde procurou aconselhar-se com seus filhos (Heródoto. Histórias, I, 61).

Após ouvir seu filho Hípias – que o aconselhou a tomar o poder novamente, na forma

de um golpe de estado – Pisístrato passou a reunir seguidores e a formar um exército com

que levasse a cabo a reconquista de Atenas, segundo os dizeres de Heródoto – Aristóteles 49 Walter Burkert (1993) complementa dizendo que mensageiros foram enviados antes para dizer que a deusa estava conduzindo Pisístrato à cidade, desta forma fez as pessoas saírem de suas casas e assistir o ocorrido. Não encontramos em nossas fontes relato sobre estes mensageiros, e Burkert não aponta de onde compilou esta informação.

Page 80: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

79

conta-nos outra versão, como veremos no tópico seguinte. Pisístrato e seus filhos vão às

cidades que já eram conhecidos, como Tebas, para coletar dinheiro e homens: “(...) e eles

fizeram uma coleta de contribuições em todas as cidades às quais haviam prestado algum

serviço” (I, 61). Com uma liga formada por admiradores, mercenários e outros exilados,

Pisístrato começou seu projeto de tomar Atenas, ocupando Maratona e colhendo mais

donativos nesta região:

No curso de undécimo ano eles partiram de Eretria de volta à sua terra, onde ocuparam primeiro Maratona; enquanto estavam lá vieram juntar-se a eles seus adeptos da cidade, e outras pessoas dos distritos daquela região. Então eles reuniram suas forças; os atenienses da cidade, todavia, que enquanto Pisístrato fazia a coleta de dinheiro e mesmo depois de ele haver ocupado Maratona não davam maior importância a tais acontecimentos, passaram a dar quando souberam que ele estava marchando de Maratona contra Atenas, e tomaram a decisão de atacá-lo; e saíram com todas as suas forças ao encontro dos exilados que voltavam. Estes, em sua marcha de Maratona rumo à cidade, encontraram os adversários ao chegar ao templo de Atena em Palene, e acamparam à sua frente (Heródoto. Histórias, I, 62).

Após, conta-nos Heródoto, Pisístrato ter ouvido um adivinho, de nome Anfílitos –

que inspirado por um deus recita um poema contando a vitória de Pisístrato – pôs-se em

marcha com suas tropas (I, 63). Atacando de surpresa, pois os atenienses haviam ido almoçar

e após o almoço alguns pensavam em jogar dados, outros em dormir (I, 63), as tropas de

Pisístrato marcham sobre Atenas e se instala a tirania. As informações dadas por Heródoto

em sua obra sobre o momento da tomada de poder das tropas de Pisístrato é insuficiente para

compreendermos na totalidade qual foi o grau de resistência que a cidade exerceu sobre estas

tropas, ou quantas foram as perdas de ambos os lados. O fato é que Pisístrato tomou a cidade

pela terceira vez, e desta vez definitivamente.

A parte sessenta e cinco do primeiro livro das Histórias é a última que faz menção a

Pisístrato. Nela temos uma narrativa relativamente rica das posições tomadas pelo novo

governante para firmar os alicerces de sua tirania:

(...) chegando lá, ele tratou de dar raízes à tirania, com a ajuda de numerosos mercenários e mediante a imposição de tributos tanto em Atenas quanto na região do rio Strímon; além disso ele tomou como reféns os filhos dos atenienses que tinham preferido resistir em vez de fugir sem demora, e os instalou em Naxos (ele havia conquistado essa ilha e tinha entregue seu governo a Lígdamis). Mais ainda, ele mandou purificar a ilha de Delos em obediência ao oráculo, e isso foi feito da seguinte maneira: Pisístrato mandou exumar todos os mortos sepultados em terrenos visíveis

Page 81: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

80

do templo e levá-los para outra parte de Delos. Ele era então o detentor do poder soberano em Atenas; quanto aos atenienses, alguns tombaram em combate, e outros saíram com ao alcmeônidas de sua terra para o exílio (Heródoto. Histórias, I, 63).

Camila da Silva Condilo, em sua dissertação de mestrado, elucida a discussão

presente na historiografia que trata de Heródoto sobre a opinião do historiador grego acerca

da tirania. Temos que entender que o conceito de historiador para os gregos desta época

estava pautado na coleta de fontes buscando o caminho da verdade. Desta forma, o

historiador seria o “juiz” quando da coleta destes dados (CONDILO, 2008:21).

Concordamos com Condilo quando afirma que, diferente de Tucídides, Heródoto não possui

uma clareza em suas opiniões acerca do que escreve, muito devido a estar em um momento

de transição do pensamento mítico para um pensamento político-racional (CONDILO:

2008:94). Percebemos também que poucas são as passagens no texto de Heródoto que se

referem aos tiranos de uma maneira negativa; na maioria das passagens Heródoto narra os

fatos, porém sem um juízo de valor agudo. Bem diferente é o caso da Constituição de

Atenas, por tratar-se de um tratado político-filosófico escrito por um filósofo que vivia em

um contexto distinto daquele de Heródoto e já arraigado pelo pensamento racional do século

IV. É sobre isto que discorremos no próximo tópico.

2.2. Pisístrato, o tirano moderado da Constituição de Atenas de Aristóteles

A obra Constituição de Atenas50, que consensualmente os historiadores creditam sua

autoria a Aristóteles, foi escrita já no período helenístico, é ainda mais distante do período

que ela pretende abarcar do que as Histórias. Porém, Aristóteles foi um leitor de Heródoto e

bebeu da fonte do historiador para compor sua obra, datada do século IV. As mesmas

questões que vemos nos historiadores em relação ao escritor da Ilíada e da Odisséia, vemos

também em relação ao escritor da Constituição de Atenas. Claude Mossé, em algumas de

suas obras – como A Grécia Arcaica de Homero a Esquilo – cita, “o escritor da Constituição

de Atenas” e não o nome de Aristóteles. A questão é que independentemente do autor – que

poderia ainda ser um discípulo de Aristóteles – temos nesta obra um panorama muito

específico concernente à ação legisladora – nomothesía – e aos atos políticos que abalaram

50 Do grego Athenaíon Politeía (ΑθΗΝΑΙΩΝ ΠΟΛΙΤΕΙΑ), transliteralmente significaria algo como Política dos Atenienses.

Page 82: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

81

Atenas em um espaço de mais de duzentos anos – séculos VI e V.

Aristóteles, neste trabalho, tem a intenção de reunir tudo o que já foi escrito sobre a

política ateniense que se tornou digno de relevância e o que não era importante descartar, de

acordo com o julgamento do filósofo. Diferentemente do que podemos perceber na obra de

Heródoto, a Constituição de Atenas possui um outro caráter narrativo. O pensamento

racional de Aristóteles faz com que este isente os deuses ou as forças não humanas no rumo

da escrita da história política ateniense, escrita esta muito comum no século IV, onde a

filosofia já havia se instaurado no pensamento helênico.

Autores antigos utilizam a obra de Aristóteles em suas análises – como Estrabão,

Plutarco e Ateneu – porém muitas das partes que vemos citadas nas obras destes pensadores

perderam-se no passar do tempo e não chegaram até nós. A Constituição de Atenas também

foi utilizada na Idade Média por estudiosos bizantinos e no Renascimento. Todavia, toda esta

trajetória fez com que os manuscritos fossem perdidos ou modificados, e muito de sua leitura

tem de ser feita através de citações de outros textos clássicos. Foram os eruditos do século

XIX, como C. F. Neumann e Carl Müller – com uma incrível destreza quando da coleta e

análise de fontes – que tornaram pública a primeira reunião dos manuscritos encontrados em

diversas partes. Em 1886, Valentine Rose editorava a reunião mais completa até então, com

91 fragmentos, e já na década final deste mesmo século, o inglês Frederic G. Kenyon

editorava a primeira publicação do texto, aproveitando a nova descoberta do Museu

Britânico, um papiro com inéditos fragmentos da Constituição de Atenas.

Ao contrário de Heródoto, que possuía uma opinião ora a favor, ora contra e na

maioria das vezes isenta sobre a tirania, Aristóteles, por fazer parte de uma época muito

posterior à ascensão e declínio dos tiranos e que já havia conhecido a democracia do período

clássico – forma de governo tida como ideal pela filosofia e que havia se extinguido com o

helenismo – critica veementemente o governo dos tiranos e caracteriza-os de ilegais perante

as leis políticas. Ciro Flamarion Cardoso realiza uma síntese das três características

principais do regime tirânico que apareciam com clareza e discute a questão da ilegalidade

da tirania difundida por Aristóteles:

1) o governo do tirano era de tipo pessoal e considerado ilegal pelos aristocratas, embora mantivesse o aparelho tradicional dos órgãos de sua polis (de certo modo, a tirania se exercia paralelamente a tais órgãos); 2) sua legitimidade e sua base social vinham do fato de proteger os populares contra a classe dominante (ou seja, governaram a maior parte do tempo apoiados pela maioria da população, o que torna um tanto estranho

Page 83: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

82

considerar ilegal o governo dos tiranos, exatamente como faziam os nobres por razões óbvias: fora a sua legalidade que os tiranos romperam); 3) em quase todos os casos, o tirano era um nobre, ou pelo menos parcialmente descendente de nobres (...) (CARDOSO, 1987:30-31).

Como marxista, Cardoso utiliza o termo “classe”. Já elucidamos no primeiro capítulo

o quanto este conceito parece ser inadequado, contudo acreditamos ser uma boa hora para

tratarmos do que pode ser uma constatação equivocada se não analisada corretamente: a

ascensão do tirano com o apoio da maioria da população poderia fazer alguns acreditarem se

tratar de uma “luta de classe”. É interessante ressaltar que durante estas idas e vinda do

poder, o povo permaneceu passivo às transformações políticas:

“(...) o povo permaneceu passivo, o que não é de estranhar. O povo ateniense ainda desconhecia o que fosse “consciência política” e, desde que conseguisse vantagens materiais, desinteressava-se das lutas estéreis por um poder que fugia a seu controle.” (MOSSÉ, 1982:18).

Acreditamos que quando não há uma consciência que legitime a classe, não pode

haver uma luta desta classe. Percebemos em nossas fontes – o que também é ressaltado por

Mossé – que durante as idas e vindas de Pisístrato o povo não se moveu para lutar por seus

interesses, foi mero espectador dos atos políticos: “A prova não está na ausência de interação

ativa, mas sim atitudes mais ou menos passivas, o que não quer dizer que não seja uma

forma de luta” (PLÁCIDO, 1995:108). O que Domingo Plácido coloca na obra Introducción

al Mundo Antiguo: problemas teóricos y metodológico, é que havia sim uma forma de luta,

porém não estava relacionada ao conceito clássico de “luta de classe”. Vernant é um dos

historiadores que realça as críticas ao uso de conceitos marxistas aplicados à Antiguidade

sem uma devida contextualização histórica, ressaltando a diferença entre as sociedades

capitalistas atuais e a sociedade grega da época clássica, como atesta Renata Beleboni:

Para o autor [Jean-Pierre Vernant], a validade destes conceitos deve ser repensada uma vez que as relações econômicas na sociedade antiga estavam intimamente ligadas ao comportamento religioso, o que não ocorre de maneira alguma nos centros capitalistas. Ainda segundo o autor, muitos pontos distanciam as duas sociedades, destacando dois deles. Comecemos pela posição dos escravos na sociedade antiga. Nesta época, o grupo formado pelos escravos não representava uma classe unida, com pretensões políticas ou econômicas. Além disso, uma revolta – se é que tal hipótese tenha tido sentido algum dia – não representava modificações nas relações de produção ou formas de propriedade. Em segundo lugar, o motivo principal dos interesses antagônicos entre os gregos não estava no meio

Page 84: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

83

econômico, e sim, tinham relação com o lugar que os indivíduos ocupavam na vida política da cidade. Deste modo, não era possível uma luta entre escravos e proprietários, uma vez que os primeiros não fazem parte do quadro sócio-político. Ainda temos que lembrar que os lucros não eram revertidos para o empreendimento, pelo contrário, estes eram investidos na coletividade cívica em forma de festas civis e religiosas, promoção de campanhas militares e construção de edifícios públicos. Portanto, Vernant lembra que não se pode utilizar sem precaução o aparelho conceitual marxista – forçar produtivas, relações econômicas de produção, regimes sócio-políticos, formas de pensamento e ideologias – elaborado no estudo da sociedade contemporânea para aplicá-lo sem mudanças no mundo antigo (...) (BELEBONI, 2001:82).

O tirano tinha como meta o poder, mas para alcançá-lo e principalmente mantê-lo era

necessário que agisse com moderação e que negociasse com os diversos estratos sociais,

tentando chegar a um consenso, para que não abalasse sua soberania; bem diferente é o

conceito e a ação de uma luta de classes. O tirano necessitava dialogar com todos e trabalhar

como um “agente moderador”:

Nas tiranias arcaicas, o papel desempenhado pelo tirano é nítido, impor a medida, recompor o desequilíbrio perdido, viabilizar o não rompimento do tecido social em momento singular do desenvolvimento das cidades, isto é, moderar o fosso existente entre a velha aristocracia e o pequeno camponês, é o télos de sua ação (CHASIN, 2007:128).

As tiranias de um modo geral exerceram este papel: mediar os diversos segmentos da

sociedade grega para manter um aparente consenso que creditasse legitimidade à

continuidade de seu governo e de suas ações:

(...) o tirano é a solução política de tempos pouco políticos: a tirania é a mediação enérgica ao restaurar a medida, ou seja, ao impor a medida pela força, o tirano atua a partir de expedientes mais ou menos políticos, cujo objetivo é essencialmente político – a preservação e o equilíbrio da polis (CHASIN, 2007:130).

Vamos analisar alguns fragmentos da obra Constituição de Atenas e junto com estas

análises propor um cotejamento com os escritos da fonte utilizada no tópico anterior. A obra

inicia-se – pelos fragmentos que conhecemos – com uma análise das legislaturas de Drácon e

Sólon e a partir do fragmento treze ao dezessete Aristóteles analisa a tomada de poder de

Pisístrato e sua forma de governo; já os fragmentos dezoito e dezenove são reservados ao

governo de seus filhos. No fragmento treze, Aristóteles nos dá a mesma informação que

Heródoto sobre as três facções políticas, porém já emite uma opinião diferente: os homens da

Page 85: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

84

planície são os oligarcas, os do litoral os moderados e os da montanha os democratas

(MOSSÉ, 1989:179), provavelmente conceitos utilizados durante o período helenístico e não

durante o próprio período arcaico:

4. Havia três facções: uma da praia, liderada por Mégacles, filho de Alcméon, e que parecia sobretudo perseguir o regime do meio; uma da planície, que almejava a oligarquia e era conduzida por Licurgo; a terceira era a da montanha, tendo Pisístrato à frente, o qual, ao que parece, era o mais popular (Aristóteles. Constituição de Atenas, XIII, 4).

Mossé nos diz que Aristóteles credita a Pisístrato uma possível democracia. O

filósofo utiliza o termo popular (δοκων), que pode dar a noção de democrata conforme o

contexto. O fato é que Aristóteles possa ter afirmado a democracia da montanha lançando

mão de um conceito do qual ele já havia tomado ciência – durante o período clássico –

diferentemente dos homens da montanha do século VI, anterior ao processo democrático.

Outra discussão relacionada a termos gregos é colocada por C. A. Robinson Jr., em artigo

publicado no The American Journal of Philology; o autor alerta-nos para o perigo do

anacronismo ao tendermos ver nestas facções partidos políticos, perigo deveras sedutor. O

autor prefere utilizar o termo grupos (ROBINSON JR, 1945:243), assim como Francisco

Murari Pires preferiu o termo facção em sua tradução. Heródoto não nomeia a ideologia

política das facções por não possuir um pensamento político e filosófico que abarcaria estes

conceitos, embora já conhecesse a democracia. Já o filósofo, que já havia passado por alguns

momentos políticos distintos, aponta o que teria dado mais força à facção da montanha:

5. Filiavam-se a esses os que se viram em dificuldades por terem sido privados das dívidas, mais os que estavam receosos por terem ascendência impura, o que é assinalado pelo fato de que, após a derrubada dos tiranos, se procedeu a um escrutínio – de cidadania – entendendo-se que muitos compartilhavam indevidamente os direitos políticos. Cada facção tirava seu nome da região onde estava afazendada (Aristóteles. Constituição de Atenas, XIII, 5).

Esta “hegemonia” – para utilizar um termo gramsciano – de extratos sociais menos abastados

é que fez com que a facção da montanha saísse com vantagem, já que muitos destes

indivíduos que anteriormente não teriam força alguma, depois de Clístenes, adquiriram certa

autonomia, ainda que modesta.

No fragmento quatorze, Aristóteles mais uma vez elucida a mesma informação que

Page 86: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

85

Heródoto sobre as artimanhas demagógicas que o tirano utilizou para chegar ao poder –

provocando ferimentos em si próprio e acusando seus inimigos – porém acrescenta um dado

novo acerca da opinião de Sólon sobre a armada requisitada por Pisístrato:

2. Conta-se que Sólon se contrapôs à solicitação da guarda por Pisístrato, declarando ser ele mais sábio do que uns e mais corajosos do que outros; com efeito, era mais sábio do que os inscientes das aspirações de Pisístrato à tirania, e mais corajoso do que os que, embora conscientes, se calavam (Aristóteles. Constituição de Atenas, XIV, 2).

Fica claro que Aristóteles era contra a tirania quando este diz que Pisístrato era mais

conceituado que o tirano e seus comparsas, em uma tentativa de difundir em sua época o mal

que a tirania havia causado em Atenas. No mesmo fragmento, também percebemos o relato

de Aristóteles acerca da condução de Pisístrato por Atena, em parceria com Mégacles,

quando da saída do tirano do exílio. Notemos que Aristóteles cita Heródoto nesta parte,

provando a hipótese do filósofo leitor do historiador:

Espalhou rumores de que Atena reconduziria Pisístrato e, após encontrar uma mulher grande e bela, chamada Fie (do demos de Peânia segundo afirma Heródoto, ou uma florista trácia de Colito na versão de outros autores, trajou-a imitando a deusa, e a trouxe na companhia de Pisístrato. À passagem de Pisístrato, de pé no carro com a mulher a seu lado, os que estavam na cidade os receberam prosternando-se espantados (Aristóteles. Constituição de Atenas, XIV, 4).

Diferentemente do historiador, o filósofo não se indigna com a crença dos atenienses.

Embora Aristóteles possuísse um pensamento racional, para ele nada diz o povo ter

acreditado que a própria Atena adentrou a cidade.

No próximo fragmento, de número quinze, Aristóteles diz que Pisístrato se auto-

exilou na segunda vez, diferente do que narra Heródoto, que afirma que Mégacles não

aceitou o ultraje do tirano não manter relações com sua filha: “Posteriormente, foi derrubado

uma segunda vez por volta do sétimo ano após o retorno; com efeito, não se manteve por

muito tempo, pelo contrário, não se dispondo a manter relações com a filha de Mégacles, e

por temer ambas as facções, retirou-se. (XV, 1)”. Assim como Heródoto, Aristóteles exalta o

fato de Pisístrato não se dispor a ter relações com sua esposa, porém vai mais além; no

último fragmento no qual o filósofo trata do tirano – fragmento XVII – este afirma que

pessoas diziam que aquele era amante de Sólon, mas o filósofo julga isto impossível pelo

Page 87: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

86

fato de suas idades (XVII, 2); Sólon era muito mais velho que Pisístrato. Já Heródoto não

trata desta questão. Ao mesmo tempo em que percebemos que Aristóteles diz que Pisístrato

não mantinha relações com sua esposa – diferente de Heródoto, que afirma que este

mantinha relações anormais – percebemos também que Aristóteles não cita o oráculo que

influenciou o tirano a não deixar herdeiros, reforçando a hipótese do pensamento racional

aristotélico.

No mesmo fragmento, o filósofo nos dá praticamente as mesmas informações que

Heródoto sobre o segundo exílio de Pisístrato e sobre a marcha deste e de seus mercenários

sobre as várias regiões da Península Balcânica, mas difere consideravelmente da forma como

Pisístrato toma o poder:

3. Venceu a batalha de Palene, tomou a cidade e desarmou o povo, com o que manteve agora a tirania com firmeza. Capturando Naxos, estabeleceu Lígdamo como seu governante. 4. Desarmou o povo da seguinte maneira. Promoveu uma apresentação de armas do Teseion e aí deu início a uma assembléia, sendo porém logo interrompido, pois reclamavam não o estar escutando. Pediu-lhes para subirem até a entrada da Acrópole a fim de o ouvirem melhor. Enquanto ele prolongava seu discurso, as pessoas destinadas para essa tarefa recolheram as armas e, após as trancarem nos edifícios próximos ao Teseion, voltaram e fizeram-lhe sinais. 5. Este, assim que concluiu o restante de seu discurso, contou-lhes o ocorrido com as armas, dando-lhes a entender que não se deviam inquietar nem abater, mas sim que retornassem para cuidar de seus afazeres particulares, uma vez que ele próprio se encarregaria de todas as questões públicas (Aristóteles. Constituição de Atenas, XV, 3,4,5).

Com estas informações distintas entre as fontes, temos a prova cabal de que não se pode

confiar piamente nos escritos que chegaram até nós. As tradições orais das quais estes

escritores lançavam mão certamente modificavam-se com o passar do tempo; no caso de

nossas duas fontes, com o passar dos séculos.

No fragmento dezesseis – o mais longo que trata sobre a figura de Pisístrato –

verificamos um elogio de Aristóteles acerca do governo do tirano. Este elogio é que nos

influenciou no título deste tópico: “2. Pisístrato (...) administrava os negócios da cidade com

moderação, e antes como cidadão do que como tirano.” (XVI, 2). Aristóteles ainda enumera

que o tirano era humano, brando, clemente aos infratores e até adiantava empréstimos a

quem se encontrava em dificuldades no cultivo da terra. Embora tivessem havido estes

elogios, os estudiosos afirmam que na visão política do século IV o tirano não era um

indivíduo digno de cidadania, já que o apogeu da idéia de cidadão dá-se em plena

Page 88: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

87

democracia do século V. Provavelmente o que Aristóteles coloca é que Pisístrato governava

como um cidadão, mas em nenhum momento afirma que o tirano era efetivamente um

cidadão. O pensamento aristotélico foi influenciado por toda uma idéia de cidadania vivida

por seus antecessores, ideal já em declínio na época em que o filósofo viveu. Aristóteles

elogia Pisístrato por este lançar mão da política – e não da força – para governar e encontra a

medida de suas ações por meio de ofícios políticos (CHASIN, 2007:136). A política, tão cara

a Aristóteles, era muito bem utilizada por Pisístrato, fazendo com que o filósofo tenha certa

admiração pelo tirano, mesmo que velada.

Continuando com a análise do governo tirânico, o filósofo reflete sobre as intenções

de Pisístrato ao agir com tanta bondade e serenidade com os habitantes da zona rural:

3. Assim agia com duplo benefício: para que não permanecessem na cidade, mas sim dispersos pelos campos, de tal modo que, providos de recursos moderados e voltados para seus afazeres particulares, nem ambicionassem nem tivessem folga para se ocupar dos públicos. 4. Ao mesmo tempo, aumentava seus rendimentos em decorrência do cultivo dos campos, pois ele cobrava o dízimo sobre a produção (Aristóteles. Constituição de Atenas, XVI, 3,4).

Desta forma, Pisístrato poderia promover a manutenção de seu poder sem precisar utilizar a

força armada e sem os riscos de uma crise interna e a possibilidade de um confronto entre

citadinos e camponeses, acontecimento que abalaria seu governo, como abalou o de Sólon51.

É importante também a ciência de que Pisístrato aumentou a participação política de grupos

menos abastados – como os thêtes – tendo permitido que participassem mais ativamente da

assembléia. Com esta atitude, o tirano distribuía o poder, mas na verdade enfraquecia todas

as forças; esta falsa noção de poder propiciou que nenhum indivíduo ficasse mais poderoso

que outro, garantido assim a soberania da tirania. Agradando tanto aos ricos quanto aos

pobres, Pisístrato não conhece muitas opiniões contrárias ao seu governo por parte do demos:

“Assegurou os cargos civis e militares à nobreza, e, simultaneamente, colocou o pequeno

camponês em patamares menos perversos, um pouco mais dignos e seguros.” (CHASIN,

2007:135-136).

Uma passagem curiosa – ainda no fragmento XVI – é narrada por Aristóteles para

elucidar a relação do tirano com seu povo. O ocorrido se dá em uma das saídas de Pisístrato

51 Ressaltamos que Pisístrato sempre agiu em conformidade com as leis – a maioria delas elaboradas durante a legislatura de Sólon – e, de acordo com Aristóteles, na obra Constituição de Atenas, procurava aplicá-las para todos, assim como Sólon havia feito anteriormente.

Page 89: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

88

da cidade para visitar os habitantes da zona rural, seu principal alvo político e ideológico:

Pisístrato, admirado ao avistar alguém escavar e preparar um terreno totalmente pedregoso, ordenou a seu escravo que lhe perguntasse o que ele extraía daquele chão. O homem respondeu: “infortúnios e sofrimentos em quantidade, e desses infortúnios e sofrimentos Pisístrato devia receber o dízimo”. O homem, portanto, retrucou não o reconhecendo, porém Pisístrato, encantado com sua franqueza e dedicação, isentou-o de tudo. 7. Em geral, durante seu governo não atormentou a multidão em nada, antes sempre manteve a paz e velou pela tranqüilidade; por isso mesmo, difundira-se a fama de que a tirania de Pisístrato era como a vida no tempo de Cronos (...). 8. O mais importante de tudo o que foi dito era seu caráter popular e humanitário. Em geral, com efeito, dispunha-se a administrar tudo em conformidade com as leis, sem se conceder nenhuma vantagem. Certa vez, intimado em um processo de homicídio perante o Areópago, apresentou-se pessoalmente para sua defesa, mas o denunciante, amedrontado, não compareceu (Aristóteles, Constituição de Atenas, XVI, 7, 8).

Com estas atitudes – agradando os menos abastados e cultivando o medo da sua imagem

àqueles que o acusavam – não é à toa que Pisístrato tenha permanecido no poder até sua

morte52. Aristóteles – ainda neste mesmo fragmento – menciona algumas outras tentativas de

derrubada de sua tirania, destarte Pisístrato retomava o poder facilmente. Na última parte

deste fragmento, o filósofo constata as leis brandas que existiam naquela época acerca dos

tiranos:

10. Naquela época, as leis atenienses respeitantes aos tiranos eram, em geral, amenas, particularmente a que foi baixada contra o estabelecimento da tirania. Com efeito, eles tinham a seguinte lei: “Estas são as ordenações ancestrais dos atenienses: se alguém se insurge com o fim de ser tirano, ou se alguém auxilia o estabelecimento da tirania, ele próprio mais sua descendência ficam privados de seus direitos.” (Aristóteles, Constituição de Atenas, XVI, 10).

Pisístrato, desde o estabelecimento de sua tirania, viveu trinta e três anos,

permanecendo dezenove no poder e o restante entre as idas e vindas de seus exílios (XVII,

1). Com esta contextualização histórica da política ateniense, vemos como a política tirânica

influenciou a cultura helênica e também como por esta foi influenciada.

52 É importante ressaltar que raríssimas foram as vezes que governantes morreram em suas camas já na velhice em toda a Antiguidade, principalmente tratando-se de um tirano.

Page 90: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

89

2.3. A difusão da memória religiosa através da questão artística: as representações

dionisíacas na cerâmica ática do período arcaico

O que pretendemos com este tópico é inserir Dioniso e o dionisismo neste contexto

de crise social e de ascensão à tirania. José Antonio Dabdab Trabulsi nos aponta que Dioniso

passou a ser primordial somente com Pisístrato, já que Sólon representava uma aristocracia e

não se colocava ao lado do demos (TRABULSI, 2004:98). Com a ascensão das tiranias – de

um modo geral – as cidades conheceram a explosão cultural e artística. Como Atenas obteve

uma evolução econômica tardiamente, foi somente com Pisístrato e seus filhos que a cidade

sofreu uma evolução cultural, haja vista que as primeiras compilações das epopéias

homéricas foram realizadas neste período.

Juntamente com esta ebulição cultural, a religiosidade sofreu uma profunda

transformação em sua configuração: grosso modo, ela modificou-se de aristocrática para

popular. Porém, o processo não pode ser explicado tão levianamente. Embora a tirania de

Pisístrato fosse moderada, era sim uma tirania que atendia aos interesses de uma aristocracia

– mesmo que esta já não fosse a mesma aristocracia de outrora. Pisístrato ergueu várias obras

e promoveu vários festejos em homenagem à deusa Atena, divindade políade por excelência,

entretanto estabeleceu também uma “liberdade” quanto ao culto de divindades. Deuses que

anteriormente eram veementemente proibidos pela polis aristocrática passaram a ser

cultuados livremente, mesmo entre os segmentos menos abastados:

Agora, ao invés de seguir uma solução pela austeridade, ao invés de rezar a Zeus com mais ardor e respeitar os preceitos religiosos com minúcia, os agricultores podiam contar com a ação transformadora do tirano “demagogo”, que lhes oferece outros remédios, inclusive a possibilidade de rezar para outros deuses, deuses que fossem sentidos como mais “seus” (TRABULSI, 2004: 93).

Não podemos cair no equívoco de enxergarmos uma simples relação de poder por

parte do tirano, o ser maldoso que quer dominar ideologicamente seu povo através de suas

crenças. Isto engessaria o debate. Partiremos do princípio de que nossas fontes colocam o

tirano como sendo um habitante da montanha, dos campos distantes dos centros urbanos, por

isso ele mesmo um ser regido por divindades cthônicas. Pisístrato não era somente um

governante manipulador, ele era o próprio agente de seu segmento no poder, que manipula e

também é manipulado por uma tradição religiosa que abarca, em um primeiro momento,

Page 91: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

90

somente sua gente; após a ascensão ao poder, todos os outros estratos da sociedade políade.

Ao tomar a atitude de aproximar os ritos chtônicos do seio da polis, além de

aproximar a própria população rural da vida urbana, Pisístrato também passa a ter sob

controle diversos ritos que antes eram praticados longe do conhecimento dos governantes.

Um rito rural não sofria o mesmo controle social de um rito praticado em um ambiente

urbano, fugindo ao controle do governante. Trazendo o culto cthônico de Dioniso para

dentro das muralhas da polis, Pisístrato obtém uma dupla vantagem: ao mesmo tempo em

que transforma este culto em uma resistência aos antigos ideais aristocráticos, ele também

traz para perto de sua regência um culto que não fazia frente ao poder oficial. Dioniso é

integrado no sistema da cidade ao mesmo tempo em que é favorecido por ele, com inúmeros

incentivos artísticos, como veremos adiante com algumas esculturas e cerâmicas.

Trabulsi enumera todas as atitudes que o tirano moderado tomou quando da

aproximação do dionisismo rural dos meios urbanos. Entre eles, podemos citar a

reorganização das festas dionisíacas, com a criação das Grandes Dionisíacas e a inserção do

culto ao deus no cronograma de festas oficiais de Atenas; desenvolvimento dos concursos

trágicos em honra ao deus, que irão conhecer seu apogeu no século seguinte; construção de

várias estátuas e monumentos representando o deus, como a passagem que narra a vinda de

uma imensa estátua de madeira de Dioniso de Eleutherai, trazida da Beócia; o aparecimento

da representação do deus na cerâmica, que se intensificará com o passar das décadas, ao

mesmo tempo que abarcará duas camadas da sociedade não privilegiadas, representando

juntamente com Dioniso (camponeses), Hefesto (artesãos) (TRABULSI, 2004:95).

Assim como a passagem relatada por nossas fontes quando a própria deusa Atena

conduz Pisístrato de volta à cidade – o que mostra a religiosidade em contato direto com a

polis – em algumas estátuas de Dioniso percebe-se – segundo uma tradição – os traços do

próprio Pisístrato (TRABULSI, 2004:95). Desta forma, temos o governante aliado à crença

religiosa, para a manutenção de uma memória governamental e uma afinidade do governante

com as divindades. A aristocracia teve de passar a se “acostumar” com estas divindades, e

em muitos casos também se aproveita delas. Dioniso, antes uma divindade livre que corria

errante pelos bosques, passa a ser confinado em lugares do sagrado:

A evolução do dionisismo ateniense no século VI me parece, portanto, o esforço mais importante na sua integração à cidade. Da mesma forma que os mistérios, o dionisismo era realizado, de início, fora dos quadros sociais e políticos aristocráticos; o que o tornava ainda mais “livre” que os

Page 92: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

91

mistérios é que ele não tinha um “lugar” preciso. Rural, e não citadino, além disso, o dionisismo era a corrente mais dificilmente recuperável pela cidade aristocrática. A polis, atribuindo-lhe santuários e teatros, de certa maneira o aprisiona, dando-lhe lugares. A obra da tirania ateniense se apresenta, assim, na longa duração, como o maior esforço possível no processo de reelaboração da ideologia aristocrática, em vistas de sua permanência no século V e além dele (TRABULSI, 2004:96).

Para tentarmos compreender a inserção da memória religiosa no cotidiano da polis

ateniense, trabalhamos com as representações de Dioniso por meio de algumas imagens

presentes na cerâmica. Devemos de antemão alertar que não se trata de uma profunda análise

arqueológica destes artefatos, muito menos se trata de um debate teórico-metodológico

acerca dos métodos arqueológicos de análise. Pretendemos somente levantar uma discussão

iconográfica53 das representações divinas através de uma História das Imagens, com um

acervo arqueológico que representa Dioniso por intermédio de imagens ou, como coloca

Haiganuch Sarian: “Esta é a grande especificidade da maioria dos documentos de cultura

material da Antiguidade Clássica: não são objetos arqueológicos como quaisquer outros; eles

são portadores de imagens.” (SARIAN, 2005:13). A História das Imagens e os estudos

iconográficos foram muito negados quando do surgimento das idéias positivistas e

historicistas, e somente com o início das reflexões sobre hermenêutica e semiótica, realizadas

pelo pós-estruturalismo, é que este campo da ciência passou a ser valorizado:

A representação direta do material visual está cada vez mais afetada pela aplicação dos critérios da “história do gosto”. Contudo, no discurso acadêmico este tem um lugar pequeno; as linhas de batalha são (obviamente) entre a recuperação histórica (a tentativa de interpretar o material visual como deveria ter ocorrido, quando ele foi feito, seja pelo autor, por seus contemporâneos ou por ambos) e o engajamento crítico direto de vários tipos, com freqüência, mutuamente irreconciliáveis. Esses incluem, em primeiro lugar, a abordagem que admite a possibilidade de acesso intuitivo, direto, à “personalidade artística” e ao “processo criativo” (...); segundo, uma preocupação teoricamente engajada, pós-estruturalista, com a hermenêutica visual; e, terceiro, uma abordagem que enfatiza a continuidade essencial da arte, de forma que a arte de qualquer período do passado não possa ser compreendida além do contexto de sua relação com a prática corrente na arte e por extensão, em nenhum meio visual (GASKELL, 1992:258).

53 Por iconografia compreendemos uma representação ou um conjunto desta com o fim de produzir convenções e significados específicos que tornem o objeto representado reconhecível. Como exemplo podemos citar as características individuais que diferenciam os santos católicos entre si ou os símbolos que identificam os deuses gregos; no caso de Dioniso o tirso, a vinha ou o cântaro que guarda seu vinho.

Page 93: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

92

Frances Yates aponta-nos que os antigos já possuíam uma noção clara da importância

da imagem na descrição dos acontecimentos: “(...) Plutarco diz que: ‘Simônides chamava a

pintura de poesia silenciosa e a poesia, de pintura que fala, pois as ações são pintadas

enquanto ocorrem, já as palavras as descrevem depois de terem acontecido’” (YATES,

2007:48). No estudo desta iconografia mais vale o mito transmitido pela tradição visual do

que a arte e a estética com que o tema foi tratado; sua função semântica predomina sobre sua

função estética (SARIAN, 2005:120). Sarian aponta-nos também diferentes orientações de

várias escolas sobre o estudo da iconografia grega e as principais posições metodológicas

quando da análise destas imagens:

1) Estudo paralelo das representações figuradas e da tradição literária refletindo uma total dependência das imagens com relação aos textos; (...) 2) Estudo da função semântica das imagens, valorizando os esquemas iconográficos e detectando códigos especiais de leitura e de interpretação; (...) 3) Estudo dos critérios de identificação de uma imagem e da sua transmissão, através da constituição de um repertório exaustivo das representações figuradas respeitando a especificidade das várias categorias de objetos arqueológicos (SARIAN, 1985:83).

Concordamos com Sarian quando, no mesmo artigo supracitado, afirma que nenhuma

das teorias em separado pode dar resultados relevantes ao estudo da iconografia grega;

somente com uma abordagem comparativa entre as fontes figuradas e as fontes textuais –

quando estas estão disponíveis – é que poderemos chegar a um conjunto de dados para

montarmos o processo histórico em questão (SARIAN, 1985:83). Gilberto da Silva

Francisco alerta-nos para o fato de que a importância exacerbada da escrita em detrimento do

“artístico” tratou de um projeto imperialista europeu de civilizar sociedades que ainda não

possuíam alfabeto (FRANCISCO, 2007:33), como alguns grupos na África e na Oceania;

isto se inicia desde o apogeu positivista, na divisão da cronologia histórica em “pré-história”

e “história”. Na Pré-história, as figuras eram primordiais como expressões; porém mesmo

com o surgimento da escrita, esta não diminuiu a importância da imagem, como atenta Paulo

Knauss:

É preciso atentar ainda para o fato de que, desde os tempos em que se fixou a palavra escrita, o novo código não veio substituir a imagem. A convivência entre expressão visual e expressão escrita sempre foi muito próxima. Ao longo da história das civilizações, são inúmeros os exemplos em que se percebe como os registros escritos acompanham os registros visuais. Velhas formas de escrita, como os hieróglifos, demonstram essa

Page 94: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

93

proximidade. Isso equivale a dizer que a história da imagem se confunde com um capítulo da história da escrita e que seu distanciamento pode significar um prejuízo para o entendimento de ambas. Reconhecer isso implica admitir que imagem e escrita sempre conviveram (KNAUSS, 2006:99).

Quando não há fontes textuais ou quando a iconografia difere da escrita, faz-se

necessário um cotejamento entre os dois tipos de documento e pontuar a distinção de ambos,

não podendo colocar um documento acima do outro. Ambos são documentos diferenciados e

devem receber tratamentos metodológicos distintos, como alerta Haiganuch Sarian em sua

tese de Livre-Docência:

Vale dizer, não se pode de antemão comparar e equiparar tradição textual com tradição imagética porque se trata de produtos originados de práticas intelectuais e técnicas, de contextos e grupos sociais bastante diferenciados em relação ao meio social da produção escrita. Neste sentido, o estudo da imagem deve levar rigorosamente em conta os vários tipos de objetos que serviram de suportes dessas imagens ou que eram eles próprios imagens tal como os exemplares da estatuária (SARIAN, 2005:12).

As primeiras representações de Dioniso em vasos gregos são tardias; datam do

primeiro quartel do século VI ou até dos últimos anos do século VII e foram fabricadas em

Corinto (TRABULSI, 2004:110). A explicação para estas representações não terem

acontecido anteriormente – já que as imagens de deuses já apareciam em vasos do final do

século VIII – reside primeiro no fato de Dioniso não ser uma divindade antiga do panteão e

também pela já discutida ideologia aristocrática que predominava nestes séculos. As

representações do deus em Atenas são tardias, principalmente se comparadas a Corinto.

Enquanto o tirano Cipselos já havia iniciado seu governo em Corinto, Atenas ainda vivia sob

a égide do governo aristocrático, conforme nos explica Trabulsi:

(...) descompasso temporal que se explica pelo duplo “atraso” de Atenas e relação a Corinto; inicialmente, atraso na produção e exportação de cerâmica pintada, que apenas nesse momento começa a tomar o lugar eminente ocupado por Corinto até então; em seguida, “atraso” na evolução social e política, já que a mudança de regime, condição necessária para a difusão do dionisismo, acontece mais tarde (TRABULSI, 2004:111).

Embora as primeiras representações dionisíacas fossem realizadas em Corinto, é em

Atenas que a cerâmica atinge uma perfeição e é produzida em larga escala, como forma de

aquecimento da economia. No período clássico, as representações imagéticas de Dioniso

Page 95: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

94

alastram-se por toda a cerâmica ateniense54. Uma grande especificidade dos ceramistas

atenienses é a presença de figuras humanas ou humanizadas em seus vasos, o que os

tornavam muito mais criadores de imagens do que decoradores de vasos: “A imagem e a

imagística são fenômenos essencialmente atenienses, qualquer que seja a origem dos artistas,

pois é sobretudo no meio intelectual de Atenas que não se podia conceber criação artística

sem a participação da figura humana.” (SARIAN, 2005:119). Esta figura humana era

representada como forma de identificar o público com a cena ao ser retratada e também para

a manutenção de uma memória mítica. Estas técnicas também foram muito utilizadas no

teatro:

Finalmente, se a escrita está na origem da transmissão das versões do mito e da religião dos produtos textuais, a produção imagética, articulada e se unindo ao objeto, era transmitida por tradição oral – em alguns casos através de uma operação visual de grande impacto, como o espetáculo teatral. Os diferentes ofícios praticados só podiam funcionar através de técnicas e saberes que revelam a existência de uma verdadeira memória do artista-artesão, criador dos artefatos imbuídos, através das imagens, de representações simbólicas (SARIAN, 1999:70).

Estas primeiras imagens de Dioniso representam o deus como um homem campestre

e rústico, sempre acompanhado de daimones55, em florestas, o que ressalta a idéia da

imagem campestre da divindade, que serviu de foco na política de promoção dos meios

rurais conduzida pela tirania. Segundo Trabulsi, as primeiras imagens seguras de Dioniso

fora dos meios campestres foram confeccionadas por volta de 580, por Sófilos; o pintor o

representa juntamente com outros numerosos personagens presentes no casamento de Peleu e

Tétis56 (TRABULSI, 2004:111). Um vaso muito estudado e discutido por estudiosos da

cultura material é o vaso François, elaborado por Kleitias, cerca de dez anos mais recente

54 De acordo com Trabulsi (2004), conhecemos mais de seiscentos vasos de figuras negras que tratam de cenas com o cunho dionisíaco, em um arsenal de vinte mil vasos. Já nos vasos de figuras vermelhas são milhares as representações que simbolizam Dioniso ou seu culto. Com este número de cerâmicas, torna-se impossível uma análise da totalidade dos vasos. Existe um conjunto de vasos de iconografia riquíssima, representando as festas Leneas, um ritual ateniense que reverenciava Dioniso. Para saber mais ver: FRONTISI-DUCROUX, Françoise. Le Dieu-Masque: une figure du dionysos d’athènes. Paris: La Découverte, 1991. 55 Figuras com um aspecto bestalizado. 56 Peleu e Tétis são os pais do herói da epopéia Ilíada, Aquiles. Tétis é uma ninfa muito antiga, filha de Nereu; Peleu é o rei da Tessália e neto de Zeus. O casamento foi arranjado por seu avô, e ocorreu no monte Pélion. Todos os deuses foram convidados, à exceção de Éris, a deusa da discórdia. Mesmo assim, esta compareceu e deixou na cerimônia uma maçã com os escritos: “para a mais bela”. Três deusas foram candidatas: Hera, Atena e Afrodite. Páris – príncipe de Tróia, filho de Príamo – foi escolhido para julgar a beleza das deusas. Persuadido por Afrodite, que lhe prometeu a mais bela mortal, Páris decide por dar a maçã à deusa, causando a discórdia entre os divinos. Como prêmio Afrodite lhe oferece Helena, rainha de Esparta, que é raptada pelo príncipe e levada a Tróia. Este incidente dá início à guerra.

Page 96: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

95

que o de Sófilos. Em ambos os antiqüíssimos vasos, percebemos um Dioniso cabeludo e

barbudo vestido do chiton, e sempre fazendo parte de uma múltipla gama de personagens.

Pelas datas é concluído que as aparições de Dioniso iniciam-se na tirania de Pisístrato,

comprovando a hipótese do uso desta divindade cthônica pela política tirânica.

O menadismo é uma prática que demora certo tempo para aparecer nas

representações de cerâmica. Thomas Carpenter, na sua obra Art and Myth in Ancient Greece,

aponta que, no início das representações iconográficas, Dioniso é acompanhado por ninfas57;

somente da metade para o final do sexto século é que as mênades aparecem nas imagens

(CARPENTER, 1991:15). O pintor de Amásis inicia em 540 as cenas de Dioniso em cortejo

com as mênades, colocadas normalmente ao lado de sátiros, serpentes ou panteras; isto

mostra que o ritual em honra a Dioniso – muito retratado no teatro do século V, como

veremos no próximo capítulo – já era conhecido pelos pintores atenienses, mais uma prova

da política pisistrátida de aproximação da religiosidade cthônica. Já o transe e as práticas

rituais do modo que ficaram conhecidas só aparecem em vasos a partir da última década do

século VI (TRABULSI, 2004:117), já que podemos aproximar o termo mênade da palavra

grega manía (loucura, possessão divina).

É perceptível como a imagem de Dioniso transforma-se com o passar das décadas do

século VI. As imagens presentes nos primeiros vasos de Sófilos e Kleitias, que mostravam o

deus com um aspecto quase selvagem, vão se alterando para tornar a representação do deus

mais aceitável aos olhos da polis; acontece uma tentativa de “civilizar” o deus e torná-lo

urbano, abolindo o aspecto selvagem deste deus rural para adequar-se aos modos da cidade.

O deus que era rústico passa a ser à imagem de um cidadão ateniense – embora ainda

continue com representações de seu ritual, porém com os sátiros em uma imagem menos

bestializada e as mênades mais calmas e comportadas. No final do século V, temos uma

transformação no rosto do próprio deus, que passa de um senhor maduro para um jovem

efebo: “Mas a mudança de longe mais evidente que ocorre nas imagens dionisíacas é a que

se refere ao próprio deus. Ele era o deus macho, viril, muitas vezes hierático, sóbrio, por

vezes ameaçador; ele se torna o deus jovem e imberbe, muitas vezes efeminado.”

(TRABULSI, 2004:121-122). Esta questão de Dioniso ser rejuvenescido no decorrer do

século V também é colocada por Walter Burkert:

57 Para uma análise da trajetória das ninfas pela religiosidade grega ver: BARRERA, J. C. Bermejo e PLATAS, F. Diez. Lecturas del mito griego. Madri: Ediciones Akal, 2002.

Page 97: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

96

No século VII e VI, as pinturas idealizadas nos vasos mostram Dioniso como um velho barbudo, num traje comprido, segurando a sua taça especial para o vinho, kántharos, na mão. Em meados do século V, Dioniso, à semelhança de Hermes, sofre um rejuvenescimento. Como no hino “homérico”, Dioniso é agora representado como jovem e a maior parte das vezes nu (BURKERT, 1993:327).

Percebemos que Burkert também concorda com nossa constatação acerca do Hino Homérico

a Dioniso ser escrito no período clássico. É certo que o hino descreve um Dioniso jovem,

mais condizente com o período clássico, já que no período arcaico o deus ainda era

representado como um homem maduro.

Outra forma de aproximação de Dioniso aos costumes dos cidadãos políades

promovida por Pisístrato é a imagem do deus aliada ao herói cívico, no caso Héracles. A

tirania lançou mão de idealizações de heróis para alavancar a ideologia de força dos

governos tirânicos e é ressaltada por Clístenes, quando este – com o fim da tirania ateniense

– instituía ideais democráticos. O herói Héracles, que após conseguir persistentemente

realizar os doze trabalhos impostos por sua madrasta Hera, é recebido no Olimpo com as

honras de deus. A obediência e determinação de Héracles passam a ser louvados como os

ideais que um cidadão também deveria seguir. Já o Dioniso primordial não tem regra nem

obediência, muito menos determinação para realizar algo que não queira. A figura de

Dioniso aparecerá juntamente com a de Héracles exatamente para incutir este mesmo ideal

democrático ao deus errante. Porém, a imagem de Héracles praticamente desaparece da

cerâmica com o fim das tiranias, enquanto que a imagem de Dioniso só aumenta,

principalmente quando da apropriação do deus pela tragédia ateniense do século V. A

aproximação entre Dioniso e Héracles certamente refletia o ideal da comunidade ateniense:

Progressivamente se atenuavam as distinções nítidas entre esta divindade e o mundo religioso oficial. Dioniso, deus anti-social, extra-urbano, se aproxima, na concepção coletiva, de Héracles, herói cívico, da cidade. E esta associação é sem dúvida decorrência de um longo processo de nivelamento político, social e religioso, tanto mais importante porquanto se situa, cronologicamente, neste final de século VI antes de Cristo, em que Clístenes instituía em Atenas os fundamentos da democracia (SARIAN, 2005: 127).

Antes de nos aprofundarmos nas análises iconográficas de algumas imagens

anforológicas, é importante situarmos um personagem primordial quando da análise de

Page 98: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

97

cerâmicas: a figura do pintor. Na introdução de sua obra L’autre Guerrier: archers,

peltastes, cavaliers dans l’imagerie attique, François Lissarrague aponta para a necessidade

de situar o pintor de cerâmica – seja ele anônimo ou com obras assinadas – dentro de uma

realidade social, influenciada por ela e a influenciando. Para o autor, não podemos cair no

equívoco de acreditarmos piamente que as obras pintadas representavam a realidade social

total da época, haja vista a não representação de Dioniso no período homérico, mesmo com a

maioria da população sendo altamente ruralizada; o que podemos realizar quando analisamos

alguma arte antiga é uma tentativa de compreensão de como este pintor representava a sua

realidade, principalmente se tratando da Antiguidade grega, época em que os pintores

possuíam certa autonomia na confecção de suas obras:

Como o pintor possuía maior liberdade em sua própria maneira de compor e construir imagens, como é que este pode inventar ou modificar os padrões ou criar novas composições? Ou, inversamente, em que medida se vê obrigado a repetir padrões já conhecidos de antemão por seu público e qual é o peso das convenções pictóricas para assegurar que a imagem é entendida por aqueles a quem se destina? Finalmente, em outro nível, qual é o papel da clientela, da demanda na escolha e tratamento dos indivíduos? (LISSARRAGUE, 1990:4-5).

De acordo com Anthony Snodgrass (2004), o pintos deve ser colocado como um indivíduo

que, embora tenha técnicas e métodos padrões, também possui gostos e preferências

pessoais, e muitas vezes retrata a sua realidade e suas preferências individuais.

Sem dúvida esta é uma discussão pertinente. Não podemos afirmar que a realidade

está retratada em sua totalidade naquelas cerâmicas antigas. O pintor exerce uma relação de

trabalho e deve atender os interesses de sua demanda, e não necessariamente o serviço social

de narrar uma realidade contemporânea sua. Vários especialistas – como o próprio

Lissarrague – afirmam que a imagem de Dioniso é muito mais uma invenção dos próprios

pintores áticos do que do poder oficial. Entretanto, algumas constatações podem ser feitas

com certa segurança. A multiplicação de representações de Dioniso durante e após o período

tirânico nos leva à conclusão de que as tiranias ajudaram neste alastramento, utilizando o

deus como solvente dos ideais aristocráticos. As diferenças de Dioniso nos primeiros vasos

do início do século VI para os vasos do final deste século e do século seguinte –

confeccionados por inúmeros pintores distintos – nos leva a crer em uma modificação no

padrão de representação do deus.

Também é primordial avaliarmos a importância desta cerâmica para o cotidiano

Page 99: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

98

grego antigo, em especial o ateniense. Ao contrário da Modernidade, a arte na Antiguidade

não era utilizada somente como objeto decorativo, como uma forma de ostentação burguesa

na contemporaneidade. Embora os eupátridas e os cidadãos abastados fossem os grupos com

mais facilidade de adquirir estas obras, elas eram utilizadas para serviços domésticos

cotidianos e não somente como adorno. As ânforas decoradas realmente guardavam água ou

vinho. Os potes iam ao fogo para cozimento e toda esta bela cerâmica produzida por

talentosos artistas era utilizada na vida do oikos.

É em vista deste contexto que pretendemos trabalhar, e a Nova Arqueologia também

respondeu a este anseio, com a chamada Arqueologia Contextualista:

A Arqueologia Contextualista é uma linha que reabilita a interpretação histórica no seio da discussão arqueológica (após críticas oriundas da “Nova Arqueologia”), que busca compreender o objeto material a partir das suas relações dinâmicas na sociedade em que se insere; entretanto, conforme salienta Michael Shanks, o objeto não deve ser tratado como refém do contexto. Novamente então, uma comunicação entre o objeto e estruturas mais amplas com as quais ele interage (FRANCISCO, 2007:55).

Alguns especialistas colocam a imagem como uma espécie de linguagem; a imagem falaria e

demonstraria um pensamento, assim como a escrita. Esta opinião é demasiadamente

perigosa, pois poderíamos investir no erro de classificarmos fontes imagéticas e fontes

escritas em um mesmo campo analítico. Embora a imagem diga-nos algo, esta possui

especificidades que devem ser levadas em conta:

A contribuição da lingüística tem permitido programar uma série de conceitos para a análise da imagem, mas não parece possível considerar a imagem como uma linguagem no sentido estrito do termo: podemos identificar elementos, como a sua repetição, poderia ser descrito como frases. Existe uma sintaxe da imagem, mas as suas regras de construção são muito mais abertas e mais variáveis do que os de uma linguagem articulada, organizada linearmente no tempo (LISSARRAGUE, 1990:9).

É importante ressaltarmos também que a descrição e projeção de imagens já existiam

para os próprios gregos; a ekphrasis é a palavra grega utilizada para denominar o estudo

descritivo de representações projetadas em imagens. Porém, François Lissarrague alerta-nos

para a incompatibilidade deste conceito grego para análise de imagens desenhadas em

cerâmica. De acordo com o autor, ekphrasis era utilizada pelos helenos para analisar a visão

do espectador pelas representações projetadas pelo teatro. Mais tardiamente ekphrasis passou

Page 100: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

99

a ser utilizado também para descrever estátuas, mas nunca para objetos móveis, como vasos

(LISSARRAGUE, 1990:7). Talvez os gregos não possuíssem esta noção de descrição de

imagens através de desenhos ou, caso possuíssem, não concebiam uma palavra específica

para designar a prática.

Iremos apresentar aqui algumas imagens míticas. Como já foi discutido, o mito não é

uma fantasia ou, de acordo com Vernant (2001), não se trata da imaginação individual de um

poeta ou, neste caso, de um ceramista ou pintor. Toda a sociedade é influenciada por estas

imaginações que são os mitos, e os pintores agregam estas informações para realizarem suas

próprias leituras do que seria este mito. Também não podemos nos equivocar e afirmar que

os pintores eram simplesmente manipulados pelo imaginário. Estes trabalhadores faziam

parte de uma gama social complexa; trabalhavam com uma prerrogativa acerca da imagem

dos deuses mas também ajudavam a tecer a imagem destes.

As imagens com as quais nos deparamos neste trabalho remetem ao termo “mitema”,

de Gilbert Durand (2001), aquela teia de divindades que se interligam por afinidades ou

símbolos em comum. Em nenhuma cerâmica

encontramos Dioniso sozinho; o deus sempre está

acompanhado por outras divindades que, por algum

motivo, se identificam com ele: sejam os sátiros de seu

culto, sua amada Afrodite ou seu marido, o deus

trabalhador Hefesto.

Analisemos, então, algumas imagens

iconográficas que mostram as diversas facetas de

Dioniso58. É importante ressaltar que as imagens sobre as

quais vamos nos debruçar não representam a totalidade

de imagens do deus. Durante o período arcaico até o fim

do período helenístico, as representações dionisíacas

surgiram e se intensificaram em vasos e afrescos, e seria

impossível em uma dissertação abarcar todas as espécies de cerâmica59. As primeiras quatro

58 As imagens aqui apresentadas foram retiradas do LIMC (1981); da obra Dionysian Imagery in Archaic Greek Art: its development in black-figure vase painting (1986), de autoria de Thomas H. Carpenter; do livro Art and Myth in Ancient Greece (1991), do mesmo autor; da obra de Françoise Frontisi-Ducroux, com o título Le Dieu-Masque: une figure du Dionysos d’athènes (1991) e da tese de Livre-Docência da professora Haiganuch Sarian, intitulada Arqueologia da Imagem: expressões figuradas do mito e da religião na Antiguidade clássica (2005). 59 Além da cerâmica, Dioniso foi fortemente representado nas moedas, quando da sua difusão e popularização. Não trataremos aqui destes artefatos por uma questão de espaço e também porque não há representações do

Page 101: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

100

imagens apresentadas foram também analisadas na tese de Livre-Docência de Sarian60. A

primeira trata-se do vaso do pintor Sófilos61 – que pode ser contemplado em uma imagem

panorâmica na página anterior – encontrado em Atenas e datado de aproximadamente 580 é,

como já foi dito, a imagem mais antiga de Dioniso encontrada até hoje. A cerâmica encontra-

se no British Museum, em Londres, com alguns pedaços ausentes, porém sem comprometer

a análise iconográfica. A cena da análise encontra-se na parte superior do vaso. No primeiro

lance de imagens.

De acordo com os especialistas, como Snodgrass (2004), Sófilos sempre teve

preferências por motivos heróicos ou de guerra. Desta forma, este vaso que iremos analisar é

incomum em sua produção. Pode ser simplesmente uma exceção ao estilo do autor, ou pode

ter sido encomendado por algum cliente, que pediu um tema específico. Ou ainda Sófilos

desejou retratar uma passagem mitológica que provavelmente estava sendo muito difundida

neste período – o casamento de Peleu e Tétis – já que o próximo vaso que iremos analisar – o

vaso François – também retrata o mesmo cortejo e data quase da mesma época do vaso de

Sófilos.

A cena que vemos retratada, como já elucidamos, é o cortejo nupcial de Tétis e Peleu

e vemos Dioniso junto a outros deuses do Olimpo – identificados com seus nomes – sem

uma posição de destaque, o que nos leva a concluir que neste primeiro momento, um pouco

anterior ao início do governo de

Pisístrato, o deus não é

primordial, e torna-se

personagem principal na

cerâmica ateniense somente com

o passar das décadas do governo

tirânico62. Já podemos identificar

em Dioniso o elemento vegetal,

como a planta – parece ser uma

deus nas moedas atenienses, e Atenas se traduz como o foco de nossa pesquisa. Para ver um estudo sobre as representações dionisíacas nas moedas gregas ver: FLORENZANO, Maria Beatriz Borba. “Notes on the imagery of Dionysos on Greek Coins”. In: Reveue Belgue de Numismatique. Bruxelas, v 151. p. 37-48, 1999. 60 As cerâmicas do dos pintores Sófilos e Kleitias, assim como o vaso do pintor de Leagros e do pintor Amásis. 61 Segundo Snodgrass (2004), Sófilos foi o primeiro artífice ateniense a assinar regularmente seus trabalhos, iniciando uma tradição que iria se tornar costumeira nos séculos seguintes. 62 Embora não seja consenso entre os especialistas que Dioniso foi uma prerrogativa dos tiranos, é perceptível que é com estes governos que as representações irão se acentuar, sobretudo na Ática.

Page 102: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

101

vinha, já com cachos – que o deus segura em sua mão direita. Sua figura barbuda e cabeluda

ainda é ruralizada e campestre e é representado descalço. Todavia, a imagem de Dioniso,

mesmo este estando barbudo, não choca. Não havia a intenção de colocar Dioniso como uma

figura bestial – como é o caso dos sátiros; a barba é um sinal de majestade e poder. É

perceptível também que Dioniso está em segundo escalão; provavelmente sua função está em

representar a vinha e o vinho, indispensáveis para uma ocasião como esta (TRABULSI,

2004:112). As obras assinadas – assim como este dinos de Sófilo, o vaso François, de

Kleitias e do oleiro Ergótimo – eram obras de grande valor, artigos de luxo (SARIAN,

2005:124), sempre decoradas com motivos mitológicos que enalteciam o imaginário mítico.

O vaso pintado por Sófilos tem a inscrição com os nomes das divindades presentes; este

costume começou a aparecer em artefatos do período geométrico63, destarte só irá se

popularizar no princípio do século VI (SNOGRASS, 2004:154-155). Esta tradição acabou

facilitando demasiadamente o trabalho dos arqueólogos e historiadores quanto a análise

iconográfica destas obras:

Dá-se para nós um passo importante quando os pintores gregos de vasos começam a incluir em suas obras inscrições que de fato se referem ao conteúdo da pintura, em vez de apenas assinalar o nome do autor. (...) Trata-se de algo que, sem dúvida, vai nos servir de apoio na interpretação das cenas (SNODGRASS, 2004:151).

È importante também compreendermos que

representar Dioniso nestes vasos – pois apesar de

muitos serem fabricados somente para a exportação,

estavam em um ambiente urbano – é uma forma de

marcar a energia do campo participando da cidade.

Desta forma, a tirania “jogava” com o imaginário

popular, as pessoas menos abastadas economicamente

sentiam-se fazendo parte da cidade e,

conseqüentemente, da participação da vida na polis.

Da mesma forma que o dinos de Sófilo, a

63 Período compreendido entre os séculos X a VIII. Constituí-se como um período da arte grega – sobretudo ateniense – e é caracterizado pela elaboração de figuras com motivos geométricos, diferente do que havia ocorrido nos períodos anteriores. Contudo, as figuras humanas aparecem nas cerâmicas somente no século VIII.

Page 103: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

102

cratera64 François65 – a segunda obra de cerâmica mais antiga que representa o deus –

também mostra a imagem de Dioniso de uma forma secundária, junto com outros deuses. A

imagem da página anterior – que mostra uma panorâmica de um dos lados do vaso –

encontra-se no Museo Archeologico de Florença e leva o sobrenome do arqueólogo que a

descobriu, Alessandro François, em um rico mobiliário de uma tumba etrusca em Chiusi

(SARIAN, 2005:128). Esta cratera é considerada um dos documentos mais ricos acerca da

questão de imagens de toda a Grécia.

O ambiente e a ocasião que iremos analisar são os mesmos da cerâmica anterior, o

casamento de Peleu e Tétis. Dioniso está na procissão nupcial juntamente com outras

divindades e, embora esteja faltando um pedaço do vaso bem na parte que representa seu

rosto, percebemos que o deus é figurado de frente e vestido com uma máscara, mostrando

que o pintor Kleitias tinha plena consciência do culto tradicional do deus, que apresentava

Dioniso com o aspecto de

uma máscara66 (SARIAN,

2005:124). A máscara,

embora não esteja

completamente visível,

possui olhos fixos na

pessoa que o observa, olhos

grandes, que demonstram

força e firmeza. Este tipo

de olhos, chamado pelos especialistas de “profiláticos”, aparecem a partir do século VII

(FRONTISI-DUCROUX, 1991:178). Este rosto com uma máscara foi um elemento utilizado

tanto no ritual quanto depois, quando das representações teatrais. Nela percebemos a relação

entre a presença e a ausência: a ausência do deus é suprida com uma máscara que o

representa e causa a impressão da presença:

64 As crateras eram recipientes onde se armazenavam líquidos – geralmente vinho – e onde se misturava o vinho a água para serem servidos nos simpósios e festas. 65 Esta cratera é excepcionalmente elaborada, contanto com doze cenas míticas distintas. Vários são os especialistas que já analisaram exaustivamente as representações presentes neste vaso; neste trabalho vamos analisar somente duas partes. Para ver uma análise completa do vaso François ver: CARPENTER, Thomas H. Art and Myth in Ancient Greece. Londres: Thames and Hudson, 1991. 66 Segundo Albin Lesky (1990), em um dos cultos mais primitivos do deus, uma máscara era pendente em um mastro e adorado por indivíduos também de máscara. Desta forma, podemos realmente falar de um deus-máscara.

Page 104: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

103

Uma separação impõe-se, porém, entre a máscara cênica, acessórios cuja função é resolver, assim como os outros elementos do vestuário, problemas de expressividade trágica, e, de um lado, as mascaradas rituais em que os fiéis se fantasiam com fins propriamente religiosos e, de outro, a máscara do próprio deus, que, por sua face única com olhos estranhos, traduz alguns aspectos próprios de Dioniso, essa força divina cuja presença parece inelutavelmente marcada pela ausência (VERNANT; VIDAL-NAQUET, 1999:161).

O deus parece ser representado com uma noção de movimento; ele corre rapidamente

para a direita, enquanto os outros deuses parecem bem mais calmos. Na mão direta o deus

segura uma vinha com um cacho de uvas na ponta, como podemos ver no detalhe. Com estas

características presentes, podemos aplicar o conceito de representação discutido no primeiro

capítulo: a forma de identificação do deus vem através de elementos que já estão no

imaginário popular, sem que ninguém houvesse

manipulado. O que os pintores fazem é se

apropriarem de elementos que já eram conhecidos

pelo povo como parte de Dioniso – como a ânfora de

vinho e o cacho de uvas – e representarem estes

elementos em suas obras, como forma de

identificação do deus. Estas caracterizações estão

presentes em praticamente todos os vasos; a imagem

do deus independe da vontade dos pintores, e estes

têm de representar o deus conforme as pessoas o

identificam.

Pela máscara e pela longuíssima barba é

perceptível a imagem rústica do deus, principalmente se comparado às outras divindades que

compõem o cortejo, todas com formas menos selvagens. Entretanto, Dioniso representa a

ligação entre os deuses e os mortais – ligação representada também pelo próprio casamento

de uma deusa com um mortal:

Com o corpo de perfil, ele caminha entre os outros deuses, em posição central – que a cratera exige – e integrado com os Olímpicos e seu cortejo. Identificável pelos seus atributos, a longa túnica jônica e a ânfora de vinho, seu presente para os humanos. Está no casamento de Tétis e Peleu, cuja união – uma deusa e um mortal – é paradigmática; Dioniso anda com os deuses. Mas ele vira o rosto dos deuses para olhar para os homens. A ação oferece a imagem do deus ao espectador, faz com que o bebedor da cratera

Page 105: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

104

fite o deus, provocando uma evasão de imagem, evasão parcial, limitada ao rosto. Dioniso está, tanto nesta obra como em muitas outras, para marcar o diferencial entre os próprios deuses, e sua relação especial com os seres humanos. O contato com estes é visual, e a influência de seu olhar causa o dobro da potência que ele exerceria através do vinho (FRONTISI-DUCROUX, 1991:177).

Esta ação do deus, de se virar para quem o olha, é no mínimo intrigante –

principalmente porque é o único ser divino do cortejo a fazer isto. Podemos concordar com

Jean-Pierre Vernant e Pierre Vidal-Naquet, que afirmam que esta é uma ação que une o

homem ao deus, pois quem olha Dioniso se sente como parte de seu cortejo:

(...) o rosto de Dioniso, repentinamente oferecido de frente, introduz uma ruptura surpreendente na regularidade do cortejo. Com seus olhos esbugalhados, ele fixa o espectador, que com isso se encontra colocado em posição de iniciado nos mistérios (VERNANT e NAQUET, 1999:175).

Em outra cena do mesmo vaso – já que o vaso conta com mais de 120 representações,

entre indivíduos e animais – Dioniso está próximo de Afrodite e ambos estão sob efeito do

vinho. Além de representar o mito que narra o relacionamento entre os dois, Thomas

Carpenter, em sua obra Dionysian Imagery in Archaic Geerk Art: its development in black-

figure vase painting, analisa que esta relação narra também a sexualidade de Dioniso, que

sempre foi considerado um deus da orgia e do sexo (CARPENTER, 1986:97). O vinho que

sempre acompanha Dioniso entorpece os homens e os fazem amar; o amor de Afrodite e a

embriaguês de Dioniso misturam-se neste vaso. Embora somente dez anos – ou um pouco

mais – separem o vaso de Sófilos do vaso de Kleitias, percebemos que no segundo Dioniso

possui uma importância maior, sendo representado duas vezes no mesmo vaso, em ocasiões

diferentes, junto com diversas divindades e em posições diferentes.

Estas primeiras representações de Dioniso iniciam uma longa tradição iconográfica.

A imagística do deus irá alastrar-se pela cerâmica de toda Atenas e a ascensão definitiva de

Pisístrato vai fazer com que surjam diversas representações distintas do deus, todavia sempre

respeitando alguns símbolos e tradições mitológicas para que ele seja identificado. A

próxima imagem trata-se de uma ânfora do último quartel do século VI, de artista anônimo,

porém sabemos que se trata de um pintor do grupo dos Leagros. Em relação a este pintor,

Sarian aponta:

(...) um dos mais profícuos pintores do grupo dos Leagros. Sua leitura (...) é

Page 106: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

105

plena de ensinamentos a propósito da importância que mito e imagística exerceram na sociedade ateniense: valor educativo pela divulgação de toda uma ideologia mitológica e valor social pela abrangência de sua visualização (SARIAN, 2005: 120).

O pintor do grupo dos Leagros utiliza a técnica de figuras negras sob argila e sua

pintura caracteriza uma conhecida categoria de cerâmica produzida no final do período

arcaico. Em uma face da ânfora vemos Dioniso com uma mênade – e é esta face que

mostramos a seguir – e na outra face Héracles combatendo o touro de Creta, o que ressalta a

afirmação de Dioniso junto ao herói cívico67 durante as tiranias. Esta ânfora faz parte do

acervo do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo, possui 25 cm de

altura e 16,5cm de diâmetro (SARIAN, 2005:128).

Vemos na imagem produzida na ânfora elementos de identificação do deus Dioniso,

como o cântaro em uma de suas mãos –

para lembrar a sua associação com o

vinho – e em sua outra mão, um ramo

de sarmento68, bem como a coroa de

hera sobre sua cabeça: elementos

simbólicos que aproximam o deus do

elemento vegetal. A posição de

Dioniso, sentado em um trono, concebe

um estado hierarquizado ao deus. A

figura feminina de pé em frente a

Dioniso executa uma harmoniosa

dança, o que nos leva a identificá-la

como uma mênade, figura do ritual

dionisíaco executante da música nos

cortejos (SARIAN, 2005:121).

Contudo, esta cena distancia a

concepção pessoal do deus. O ritual

dionisíaco era realizado com danças frenéticas e sua atitude hierática e real aproximava-o

67 Héracles era aquele herói que nunca desistiu perante os desafios. O filho do soberano Zeus que sempre foi valente e obediente às suas obrigações, mais ou menos como um cidadão ateniense deveria ser. Para saber sobre a história de Héracles ver: GRIMAL, Pierre. Dicionário de Mitologia Grega e Romana. Rio de Janeiro: Bertrand, 2000. 68 Espécie de videira ou planta similar.

Page 107: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

106

muito mais das representações dos deuses máximos do Olimpo, como Zeus ou Poseidon

(SARIAN, 2005:125). Estas representações não combinavam com o deus popular, campestre

e mascarado como Dioniso era representado até então, que distribuía seu festejo jocoso a

todos que aceitavam se curvar ao seu transe. Como esta é uma ânfora do final do século VI,

podemos concluir que neste momento o deus já estava urbanizado e “civilizado” e, pela

atitude serena da mênade – que antes dançava errante pelos campos – que seu mito já se

encontrava oficializado. Não há música – a mênade não carrega nenhum instrumento musical

– mas trata-se de um rito, perceptível pela mênade a dançar. Mas um rito tradicional de

Dioniso não poderia ocorrer sem música. Concordando com Sarian, de que os pintores deste

grupo se preocupavam com uma ideologia mitológica, concluímos que o pintor não estava

tão preocupado em retratar as especificidades do culto dionisíaco tradicional; sua intenção

provavelmente era a de retratar o novo culto ao deus, já modificado pela tirania na época em

que o vaso foi produzido, no último quartel do século VI.

A ânfora abaixo, que pode ser conferida no Cabinet des Medailles da Bibliothèque

Nationale de Paris, é o vaso de Amásis,

assinado pelo oleiro com este nome, que

foi descoberto em Vulci, na Etrúria e

datada de 540/530 (SARIAN, 2005:128).

Trata-se de um vaso de figuras negras em

que podemos ver Dioniso com duas

figuras femininas. O deus é representado

com seu cântaro, símbolo que o

caracteriza, e barbudo e cabeludo. As

mulheres são mênades, uma oferece uma

lebre, a outra segura uma vinha e possui

uma pantera ou um tigre desenhado – ou

a própria roupa foi feita com a pele do

animal – em suas vestimentas; estes

animais poderiam remeter a uma

memória de uma omofagia, presente no

rito dionisíaco, que foi se perdendo com o

passar do tempo; o consumo de carne crua passou a ser considerado demasiado bestial para

um culto políade. Podemos concluir então que se trata de um momento durante um ritual,

Page 108: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

107

com o sacrifício e oferenda ao deus. Mais uma vez tanto o deus – que tem como única ação

na cena uma reverência com sua mão esquerda – quanto às sacerdotisas estão em posições

serenas e calmas durante o ritual e, por se tratar de uma ânfora já do último quartel do século

VI, ressaltamos nossa reflexão sobre a civilidade do deus e de seu rito após certo tempo de

poder tirânico em toda a Grécia.

A próxima cerâmica é uma ânfora ateniense de autor desconhecido e tida como

confeccionada por volta de 500, retirada do LIMC. Nela percebemos Dioniso junto a outro

homem – provavelmente uma divindade – que não conseguimos distinguir por causa da falta

de elementos simbólicos que o identifiquem. Já Dioniso é facilmente reconhecido pela

quantidade de vinhas que envolvem o deus. Neste vaso é interessante percebermos uma

constatação feita por José Antonio Dabdab Trabulsi sobre as ânforas do fim do século VI e

do século V:

Evidentemente, o vinho e a dança não estavam ausentes das cenas dionisíacas anteriores, mas me parece que o extremo fim do século VI e o início do século V sobrecarregaram Dioniso e as mênades com traços do “outro”. As roupas são mais orientais, as serpentes e pardalis se multiplicam; a loucura das mênades faz com que essas imagens sejam muitas vezes utilizadas para ilustrar o êxtase das Bacantes. Eu arrisco então aqui uma hipótese; o classicismo (ou a época pós-tirania, se preferirmos) sobrecarregou certos traços “bárbaros” de Dioniso. A literatura do século V poderá talvez confirmar esta hipótese (TRABULSI, 2004:118).

Não é difícil

percebermos traços bárbaros

em Dioniso na imagem que

este vaso projeta: a começar

pelo turbante que o deus

utiliza, adorno

costumeiramente oriental. Da

mesma forma, o manto que

sai do turbante é diferente dos

outros mantos que o deus

aparece usando, pois ao

contrário dos mantos gregos,

este manto sai direto do

Page 109: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

108

turbante e não se parece em nada com os mantos helênicos que se apóiam nos ombros. A

barba – além de estar civilizada, curta, diferente do vaso François – é alongada e bem

penteada, e de perfil poderíamos pensar que se trata de um indivíduo asiático. A afirmação

de Trabulsi pode ser muito bem aplicada a este vaso e a alguns outros. Este “barbarismo”

torna-se um sinal da intensificação das relações de Atenas com outras pátrias devido às rotas

comerciais ao final do século VI, como veremos no tópico seguinte. A literatura do século V

vai reafirmar este “barbarismo” dionisíaco, como será elucidado no próximo capítulo. Este

vaso também reforça a idéia de Dioniso ter passado a ser representado de forma mais estática

em meados do fim do século VI, pois o deus está sentado em um simpósio em uma discussão

com o outro indivíduo, bem diferente do Dioniso do vaso de Sófilos ou do vaso François.

Neste segundo vaso a diferença é ainda mais gritante, pois o Dioniso mascarado corre

rapidamente para a direita em meio a um cortejo nupcial. Já o Dioniso desta ânfora mais se

assemelha a Zeus ou a outros deuses temperantes que observam a humanidade sentados em

seus tronos no Olimpo

O próximo vaso é mais ou menos da mesma época do anterior – de 510 para mais

novo; podemos perceber a aproximação pelo estilo do desenho e da arte – e retrata uma cena

semelhante à do vaso de 500.

Foi descoberto em Atenas e se

encontra no Museu Nacional

desta cidade. Nela, Dioniso – à

direita – está na companhia de

outro indivíduo, que acreditam

ser Hefesto, embora sem muita

certeza (GASPARRI,

1982:470). Dioniso também usa

turbante e sua barba é

semelhante a do outro vaso. A

vinha – símbolo que o identifica

– é acompanhada por um outro

artefato na mão do deus, um bastão, que também é seguro pelo outro homem. Uma figura

felina – uma pantera ou, de acordo com Gasparri, um leão – está abaixo do móvel em que os

deuses estão deitados. Dioniso está novamente em um simpósio e é representando mais uma

vez de forma estática.

Page 110: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

109

A última cerâmica a ser analisada por nós neste trabalho é um vaso de figuras

vermelhas da primeira década do século V, já do período clássico, que retrata a volta de

Hefesto ao Olimpo, confeccionado pelo pintor Kleophrades (CARPENTER, 1991:26). Nele,

percebemos a aproximação entre as duas divindades, que representavam segmentos sociais –

como já elucidamos – não abarcados pela antiga política social aristocrática. A opinião

predominante ainda é a de afirmar que ambos os deuses foram inseridos nas relações sociais

da política tirânica. Esta visão tradicional deve ser atenuada. É fato que os tiranos utilizaram

imagens divinas, mas não podemos afirmar que Dioniso junto a Hefesto não existia antes da

tirania e, após ela, passou a existir. A questão não é tão simplista; a imagem dos deuses fez

parte de um processo, e não podemos cair no equívoco de acreditar que de um dia para o

outro isto ocorreu. Em todo o vaso, vemos o cortejo divino de reinserção de Hefesto no

panteão divino; em uma face o deus é representado em cima de uma mula itifálica e sendo

escoltado por sátiros.

Destarte é a outra face que nos interessa. A face representada mostra Dioniso – com

seu cântaro e sua vinha simbólicos de sua representação – vestido com pele de leopardo e

rodeado por sátiros – também vestindo o mesmo tipo de pele – que embalam um cortejo

musical. A diferença na imagem de Dioniso é perceptível quando analisamos suas

vestimentas, agora postas de maneira

civilizada sob um manto que concede

à imagem divina um caráter real; sua

barba e seus cabelos não estão mais

espalhados de modo anárquico.

Podemos perceber que o

primeiro sátiro toca uma lira e mantém

seu falo ereto, em uma condição

itifálica que credita à imagem divina

um caráter sexualizado. O terceiro e o

quarto sátiro também possuem seus

falos eretos; o terceiro toca uma

espécie de flauta e o quarto carrega

uma enorme ânfora. O falo sempre fez

parte da representação de Dioniso,

mas acentua-se com a organização dos concursos teatrais no final do sexto século e

Page 111: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

110

estagmenta-se no século seguinte. Este vaso do século V também traz Dioniso de uma forma

barbarizada; o manto de pele de leopardo e os cabelos com madeichas crespas e tranças

lembram alguém do mediterrâneo asiático, provavelmente persa. Assim como no outro vaso

analisado, de 500, este, já do século V, reafirma a imagem do deus bárbaro. Também neste

vaso percebemos quão elaborada se tornou a imagem de Dioniso. O ser rústico e jocoso dos

primeiros vasos passa – sobretudo a partir das ânforas do século V – a utilizar vestimentas

mais “adequadas” ao padrão divino e civilizado.

Esta série de vasos por nós analisadas neste trabalho nos remete a um conceito muito

difundido durante todo o percurso historiográfico e muito discutido pela historiografia

recente: o de memória. Não iremos trabalhar com as exaustivas definições do conceito, nem

as transformações que o mesmo sofreu ao longo dos séculos; iremos aqui somente utilizar a

aplicabilidade do conceito na realidade no nosso trabalho e no contexto por nós discutido.

Fernando Catroga nos dá a definição de três tipos de memória: a primeira é a proto-memória,

fruto da socialização e do cotidiano que diluem o distanciamento entre passado e presente; a

segunda é a memória propriamente dita, a própria recordação e, finalmente, a metamemória,

aquela que define as representações que o indivíduo faz de sua própria memória e o

conhecimento que afirma ter de certo fato (CATROGA, 2001: 43-44).

Neste trabalho, percebemos que a metamemória de Catroga se enquadra na realidade

das representações dionisíacas. A definição que as representações exercem sobre a memória

do indivíduo faz com que este assimile em sua mente a idéia retratada por esta representação.

Desta forma, a memória irá modificar-se conforme o signo representado se modifica,

fazendo com que o indivíduo acredite que aquela representação retrata efetivamente o fato

representado.

A obra A Memória, a história, o esquecimento, publicada no ano dois mil69, de

autoria do filósofo Paul Ricoeur, nos servirá de base para uma abordagem deste conceito

clássico em nosso objeto, mais especificamente a segunda parte do livro de Ricoeur, na qual

o filósofo fala dos “abusos da memória”, que são obstáculos ou modificação que estas

sofrem, executadas por uma ideologia dominante ou por um próprio “mundo de

experiências”, para utilizar um termo fenomenológico. Ricoeur chama de “memória

manipulada” as distorções políticas e ideológicas que ocorrem em uma representação, no

intuito de construir uma identidade psíquica que direcionaria as crenças ou as recusas do

69 Em 2003 a obra ganhou uma tradução para o espanhol e finalmente em 2007 a obra obteve uma tradução para o português.

Page 112: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

111

indivíduo que olha as imagens representadas. Estas relações é que formam a “memória

coletiva” – em um diálogo com Maurice Halbwachs (2004) – que formará a opinião de um

grupo.

É exatamente do ponto discutido na parte dois que pretendemos lançar mão. A

“memória manipulada” de Paul Ricoeur pode muito bem ser percebida claramente quando da

análise das ânforas apresentadas. De acordo com o autor, a memória conta com uma

fragilidade própria, que propiciará sua manipulação – em uma proximidade entre a

imaginação e a memória – para a construção de novas identidades (RICOEUR, 2007:94). Na

tentativa de aproximar a identidade campestre e rural vivida pelas camadas menos

favorecidas de Atenas, Pisístrato em seu governo passa a trabalhar com esta memória

identitária no cotidiano políade, com a presença da divindade que traz a idéia do rural –

Dioniso – em semióforos utilizados no dia a dia do oikos. A memória é guardada por meio de

imagens de deuses e homens que representam “coisas” (YATES, 2007:50); no caso de

Dioniso, a ruralidade, no caso de Hefesto, o trabalho artesão, no caso de Zeus, a civilidade e

o poder, e assim sucessivamente. Mas ao mesmo tempo o tirano transforma esta imagem – a

de Dioniso – em uma idéia de cidadania, civilizando a divindade e moldando-a aos padrões

das quais a polis necessitava.

Remetemos-nos novamente à questão do pintor e da importância da idéia que o

indivíduo artista exerce neste processo de transformação mnemônica e identitária. É aliada à

idéia e à opinião destes produtores de cerâmica que o tirano trabalha para montar uma

narrativa – para utilizar uma idéia de Ricoeur – que torne a idéia Dioniso em um discurso

aceito pela nova identidade. Como coloca Ricoeur: “Até o tirano precisa de um retórico, de

um sofista, para transformar em discurso sua empreitada de sedução e intimidação.”

(RICOEUR, 2007:98). Jeanne Marie Gagnebin agrega-nos outro conceito a nossa discussão.

A autora nos fala dos rastros que a memória deixa em um objeto representado; estes rastros

irão propiciar uma lembrança sempre que nos remetermos àquela idéia outrora representada:

Notemos primeiro que o rastro, na tradição filosófica e psicológica, foi sempre uma dessas noções preciosas e complexas (...) que procuram manter juntas a presença do ausente e a ausência da presença. Seja sobre tabletes de cera ou sobre uma “lousa mágica” (...), o rastro inscreve a lembrança de uma presença que não existe mais e que sempre corre o risco de se apagar definitivamente (GAGNEBIN, 2006:44).

No tópico que se segue tentamos montar uma narrativa que nos leva a compreender a

Page 113: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

112

continuação da tirania de Pisístrato por seus filhos após sua morte, a desagregação deste

governo e o surgimento de um novo ideal político que irá propiciar, nos anos que se seguem,

o nascimento da democracia, e a permanência do desenvolvimento da imagética relacionada

a Dioniso.

2.4. Os Pisistrátidas, o fim da tirania ateniense e o governo de Clístenes

Com o término do governo de Pisístrato, seu filho mais velho, Hípias, é quem assume

as rédeas do poder ateniense70. Peter Jones alerta-nos para o fato de Pisístrato ser capaz de

transmitir o poder a seu filho, já que raramente uma tirania durava mais que um par de

gerações sem que seus partidários de início se voltassem contra ela e os aristocratas

retomassem o poder (JONES, 1997:8-9). Os Pisistrátidas – como eram chamados os filhos de

Pisístrato, o mais velho Hípias e o mais jovem Hiparco – deram continuidade às reformas

culturais do pai – levando para Atenas muitos poetas, escritores e artistas. Embora a tirania

de Pisístrato fosse de suma importância para a evolução cultural de Atenas – como visto no

tópico anterior – foram seus filhos que contribuíram veementemente para que Atenas se

tornasse um grande centro intelectual e artístico que a fará conhecida até nossos dias. As

apresentações artísticas multiplicaram-se e foi nesta altura que os hinos órficos foram

compilados e as primeiras edições da Ilíada e da Odisséia foram elaboradas (MOSSÉ,

1989:184).

Mario Attilio Levi aponta-nos que muito desta evolução sócio-cultural ocorreu pelo

incentivo que os Pisistrátidas concederam a artistas e escritores, o que propiciou uma

imigração para a pólis ateniense de gregos oriundos de regiões já culturalmente

desenvolvidas (LEVI, 1991:41). O filósofo Pitágoras saiu de Samos e se instalou em Atenas

no período das tiranias (COTTERILL, 2004:232) e dos tiranos recebeu incentivo para a

fundação de sua escola de filosofia matemática. Estes estrangeiros passaram a exercer

direitos de cidadão, diminuindo assim a questão da autoctonia ateniense; a questão dos

metecos serem considerados cidadãos será revista por Clístenes.

As dificuldades para exercerem o poder foram inúmeras, já que estes não sabiam o

modo de mantê-lo: “Estes, nascidos tiranos – se podemos assim dizê-lo – não conseguiram

vencer as vicissitudes que haviam presidido à ascensão ao poder por parte de seu pai.”

70 Histórias e Constituição de Atenas também relatam o governo dos filhos de Pisístrato.

Page 114: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

113

(MOSSÉ, 1982:20). Acabaram por ter de tornar seu governo muito mais severo para

conseguirem se manter no poder:

Em 514, dois amantes aristocratas, Harmódio e Aristogíton, tramaram o assassinato de Hiparco (...). Na procissão das Panatenéias, os conspiradores entraram em pânico. Hiparco foi assassinado, mas Harmódio foi morto no atentado e depois Aristogíton morreu sob tortura. Hípias sobreviveu e sua tirania tornou-se ainda mais severa (JONES, 1997:9).

Outra tradição relata que Hiparco se apaixonou por Harmódio – um cidadão – e,

tendo este o repelido, Hiparco humilha a irmã de Harmódio e este, junto com seu amante

Aristogíton, preparou o assassinato do tirano71 (MOSSÉ, 1982:20). Após este violento

incidente, outros aristocratas que estavam exilados ou haviam perdido o poder durante o

governo de Pisístrato passaram a querer a retomada do poder de Atenas. A antiga aristocracia

políade aproveitou-se para se livrar dos governantes que ainda não gozavam do mesmo

prestígio do pai. Porém, precisavam de força militar para obter êxito. Foram então

reivindicar a Esparta um exército para ajudá-los a derrubar a tirania ateniense72. Cleômedes,

governante espartano, atendeu ao pedido dos aristocratas e em 510 expulsou Hípias e sua

família de Atenas (JONES, 1997:9). O povo ateniense nenhum papel desempenhara quando

da morte de Hiparco ou quando do aumento da autoridade por parte de Hípias, tanto que foi

preciso uma intervenção estrangeira para causar a derrocada do tirano.

Cleômedes esperava, após esta atitude, que Atenas correspondesse com a volta de

uma aristocracia e que voltasse a demonstrar boa vontade com Esparta – já que no período da

tirania as relações comerciais, políticas e culturais entre Atenas e Esparta foram bem menos

corriqueiras. Por dois anos foi isso que aconteceu, porém com a artimanha de um

Alcmeônida, o aristocrata Clístenes, toda a estrutura foi novamente alterada. A tirania passou

então a ser repudiada pelas novas formas de governo. Na democracia, ela será criticada e

execrada e, já no período helenístico temos uma lei contra a tirania73, confeccionada em uma

estela de mármore, com um relevo representando a democracia – nesta época já solidificada

– ao coroar o povo de Atenas74.

71 Claude Mossé (1982) nos aponta que os amantes seriam reverenciados séculos mais tarde – durante a democracia – como heróis anti-tirânicos e, no século IV, seus descendentes gozariam de vários privilégios. 72 Vale aqui ressaltar que Esparta foi uma das únicas cidades a nunca sucumbir a uma tirania. 73 A lei foi datada de 337-6, durante o arcontado de Frínicos, sob pritania de Leôntis, tendo como propositor da monção para votação Menêstratos de Aixone e tendo como realizador da monção Eucrates, filho de Aristôtimos, do Pireu 74 Para uma leitura da lei na íntegra ver: FUNARI, Pedro Paulo A. Antiguidade Clássica: a história e a cultura

Page 115: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

114

Clístenes, como fazia parte do ghéne dos Alcmeônidas, foi exilado quando do

governo de Pisístrato, retornou a Atenas após a morte deste, mas foi novamente exilado

quando Hípias fortaleceu sua autoridade, após a morte de seu irmão. Após a derrubada dos

Pisistrátidas, Clístenes perde a disputa do governo para Iságoras, amigo pessoal de

Cleômedes. Iságoras é eleito pelos pares arconte em 508, sob pressão dos espartanos.

Clístenes apóia-se na manipulação do povo e faz com que este não permita que um

aristocrata a mando de um estrangeiro tome as decisões em Atenas. Deste modo, Clístenes

utiliza o mesmo estratagema que Pisístrato e assim é conduzido ao poder. Caracterizamos

Clístenes com o mesmo conceito de “homem providencial” pelo qual nomeamos Pisístrato.

Assim como o tirano, Clístenes sabia criar as condições para se tornar um governante

indispensável (TRABULSI, 2001:63): denuncia a tomada de poder por um aristocrata ligado

ao estrangeiro e une-se ao povo na luta a favor da hegemonia ateniense.

Mossé afirma que “o fim da tirania significava, pois, o puro e simples retorno ao

passado.” (MOSSÉ, 1982:21) Não foi isso que houve; Clístenes já havia percebido os modos

como Sólon e Pisístrato haviam conduzido a polis nas últimas décadas e constatou que não

seria possível instalar novamente costumes puramente aristocráticos, sob o risco de um

colapso social, promovido principalmente por aqueles que o conduziram à liderança. Então

Clístenes apresenta novas leis que complementam e confirmam a legislação soloniana de

noventa e quatro anos atrás.

Seguindo o exemplo de seus antecessores, Clístenes manteve a política de

distribuição de seu poder para evitar uma concentração de poder por poucos, o que

acarretaria em uma forte resistência à sua administração. Porém, o arconte foi mais além que

seu antecessor tirano: dividiu a cidade-estado em várias facções e deu poder total a elas,

descentralizando completamente as forças de resistência:

Clístenes criou dez novas phúlai (tribos) geográficas artificiais que ultrapassavam as velhas fronteiras naturais das quatro antigas tribos baseadas no parentesco e permitiram que homens, até então excluídos da cidadania, pudessem obtê-la. Cada tribo era composta de grupos de unidades de aldeias, demoi (dêmos) (...) espalhadas por toda a Ática. Esses demoi tinham seus próprios arranjos políticos locais e tornaram-se o foco das relações de lealdade e de atenção dos cidadãos (JONES, 1997:9).

Com este projeto, o arconte possuía objetivos de descentralização do poder, mas também a partir dos documentos. Campinas: Ed. Unicamp, 2003.

Page 116: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

115

intenções militares – devido à ameaça persa, que passou a interessar-se por terras na

Península Balcânica: “(...) se retirava dos ghéne o controle direto sobre a cidadania e

igualava os cidadãos novos com os originais, constituía também, com as dez tribos, dez

distritos de recrutamento que deviam fornecer uma unidade de infantaria pesada.” (LEVI,

1991:44-45). Também ampliou o conselho que administrava a cidade para quinhentos

membros (boulé) e deu direito de voto na assembléia popular (ekklesía) a cidadãos

registrados no demos.

É importante deixarmos claro que não partilhamos completamente da idéia de

Clístenes ser o verdadeiro precursor da democracia ateniense. Contudo, é mister que o

arconte estendeu o poder para praticamente toda a população – os escravos e as mulheres, é

claro, ficaram de fora mais uma vez – fazendo desta forma nascer um sentimento de

igualdade que pode ter influenciado mais tarde Péricles e os teóricos da democracia.

Clístenes aproximava-se muito mais dos ideais democráticos do que, por exemplo, Sólon:

A reforma da cidadania realizada por Clístenes explica, portanto, por que a tradição histórica o coloca, junto com Sólon e Pisístrato, entre os políticos que eram favoráveis ao ‘povo’, ao dêmos, isto é, a todos quantos estavam excluídos dos privilégios e dos poderes exclusivos dos eupátridas, chefes dos ghéne (LEVI, 1991:43).

Aprimorando o caráter legislador do arconte, Clístenes elabora a lei da isonomia, a

igualdade face a face diante da lei, o que Mossé caracteriza como a base da cidadania

ateniense (MOSSÉ, 1993:27). Tanto Marcel Detienne como Jean-Pierre Vernant partem de

uma mesma noção para definir o que seria a isonomia: a de centralidade. A isonomia

caracteriza-se como a distinção entre interesses pessoais e coletivos através de um espaço

centrado (DETINNE, 1988:51); o poder está no centro e é utilizado para centrar os

indivíduos, como “o caminho do meio”. Vernant condiz com a afirmação de Detienne, e

enumera que a isonomia vem para fortalecer a corrente democrática – esta já em formação,

embora ainda não em sua condição plena – e para diminuir insatisfações que poderiam abalar

a evolução da polis: “(...) define todos os cidadãos, como tais, sem consideração de fortuna

nem de virtude, como ‘iguais’ que têm os mesmos direitos de participar de todos os aspectos

da vida pública.” (VERNANT, 1986:69). Com estas medidas legisladoras enraíza-se a

política na idéia dos atenienses. Esta noção política será importantíssima para o restante da

história de Atenas, haja vista que o homem político exercerá funções e se reconhecerá como

agente da política: “Esta dimensão política é até o que vai distinguir o homem dos deuses e

Page 117: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

116

dos animais.” (TRABULSI, 2001:81).

É devido a estas questões que não podemos caracterizar Clístenes como um tirano.

Ele configura-se sim como um “homem providencial” quando da tomada do poder,

entretanto com o fim deste processo não conserva o poder somente para si. Percebemos que a

política no arcaísmo sente necessidade de uma liderança para modificar as estruturas

políades, haja vista a legislatura, a tirania e o arcontado:

Clístenes nos permitirá ir mais longe; até aqui pudemos constatar que, na realidade política do arcaísmo, toda ação importante que tem por objetivo mudar uma situação só se desencadeia pela ação de uma personalidade forte, um “homem providencial”. Ele sabe criar a necessidade de sua ação e/ou se aproveita de uma necessidade de liderança existente (TRABULSI, 2001:63).

Com esta série de transformações políticas ocorrendo em Atenas, não podemos nos

privar de compreendermos outras transformações que aconteciam simultaneamente no

mundo bárbaro e que influenciariam diretamente os rumos da polis ateniense. O Império

Persa havia, neste espaço de tempo, conseguido estruturar-se economicamente e iniciava

uma série de investidas contra o Ocidente, em busca de aumentar sua hegemonia no

continente Europeu. Seu líder, Ciro, foi responsável pela tomada tanto de regiões helênicas

importantes, como a Lídia e várias cidades gregas da costa, como de outras regiões bárbaras,

como o Império dos Medos. Seu sucessor, Dario, continuaria a conquista para o oeste,

anexando ao reino Persa a Trácia e a Macedônia – em 512 – já no fim do século VI. No

primeiro ano do século V, as cidades jônicas – já então conquistadas – decidiram pedir ajuda

às cidades-estado mais estruturadas; embora Esparta nada tenha feito, Atenas e Erétria

prometeram navios (JONES, 1997:10). Os atenienses possuíam um claro motivo para não

permitir o crescimento do Império Persa: o já idoso Hípias estava em contato com a corte

persa, possivelmente com a esperança de obter apoio em uma eventual restauração tirânica.

Com o fim do arcontado de Clístenes, o Conselho de Areópago75 é que vai determinar os

rumos de Atenas e da cidade dentro das Guerras Greco-Pérsicas, e não era interessante para

este Areópago a instalação novamente de uma tirania.

Com a entrada das duas cidades-estado, podemos dizer que têm início as Guerras

Greco-Pérsicas, pois Dario ficou ainda mais determinado em pôr em ação seu esquema de 75 De acordo com Moses Finley (1985), o Areópago era um resquício da política arcaica. Tratava-se de um conselho composto de ex-arcontes com mandato vitalício, que foi diluído em cerca de 462 e substituído paulatinamente pelo Conselho dos Quinhentos.

Page 118: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

117

dominação da Ática. Esparta entra na batalha somente após uma ameaça real, em 490. Após

a tomada da baía de Maratona, Atenas envia um mensageiro – Fidípides, o primeiro corredor

de “Maratona” – pedindo auxílio – que chegou tardiamente. Os atenienses, apesar de baixas

em suas falanges vencem esta primeira batalha, o que foi motivo de orgulho; batalha que

ficou conhecida como “Batalha de Maratona” 76.

Após esta primeira investida contra os Persas da qual Atenas sai vitoriosa, uma

segunda batalha tem início, também com a vitória dos atenienses; porém não sem seqüelas.

Mario Attilio Levi relata-nos que, após esta batalha – comandada por Temístocles, que se

tornará uma figura política importante para Atenas – ocorreu uma tremenda baixa nos

produtos agrícolas – rebanhos e cereais – ocasionando uma crise de abastecimento na Ática

(LEVI, 1991:65). Em compensação, Atenas já contava com um grande poderio naval,

utilizado anteriormente nas guerras persas. Esta mesma frota naval será utilizada para o

comércio e a recuperação da economia ateniense; estas atitudes levarão a cidade-estado a

uma hegemonia econômica e política – sem falar na cultural, já estabelecida – que propiciará

o surgimento da forma de governo mais difundida até os dias de hoje – a democracia – e a

criação da Liga de Delos, cidades concorrentes à hegemonia ateniense. Assuntos estes sobre

os quais discorreremos no capítulo seguinte, assim como no que culminou a imagem a as

manifestações religiosas que englobam Dioniso e seu culto nesta época e a inserção total do

deus na sociedade.

76 Desta batalha participou o poeta trágico Ésquilo. Além de Maratona, as outras batalhas conhecidas por nós foram de Termópilas, Artemísion, Salamina, Platéias e Mícale; todas batizadas com o nome das regiões que serviram de palco para os conflitos.

Page 119: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

118

CAPÍTULO 3

DIONISO NO PERÍODO CLÁSSICO: A FORMATAÇÃO DA IMAGEM E DO

CULTO NA TRAGÉDIA ATENIENSE

3.1. Ascensão de Péricles e apogeu da democracia

Em seu livro Comparar o Incomparável, Marcel Detienne questiona: “É uma opinião

bastante difundida que a democracia caiu do céu (...), na Grécia, e até sobre uma única

cidade, a Atenas de Péricles (...)” (DETIENNE, 2004:121). Antes de nos debruçarmos sobre

esta afirmação de Detienne, vamos discutir os processos históricos que levaram o autor a

comentar sobre a democracia.

Já foi visto no capítulo anterior como Clístenes alargou as influências de poder em

Atenas e como descentralizou a política e as funções públicas da mão de poucos homens, no

intuito de diluir as influências que poderiam causar uma instabilidade social. Porém será seu

neto que instalará a forma de governo mais conhecida como descentralizadora de poder e

justa: a democracia. Péricles, com o prestígio que consegue com a vitória nas Guerras Greco-

Pérsicas – nas quais participou como estratego – entra para a vida pública ateniense por volta

de 463, como acusador de Címon.

Quem era Címon? Com o fim do arcontado de Clístenes e da breve regência do

Conselho do Areópago, muitos nomes apareceram para disputar os rumos da vencedora

Atenas, agora promissora e líder de uma liga que englobava várias cidades-estado, a Liga de

Delos77, que saiu vencedora contra os persas. Efialtes, líder do demos e aliado de

Temístocles – considerado um dos grande heróis da guerra – foi propositor de várias

reformas no conselho das assembléias. A principal modificação que foi aprovada pelos seus

pares do Areópago nos é dita por Claude Mossé:

É preciso considerar, no entanto, que, ao privar o Aerópago de uma parte dos seus poderes para colocá-los nas mãos de órgãos que emanam diretamente do demos, Efialtes fez a cidade dar um passo enorme em direção ao estabelecimento de uma verdadeira democracia (MOSSÉ, 2008:62).

Embora Efialtes tenha o apoio de Temístocles, este não conseguiu efetivar estas

77 De acordo com Ciro Flamarion Cardoso (1987), a liga foi batizada com este nome porque o tesouro comum ficaria depositado na ilha de Delos, centro religioso jônico localizado no mar Egeu.

Page 120: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

119

reformas sem causar distúrbios e agitações, tanto é que este foi assassinado logo depois de

suas tentativas – algumas bem sucedidas – de diminuir ao máximo o poder do Areópago,

provavelmente pelos próprios areopagitas. Após a saída da figura de Efialtes78, Címon79

entra em cena como questionador da política da polis. Consegue muito apoio do demos no

primeiro momento, tomando atitudes que, a nosso ver, se assemelham às atitudes que

Pisístrato tomou para conseguir manter sua tirania: “(...) Címon retirava a cerca das terras de

sua propriedade para que todos pudessem dela usufruir, provavelmente para o pasto e

animais; oferecia comida a todos que a pedissem e era também pródigo em donativos em

roupas e dinheiro.” (LEVI, 1991:77). É possível que o alcmeônida Péricles – que já era

conhecido pelos meios militares e elitistas de Atenas – tenha adquirido influência no demos

devido às suas acusações contra Címon; a primeira acusação trata da afirmação de Péricles

contra Címon, acusando-o de corrupção na condução da guerra na Trácia e em Tasos (LEVI,

1991:78).

Címon, assim como seu sogro Péricles, também conseguiu prestígio com as Guerras

Greco-Pérsicas – expulsando os persas de regiões costeiras e destruindo os últimos navios

fenícios (JONES, 1997:20) – ao contrário de seu rival, defendia uma continuidade nas

relações com Esparta com o fim das batalhas. Já Péricles era a favor de aproveitar o

momento de bonança para reafirmar a hegemonia ateniense perante o restante da Ática.

Címon, por ser um sujeito economicamente abastado, pode ter afastado de si aqueles que

temiam que ele usasse sua riqueza para adquirir uma ascendência sobre o demos (MOSSÉ,

2008:63).

Entretanto, a força de Péricles em Atenas só fez aumentar – talvez por sua oratória

aliada ao fato da história de seu avô e da campanha na guerra contra os persas – e Címon

passou a ser perseguido pelas forças políticas então em ascensão, sendo condenado ao

ostracismo80. Peter Jones aponta-nos que Péricles e seu grupo político conseguiram incutir

78 Moses Finley (1985) nos diz que, como a absorção das mudanças realizadas por Efialtes não foram retratadas em nenhuma fonte, isto pode nos dar a idéia de uma certa “tranquilidade” neste período. Porém, o autor atenta para o fato dele ter sido assassinado e afirma que esta “tranquilidade” é duvidosa. 79 As fontes quase não fazem menção à origem de Címon, o máximo que temos é a afirmação contida na Constituição de Atenas que diz que Címon era o chefe das “pessoas honestas”. 80 O ostracismo é uma lei atribuída a Clístenes – não sem contradições – e tratava-se de um processo excepcional, que se dava com a reunião do demos na Ágora para indicar aquele que deveria representar perigo para a polis. Inicialmente a lei surge contra possíveis tentativas de tiranias, mas com o passar do tempo é cada vez mais utilizada, em diversos casos. O indivíduo seria então exilado por dez anos e perderia seus direitos políticos (atimia). A lei obteve este nome porque se escrevia o nome daquele que era considerado perigoso em um caco de cerâmica (ostrakon). De acordo com Mossé (2008), foram encontradas várias ostraka que atestam a realidade desta prática. Em outra obra de Mossé (1985), a autora afirma que a atribuição a Clístenes da lei sobre

Page 121: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

120

nos cidadãos a idéia de que, por serem líderes da liga formada, deveriam ter o direito de

gozar da prosperidade que vinha com os frutos do império (JONES, 1997:22); império

alcançado somente com a desarticulação da oligarquia Esparta. A data do ostracismo de

Címon é incerta, mas podemos aliá-lo com o rompimento total das relações atenienses com

sua antiga aliada: Esparta, em 462-461. A acusação contra Címon foi fundamentada na ajuda

que este concedeu a Esparta, quando ela estava com problemas de uma reforma na utilização

do trabalho compulsório dos hilotas81. Abalada por um terremoto em 464, Esparta se viu

dentro de uma grave crise social, pois os hilotas acharam que este era o momento certo para

reivindicarem seus direitos. Címon envia ajuda aos espartanos e causa a fúria das forças

políticas atenienses:

De qualquer modo, foi provavelmente quando ele voltava da expedição de socorro aos lacedemônios que seus adversários manobraram para que fosse condenado ao ostracismo. Teria sido a acusação formulada por Péricles, que, segundo Plutarco, acusou Címon de ser “amigo dos lacedemônios e inimigo da democracia?” (MOSSÉ, 2008:63).

Com o ostracismo de Címon, Péricles governaria soberano por mais ou menos trinta

anos na cidade de Atenas82, fundamentando os conceitos da democracia e da cidadania

ateniense:

O regime chamado democracia assume, então, uma significação dupla, segundo designe um sistema político em que a soberania reside na comunidade de cidadãos ou um sistema no qual a arraia-miúda (os pobres) que controla a cidade. É este último sentido que parece ter sido escolhido por Péricles, quando ele diz que as decisões dependem “da maioria”, do maior número (pleiôn). Por que é evidente que a arraia-miúda em geral compunha essa maioria. Aliás, esse é o sentido que lhe atribuiriam os teóricos políticos do fim do século V e do século IV (MOSSÉ, 2008:70).

É sabido que as transformações democráticas não ocorreram somente com a ascensão de

o ostracismo é um erro de Aristóteles, haja vista a vontade do autor de “reabilitar” Clístenes e o desejo de atribuir a um único legislador o conjunto de reformas em que a democracia se assentava. De acordo com Trabulsi (2001), o dia da ostracoforia era fixado em datas festivas em que estavam reunidas várias pessoas. Mesmo que isto não significasse a participação da maioria, tinha-se a impressão de que toda a cidade estava lá e que o processo seria democrático. 81 População servil que trabalhava nas terras da aristocracia lacedemônia. Já foi elucidado neste trabalho que Esparta nunca viveu uma tirania e sempre se manteve oligárquica. Provavelmente a experiência vivida por outras cidades fizeram com que estes trabalhadores se revoltassem. 82 A principal fonte que narra a trajetória política de Péricles e seu governo democrático em Atenas é a História da Guerra do Peloponeso, do historiador Tucídides.

Page 122: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

121

Péricles e o enraizamento de seu governo. Clístenes foi o grande responsável pela mudança

do governo tirânico para outro tipo de governo e, de certa forma, Efialtes também tem sua

parcela de contribuição. Sabemos também que Péricles possuía uma oratória reconhecida por

seus contemporâneos; não podemos acreditar que o discurso somente legitima a prática, pois

um bom discurso carrega em si a potencialidade de suscitar ações. Embora os ideais

democráticos fossem pautados na soberania do demos, ainda havia uma forte política

centralizadora do poder.

Ao contrário de seu avô, Péricles diminuiu o número de cidadãos, fazendo ser votada

uma medida que restringia o número de indivíduos com direitos à cidadania. Um indivíduo

nascido de mãe que não fosse ateniense – mesmo que o pai fosse – não era mais considerado

um cidadão. Esta atitude de Péricles pode ter sido funcional – pois diminuindo o número de

cidadãos diminuiria também o número de pessoas beneficiadas com carregamentos

estrangeiros e metais – ou simbólica. Simbólica porque, se filhos de mães não atenienses não

fossem considerados cidadãos, então Temístocles e Címon nunca teriam sido cidadãos

atenienses. A cidadania foi uma noção muito almejada durante toda a democracia ateniense.

Somente um cidadão teria certos direitos de decisão política, poderia exercer uma função de

alto escalão e ter poder de influência social. As fratrias eram agrupamentos de “famílias”

ligadas intrinsecamente à admissão de um cidadão:

Na época clássica, as frátrias desempenhavam um papel essencial nos actos ligados à vida do cidadão: nascimento, iniciação dos adolescentes, casamento, adopção, funerais. Além disso, embora não se organizassem à volta de um culto comum a todos os membros da frátria, eram o quadro de uma das festas mais importantes do calendário religioso (...). Tanto para os homens quanto para as mulheres, a pertença à comunidade cívica estava condicionada à admissão na frátria (MOSSÉ, 1993:38).

As formas de ascensão à cidadania só podiam ser atingidas desde que o indivíduo

fosse filho de um cidadão com uma filha de cidadão – mulheres, mesmo filhas de cidadãos,

não eram consideradas cidadãs. Desde o nascimento, que era assistido pelas mulheres da

família e sacerdotes responsáveis pela purificação do ambiente (FLORENZANO, 1996:14),

o cidadão passava por diversos rituais de iniciação – em sua maioria ligados à religiosidade –

que eram verdadeiros “roteiros” que deveriam ser seguidos para que um cidadão não

perdesse seus costumes e suas tradições.

Um não-ateniense poderia tornar-se cidadão durante a época clássica, desde que

Page 123: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

122

prestasse eminentes serviços a Atenas – seja na guerra ou em trabalhos cívicos. Contudo,

esta não era a regra. Um cidadão também participava na manutenção da alteridade ateniense

(FIALHO, 2006:81); as formas e os rituais de cidadania formavam uma identificação entre

os indivíduos. Exercendo a cidadania, o ateniense tinha a noção: “sou ateniense porque não

sou espartano”; “exerço funções cívicas e religiosas de cidadão ateniense e assim me

diferencio dos não-atenienses”. A cidadania ateniense significava uma identidade ateniense,

que era exercida cotidianamente na polis.

Mossé exemplifica que houve ocasiões nas quais os acessos à cidadania ocorreram de

modo ilegal: em um testemunho do século IV, um estrangeiro rico compra o depoimento de

pessoas que iam ao tribunal se declararem seus parentes (MOSSÉ, 1993:44-45). Percebemos

como a cidadania era uma questão mais social e simbólica do que econômica. Mesmo um

estrangeiro abastado não tinha vez no corpo cívico ateniense, e como ele almejava isto, haja

vista os métodos que utilizou para obter a cidadania que lhe daria direito à influência na

sociedade.

Já que citamos a questão da economia, Mossé constata: “Pode causar algum espanto o

facto de a vida económica não figurar entre os domínios da actividade cívica.” (MOSSÉ,

1993:51). As atividades econômicas – à exceção do trabalho da terra, considerado uma

ligação com a natureza e com os deuses – tinham muito pouca, ou quase nenhuma,

importância na definição da cidadania; estavam ligadas quase exclusivamente à questão da

subsistência. A cidadania ligava-se a outras estruturas, principalmente a política (MOSSÉ,

1993:53). Um cidadão era aquele ser político capaz de zelar pelo bem estar de sua pátria, e

não pensar em outras pátrias em detrimento da sua – é por esta razão que Címon pode ter

caído: “Entre os gregos, nunca houve noção de cidadania que ultrapassasse o quadro da

cidade, a tal ponto que o cidadão (polités) era o homem com direitos apenas em sua cidade

(polis).” (FUNARI, 2006:22).

Péricles, em seu governo, copia a noção de prosperidade que Pisístrato passara a seu

povo quando este foi governante. Seu incentivo às artes, às construções monumentais –

como o Pártenon – à criação da coregia83 e à idéia do “governar para todos” fizeram do líder

democrático uma pessoa querida por seu povo.

É neste quadro político e social que se desenvolvem os ideais democráticos e aflora o

chamado “imperialismo ateniense”. Este conceito gera vária polêmicas, haja vista que é um

83 Fundo que garantia o financiamento das representações dramáticas – sobretudo as do culto a Dioniso – e as manifestações musicais.

Page 124: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

123

conceito moderno. Atenas, após as Guerras Greco-pérsicas, passa a ser a liderança dos

aliados vencedores da guerra, e por muitas vezes colocou sua posição contrária a Esparta,

com o término da guerra, às cidades aliadas. Destarte, os próprios gregos não possuíam uma

palavra para denominar este “imperialismo”, e o termo pode tornar-se obscuro quando

aplicado à Antiguidade, embora renomados estudiosos, como a historiadora Claude Mossé,

utilizem este termo, não sem ressalvas:

O termo “imperialismo”, usado pelos modernos para definir a autoridade exercida por Atenas sobre os aliados da liga de Delos, remete a conceitos alheios à língua grega. O que depois da segunda guerra médica foi uma symmachia, uma aliança militar, destinada a garantir sua defesa comum contra a volta da ameaça persa (MOSSE, 2008:94).

Pedro Paulo Funari afirma que o conceito de Imperialismo Ateniense é enganoso; não

por se tratar de um anacronismo, mas pelo fato de Atenas possuir uma frágil estrutura

administrativa imperial (FUNARI, 2006: 29), que não elevaria a cidade à categoria de

império. Atitudes como o pagamento de tributos das cidades aliadas para obras de infra-

estrutura e melhoramentos urbanos executadas por Atenas demonstram a soberania da polis

em relação às outras cidades. As colônias pan-helênicas tornaram-se outra forma de

alargamento das influências atenienses. Vilarejos que antes não passavam de aldeias ou

povoados – como o de Túrio – foram elevados à categoria de cidade, tendo direito a uma

constituição própria e construções urbanas, todas patrocinadas por Atenas.

A política social de Péricles foi outro aspecto que poderia se caracterizar como um

instrumento de dominação, já que muito se assemelhava à da tirania de Pisístrato: foram

criadas as clerúquias, forma de distribuição de terras às pessoas mais pobres, não só de

Atenas, mas de todas as cidades da Liga de Delos; estas mesmas clerúquias irão desaparecer

quando Atenas passa a endurecer seu regime sobre as aliadas. Desta forma, Péricles

“conservava” as cidades como suas aliadas, não correndo o risco de perder o apoio das

mesmas para Esparta, agora sua principal rival. Porém, com o passar do tempo: “Esta

[Atenas] passou a castigar as cidades que tentassem abandonar a aliança. O tesouro comum

foi transferido para Atenas (...), onde passou a ser usado em despesas da própria pólis

ateniense e não da liga (...)” (CARDOSO, 1987:37).

Voltemos à frase de Marcel Detienne colocada por nós no início do capítulo. A

democracia em Atenas de certa forma caiu mesmo do céu. Governantes, com suas idéias,

implantaram um novo sistema e, principalmente, uma nova noção política e social. Contudo,

Page 125: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

124

qual é o papel do povo acerca do comportamento exigido dentro de um ideal de democracia?

O povo participava deste ideal ativa ou passivamente? Mario Attilio Levi nos diz: “Na

realidade, naquele tempo havia uma tendência política, apoiada pelos alcmeônidas e seus

adeptos como arma de luta política que defendia um conceito de democracia que significa

‘governo do interesse do povo’ ao invés de ‘governo do povo’ (LEVI, 1991: 79). Desta

forma, o ideal de governo do povo na prática se traduziria em uma noção distinta.

Mas vamos embarcar na mesma indagação feita por Nicole Loraux: “Existiria uma

maneira democrática de falar de democracia?” (LORAUX, 1994:189). A demokratía

combina o poder soberano do demos ao reconhecimento da lei da maioridade (LORAUX,

1994:191), ou seja, o demos é soberano em suas afirmações legais; esta seria a idéia.

Destarte, nem o discurso utilizado pelos governantes idealizadores da democracia condizia

com a idéia que a palavra demokratía significava, haja vista que Péricles e nenhum outro

governante democrático deixaram nenhum legado escrito; a teorização da democracia ficava

por conta dos filósofos e teóricos, como Platão.

Outra discussão é se esta democracia, como Detienne nos diz, nascida essencialmente

em Atenas, influenciou outras polis para aderirem a seu ideal. É sabido que cidades como

Esparta não aderiram a esta nova forma de governo, haja vista que nunca saíram de seu

governo exclusivamente oligárquico. Sabemos também que, contrariando algumas

tendências, a tirania não foi um caminho para a democracia. O tirano coríntio Cipselos não

abriu caminho para uma democracia em Corinto. A cidade nunca viveu plenamente a

democracia como Atenas. Provavelmente por estas cidades serem rivais na guerra e nas

tradições com Atenas possuíam a tendência de negar qualquer ideal formado na cidade. As

cidades da Liga de Delos é que poderiam aderir a esta idéia de governo de sua grande líder.

Vamos ver o que Mossé nos diz acerca do controle da política das outras cidades aliadas por

parte de Atenas:

No entanto se, por um lado, a dominação de Atenas sobre seus aliados não se traduzia, necessariamente, na obrigatoriedade da adoção de instituições democráticas, por outro, Atenas dispunha de meios de controle político sobre os aliados. Temos a certeza, em especial, da presença de magistrados atenienses em certas cidades do império, com o título de vigilantes (episkopoi), ou, mais freqüentemente, de arcontes. Ao que parece, suas funções eram bastante amplas, mas não muito precisas (MOSSÉ, 2008:99).

Por que Atenas teria a necessidade de enviar magistrados para, entre outras coisas,

Page 126: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

125

fiscalizar a política destas cidades? Podemos especular que o governo de Atenas não era

facilmente aceito por outras cidades. Ou que os magistrados tomavam conta da política pelo

medo de uma tomada de poder por algum tirano. Ambas as hipóteses são plausíveis e talvez

nunca sejam confirmadas. O que é passível de conclusão é que, para Atenas precisar de uma

vigilância sobre suas aliadas é porque as relações políticas não ocorriam plenamente como

Atenas desejava.

Podemos pensar também que Atenas estava mais interessada no pagamento do foro e

no recolhimento de suprimentos das cidades aliadas (MOSSÉ, 2008:98). Desta forma, iremos

concluir que a idéia de política serviria como controle financeiro. Sabemos que Péricles

auxiliou a implantação da democracia em algumas de suas aliadas, como Samos, que a

oligarquia foi esmagada e a democracia implantada de cima para baixo. Em prol de um ideal

democrático, as cidades continuariam como aliadas políticas e financeiras de Atenas.

Afirmarmos que os gregos não viveram em uma democracia se pautando na noção e

na idéia de democracia atuais é um caminho certo para o anacronismo. Os gregos

conheceram e viveram sim a democracia, porém o conceito, assim como o de tirano e de

alguns outros já colocados por nós, se modificou e Renhart Kosselec (2006) já tratou de

elucidar teoricamente estas questões. Moses Finley agrega-se ao nosso argumento: “A

equação democracia = regime eleitoral, está tão fortemente enraizada em nossa cultura que

se requer um esforço deliberado para pô-la inteiramente de lado no estudo da política

antiga.” (FINLEY, 1985:88). Nos tópicos que se seguem vemos como Dioniso se inseriu

nesta idéia de democracia e de que forma seu culto e imagem foram difundidos em uma

Atenas agora completamente diferente daquela no qual sua imagem e seu culto se formaram.

3.2. A questão do rito

Sobre a importância do ritual, temos de ter como certa uma constatação realizada por

Walter Burkert:

Por finais do século passado, impôs-se, na generalidade dos estudos da religião, o conceito de que os rituais são mais importantes e elucidativos para a compreensão das religiões antigas do que os mitos em constante alteração. Deste ponto de vista, a Antiguidade não se encontra isolada, mas incluída na globalidade das religiões chamadas “primitivas”, enquanto as religiões “superiores”, desenvolvidas teologicamente, esta mesma base se encontra sem dúvida alguma presente na prática, mas, na reflexão, é

Page 127: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

126

remetida para segundo plano (BURKERT, 1993:125).

É evidente que quando Burkert escreve “finais do século passado” está se referindo ao XIX,

pois a obra foi escrita ainda no século XX. O século de Tylor e Frazer credita ao rito uma

importância maior por este ser “palpável”, por existirem relatos que comprovam que os

mesmos realmente existiram. Para a ideologia das “ciências positivas” estava claro que algo

que se comprovava – como o ritual – era merecedor de mais atenção do que algo abstrato,

como o mito. O rito passou a ser estudado, na primeira metade do século XX, como parte de

uma pesquisa etnográfica. Não se concedia uma correta conceituação do termo e o estudo

estava pautado em explicar este costume como mais uma parte integrante de uma sociedade:

Na prática etnográfica, os automatismos dominaram a recolha de dados, sem que as variações teóricas sobre o rito e o mito perturbem o trabalho de campo. Apressados em redigir a sua monografia e em terminar a sua tese, os etnólogos classificam os rituais segundo critérios usados nos manuais de Oxford e Paris. Demonstram a boa vontade do observador, descrevendo o que passa, em lugar de descreverem o que se conta (DETIENNE, 1987:60).

Com os atuais estudos, é sabido que mito e rito são categorias de análise que não se

dissociam. Marcel Detienne escreveu, em 1987, um verbete clássico – intitulado

“Mito/Rito”, publicado no volume cinco da Enciclopédia Einaudi – que será utilizado por

nós para percebermos a fronteira que existe entre os dois conceitos e como o rito é

importante para o estudo da religião, porém sem descartar o caráter mítico do mesmo:

E os mitos, como os ritos, explicam-se essencialmente pela sua função na organização social: a mitologia é ‘a carta pragmática’, constitui a espinha dorsal pragmática da civilização primitiva. Contam-se os mitos para justificar, reforçar, codificar as práticas e as crenças postas em prática na organização social, totalmente investida pelo discurso ritual. Enquanto para o antropólogo das terras birmanesas, que admite a existência de um quadro de referência incidindo sobre a adesão geral dos membros do grupo, os mitos não visam, de modo algum, equilibrar ou estabilizar a sociedade, mas constituem uma linguagem que serve para exprimir os direitos, os estatutos contrapostos e rivais (DETIENNE, 1987:67).

O rito serviria, desta forma, para criar costumes comuns a uma certa sociedade. Os

gregos, de uma forma geral, cultuam certas divindades para estabelecerem sua identidade e

sua individualidade perante o restante da sociedade. Desta forma, os rituais estariam

inseridos neste processo de aproximação dos indivíduos de certo grupo com um interesse em

Page 128: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

127

comum. O rito seria o mito em sua forma prática, o aglutinador de pessoas com uma mesma

identificação. O rito também serve para aproximar o humano do divino e vice-versa; o deus

está no indivíduo, quando este está em êxtase ritualístico: “Só na prática do culto e a seu

nível se realiza (...) a unidade concreta do deus que toma consciência do Eu e do Eu que

toma consciência do deus.” (DETIENNE, 1987:58). Os integrantes do rito dionisíaco

sentiam-se possuídos pelos deus quando da ingestão de álcool, como uma forma de

“enlouquecimento” divino.

Percebemos que as constatações de Detienne assemelham-se à idéia de ritual como

uma forma de linguagem coletiva (BURKERT, 1993:126); os indivíduos participam de um

rito que os identifica enquanto grupo e os faz comunicar entre eles próprios. As

características do ritual, que envolvem dança e música, embaladas por um chorós – coro – e

celebradas com bebidas alcoólicas – nos rituais em honra a Dioniso isso é muito comum –

faz com que as expressões religiosas do grupo sejam colocadas para fora através da

manifestação: “A embriaguês provocada pelo vinho, como alteração do estado de

consciência, é interpretada como intervenção de algo divino.” (BURKERT, 1993:318). Estas

manifestações foram encaradas como uma forma de êxtase, mas a questão não é assim tão

simples. A mais antiga interpretação para este estado da alma é éntheos: seu significado é “o

deus dentro de si” (BURKERT, 1993:225). O deus possuía a pessoa iniciada no ritual através

das danças, da embriaguês e até de práticas orgiásticas. Em alguns rituais – como o

dionisíaco – o deus pode controlar completamente o indivíduo, levando-o até a matar. Em

outros ritos, o êxtase poderia ser profético, inspirado pela divindade em questão; este êxtase

é muito alcançado por adivinhos:

Platão distingue a “loucura profética” de Apolo e a “loucura teléstica” de Dioniso, às quais associa o entusiasmo poético e o “erótico” ou filosófico. Com a nomeação de Apolo e Dioniso, os fenômenos marginais da consciência são articulados em esferas bem definidas, aqui a mântica, ali a consagração (BURKERT, 1993:228).

Ainda nesta questão do êxtase – que é uma palavra grega – acreditamos ser

importante a definição deste conceito e os meandros que seu significado propõe. Como

consenso quase geral temos esta definição nos dada por Trabulsi: “ No fenômeno extático,

há, portanto, uma alteração da atividade mental do indivíduo, com conseqüências sobre sua

interpretação de realidade e de seu próprio ego.” (TRABULSI, 2005:221). Uma palavra

também muito utilizada para se referir ao êxtase é “transe”; mas a definição para esta palavra

Page 129: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

128

grega que obteve até hoje mais sucesso foi possessão. O indivíduo possuído age conforme a

divindade deseja e a loucura torna-se então divina:

Na possessão há, portanto, uma força sobrenatural (deus, demônio, bom ou mau) que toma conta do indivíduo. É, portanto, uma categoria da cultura estudada que funda essa classificação. Mais recentemente, e sempre no mundo anglo-saxão, esta categoria dos “estados alterados da consciência” (como categoria geral oposta ao estado alerta normal) foi abundantemente utilizada no estudo do êxtase (TRABULSI, 2005:221).

Vamos agora para o ritual em si. Primeiramente devemos colocar que o ritual

dionisíaco – como praticamente todos os rituais – eram cíclicos e aconteciam repetidamente,

pois, de acordo com Rachel Gazolla: “Algumas de nossas atuais ciências e algumas linhas da

psicologia e da antropologia, principalmente, explicam sem necessários ao homem os rituais

sagrados cíclicos, pois as celebrações desse tipo expurgam mimeticamente os males de uma

comunidade.” (GAZOLLA, 2001:25). A estrutura do rito consistia na entrada do coro – o

Parodos – exaltando os três elementos base do hino cultural: “(...) a physis (natureza,

atributos, santuário dos deuses), o genos (genealogia, relato de nascimento), a dynamis

(poder, campo de ação, feitos, invenções do deus).” (TRABULSI, 2005:210). Este coro é

essencial, pois inicia os trabalhos do rito. No caso dos rituais que homenageiam Dioniso,

existe a ingestão de bebidas alcoólicas, principalmente o vinho, além de práticas de orgia e

sexo: “Os que sustentam que o orgiasmo não poderia se produzir sem álcool e sexo

chegaram a dizer que a imagem de paz e calmo abandono das mênades (...) é típico da

satisfação sexual que segue ao orgasmo.” (TRABULSI, 2005:212). Se tomarmos como

exemplo a peça As Bacantes, no qual só havia mulheres na montanha, fica difícil falarmos

em orgias sexuais sem nos remetermos à prática homoerótica; porém isto é uma constatação

difícil de provar. Nem mesmo a orgia possuía um caráter como conhecemos hoje. Esta era

uma prática que requeria certa, se podemos assim dizer, moral religiosa:

Com efeito, o que é a orgia na montanha, ou, para falar grego, a oribasia? Contrariamente à noção moderna de orgia, que saiu sem dúvida de um desenvolvimento tardio que fez dos banquetes dionisíacos ocasiões de licença sexual, noção popularizada pelos “renascimentos” de classicismo que a recolocaram várias vezes na moda na tradição cultural ocidental, a orgia clássica, e especialmente na peça de Eurípides, não tem, em princípio, o sexo como fundamento (TRABULSI, 2005:214).

E como os rituais em honra a Dioniso se configuram? Temos que deixar claro que

Page 130: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

129

não é possível falar em uma unidade quando se trata de rito. Os rituais modificam-se

cronologica e geograficamente. O culto primordial de Dioniso em Tebas, retratado por

Eurípides na peça As Bacantes, não é o mesmo culto da Atenas do século V. Trabulsi diz que

existem variantes sociais que modificam o ritual, mesmo no dionisismo, que se propunham a

desfazer a diferença entre os indivíduos e os grupos: “(...) um príncipe, um aristocrata, um

camponês ou um escravo não se colocam da mesma maneira face a uma religiosidade.”

(TRABULSI, 2005:174). Existem também as diferenças sexuais – homens e mulheres – e

etárias – jovem, adulto, ancião. O que tentaremos nesta dissertação é trabalhar com a idéia

conceitual de rito e tentar aplicá-la a realidades como os mitos de resistência, os rituais rurais

das montanhas e as festas políades.

Como mitos de resistência, consideram-se aqueles que retratam uma resistência ao

culto de Dioniso. Embora mitos, retratam uma realidade vivenciada, assim, o culto de

Dioniso sofre resistência de uma aristocracia e, podemos dizer, até da tirania, quando da sua

forma original. Por isso, a transformação sofrida pela imagem e pelo culto dionisíaco

ocorrida nas mãos dos tiranos. São três os mitos de resistência relevantes que chegaram até

nós: o primeiro trata da recusa de filhas de aristocratas em participar do culto de Dioniso; o

deus lança sobre elas a manía, fazendo-as saírem errantes pelos campos e abandonarem seus

afazeres no oikos. O segundo mito de resistência trata da história do rei bárbaro Licurgo, que

persegue Dioniso e suas mênades, em um claro sentimento de que as mulheres não deveriam

abandonar seus lares para cultuarem um deus. O terceiro mito é o que será minuciosamente

analisado por nós nesta dissertação: o do rei de Tebas Penteu contra Dioniso, que volta às

suas origens.

O poder irá utiliza estes mitos de resistência como forma de propagação do próprio

dionisismo, alertando que a cidade deveria não mais recusar o deus, e sim aceitá-lo, como

forma de um exercício de democracia. Recusar o deus traria conseqüências para a polis,

assim como Penteu, que recusa o deus e vê seu palácio ser destruído pela força divina.

Os ritos rurais são aqueles ocorridos nas montanhas, longe dos olhos do poder oficial.

Estes rituais são os primordiais, aqueles que iniciaram a tradição de culto a Dioniso; foram

estes os sufocados pelo poder tirânico e que Eurípides relata em sua peça. São cultos em que

as práticas sexuais, como já foi dito, estão presentes, juntamente com o álcool, a música e a

dança. Este ritual era praticado essencialmente por mulheres, pois a entrada de homens não

era, pelo menos em sua forma ideal, permitida. Esta constatada participação de mulheres

representava um perigo para a organização políade, já que as mulheres sequer tinham direito

Page 131: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

130

a uma opinião própria e eram consideradas pelos homens seres inferiores: “A maior crítica

que faziam [os homens] ao universo feminino era atestarem-no como seres que falam muito.

Não pensam e não sabem raciocinar, ou seja, não são nada inteligentes.” (FORTUNA,

2005:142). Embora Marlene Fortuna possa ter exagerado em sua afirmação, haja vista que,

se o homem considerasse a mulher como um ser que não raciocina, este não entregaria todos

os afazeres do oikos e todas as responsabilidades na organização da casa a elas, é fato que

seria inconcebível para a sociedade patriarcal que mulheres deixassem seus afazeres e

saíssem a cultuar um deus, sem autorização de seu marido. Dioniso é o deus que dá força às

mulheres e faz com que estas tenham uma autonomia de escolha e decisão:

Dioniso é Gynaimanès, o que faz as mulheres delirarem (...); nas representações sobre os vasos de cerâmica, as danças menádicas são sempre femininas; em As Bacantes, os thiasos são exclusivamente femininos, e quando Penteu quer ir para a montanha, ele se veste de mulher. Quer haja ou não participação masculina, devemos pensar que o “comportamento menádico” é um comportamento reputado feminino (TRABULSI, 2005:216).

A manía era celebrada como um estado divino. Estar em transe, “fora de si” e com “o

deus dentro de si”, era uma prática nos ritos dionisíacos, assim como o sacrifício;

despedaçamento de vítimas – o sparagamós – e até consumo de carne crua – omofagia –

embora estas duas práticas não possam ser comprovadas. A participação masculina se dará

comprovadamente somente nos séculos V e IV, quando da instalação das festas dionisíacas

nos centros urbanos. Anterior a estes séculos, fica muito complicado confirmar ou refutar a

presença de homens no ritual, porém algumas fontes, como As Bacantes, retratam alguns

homens – Cadmo, por exemplo – se travestindo de figura feminina para participar do ritual

na montanha. O fogo era um elemento muito utilizado pelo ritual. De acordo com Walter

Burkert:

(...) é a defesa mais primitiva contra os animais selvagens – e também contra os espíritos malignos –, dá calor e luz, apesar de permanecer doloroso e perigoso, representante primeiro da destruição: o que era grande, sólido e tangível desfaz-se ardendo em fumo e cinzas” (BURKERT, 1993:136).

Já o culto políade – as festas oficiais que aconteciam dentro do perímetro urbano de

Atenas – surgiram com a ascensão do poder tirânico – no caso de Atenas, na tirania de

Page 132: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

131

Pisístrato – como uma forma de controlar este ritual que antes acontecia longe das cidades e

dos olhos do poder. Neste período, ao contrário da contemporaneidade, não acontecia uma

distinção entre as festas cívicas e as festas religiosas (FARIA, 2007:28), visto que ambas

caminhavam juntas, como a própria política caminhava junto da religião, de um modo geral.

Estas festas passaram a seguir o calendário oficial da polis84 e a ter toda uma organização e

um cronograma pré-estabelecidos: “(...) todas as festas de Dioniso, na Ática do século V, são

cerimónias oficiais de caráter plenamente cívico.” (VERNANT, 1991:164). Mas o que

entendemos por festa? Concordamos com Norberto Luiz Guarinello quando este escreve que

a festa não se opõe ao cotidiano, mas faz parte e está integrada com ele (GUARINELLO,

2001:971); desta forma a festa faria parte do próprio cotidiano políade, sem contrapô-lo, mas

como uma forma de interrupção na vida social para chamar a atenção para um episódio, um

evento ou, no nosso caso, uma divindade:

Festa é, portanto, sempre uma produção do cotidiano, uma ação coletiva, que se dá num tempo e lugar definidos e especiais, implicando a concentração de afetos e emoções em torno de um objeto que é celebrado e comemorado e cujo produto principal é a simbolização da unidade dos participantes na esfera de uma determinada identidade. Festa é um ponto de confluência das ações sociais cujo fim é a própria reunião ativa de seus participantes (GUARINELLO, 2001:972).

Partindo desta definição, podemos compreender que as festas em honra a Dioniso que foram

implantadas pelo poder tirânico ateniense possuíam como principal intenção adentrar no

cotidiano da sociedade para inserir o deus, como uma forma de propiciar a participação

social em um evento criado pelo poder:

Elas [as festas] são laboriosamente e materialmente preparadas, custeadas, planejadas, montadas, segundo regras peculiares a cada uma e por atividades efetuadas no interior da própria vida cotidiana, da qual são necessariamente o produto e a expressão ativa; (...) (GUARINELLO, 2001:971)

Vemos a seguir a descrição destas festas para tentarmos entender as transformações

que ocorreram com o culto primordial e estas festas democráticas e cívicas. As principais

84 De acordo com Burkert (1993), o calendário mais conhecido é o ático e os meses jônio-áticos terminados em –ón provém de nome de festas. Este calendário foi fixado ainda no século VI, como parte da legislatura de Sólon. Curiosamente o calendário não é regido pelo ritmo natural, como o ano agrícola. Os nomes dos meses são todos retirados de festas da polis.

Page 133: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

132

festas que ocorriam em Atenas são quatro: as Dionisíacas Rurais, que ocorriam entre

dezembro e janeiro; as Lenéias, ocorridas entre janeiro e fevereiro; as Antestérias, que

aconteciam nos meses de fevereiro e março e, finalmente, as Grandes Dionisíacas, nos meses

de março e abril85. Podemos notas que são cinco meses do ano reservados a festas em honra

a Dioniso.

É evidente que estas festas não duravam os cinco meses ininterruptamente; se

acreditarmos nisto, então Dioniso será mais celebrado do que a protetora da cidade, a deusa

Atena. As festas aconteciam em alguns dias do mês, e nestes dias não se trabalhava nem

havia função pública. Também temos de deixar claro que estas festas ocorriam antes mesmo

da promoção pelo tirano – se bem que com características bem distintas daquelas propostas

pela tirania e posteriormente pela democracia – e que também aconteciam em diversos locais

diferentes, e não só em Atenas.

As Dionisíacas Rurais, celebradas no mês de Poseidon, eram comemoradas nos

distritos um pouco afastados da ágora. Parecia ser uma festa de muita descontração, pois as

provas propostas – como a askoliasmós, que consistia em pular vasos cobertos de óleo –

provocavam muito riso (TRABULSI, 2004:193). Mas o mais importante da festa para nós é

constatarmos a faloforia, uma adoração ao falo como órgão divino e primordial. O falo-

pássaro, tendo a cabeça e o pescoço substituído por um pênis, representava a independência e

a livre escolha: “Nas Dionísias rústicas, o falo é pedestre e de tamanho mais modesto.

Pintado recentemente, cuidadosamente erguido, o pássaro-falo de Dioniso está pronto para

aparecer.” (DETIENNE; SISSA, 1990: 269-270). A procissão fálica possuía todo um

simbolismo que a legitimava e lhe concedia um caráter sagrado:

A invenção de “carregar o falo”, dita faloforia, dá-se sob a influência de uma aparição de Dioniso, chamada, por seu turno, em grego, epidemia, “chegada ao país”. Dioniso apresenta-se com,o deus que vem, surge, irrompe, revelando o vinho na terra de Icário, ou na cidade ateniense do rei Anfictião (DETIENNE; SISSA, 1990:270).

Por ser uma festa rural, as Dionisíacas Rurais possuíam muitas características de um

dionisismo primitivo, aos moldes do que ocorria no período homérico, essencialmente

rústico e até certo ponto misterioso, um dionisismo pré-políade (TRABULSI, 2004:193).

Uma constatação interessantíssima colocada a nós por Trabulsi é o fato de que as festas

85 Deixemos claro que estamos reproduzindo o nosso calendário.

Page 134: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

133

dionisíacas mais desenfreadas que ocorriam na Ática eram as da região de Brauron;

exatamente a região onde estavam localizadas as terras de Pisístrato. Um fato curioso nestas

festas é a presença do riso constantemente: provas que faziam as pessoas caírem ou se

encontrarem em situações grotescas aconteciam durante este festejo. Por ser uma festa

agrária, havia esta “tolerância” maior quanto às extravagâncias, como o riso: “(...) riso

libertador do pavor e da morte, das angústias, do luto, da constrição das proibições e das

conveniências, riso que liberta a humanidade de pesadas constrições sociais.” (VERNANT;

VIDAL-NAQUET, 1999:178).

As próximas festas, Lenéias, aconteciam no mês Gamélion. O nome da festa sempre

gerou controvérsias acerca de seu significado, inclusive entre os próprios antigos: “A

interpretação mais simples pareceu ser a de ‘Dionisíacas do Lenaion’, do nome do local onde

se desenvolvia a celebração. O Lénaion seria um grande recinto onde se teriam realizado as

representações teatrais antes da construção do teatro.” (TRABULSI, 2004:194). Com esta

afirmação podemos, então, concluir que as Lenéias eram festejos muito antigos –

provavelmente os mais antigos – já que datam de antes da formação dos lugares teatrais. O

nome lénai é o equivalente jônico para bacante e o verbo lenaizen indica “fazer as bacantes”

(TRABULSI, 2004:195), ou seja, a celebração das Lenéias envolveria o ritual em honra a

Dioniso parecido com aquele primordial, em que as mulheres se “faziam bacantes”. Esta

festa foi a menos popular quando do governo tirânico, e a democracia de forma alguma

diferiu; as Lenéias jamais foram completamente incorporadas pela vida cívica:

(...) poderíamos avançar a hipótese que é precisamente por seu aspecto “autenticamente dionisíaco”, orgíaco pelo menos na segunda parte, que elas não receberam a atenção do tirano e, depois dele, da democracia. Entre as diversas cerimônias dionisíacas, elas eram talvez aquelas que combinavam menos com a integração do deus na cidade (TRABULSI, 2004:196).

Estas festas são, talvez, as que mais se assemelham ao rito descrito por Dioniso na peça As

Bacantes – tema de nosso último tópico; as Lenéias guardam um pouco do caráter primeiro

do culto dionisíaco. O resgate de características mais primitivas é comum em todas as

sociedades: “Em quase todas as sociedades, há festas que conservam por muito tempo um

caráter ritual. O observador moderno vê aí, sobretudo, a transgressão das proibições.”

(GIRARD, 1990:151).

As Antestérias eram celebradas no mês de seu nome, Anthestérion, e era uma das

festas mais cívicas em honra a Dioniso, celebradas como um renascimento com o fim do

Page 135: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

134

inverno e o início da primavera: “São as palavras ánthos, flor, e o verbo anthein, florescer,

que a explicariam, em referência ao nascimento do mundo vegetal que se produz no início da

primavera.” (TRABULSI, 2004:197). Nesta festa se faz claro o consumo do vinho, já que no

primeiro dia eram abertos os vasos onde a bebida foi guardada para fermentação; este

momento era esperado por todos os participantes, pois é através do vinho que se celebra o

deus e, no segundo dia da festa, começavam os concursos baseados na ingestão do vinho. A

festa se estendia por três dias e cada dia tinha um nome próprio: Pithoígia – abertura de

barris – Chóes – jarros – e Chýtroi – panelas (BURKERT, 1993:456).

Entretanto, são dois os acontecimentos durante esta festa que são analisados por nós

nesta digressão. A primeira é a questão do casamento do deus com a rainha da cidade. Após

a chegada de Dioniso na Grécia, através do mar Egeu86, o deus desposa a então esposa do

Arconte-Rei, em um rito de união sagrada. Metaforicamente, o casamento de Dioniso com a

rainha soberana seria o casamento do deus com a própria Atenas, que o recebia como

soberano da cidade. Podemos encarar a rainha como a Deusa-mãe, ou como Ariadne, em um

claro vestígio da religião primordial de Dioniso (VERNANT, 1991:164). Realizando um

cotejamento com a peça As Bacantes, de Eurípides, podemos dizer que: “Neste casamento,

Atenas acolhe o deus como a Tebas de Penteu deveria ter feito.” (TRABULSI, 2004:200). A

esposa de Dioniso pode ser representada como Ariadne – um de seus amores (BURKERT,

1993:460).

O outro ocorrido ainda nas Antestérias está no terceiro e último dia da festa.

Acreditava-se que, ao abrir os vasos com vinho no primeiro dia da festa, libertavam-se

também as almas do outro mundo. Desta forma, eram oferecidas no terceiro dia as Chutroi,

espécies de marmitas feitas com a refeição dos vivos que eram oferecidas aos mortos, além

de água (TRABULSI, 2004:200). Este terceiro dia não era dedicado somente ao culto de

Dioniso, mas também ao culto de seu irmão Hermes, o deus mensageiro que guia as almas

até o outro mundo. Está aí uma prova da relação entre Dioniso e Hermes e, também, entre

Dioniso e o mundo dos mortos.

As Grandes Dionisíacas eram as festas dionisíacas mais importantes do calendário

políade. Tal como ela existe no período democrático, é uma invenção de Pisístrato, e pouco

tem de características que nos remetem a tempos longínquos, por ser uma festa estritamente

cívica, muitas vezes chamadas de Dionisíacas Urbanas. Quem sabe podemos nos remeter a

86 Trabulsi (2004) constata que esta alegoria de Dioniso chegando diretamente do mar Egeu é mais uma prova que vem a somar com as teses de um Dioniso estrangeiro, já que o deus chega proveniente do Oriente.

Page 136: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

135

alguma coisa das Dionisíacas Rurais, como a questão da faloforia. Porém, se constata que as

Grandes Dionisíacas surgem de outra festa não muito distante cronologicamente. Acontecida

no mês Elaphebolion, a festa, celebrada à noite, contava com imagens fálicas celebradas por

filhas dos cidadãos atenienses abastados (DETIENNE; SISSA, 1990:270), que agora

aceitavam Dioniso e seu culto, diferentemente da aristocracia homérica. É nas Grandes

Dionisíacas que se formaram os concursos trágicos, como forma de homenagear o deus;

sobre isto explanaremos nos tópicos seguintes.

Estas Grandes Dionisíacas foram utilizadas com muita força pelos tiranos para a

difusão de sua política religiosa e estão entre as mais integradas festas em honra a Dioniso,

muito mais que as Antestérias, que também possuíam um caráter extremamente cívico. O

fato se dá porque durante o mês de Anthestérion, ainda não havia se reiniciado a navegação.

Desta forma, Atenas – e outras cidades-estado também seguiam a mesma lógica – ainda não

estava sendo visitada por estrangeiros e mercadores: “No momento das Grandes Dionisíacas

(...) com a navegação já retomada, “toda a Grécia” podia assistir à manifestação de brilho da

poderosa Atenas.” (TRABULSI, 2004:202). Nos ritos da faloforia e nos banquetes, o

ambiente não era anárquico e desordenado, e muito menos se percebia nele uma igualdade

entre os indivíduos e muito menos um aspecto selvagem. Diferentemente dos ritos

primordiais ou até das festas mais antigas – Dionisíacas Rurais e Lenéias – as Grandes

Dionisíacas mostravam o papel de uma festa oficial: civilizar para controlar. Nas palavras de

Trabulsi:

Uma festa nova, muito mais civilizada, favorecida pelos tiranos, e depois pela democracia, em detrimento de festas mais antigas, porém menos adaptadas às suas necessidades. No final do século VI, ela marca um compromisso entre a necessidade de dar satisfação às reivindicações do démos, componente essencial das bases sociais do poder tirânico, mas ao mesmo tempo reforçando as estruturas de um Estado centralizado contra o particularismo aristocrático, necessidade que um dionisismo desabrido não poderia satisfazer. Na época clássica, esta festa anual se torna quase tão importante quanto as Panatenaicas, e, sem qualquer dúvida, a festa dionisíaca mais importante (TRABULSI, 2004:203).

Assim como no ritual, nas festas também se utilizava o fogo, como forma de dar vida

a este deus tão popular: “(...) no fogo da procissão dionisíaca o povo incandescido associa à

alegria, à vida e ao desejo de bem-estar libertador o desejo de morte, de transformação

iluminada, metamorfose, pela luz das tochas.” (FORTUNA, 2005:98). Marlene Fortuna

Page 137: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

136

caracteriza as festas que honravam Dioniso como uma carnavalização do cotidiano: “As

inversões carnavalizantes de Dioniso são permeadas de todas as características típicas da

carnavalização: o grosseiro, o cômico, os valores contrários, o riso, a sátira (...)”

(FORTUNA, 2005:83). Para a autora, todas as hierarquias, os valores e as normas passavam

por uma reviravolta durante estes festejos. Discordamos neste ponto da visão de Fortuna. A

primeira vista pode mesmo parecer que todas as hierarquias ruíam durante as festas. Mas,

como já elucidamos, estas festas – principalmente as estritamente urbanas – possuíam um

caráter cívico de manutenção da ordem vigente. A democrática Atenas permitia toda a

diversidade de indivíduos e costumes durante os festejos, mas sempre sob os olhos

controladores do Estado. Festas que possuíam uma essência ruralizada não eram tão

divulgadas pelo estado ateniense. O fato de o Estado permitir esta carnavalização está em

promover uma “válvula de escape” para a população. De acordo com Guarinello, uma festa

não é um espaço sem regras ou invertido da ordem social: “Toda festa tem suas próprias

regras, seus códigos de conduta, sua rede de expectativas recíprocas, que podem ser escritas,

ou fortemente ritualizadas, ou fortemente espontâneas e informais (...)” (GUARINELLO,

2001:973).

A festa – principalmente as dionisíacas – se constituía como um lazer patrocinado

pelo Estado e sob sua regência e, embora com uma igualdade aparente, com especificidades

bem segregadoras: “(...) quanto mais a festa é importante para a polis, menos a participação é

igualitária e indiferenciada. Mesmo em relação ao ‘deus que não faz distinções em favor de

ninguém, a polis faz com que alguns sejam mais iguais que outros.” (TRABULSI,

2004:203). Contudo, também não podemos cair na ingenuidade de afirmar que as pessoas

seguiam obedientes todas as hierarquias implicitamente impostas. Jon Elster, em sua obra

Peças e Engrenagens das Ciências Sociais, traça um panorama dos momentos em que a

racionalidade falha. Para o autor, o poder realmente deseja incutir uma racionalidade em

todas as suas ações, mas quando se verifica o que a pessoa realmente fez – ou o que

realmente aconteceu – é fácil perceber elementos distintos daqueles impostos de antemão

(ELSTER, 1994:47). Todavia, as festas dos períodos tirânico e democrático eram, sem

dúvida, mais controladas do que àquelas manifestações primordiais de períodos anteriores.

Podemos perceber a questão segregacional nestas festas pela presença das

Page 138: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

137

representações de falos87. O falo – phalós – representa a fertilidade viril e, principalmente, a

soberania deste em detrimento da vulva. Como coloca Daniel Barbo, a representação fálica

estava estritamente ligada à questão sócio-política; o falo representava a força política do

homem viril, não efeminado, aquele que penetra e que domina:

(...) associam a simbologia do falo ereto com esse poder político; demonstram a exclusão dos outros grupos sociais, em particular o das mulheres (...); demonstram o amplo escopo do erotismo legítimo exclusivo aos homens (o poder de penetrar mulheres e jovens de qualquer classe social); demonstram quão execrável era para o homem o comportamento efeminado, visto como uma conspurcação da masculinidade devida ao falocentrismo (...) (BARBO, 2008:85).

Neste caso, as festas dionisíacas serviriam para uma segregação implícita no cotidiano

festivo. A festa seria um produto de divulgação desta masculinidade, lançando mão de

subterfúgios psicológicos que incutiriam estas idéias na moral do cidadão.

Dioniso foi o deus utilizado para a disseminação da idéia supracitada88.

Provavelmente o deus foi escolhido exatamente por seu caráter de aproximação das

diferenças. Temos aí uma dicotomia: o deus que traz a igualdade é representado pelo

símbolo da segregação, e só é representado por este símbolo porque traz a noção de

igualdade. Esta falsa noção de igualdade faz com que as diferenças apareçam sem

questionamento por parte da sociedade:

Na verdade, o phalós representava a própria virtualidade, tão apaixonada, de Dioniso. O phalós é um órgão que se movimenta sem que o intelecto o comande, aumenta e diminui de volume; se contrai e se alonga; amolece e enrijece-se; ora, o que não é Dioniso senão esse movimento do virtual que vai e vem, aparece e desaparece, endurece com a maior virulência, em seguida pode amolecer com a maior piedade? (FORTUNA, 2005:137).

Ainda de acordo com Guarinello, as festas não diminuem as diferenças. Elas seguem a

seguinte dinâmica: “A festa não apaga as diferenças, mas antes une os diferentes”

87 De acordo com Giulia Sissa e Marcel Detienne (1990), estes falos eram feito de madeira e fabricados por carpinteiros esmerados. Os preços, tanto da matéria-prima quanto da confecção, eram elevados. 88 Porém, é perceptível nas imagens que representam Dioniso que o deus nunca é representado itifálico; não se confunde com os sátiros com o falo pungente. O deus não é bestializado e selvagem como os outros indivíduos de seu cortejo. Sempre mantém um caráter temperante representando seu autocontrole, deixando a manía e a masturbação para as mênades e os sátiros, respectivamente. Assim como um cidadão deveria se portar, Dioniso se controla e detém o comando de seu cortejo. Mesmo assim Dioniso é o único deus principal que se manifesta pelo pênis e através do pênis.

Page 139: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

138

(GUARINELLO, 2001:973). Desta forma, as diferenças continuariam a existir plenamente;

só estariam unidas durante estes dias para, com o término da festa, distanciarem-se

novamente.

Acreditamos que este caráter irracional do desejo sexual manifestado no falo também

se assemelha ao dionisíaco da manía e da orgia. Porém, não conseguimos ver uma

sobreposição deste fato às questões políticas. O dionisismo, desde a época dos tiranos, sofreu

transformações que vão afetar seu caráter primordial para atender aos interesses políticos de

uma elite. Dioniso primordialmente é o deus que não faz distinção, mas outros fazem esta

distinção em nome dele. Nas palavras de Giulia Sissa e Marcel Detienne;

Dioniso não pode ser confundido com um vulgar falocrata: o falo manifestando a “potência vital” da natureza não pertence a nenhum corpo masculino. Transcende o corpo, excede a sexualidade humana, assim como a força do vinho ultrapassa os limites do banquete e da cratera, entre os que bebem e os convivas. No dia do falo, é a onipotência de Dioniso que exibe – espetáculo da força vital, para a cidade inteira, irrigando a natureza, as plantas, as árvores e os viventes, quaisquer que sejam seu sexo e os detalhes de suas relações. Cabe a outros regulamentá-las (DETIENNE; SISSA, 1990:277).

Dioniso estava regido por um poder que o padronizava, mesmo que não totalmente. O

controle que o poder exercia sobre a religiosidade e sobre a festa criava padrões próprios de

sociabilização e representação.

Toda festa (...) implica uma determinada estrutura de produção e de consumo e, portanto, uma estrutura de poder, passível de controle diferenciado. Controle que se estende da produção material da festa, de seus objetos, vestimentas, instrumentos, bens de consumo, à definição do papel ou lugar de cada participante em sua execução e consumo até, de modo mais amplo, à definição do sentido da própria identidade que produz (GUARINELLO, 2001:973).

Esta padronização pode muito bem ser exemplificada no último tópico desta dissertação: a

tragédia como forma de manifestação do dionisismo. Não é nossa intenção neste trabalho

realizar nenhum tipo de juízo de valor acerca deste poder e sobre seus supostos benefícios ou

malefícios. Queremos somente constatar como a questão do poder insere-se na sociedade e

modifica suas diversas estruturas.

Page 140: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

139

3.3 O teatro democrático do século V e a imagem de Dioniso

Como forma de compreender como Dioniso foi inserido na tragédia ateniense,

tentamos neste tópico propor uma brevíssima história do teatro grego, tendo como ponto

norteador alguns aspectos da obra Poética, de autoria do já estudado filósofo Aristóteles.

Esta obra, redigida do século IV, nos cede apontamentos que tratam das impressões que o

filósofo tem acerca da tragédia89. E o teatro nasceu na Grécia? Pierre Grimal, analisando

Aristóteles, aponta que nem os gregos estavam em consenso, e muito menos em relação à

tragédia e à comédia terem surgido na mesma época e no mesmo meio90 (GRIMAL,

2002:25). Nem a constatação de que o teatro surge no mundo helênico é dada como certa.

Jose Antonio Dabdab Trabulsi acredita que as manifestações teatrais têm uma incidência

quase universal, e que ninguém pode postular uma origem grega para o teatro em geral

(TRABULSI, 2004:140).

Porém, é com o teatro grego que iremos trabalhar, e este nasce, segundo a maioria

dos especialistas, durante o período compreendido entre os séculos VI e V: “Os três grandes

gêneros dramáticos (...) foram a tragédia, a comédia e o drama satírico (...). Os três nasceram

no mundo helênico e foi em Atenas que se representaram as peças que levaram os três

gêneros ao mais alto grau de perfeição.” (GRIMAL, 2002:25). O ditirambo91 atesta a origem

dionisíaca das representações: “Colocando o ditirambo nas origens dos outros gêneros, ele dá

conta dos laços entre Dioniso e o teatro, pois o ditirambo é um canto-dança ritual

incontestavelmente dionisíaco.” (TRABULSI, 2004:142). Este ditirambo primitivo evolui

para uma complexidade maior, com vários personagens e menos participação do coro. A

tragédia grega durou ao todo oitenta anos, e os oitenta anos de apogeu ateniense – entre a

vitória nas guerras Greco-Pérsicas e a derrota na Guerra do Peloponeso.

Trabulsi aponta que das noventa tragédias escritas por Ésquilo, conhecemos apenas

89 A obra de Aristóteles tratava de dois gêneros teatrais muito difundidos em Atenas: a tragédia e a comédia. Contudo, a parte conservada que durou até os dias de hoje foi somente o texto sobre a tragédia. Do texto sobre a comédia nada sobrou. O que sabemos da opinião de Aristóteles acerca da comédia são alguns cotejamentos que este realizou enquanto escrevia o tópico da tragédia. 90 Como iremos trabalhar com um texto trágico, é importante situarmos que o primeiro poeta trágico a quem este título foi atribuído foi Téspis, da cidade de Metimna, na ilha de Lesbos. O tragediógrafo ganhou o prêmio de melhor tragédia, instituído por Pisístrato em 534, durante a festa das Grandes Dionisíacas. Entretanto, os tragediógrafos mais conhecidos na contemporaneidade são Ésquilo (525-456) – do qual temos a primeira tragédia conservada na íntegra: Os Persas – Sófocles (495-406) e Eurípides (485/480-407). É importante ressaltar que as datas de nascimento e morte dos escritores não é consenso; aqui utilizamos a datação de Jacqueline de Romilly (1998). 91 Primeiro tipo de representação – também em honra a Dioniso; tratava-se de um diálogo entre um personagem e o coro.

Page 141: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

140

sete. Quanto a Sófocles a questão é mais complexa: também conhecemos sete, em um

universo de mais de cento e vinte peças compostas. Eurípides, embora existam controvérsias,

compôs noventa e duas peças e conhecemos dezenove (TRABULSI, 2004:145). Trabulsi

realiza uma breve discussão em sua obra tentando conjecturar o que aconteceria se a peça As

Bacantes não tivesse sido conhecida por nós, ou se a peça Orestia não tivesse sido escrita.

Acreditamos que esta discussão é irrelevante; o caso é que estas foram as peças que nos

chegaram e são somente com elas que poderemos traçar uma história do teatro ateniense.

Provavelmente se outras peças tivessem resistido ao tempo, teríamos sim uma outra visão

sobre o século V, mas o caso é que não resistiram.

Antes de nos debruçarmos sobre a fonte, é importante situarmos que o teatro não foi

algo concebido durante a democracia. O mais antigo local de espetáculos teatrais foi

provavelmente o teatro de Dionysos Eleuthereus – Dioniso Elêuteras – construído no século

VI, na Beócia, que também passou a ser um dos possíveis locais de nascimento do deus

(GRIMAL: 2002,14). É perceptível, pelo nome do teatro, que Dioniso está intrinsecamente

ligado ao teatro – e, sobretudo, à tragédia92: “A tragédia nasceu do culto a Dioniso: isto,

apesar de algumas tentativas, ainda não se consegui negar.” (BRANDÃO, 1985:9). A

principal cidade desta região é Tebas – onde não houve uma tirania nos moldes da ateniense

ou da coríntia; desta forma, não podemos afirmar que a relação entre o teatro e Dioniso tenha

sido uma invenção dos tiranos. A questão é que, particularmente em Atenas, as

apresentações teatrais iniciaram-se dentro das festas que celebravam Dioniso; os tiranos –

sobretudo Pisístrato – utilizaram da popularidade do deus para inserir os concursos.

Pierre Grimal aponta-nos que a palavra “tragédia” – tragoidía – tem como significado

“canto do bode”. Duas são as hipóteses mais plausíveis: ou se refere ao coro, que no início

era feito por pessoas representando sátiros – que, de acordo com o autor, em algumas

tradições são seres metade homens metade bodes – ou refere-se ao sacrificio de um bode,

animal preferido do deus, que sempre era sacrificado em sua honra durante as festas e nos

fins de espetáculos trágicos. Concordamos com Jacqueline de Romilly quando esta discorda

da questão dos sátiros. Os sátiros jamais foram identificados como bodes (ROMILLY,

1998:17); talvez pudesse referir-se a Pã – este sim realmente era representado metade

homem metade bode – mas este deus não fazia parte de nenhum elemento da tragédia, muito

menos do coro satírico. Desta forma, a segunda opção apontada por Grimal nos parece –

92 As antigas improvisações religiosas foram organizadas em representações que aconteciam durante as festas políades em honra deste deus.

Page 142: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

141

embora efetivamente mais “sem-graça” – mais plausível. Rachel Gazolla alerta-nos para o

fato de que a palavra tragédia não se refere à “tragédia” conhecida por nós. Como um ritual

que está dentro de uma festa, e celebrando um deus festivo, pode representar dor e

sofrimento? A tragédia ática não tem a conotação de drama da maneira que conhecemos;

tragédia é um substantivo que designava um ritual religioso-político apresentado na forma de

encenação, e não um adjetivo para designar sofrimento (GAZOLLA, 2001:19). A palavra

tragikon é muito mais aplicada à literatura do que à vida na Grécia antiga (MOST, 2001:23).

Todavia, a escrita da tragédia não nasce sem sequelas de outro gênero: a epopéia.

Podemos reparar que, salvo exceções, as tragédias tratam de temas épicos: a Guerra de Tróia

e as penosidades vividas por Héracles são alguns dos temas caros à epopéia:

De qualquer maneira, os autores de tragédias buscaram na epopéia a inspiração para suas obras. E não há dúvida de que dali extraíram, ao mesmo tempo, a arte de construir personagens e cenas capazes de comover. Conferir o sentimento da vida, inspirar terror e piedade, partilhar um sofrimento ou ansiedade foram sempre traços da epopéia, que ela ensinou aos trágicos. Poder-se-ia igualmente dizer que, se a festa criou o gênero trágico, foi a influência da epopéia que fez dele um gênero literário (ROMILLY, 1998:21).

A tragédia tem como matéria prima a lenda heróica, e os heróis épicos figuram na maioria

das tragédias (VERNANT; VIDAL-NAQUET, 1999:215). Assim, a tragédia seria um gênero

que retomou muitas das lendas que já eram muito conhecidas do povo grego, e elaborou uma

nova forma de encarar estes contos, embora Pierre Grimal alerta-nos de que a leitura feita

por muitos, de que a tragédia é apenas uma retomada dos costumes primitivos e de cultos

arcaicos, é errônea (GRIMAL, 2002:25). É certo que os autores aproveitaram de estórias já

conhecidas pelos espectadores para elaborar seus argumentos e assim prender a atenção do

público. As Bacantes é um ótimo exemplo: Eurípides elabora um novo argumento em cima

do mito de fundação de Tebas, muito conhecido pelos gregos.

Mas alguns indícios levam-nos a refletir que a escrita da tragédia pode ter acontecido

antes da institucionalização dos espaços teatrais: “Diversos testemunhos, um de Sólon, outro

de Heródoto, deixam vislumbrar que a primeira tragédia foi inventada não em Atenas, mas

em Sícion, no Peloponeso, (...), e que esta tragédia foi obra do poeta Aríon (que viveu no

século VII a.C.).” (GRIMAL, 2002:26). Se concordarmos com estes testemunhos, então o

Page 143: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

142

teatro seria concebido ainda no período homérico93, porém esta afirmação é demasiadamente

difícil de sustentar. No caso de Atenas, Pisístrato foi um grande incentivador das

apresentações de teatro, e com a continuidade de seu governo com os Pisistrátidas, muitos

artistas e muitas inovações teatrais chegaram até Atenas e propiciaram uma nova formatação

da tragédia, muito parecida com as tragédias do período clássico que conhecemos94. Era

importante para as tiranias que festas que tratassem de temas como o poder – tema central da

maioria das tragédias – fossem organizadas pelo poder tirânico e oferecidas ao povo: “(...) é

muito provável que a tragédia só tenha podido nascer quando aquelas improvisações

religiosas das quais ela surgiria foram reorganizadas sob o comando de uma autoridade

política, com apoio do povo.” (ROMILLY, 1998:15). Deste modo, a tragédia não é só uma

questão literária; é, sobretudo, uma questão política:

Assim, a instituição dos concursos de tragédias e o advento do próprio género no ciclo das festas da cidade seriam o resultado de duas causas interligadas: uma causa literária, que foi a descoberta por um poeta genial (sem dúvida, Téspis) das possibilidades do género e, ao mesmo tempo, uma causa política, o desejo de os tiranos darem ao povo festas em que se forjaria a unanimidade da cidade (GRIMAL, 2002:28).

Da mesma forma, Dioniso continuou sendo utilizado pelo poder, assim como o teatro,

do qual era patrono: “Dioniso tem, portanto, relações íntimas com o teatro e, por

conseguinte, mais ou menos indiretamente, com o poder, pois a influência do teatro faz dele

um verdadeiro ‘aparelho ideológico do Estado’.” (TRABULSI, 2004:145). Embora Trabulsi

possa ter sido um tanto quanto althusseriano em sua afirmação – o que está longe de ser um

problema, por vezes é até uma solução – é perceptível que o poder do Estado – tanto o

tirânico como o democrático – utilizou de Dioniso e do artifício do teatro para padronizar o

culto e o rito cthônico, da mesma forma que ocorrera com as festas políades.

Diferentemente do que ocorre na contemporaneidade, onde o teatro é, por diversas

vezes, utilizado como elemento de contestação e reflexão acerca dos problemas

93 Alguns autores – como Grimal (2002) – afirmam que Aríon era da mesma terra de Téspis. Outros, como Romilly (1998), colocam-no como habitante de Corinto. Mesmo que Aríon não fosse de Lesbos, podemos constatar que a ilha era um local rico em manifestações teatrais, mesmo que somente escritas e, ao que tudo indica, Téspis “aperfeiçoou” a inovação estilística de seu talvez compatriota Aríon, para ter condições de ganhar o concurso. 94 Jacqueline de Romilly (1998) afirma que a primeira seleção de tragédias – ao todo trinta e duas – foi feita já no período romano, na época do governo imperial de Adriano. Estas cerca de trinta peças são ínfimas, pois se acredita que foram confeccionadas mais de mil, que se perderam com o tempo e não chegaram aos dias de hoje.

Page 144: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

143

contemporâneos95, o teatro na Antiguidade foi instituído pelo poder para neutralizar a

manifestação livre do indivíduo: “O teatro não é apenas uma forma de arte, é uma instituição

social que, pela fundação dos concursos trágicos, a cidade coloca ao lado de seus órgãos

políticos e judiciários.” (VERNANT; VIDAL-NAQUET, 1999:10). O teatro também não era

só um artefato do lazer, ele possuía um tremendo poder como instrumento pedagógico; poder

este que foi, por diversas vezes, utilizado como formador de opinião. Não queremos afirmar

que o teatro ateniense era desprovido de crítica, pelo contrário, haja vista todo o senso de

crítica da comédia, sobretudo de Aristófanes, e também de várias tragédias – como a crítica

ao civismo contida na Orestia, de Ésquilo. O que estamos propondo é um retorno às palavras

de Henri Lefebvre (2006), onde este afirma que a tragédia marca o fim dos mitos e o início

de sua representação; na tragédia o mito primordial não existe mais, o que existem são

representações deste mito. A tragédia é o mito manifestado dentro de uma redoma chamada

poder:

Na Grécia, todas as correntes religiosas confluem para uma bacia comum: sede de conhecimento contemplativo (gnôsis), purificação da vontade para receber o divino (kátharsis) e libertação desta vida “geradora”, que se estiola em nascimentos e mortes, para uma vida de imortalidade (athanasía). Mas, essa mesma sede nostálgica de imortalidade, preconizada pelos mitos naturalistas de divindades da vegetação, que morre e ressuscita, divindades (Dioniso, sobretudo) essencialmente populares, chocava-se violentamente com a religião oficial e aristocrática da pólis, cujos deuses olímpicos estavam sempre atentos para esmagar qualquer “démesure” (desmedida) de pobres mortais que aspirassem à imortalidade. Os deuses olímpicos sentiam-se ameaçados e o Estado também, uma vez que o homo dionysiacus, integrado em Dioniso, através do êxtase e do entusiasmo, se libera de certos condicionamentos e de interditos de ordem ética, política e social (BRANDÃO, 1985:11).

A representação é aquilo que torna existente o imaginado. Desta maneira, aquele

imaginário mítico passa a ser materializado em um tempo e espaço próprios para isto: “A

tragédia nasce (...) quando se começa a olhar o mito com olhos de cidadão.” (VERNANT;

VIDAL-NAQUET, 1999:10). A tragédia demarca nitidamente as distâncias e exalta as

contradições. A máscara que o ator utiliza em suas representações demonstra exatamente a

presença de algo que se encontra ausente: a divindade está ali representada por aquela

máscara: “Joga, portanto, com o imaginário do espectador, com a ausência e a presença tão

95 Para uma análise da evolução histórica da tragédia, ver: MARSHALL, Francisco. “A Historicidade Trágica”. Anos 90-UFRGS. Porto Alegre, v.6, p. 124-154, 1996.

Page 145: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

144

pertinente a esse Dioniso mascarado e mascarador, que se manifesta nos esconderijos

escolhidos a seu bel-prazer (...) que anuncia esse jogo de presença-ausência (...)

(GAZOLLA, 2001:46-47). A máscara é um semióforo essencial para que a representação

teatral aconteça.

A própria literatura transforma-se em uma forma de poder. A tragédia como forma de

arte padroniza tanto o mito quanto o rito:

Lembremos a fórmula tão freqüente citada por Marx: “Mas a dificuldade não está em compreender que a rate grega e a epopéia estão ligadas a certas formas de desenvolvimento social. Eis a dificuldade: elas nos causam ainda um prazer artístico e, de certo modo, nos servem de norma, são para nós um modelo inacessível” (VERNANT; VIDAL-NAQUET, 1999:211).

Vernant e Vidal-Naquet estão se referindo à obra Introdução Geral à Crítica da Economia

Política, de autoria de Karl Marx. De acordo com Marx, a arte e a estética criadas nas mais

diversas sociedades acabam por servir a um poder, seja ele um poder macro ou um poder

micro.

Da mesma forma, o espaço físico onde se concentram as apresentações também se

configuram como espaços do poder. O teatro passa a ser um local sagrado, um local de

manifestações religiosas regidas por uma regra e uma moral própria. Não se pode celebrar o

mito através de um ritual primordial, deve-se celebrar este mito de acordo com as

representações teatrais. Uma estátua de Dioniso era disposta nos teatros; na orquestra –

orkhêstra – erguia-se um altar de pedra e nas arquibancadas sentava-se, em um trono

esculpido, o sacerdote de Dioniso. Não conseguimos imaginar toda esta parafernália naquele

Dioniso cthônico, que se embriagava e dançava junto às figuras bestiais. Este Dioniso cívico

depende de engrenagens – para utilizar um termo caro a Jon Elster (1994) – que o façam

funcionar como deus dentro da cidade. O espaço teatral também se constituía como um

espaço abstracional, onde diversas localidades diferentes eram representadas e diversas

idéias distintas trabalhadas:

A tragédia ática exerceu uma prática espacial múltipla, mediante a idéia de espaço como infinito, como algo pleno, como extensão material, como vazio. Também como um pré-requisito para o surgimento, emanação e sincronização de fenômenos, que garante as leis naturais, como um sustentador do cosmos e também, ocasionalmente, como uma abstração confusa e absurda (TOBIA, 2005:19).

Page 146: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

145

Destarte, o espaço do teatro ainda era demasiadamente precário no período arcaico,

bem diferente de quando atinge seu apogeu, na época clássica:

Não existia qualquer tribuna, qualquer plataforma, nem qualquer espaço, sobrelevado destinado aos actores. Isso só aparecerá mais tarde, fruto de uma longa evolução. Actores e membros do coro misturavam-se na orchêstra: distinguiam-se pelos trajos e, muito particularmente, pelo facto de os actores calçarem sapatos de sola espessa, o coturno, parecendo assim mais altos do que os coreutas (GRIMAL, 2002:15).

O choros – coro – possui um papel de extrema e primordial importância no teatro arcaico; já

no período clássico ele não está mais no mesmo nível dos atores, e passa a possuir um papel

mais secundário. De acordo com Cíntia de Moura Siqueira, alguns pensadores, como

Aristóteles, apontam que a maneira euripidiana de apresentar o coro é errada, pois neste não

está presente nenhum ator principal; para o filósofo, no coro também deveria haver a

presença dos atores, como fazia Sófocles (SIQUEIRA, 2008:25). Ao longo do século V os

espaços teatrais foram sendo modificados; a construção das skênai96 propiciou um maior

realismo ao espaço de encenação. As arquibancadas foram aperfeiçoadas e agora eram

dispostas em um semicírculo. O avanço de técnicas mecânicas que ocorreu na Atenas

clássica também ajudou no realismo da encenação:

Quando havia que fazer intervir uma divindade do Olimpo, utilizava-se uma “máquina” (mêchanê) que transportava um actor pelo ar e o colocava na orchêstra (ou no logeion, no teatro helenístico) ou o elevava e fazia desaparecer atrás do telhado da skênê. Esta máquina era uma espécie de guindaste que punha em movimento um cabo que passava por cima da skênê (GRIMAL, 2002:20-21).

As aparições infernais – como os fantasmas, as Fúrias e as divindades subterrâneas –

surgiam literalmente das entranhas da terra. Os atores utilizavam uma passagem subterrânea

escavada por baixo da orchêstra, que os arquitetos chamavam de “escadas de Caronte”

(GRIMAL, 2002:21). Dos espaços físicos destes teatros muito pouca coisa sobrou em forma

de ruína. Somente a explanada foi construída com material durável; os edifícios para atores

eram feitos de madeira e as skênai, primeiramente, eram confeccionadas com pano

(MARTIN, 1956: 283).

96 Espécies de barracas que permitiam instalar os cenários com maior realismo e precisão. Segundo Grimal (2002), isto foi muito útil nas representações trágicas, pois o cenário sempre representava, naturalmente, a fachada de um palácio.

Page 147: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

146

Outro elemento importantíssimo na peça é a catarse – kátharsis. A catarse é o ponto

máximo de uma tragédia; é onde ela sempre caminha para chegar. A catarse é o momento de

purificação, reflexão e, muitas vezes, arrependimento das personagens diante do fato trágico

que acontece ao fim. A vingança, os erros, a arrogância, o medo e outros sentimentos

humanos estão presentes nos personagens que compõem a tragédia, e é sempre por isso que o

momento trágico acontece; são estas fraquezas humanas que fazem ocorrer o momento de

dor do final da peça.

Já escrito acerca da tragédia, deveremos também situar o público que assistia à peça.

Os espaços do teatro não eram freqüentados somente pelos cidadãos abastados. Era

permitida também a entrada de escravos nas apresentações teatrais. Eram reservados a eles

os piores lugares – os mais acima da arquibancada – e jamais poderiam ir sozinhos; estavam

sempre acompanhando os filhos de seus senhores ou as esposas destes. Os homens cidadãos

sentavam-se nos primeiros lugares e suas companheiras nos últimos, talvez até atrás dos

escravos.

Temos de ter claro que os autores de tragédias eram homens abastados – cidadãos –

escolhidos pelos governantes para disputarem concursos. Desta forma: “eles escreviam na

qualidade de cidadãos que se dirigem a cidadãos” (ROMILLY, 1998:15). Quando o poeta

trágico humaniza os heróis – fazendo-os sentirem dor, inveja, vergonha e muitos outros

elementos da psicologia humana97 – este aproxima os personagens dos cidadãos presentes no

teatro (GAZOLLA, 2001:38). Os espectadores se identificam com os trágicos, por estarem

sentindo exatamente o que está sendo retratado na peça.

Falemos agora da obra Poética. Este documento trata de todos estes elementos que

compõem a tragédia. Mesmo Aristóteles tendo vivido no período helenístico – no qual o

teatro já se encontrava modificado – este foi grande leitor das obras do teatro clássico, e

assim pôde tecer seus comentários. Porém, devemos analisar esta fonte estando ciente dos

dizeres de Jean-Pierre Vernant e Pierre Vidal-Naquet:

Antes mesmo que se passassem cem anos, o veio trágico se tinha esgotado e, quando no século IV, na Poética, procura estabelecer-lhe teoria, Aristóteles não mais compreende o que é o homem trágico que, por assim dizer, se tornara estranho para ele (VERNANT; VIDAL-NAQUET, 1999:7).

97 Estes sentimentos também são encontrados entre os deuses na epopéia. Poderia ser esta mais uma característica que a tragédia herdou das epopéias.

Page 148: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

147

Aristóteles era um filósofo do método, então este realiza uma tentativa de enquadrar a

tragédia em um método próprio. Mas o filósofo já não vivia mais a tragédia em sua pujança;

não foi testemunha ocular das festas e das representações teatrais clássicas. Albin Lesky

chega a afirmar que os gregos nunca desenvolveram uma teoria do trágico, e que a Poética

seria somente um ponto de vista que não sairia do aspecto do trágico dentro da análise de

obra de arte (LESKY, 1990:22). Uma coisa é certa quando analisamos a obra, e isto foi

comprovado por vários especialistas: Aristóteles estava muito mais interessado na escrita da

peça do que na sua encenação (MALHADAS, 2003:11). Não é que Aristóteles não

considerasse a encenação como algo importante, mas para o filósofo era na escrita onde se

encontrava a verdadeira poesia, a verdadeira arte.

Acreditamos que realizar uma exaustiva análise da Poética não traria nada de novo

para o trabalho historiográfico. Inúmeros autores – desde o período romano até a

contemporaneidade – já se debruçaram na análise da obra, e já teceram todos os diferentes

comentários sobre ela98. O que iremos realizar neste tópico é identificar alguns conceitos

cruciais para o entendimento de como uma tragédia se constituía. Centraremos nossa análise

na primeira parte da obra.

O principal conceito que queremos trabalhar é o de mímese99. A mímese é colocada

por Aristóteles como a representação – e não como imitação, como erroneamente alguns

afirmam – aquilo que é representado pelo autor, a partir do que ele vê escrito. Contudo,

temos de deixar claro que Aristóteles não define o que é a representação: “Limita-se a dizer

que a tendência para representar, por ser inata no homem, é a causa primeira do nascimento

da poesia. Toda poesia, então, é representação.” (MALHADAS, 2003:18-19).

A representação aristotélica é aquela em que os tragediógrafos representam de

formas diferentes, mesmo que uma mesma história. A tragédia sempre foi pautada em

estórias que o povo grego já conhecia. Assim, os autores representam-nas de formas

distintas, conforme suas concepções. A mímese também é utilizada em outros gêneros – nem

todos teatrais, como aponta Aristóteles já no primeiro capítulo de sua obra:

98 Para uma análise sobre a evolução do pensamento acerca da Poética ver: SKULSKY, Harold. “Aristotle’s Poetics Revisited”. Journal of the History of Ideas. vol. 19, n°2, 1958. Já para uma análise de toda a Poética, ponto a ponto, ver: BARRIVIERA, Alessandro. Poética de Aristóteles – tradução e notas. Campinas: Universidade Estadual de Campinas; Instituto de Estudos da Linguagem; Departamento de Lingüística, 2006. (Dissertação de Mestrado) 99 Também podemos encontrar a grafia mímêsis. Aqui concordaremos com a tradução proposta por uma tese de doutorado em Filosofia: GAZONI, Fernando Maciel. A Poética de Aristóteles: tradução e comentários. São Paulo: Universidade de São Paulo; Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas; Departamento de Filosofia, 2006. (Dissertação de Mestrado)

Page 149: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

148

A epopéia, assim como a poesia da tragédia, como a da comédia e a poesia dos ditirambos, e em grande parte a arte da flauta e da citara, coincidem quanto a mímese, mas diferem entre si de três maneiras, seja pelos meios de realizar esta mímese, seja pelo que se utiliza mímese, seja por realizar a mímese de modos diferentes e não do mesmo modo (Aristóteles. Poética, 47a13).

Podemos concluir que a mímese não é um artefato somente do teatro. A partir do momento

em que existe a arte, existe a necessidade de se representar algo, seja na poesia épica, na

trágica ou nas artes da música.

Aristóteles concorda que a tragédia possa ter vários elementos da antiga epopéia – e

até que possa ter se originado desta – mas diz que as duas possuem várias diferenças e não

podem ser confundidas.

A epopéia coincide com a tragédia porque ambas são mímese de pessoas nobres. Porém, a tragédia difere da epopéia porque esta possui um metro simples e é apresentada em forma de narração. E também se distinguem quanto à extensão, pois uma trata, maximamente, de desenrolar-se em um único período solar, com pouca variação; já a epopéia diferentemente é limitada quanto ao tempo. No princípio, porém, as tragédias e as epopéias eram iguais quanto a isto (Aristóteles. Poética, 49b9).

Aristóteles coloca que a epopéia e a tragédia eram mais parecidas quando criadas, e foram

distanciando seus estilos. No último tópico desta dissertação, trataremos de uma tragédia em

particular: As Bacantes, de Eurípides. Neste documento textual, que trata exclusivamente do

dionisismo, identificamos o que se tornou a imagem de Dioniso no período clássico.

3.4. As Bacantes e a imagem do deus Dioniso

Neste último tópico, tratamos efetivamente do texto teatral intitulado As Bacantes, de

autoria do tragediógrafo ateniense Eurípides. Antes de tratarmos da fonte, falemos

brevemente da vida de seu autor. Como já foi dito, Eurípides nasceu por volta de 484 em

uma família abastada – embora a comédia sempre tenha zombado de sua origem. Seu pai

Mnesarco era dono de terras e, assim como sua mão Clito, fazia parte do dêmos da Flia

(WEFFORT, 2008:35). Começou suas apresentações em 455, mas obteve sua primeira

vitória somente quatorze anos depois. Algumas peças receberam vitórias póstumas – como

As Bacantes – pelo seu filho ou sobrinho (WEFFORT, 2008:36). Uma tradição diz que teve

Page 150: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

149

três filho, e que era melancólico e anti-social, sempre lendo dentro de uma gruta. Sua peça

mais antiga que chegou aos nossos dias foi Alceste, datada de 438. Eurípides foi, certamente,

o escritor que mais se preocupou com temas psicológicos e da alma humana. Influenciado

pela filosofia da época, Eurípides fará parte da nata intelectual ateniense:

Aberto às novas descobertas de espírito, Eurípides se move num ambiente intelectual onde as tradições são questionadas pela exigência de uma racionalidade discursiva, acessível ao entendimento e passível de exame; onde o homem, segundo a expressão de Protágoras, “é a medida de todas as coisas”; onde, seguindo a tendência dos sofistas, tudo é possível conhecer, definir e defender. Todos os matizes e as contradições desse novo espírito discursivo encontrarão reflexo em sua obra. A proximidade intelectual com os sofistas e a influência de suas idéias vai lhe custar alguns desafetos, como o do poeta cômico, Aristófanes, contemporâneo seu, que o acusa publicamente em suas comédias de ser um dos grandes responsáveis pela corrupção dos antigos valores (WEFFORT, 2008:37).

O escritor só foi vencedor cinco vezes nos concursos – sendo três postumamente,

como já elucidamos – em um total de quase oitenta peças apresentadas100. É perceptível que,

se não era amigo do poder, ao menos não agradava aqueles jurados, todos cidadãos de

Atenas. Dos três tragediógrafos mais conhecidos, Eurípides foi o que mais viveu o período

de maior crise em Atenas.

As Bacantes de Eurípides é o maior testemunho do dionisismo101, ao modo que o

tragediógrafo enxergava. Devemos ressaltar que o culto retratado não era exatamente o culto

que era praticado; não chegaremos a este extremo interpretativo. Eurípides retrata o ritual

através de uma memória religiosa – haja vista que esta espécie de rito certamente não era

mais praticado na Atenas democrática – escrevendo muito mais sobre aquilo que ouviu do

que sobre aquilo que presenciou:

Cabe registrar também que não há qualquer sinal de menadismo na região ática, apesar dos 1190 metros do monte Pentelikós e dos 1413 do Parnés, como se observou recentemente. Eurípides teria presenciado o fenômeno do menadismo na Macedônia, onde, de acordo com Plutarco (Vida de Alexandre o Grande), esse culto era freqüente. (...) [essa hipótese] não altera, contudo, um fato importante: o poeta viveu numa época em que as discussões sobre a linguagem ganham peso extraordinário no ambiente

100 Todavia, José Antonio Dabdab Trabulsi (2004) aponta-nos que Eurípides foi reverenciado no final da Antiguidade e a maioria dos escritos cristãos que tratam de Dioniso partem dos pontos apresentados em sua peça As Bacantes. 101 Devemos constatar que os gregos não conheciam este termo “dionisismo” como manifestação religiosa. Este termo é produto do estudo de história das religiões moderna, fundado por Friedrich Nietzsche.

Page 151: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

150

intelectual ateniense (VIEIRA, 2003:41).

Devemos deixar claro também que, nesta peça, Eurípides não inovou em nada o

gênero teatral (TRABULSI, 2004:154). Podemos dizer que As Bacantes é uma peça

“comum”, sem muitas inovações e sem muita ambição quanto à evolução do gênero trágico.

Tampouco Eurípides se preocupava com os temas relacionados ao dionisismo. O ciclo

troiano, por exemplo, ocupa um lugar de destaque muito maior no conjunto de tragédias

compostas pelo autor. Entretanto, esta peça é importante para nosso trabalho, como já

dissemos, pelo seu valor como fonte para o entendimento de Dioniso e de seu ritual.

Segundo Jean Pierre-Vernant, duas leituras sobre a intenção de Eurípides ao escrever

sobre este tema nesta peça foram realizadas pelos autores dos séculos XIX e início do XX.

Alguns viram na peça uma condenação ao dionisismo e um ataque anti-religioso, feito por

um escritor que poucas crenças teve ao longo de sua vida; outros acreditaram que Eurípides,

já no final de sua vida, se converteu ao dionisismo e esta peça se trataria de uma exaltação à

força de Dioniso e de seu culto (VERNANT, 1991:170). Acreditamos que os dois extremos

estejam equivocados. O que é um homem grego de poucas crenças? Era possível um “ateu”

na antiga Atenas? As relações que o homem grego possuía com a religiosidade eram

completamente diferentes das relações modernas, pautadas em uma necessidade de crer. A

religiosidade dos homens atenienses era muito mais filosófica do que simplesmente crente.

Assim, seria difícil acreditar que Eurípides quisesse simplesmente atacar a dionisismo. Por

outro lado, não poderemos jamais afirmar com todas as certezas – tão inexistentes na

História – de que o idoso Eurípides tornou-se ele mesmo um bacante. Sobre isto discutimos

mais a frente deste tópico.

O coro neste texto é formado pelo grupo de mênades que acompanhou o deus desde a

Lídia. Vamos notar ao longo da peça que, embora estas mulheres fossem adoradoras do deus,

não estavam no mesmo nível de loucura que as mulheres da realeza castigadas pelo deus; a

loucura desenfreada é um castigo, não uma celebração: “Dominadas pelo transe, fora de si,

penetradas pelo sopro divino, obedecem a Dioniso, transformam-se no instrumento de sua

vingança. Mas não são fiéis suas, não lhe pertencem.” (VERNANT, 1991:188). O coro

também faz parte do rito, só que não está no mesmo nível de manía das mulheres tebanas.

Toda a peça é permeada pelo sentimento de manía. Esta loucura exerce um elemento

desagregador da ordem políade. É a forma do deus se colocar contra os costumes de Tebas.

Dioniso não é um deus abstrato e conceptual; ele necessita de um corpo para se manifestar, e

Page 152: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

151

por isso arrasta seguidores para uma experiência modificadora (MOTA, 1998:2). Não é a

loucura benéfica concedida pelo deus durante seu ritual; é a loucura maléfica concedida por

um castigo divino:

Para castigar Tebas, o deus começa por expulsar toda a parte feminina da polis, sob o aguilhão na manía, para fora da cidade, para a montanha. As mulheres vivem lá casta e pacificamente, em comunhão com a natureza, como faria um autêntico tíaso. Vendo a cidade assim perturbada, a outra componente de Tebas, os homens, intervêm então para restabelecer a ordem e trazer as mulheres para casa. A manía toma imediatamente a forma de um completo desarranjo do espírito, num surto de violência insensato (VERNANT, 1991:190).

A peça, encenada após a morte de seu autor, é dividida em várias partes. Seguiremos

aqui a definição dada por Marcos Mota: de início temos o prólogo, onde há um monólogo de

Dioniso; após isto o párodo, onde o coro fala e em seguida o primeiro episódio, com

Tirésias, Cadmo e Dioniso. Após este primeiro episódio, temos o estásimo – mais uma vez o

canto coral das bacantes – e o segundo episódio, o diálogo entre o rei tebano e herói trágico

Penteu e Dioniso; novamente o estásimo – o coro – e o terceiro episódio em seguida, com

uma interação entre Dioniso, Penteu, um mensageiro e o coro. Antes do quarto episódio,

temos mais um estásimo e a ação entre Penteu e Dioniso; após um novo estásimo temos no

quinto episódio a morte de Penteu. Para encerrar a peça, temos o último estásimo e o êxodo,

relação entre os personagens Agave, Cadmo e Dioniso (MOTA, 1998:3). Quem nos explica

o significado de cada uma destas partes é Aristóteles, em sua obra Poética:

O prólogo é uma parte inteira da tragédia, anterior ao párodo do coro; o episódio é uma parte inteira da tragédia, que está entre os cantos inteiros do coro; o êxodo é uma parte inteira da tragédia à qual não se segue o canto do coro; o párodo do coro é o primeiro discurso inteiro do coro; o estásimo é o canto do coro sem anapestos nem troqueus; o kommos é uma lamentação conjunta entre o coro e o ator. (Aristóteles. Poética, 52b19)

O prólogo, que se constitui como um momento tipicamente euripidiano, já que este

autor foi o primeiro a utilizar a técnica de apresentar uma imagem antecipada, selecionando

traços que serão posteriormente dramatizados (MOTA, 1998:3), inicia-se com a apresentação

feita por Dioniso, que retorna a Tebas, depois de ter ido até a Ásia. Este início da peça nos

confirma as características de Dioniso elucidadas anteriormente. Eurípides lançou mão do

imaginário social que já enxergava o deus como um deus estrangeiro e rural:

Page 153: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

152

DIONISO Deus, filho de Zeus, chego à Tebas cthônia Dioniso. Deu-me à luz Semele cádmia. O raio – Zeus porta-fogo – fez-me o parto. Deus em mortal transfigurado, achego-me ao rio Ismeno, ao minadouro dírceo. Avisto o memorial de minha mãe Relampejada junto ao paço. Escombros de sua morada esfumam com o fogo, ainda flâmeo, de Zeus, ultraje eterno de Hera contra Semele. Louco Cadmo: sagrou à filha o espaço não-pisado, que circum-ocultei com verdes vinhas em cachos. Deixo Lídia e Frigia pluri- -áureas; plainos da Pérsia calcinados; Báctria emurada; a Média, terra gélida; Arábia venturosa; pleniaberta ao mar salino, a Ásia, onde, em tantas urbes de torres multilindas, grego e bárbaro compunham gigantesco aglomerado. Na Grécia, por aqui me introduzi. Fundei meu rito em coros dançarinos: Um deus-demônio, ao homem manifesto (Eurípides. As Bacantes, v. 1-22)

Comecemos com a retomada que Eurípides faz do mito de fundação da cidade de Tebas.

Dioniso cita sua mãe Semele, fulminada pela luz de Zeus, além de seu avô Cadmo e diz que

foi ali em Tebas que ele introduziu seu culto na Grécia. Aí está um exemplo da mímese

aristotélica: Eurípides se utiliza de um mito conhecido por todos para realizar a sua

representação, conforme sua leitura.

Tebas é uma cidade a leste da Península Balcânica. Desta forma, é compreensível que

tenha relações com o Oriente e que possa sim ter sido a porta de entrada deste culto

barbarizado, já que o próprio deus assim se define nestes versos: “Irrupção súbita, como se

Dioniso surgisse sempre vindo de alhures: estrangeiro, mundo bárbaro, além. Irrupção

conquistadora que, de cidade em cidade, de lugar em lugar, propaga e instala o culto do

deus.” (VERNANT, 1991:176). No último verso, temos o termo “deus-demônio”; este

“demônio” não deve ser confundido com o conceito cristão, por motivos óbvios; Dioniso por

muitas vezes era identificado como um dáimon, uma divindade rústica, mas sempre um deus.

Não podemos comparar Dioniso com os seus sátiros, que também eram dáimones.

Seguindo a peça, vemos – ainda na fala de Dioniso – o primeiro indício de que a

participação feminina era primordial neste culto:

Page 154: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

153

Fêmeas tebanas portam, todas elas forçadas, paramentos para a orgia, tresloucadas, dos lares, todas, extra- ditadas, turba entremesclada às Cádmias sob o cloroso abeto, sobre as pedas (Eurípides. As Bacantes, v. 34-38)

A manía está presente nestas mulheres: arrematadas por uma força maior que elas mesmas,

saíram dos seus lares para cultuar o deus. As “Cádmias” a qual Dioniso se refere são as filhas

de Cadmo, irmãs de Semele. Eram elas que comandavam este cortejo. Estas mulheres faziam

parte da estirpe real tebana, e se recusaram a aceitar o culto do deus. Como castigo, Dioniso

joga sobre elas sua loucura, fazendo-as delirar. Este comportamento fez com que o rei Penteu

recusasse a reverência a este deus:

(...) Cadmo e Penteu, filho de uma outra Filha, outorga o apanágio de tirano- -rei. Contra mim, Penteu move uma teo- maquia: libações me nega e preces. (Eurípides. As Bacantes, v. 43-46)

Seu primo Penteu é o atual rei de Tebas. Filho de Agave e também neto de Cadmo, o rei

recusa o reconhecimento desta nova divindade. Eurípides coloca na boca de Dioniso a

palavra “tirano” para criticar o rei. Em plena democracia, caía muito bem uma crítica à

antiga política.

Entra, a partir do verso sessenta e três, o coro. Já vimos sua importância para o

andamento da peça. Na primeira aparição o coro vem explicar como Dioniso chegou à sua

antiga pátria, Tebas:

CORO Deixando o solo asiático transposto o sacro Tmolo, em penar prazeroso, em dor indolor, empenho-me por Brômio, deus-Rumor, no louvor a Baco! (Eurípides. As Bacantes, v. 63-69)

O Dioniso euripidiano era asiático e barbarizado, e vem confirmar alguns dos aspectos

presentes no deus desde o início de sua representação. Destarte algumas outras

características – como a juventude e os aspectos femininos do deus – vão contra àquelas

representações, em uma mescla de imaginários antigos e contemporâneos. Brômio, deus-

Page 155: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

154

Rumor e Baco102 – Bákchos – são outros nomes referentes ao deus. O coro continua sua fala

exaltando as mulheres asiáticas que já se entregaram ao dionisismo:

Vamos, bacantes! O rumoroso deus, de um deus nascido, Dioniso, conduzi dos montes frígios À Grécia de amplas ruas – Brômio, Deus-Rumor (Eurípides. As Bacantes, v. 83-87)

Ainda na fala do coro, este faz uma alusão a antiqüíssimos cultos gregos. Réia é uma

titanida, irmã e esposa do titã Cronos – o tempo – mãe de Zeus e conseqüentemente avó de

Dioniso. Réia era uma deusa cultuada desde o período minóico, e é evocado na peça como a

deusa mãe – como era conhecida nos períodos minóico e micênico – quando o coro descreve

aspectos do cortejo sagrado que se dirigia para a montanha, para celebrar Dioniso:

No tenso bacanal, sintonizam-no ao suave sopro de flautas frígias, e o põem nas mãos de Réia-Mãe: trom entre evoés a Baco! E ensandecidos sátiros recebem da deus mãe o instrumento de coros trianuais, para o dionísio regozijo! É doce nas montanhas, girando em velozes tíasos, tombar na terra, (Eurípides. As Bacantes, v. 126-137)

Os sátiros sempre estavam presentes nos cortejos, e recebiam especialmente da deusa Réia

instrumentos para realizar o culto. A montanha está presente nesta peça como uma

representação do desconhecido. As florestas e os montes suscitaram nos homens diversas

reações imagéticas, que surgiam pelo desconhecimento destes. A montanha representa na

peça o desconhecido e, conseqüentemente, o medo.

Este rito realizado fora dos olhos oficias era extremamente barbarizado, desde os

instrumentos até os cantos, muitos na língua frígia, e não na língua grega:

No luxo do áureo veio tmólio,

102Por isso o nome da peça, Bakxai, que convencionalmente foi traduzida para o português como As Bacantes. Baco foi também o nome utilizado pelos romanos para se referirem ao deus relacionado a Dioniso.

Page 156: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

155

celebrai Dioniso, ao rumor barítono dos tímpanos, alegrai com evoés o deus Evoé, gritos em língua frigia, enquanto, sonora, a flauta-loto sagra, com seu rumor, o rito lúdico, (Eurípides. As Bacantes, v. 154-164)

Finda a fala do coro, entram em cena o velho Cadmo, fundador de Tebas, e Tirésias, um

velho adivinho103. Ambos irão aderir ao culto; querem se travestir de mênades para celebrar

o deus. Tirésias pede para chamarem Cadmo para se prepararem para o cortejo:

TIRÉSIAS: Quem monta guarda? Chame o Agenoreide Cadmo! Saia fora do palácio. Vindo de urbe sidônia, ergueu torres em Tebas. Vamos! Alguém o avise que Tirésias procura-o. Sabe por que vim aqui, pois pactuamos – um sênex com um sênior –, brandir o tirso, usar pelames nébridos, coroar a fronte com hera frondosa (Eurípides. As Bacantes, v. 170-177)

Cadmo responde ao chamado de Tirésias e aceita fazer parte do cortejo, pois já se acredita

velho e sem muitas responsabilidades. É interessante Tirésias ser o fomentador do culto, pois

foi o único indivíduo que obteve tanto a experiência masculina quanto a feminina em tempos

distintos – diferente do deus Hermafrodito, que possui os dois sexos ao mesmo tempo.

Tirésias, o homem com experiência feminina, se traveste para poder obter a experiência

dionisíaca. O feminino e o masculino se confundem em alguns momentos da peça;

momentos que tratam da nova experiência do menadismo. Continuando na peça, Cadmo

exalta seu neto divino e diz que este culto serve para esquecer os problemas:

O fato de uma filha minha ser mãe de Dioniso – um deus entre os mortais –, nos preme a ressaltar sua magnitude.

103 Cego, Tirésias aparece tanto no ciclo troiano quanto no ciclo tebano, estando presentes desde obras como a Odisséia até em peças de Eurípides e Sófocles. De acordo com Pierre Grimal (2000), Tirésias viu duas cobras copulando e as feriu – ou as matou, como dizem alguns – e se tornou mulher. Após sete anos, ele encontrou no mesmo local mais duas serpentes e repetiu o ato, tornando-se homem novamente. Ainda de acordo com Grimal, Zeus lhe pergunta quem sente mais amor sexual: o homem ou a mulher; Tirésias diz que é a mulher nove vezes mais. Por conta de revelar o segredo feminino, Hera tira-lhe a visão. Como forma de compensação, Zeus concede-lhe o dom da profecia. Uma outra tradição, provavelmente tardia – do período helenístico – é narrada por Nicole Loraux (2003); esta tradição conta que Tirésias ficou cego como castigo por ter presenciado a nudez da deusa Atena, enquanto esta se banhava.

Page 157: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

156

Urge dançar! Mas onde percutir os pés, onde agitar melena cinza? Explica a um velho, ó velho sapientíssimo! Pulsar diuturno o solo com o tirso Não me tira a energia: doce é esquecer a senectude (Eurípides. As Bacantes, v. 181-188)

É interessante a fala “um deus entre os mortais”. Dioniso é aquele deus não olímpico

– como já foi colocado por nós diversas vezes neste trabalho – que está com o povo e faz

parte dele. O velho rei gostaria de esquecer sua idade avançada. Desta forma, integra o

cortejo do deus, que não faz distinção etária; todos são bem vindos a celebrar a divindade. O

sábio Tirésias deixa claro esta relação etária em sua fala:

Se é velho ou moço quem deva integrar o coro, ao deus é igual; congraçamento é o que deseja, obter honras de todos, rejeita distinguir quem o engrandeça. (Eurípides. As Bacantes, v. 206-209)

A partir do verso duzentos e quinze entra finalmente Penteu, que estava ausente de

Tebas. Penteu é o rei tebano, primo de Dioniso. Este é o herói trágico104, o personagem de

estirpe real representando a cidadania e a nobreza. Alguns autores, como Rachel Gazolla,

caracterizam Penteu como um estranho herói euripidiano ou até como um anti-herói, pois se

pensarmos que a um herói trágico cabe o excesso que toca o divino, ou seja, uma essência

para perceber o divinizado, Penteu não atende a esta principal exigência (GAZOLLA,

2001:90). O rei também não consegue controlar seus sentimentos – no caso o ódio e a

aversão – tornando-se um indivíduo impulsivo e frágil: “Penteu já está possuído pelo delírio

desde o início, todas as suas ações e pensamentos estão perturbados, o que o torna um herói

frágil diante de outros heróis trágicos.” (GAZOLLA, 2001:99).

O rei inicia sua fala criticando todo aquele novo rito que adentrou sua cidade. Sua

primeira fala é muito rica para compreendermos o papel do Estado no culto:

PENTEU Durante a minha ausência desta terra, pude escutar notícias más da polis: nossas mulheres abandonam lares, fingindo-se inspiradas por Baco. Entram em plúmbeos montes, coreografam danças:

104 De acordo com Rachel Gazolla (2001), o herói trágico deve descender sempre de pelo menos um outro herói. No caso, Penteu é neto do herói Cadmo, fundador da cidade de Tebas.

Page 158: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

157

pelo deodâimon, por Dioniso – seja ele quem for! –, transbordam as crateras no tíaso. Cada qual, a sós, num canto, cede à vontade masculina. Mênades, sacerdotisas de um ritual, alegam ser; mas preferem Afrodite a Baco. Em quantas pus as mãos, os carcereiros mantêm-nas algemadas na cadeia; quantas não capturei, caço nos montes: quem me gerou, Agave, Ino também, e a mãe de Actéon, Autônoe. Se as coloco atrás das grades, ponho fim ao sórdido bacanal. Nos informam que chegou da cthônia Lídia um forasteiro, um mago impostor. Seus cabelos ondulados exalam doce olor. Tem as maçãs do rosto cor de vinho e o olhar de Cípirs; conviva de donzelas, noite e dia, ensina-lhes evoés e os seus mistérios (Eurípides. As Bacantes, v. 215-238)

O rei tebano reclama das mulheres sem virtudes, que saem errantes pelos bosques,

abandonando seus afazeres domésticos e seu papel de mulher. O próprio rei diz que prendeu

várias delas, em um claro controle do Estado sobre o comportamento humano. Como a

maioria das tragédias, o comportamento humano é analisado: neste caso, o poder oficial

suprime o que há de mais primitivo e animalesco nos homens, civilizando-os, nem que seja

através de correntes. As próprias mulheres da realeza, como sua mãe Agave e sua tia Ino,

perderam a razão e juntaram-se ao cortejo. Nem a realeza foi capaz de escapar da loucura

dionisíaca.

A descrição que Penteu faz de Dioniso coloca o deus, a primeira vista, como

essencialmente asiático: “(...) chegou da cthônia Lídia um forasteiro (...)”. Já vimos que nesta

peça Eurípides se utiliza tanto do mito fundador como do mito de nascimento de Dioniso;

desta forma, o deus seria tebano. O que Penteu quis dizer foi provavelmente que os traços

asiáticos do deus tornaram-no um bárbaro, um forasteiro incapaz de aderir à cidadania, de

acordo com aquela idéia de bárbaro para os gregos, já discutida por nós.

Continuando a peça, Penteu fica horrorizado em perceber que seu avô e o velho

Tirésias aderiram ao culto deste forasteiro, e critica veementemente o par:

Tirésias envolvido numa nébrida tigrada,e o meu avô, multi-risível dionísio-porta-férula! Envergonha olhar um par senil perder o juízo! Joga fora a hera, põe no lixo o tirso,

Page 159: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

158

ó pai de minha mãe, ó meu avô! Persuadiste-o Tirésias. Entre nós infiltraste o neodâimon: sondar aves, queres, lucrar com vítimas combustas (Eurípides. As Bacantes, v. 249-257)

A desonra que Penteu sente é a de que seu próprio avô, fundador da dinastia tebana, possa ter

aderido a um culto que não se enquadra nos costumes normativos da polis. Ele crítica a idade

avançada dos novos bacantes, como se para os velhos fosse reservado somente um espaço

pré estabelecido socialmente, assim como para as mulheres. A palavra “neodâimon” aparece

freqüentemente na peça: por ela podemos entender a referência a um novo dáimon, ou uma

nova divindade, que não fazia parte do grupo dos titãs ou dos olímpicos. A hera e o tirso são

elementos que estão presentes no cortejo dionisíaco, como pode ser conferido em muitas

representações de cerâmica.

Prosseguindo, Tirésias retoma a fala, explica a Penteu sobre o culto e nos traz uma

constatação importante, já realizada por nós nos capítulos anteriores: a relação de Dioniso

com o elemento vegetal, com o elemento úmido e com a própria deusa Deméter:

(...) Em dúplice pilar, assenta – moço – a humanidade: Terra ou Deméter – nomeia-a como o queiras –, de quem provém o nutrimento seco; e seu êmulo, o filho de Semele, que ao mundo trouxe o sumo invento: sumo da vinha, licor puro! O triste anima-se ao consumir a linfa da uva, fármaco inigualável contra a dor, oblívio do diário dissabor, o sono de Hipnos. (Eurípides. As Bacantes, v. 274-283)

Deméter como terra não deve ser entendida como a divindade Terra – o planeta, se assim

fosse poderíamos acreditar que os próprios gregos sentiam-se confusos em relação ao papel

de Gaia, o que não é verídico. A terra a que Eurípides se refere é o elemento, a força do rural.

Deméter dá aos homens o nutrimento seco, o trigo e os demais alimentos que a terra fornece;

este é um dos pilares que sustentam o homem.

O outro pilar é o que a terra fornece de úmido: a vinha, de onde se tira o puro vinho

que faz com que os homens esqueçam suas dores e seus problemas cotidianos – o

pharmakós, um remédio que, se não utilizado na dosagem correta, pode tornar-se veneno. É

o vinho que promove a ligação dos homens com o divino, com o êxtase dionisíaco e com o

sono, propiciado pelo deus Hipnos: “O coro das suas fiéis mênades da Lídia aprova Tirésias

Page 160: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

159

que pôs em paralelo Deméter e Dioniso: o deus é para o elemento líquido, a bebida, o que a

deusa é para o sólido e comestível.” (VERNANT, 1991:184).

Logo em seguida, temos uma referência ao antigo mito de nascimento de Dioniso – o

Zagreus – que certamente era conhecido por Eurípides:

Zeus contramaquinou qual faz um deus: um setor do céu seccionado, circum- -térreo, fez e deu a Hera, qual penhor da querela, uma cópia de Dioniso. Com o passar do tempo, os homens dizem: “Ele é o Senhor-do-fêmur do Cronida!”, mera metástase de nome. Um deus à deusa penhorado. E vira história (Eurípides. As Bacantes, v. 291-298)

É, de acordo com alguns autores, deste primeiro mito que surge o nascimento do segundo

Dioniso:

Segundo Eurípides, Zeus imagina um ardil para acalmar Hera, decidida a matar Dioniso, fruto da relação extraconjugal do marido. Como salvar Dioniso? Zeus corta uma parte (meros) do céu e a entrega a Hera como ‘penhor’ (hómeros), em lugar do primeiro Dioniso. Como o tempo, os homens, devido à semelhança entre méros e meros (coxa), criam o mito da geração de Dioniso da coxa de Zeus. Segundo o poeta, a forma (meros/hómeros) gera o mito, o significante produz novos sentidos (FUNARI, 2001:308).

O vinho causa a possessão do deus, que se manifesta através da manía. Esta possessão faz

com que o deus esteja entre os homens, como reflete Tirésias, no texto euripidiano:

Ele é um demônio mântico: baqueu e demente têm vínculo com mântica. Quando o divino adentra fundo o corpo, faz dizer futuro a quem delira. Da moira de Ares participa: o pânico domina hoplitas, antes de tocarem a lança: isso é a loucura dionisíaca. Verás o deus saltando rochas délficas, sobre dois picos, empunhando o archote, agitando e brandindo o ramo báquico, magno na Hélade. Atenta, Penteu, peço-te: não penses que o poder é dono do homem, tampouco creias – há doença nessa crença! – que saibas algo. Acolhe o deus em Tebas, liba, dionisa-te, coroa-te de hera! Dioniso não impõe moderação

Page 161: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

160

à mulher, frente à Cípris; na natura o moderar-se em tudo está presente. (Eurípides. As Bacantes, v. 299-316)

O sábio Tirésias alerta Penteu sobre o que pode acontecer se o jovem rei lutar contra o ritual,

e aconselha este a entrar junto no cortejo, pois a força da loucura dionisíaca é maior que a

lança de um exército hoplita. Alguns autores – como Marcel Detienne (1988) – colocam que

Dioniso era um deus guerreiro, e possuía sim um exército. A diferença é que seu exército

empunhava o tirso, a flauta e o vinho, ao invés de lanças e escudos, mas não era menos

destrutivo.

Penteu retoma novamente a fala, desta vez insultando os velhos Cadmo e Tirésias, e

também ao próprio deus:

À cidade, os demais! Sigam o rastro Desse estrangeiro adamado, porta- -doença nova à mulher, enodoa-leitos. (v. 352-354)

No verso cento e cinqüenta e três, temos duas pistas importantes: a primeira é a palavra

“estrangeiro” – também é traduzida com “alienígena”, mas consideramos esta tradução

inadequada, pois a palavra alienígena certamente não era de conhecimento entre os gregos –

denota um ser de fora daquelas terras, um ser bárbaro. A segunda é a palavra “adamado”105.

Sabemos que quando Dioniso se populariza, no século VI, ele é um homem adulto e rústico.

Nesta peça, escrita no finalzinho do século V, provavelmente o deus já estava com traços

mais joviais e, ao analisar esta palavra da peça, mais efeminado. Dioniso, no período

helenístico, será claramente um efebo, normalmente efeminado – haja vista as imagens do

deus daquele período que chegaram até nós – mas neste final de período clássico os traços já

apareciam. Eurípides, embora retome vários aspectos do antigo Dioniso, em relação à sua

aparência, acreditou ser melhor colocá-lo como era conhecido por seus espectadores. A

acusação de que Dioniso trouxe uma nova doença às mulheres, que agora deixam seus leitos,

é a loucura. Esta nova doença contagia cada vez mais mulheres; é o Dioniso epidêmico de

Marcel Detienne (1988).

No fim deste primeiro episódio, podemos constatar que este é o momento onde

Penteu está mais distante de Dioniso (MOTA, 1998:7); sua recusa em aceitar o culto e seu

veto aos companheiros no palácio faz com que o ódio aflore do corpo do rei. A exaltação ao

105 “Adamado” aqui é uma outra forma de expressar “efeminado”.

Page 162: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

161

mundo bárbaro continua a aparecer na peça, na fala do coro:

Pudera eu estar em Chipre, ínsula afrodisíaca, onde habitam Amores fascina-corações; ou em Pafos, carente de intempérie, mas frutífera, por cem bocas que jorram do rio bárbaro; ou na Piéria pluribela, sagrada encosta olímpia, sede musical das Musas (Eurípides. As Bacantes, v. 403-410)

Podemos notar que o mundo bárbaro de que o coro fala – como Chipre, Pafos e Piéria – se

assemelham a uma espécie de paraíso, com sensações causadas por Eros106 e Afrodite,

embaladas pela música das Musas. Temos de ter em mente que Eurípides compôs esta peça

na corte bárbara do rei Arquelau. A insatisfação do tragediógrafo com Atenas – que o

convidou a se retirar – pode ter feito com quem este exaltasse um outro mundo, até então

negado. O mundo bárbaro foi o refúgio de Eurípides, e certamente o Dioniso bárbaro da peça

tem relação com o “momento bárbaro” que o idoso Eurípides estava vivenciando. Desta

forma, o autor sempre ressalta o caráter bondoso do deus com aqueles que aceitam seu culto:

Equânime, ele concede ao rico e ao pobre, o júbilo antimágoa do vinho! Mas odeia quem insiste, à luz do dia e à noite amiga, no estar de mal com a vida. Sábio é manter o coração e a mente longe do cerco de arogantes. O que vulgo, a massa mais depauperada recolhe e acolhe para mim é dádiva! (Eurípides. As Bacantes, v. 421-433)

A exaltação das pessoas simples – sem distinção entre os ricos e os pobres – faz de

Dioniso um deus de todos, e a todos ele oferece sua loucura, conseguida através do álcool.

Contudo, aqueles arrogantes e que não estão preparados para a celebração recebem o ódio do

deus. A total entrega do coro ao deus é perceptível em toda a peça, e representa o poder de

106 Filho de Afrodite; deus do amor. É equivalente ao Cupido romano.

Page 163: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

162

Dioniso diante da população e, principalmente, a antipatia desta ao poder do prepotente

Penteu.

Nas palavras de Penteu – após este ter capturado o forasteiro, sem ainda saber que se

tratava de um deus – percebemos a beleza de Dioniso. A alegoria de Dioniso como um

simples e jovem forasteiro – sem se identificar – deixa clara a presença e a importância da

máscara:

1) no personagem que encena de modo duplo, ou seja, é e não é o próprio Dioniso quem fala como deus, pois a fala é do jovem estrangeiro que, no entanto, não anuncia a si mesmo como portador do deus; apresenta-se o próprio deus utilizando-se do pronome na primeira pessoa (...) (GAZOLLA, 2001:95).

Esta beleza também nos remete ao final do período clássico, pois no período arcaico o deus

não era belo:

PENTEU Podem soltar-lhe as mãos, já que caiu na rede; não é uma flecha que me escape lesta. Teu corpo, forasteiro, é escultural, aos olhos das mulheres, por quem chegas. Do pugilato é que não vêm madeixas densas a orlar teu rosto, voluptuosas; cultivas o brancor da tez, avesso aos dardos de Hélio-Sol (amas a sombra). (Eurípides. As Bacantes, v. 451-458)

Tradicionalmente, Eros é o deus que carrega consigo a beleza. Dioniso torna-se um deus belo

tardiamente. Este aspecto ressaltado na peça de Eurípides mostra que o autor realiza uma

mescla de elementos do dionisismo primordial com aspectos do dionisismo de sua época,

inclusive a questão da origem do deus, em um diálogo entre o deus e o rei. Penteu pergunta

aquele estranho forasteiro qual a sua origem:

DIONISO É fácil responder-te, sem vanglória: alguém já te falou do flóreo Tmolo? PENTEU Sim. A cadeia que envolve a urbe Sárdea. DIONISO De lá eu vim; a Lídia é minha pátria.

Page 164: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

163

PENTEU E de onde trazes teus mistérios à Hélade? DIONISO Dioniso, filho de Zeus, nisso me instruiu-me. (Eurípides. As Bacantes, v. 461-466)

Dioniso – embora ainda não identificado como divindade – não considera mais a

Grécia sua pátria. Entretanto, digamos mais uma vez que Eurípides segue o mito fundador de

Tebas e o mito do nascimento de Dioniso; desta forma o deus seria tebano. Concordamos

com Trabulsi que, quando se trata da origem do deus, o texto é por vezes ambíguo

(TRABULSI, 2004:158). Acreditamos que o que o autor quis dizer foi que Dioniso se

considera muito mais um bárbaro. Entrando na questão do barbarismo já discutida

anteriormente, Dioniso não se sente bárbaro por não ter nascido em solo helênico, ele se

sente bárbaro por ter aderido a costumes não helênicos; para os gregos é isto que importa.

Embora Eurípides concorde com o mito de seu nascimento, coloca-o como lídio por este ter

aderido a diversos traços lídios, deixando de ser grego para se tornar bárbaro. O elogio que

Dioniso tece aos costumes bárbaros deixa clara esta questão:

DIONISO Só coreografam essa orgia os bárbaros. PENTEU Pois, no pensar, são piores que os helenos DIONISO São melhores: adotam outras normas. PENTEU Celebras ritos diurnos ou noturnos? DIONISO Noturnos sobretudo. A treva é sacra PENTEU Para as mulheres, uma burla sórdida. DIONISO Também de dia o torpe mostra a cara. (Eurípides. As Bacantes, v. 482-506)

Todas estas perguntas que o rei faz ao deus não são uma tentativa de conhecimento

do culto, mas sim uma forma de conhecer o que será combatido: “Pois o que quer saber

Page 165: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

164

Penteu com suas perguntas senão a posse dos meios para impor seu palácio, (...)? Perscruta e

esquadrinha de onde veio o deus, como são seus mistérios,(...) recebendo em troca palavras

que para ele não dizem nada (...)” (MOTA, 1998:10). Penteu não aceita os cultos bárbaros,

diz que são piores que os helenos. Já Dioniso diz que são melhores, pois são regidos por

normas diferentes das normas gregas. Esta dicotomia entre o selvagem e o civilizado já há

muito tempo era debatida em Atenas, e estava cada vez mais saliente com a Guerra do

Peloponeso. Dioniso é o deus selvagem, que incomoda os civilizados:

Dioniso faz fugir das cidades, sair das casas, abandonar os filhos, esposos, família, deixar ocupações e trabalhos quotidianos. É celebrado de noite, em plena montanha, nos valados e nos bosques. As suas servas tornam-se selvagens, lidam as serpentes, aleitam, como se fossem suas, as crias dos animais. Com todos os animais, selvagens e domésticos, se encontram em comunhão, estabelecendo com a natureza interia uma nova e alegre familiaridade (VERNANT, 1991:183-184).

Está muito clara a posição de Eurípides em criticar o sistema políade em que viveu.

Duas hipóteses são mais plausíveis: a primeira é pensar que o tragediógrafo possa mesmo ter

se encantando com os costumes bárbaros, quando do seu exílio, e almejou tecer um elogio a

estes costumes. Há correntes de vários especialistas em Antiguidade do século XIX que

colocam que Eurípides, antes cético em relação aos deuses, havia sofrido uma “conversão”

na velhice. Todavia, não podemos afirmar que Eurípides se tornou mesmo um bacante pelo

fato de esta informação ser praticamente impossível de ser comprovada. A segunda hipótese,

e acreditamos que esta é a mais viável de ser explicada, é que Eurípides estivesse desgostoso

com sua pátria Atenas e com aqueles que comandavam a política – tanto é que o

perseguiram. Desta maneira Eurípides está relatando como os gregos – sobretudo os

atenienses – são intolerantes com o diferente.

Há um outro aspecto que deve ser levado em conta. O período em que Eurípides

viveu foi um período de incerteza em sua pátria, Atenas. A peste que afetou uma grande

parte da população, além da derrota na Guerra do Peloponeso, fez com que os atenienses

passassem a questionar e ter incertezas quanto às suas divindades. O barbarismo pode ter

sido elogiado por Eurípides – assim como a inclusão de aspectos bárbaros nesta sua última

peça – como uma forma de exaltar deuses que até então nunca eram vistos pelos atenienses,

assim como retornar a épocas em que a Grécia conhecia seu crescimento e,

conseqüentemente, seu apogeu: “Eurípides, no final da vida, diante de uma Atenas esgotada

Page 166: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

165

por mais de duas décadas de guerra contra Esparta, reavalia noções tradicionais da cultura

grega, que remontam a Homero, como prudência e piedade religiosa.” (VIEIRA, 2003:18). O

período chamado de “declínio” deixou sequelas na maioria dos cidadãos de Atenas:

Suas conseqüências foram aprofundadas, do ponto de vista da psicologia individual e coletiva, pela peste (430-426), o que faz do último terço do século V em Atenas uma época de incertezas, de dúvida, de crise de confiança. A religião ateniense era demasiado política para não sofrer estes efeitos, junto com a polis no seu conjunto. Ela deixou de ser capaz de responder às novas necessidades. As fontes literárias concordam com a cerâmica pintada, mostrando o avanço dos cultos estrangeiros durante a guerra e depois dela: (a) instalação do culto da Mãe da montanha Frigia, Cibele; (b) da deusa da trácia Bendis; (c) dos mistérios traço-frígios de Sabazius, que se misturam cada vez mais com Dioniso; (d) os ritos dos “deuses que morrem” Attis e Adônis; (e) os progressos muito rápidos de Esculápio, com suas promessas de cura mágica (...) (TRABULSI, 2004:165).

Continuando na peça, Penteu se irrita com o forasteiro com quem estava dialogando,

e assim o prende, em uma clara tentativa de afirmar seu poder real sobre aquele estrangeiro.

Após prender Dioniso, Penteu diz que irá prender as mulheres e fazê-las retornar aos seus

afazeres domésticos:

PENTEU: Prendei-o nos estábulos eqüinos; que encare assim o breu da escuridão! Pratica lá tua dança! Quanto às cúmplices no cortejo nefasto, ou eu as vendo ou delas faço flâmulas ao tear. Já chega de tam-tans e tamborim! (Eurípides. As Bacantes, v. 509-514)

O poder oficial que Penteu representa o faz agir como um verdadeiro cidadão: quem quer

praticar cultos “estranhos”, que vá fazer escondido, preso em estábulos; e que as mulheres,

esposas de cidadãos, voltem a seus teares no oikos. Está clara a não concordância de

Eurípides com alguns destes costumes, mesmo que ele, no passado, tenha exercido a

cidadania. Eurípides poderia ser caracterizado como um “subversivo”? Acreditamos que é

extremamente complexo utilizar desta palavra para os estudos na Antiguidade. O que

sabemos é que Eurípides criticava alguns costumes atenienses – e pelo visto não agradava,

haja vista o número muito reduzido de vitórias conseguidas nos concursos teatrais.

Apesar disto, este era um cidadão e vivia a cidadania em Atenas. O seu exílio foi algo

Page 167: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

166

muito particular: a acusação de impiedade pela assembléia ateniense. Podemos acreditar que

Eurípides foi convidado a se retirar de Atenas por ser subversivo aos costumes. Mas

Eurípides não foi exilado por criticar os costumes em suas peças teatrais, foi exilado por

discordar na assembléia – um fato muito mais grave. Não fosse esta discordância, talvez

Eurípides tivesse morrido em Atenas, escrevendo suas peças, algumas delas críticas ao

sistema político e aos costumes.

Retornemos ao documento. A peça continua com o coro alertando Penteu de que não

deveria prender o forasteiro, e em seguida temos um dos momentos mais importantes da

peça: Dioniso revela seu poder, e para prova-lo, destrói completamente o palácio do rei

Penteu:

DIONISO Ó Sismo augusto, abala os alicerces! CORO Ah! O paço de Penteu logo estremece e se espedaça. Dioniso adentra o paço. Venerai-o! Veneremo-lo Olhai! Por sobre o colunário dançam traves marmóreas! É o deus Rumor quem no interior ulula! DIONISO O raio olho-de-fogo relampeja! Inflama, inflama a casa de Penteu! CORO Ah! O fogaréu, não vês como fulgura em torno à tumba sacra de Semele? É a flama do trovão, o lança-chamas de Zeus que outrora deixou-a, fulminada. (Eurípides. As Bacantes, v. 585-599)

Esta alegoria coloca o poder real como impotente diante do poder divino. Eurípides quase

nunca escreveu peças de cunho estritamente religioso – Ésquilo e Sófocles sempre utilizaram

muito mais a religião em suas peças do que Eurípides – e na maioria de suas tragédias os

deuses não exerciam um papel decisivo. Em As Bacantes temos uma exceção. Eurípides

coloca em Dioniso toda a responsabilidade pelos acontecimentos principais da peça. Até a

Page 168: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

167

própria catarse que, embora não tenha sido feita pelo deus, foi realizada por intermédio dele.

Nos próximos versos da peça, entra outro personagem, um mensageiro, que vem

trazer notícias de Citero, o monte onde estava ocorrendo o ritual báquico:

A chegada do mensageiro retoma a técnica da multiperspectivação. A verdade contada e não vista projeta para a palavra a função mediadora entre o palco e a platéia. Nada acontece em palco além da presença figurada da linguagem que fornece para a recepção o campo de referências a ser assumido pela imaginação (MOTA, 1998:12).

Este mensageiro foi testemunha das manifestações das mulheres, enquanto ia cuidar de um

rebanho, e suas descrições são essenciais para compreendermos o que acontecia naquele

ritual:

MENSAGEIRO À grimpa de uma encosta, eu mal tocara a manada, no horário em que Hélio-Sol aquece a cthônia terra com suas setas, e vi, em triplo tíaso, os femininos coros: a um liderava Autônoe; ao outro, Agave, tua mãe; Ino, o derradeiro. Somatizavam sem tensão o sono: em tufos de pinheiro umas pousavam o dorso, outras, em folhas de carvalho reclinavam a fronte recatadas, e não, como dizias, ao som da flauta, ébrias de vinho, lúbricas na selva, buscavam Cípris. Quando ouviu mugir o córneo boi, tua mãe gritou, no centro: “Do corpo remover o sono de Hipnos!” Do olhar, a sonolência foi expulsa. Em pé, se nota o bem composto cosmo: moças, matronas, virgens insubmissas soltavam sobre a espádua a cabeleira, reapertavam os frouxos nós das nébridas e as peles tachetadas iam cingindo com serpentes que lhes lambiam a face. Outras erguiam cabritos, feras crias lupinas, branco leite oferecendo-lhes as que traziam os seios ainda túrgidos, neofilhos renegados, hera à fronte, floridas briônias, folhas de carvalho. Alguém empunha o tirso e o pula à pedra, de onde borbulha, cristalino, o arroio. Arremessam a férula na terra e exsurge a fluxo o vinho – quis o deus. A desejosa do galácteo sorvo,

Page 169: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

168

Injetava o chão os próprios dedos, Colhendo o jato lácteo. De seus tirsos De hera destilam doces rios de mel. (Eurípides. As Bacantes, v. 677-711)

As mênades – ou bacantes – estavam descansando, certamente de uma noite de ritual. Mas

quando ouviram barulho, imediatamente despertaram de seu sono e voltaram à manía.

Percebemos vários elementos da natureza agindo em conjunto com as mênades, o que exalta

a idéia do deus cthônico, do vegetal. O leite e o mel estão presentes na fala do mensageiro,

assim como o vinho. Os animais servem como caça para as mênades107; e a caça estava

presente em toda a Grécia, principalmente na parte rural, a chóra. A flauta, o tirso, a hera,

tudo o que é utilizado nos rituais está presente no relato euripidiano.

Tanto mulheres velhas quanto jovens e virgens participavam do ritual, tendo como

elemento comum o fato de serem do sexo feminino. Esta relação entra no que foi discutido

por Marcel Detienne (1987), no verbete Mito/Rito: o ritual agrupa um certo número de

pessoas com uma certa afinidade. As mulheres, que viviam em função do oikos, passam a

viver em função da loucura dionisíaca, trocam a família pela montanha e pelo rito.

O mensageiro continua seu relato:

(...) No horário costumeiro em que brandiam o tirso para o rito, invocaram o deus Rumor, uníssonas. Tudo se dionisava, monte e feras, Nada era estático! Tudo corria! Ao meu lado saltou Agave e eu dei um bote, com o intuito de pegá-la, moita vazia, que o meu corpo ocultara. Sobregritou: “Cadelas minhas, ágeis, esses homens nos caçam! Compareçam, quais hoplitas, vibrando exímios tirsos.” Nossa fuga preserva-nos a vida da dilaceração bacante; à mão nua, atacam novilhas na pastagem. Puderas ver naquelas mãos a vaca: mamas repletas, bipartida, muge! Houve quem o vitelo desmembrasse. Era de ver o lombo e o casco – dupla forquilha – a esmo lançados: gotejava, sangüinolento, um charco dos abetos. (Eurípides. As Bacantes, v. 723-742)

O mensageiro – que na verdade se porta como um pastor – se esconde na montanha e espera

107 Conforme Marcus Mota (1998), este elemento de dilaceração de animais presente na peça chama-se sparagmós, uma violência sacrifical, onde o animal vivo recebe os signos da morte.

Page 170: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

169

a momento de invocar Dioniso. Com a loucura, as mênades tornam-se descontroladas e

extremamente violentas, caçando animais e matando cruelmente. O próprio mensageiro teve

de fugir para não ter o mesmo destino das caças. As mulheres, sempre frágeis perante a

cidadania masculina, tornam-se extremamente fortes e perigosas, com a manía provida por

Dioniso.

Penteu fica ao mesmo tempo que irado e extremamente curioso. Irado, pois além de

serem mulheres desrespeitando a polis, eram mulheres de sua própria família, incluindo sua

mãe. Curioso ficou para ver como isto acontecia, como a loucura aparecia manifestada nos

seres do gênero feminino. Esta sensação de tirar proveito através do ver, do contemplar, é

analisada por Vernant:

A irrupção de Dioniso no mundo, a sua presença insólita põem portanto em causa esta visão “normal”, ao mesmo tempo ingênua e segura, na qual Penteu crê poder basear a sua rejeição do deus e todo o seu comportamento – visão que se quer positiva, racional, mas que trai tudo o que comporta de obscuro e de turvo no “voyeurismo” exacerbado do jovem rei, no seu desejo apaixonado, irreprimível (...) de ser espectador (...), de contemplar, nas torpezas nas mênades, precisamente aquilo que ele pretende abominar (...) (VERNANT, 1991:178).

A curiosidade de Penteu é tamanha que este é persuadido por Dioniso a conhecer o culto,

mas para isto o deus deixa claro que Penteu teria de se parecer com uma mulher, pois o culto

era direcionado às mênades e, caso contrário, seria morto por elas:

DIONISO Ah! Nos montes queres vê-las congregadas? PENTEU Exato, nisso empenho o meu tesouro DIONISO Como Eros te enredou no megamor? PENTEU Eu as veria penosamente bêbadas. DIONISO Terias prazer em ver o que te aflige? PENTEU Certo, sentado quieto sob o abeto.

Page 171: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

170

DIONISO Com o faro que têm, elas te encontram. PENTEU Disseste-o bem; eu não me ocultarei DIONISO Necessitas de um guia? Estás partindo? PENTEU Vamos, pois desaprovo tua demora. DIONISO Cobre o corpo com túnica de linho. PENTEU O que propões? Sou macho, não me adorno. DIONISO Te matarão, se virem homem lá. PENTEU Correto; és como um sábio de outras eras! DIONISO Nisso, Dioniso foi a nossa musa. PENTEU Como concretizar teus bons conselhos? DIONISO No paço cuidarei de sua toalete. PENTEU Toalete feminina? E eu me decoro? DIONISO Não mais queres fazer-te espectador? PENTEU Em que consistirá minha toalete? DIONISO Peruca longa ao crânio sobreponho-te. PENTEU É tudo ou pensas em outros adornos? DIONISO Peplo bem rente ao chão; à fronte a mitra. PENTEU É tudo, ou acrescentas algo mais?

Page 172: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

171

DIONISO Portas o tirso e a nébrida tigrada. PENTEU Não posso me vestir feito mulher! DIONISO Mas sangue correrá num prélio báquico. PENTEU Sim; devo começar pela espionagem (Eurípides. As Bacantes, v. 810-838)

Inicia-se com este diálogo algo que estará presente até o fim da peça: o travestimento. Penteu

critica seu avô Cadmo e o velho Tirésias por vestirem-se como mulher. Um cidadão jamais

deveria comportar-se como uma mulher. Desta forma, estaria se rebaixando a uma das

camadas mais inferiores da sociedade e negando seu papel de cidadão. Uma prática muito

comum em Atenas era a pederastia, ideal educacional pautado pelo amor entre dois homens:

o professor – erasta – e o aluno – erômeno108. Este amor era permitido desde que seguisse a

moral pederástica: poderia haver toque nos órgãos sexuais, fricção e movimentos

intrafemurais, mas não era permitida nenhuma espécie de penetração; o ato de deixar ser

penetrado significaria que um cidadão desceu ao estágio inferior, o de uma mulher. Isto não

quer dizer que não havia gregos que não sentissem vontade de serem penetrados e que

efetivamente o eram; conhecemos a moral pederástica, mas, como toda moral, teria

indivíduos para quebrá-la.

Desta forma, os efeminados eram ridicularizados – tanto na vida cotidiana quanto nas

peças de teatro – e sofriam os piores preconceitos em toda a Ática (SOUSA, 2008:22), pois

eram homens que se assemelhavam às mulheres, não possuindo nenhum direito. Se fosse

provado que um cidadão se comportou como uma mulher no ato sexual e se deixou ser

penetrado, perderia seus direitos e poderia até ser exilado. Um cidadão – e alguém da estirpe

real, como os personagens da peça – jamais se vestiria de mulher se não estivesse tomado

pela loucura dionisíaca. Assim aconteceu com Cadmo e Tirésias e, de certa forma, estava

começando a acontecer com Penteu. Os elementos femininos só eram permitidos aos atores,

quando da encenação de suas peças. Como não havia atrizes, os atores se vestiam de

108 Para saber mais sobre a pederastia ver: SOUSA, Luana Neres de. A pederastia em Atenas no período clássico: relendo as obras de Platão e Aristófanes. Goiânia: Universidade Federal de Goiás; Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia; Departamento de História, 2008. (Dissertação de Mestrado)

Page 173: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

172

mulheres e se mascaravam – mais uma importância fundamental da máscara – para

representar a realidade:

Provavelmente, ao andrés cabe todos os afazeres em um teatro grego: atuar, escutar, representar. Mas, com as roupas femininas que leva sobre os ombros tal cidadão ator, com os acessórios muito marcados que, como o grande vestido tradicional, constituem o traje teatral, se verá a destacada manifestação da relação que o teatro mantém o a feminilidade, relação que pode ser revelada por diversos signos, começando pela “androginia” do deus titular Dioniso (LORAUX, 2003:15).

Percebemos um aspecto violento no próprio Dioniso, apontado por René Girard

(1990). Ao mesmo tempo ele é o deus que agrega e que dá oportunidade àqueles que aceitam

seu culto, ele é sádico com aqueles que não o aceitam. Após convencer Penteu, Dioniso

evoca as bacantes:

DIONISO: Mulheres, o homem caiu em nossa rede; até as bacantes vem, mas Dike, a Justa, o mata. À ação, Dioniso-deus presente! Urge puni-lo! Rouba-lhe a razão; Insânia leve infunde: se ajuizado, Não vai querer vestir-se de mulher, Mas quererá, se não tiver bom juízo. Desejo que os tebanos riam do rei: conduzo-o pela polis; fêmeoforme, outrora tão terrível nas ameaças... Enfeitarei Penteu. Que baixe ao Hades ínfero, pelas mãos da própria mãe Dilacerado! Saberá que Zeus gerou à perfeição um deus: Dioniso, entre terribilíssimo e gentil! (Eurípides. As Bacantes, v. 847-861)

Pelo verso oitocentos e cinqüenta e um: “Insânia leve infunde: se ajuizado” podemos notar

que Dioniso inspirou uma “ligeira” loucura em Penteu, que faz com que o rei aceite algumas

exigências do deus. Se concordarmos com a teoria que coloca Eurípides como um escritor

racionalista, podemos afirmar que esta cena possui uma característica negativa, pois Penteu é

manipulado pelo deus, sendo incapaz de perceber o que acontecia à sua volta e a real

situação de perigo em que se encontrava (VIEIRA, 2003:30). É interessante a constatação de

Trajano Vieira quando de seu cotejamento desta parte da tragédia As Bacantes com a Poética

aristotélica:

Page 174: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

173

O dramaturgo antecipa de certo modo a conhecida passagem da Poética (1451b), em que Aristóteles, ao defender a superioridade da poesia em relação à história, observa que a segunda “fala do que ocorreu”, enquanto a primeira, “do que poderia ocorrer”. Sem se dar conta do alcance de seu discurso, Penteu cogita da possibilidade de o passado ter sido a invenção poética do presente (VIEIRA, 2003:31).

Nesta cena, temos também a realeza ridicularizada pelo poder dionisíaco.

Provavelmente Eurípides estava interessado em realizar uma crítica àqueles governantes de

Atenas, que o hostilizaram. Percebemos que a ridicularização do rei acontece através de seus

trajes femininos, confirmando nosso argumento apresentado anteriormente.

Dioniso diz que, se Penteu perder o juízo, se vestirá de mulher. E o rei aceita. Deste

modo, Penteu já estava começando a perder a sanidade e se deixar ser apossado pela manía,

pela loucura báquica. A partir do verso novecentos e quinze, temos o momento exato do

travestimento. Dioniso contempla Penteu, vestido em trajes femininos:

Em fêmeos parâmetros, louca báquica, espião da própria mãe, de seu cortejo, és um retrato nítido das Cádmias. PENTEU Afigura-se a mim que o sol dobrou, Tebas também dobrou, cidade sete- -portas, e, guia, tu me pareces touro, os cornos projetando-se do crânio – taurificando ou já eras, antes, fera? DIONISO O deus outrora hostil nos acompanha, aliou-se a nós. Ti vês qual deves ver. PENTEU Como pareço? Tenho o porte de Ino? Tenho a postura maternal de Agave? DIONISO És elas! Quando vejo-te eu as vejo! Mas penteia a melena descomposta, que fixei com esmero sob a mitra. PENTEU No instante e, que me dionisei, no vai e vem lá dentro, foi que eu desgrenhei-a. DIONISO Mas como estou aqui para servir-te, reponho-a em seu lugar. Ergue a cabeça!

Page 175: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

174

PENTEU Vai! Me adorna! Me entrego a ti agora! DIONISO Os calcanhares não te cobre a túnica com dobras retas: teu cinto se afrouxa. PENTEU: Também se me afigura, ao pé direito; mas, do outro lado, cai perfeitamente. DIONISO Dirás: “és meu amigo mais querido!”, quando as vês a pensar a contra-lógica. PENTEU Reproduzo fielmente as fêmeas báquicas, O tirso á destra, ou à outra mão portando-o? (Eurípides. As Bacantes, v.915-942)

O primeiro verso “Afigura-se a mim que o sol dobrou” pode ser interpretado como uma

espécie de embriaguês dionisíaca; o rei enxerga dois sóis em sua cidade. Penteu gostaria de

ter o mesmo porte de sua mãe ou sua tia, o porte real feminino. O rei absteve-se de sua

virilidade, própria dos cidadãos, para adequar-se ao culto:

Para participarem na experiência dionisíaca, os homens têm que se afastar de múltiplas maneiras das normas, dos comportamentos habituais, no trajar e nas atitudes. É-lhes necessário abandonar a boa aparência, a dignidade viril na postura, o constante domínio de si que são próprios do seu sexo (VERNANT, 1991:168).

Este elemento de efeminização acontece dentro da própria representação teatral. O ator deve

vestir-se como uma mulher, ainda portando a máscara (VERNANT, 1991:169). Dioniso é o

deus masculino com trajes e cabelos femininos, e transforma em femininos aqueles viris,

iniciando-os no transe báquico. O deus já não é mais aquele homem rústico; agora é o

homem belo e, na medida do possível, temperante. Ele não aparece em manía em nenhum

momento da peça, pelo contrário, sua frieza é tanta que calcula todos os seus movimentos,

inclusive quem serão as pessoas que receberão a loucura como forma de castigo:

Trata-se de um Dioniso “apolíneo”. Nada a ver com o grande macho barbudo e um pouco assustador ao qual estávamos habituados na cerâmica arcaica. Eurípides se inspira na nova imagem dionisíaca e, sem dúvida, contribui fortemente para o seu sucesso, pelo prestígio imediato e

Page 176: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

175

prolongado da sua peça (TRABULSI, 2004:160).

Este Dioniso “apolíneo” é perceptível quando da localização urbana: todo teatro – que é um

“templo” a Dioniso – está ao lado de um templo de Apolo. Desta forma, Eurípides não é um

mero sofredor das influências imaginárias do período clássico. Ele também influencia e

auxilia na construção deste imaginário; o Dioniso com traços de Apolo, que nasce no período

clássico e se solidifica no período helênico, obteve uma ajuda de Eurípides109.

Caminhando para a parte final da peça, Dioniso prepara a sua vingança contra o rei

que o negou e a seu culto. Veremos dois momentos da peça onde Dioniso instiga as

mênades, enquanto Penteu sobe morro acima e se acomoda escondido, vestido com trajes

femininos. Na segunda parte – que é narrada pelo mensageiro – o próprio deus delata a

presença do rei às mênades:

DIONISO A prova singular singulariza alguém tão singular: verás inscrita, no urânio-céu, tua glória. Agave e irmãs de sangue, mãos à frente! Trago o moço ao megaembate. Se eu vencer, Rumor, o deus, terá a vitória. Os fatos falam. CORO Ágeis perras da Fúria, ide à montanha onde as Cádmias mantêm o tíaso! Instigai-as contra o imitador de fêmeas na indumentária, enraivecido espião das loucas! Primeiro a mãe o avista olhando de pedra lisa ou de um pináculo, a pela às menades (...) (Eurípides. As Bacantes, v. 971-984) ......................................................... Antes de as ver, as loucas o notaram: praticamente oculto no alto posto (o estrangeiro, a essa altura, não visível), altíssona uma voz ressoou, etérea, (era Dioniso, ao que parece): “Jovens,

109 Mas Trabulsi (2004) alerta que seria errôneo dizer que o Dioniso jovem e efeminado apresentado no teatro seja uma invenção de Eurípides. Ésquilo já havia apresentado Dioniso desta forma e o deus teria sido até zombado na comédia por causa de seus traços. Porém, é com esta peça de Eurípides que acontece uma maior divulgação do deus e, conseqüentemente, dos seus traços.

Page 177: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

176

conduzo quem de vós, da orgia mofava, ria dos ritos. A vós cabe a desforra!”( Eurípides. As Bacantes, v. 1075-1081)

O vingativo Dioniso, antes bondoso com aquelas mulheres, que ele julga incompreendidas,

parte para o ataque, castigando o rei que zombou de seu culto. O deus que provocou a

igualdade entre os seres também é o responsável pela distinção entre os que o aceitam e os

que não o aceitam:

Inicialmente pacífica, a não-diferença dionisíaca desliza rapidamente para uma indiferenciação violenta particularmente intensa. A abolição da diferença sexual, que aparece na bacanal ritual como uma festa do amor e da fraternidade, transforma-se em antagonismo na ação trágica (GIRARD, 1990:163).

Notamos que Eurípides, além de ridicularizar o poder oficial – travestindo-o de

mulher – agora atesta a fraqueza deste diante do poder divino. A seguir, o mensageiro

continua relatando o momento de Penteu na montanha, e podemos ver as indagações

propostas por René Girard (1990); um momento de extrema violência concedido pelas

mênades, que se encontravam possuídas pela loucura de Dioniso:

Sentado no alto, do alto precipita-se Penteu, multiplicando suas lamúrias ao cair, do seu quase desastre cônscio. Sacerdotisa da matança, a mãe o ataque principia. Tirando a mitra – pois se o reconhecera, não matava-o a desditosa Agave –, diz, e toca-lhe a face: “Mãe, sou eu, Penteu, teu filho, geraste-me no paço com o Ofídio- -Equíon. Deixa eu viver! Por erros meus, não imoles a mim, que sou teu filho!” Ela espuma e espiralada, contorcendo, pupilas, ignorando o que ignorar não deveria: dionísia, não o ouvia. Agarra-o firme pelo braço esquerdo e, impondo os pés no flanco do infeliz, sem mais esforço, seu úmero arrancou – facilidade ás mãos o deus lhe dera. Ino labora do outro lado, rompe a carne. Autônoe, todo o bando báquico acomete em uníssono clamor. Urrava enquanto a vida lhe soprou; ululavam. Alguém portava um braço, outra, com bota, os pés. Costelas nuas

Page 178: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

177

por dilaceração. Sangue nas mãos, a carne dele jogavam feito bola. O corpo desmembrado jaz em ásperas pedras, no denso matagal do bosque, duro de achar. A mísera cabeça, por mero acaso quem a leva é a mãe, infixa à cúspide do tirso (aos olhos dela é de um leão montês); pelo Citero vai, restam as irmãs no coro louco. No gáudio do butim funesto, Agave cruza os muros e sobreclama a Baco, sócio na caça e na carnificina bélico ufana. Galardão: o pranto! (Eurípides. As Bacantes, v. 1112-1147)

Mesmo o filho gritando para a mãe que se tratava de sua cria, Agave parece não ouvir

o jovem filho. Os versos seguintes descrevem o aspecto de Agave, espumando e contorcendo

as pupilas. Fica clara a possessão. A dionísia – como aparece referenciado na própria peça –

Agave está tomada pela manía, e nada do mundo real faz sentido a ela. A morte de Penteu é

descrita com riqueza de detalhes por Eurípides: o rei tem seus membros dilacerados pelas

bacantes, que possuíam uma força sobre-humana, concedida por Dioniso. Tem seu corpo

desmembrado, cada membro está na mão de uma bacante, que jogavam sua carne uma para

outra. De acordo com Rachel Gazolla, a morte de Penteu por despedaçamento seria uma

alusão que Eurípides quis fazer à antiqüíssima lenda do primeiro Dioniso – Zagreus – que

também morre despedaçado (GAZOLLA, 2001:95). Este é um indício que vem somar àquele

dos versos 291-298, do nascimento de Zagreus. Se concordarmos com as versões destes

autores, então poderemos afirmar que esta primeira passagem deste Dioniso longínquo não

estava completamente perdida.

A parte sacrifical existia em quase todos os cultos e festas divinizadas. É a violência

fazendo parte do sagrado. As tragédias foram vistas como um exemplo de “festas que

acabam mal” (GIRARD, 1990:160). Esta violência está presente tanto nos momentos de

sacrifícios de animais, muito comuns em ritos cthônicos, até a morte de algum ser humano,

como é o caso da peça em questão.

As mênades não reconhecem que a carne que jogam é carne humana. Agave tem a

cabeça do ser – que ela julga ser um leão – e sai pela cidade em comemoração à nova caça:

AGAVE Portamos da montanha ao paço, recém-cortado, um cacho, fera egrégia.

Page 179: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

178

CORO Eu vejo. Ingressa em nossa festa! AGAVE Sem rede o capturei, filhote de leão selvático, conforme o vês. (Eurípides. As Bacantes, v. 1169-1775)

A caça – como já foi dito por nós – é um elemento da ruralidade, e um elemento também do

mundo selvagem, da floresta, dos campos não arados. No ritual báquico, os seres humanos

fazem aflorar os seus sentimentos mais primitivos. Um animal dilacerado pelas mãos de

mulheres coloca em evidência as atitudes mais animalescas do ser-humano, assim como as

práticas sexuais que ocorriam nos rituais. Até o assassinato acontece nos usos dionisíacos,

tamanha é a importância dos elementos ritualísticos:

Reconhece-se nele o sparagmós, cujos traços distintivos são idênticos aos vários sacrifícios descritos (...): 1. Todas as Bacantes participam da imolação. Encontramos aqui a exigência de unanimidade que ocupa um lugar de importância em numerosos rituais; 2. nenhuma arma é utilizada: a vítima é despedaçada com as mãos nuas (GIRARD, 1990:167).

Podemos interpretar que as mênades representariam a multidão, o povo, e Penteu o poder.

Dioniso assim demonstra o poder das multidões sobre o poder oficial, que não permite a

manifestação da população.

Devemos deixar claro que Eurípides retoma um ritual que ele mesmo provavelmente

não presenciou. No século V, estes rituais – como já foi colocado – já estavam

completamente transformados, sobretudo em Atenas, em festas políades, promovidas pelo

Estado. Estes rituais, não temos como datar exatamente de quando são. Contudo, é certo que

são de um momento no qual a cidade não estava tão grande e urbanizada, e os ambientes

rural e urbano ainda não estavam completamente claros e difundidos. Podemos acreditar que

no período homérico estes ritos poderiam ser mais comuns, já que o ambiente rural se

constituía como quase a totalidade do território grego; o perímetro urbano seria somente a

região dos palácios, dentro das muralhas, cercado por uma infinidade de terra – a chóra –

com moradores de costumes rurais.

Na parte final na peça, Agave, de volta ao destruído palácio, mostra a caça – na

verdade a cabeça de seu filho – ao seu pai Cadmo, que tenta trazer de volta a lucidez em sua

filha, mas os esforços são em vão. Cadmo, então, vai até a montanha e recolhe os restos

Page 180: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

179

mortais de Penteu. Agave e as outras mênades saem do transe dionisíaco e percebem o que

fizeram:

CADMO De quem é a fronte que entre os braços trazes? AGAVE De um leão, tal qual diziam-me as caçadoras. CADMO Repara bem. Não custa examiná-la. AGAVE Oh! O que vejo? Nas mãos carrego o quê? CADMO Fixa-te bem e o saberás melhor. AGAVE Oh! Vejo: dor imensa, desventura! CADMO A ti parece um ícone leonino? AGAVE Não! Porto – ó dor! – o crânio de Penteu. CADMO Pranteei-o, antes que tu o reconheceras. AGAVE Quem o matou? Por que o tenho nas mãos? CADMO Oh, a destempo, é triste o desvelar! AGAVE Diz! Do que há de vir, dói-me o coração. CADMO Mataste-o tu, mais tuas irmãs de sangue. AGAVE Em que lugar morreu? Em casa? Como? CADMO Onde a matilha estraçalhara Actéon. AGAVE Por que foi ao Citero esse infeliz?

Page 181: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

180

CADMO Escarnecia do deus, dos seus baqueus. AGAVE Mas nós, como ganhamos tais paragens? CADMO Loucura; a polis toda dionisou-se. AGAVE Dioniso nos destruiu, entendo agora. (Eurípides. As Bacantes, v. 1277-1296)

O castigo de Dioniso se concretizou. Além do assassínio de Penteu, o deus pode castigar

toda a estirpe real tebana, com a tragédia de a própria mãe matar o filho. Nossas duas últimas

citações da peça tratam, consecutivamente, do lamento de Cadmo e do arrependimento de

Agave, por ter recusado o deus, e de seu exílio da cidade. É neste momento que temos a

catarse, a redenção e o arrependimento de Agave por não ter aceitado Dioniso:

AGAVE Penteu participou da minha insânia? CADMO A vós ele igualou-se, adverso ao deus, que a todos nós reuniu num só castigo, a vós e a ele, o palácio me aruinando, e a mim, privado de um varão na estirpe. O fruto do teu ventre agora vejo morto, o pobre, tão torpe e tristemente! Mantinhas o palácio, em ti a luz, filho de minha filha, todos viam. Ninguém me maltratava, um velho, em face a ti, o rei: fazias tremer a polis, penalizavas com o aval de Dike. Do reino, agora banem-me sem honra, a Cadmo, magno: a raça dos tebanos semeei; que bela seara eu colho agora! Ó mais caro dos homens, mesmo ausente, a mais ninguém devoto apreço idêntico! Não mais me afagarás a barba com a mão, nem, me abraçando, me dirás: “meu avô”, perguntando: “quem te ofende injustamente? Quem, mesquinho, aflige-te? Fala-me, ó pai, que o injusto há de sofrer!” Sou desgraçado, és miserável qual tua própria mãe, Agave, e suas irmãs! Se alguém pretende sobrepor-se aos numes, que atende à morte dele, creia nos deuses! (Eurípides. As Bacantes, v. 1301-1326)

Page 182: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

181

....................................................................... AGAVE E eu, sem tua companhia, ó pai, me exilo. CADMO Por que as mãos, infeliz, me circunlanças Qual cisne ao pobre pássaro grisalho? AGAVE Êxul, que direção eu vou tomar? CADMO Não sei, teu pai tem pouca serventia. AGAVE Adeus, palácio, adeus, cidade ancestre, vos deixo à contra-corte, eu, fugitiva do tálamo. CADMO Busca Aristeu no campo. AGAVE Por ti lamento, pai. CADMO Choro por ti, por tuas irmãs também. (Eurípides. As Bacantes, v. 1364-1373)

A tristeza e o momento de dor fazem com que estes personagens reavaliem suas posições e

entrem em um momento de reflexão; reflexão que faz com que Cadmo e Agave se decidam

pelo exílio. A catarse é exatamente a aproximação do ser humano com seus sentimentos mais

doloridos e ocultos. O auto-exílio significa a redenção e o início de um momento de

purificação das emoções:

Lembremos que a palavra kátharsis significa, rigorosamente, limpeza – de katharós, limpo, puro, no sentido do que não está misturado a, como o joio já separado do trigo. É purificação necessário devido a contágio impuro, a algo que se misturou ao que não devia ser misturado – o sagrado com o profano, por exemplo (GAZOLLA, 2001:41).

A peça tem seu fim com este exílio da estirpe real tebana. Dioniso toma a cidade para

ele e para o seu culto. Tebas agora é toda de Dioniso; a cidade de seu nascimento agora é

sua. A vingança do deus está completa. É importante exaltarmos um caráter estritamente

Page 183: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

182

“psicológico” do Dioniso euripidiano. Como já foi colocado por nós, Dioniso sempre foi

perseguido, principalmente por Hera, mas também por outros reis – como Licurgo, que

expulsa o ainda jovem Dioniso de seu reino – e deuses; Dioniso nunca sentiu-se querido, e

assim cresceu. Era um deus sem o respeito que um deus merecia. Quando chega à sua terra

natal, seus próprios “parentes” o hostilizam, causando assim a ira do deus. Dioniso revive

um trauma quando chega a Tebas: o trauma de nunca ter sido realmente aceito pelo seu

povo.

A realidade que Eurípides viveu era diferente desta descrita em Tebas. O

tragediógrafo passou sua vida na Atenas democrática, no qual as festas dionisíacas já faziam

parte da oficialidade:

Acolhendo Dioniso e celebrando todos os anos a sua união com ele por intermédio da rainha, a cidade de Atenas faz pois o contrário do que Eurípides descreve nas Bacantes: com efeito, em Tebas, todas as mulheres da família real se recusam a honrar Dioniso que vem para ser reconhecido, não como patrono de uma comunidade religiosa isolada, do grupo restrito de uma tíase, mas como deus de toda a cidade (...) (VERNANT, 1991:165).

A posição que Dioniso reivindica não é a de um deus de uma seita – como Adônis ou a

antiga Cibele; é o de deus da cidade, ele não se contenta com um secto de seguidores, quer a

cidade toda integrada em seu culto e em suas festas. Na peça, encontramos duas forças

antagônicas que estão em constante conflito: a realeza e a oficialidade de Penteu contra o

devaneio e a manía de Dioniso. Desta forma, o episódio narrado em As Bacantes configura-

se como um conjunto de causas dialéticas, que se contrapõem para formar uma síntese do

momento dionisíaco:

As Bacantes de Eurípides vivem de um conflito entre forças irredutíveis, de que Dioniso e Penteu são a face concreta. Por trás das duas figuras instala-se a antítese de diversos pressupostos: de divino e humano, de natural e social, de racional e emocional, de feminino e masculino, de grego e bárbaro (SILVA, 2007:11).

Entretanto, as forças não são iguais. Eurípides deixa claro que o poder divino é maior

que o poder político humano. A igualdade que o deus parece promover é aparente: “Entre a

onipotência de Dioniso e a fraqueza culpada de Penteu, nunca parece ter havido igualdade. A

diferença que vence vem recobrir a simetria trágica.” (GIRARD, 1990:165). Encerramos este

último tópico com uma fala de Aristóteles, presente na obra Poética, que na verdade é uma

Page 184: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

183

defesa a Eurípides, que tanto sofreu críticas em seu próprio tempo:

Assim se equivocam também quem critica Eurípides por proceder assim e porque muitas de suas tragédias terminam em desgraça. Porém, isto é que é correto, como se disse. Como indício notório teremos com o feito de que, nas encenações e nos concursos, tais tragédias, quando são bem representadas, se manifestam como as mais trágicas, e Eurípides, ainda que não disponha bem das demais partes, é, certamente, o mais trágico dos poetas. (Aristóteles. Poética, 53a23)

O tragediógrafo, de acordo com o filósofo, une o medo com o belo, a boa sorte com a má

sorte (SIQUEIRA, 2008:23), e esta sensibilidade fascina Aristóteles. Embora este discorde

da maioria dos “estilos” trágicos de Eurípides, concede ao autor o título de “mais trágico dos

poetas”.

Com isto, podemos concluir que a peça As Bacantes constituí-se como um

documento peculiar, pois não demonstra as imagens de Dioniso somente no momento em

que estava sendo escrita; Eurípides passa por vários momentos anteriores do dionisismo,

retomando lendas mais antigas e até tradições orais para compor sua digressão acerca do

culto ao deus. O belo e jovem efebo – outrora selvagem – é também o forte e violento deus,

que sabe assumir o seu papel de divindade.

Page 185: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

184

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A idéia primeira desta pesquisa era compreender como Eurípides e a tragédia As

Bacantes retrataram Dioniso no período clássico. Porém, com as leituras e o contato com

outras fontes, nossa pesquisa foi expandida. A intenção passou a ser compreender como as

imagens dionisíacas foram se alterando ao longo da história políade ateniense. Contudo, o

trabalho ainda estava para ser expandido. Com o contato com as fontes iconográficas, nos

deparamos com peculiaridades – como a transformação na imagem do deus nos vasos– que

nos levaram a abordar outros assuntos nos quais até então não tínhamos pensado.

A pesquisa, que antes iria ser realizada com um documento, um autor e um momento,

se transformou amplamente, abarcando aspectos que acabaram por enriquecer o trabalho e

transformaram-no em um verdadeiro estudo sobre o dionisismo. Compreender como Dioniso

configurava-se – ou não – no período homérico, para aí entender que foi durante as tiranias

que esta manifestação religiosa ganhou força dentro das fontes – escritas ou iconográficas –

nos fez concluir que o poder político – e também econômico – foi imprescindível para que a

população conhecesse e aceitasse este culto antes misterioso.

É claro que as manifestações populares independem do que o poder oficial iria

decidir, mas não podemos negar que este influencia e muito na participação e manifestação

das multidões. O culto, que pouco era presenciado dentro dos aglomerados urbanos no

período homérico, passou a ser ovacionado pelos habitantes da polis no período clássico.

Desta forma, não podemos descentralizar as decisões que aconteciam no sistema políade do

poder político, embora muitos colocariam que esta é uma leitura tradicional acerca da Grécia

antiga.

Também é óbvio que Dioniso existia tanto como divindade como culto antes das

tiranias. Discutimos os termos representação e imaginário exatamente para elucidar que,

independente das relações de poder que ocorrem de cima para baixo, as manifestações

psicológicas sempre acontecerão com os indivíduos. O que os governantes realizaram foi

uma padronização, tanto da divindade como de seu culto. O deus que antes era livre, sem

denominações, passa a ser o deus do vinho, da fertilidade e do teatro. Dioniso como deus do

teatro é uma construção do poder. Constitui-se como uma forma de engessamento das

manifestações primordiais dos cidadãos. O ritual agora acontecia perto dos olhos dos

governantes e dos princípios que regiam a sociedade políade. O misterioso culto retratado

por Eurípides – que por vezes incitava até medo – agora não tem nada de proibido; quase

Page 186: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

185

tudo é permitido dentro dos padrões da polis.

No período homérico, vimos que a ausência do deus também nos diz muito sobre sua

participação na religiosidade daquele período. Confirmamos que o deus já era conhecido,

haja vista as passagens envolvendo seu nome na Ilíada e na Odisséia, mas pouca

participação possuía em um período onde os costumes aristocratas de poucos predominavam,

mesmo tendo a grande maioria da população vivendo nos campos. Contudo, também não

podemos dizer que o culto ao deus não ocorria nesta época, pelo contrário. Como a maioria

da população era ruralizada, é quase certo de que o deus possuía grande popularidade entre a

maioria das pessoas.

Entretanto, os detentores da escrita e das produções intelectuais no período homérico

eram homens abastados da elite, que reproduziam o pensamento elitista de seus pares. Não

podemos afirmar que a ausência quase total de Dioniso dos documentos escritos e a ausência

total do deus nas imagens de cerâmica significavam uma ausência do deus da vida da

população grega. O que podemos afirmar é que a difusão do dionisismo pouco aconteceu

neste período devido à aristocracia e sua empatia maior com os deuses altivos e poderosos.

Zeus e Poseidon diziam muito mais sobre esta elite do que o rústico Dioniso.

O Hino Homérico a Dioniso, embora dificilmente tenha sido redigido neste período,

mostra um Dioniso forte e vingativo, assim como uma pessoa bela e com características

joviais. Este Hino mostra a ganância de marinheiros que, pensando em ter raptado o filho de

algum rei, e pretendendo exigir dinheiro como resgate, prendem o deus Dioniso, que mostra

toda a sua fúria de deus. Esta fúria também fica clara em um outro documento, a peça As

Bacantes.

Já no período arcaico, o dionisismo conheceu suas maiores transformações. A

manifestação religiosa antes pouco vista e praticamente não registrada agora tomar forma de

festa dentro dos muros da polis. Pisístrato e sua tirania, com o intuito de aproximar as

populações menos favorecidas – como as campestres – para dar uma legitimidade maior ao

seu governo, oficializa o culto dionisíaco e coloca-o no calendário oficial de Atenas. As

obras Histórias, de autoria do historiador Heródoto, e Constituição de Atenas, escrita pelo

filósofo Aristóteles, cada uma a seu modo, retratam este período com certa clareza. A frágil e

conturbada política de Atenas faz com que governantes tenham que se utilizar de artimanhas

para se manterem no poder. Dioniso foi mais uma destas artimanhas.

Destarte, esta inserção do culto ao deus, que ocorreu em forma das festas, também fez

com que este mesmo culto perdesse elementos primordiais. Agora o transe, a selvageria, a

Page 187: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

186

embriaguês descontrolada não eram mais tão característicos nestas festas. Muito mais

importante era a procissão da falofolia ou os concursos teatrais, estes um caso a parte. Mas o

governo tirânico também fez Dioniso aparecer como imagem. A partir do século VI, os

primeiros vasos representando Dioniso são confeccionados pelos pintores. Sófilos e Kleitias

iniciam uma tradição que vai continuar até o fim do período helenístico – ou poderíamos

dizer também até o fim da própria civilização grega. A representação de Dioniso passa a ser

corriqueira em várias cerâmicas e também em afrescos. Estas representações nos vasos vão

ser maiores durante o período clássico, e vão transformando as caracterísitcas do deus, quer

por questões políticas e sociais, quer por questões ideológicas de cada pintor.

O período clássico, conhecido pela excelência democrática, também foi o período da

excelência dionisíaca. O apogeu do teatro ateniense – tendo em Ésquilo, Sófocles e Eurípides

os principais expoentes – fez com que Dioniso se tornasse o deus primordial do espetáculo.

O teatro era um verdadeiro templo a Dioniso, e as representações teatrais tinham como

essência uma ritualística que remetia ao culto ao deus. Quando se estava fazendo teatro –

seja escrevendo ou representando – estava-se cultuando Dioniso. É neste século V que foi

composta uma das principais fontes que relatam Dioniso e seu ritual: a peça As Bacantes,

escrita por Eurípides.

A peça justifica o título de nosso trabalho; o Dioniso arcaico, sempre ruralizado,

torna-se o efeminado do período clássico. Mas o Dioniso de As Bacantes não é só

efeminado; ele também é selvagem, a medida que não aceita aqueles que vão contra seu

culto e seus novos costumes. Esta peça se assemelha em alguns momentos com o Hino

Homérico a Dioniso: ao mesmo tempo que a beleza e a jovialidade de Dioniso encanta quem

se depara com sua figura, também sofre aquele que incita a ira do deus.

No Hino Homérico – de autor, local e data desconhecidos – os marinheiros, que

ficam impressionados com o jovem, sentem a fúria do deus. Aprisionado ao mastro do navio,

Dionsio faz nascer parreiras de uvas por toda a nau e acaba por transformar os marinheiros

em golfinhos, como castigo por terem prendido um deus. Mas Dioniso é bondoso com o

piloto, que desde o início insistia para que não prendessem o jóvem. No texto trágico As

Bacantes, Dioniso aparece em sua cidade natal Tebas, após uma longa estada na Ásia.

Adorado por um grupo de mulheres asiáticas, as mênades – ou ainda, bacantes – Dioniso

adentra na polis e logo sente uma resistência de seu culto e de sua própria imagem por parte

de alguns integrantes da realeza tebana.

Com isto, o deus faz com que as mulheres da corte saíssem pelos montes ao redor de

Page 188: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

187

Tebas, em loucura – manía – cultuando o “novo deus”. Nem o fundador de Tebas, Cadmo,

escapa da loucura dionisíaca. Travestido de mulher, ele e o adivinho Tirésias também

tornam-se bacantes. Porém Penteu, rei de Tebas, passa a refutar este culto e a contestar

Dioniso. À semelhança do Hino Homérico, o deus também é acorrentado e é também neste

momento que mostra sua fúria. O palácio de Penteu é destruído, e como castigo o deus insere

o rei em um transe dionisíaco, fazendo-o travestir-se como mulher – o que causou grande

dano a imagem real – e ir até o local de culto ao deus, onde não era permitido a homens

estar. O defecho da história é a morte de Penteu, esquartejado por sua própria mãe e suas

tias, que se encontravam em manía dionisíaca e não possuíam discernimento sobre suas

ações. O rei e toda a família real tebana que maltrataram Dioniso foram castigados pelo deus,

assim como os marinheiros do Hino Homérico.

Estas constatações de que os dois documentos são semelhantes não significa que

acreditamos que possam ter sido escritos pelo mesmo autor, ou um ter influenciado a escrita

do outro, mesmo que esta segunda hipótese possa até ser plausível. Provavelmente nunca

conseguiremos comprovar que isto aconteceu. O que estamos tentando colocar nestas últimas

linhas do trabalho é que as caracterísitcas de Dioniso, embora tenham se modificado

considerávelmente nestes três século que recortamos para analisar nesta dissertação,

conservou algumas caracterísiticas que o acompanharam em toda a sua trajetória helênica.

Acreditamos que as caracterísitcas de selvagem a efeminado, ou de selvagem e

efeminado, são, sem dúvidas, as mais marcantes. O selvagem Dioniso do período homérico,

que teve de continuar selvagem no início do período arcaico, para que as camadas

campestres se sentissem contemplados pelo governo tirânico, era rústico e beberrão. Com

uma longa barba e correndo em festejos, este deus selvagem foi, por muito tempo, o deus da

simplicidade camponesa e da “brutalidade” rural. Já o Dioniso das imagens mais próximad

do período clássico mostram, se não um Dioniso asiático, ao menos uma divindade com

caracterísitcas orientais. O deus que antes sempre estava de pé agora senta para receber

adorações de uma mênade ou para conversar durante um simpósio. A barba encolhe, assim

como sua idade; o velho rústico torna-se o jovem altivo, acusado de ser adamado por parte

do rei de Tebas.

Entretanto Dioniso também possui as duas características em uma só. Ao mesmo

tempo em que é o jovem temperante, que dança junto com mulheres em um culto embalado

por flautas, é o velho rústico, que se enfurece com aqueles que não o aceitam, fazendo assim

com que apareça seu lado mais primitivo e, por que não, mais antigo. O selvagem e o

Page 189: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

188

efeminado se confundem neste deus. Estas ambigüidades mostram uma fraqueza e uma

força; uma vontade de ser o que é novo sem perder o primordialmente antigo. As angustias

de alguém que é selvagem e efeminado aparecem por meio do temor que esta divindade tem

de não ser aceito. Não há melhor representação do ser humano do que este deus.

Page 190: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

189

BIBLIOGRAFIA

A) DOCUMENTAÇÃO TEXTUAL

ARISTÓTELES. A Constituição de Atenas/Athenaíon Politeía. Trad. Francisco Murari Pires.

São Paulo: Hucitec, 1995 [edição bilíngüe português – grego].

____________. Poética. Trad. Eilhard Schlesinger. Buenos Aires: Emecé, 1952.

ARISTOTE. Poétique. Trad. J. Hardy. Paris: Les Belles Lettres, 2002. [edição bilíngüe

francês – grego].

EURÍPIDES. As Bacantes/Bakxai. Trad. Trajano Vieira. São Paulo: Perspectiva, 2003.

[edição bilíngüe português – grego].

__________. As Bacantes. Trad. Eudoro de Souza. São Paulo: Abril Cultural, 1976.

HERÓDOTO. Histórias. Trad. Mario da Gama Kury. Brasília: Ed. UNB, 1988.

HERODOTE. Histoires: index analytique. Trad. Ph. – E. Legrand. Paris: Les Belles Lettres,

2003 [edição bilíngüe francês – grego]

HOMERO. Ilíada. Trad. Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.

_________. Iliade. Trad. Paul Mazon. Paris: Les Belles Lettres, 2002. [edição bilíngüe

francês – grego]

_________. Odisséia. Trad. Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.

_________. Odyssee. Trad. Paul Mazon. Paris: Les Belles Lettres, 2002 [edição bilíngüe

francês – grego]

B) OBRAS DE REFERÊCIA

GRIMAL, Pierre. Dicionário de Mitologia Grega e Romana. Rio de Janeiro: Bertrand, 2000.

STAVROPOULOS, D. N. Oxford English-Greek Dictionary. Oxford: Oxford – USA II,

2008.

C) OBRAS GERAIS

ALBORNOZ, Suzana. “Os ideais morais segundo Ernst Bloch – a união de Dioniso e

Apolo”. Humanas. Porto Alegre. 28, n°: 2, p. 177-200, 2006.

ANDRADE, Marta Mega de. A Vida Comum: espaço, cotidiano e cidade na Atenas

Page 191: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

190

Clássica. Rio de Janeiro: DP & A, 2002.

________________________. “Jean-Pierre Vernant à Vizinhança de Marcel Mauss”. Rio de

Janeiro: Mauad Editora; ano XIII, 2007, p. 238-256.

BACELAR, Aghata. “A Representação de Sólon nas Histórias.” In: Revista do Laboratório

de História Antiga. Rio de Janeiro.

BAGG, Robert. “The Bakkhai by Eurípides”. Theatre Journal. Baltimore. 31, n°: 3, 1979, p.

293-438.

BALANDIER, Georges. O Contorno: poder e modernidade. Rio de Janeiro: Bertrand, 1997.

___________________. O Dédalo: para finalizar o século XX. Rio de Janeiro: Bertrand,

1999.

BAPTISTA, Lyvia Vasconcelos. Procópio e a Reapropriação do Modelo Tucidideano: a

representação da peste na narrativa histórica (VI século d.C.). Goiânia: Universidade

Federal de Goiás, Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de História,

2008. (Dissertação de Mestrado)

BARBO, Daniel. O Triunfo do Falo: homoerotismo, dominação, ética e política na Atenas

Clássica. Rio de Janeiro: Editora E – papers, 2008.

BARRERA, J. C. Bermejo e PLATAS, F. Diez. Lecturas del mito griego. Madrid: Akal,

2002.

BARRIVIERA, Alessandro. Poética de Aristóteles – tradução e notas. Campinas:

Universidade Estadual de Campinas; Instituto de Estudos da Linguagem; Departamento de

Lingüística, 2006. (Dissertação de Mestrado)

BELEBONI, Renata Cardoso. A originalidade do olhar de Jean-Pierre Vernant sobre a

Grécia: diálogos, inovações e atualidade. Campinas: Universidade Estadual de Campinas;

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas; Departamento de História, 2001. (Dissertação de

Mestrado)

_______________________. “O mito na perspectiva de Jean-Pierre Vernant.” In: Boletim do

CPA. Campinas, n° 10, 2000, p. 69-75

BENCHIMOL, Márcio. Apolo e Dionísio: arte, filosofia e crítica da cultura no primeiro

Nietzsche. São Paulo: Annablume, 2002.

BÉRARD, Claude. Anodoi: essai sur l’imagerie des passages chthoniens. Roma: Institut

Suisse de Rome, 1974.

BIGNOTO, Newton. O Tirano e a Cidade. São Paulo: Discurso, 1998.

BOEDER, Deborah e RAAFLAUB, Kurt A. Democracy, Empire and the Arts in Fifth-

Page 192: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

191

Century Athens. Harvard: Harvard University Press, 1998.

BOEGEHOLD, Alan L. e SCAFURO, Adele C. Athenian Identity and Civic Ideology.

Baltimore: The Johns Hopkins Press, 1994.

BRANDÃO, Junito de Souza. Teatro Grego: tragédia e comédia. Petrópolis: Editora Vozes,

1985.

BRAUDEL, Fernand. História e Ciências Sociais. Lisboa: Presença, 1976.

BROCK, Roger e HODKINSON, Stephen. Alternatives to Athens: varieties of political

organization and community in ancient Greece. Oxford: Oxford University Press, 2000.

BROWN, Truesdell. “Herodotus and His Profession”. In: The American Historical Review.

Washington. 59, n°: 4, 1954, p. 829-1115.

BURKERT, Walter. A Criação do Sagrado. Lisboa: Setenta, 1996.

_______________. Religião Grega na Época Clássica e Arcaica. Lisboa: Fundação

Calouste Gulbenkian, 1993.

CARDOSO, Ciro Flamarion S. A Cidade-Estado Antiga. São Paulo: Ática, 1987.

CARPENTER, Thomas H. Art and Myth in Ancient Greece. Londres: Thames and Hudson,

1991.

_____________________. Dionysian Imagery in Archaic Greek Art: its development in

black – figure vase painting. Oxford: Clarendon Press, 1986.

CASSIRER, Ernest. O Mito do Estado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1976.

CATROGA, Fernando. “Memória e História”. In: PESAVENTO, Sandra J. (org.).

Fronteiras do Milênio. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2001, p. 43-69.

CHARTIER, Roger. A Beira da Falésia: a história entre certezas e inquietudes. Porto

Alegre: Ed. UFRGS, 2002.

CHASIN, Milney. Política, limite e mediania em Aristóteles. São Paulo: Universidade de

São Paulo; Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia; Departamento de História, 2007

(Tese de Doutorado)

CONDILO, Camila da Silva. “Aspectos da tirania na época arcaica grega (séculos VIII – VI

a.C.): uma perspectiva acerca de Atenas”. Ensaios de História. Franca: Ed. Unesp, v. 9, p.

11-23, 2004.

_______________________. Heródoto, as tiranias e o pensamento político nas Histórias.

São Paulo: Universidade de São Paulo; Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas;

Departamento de História, 2008. (Dissertação de Mestrado)

COTTERILL, H. B. Ancient Greece: Myth & History. New Lanark: Geddes & Grosset,

Page 193: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

192

2004.

DETIENNE, Marcel. A Escrita de Orfeu. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991.

________________. A Invenção da Mitologia. Brasília: Ed. UnB, 1998.

________________. Comparar o Incomparável. São Paulo: Idéias & Letras, 2004.

________________. Dioniso a Céu Aberto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.

________________. Dionysos mis à mort. Paris: Gallimard, 1998.

________________. "Mito/rito". In: Enciclopédia Einaudi: Mytho/Logos - Sagrado/Profano.

Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, v. 12, p. 58-74, 1987.

________________. Os Gregos e Nós: uma antropologia comparada da Grécia antiga. São

Paulo: Loyola, 2008.

________________. Os Mestres da Verdade na Grécia Arcaica. Rio de Janeiro: Jorge

Zahar, 1988.

________________ e SISSA, Giulia. Os Deuses Gregos. São Paulo: Companhia das Letras,

1990.

DODDS, E. R. “Maenadism in the Bacchae”. The Harvard Theological Review. v. 33, n: 3,

p. 155-176, 1940

___________. Os Gregos e o Irracional. São Paulo: Gradiva, 1995.

DOSSE, François. História do Estruturalismo, vol. I: o campo do signo (1945 – 1966).

Bauru: Ed. USC, 2007.

______________. História do Estruturalismo, vol. II: o canto do cisne (1945 – 1966).

Bauru: Ed. USC, 2007.

DURAND, Gilbert. O Imaginário: ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem. São

Paulo: Difel, 1999.

ELIAS, Norbert. Os Estabelecidos e os Outsiders: sociologia das relações de poder a partir

de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

ELSTER, Jon. Peças e Engrenagens das Ciências Sociais. São Paulo: Relume-Dumara,

1994.

FARIA, Keila Maria de. Medeia e Mélissa: representações do feminino no imaginário

ateniense do século V a.C. Goiânia: Universidade Federal de Goiás; Faculdade de Ciências

Humanas e Filosofia; Departamento de História, 2007. (Dissertação de Mestrado)

FIALHO, Maria do Céu. “Rituais de Cidadania na Grécia Antiga”. In: LEÃO, Delfim F.;

FERREIRA, José Ribeiro; FIALHO, Maria do Céu. Paidéia e Cidadania na Grécia Antiga.

Coimbra: Ariadne, 2006, p. 79-100.

Page 194: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

193

FINLEY, Moses. A política no mundo antigo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

_____________. Democracia Antiga e Moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1988.

_____________. Economia e Sociedade na Grécia Antiga. São Paulo: Martins Fontes, 1989.

_____________. O Mundo de Ulisses. Lisboa: Presença, 1988.

FLORENZANO, Maria Beatriz Borba. Nascer, viver e morrer na Grécia Antiga. São Paulo:

Atual, 1996.

_______________________________.“Notes on the imagery of Dionysos on Greek Coins.

Reveue Belgue de Numismatique. Bruxelas, v 151. p. 37-48, 1999.

_______________________________.“Péricles, o Pártenon e a construção da cidadania na

Atenas clássica”. Coletâneas de Nosso Tempo – UFMT. v. 4, p. 103-112, 2000.

______________________________. “Polis e Oikos: o público e o privado na Grécia

Antiga”. Coletâneas de Nosso Tempo – UFMT. v 4, p. 113-118, 2000.

FORTUNA, Marlene. Dioniso e a Comunicação na Hélade: o mito, o rito e a ribalta. São

Paulo: Annablume, 2005.

FRANCISCO, Gilberto da Silva. Grafismos Gregos: escrita e figuração na cerâmica ática

do período arcaico (do século VII – VI a.C.). São Paulo: Universidade de São Paulo; Museu

de Etnologia e Arqueologia, 2007. (Dissertação de Mestrado)

FRANÇOISE, Laplatine e TRINDADE, Liana. O que é Imaginário?. São Paulo: Brasiliense,

1996.

FRONTISI-DUCROUX, Françoise. Le Dieu-Masque: une figure du dionysos d’athènes.

Paris: La Découverte, 1991.

FUNARI, Pedro Paulo A. Antiguidade Clássica: a história e a cultura a partir dos

documentos. Campinas: Ed. Unicamp, 2003.

_____________________. “A Guerra do Peloponeso”. In: MAGNOLI, Demétrio (org.).

História das Guerras. São Paulo: Contexto, 2006, p. 19-45.

_____________________. “Resenha de ‘Trajano Vieira, As Bacantes de Eurípides’”. Letras

Clássicas. São Paulo. 5, n°: 5, 2005, p. 307-309.

GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar, Escrever, Esquecer. São Paulo: Trinta e Quatro, 2006.

GARLAN, Yvon. Guerra e Economia na Grécia Antiga. Campinas: Papirus, 1991.

GASKELL, Ivan. “História das Imagens”. In: BURKE, Peter (org.). A Escrita da História:

novas perspectivas. São Paulo: Ed. Unesp, 1992, p. 237-272.

GAZOLLA, Rachel. Para Não Ler Ingenuamente Uma Tragédia Grega: ensaio sobre

aspectos do trágico. São Paulo: Loyola, 2001.

Page 195: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

194

GAZONI, Fernando Maciel. A Poética de Aristóteles: Tradução e Comentários. São Paulo:

Universidade de São Paulo; Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas;

Departamento de Filosofia, 2006. (Dissertação de Mestrado)

GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.

GINZBURG, Carlo. Olhos de Madeira: nove reflexões sobre a distância. São Paulo:

Companhia das Letras, 2001, p. 969-975.

________________. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido

pela inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

GIRARD, René. A Violência e o Sagrado. São Paulo: Ed. Unesp, 1990.

GLOTZ, Gustave. A Cidade Grega. São Paulo: Difel, 1980.

______________. História Econômica da Grécia, volume I: desde o período homérico até a

conquista romana. Lisboa: Cosmos, 1946.

GRAMACHO, Jair. Hinos Homéricos. Brasília: Ed. UnB, 2003.

GRIMAL, Pierre. O Teatro Antigo. Lisboa: Setenta, 2002.

GUARINELLO, Norberto Luiz. “Festa, Trabalho e Cotidiano”. In: JANCSÓ, István e

KANTOR, Iris (orgs.). Festa: cultura & sociedade na América Portuguesa, volume II. São

Paulo: Edusp, 2001.

_________________________. Imperialismo Greco-Romano. São Paulo: Ática, 1994.

GUMBRECHT, Hans Ulrich. "Os lugares da tragédia". In: ROSENFIELD, Kathrin

Holzermayr (org.). Filosofia & Literatura: o trágico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,

2001, p. 9-19.

HARDIE, R. P. “The Poetics of Aristotle”. Mind New Series. 4, n:15, 1985.

HARTOG, Françoise. A História de Homero a Santo Agostinho. Belo Horizonte: Ed.

UFMG, 2001.

_________________. El espejo de Heródoto: ensayo sobre la representación del otro.

México: Fondo de Cultura Económica, 1980.

HEMPEL, Carl G. “Explicação e leis”. In: GARDINER, Patrick (org.). Teorias da História.

Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1984.

HIRATA, Elaine F. “Quem foi Homero?”. In: www.mae.usp.br/labeca. Março, 2009

JAEGER, Werner W. Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes,

1994.

JONES, Peter V. (org.). O Mundo de Atenas: uma introdução à cultura clássica ateniense.

São Paulo: Martins Fontes, 1997.

Page 196: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

195

JULIEN, Alfredo. Ágora, Demos e Laos: os modos de figuração do povo na assembléia

homérica – contradições, ambigüidades e indefinições. São Paulo: Universidade de São

Paulo; Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia; Departamento de História, 2006. (Tese

de Doutorado)

KAGAN, Donald. A Guerra do Peloponeso: novas perspectivas sobre o mais trágico

confronto da Grécia antiga. Rio de Janeiro: Record, 2003.

KERÉNYI, Carl. Dioniso: imagem arquetípica da vida indestrutível. São Paulo: Odysseus,

2002.

_____________. Os Deuses Gregos. São Paulo: Cultrix, 2002.

KNAUSS, Paulo. “O desafio de fazer História com imagens: arte e cultura visual”.

Artcultura: Revista do Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia.

Uberlândia: Ed. UFU. 8, n:12. p. 97-115. Uberlândia: Editora UFU, 2006.

KOSSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos.

Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, 2006.

LAPLANTINE, François e TRINDADE, Liana. O que é Imaginário. São Paulo: Brasiliense,

2003.

LEFEBVRE, Henri. La Presencia y La Ausência: contribución a la teoria de las

representaciones. México: Fondo de Cultura Econômica, 2006.

LESKY, Albin. A Tragédia Grega. São Paulo: Perspectiva, 1990.

___________. História da Literatura Grega. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995.

LEVI, Mario Attilio. Péricles: um homem, um regime, uma cultura. Brasília: Ed. UnB, 1991.

LIMA, Luiz Costa. A Aguarrás do Tempo: estudos sobre a narrativa. Rio de Janeiro: Rocco,

1989.

_______________. História. Ficção. Literatura. São Paulo: Companhia das Letras. 2006.

LISPECTOR, Clarice. A Hora da Estrela. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995.

LISSARRAGUE, François. L’autre Guerrier: archers, peltastes, cavaliers dans l’imagerie

attique. Paris: La Découverte, 1990.

LOREAUX, Nicole. A Tragédia de Atenas: A política entre as trevas e a utopia. São Paulo:

Loyola, 2009.

________________; CASSIN, Bárbara e PESCHANSKI, Catherine. Gregos, bárbaros e

estrangeiros. Rio de Janeiro: Trinta e Quatro, 1993.

________________. Invenção de Atenas. Rio de Janeiro: Trinta e Quatro, 1994.

________________. Las Experiências de Tiresias: lo femenino y el hombre griego. Buenos

Page 197: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

196

Aires: Biblos, 2003.

MACEDO, José Marcos Mariani de. A Palavra Ofertada: uma análise retórica e formal dos

hinos gregos e da tradição hínica grega e indiana. São Paulo: Universidade de São Paulo;

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas; Departamento de Letras Clássicas e

Vernáculas, 2007. (Tese de Doutorado)

MACHADO, Roberto. O Nascimento do Trágico: de Schiller a Nietzsche. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar, 2006.

MAFFRE, Jean-Jacques. O Século de Péricles: introdução à Civilização Grega. Lisboa:

Publicações Europa – América, 1993.

MALHADAS, Daisi. Tragédia Grega: o mito em cena. Cotia: Ateliê Editorial, 2003.

MARSHALL, Francisco. “A Historicidade Trágica”. Anos 90-UFRGS. Porto Alegre. 6, p.

124-154, 1996.

MARTIN, Roland. L’urbanisme dans La Grèce Antique. Paris: A. J. Picard, 1956.

McGINTY, Park. “Dionyso’s Revenge and the Validation of the Hellenic World-View”. The

Harvard Theological Review. Harvard. 71, n°: 1-2, 1978, p. 1-176.

McGLEW, James. Tyranny and Political Culture in Ancient Greece. Ithaca and London:

Cornell University Press, 1993.

MOMIGLIANO, Arnaldo. As Raízes Clássicas da Historiografia Moderna. Bauru: Ed. USC,

2004.

MOSSÉ, Claude. A Grécia Arcaica de Homero a Ésquilo (Séculos VIII – VI a.C.). Lisboa:

Setenta, 1989.

_____________. Atenas: a história de uma democracia. Brasília: Ed. UnB, 1982.

_____________. As Instituições Gregas. Lisboa: Setenta, 1985.

_____________. La Tyrannie dans la Grèce antique. Paris: Quadrige/PUF, 2004.

_____________. O Cidadão na Grécia Antiga. Lisboa: Setenta, 1993.

_____________. Péricles: o inventor da democracia. São Paulo: Estação Liberdade, 2008.

MOTA, Marcus. “A morte de Penteu: o equívoco do dionisismo catártico”. Revista

Humanidades. Brasília: Ed. UnB. n: 44, 1998, p. 1-16.

MOST, Glenn W. “Da tragédia ao trágico". In: ROSENFIELD, Kathrin Holzermayr (org.).

Filosofia & Literatura: o trágico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p. 20-36.

MYERS, Henry Alonzo. “Aristotle’s Study of Tragedy”. In: Educational Theatre Journal.

Baltimore. 1, n°: 2, 1949, 95-194.

NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da Tragédia. São Paulo: Companhia das Letras,

Page 198: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

197

1999.

OTTO, Walter Friedrich. Teofania: o espírito da religião dos Gregos antigos. São Paulo:

Odysseus, 2006.

PATLAGEAN, Evelyne. "História do Imaginário". In: LE GOFF, Jacques (org.). A História

Nova. São Paulo: Martins Fontes, 1988, p. 292-316.

PEIXOTO, Fernanda. “Vernant, Jean-Pierre. Entre mito e política.” Revista de Antropologia.

São Paulo: Ed. USP, 45, n: 1, p. 245-249, 2002.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. 2ª edição. Belo Horizonte:

Autêntica, 2005.

PIRES, Francisco Murari. "A morte do herói (co)". In: ROSENFIELD, Kathrin Holzermayr

(org.). Filosofia & Literatura: o trágico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.

PLÁCIDO, Domingo. Introducción al Mundo Antiguo: problemas teóricos y metodológicos.

Madrid: Síntesis, 1995, 102-114.

POMIAN, Krzystof. “História Cultural, História dos Semióforos”. In: RIOUX, Jean – Pierre

e SIRINELLI, Jean – François. Para uma História Cultural. Lisboa: Editorial Estampa,

1998, p. 71-95.

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Ed. Unicamp, 2007.

ROBINSON JR., C. A. “Greek Tyranny”. The American History Review. Washington. 42,

n°: 1, 1936, p. 1-201.

ROMILLY, Jacqueline de. A Tragédia Grega. Brasília: Ed. UnB, 1998.

SANTOS, Dominique Vieira Coelho dos. As representações da cristianização da Irlanda

Celta: uma análise das cartas de São Patrício (V séc. d.c.). Goiânia: Universidade Federal

de Goiás; Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia; Departamento de História, 2008.

(Dissertação de Mestrado)

SANTOS, Nilton. “Os Gregos inventaram tudo. Entrevista concedida por Jean-Pierre

Vernant.” Primeira Versão, ano I, n° 43 - Setembro. Porto Velho: Ed. UNIR, n: 43, p. 2-9,

2001

SARIAN, Haiganuch. “Arqueologia da imagem: aspectos teóricos e metodológicos na

iconografia de Héstia”. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia – Universidade de São

Paulo: Anais da I Reunião Internacional de Teoria Arqueológica na América do Sul. São

Paulo: Ed. USP, 1999, p. 69-85.

_________________. Arqueologia da Imagem: expressões figuradas do mito e da religião

na antigüidade clássica. São Paulo; Universidade de São Paulo; Museu de Arqueologia e

Page 199: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

198

Etnologia; Departamento de Arqueologia Clássica, 2005. (Trabalho de Livre – Docência)

_________________. “Posições Metodológicas no Estudo da Iconografia Grega”. Ciência e

Cultura. Belo Horizonte. 37, n°. 7, 1985, p. 83.

SAXONHOUSE, Arlene W. “The Tyranny of Reason in the World of the Polis”. The

American Political Science Review. Washington. 82, n°: 4, 1988, p. 1063-1449.

SENNET, Richard. O Declínio do Homem Público: as tiranias da intimidade. São Paulo:

Companhia das Letras, 1998.

SILVA, Maria de Fátima Sousa. “Bacantes de Eurípides: símbolos em confronto”. Synthesis.

La Plata .14, p.11-30, 2007.

SILVA, Luiz Sérgio Duarte da. “Narrativa e Filosofia da História: o debate do pós-moderno

II”. In: SERPA, Elio Cantalicio e MENEZES, Marcos Antonio. Escritas da História:

narrativa, arte e nação. Uberlânia: Ed. UFU, 2007, p. 81-93.

SIQUEIRA, Cíntia de Moura. “Poética aristotélica: mímesis e verossimilhança em

Eurípides”. Scripta Clássica. Belo Horizonte: Ed. UFMG, p. 23-29, 2008.

SNODGRASS, Anthony. Archaeology and the Emergence of Greece. Edinburgh: Edinburgh

University Press, 2006.

____________________. Homero e os artistas: texto e pintura na arte grega antiga. São

Paulo: Odysseus, 2004.

SOUSA, Luana Neres de. A pederastia em Atenas no período clássico: relendo as obras de

Platão e Aristófanes. Goiânia: Universidade Federal de Goiás; Faculdade de Ciências

Humanas e Filosofia; Departamento de História, 2008. (Dissertação de Mestrado)

SOUZA, Eudoro de. Dioniso em Creta e Outros Ensaios: estudos de mitologia e filosofia da

Grécia antiga. São Paulo: Duas Cidades, 1973.

SKULSKY, Harold. “Aristotle’s Poetics Revisited”. Journal of the History of Ideas.

Pennsylvania. 19, n°: 2, 1958, p. 147-300.

TARNAS, Richard. A Epopéia do Pensamento Ocidental: para compreender as idéias que

moldaram nossa visão de mundo. Rio de Janeiro: Bertrand, 2002.

TEIXEIRA, Alexandre Henrique Carvalho. Mitiáticos e Coexistentes: mídia, mito e

midiações. Bauru: Universidade Estadual Paulista “Júlio Mesquita Filho”; Faculdade de

Arquitetura, Artes e Comunicação; Departamento de Comunicação, 2005. (Dissertação de

Mestrado).

THEML, Neyde. Público e Privado na Grécia do VIII° ao IV° séc. a.C.: o modelo ateniense.

Rio de Janeiro: Sete Letras, 1998.

Page 200: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

199

TOBIA, Ana María Gonzáles. "La escena trágica griega: parámetro espacial de frontera y

ética." In: CERQUEIRA, Fábio Vergara et. all. (orgs.). Fronterias e Etnicidades no Mundo

Antigo. Anais do V Congresso da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos. Canoas:

Editora ULBRA, 2005.

TRABULSI, José Antonio Dabdab. Dionisimo, Poder e Sociedade na Grécia até o fim da

época clássica. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2005.

_____________________________. Ensaio sobre a mobilização política na Grécia Antiga.

Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001.

____________________________. Participation directe et démocratie grecque: Une

histoire exemplaire?. Besançon: Press Universitaires de Franche-Comté, 2006.

VELLACOTT, Philip. “Ironic Drama: a study of Euripide’s method and meaning”. The

Modern Language Journal. Oxford. 59, n°: 8, 1975, p. 407-480.

VENERI, Alina. “Dionysos”. Lexicon Iconographicum Mythologiae Classicae (LIMC).

Atherion – Eros. Artenmis Verlag. 3, p. 1981.

VERNANT, Jean-Pierre. As Origens do Pensamento Grego. 5ª edição. São Paulo: Difel

Editorial, 1986.

___________________. “Ce que les grecs nous ont legue.” L´histoire. Paris, nº. 126, 1989.

___________________. Figuras, Ídolos, Máscaras. Lisboa: Teorema, 1991.

___________________. Mito e pensamento entre os gregos: estudos de psicologia histórica.

Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.

___________________. Mito y religión en la Grecia antigua. Barcelona: Ariel, 2001.

___________________. O Universo, os deuses, os homens. São Paulo: Companhia das

Letras, 2000.

___________________; VIDAL-NAQUET, Pierre. Mito e Tragédia na Grécia Antiga. São

Paulo: Duas Cidades, 1977.

VIDAL-NAQUET, Pierre. O Mundo de Homero. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

VIEIRA, Trajano. “Introdução”. In: Euripides: As Bacantes/Bakxai. Trad. Trajano Vieira.

São Paulo: Editora Perspectiva, 2003, p.

VLASSOPOULOS, Kostas. Unthinking the Greek Polis: ancient Greek history beyond

eurocentrism. Cambridge/New York: Cambridge University Press, 2007.

WATERS, K. H. “Herodotos the Historian: his problems, methods and originality”. The

American Historical Review. Washington. 91, n°: 2, 1986, p. 245-518.

WEINRICH, Harald. Lete: arte e crítica do esquecimento. Rio de Janeiro: Civilização

Page 201: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

200

Brasileira, 2001.

WEFFORT, Luís Fernando. Poesia, retórica e educação na Ifigênia em Áulis de Eurípides.

São Paulo: Universidade de São Paulo; Faculdade de Educação; Departamento de Educação,

2008. (Dissertação de Mestrado)

WHITLEY, J. The Archaeology of ancient Greece. Cambridge: Cambridge University Press,

2001.

YATES, Frances A. A Arte da Memória. Campinas: Ed. Unicamp, 2007.

ZAIDMAN, Louise Bruit e PANTEL, Pauline Schmitt. La religión Griega en la polis de la

época clásica. Madrid: Akal, 2002.

D) SITES

http://greciantiga.org/img/i/i281.jpg, acessado em 14/01/2010.

http://greciantiga.org/img/i/i824.jpg, acessado em 15/11/2010

http://greek.hp.vilabol.uol.com.br/teatro.htm, acessado em 23/08/2008

http://users.thess.sch.gr/ipap/Ellinikos%20Politismos/AR/im.ar.ag/Sofilos.jpg, acessado em

14/01/2010.

http://www.paideuma.net/dionysos.htm, acessado em 19/09/2008

http://www.charleskiefer.com.br/oficina/textos/Poetica.PDF, acessado em 17/10/2008

http://www.cfh.ufsc.br/~wfil/poetica.pdf, acessado em 17/10/2008

Page 202: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

Livros Grátis( http://www.livrosgratis.com.br )

Milhares de Livros para Download: Baixar livros de AdministraçãoBaixar livros de AgronomiaBaixar livros de ArquiteturaBaixar livros de ArtesBaixar livros de AstronomiaBaixar livros de Biologia GeralBaixar livros de Ciência da ComputaçãoBaixar livros de Ciência da InformaçãoBaixar livros de Ciência PolíticaBaixar livros de Ciências da SaúdeBaixar livros de ComunicaçãoBaixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNEBaixar livros de Defesa civilBaixar livros de DireitoBaixar livros de Direitos humanosBaixar livros de EconomiaBaixar livros de Economia DomésticaBaixar livros de EducaçãoBaixar livros de Educação - TrânsitoBaixar livros de Educação FísicaBaixar livros de Engenharia AeroespacialBaixar livros de FarmáciaBaixar livros de FilosofiaBaixar livros de FísicaBaixar livros de GeociênciasBaixar livros de GeografiaBaixar livros de HistóriaBaixar livros de Línguas

Page 203: DE SELVAGEM A EFEMINADO: AS …livros01.livrosgratis.com.br/cp148002.pdf · universidade federal de goiÁs faculdade de histÓria programa de pÓs-graduaÇÃo em histÓria mestrado

Baixar livros de LiteraturaBaixar livros de Literatura de CordelBaixar livros de Literatura InfantilBaixar livros de MatemáticaBaixar livros de MedicinaBaixar livros de Medicina VeterináriaBaixar livros de Meio AmbienteBaixar livros de MeteorologiaBaixar Monografias e TCCBaixar livros MultidisciplinarBaixar livros de MúsicaBaixar livros de PsicologiaBaixar livros de QuímicaBaixar livros de Saúde ColetivaBaixar livros de Serviço SocialBaixar livros de SociologiaBaixar livros de TeologiaBaixar livros de TrabalhoBaixar livros de Turismo