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1 CARTAS A UM AMIGO: a correspondência do Padre Hélder Pessoa Câmara a Alceu Amoroso Lima (1929-1937) Márcio André Martins de Moraes 1 À guisa de Introdução: cartas a um amigo Em uma entrevista em 1970 ao Estado de São Paulo, o então Arcebispo de Olinda e Recife, Dom Hélder Pessoa Câmara, foi interpelado sobre quais pessoas teriam maior influência para ele no campo intelectual e espiritual. Em resposta, o referido sacerdote destacou: Teilhard de Chardin, Louis-Joseph Lebret e Alceu Amoroso Lima. Em suas correspondências, especificamente nas cartas classificadas como Circulares, principalmente na década de 1960, em vários momentos esses intelectuais são citados por Hélder Câmara. Mesmo compreendendo a importância desses três nomes para a formação intelectual e espiritual de um dos principais clérigos brasileiros no século XX, estabelecemos como meta discutir apenas a correspondência do então seminarista e depois padre Hélder Pessoa Câmara para o intelectual Alceu Amoroso Lima, conhecido também como Tristão de Athaide, isso entre os anos de 1929 a 1937. Nesse período, o então Pe. Helder ocupou postos de lideranças junto a sindicatos de trabalhadores locais, a Legião Cearense do Trabalho (LCT), a Juventude Operária Católico (JOC), a Liga Eleitora Católica (LEC) e a Ação Integralista Brasileira (AIB). Nesse momento é importante considerar o alerta de Pierre Bourdieu (2006), ao tratar de uma história de vida, devemos ter cuidado com a “ilusão biográfica”, que muitas vezes o uso do nome próprio do sujeito pesquisado, as relações pessoais e profissionais que manteve durante a vida, podem dar uma falsa impressão de continuidade e linearidade a narrativa biográfica ou autobiográfica de uma determinada personagem. Desse modo, buscaremos discutir a produção da escrita pessoal, intelectual e a atuação político-doutrinária do padre Helder Câmara a partir de um esforço metodológico de compreender o momento de sua produção, os espaços de circulações, os meios de divulgação e a recepção de seus interlocutores e opositores. Doutorando em História Social pela Universidade de São Paulo USP; Pesquisa financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CAPES.

de uma história de vida, devemos ter cuidado com a “ilusão ... · Acostumei-me, repassando a filosofia e o dogma com companheiros mais fracos, acostumei-me a baixar, a traduzir

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CARTAS A UM AMIGO: a correspondência do Padre Hélder Pessoa Câmara a Alceu

Amoroso Lima (1929-1937)

Márcio André Martins de Moraes

1 – À guisa de Introdução: cartas a um amigo

Em uma entrevista em 1970 ao Estado de São Paulo, o então Arcebispo de Olinda e

Recife, Dom Hélder Pessoa Câmara, foi interpelado sobre quais pessoas teriam maior

influência para ele no campo intelectual e espiritual. Em resposta, o referido sacerdote

destacou: Teilhard de Chardin, Louis-Joseph Lebret e Alceu Amoroso Lima. Em suas

correspondências, especificamente nas cartas classificadas como Circulares, principalmente

na década de 1960, em vários momentos esses intelectuais são citados por Hélder Câmara.

Mesmo compreendendo a importância desses três nomes para a formação intelectual e

espiritual de um dos principais clérigos brasileiros no século XX, estabelecemos como meta

discutir apenas a correspondência do então seminarista e depois padre Hélder Pessoa Câmara

para o intelectual Alceu Amoroso Lima, conhecido também como Tristão de Athaide, isso

entre os anos de 1929 a 1937. Nesse período, o então Pe. Helder ocupou postos de lideranças

junto a sindicatos de trabalhadores locais, a Legião Cearense do Trabalho (LCT), a Juventude

Operária Católico (JOC), a Liga Eleitora Católica (LEC) e a Ação Integralista Brasileira

(AIB).

Nesse momento é importante considerar o alerta de Pierre Bourdieu (2006), ao tratar

de uma história de vida, devemos ter cuidado com a “ilusão biográfica”, que muitas vezes o

uso do nome próprio do sujeito pesquisado, as relações pessoais e profissionais que manteve

durante a vida, podem dar uma falsa impressão de continuidade e linearidade a narrativa

biográfica ou autobiográfica de uma determinada personagem. Desse modo, buscaremos

discutir a produção da escrita pessoal, intelectual e a atuação político-doutrinária do padre

Helder Câmara a partir de um esforço metodológico de compreender o momento de sua

produção, os espaços de circulações, os meios de divulgação e a recepção de seus

interlocutores e opositores.

Doutorando em História Social pela Universidade de São Paulo – USP; Pesquisa financiada pela Coordenação

de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES.

2

Em uma reflexão sobre a escrita de si e do texto do Boudieu (2006), citado

anteriormente, Ângela de Castro Gomes (2004), na coletânea Escrita de si, escrita da

História, destacou que

A “ilusão biográfica”, vale dizer, a ilusão de linearidade e coerência do indivíduo,

expressa por seu nome e por uma lógica retrospectiva de fabricação de sua vida,

confrontando-se e convivendo com a fragmentação e a incompletude de suas

experiências, pode ser entendida como uma operação intrínseca à tensão do

individualismo moderno. Um indivíduo simultaneamente uno e múltiplo, e que, por

sua fragmentação, experimenta temporalidades diversas em sentido diacrônico e

sincrônico. (GOMES, 2004: 13)

A correspondência pessoal entre Helder Câmara e Alceu Amoroso corresponde aos

anos de 1929 a 1980, pelo menos são essas que estão à disposição no acervo do Centro Alceu

Amoroso Lima pela Liberdade (CAALL).1 No momento, as cartas recebidas por Helder

encontram-se no processo de catalogação e por esse motivo inacessível no Centro de

Documentação Helder Câmara do Instituto Dom Helder Câmara (CEDOHC IDHeC). No

caso, trata-se de um corpus documental formado por 72 cartas e telegramas,2 sobre as quais

dedicaremos maior atenção sobre as que correspondem aos anos de 1929 a 1937, formando

um conjunto de 16 cartas.

O processo de reflexão e discussão sobre a referida proposta se deu paralelamente com

a análise de periódicos que receberam contribuições do padre Hélder Câmara ou que

relataram suas atividades junto à classe trabalhadora. No caso, selecionamos: A Razão (1929-

1938), O Combate (1935), e o Legionario (1933-1934), que circulavam no Ceará; o Diário de

Pernambuco (1934-1935) e os periódicos cariocas A Ordem (1930-1937), A Cruz (1933-

1937) e A Offensiva (1936), que era o jornal oficial da Ação Integralista Brasileira (AIB).3

Dessa forma, partindo da análise das fontes citadas anteriormente, juntamente com

documentos oficiais da Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR) como as Encíclicas papais

1 O site Alceu Amoroso Lima pela Liberdade (CAALL) disponibiliza online as correspondências passivas e

ativas do referido intelectual, estando entre elas às cartas trocadas com Helder Pessoa Câmara entre os anos de

1929 a 1980. (Cf.: http://www.alceuamorosolima.com.br/ ). Estas mesmas cartas foram publicadas pela Editora

Reflexão sob a organização de Maria de Fátima Moraes Agon e colaboração de outros estudiosos do tema. (Cf.:

AGON, 2016) 2 Na nota técnica do livro organizado por Agon (2016), encontra-se a seguinte descrição: “Ela é composta de 72

documentos, sendo 51 de Dom Helder e duas cópias; 11 de Dr. Alceu e quatro cópias; e quatro de terceiros.”

(Ibid.:21) 3 Destacamos que escolhemos atualizar a escrita das fontes documentais apresentadas no decorrer do texto, mas

sem alterar o conteúdo e forma dos textos.

3

Rerum Novarum (1891) e Quadragesimo Anno (1931), buscaremos discutir os sentidos,

mecanismos e condições em que o padre Hélder Câmara narrou a Alceu Amoroso suas

atividades no combate as supostas ameaças comunistas sobre os trabalhadores brasileiros.

1.1. “Sou padre, querido amigo! que felicidade!”: as primeiras atividades e

responsabilidade do padre Hélder Câmara

Em 16 de agosto de 1930, ainda aos 22 anos de idade, o cearense Hélder Pessoa

Câmara recebeu por meio da Vita et Moribus uma permissão do Vaticano para ser ordenado

padre, pois ainda não tinha a idade mínima. Tornava-se assim sacerdote da Igreja Católica

Apostólica Romana (Cf.: PILETTE, 2008, 85-86). Sob a tutela da Arquidiocese de Fortaleza,

administrada pelo Dom Manoel da Silva Gomes, o jovem padre diferente dos seus outros

colegas de turma, ficou na capital do Ceará para desenvolver trabalhos no campo social e

político.

O Ten. Severino Sombra, durante o ano de 1929, apresentou o então seminarista

Hélder Câmara por meio de cartas com um dos principais nomes entre os intelectuais

católicos brasileiros4 na época, no caso, Alceu Amoroso Lima, que também usava o

pseudônimo de Tristão de Ataíde, – sucessor de Jackson Figueiredo nos órgãos citados

anteriormente e um dos homens de confiança do Cardeal Dom Sebastião Leme – e era líder

do Centro Dom Vital e da revista A Ordem. Em uma das primeiras cartas, o na época

seminarista Hélder, comentou:

L[ouvado] J[esus] C[risto]

3ª carta

1929

Meu prezado e ilustre amigo

Senhor. Tristão de Athayde

Apresso-me em escrever-lhe para vencer um mau pensamento, ou antes um mau

desejo em relação ao senhor. Não pense que eu estou com pedantismo senhor

Tristão – pensei em esconder-me, em fugir do senhor, ao ver o último número de A

Ordem.

4 Consideramos intelectuais católicos os homens que dedicaram parte de suas vidas a reflexão e defesa dos

preceitos católicos. No caso específico deste momento histórico a qual analisamos, parte considerável desses

intelectuais católicos acabaram defendendo preceitos mais conservadores e, muitas vezes em nome da defesa da

fé, alinharam-se a grupos de extra-direita, como no caso da Ação Integralista Brasileira. Sobre os intelectuais

católicos ver: MOURA, 2015

4

Vi tanta erudição no seu artigo e nos seus companheiros, que estou acanhando de

mim mesmo, do meu atraso, de minha falta de cultura. Devia ir estudar três vezes

mais para depois aparecer. Foi um mau pensamento. E para vencê-lo, venho atirar-

me em seus braços com o abandono duma criança. Eu não sei nada, senhor

Tristão?

Em relação ao tomismo, que eu julgava ser o meu forte, vejo que apenas tenho uma

basezinha do próprio Stº. Thomaz. Não sei nada de todas estas escolas neokantista a

que aludiram o senhor e o senhor Padre Leonel (É verdade que isto não é tomismo

– mas é um movimento importante que se aproxima de nós). Ouvi falar pela

primeira vez agora no livro di senhor [Inbyra]. Nem sabia da existência de (não sei

mais do nome – entreguei a revista ao Sombra [inelegível], não é?)

– E mesmo sem chegar até ao senhor e ao senhor Padre Leonel, que erudição a dos

Senhores. L. Delgado e Nelson Romero!... Mas não quero, <não quero>5 fugir dos

senhores porque sou atrasado. E peço que vocês não me desprezem também. Vou

redobrar de esforços. Estudar duas vezes mais. É verdade que eu não conto com o

inglês e o alemão. Mas enfim... Tenho pena do senhor não me dar uma palavrinha

de direção. Também avalio as suas ocupações! Mas veja, por bondade! Veja, se sem

possuir o movimento moderno, posso continuar com a minha luta, com o meu sonho

em filosofia – <com> o meu “Dr. Farias Brito a Maritain”. Creio que tenho uma

qualidade talvez aproveitável. Acostumei-me, repassando a filosofia e o dogma com

companheiros mais fracos, acostumei-me a baixar, a traduzir os assuntos difíceis.

De outra parte, como o senhor sabe, há muito venho estudando F. Brito. E estou

convencido de que será um bom meio de introduzir a escolástica a partir do nosso

Farias. (Carta de Helder Câmara a Alceu Amoroso Lima, 1929. Apud ARGON,

2016, 63-65)

Além da admiração aos nomes daqueles que contribuíam com a revista A Ordem, o

então jovem seminarista já indicava uma tendência para os estudos e uma necessidade de

reconhecimento por parte do interlocutor leigo, que no decorrer dos anos 1930 foi cada vez

mais assumindo, na escrita do padre Hélder, o papel de um diretor espiritual e um líder

político. Infelizmente, por não ter acesso às respostas por meio das cartas escritas por Alceu

Amoroso, não temos como analisar a sua recepção a tais referências. Mas, supomos que pela

recorrência de cartas no decorrer da década de 1930, que o mesmo não repreendia o sacerdote

em questão por apresentar o nome do leigo carioca como chefe dos movimentos políticos no

Ceará.

Sobre a relação pessoal dos tenentes Severino Sombra e Jeová Mota, o recém

ordenado Hélder escreveu a Alceu o seguinte sobre a sua primeira missa: “Sou padre, querido

amigo! que felicidade! Como o homem não se aniquila recebendo o sacerdócio! Quantas

sensações fortíssimas para o coração sensível do seu amiguinho, que chora como uma criança

5 Seguimos a estratégia do livro organizado por Argon (2016), em que: “As entrelinhas e as notas marginais

foram inseridas no texto em seu devido lugar, entre barras oblíquas opostas <...>.” (ARGON, 2016, 22)

5

de emoção” (Carta de Helder Câmara a Alceu Amoroso Lima, 1931. Apud ARGON, 2016,

90). Posteriormente escreveu na mesma carta:

E a minha 1ª missa ajudada pelo Sombra e o Jehovah (2 tenetes do nosso exercito!).

Tinha oferecido ao Bom Deus o sacrifício de ordenar-se longe dos meus tenentes.

Espalharam-se tanto! O Sombra para o Passo Fundo... Revolução... Balburdia...

Rio... Bahia... Ultimamente Piauí... e Jesus, carinhosamente, os juntou nas vésperas

do dia 15, contentando-se com a oferta do senhor. Isaac. Ah! nossa comoção ao

alternar com eles o salmo [ilegível].

O meu 1º Gloria in excelsis! Minha consagração! E o beija-mão soleníssimo, no

qual desfaleci, precisando que os meus tenentes sustentassem os meus braços, numa

posição que eu queria ter fotografado para mandar para o Senhor!

E o gosto de celebrar todos os dias! Muita comoção (quantas vezes já falei em

comoção?) ao fazer meu 1º batismo! E hoje meu 1º casamento, muitas primeiras

Confissões!...

Perdoe-me, Dr. Tristão, tantos pormenores. Acostumei-me a derramar no seu

coração e no do Sombra todos os grandes sentidos de muita alma. Seu movimento é

vitalista de verdade. Nele quem é chefe, pesa realmente na vida de todos os

membros de modo que não se concebe a menor alegria ou tristeza em qualquer

deles, sem repercussão imediata na inteligência e no coração de Deus, sem uma

santa comunhão dos santos entre todos os do D. Vital.

Receba em 1º lugar e acima de todos os extravasamentos das piedosas comoções do

meu sacerdócio. E em seguida por saudade, transmita aos nossos companheiros

meu reconhecimento e muitas emoções. (Ibid, 91-93)

Enquanto sacerdote e ativista político, ele ocupou um lugar de liderança junto a Legião

Cearense do Trabalho (LCT), movimento criado e coordenado pelos ten. Severino Sombra e,

posteriormente, pelo ten. Jeová Mota. Nesse mesmo cenário político e religioso, tornou-se

também o chefe da Juventude Operária Católica (JOC), mestre de campo da Ação Integralista

Brasileira (AIB) e chefe da Liga Eleitoral Católica (LEC), como veremos a partir deste

momento.

2 – Combatendo a ameaça comunista com o padre no chão da fábrica: a sindicalização aos

moldes católicos da LCT, JOC, AIB e LEC

Entre o final do século XIX e o início do XX, a Igreja apresentou as encíclicas da

Rerum Novarum (1891) de Leão XIII e a Quadragesimo Anno (1931) de Pio XI, dando um

norte aos religiosos e leigos frente à influência dos grupos de esquerda, como socialismo ou

anarquismo, ou num campo oposto, sob o estabelecimento de um liberalismo econômico no

mundo ocidental. Esses documentos da ICAR ocuparam da mesma forma forte influência

sobre os escritos e discursos do então padre Helder Câmara, que os utilizaram como base

6

legitimadora de seus argumentos na construção discursiva de um cenário político e social

marcado por uma suposta ameaça de forças exóticas e perniciosas, no caso, o comunismo e

pensamentos congêneres (Cf.: BAUMAN, 1999).

Nas atividades sacerdotais e nas reuniões sindicais, em várias cidades do Ceará,

quando atuava como membro do clero católico, Helder Câmara acompanhava e participava do

processo de criação do que seria a Legião Cearense do Trabalho, como se percebe no trecho

de sua carta a Alceu Amoroso Lima:

Meu querido Dr. Tristão

Graças a Deus, o Sombra, ontem, não teve tempo de lhe mandar, por avião, os

jornais da terra e eu posso dar-lhe, em primeira, mais notícias sobre o nosso

querido amigo. Avalie quantas conferências ele fez em 36 horas?... 5! Nem mais

nem menos... Cinco conferencias. O senhor verá pelos jornais. Ele falou, sábado à

noite, pelo rádio, para a Praça da Ferreira, que se encheu para o ouvir (Agora

todos os sábado temos o microfone da terra à nossa disposição). Falava sobre a

Constituinte e a Realidade Brasileira como o senhor haveria de falar. Firmeza,

espírito católico, visão clara e muito ardor. Palavras sadias necessárias ao povo

que só estava ouvindo chocarrices de Leonardo Motta e declamadores assim. Foi a

primeira falação. Domingo, durante o dia, fez 3 conferência em associações de

classes, propondo abertamente o maior dos nossos sonhos de agora: a Legião

Cearense do Trabalho, para uso interno, os terríveis “Blusas mesclas”.

[...]

Recebemos suas cartinhas – incentivos para nós! Em toda parte, todos ficam

sabendo que o senhor é nosso chefe. Arranjamos um jeitinho de falar no Jackson e

no “Tristão de Athayde.” (Carta de Helder Câmara a Alceu Amoroso Lima, 1931.

Apud ARGON, 2016, 78-80)

Em outra correspondência, agora um telegrafo também de 1931, Helder noticiou ao

seu famoso interlocutor:6

Em plena atividade, Dr. Tristão chefe do chefe jocista, considere para todos os

efeitos CHEFE da J.O.C do Ceará!

Um grande abraço

de seu irmão em N.S.

Pe. Helder (Carta de Helder Câmara a Alceu Amoroso Lima, 1931)

Nessas duas citações encontramos alguns pontos que precisam ser retomados em nossa

análise. No primeiro documento, observa-se a admiração pelo trabalho do Ten. Severino

Sombra, que despontava como um líder do que já foi apresentado antecipadamente como a

6 Esse telégrafo não compõe o livro: Catálogo da Correspondência: entre Alceu Amoroso Lima e Dom Hélder

Câmara (1929-1980). (Cf. ARGON, 2016). No entanto, a mesma pode ser encontrada no site da CAALL. Cf.:

HTTP://www.alceuamorosolima.com.br/

7

Legião Cearense do Trabalho (LCT). Além disso, liderança do Ten. Sombra foi discutida por

Hélder em outras cartas e em artigos de periódicos cearenses dentre de um cenário de

incertezas de uma nova Constituinte e de qual seria o lugar da Igreja Católica dentro dessa

nova realidade política do Brasil, isso depois do golpe de 1930 que colocou Getúlio Vargas na

presidência do país.7 Na biografia Dom Hélder Câmara, o profeta da paz, escrita por Nelson

Piletti e Walter Praxedes, comenta que já em sua criação, a LCT conseguiu 9 mil adeptos e

esse número cresceu em alguns meses para 15 membros. Isso em uma cidade como Fortaleza

com aproximadamente, em 1930, com 117.452 habitantes. (PILETTI, 2008, 87-88).

Somando-se a isso, observam-se tanto no trecho da carta anterior, como na mensagem

enviada pelos telégrafos, ambas para Alceu Amoroso Lima, que este intelectual carioca é

correntemente apresentado pelo padre Helder como o chefe dessas mobilizações. Essa

estratégia do referido sacerdote e de seus correligionários, poderia tanto ter um lado de

reconhecimento do trabalho e importância do líder do Centro Dom Vital e da revista A

Ordem, como também o desejo de se criar um efeito de legitimidade e amplitude de que a

LCT e da JOC iriam além do Estado do Ceará nas empreitadas político-religiosas. No entanto,

lembramos ao leitor, que por não termos acesso as respostas de Alceu Amoroso Lima ao

então padre Hélder, não sabemos como ele recebia essas informações de esta sendo

apresentado como líder dessas empreitadas.

As expectativas em torno da LCT eram grandes, principalmente por causa de sua

articulação com a JOC, como já citamos. Porém, o exílio do Ten. Severino Sombra em 1932

para Portugal – considerado subversivo pelo governo Vargas que começava a enfrentar a

Revolução Constitucionalista em São Paulo – o padre Helder juntamente com Ubirajara Índio

do Ceará e o então capitão Jeová Mota, assumiram um triunvirato para coordenar a Legião.

Nesse período, o Helder Câmara e outros legionários, como o Mota, entraram na Ação

Integralista Brasileira (AIB) e procuraram também fundir os dois movimentos em uma mesma

perspectiva.8

7 Mesmo não sendo o objetivo principal, em nossa dissertação indicamos os impactos do golpe de 1930 no

Nordeste. Cf.: MORAES, 2012. 8 Importante ressaltar que o integralismo foi criado e liderado pelo intelectual paulista Plínio Salgado. Com o

lançamento do Manifesto de Outubro de 1932, no teatro Municipal de São Paulo, Salgado iniciou as atividades

da organização política que se tornaria a primeiro partido político de amplitude nacional no Brasil. A AIB

defensor de um forte nacionalismo, ao estilo de movimentos europeus como o salazarismo português e fascismo

italiano, e do pensamento cristão, principalmente de matriz católica. Os camisas-verdes – como eram chamados

8

A participação no integralismo levou o padre Helder inicialmente a um

reconhecimento em outros Estados do Nordeste e posteriormente como um dos principais

nomes do quadro dos camisas-verdes. Ao mesmo tempo, em que as forças políticas se uniam

no Ceará sob a influência do referido religioso, no caso, a JOC, LCT e agora a AIB, o tenente

Sombra colocava-se como opositor e não reconhecia a liderança de Plínio Salgado como um

chefe nacional incontestável, como estabelecia a doutrina integralista. As diferenças políticas

levaram Hélder Câmara e Severino Sombra a romperem relações e tornarem-se inimigos com

trocas de acusações que levaram a expulsão do tenente da LCT.

Em 1932, o cardeal Dom Sebastião Leme, arcebispo do Rio de Janeiro, articulação da

Liga Eleitoral Católico (LEC). Esse órgão, coordenado nacionalmente por Alceu Amoroso

Lima, tinha como escopo indicar aos eleitores católicos os candidatos que estavam dispostos a

defender os preceitos e interesses da Igreja Católica, como a inclusão do ensino de religião

como obrigatório, assistência religiosa nas forças armadas e oposição a ideia de divórcio. No

Ceará, Helder Câmara assumiu a liderança da LEC e em carta a Alceu Amoroso, escreveu:

Carta, 18.02.1933

[...]

Graças a N[osso] S[enhor] continuo numa atividade enorme, agora ainda

aumentada pela LEC que é um fato no Ceará. Falo que só o Sucupira. Está uma

beleza! Fala-se em assassinatos por parte dos comunistas. Há felicidade demais

para desgraçados como nós! Vamos iniciar uma campanha imensa: a OIC – Obra

de infiltração Católica – pela sindicalização católica das pequeninas operárias das

[ininteligível]: lavadeiras engomadeiras, domesticas... Ação anti-comunista. (Carta

de Helder Câmara a Alceu Amoroso Lima, 1931. Apud ARGON, 2016, 107)

Nesse momento, a pedido do arcebispo de Fortaleza, Dom Manoel, o padre Hélder

percorreu o Estado fazendo campanha com uma lista de candidatos escolhidos, que foram

quase que em maioria eleitos em 1935. No final das eleições, o padre Hélder Câmara foi

convidado pelo governador Francisco Menezes Pimentel, eleito com a ajuda da LEC, para

assumir o cargo de diretor do Departamento de Educação do Ceará. Mas, posteriormente,

desentendimentos com o governador Meneses Pimentel por causa de conflitos da policia

por causa da farda verde oliva dos militantes integralistas – resumiam seu doutrina no lema: Deus, Pátria e

Família. (Cf.: MORAES, 2012)

9

cearense com militantes integralistas e também por assuntos no campo da educação, levou o

padre Helder a entregar o cargo público e contribuiu com a mudança do Ceará para o Rio de

Janeiro.

2.1. Entre o serviço público, sacerdotal e político: a vida do padre Hélder Câmara no

Rio de Janeiro (1936-1937)

A personagem aqui estudada chega ao Rio de Janeiro no ano de 1936, como padre e

posteriormente chega a ser Bispo-Auxiliar da referida cidade, deixando-a apenas em 1964

para assumir a Arquidiocese de Olinda e Recife. Considerando o recorte temporal desse texto,

dedicaremos nossa análise para os dois primeiros anos, pois marcam ainda uma forte

participação e defesa de ideais ligados a extrema-direita política do país.

Além dos conflitos políticos no Ceará, que tornaram sua presença em um fator

problemático nas relações políticas do arcebispo Dom Manoel, o convite do Francisco

Campos, que tinha acabado de tomar posse da Secretaria de Educação do Distrito Federal,

para que o sacerdote cearense assumisse um cargo como assistente técnico, tendo a

oportunidade de trabalhar junto com o seu amigo Alceu Amoroso Lima. Ao mesmo tempo,

esse convite era bastante conveniente para os interesses políticos e educacionais da Igreja

católica da época, o que fez com que o Cardeal Dom Leme aceitasse e incentivasse a vinda do

padre Helder para a então capital do país.

Voltando-nos para o cerne de nossa proposta, a produção intelectual do padre Helder

Câmara, nós percebemos que diferente do que aparece em alguns trabalhos que afirmam que

ao chegar ao Rio de Janeiro em 1936 o Cardeal Dom Leme teria exigido a saída dele da AIB.

O que percebemos nas edições do jornal cearense A Razão e de periódicos cariocas dos anos

de 1936 e 1937 é uma forte atividade do padre Helder defendendo o integralismo,

participando de programas de rádios, jantares e eventos do partido com acompanhando figuras

de relevo dos camisas-verdes, como se observa a seguir:

A FAMÍLIA E O COMUNISMO – notável conferência do P. Helder Camara na Liga

de Defesa Nacional

10

Sob os auspícios da Liga de Defesa Nacional, realizou-se ontem, na Academia

Brasileira de letras a anunciada conferencia do padre Helder Câmara, intitulada

“A Família e o Comunismo”.

A sessão foi presidida pelo general Pantaleão Pessoa.Sentaram-se a mesa o cônego

Olympio de Mello, prefeito municipal; companheiro dr. Gustavo Barroso, além dos

demais diretores da Liga de Defesa Nacional.

O conferencista prendeu a atenção do auditório por mais de duas horas,

discorrendo sobre o momentoso assunto. Mostrou as raízes filosóficas da sociedade

atéia de nossos dias, que afastando-se de Deus da Pátria e da Família, nos vai

conduzindo ao abismo comunista.

Verberou a atitude do burguês, que mais cuida de suas maquinas, do que das

condições econômicas de seus proletários. A sua demonstração foi candente ao

apontar os erros da sociedade contemporânea, que matou o sentido cristão da

família, levando o homem a devassidão em que hoje vive.

Apontou como obra de destruição social, as práticas anti-concepcionistas, que além

de anti-naturais, produzem a perda do amor cristão, criando um ambiente propício

para penetração da onda revolucionária que vem das estepes.

Mostrou as relações da família com a Pátria. Protestou nesse momento conta a

recepção oficial que se pretende fazer a Emil Ludwig, um dos pregoeiros da morte

das Pátrias.

Falou também no combate que se vem fazendo contra a Ação Integralista

Brasileira, uma das lidimas defensoras da família. A assistência nesse instante

vibrou de entusiasmo.

Terminou conectando aos presentes a apoiarem a família, como uma das grandes

necessidades da Patria, principalmente agora com as ameaças comunistas.

A assistência cantou o Hino Nacional, aplaudindo em seguida o orador. (A

OFFENSIVA, 21.09.1936, 12-13)

Além de uma temática coerente com uma das principais bandeiras da AIB e da Igreja

Católica, o evento tinha em sua mesa membros de destaque do partido político de extrema-

direita supracitado. Em outro momento, um mês antes da palestra citada anteriormente, o

jornal A Razão, publicam o artigo “Um integralista... Integral” (A RAZÃO, 15.08.1936, 3-

4), em que o periódico procurou apresentar o padre cearense transitando em meio à elite

política, militar e intelectual carioca. Nesse texto, o sacerdote aproveita para apresentar-se

como integralista e defensor das ideias da AIB. No entanto, progressivamente suas atividades

políticas dentro do integralismo começaram a dar espaço ao trabalho dentro do ministério, em

1937, mesmo sem a sua permissão, segundo o próprio Hélder, a cúpula integralista colocou o

nome do referido padre como um dos membros do conselho dos 40 da AIB.

No entanto, o ano de 1937 foi marcado por um golpe político de âmbito nacional, que

recebeu o nome de Estado Novo e que deu início a uma nova fase da política, com maior

poder concentrado no executivo, liderado pelo então presidente Getúlio Vargas. Com a

criação do Estado Novo, em dezembro de 1937, todos os partidos e agremiações políticas

tiveram suas atividades encerradas, incluindo o integralismo. Nesse novo cenário, o padre

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Helder Câmara voltou-se para as atividades nas pastorais, na Secretaria de Educação e nas

aulas de Estudos Teológicos, junto com outros intelectuais ligados a revista A Ordem, no

Instituto Católico de Estudos Superiores, que posteriormente tornou-se a Pontifícia

Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ).

3 – Conclusão

Desse modo, ao analisar as correspondências do então padre Hélder Câmara a Alceu

Amoroso Lima, buscamos analisar como este leigo teve uma função importante na

legitimação das atividades políticas e sociais do referido sacerdote em movimentos como

LCT, JOC, LEC e AIB. Nesse processo, buscamos observar por meio das missivas já citadas

como se processou um fenômeno único no país, em que organizações distintas, citadas

anteriormente, de cunho políticos tiveram suas doutrinas e agendas unificadas a partir de uma

proposta de ação pautada nas Encíclicas papais Rerum Novarum (1891) e Quadragesimo

Anno (1931).

Referências

ARGON, Amoroso Lima. Catálogo da correspondência entre Alceu Amoroso Lima e Dom

Helder Câmara (1929-1980). Petrópolis: Editora Reflexão, 2016.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Ambivalência. Rio de Janeiro: Zahar, 1999

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