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Página 1 de 25 ATAS DO CONGRESSO INTERNACIONAL SABER TROPICAL EM MOÇAMBIQUE: HISTÓRIA, MEMÓRIA E CIÊNCIA IICT – JBT/Jardim Botânico Tropical. Lisboa, 24-26 outubro de 2012 __________________________________________________________________________________________________________________________ ISBN 978-989-742-006-1 ©Instituto de Investigação Científica Tropical, Lisboa, 2013 DESENHAR PARA (RE)CONHECER: O PAPEL DA ILUSTRAÇÃO CIENTÍFICA NAS MISSÕES CIENTÍFICAS DO ESPAÇO LUSÓFONO. FERNANDO JORGE CORREIA * e ANA SILVA FERNANDES ** * DBio-UA - Departamento de Biologia, Universidade de Aveiro ** CEAU-FAUP - Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto [email protected] Resumo A associação de uma referência visual a qualquer contexto de transmissão de conhecimento é uma necessidade humana para agilizar a compreensão e assimilação de um domínio até aí desconhecido. A simbiose entre a descoberta e o seu registo gráfico (codificação) constitui um fenómeno cognoscitivo e retentivo que facilita o entendimento/perceção da realidade. Das primeiras epopeias expansionistas às mais recentes expedições científicas, a representação desenhada do objeto de estudo constitui prova de existência (ver para acreditar), gera proximidade (ver para contatar) e permite a divulgação da “conquista” (territorial e científica). De fato, essas missões, para além do estudo e sistematização da bio/geodiversidade, acabavam por ser estratégicos instrumentos de reafirmação geopolítica, legitimação da supremacia/perpetuação da ocupação do além-mar. O (re)conhecimento desses novos territórios passava, numa primeira fase, pela informação iconográfica, que documentava/codificava os dados pertinentes, essencialmente geográficos— os “mapas” constituem das primeiras manifestações imagéticas do longínquo “exterior”. Aos portulanos e cartas de navegação (codificação de rotas marítimas), seguiu-se um segundo nível de informação sistémica e referencial com as cartas geográficas: ilustrações que documentam a incursão no continente. A georeferenciação e caraterização de povoados constituem o terceiro nível (indexado à cartografia militar) capaz de facilitar/consolidar a ocupação do território anexado. Do “desenho ditado” (figurações com base em relatos) até aos levantamentos sistematizados, observa-se uma aproximação gradual das ilustrações à realidade, instituindo o embrião da cultura visual científica. O sucesso desta nova forma de dar a conhecer é potenciado pelos novos processos de impressão de texto/imagem — evento que democratiza e facilita o acesso à informação credível (científica). A transdisciplinaridade da ilustração científica atravessa várias escalas (espaciais/temporais) e áreas científicas. Como defendeu Lineu, no seu Instructio peregrinatoris (1759), urgia formar competentes exploradores científicos, que soubessem relatar, mas também desenhar. A formação dos primeiros ilustradores científicos herdou assim a aspiração ao conhecimento integrado e motivou, no contexto português, o aparecimento da Casa do Risco (1780). Por então e a par com outras expedições ultramarinas, o território moçambicano serviu também de palco para incursões científicas. Da viagem philosophica coordenada pelo naturalista Manuel Galvão da Silva - tendo António Gomes como Riscador - às missões geodésicas/antropológicas/botânicas/zoológicas de meados do século XX, até à atualidade, a necessidade de documentação visual do património moçambicano deu a conhecer excelsas ilustrações científicas, como as produzidas por Alfredo da Conceição. Na atualidade, a ilustração científica mantém esse caráter comunicacional, extravasando da academia para a sociedade. Pelo seu potencial de síntese e elevada legibilidade, pela capacidade de sedução do observador, é uma ferramenta extremamente poderosa na transmissão/memória do conhecimento, bem como na sensibilização para práticas conservacionistas. No contexto da enorme herança patrimonial moçambicana, com evidentes carências e fragilidades na divulgação do conhecimento endógeno e exógeno, pode constituir um instrumento comunicacional de eleição para consolidar a construção/divulgação do conhecimento moçambicano emergente, no presente e no futuro (literacia apoiada na visualcia). Esta comunicação propõe-se percorrer o legado das expedições tendo como narrador a imagem científica desenhada, destacando inovações e contributos de notável valor, para discutir o papel desta ferramenta pedagógica na atualidade europeia e moçambicana. Palavras-chave: Ilustração científica, história da ciência, missões científicas, ocupação científica, ciência, arte, Moçambique, Alfredo da Conceição

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A associação de uma referência visual a qualquer contexto de transmissão de conhecimento é uma necessidadehumana para agilizar a compreensão e assimilação de um domínio até aí desconhecido. A simbiose entre a descobertae o seu registo gráfico (codificação) constitui um fenómeno cognoscitivo e retentivo que facilita oentendimento/perceção da realidade.Das primeiras epopeias expansionistas às mais recentes expedições científicas, a representação desenhada do objetode estudo constitui prova de existência (ver para acreditar), gera proximidade (ver para contatar) e permite adivulgação da “conquista” (territorial e científica). De fato, essas missões, para além do estudo e sistematização dabio/geodiversidade, acabavam por ser estratégicos instrumentos de reafirmação geopolítica, legitimação dasupremacia/perpetuação da ocupação do além-mar.O (re)conhecimento desses novos territórios passava, numa primeira fase, pela informação iconográfica, quedocumentava/codificava os dados pertinentes, essencialmente geográficos— os “mapas” constituem das primeirasmanifestações imagéticas do longínquo “exterior”. Aos portulanos e cartas de navegação (codificação de rotasmarítimas), seguiu-se um segundo nível de informação sistémica e referencial com as cartas geográficas: ilustraçõesque documentam a incursão no continente. A georeferenciação e caraterização de povoados constituem o terceironível (indexado à cartografia militar) capaz de facilitar/consolidar a ocupação do território anexado.Do “desenho ditado” (figurações com base em relatos) até aos levantamentos sistematizados, observa-se umaaproximação gradual das ilustrações à realidade, instituindo o embrião da cultura visual científica. O sucesso desta novaforma de dar a conhecer é potenciado pelos novos processos de impressão de texto/imagem — evento quedemocratiza e facilita o acesso à informação credível (científica).A transdisciplinaridade da ilustração científica atravessa várias escalas (espaciais/temporais) e áreas científicas. Comodefendeu Lineu, no seu Instructio peregrinatoris (1759), urgia formar competentes exploradores científicos, quesoubessem relatar, mas também desenhar. A formação dos primeiros ilustradores científicos herdou assim a aspiraçãoao conhecimento integrado e motivou, no contexto português, o aparecimento da Casa do Risco (1780). Por então e apar com outras expedições ultramarinas, o território moçambicano serviu também de palco para incursões científicas.Da viagem philosophica coordenada pelo naturalista Manuel Galvão da Silva - tendo António Gomes como Riscador - àsmissões geodésicas/antropológicas/botânicas/zoológicas de meados do século XX, até à atualidade, a necessidade dedocumentação visual do património moçambicano deu a conhecer excelsas ilustrações científicas, como as produzidaspor Alfredo da Conceição.Na atualidade, a ilustração científica mantém esse caráter comunicacional, extravasando da academia para a sociedade.Pelo seu potencial de síntese e elevada legibilidade, pela capacidade de sedução do observador, é uma ferramentaextremamente poderosa na transmissão/memória do conhecimento, bem como na sensibilização para práticasconservacionistas. No contexto da enorme herança patrimonial moçambicana, com evidentes carências e fragilidadesna divulgação do conhecimento endógeno e exógeno, pode constituir um instrumento comunicacional de eleição paraconsolidar a construção/divulgação do conhecimento moçambicano emergente, no presente e no futuro (literaciaapoiada na visualcia).Esta comunicação propõe-se percorrer o legado das expedições tendo como narrador a imagem científica desenhada,destacando inovações e contributos de notável valor, para discutir o papel desta ferramenta pedagógica na atualidadeeuropeia e moçambicana.

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    ATAS DO CONGRESSO INTERNACIONAL SABER TROPICAL EM MOAMBIQUE: HISTRIA, MEMRIA E CINCIA IICT JBT/Jardim Botnico Tropical. Lisboa, 24-26 outubro de 2012

    __________________________________________________________________________________________________________________________ ISBN 978-989-742-006-1 Instituto de Investigao Cientfica Tropical, Lisboa, 2013

    DESENHAR PARA (RE)CONHECER: O PAPEL DA ILUSTRAO CIENTFICA NAS MISSES CIENTFICAS DO ESPAO LUSFONO.

    FERNANDO JORGE CORREIA*e ANA SILVA FERNANDES** * DBio-UA - Departamento de Biologia, Universidade de Aveiro

    ** CEAU-FAUP - Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto [email protected]

    Resumo

    A associao de uma referncia visual a qualquer contexto de transmisso de conhecimento uma necessidade humana para agilizar a compreenso e assimilao de um domnio at a desconhecido. A simbiose entre a descoberta e o seu registo grfico (codificao) constitui um fenmeno cognoscitivo e retentivo que facilita o entendimento/perceo da realidade. Das primeiras epopeias expansionistas s mais recentes expedies cientficas, a representao desenhada do objeto de estudo constitui prova de existncia (ver para acreditar), gera proximidade (ver para contatar) e permite a divulgao da conquista (territorial e cientfica). De fato, essas misses, para alm do estudo e sistematizao da bio/geodiversidade, acabavam por ser estratgicos instrumentos de reafirmao geopoltica, legitimao da supremacia/perpetuao da ocupao do alm-mar. O (re)conhecimento desses novos territrios passava, numa primeira fase, pela informao iconogrfica, que documentava/codificava os dados pertinentes, essencialmente geogrficos os mapas constituem das primeiras manifestaes imagticas do longnquo exterior. Aos portulanos e cartas de navegao (codificao de rotas martimas), seguiu-se um segundo nvel de informao sistmica e referencial com as cartas geogrficas: ilustraes que documentam a incurso no continente. A georeferenciao e caraterizao de povoados constituem o terceiro nvel (indexado cartografia militar) capaz de facilitar/consolidar a ocupao do territrio anexado. Do desenho ditado (figuraes com base em relatos) at aos levantamentos sistematizados, observa-se uma aproximao gradual das ilustraes realidade, instituindo o embrio da cultura visual cientfica. O sucesso desta nova forma de dar a conhecer potenciado pelos novos processos de impresso de texto/imagem evento que democratiza e facilita o acesso informao credvel (cientfica). A transdisciplinaridade da ilustrao cientfica atravessa vrias escalas (espaciais/temporais) e reas cientficas. Como defendeu Lineu, no seu Instructio peregrinatoris (1759), urgia formar competentes exploradores cientficos, que soubessem relatar, mas tambm desenhar. A formao dos primeiros ilustradores cientficos herdou assim a aspirao ao conhecimento integrado e motivou, no contexto portugus, o aparecimento da Casa do Risco (1780). Por ento e a par com outras expedies ultramarinas, o territrio moambicano serviu tambm de palco para incurses cientficas. Da viagem philosophica coordenada pelo naturalista Manuel Galvo da Silva - tendo Antnio Gomes como Riscador - s misses geodsicas/antropolgicas/botnicas/zoolgicas de meados do sculo XX, at atualidade, a necessidade de documentao visual do patrimnio moambicano deu a conhecer excelsas ilustraes cientficas, como as produzidas por Alfredo da Conceio. Na atualidade, a ilustrao cientfica mantm esse carter comunicacional, extravasando da academia para a sociedade. Pelo seu potencial de sntese e elevada legibilidade, pela capacidade de seduo do observador, uma ferramenta extremamente poderosa na transmisso/memria do conhecimento, bem como na sensibilizao para prticas conservacionistas. No contexto da enorme herana patrimonial moambicana, com evidentes carncias e fragilidades na divulgao do conhecimento endgeno e exgeno, pode constituir um instrumento comunicacional de eleio para consolidar a construo/divulgao do conhecimento moambicano emergente, no presente e no futuro (literacia apoiada na visualcia). Esta comunicao prope-se percorrer o legado das expedies tendo como narrador a imagem cientfica desenhada, destacando inovaes e contributos de notvel valor, para discutir o papel desta ferramenta pedaggica na atualidade europeia e moambicana.

    Palavras-chave: Ilustrao cientfica, histria da cincia, misses cientficas, ocupao cientfica, cincia, arte, Moambique, Alfredo da Conceio

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    ATAS DO CONGRESSO INTERNACIONAL SABER TROPICAL EM MOAMBIQUE: HISTRIA, MEMRIA E CINCIA IICT JBT/Jardim Botnico Tropical. Lisboa, 24-26 outubro de 2012

    __________________________________________________________________________________________________________________________ ISBN 978-989-742-006-1 Instituto de Investigao Cientfica Tropical, Lisboa, 2013

    1. A ILUSTRAO CIENTFICA1

    A associao de uma referncia visual a qualquer contexto de transmisso de conhecimento constitui uma

    estratgia humana recorrente, equacionada muitos sculos atrs, para agilizar a compreenso e assimilao

    de um domnio at a desconhecido. Como refere Stephen Gould: Scholars are trained to analyze words. But

    primates are visual animals, and the key to concepts and theirs history often lies in iconography (GOULD,

    1992), pelo que o ser humano , na sua essncia, um ser visual. Na verdade, a simbiose entre o evento da

    descoberta e o seu registo grfico (codificao) constitui um fenmeno cognoscitivo e retentivo que

    operacionaliza e facilita o entendimento/percepo da realidade e do contexto sociocultural e/ou cientfico

    (conhecimento integrado), contribuindo sobremaneira para a construo do conhecimento desde os

    primrdios da histria humana. Essa codificao, por sua vez, acompanha e evolui a compasso com o

    entendimento da percepo da realidade, seja ela orgnica ou outra, emprica ou cientfica. Das primeiras

    epopeias expansionistas s mais recentes expedies cientficas, a documentao visual, atravs do

    desenho, constitui no s a primeira ferramenta de percepo de uma realidade aumentada, em diferido,

    mas tambm representa prova de existncia (ver acreditar), gera proximidade (ver entrar em contato,

    observar e conhecer) e facilita a disseminao e divulgao da descoberta, seja ela animada com pretenses

    ou propsitos de ndole territorial (geografia fsica ou politica) e/ou cientfica (universalista).

    A ilustrao cientfica constitui um domnio grfico que concilia a cincia e a arte num nico modelo de

    comunicao, no polissmico, de ndole mais prxima da metodologia cientfica que da inspirao e

    manifestao artstica - ilustrar o conhecimento com imagens pois refletir e investigar ainda mais o que j

    foi estudado (sob outro prisma), digerir o complexo e focalizar no pertinente, para aquele momento ou

    audincia a que se destina - mas nunca abandona a esfera da Cincia, evolutivamente sempre a testar-se a si

    prpria. Assim a imagem cientfica acompanha o fado do conhecimento cientfico, sendo vlida, at prova

    em contrrio. Nestes termos, a ilustrao cientfica assim um modelo de comunicao, capaz de narrar a

    complexidade da vida selvagem (biolgica), geolgica ou humana (antropolgica), atravs da imagem

    desenhada: clarificando, complementando e suplementando o discurso cientfico descritivo/discursivo (oral

    ou escrito). Como refere Kevles (Cit. por ROBIN, 1992: 19), representa um binmio que concentra em si um

    discurso dualmente sedutor: attentiveness as a graphic objetc of aesthetic appeal as well as intellectual

    illumination.

    1 A presente comunicao insere-se nas iniciativas no domnio da Ilustrao Cientfica - IC - na Universidade de Aveiro, que incidem nas componentes do ensino e de investigao, tendo sido criado o Curso de Formao em IC (CFIC: 1 ano, 60 ECTS) e o Laboratrio de Ilustrao Cientfica (LIC). A vertente de investigao engloba vrios projetos, alguns do quais nacionais e outros em colaborao com o Brasil. Esta apresentao vem no seguimento de um deste projetos que est a ser desenvolvido, desta feita voltado para a problemtica do valor/pertinncia da imagtica cientfica nos pases lusfonos - as suas razes, desenvolvimentos passados, estado de arte atual e potencial futuro.

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    2. DESENHAR PARA (RE)CONHECER

    Os Descobrimentos (sc. XV) e as suas consequncias no sc. XVI, alavancaram tambm a necessidade de

    descrever e classificar, transmutando o desconhecido em conhecido (ou familiar), bem como de trazer

    ordem ao aparente caos do mundo natural (HUXLEY, 2007), isto , relanaram as bases para a sua

    racionalizao (privilegiando a razo ps-percepo do que nos rodeia, procurando agrupar/sistematizar).

    No entendimento do mundo natural, surge o argumento racionalista que est na base do Iluminismo do sc.

    XVII (HUXLEY, 2007): a observao e a experimentao fundamentadas no exerccio da razo, sobrepem-se

    crena/superstio e aos dogmas religiosos, ainda que profundamente assentes numa perspectiva

    utilitarista.

    Um segundo acontecimento igualmente pertinente: o aparecimento da imprensa e a produo de livros

    (incunbulos, numa primeira forma de cadernos impressos, libertos e sem serem encapados), nos sculos

    XV-VI. Com ela e graas por ento moderna xilografia (impresso de motivos atravs de uma matriz de

    madeira esculpida), a originalidade do desenho pode ser multiplicada pelo poder das estampas em

    xilogravura.

    Fig.1. Albrecht Drer, Saint Jerome in his study, 1515 (STRAUSS, 1972: 163).

    Mais, a imagem ocupa o mesmo plano que o texto, lado a lado numa mesma pgina, entre pargrafos ou

    marginando-os - tornam-se iguais, por defeito, estimulando assim conexes diretas e imediatas entre ambos

    os discursos, que se complementam naturalmente. Ora com este desdobramento em clonados arqutipos

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    imagticos, deu-se azo disseminao e difuso visual do conhecimento, fomentou-se ainda a

    padronizao imagtica (as estampas eram copiadas, repetidas, plagiadas ou ento utilizadas como

    referencia sobre como fazer), factos que ao longo das dcadas e sculos vindouros contriburam para deixar

    o seu cunho na matriz social como uma nova maneira de visualizar a realidade e relanando assim a Histria

    Natural (PEDRO, 1999: 7). Doravante e no mbito desta nova Visualidade Renascentista, a imagem ganha

    poder de certificao e atesta a veracidade do escrito

    El hombre renacentista se siente atrado por todo aquello que le rodea sea cercano o lejano. El universo de las cosas maravillosas puebla sus escritos e mundo visual. (PEDRO, 1999: 8).

    Ambos os coincidentes momentos - descobertas/apropriao de novos territrios e a multiplicao da obra

    original pelo processo da impresso tipogrfica/xilogrfica - foram naturalmente prestantes, contribuintes e

    impulsionadores. Assim, as crnicas impressas dos intrpidos exploradores tornaram-se basties do

    reconhecimento naturalista (mas com pendor utilitrio e baseada numa percepo econmica do seu uso),

    sendo frequentemente reimpressas e traduzidas. Ganharam assim grande circulao europeia no extravasar

    das fronteiras dos pases de origem e passaram a ser consideradas estatutariamente como Obra Obrigatria

    para os naturalistas do sculo XVI e seguintes (PEDRO, 1999: 12). Narrando a sua ao recoletora e

    compilatria, procuravam o momento seguinte: nomear e atribuir significado s espcies descobertas - dois

    dos maiores fundamentos renascentistas (PEDRO, 1999: 13) - e com elas ganhar reconhecimento, para si

    prprio e para o reino que neles apostou e investiu. Esta explorao e apropriao da realidade externa vai

    alm da simples percepo: de olhar, ver e observar (examinar, analisar, comparar). Parte-se procura da

    familiaridade (desconstruir o desconhecido e encontrar nele pelo menos alguns pontos em comum para

    comear a conhecer) e o desenho al vivo um dos mtodos mais eficazes, apropriando-se da essncia da

    coisa retratada atravs da similaridade da sua figurao (PEDRO, 1999: 13) bem como, de caminho,

    ultrapassar o problema suscitado por tudo aquilo que perecvel - o desenho no s imortalizava, criando

    uma bolsa de intemporalidade, como passou a ser valorativamente demonstrativo. nesta fase - do

    observar para conhecer, do figurar para demonstrar e certificar - que surgem as premissas bsicas da

    ilustrao cientfica propriamente dita, isto , d-se a racionalizao do olhar e a exigncia do tomar

    conhecimento vai muito alm da discursividade da palavra escrita. A imagem que ilustra, expurga o ser-se

    apenas mero adorno (ultrapassando o imediatismo da funo esttica, emotiva), passando a ser entendida

    como um credvel mediador e uma sntese analtica do que visual, Reune em si o poder de provocar no

    observador/leitor da obra naturalista uma evidncia que atesta a realidade da existncia da coisa; por outro

    lado funciona como um substituto didtico do objeto, uma vez que transmite conhecimento e muda a nossa

    percepo sem um contato direto:

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    A partir de aqu la realidade que vemos no ser la misma que con la que nos hemos enfrentado al nicio: la veremos a travs de la ventana de la imagen; y se divulgar como si esa otra nunca hubiese existido. Hasta que un nuevo hallazgo propicie la aparicin de una otra realidade (PEDRO, 1999: 14-16).

    3. A ILUSTRAO E OS NVEIS DE (RE)CONHECIMENTO

    A apropriao do uso da ilustrao pelos sbios e experientes decorre da intrnseca necessidade de

    comunicar de um modo especfico, extravasando o seu ser e perpetuando o que aprendeu - algo que vem

    das primeiras culturas ainda no alfabetizadas, ou seja, antecede o aparecimento do prprio texto em si

    (como forma de comunicao). Sendo primeva tambm em termos culturais, para alm de em termos

    fisiolgicos, a imagem construda (desenhada ou modelada) decididamente um artificio da visualidade,

    no natural, e constitui um instrumento mpar para a percepo, interpretao, compreenso e transmisso

    do conhecimento humano, bem como para a sua integrao e evoluo. Como percepcionado pelo

    acutilante e exmio observador Aristteles, no seu De Anima: A alma jamais pensa sem imagem (REIS,

    2006: 119). Esta percepo e entendimento parecem intuitivos e so sintetizados de forma magistral por

    Robin (1992: 9): By seeing into a picture, the viewer transforms the static image into an active intellectual

    experience, a qual pode dar origem expresso de uma resposta sensitiva (de apreciao), ou ir mais alm,

    sendo estticos visuais que estimulam o uso da Razo, i. e, acabam por traduzir um aturado e metdico

    pensamento e reflexo. Na realidade, pode agir tambm para alm de mediador (entre quem descobre e

    quem se inteira sobre a descoberta), atuando como eficaz divulgador/disseminador da conquista

    (territorial e/ou cientfica), ganhando por direito prprio uma nova dimenso, que por ento passa a ser

    sustentada, em aes de retroalimentao, pelos argumentos racionalistas do sculo XIX (HANBURY-

    TENISON, 2010: 15).

    As ilustraes criadas nos sculos XV e XVI reforam a tipologia entretanto criada e em vigor, com imagens

    de observao (instrumentos de registo de observaes diretas, como por exemplo ilustraes de espcies)

    e imagens de induo (alm da observao direta, introduzem elementos de interpretao decorrentes de

    uma reflexo posterior ao ato de analisar/descrever e/ou do uso de instrumentos pticos auxiliares para

    uma nova visualizao/experimentao: ver o que no podia ser visto). Mas tambm adentram j nas

    imagens metodolgicas e relacionais (explicativas do funcionamento da natureza, do corpo ou dos

    engenhos, da dinmica celestes, dos fenmenos qumicos e fsicos, procurando a sua manipulao) e

    algumas outras so conceptuais, mais abstratas e expressando determinadas realidades que podem ser

    imaginadas a partir da sua leitura. Um ensaio cartogrfico, sendo uma projeo metodolgica, topogrfica

    ou geogrfica, (geopoltica ou outra), abraa estas novas formas de comunicao, extremamente versteis,

    prticas e teis em vrios nveis de entendimento e que muitas vezes vo para alm do fim imediato.

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    Muito embora as primeiras incurses expedicionrias possam ser encaradas, no s numa perspetiva

    cientfica (estudo e sistematizao da bio- e geodiversidade), tambm se identifica nelas um eminente e

    declarado interesse geopoltico (em paralelo e em simultneo), constituindo, data, uma estratgica e

    inteligente ferramenta de legitimao da supremacia e de perpetuao da ocupao do alm-mar - a ideia

    de (re)conhecer para ocupar (MARTINS, ALBINO, 2010: 11, 26). A imagem naturalista assim projetada,

    por fora da necessidade de cumprimento deste objetivo velado, uma nova legitimidade, dimenso e papel

    interventivo, dentro da perspetiva cientfica do humanismo renascentista e do perodo barroco, o qual

    reforado pelas polticas que promovem a difuso social do achado. A disseminao do conhecimento

    cientfico suportado pela visualidade, promovida pelos centros organizados do saber (Academias, atravs da

    edio das suas Memorias compilatrias do trabalho/experimentao, feitas a cada ano), multiplica o

    fenmeno da popularizao e gera ecos em todo o pas e alm-fronteiras. Esta iniciativa nus de

    magnanimidade de uma Coroa que, primeira vista e internamente, procura promover a literacia do povo,

    mas, externamente e em segundo plano, d mostras de uma saudvel vitalidade exploratria e

    simultaneamente cria evidncias da legitimidade e poderio interventivo em terras longnquas, num ato no-

    beligerante e sufragado pela to desejada supremacia cientfica (muitas vezes segundo estratgias

    antagnicas, como seja incentivando a criao de populares obras obrigatrias, mas tambm de sigilosos

    mapas de rotas de navegao).

    Como facilmente se constata, o (re)conhecimento desses novos territrios apoia-se assim e tambm em

    informao iconogrfica de origem ocidental e europeia, que documenta e codifica a informao pertinente,

    em crescendos progressivos de complexidade visual e onde imperam a Astronomia e Geografia - dos quais

    os mapas constituem manifestaes imagticas do longnquo exterior. Os produtos cartogrficos surgem

    como privilegiados documentos grficos de uma nova visualidade que atestam a possesso (do

    conhecimento/informao, do territrio, como a ele chegar e como nele avanar), constituindo portanto

    uma das primeiras formas de ilustrao cientfica (onde a virtude esttica relegada para um segundo plano

    ou inexistente) quase estritamente funcional. Esta variante da imagem cientfica teve a sua gnese nos

    portulanos, evoluindo depois para as primeiras cartas de navegao martima (ambos codificando caminhos

    martimos), ao qual se seguiu um segundo nvel de informao sistmica e referencial com as cartas

    geogrficas. Estas ilustraes documentam a incursa intrusiva para alm da orla martima e encerram em si

    a definio topogrfica e biofsica, de terra e de propriedade, registando tambm a delimitao fundiria e

    as relaes de poder circunvizinhas a ela associadas. A georreferenciao de povoados indgenas (gentios),

    os seus elementos de defesa ou de subsistncia (principais culturas ou uso de solos), constituem o terceiro

    nvel de informao capaz de facilitar/consolidar a ocupao e posterior defesa do territrio anexado, sendo

    que a cartografia militar acaba por ser a rea que motivou um maior investimento (em logstica e inovao

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    tecnolgica), durante largos sculos, a par com o riscar e iluminar das ilustraes da histria natural. O

    desenho cartogrfico surge assim como uma ferramenta de delimitao fundiria e o documento que por si

    atestava, sem margens para dvidas, a distribuio de terras e/ou relaes de poder.

    Do desenho ditado (ou ilustraes ficionadas construdas com base e apenas nos relatos orais, sem

    visualizao) at aos credveis levantamentos topogrficos da fisiografia do terreno e das observaes da

    diversidade de seres vivos (do mundo macroscpico e tambm microscpico) sistematizados, observa-se

    Fig.2. Carta do Pacfico, Battista Agnese, ca. 1544 (SUAREZ, 2004: 50).

    Fig.3. Mapa da Amrica, William Blaeu, ca. 1608 (SUAREZ, 2004: 58).

    Fig.5. Ilustrao contempornea de um manatim-da-florida (Trichechus manatus), um mamfero aqutico, com glndulas mamrias perto das axilas das barbatanas peitorais e que parece estar na base do aparecimento da lenda do peixe-mulher, surgida com base em relatos de avistamentos por populares deslocando-se em embarcaes superfcie da gua. Apesar de ser um animal extico nunca observado ao vivo pelo ilustrador que o desenhou, a ilustrao teve como referenciais visuais vrias fotografias e vdeos que permitiram desenvolver o desenho com grande rigor e efetiva proximidade visual realidade da espcie. Fernando Correia

    Fig.4. Exemplo de desenho ditado, em que o autor do desenho no teve qualquer contato com espcimes da espcie em causa numa magistral xilogravura do frade Cavazzi, (1692) ilustrando o peixe-mulher: Este peixe tem muita semelhana com os homens e mulheres da barriga at ao pescoo () (Frei Joo dos Santos, in FERRONHA et al, 1993: 51).

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    uma aproximao gradual das ilustraes realidade, ultrapassam-se fronteiras da visualizao e nutre-se

    ainda mais o embrio da cultura visual cientfica. O sucesso desta nova forma de informar e dar a conhecer

    patrimnio longnquo e desconhecido, continua a ser catalisada pela evoluo paralela dos processos de

    impresso imagtica (do abandono da limitada xilografia, adopo da mais rigorosa e verstil calcografia,

    capaz de ir mais alm nos pormenores a mostrar, podendo competir com a prpria pintura). E se a

    xilogravura, imersa no meio do prprio texto permitia a intertextualidade relacional direta, com a

    calcogravura, isolada em pgina prpria, construram-se as primeiras hiperligaes para manuteno da

    conexidade intertextual - as notoes (smbolos grficos, nmeros ou letras, lateralizando ou inseridas sobre

    a imagem impressa) que simbolicamente remetiam a ateno da imagem de volta para o texto. O Livro

    ilustrado e a facilidade crescente de acesso informao pela sociedade em geral, acabam por democratizar,

    popularizar e difundir ainda mais o conhecimento cientfico. Sendo fenmenos convergentes e que se

    retroalimentam, observa-se tambm o consequente aperfeioamento da ilustrao, ambas exponenciadas

    pela revoluo tecnolgica do sc. XX e o uso desinibido de instrumentos que estendem o poder da viso

    humana, no espao e no tempo.

    4. A FORMAO DOS RISCADORES (DESENHADORES) E A INTERACO DISCIPLINAR

    Entre as centrias quinhentistas a setecentistas (sc. XV-XVIII), criou-se uma corrente de alfabetizao visual

    europeia, apoiada na necessidade de registar patrimnios naturais alm-fronteiras e ultramarinos (alm da

    cartografia dos oceanos e outros continentes), cada vez mais diversos, para cada um dos imprios da poca.

    Era preciso encontrar um modo funcional e eficaz de ver distncia a planta, o animal, o povo e os

    povoados indgenas, j que os centros decisores que avaliariam a pertinncia desses recursos naturais das

    novas terras e a sua traduo em fundos econmicos para o Reino, encontravam-se na outra ponta do

    Mundo conhecido. A ilustrao em estampas fixadas em papel tornou-se a dimensional porta de acesso a

    novos territrios, ultrapassando impossibilidades fsicas (no tempo e no espao) - independentemente de

    quo longnquo estivesse o objeto de estudo (no espao terreno ou na abobada celestial), ou quo mnimo

    ele fosse (abaixo do limiar de resoluo do olho humano), ou quem fosse o leitor. Por defeito, essas

    pranchas ilustradas permitiam a todos e em qualquer momento a possibilidade de poderem observar (ver e

    analisar) o mesmo (algo que representa e coadjuva a perseguida universalizao do conhecimento cientfico)

    que algum tinha visto (como se vissem atravs dos seus prprios olhos). As tcnicas artsticas barrocas

    trompe-loeil (enganar o olho) foram adoptadas na figurao da histria natural ou da anatomia humana,

    fazendo uso da descoberta das leis da perspetiva e do chiaroscuro (claro-escuro, ou o efeito da luz como

    elemento modelador da forma visual) durante o Renascimento - acentuava-se assim a iluso de

    profundidade, volume e textura e estes artifcios imagticos tornavam-se ainda mais verosmeis e fiveis. A

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    imagem de pendor cientfico, mais do que mostrar, passa desejavelmente a provocar conhecimento (PEDRO,

    1999: 27) a quem a l - indutora e persuasiva. E sendo original, credita de modo quase inquestionvel e

    imediato, sem entraves lingusticos, culturais ou outros, a supremacia e a primazia de quem primeiro a edita.

    De facto, uma descrio em palavras torna-se mais difcil de identificar caso seja plagiada, que uma imagem,

    na qual falta de melhores referencias (algo que facilmente acontece quando se trata de fauna extica), o

    plgio ou fonte de inspirao, se denuncia a si prprio dada a evidencia da similaridade (FORD, 1993: 3).

    exemplo flagrante dessa realidade e constatao, as cpias da xilogravura de uma hiena, publicada por

    Conrad Gesner, na obra Icones Animalium (1560) e copiada at finais do sculo XVII (DANCE, 1981).

    Mas uma das xilogravuras mais famosas e ligada ao destino luso a do rinoceronte indiano (Rhinocerus

    unicornis) xilogravado pelo gnio alemo renascentista Albrecht Drer, datada de 1515 e feita com base

    num relato oral de um portugus que o viu desembarcar em Lisboa2. No entanto este artista nunca chegou a

    ver um animal daqueles em toda a sua vida, procurando ser o mais fidedigno ao esboo e ao relato - mas

    como quem escreve um conto acrescenta um ponto, entendeu por ento acrescer um segundo chifre ao

    nvel da cintura escapular.

    Fig.6. Reproduo da xilogravura do rinoceronte indiano, Albrect Drer, 1515 (in STRAUSS, 1972).

    Ora graas credibilidade emanada pelo autor, ao poder da imagem em si e s modernas tcnicas de

    impresso de ento, esta emblemtica gravura quinhentista, pr-ilustrao cientfica e um autntico

    desenho ditado, foi copiada e/ou redesenhada at exausto, acabando por migrar e figurar nos mais

    variados manuais cientficos de todo o mundo durante os trs sculos seguintes, carimbando um caso de

    perenidade assombroso apesar dos flagrantes erros anatmicos nela contidos (CORREIA, 2010). De facto, as

    2 Existindo historiadores que afirmam ter inclusive havido um primeiro esboo portugus.

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    adaptaes e plgios so facilmente identificados no s pela forma e ornamentao, mas tambm pela

    perpetuao do erro de Drer, acima referido (FORD, 1993: 56, 69; DANCE, 1981: 150-51).

    No mundo extico e macroscpico, de entre as plantas coletadas investia-se predominantemente no

    desenho daquelas que se lhes reconhecia importncia econmica, alimentcia, sanitria ou medicinal,

    perseguindo a metodologia e propsitos que encabeavam os Herbrios clssicos que os precederam

    (claramente utilitrios e associando-as segundo uma sistematizao emprica, quando muito fazendo uso da

    classificao aristotlica: ervas, arbustos e rvores). Por sua vez, os animais desenhados, eram aqueles que

    mais do que o serem curiosos, nos permitiam identific-los como fonte essencial de protenas, passveis de

    serem caados (fceis de caar ou de grande porte, com elevada carga muscular, mais do que invertebrados

    ou micromamferos) ou ento representavam perigo para a sobrevivncia. A contextualizao da imagem

    botnica/zoolgica desenhada na era pr-lineana da centria de oitocentos era uma necessidade, pois urgia

    induzir ou sugerir a percepo do seu uso prtico. Note-se que, como bem refere Pedro (1999, p. 23),

    somente no sculo XVII a Cincia e a Arte se separam propositadamente numa estampa, isto reclamaram

    maneiras distintas (modelos e tipologias) de apresentar e gerir o artifcio da visualidade impressa. De facto,

    s a partir do sc. XVIII/XIX comeam a aparecer, com maior frequncia, as representaes grficas

    detalhadas e focadas na espcie por si, acompanhando descries exaustivas e com o objetivo de facilitar

    comparaes e classificaes dos seres vivos (KEVLES, Cit. por ROBIN, 1992: 16). Esta sistematizao procura

    traduzir e corresponder a ordem/modelo construdo em princpios capazes de dar resposta credvel ao

    observado na natureza - consequncia da Revoluo Cientfica assente num novo paradigma: uma Natureza

    governada por leis universais, perfeitamente organizada e previsvel (visvel com antecipao), capazes de

    serem descobertas atravs do inteleto e reflexo humano que conseguisse identificar esse padro.

    Em suma, o recurso imagem do que til respondia necessidade de identificar novos recursos naturais

    essenciais sobrevivncia ou explorao econmica: a seleo e associao compilatria por ento assim

    subordinada ao Utilitrio, mais que Cincia fundamental. Com a sistematizao do patrimnio selvagem

    descoberto (geolgico, florstico e faunstico) surgiu a necessidade de treinar no reino especialistas para bem

    representar e trabalhar em paridade com os naturalistas (gerir a interdisciplinaridade), isto , para poderem

    ser autossuficientes e desdobrar atividades, maximizando a produtividade. Na realidade e j por ento, no

    bastava ter jeito e vontade de desenhar, isto saber do ofcio de bem delinear, mas cada vez mais saber

    ajuizar sobre o que se deve ou no fazer, o que permitido ou no dentro das regras/convenes, para

    expurgar o sentimento da subjetividade e reter apenas a sensibilidade mais objetiva e representativa - ou

    seja, edificar e respeitar as bases da figurao da histria natural, que comeam a ser erigidas a partir do

    sculo XVI, para que dela emane valor cientifico documental. Aos poucos comearam a modificar-se os

    valores e as convenes de representao, criando uns e abandonando outros e, desta forma, edificaram-se

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    os parmetros balizadores da ilustrao devotada cincia. Um exemplo desta constatao, antes da

    introduo da cor nos estampados (com a cromolitografia, ou tambm as primevas litografias pintadas

    mo, isto , iluminadas, a meados do sc. XIX) -nos dado pelo abandono paulatino da linha de contorno,

    que d forma silhueta e era emblematicamente obrigatria para o reconhecimento e observao

    naturalista que tipifica as imagens dos sc. XV-VI. Em sua substituio aparece o jogo de chiaroscuro (um

    pobre mas eficaz paliativo da ausncia de cor nas estampas, elemento identificativo este que para alguns

    autores no tinha peso na hora da classificao vegetal: veja-se o consagrado Lineu, que na sua Philosophia

    Botnica de 1751 foi peremptrio em o afirmar (PEDRO, 1999: 34). Esta nova soluo tcnica passa ento a

    determinar as ilustraes cientficas do sc. XVII e seguintes, j que se lhe reconhece uma funo mais

    orientada para os estudos de classificao e sistemtica, do que para os de simples reconhecimento (PEDRO,

    1999: 33). Ou seja a imagem cientfica ganhou novo poder e papel interventivo, assumindo-se como a outra

    linguagem cientfica, dotada de uma gramtica pictrica prpria e mais intuitiva, mas igualmente capaz (na

    objetividade, organizao, estrutura e sntese da mensagem que transmitia), que permitia catalogar e

    relacionar a realidade dos seres vivos e das coisas naturais, persuadindo melhor atravs do fenmeno da

    retrica visual. Se a partir de Lineu e adopo do seu sistema de classificao/nomenclatura, para cada

    espcie era definido um tipo, para a mesma se viria a definir igualmente o cone, ou figura-tipo (PEDRO,

    1999: 40-1), e ambas as linguagens seriam convergentes e prestantes/contributivas na criao daquela

    identidade e nomeao que identificaria doravante aquela espcie. Desde o sc. XVI, as plantas no mais so

    figuradas com um todo natural, mas j desdobradas nos seus componentes identificadores principais,

    destacados e isolados da planta em si (a flor, o fruto, a folha, o ramo, o hbito) para melhor se perceberem e

    no ficarem mascarados por sobreposies entre si (OGILVIE, 2003); nos animais, vertebrados e

    invertebrados, segue-se a mesma estratgia analtica (ilustraes anexas das asas, dos aparelhos de

    mastigao, das seces corporais, etc.).

    Desta forma, a ilustrao cientfica, enquanto domnio que se comea a consolidar a partir do sc. XVI-XVII,

    comea a exibir um carcter prprio embora transversal e interdisciplinar, atravessando vrias escalas

    (espaciais e temporais) e reas cientficas. Os desenhadores que se dedicavam ilustrao da histria

    natural ou da medicina humana tornaram-se, a finais do sc. XVII, verdadeiros especialistas (alguns deles

    reunindo em si, o desenhador e o naturalista), gozando de estatuto social (entre nobres e reis) e at

    extremamente desejados pelas oficinas de imprensa europeias (PEDRO, 1999: 35). Por isso, o

    explorador/naturalista cientfico do sculo XVIII, segundo a Instructio peregrinatoris de 1759 atribudo a

    Lineu, deveria reunir vrias qualidades, nomeadamente ser versado em histria natural, saber pintar e

    desenhar, traar cartas, ser bem informado, saber escrever latim, ter um dirio claro e preciso, observar e

    descrever a geografia dos lugares visitados. (PATACA, 2003).

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    No contexto portugus, a mesma aspirao ao conhecimento integrado surge com o Real Museu e Jardim

    Botnico da Ajuda (datando de 1769 e 1768 respectivamente), originalmente criados para a educao dos

    descendentes da Casa Real, e posteriormente alargando as suas funes ao campo cientfico-artstico.

    Englobaria assim um Gabinete de Histria Natural, Livraria e Cartrio, Laboratrio Qumico, Sala de

    Preparao, Armazm e Jardim, assim como a Casa do Risco (Casa de Desenho e Casa de Gravura), criada em

    1780, onde iriam receber formao nessas tarefas todos os elementos que iriam formar as expedies

    cientficas, segundo as suas habilitaes e aptides.

    A fundao desta Casa, criada no seguimento da reconstruo da Baixa lisboeta ps-terramoto de 1755 e

    portanto reunindo desenhadores com formao artstica ligada arquitectura, ter estado associada

    construo do Jardim Botnico e ainda escola de desenho da Fundio de Canhes ou Arsenal Real do

    Exrcito, reunindo portanto num mesmo espao temas e tcnicos de desenho que se estendiam da botnica

    e zoologia, geografia, cartografia, arquitetura e engenharia militar. Constitui assim a unidade orgnica de

    ensino formal que forma os primeiros riscadores do imprio portugus (vrios deles oriundos das oficinas

    de desenho tcnico-militar, treinados segundo uma disciplina e instruo espartana, no rigor sistemtico e

    no mtodo preciso e cirrgico, na procura de perfeio e correo). de realar a clarividncia dos

    pensadores de cincia, como Domingos Vandelli, que entendeu a importncia de uma relao simbitica

    entre o naturalista e o riscador e tudo fez para a aplicar na prtica. Este novo entendimento revolucionrio,

    foi aplicado na preparao das equipas das futuras viagens filosficas: estes eram treinados em conjunto,

    para formar pequenas irmandades, por vezes partilhando tarefas que no as suas - alguns naturalistas eram

    capazes de delinear e at pintar e havia alguns riscadores capazes no s de preparar e conservar

    exemplares orgnicos, como tambm de efetuar precisas medidas geogrficas, ou ainda de se distinguirem

    na atividade cientfica (como sucedeu ao riscador Jos J. Freire).

    Ainda que a diversidade desses temas se traduzisse em alguma especializao das tarefas assumidas por

    cada elemento das expedies cientficas - havendo registo de que as equipas das viagens philosophicas

    reuniam naturalistas, riscadores, botnicos, cartgrafos - possivelmente a conjugao de funes surgiria

    no apenas de forma intuitiva, mas seria tambm encorajada por motivos pragmaticamente funcionais:

    dada a forte possibilidade de contrair doenas debilitantes ou at fatais nos inspitos locais para onde

    seriam mandados, cada funo especfica poderia ter de ser assumida por um elemento diferente do

    inicialmente previsto. O treino do substituto no desenho seria, por exemplo, realizado durante a viagem

    expedicionria (desenho al vivo e/ou in situ), aps a preparao das espcies, pelos vrios membros da

    expedio atravs de exerccios de pintura: por isso [para os] que no esto exercitados nela, a tem lugar

    traar algumas linhas sobre a frutificao das plantas, e debuxo dos animais debaixo da inspeco do

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    riscador que os acompanhar. Este exerccio no interrupto por dois meses, quando no produza outro efeito,

    d mo mais rebelde aquele jeito de talhar que a alguns nega a natureza (Cit. por PATACA, 2003).

    Sendo estas equipas essencialmente recoletoras com aspiraes sistemticas, as ilustraes de histria

    natural produzidas al vivo por ento e ao longo das expedies eram necessariamente funcionais e

    descritivas, isto , de figurao chiaroscuro com enfoque taxonmico (coloridas ou no, mas entendidas

    como intemporais e isentas de perspetivas ou fundos paisagsticos), mais do que narrativas e cnicas. De

    facto, os seres retratados eram mostrados em ambiente estril, simbolicamente rodeado pelo vazio do

    branco do papel, sem elementos grficos distratores, para alm de algumas e eventuais notas esparsas,

    como o autor, o local e o ano da coleta. Passariam por trs fases distintas: o grafitar no local, os ensaios de

    cor aguarelada e, mais tarde, o tintar e artefinalizao. Somente as ilustraes etnogrficas fugiam desse

    padro e estilo-tipo; aqui o homem, enquanto protagonista maior mostrava-se inserido numa

    contextualizao cnica, que podia ir desde o ambiente selvagem de uma floresta, envolvncia de

    edificados, por vezes buclica e exuberante, numa clara reminiscncia histrica s ilustraes naturais do

    perodo barroco. Este novo enquadramento (quadros naturais, iluminando a fisionomia do conjunto, ao

    invs da fisionomia isolada do exemplar que tipificou as imagens de reconhecimento da Renascena (PEDRO,

    1999: p49) voltariam a ser a norma padronizada no sculo XVIII e principalmente no sc. XIX, muito embora

    o enlevo cnico procurasse agora retratar fidedignamente o habitat natural da espcie em causa, sugestes

    da sua dieta, associaes vegetais, etc., numa narrativa clara e coesivamente relacional.

    5. AS VIAGENS PHILOSOPHICAS E O CASO DE MOAMBIQUE

    O sculo XVIII foi propcio em acontecimentos, principalmente na segunda metade. A Europa acordou para

    uma nova realidade, uma nova vaga de Descobrimentos, desta feita alicerada em expedies cientficas,

    mas motivadas por outros fatores da mais variada natureza, entre os quais os econmicos, alimentares e

    militares e geoestratgicos. Potncias coloniais europeias despertaram para as riquezas naturais que

    estavam para alm da explorao imediata, para a delimitao exata dos seus domnios e para a legitimao

    da apropriao atravs do conhecimento cientfico (quem conhece torna-se o mais apto para

    gerir/administrar), do que pelo simples poder blico. Outras procuraram expandir os seus domnios pela

    capacitao cientfica, pela aplicao e desenvolvimento de teorias e experincias in situ, propiciadas pela

    escola dos seus naturalistas, mas em territrios contguos e historicamente atribudos a outra soberania.

    Procura-se recuperar o esplendor e prestgio dos tempos ureos da centria de quinhentos e seguintes,

    atravs do propagar e propaganda dos mtodos, ensaios e resultados obtidos pelos seus naturalistas, que

    devero ser capazes de atestar a supremacia do reino face aos seus concorrentes europeus, com igual

    propsito. A Ibria acabou por tambm ela se associar a esta nova vaga em que a explorao cientfica

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    certifica e legitima as restantes exploraes: Espanha investindo nas Amricas, Portugal em frica e Amrica

    do Sul (Brasil). No foram poucas as vezes em que ambos os reinos procuraram debater/confrontar

    possesses, tendo os expedicionrios como pees nesse imenso tabuleiro de xadrez ultramarino, para assim

    redefinirem os limites territoriais entre domnios que eram contguos. A inconclusiva Expedio dos Limites

    ao Orinoco (1754-1761), capitaneada por Jos Iturriaga e tendo Pehr Lfling (aluno de Lineu) como

    naturalista e os riscadores Bruno Salvador Carmona e Juan de Dios Castel como coadjuvantes, foi uma delas

    (PEDRO, 1999: 45). E se as expedies portuguesas foram planeadas, coordenadas e desenhadas por

    Vandelli, em Espanha tiveram o seu homlogo em Casimiro Gmez Ortega (1740-1818), que sincronamente

    ao primeiro, tambm organizou quatro expedies cientficas ultramarinas (Peru e Chile, 1777-87; Virreinato

    Nueva Espaa, 1787-1803; Alrededor del Mundo, 1789-95; Virreinato de Nueva Granada, 1783-1816) e teve

    tambm a sagacidade de reconhecer os desenhadores como efetivos e imprescindveis colaboradores dos

    naturalistas expedicionrios (PEDRO, 1999: 46). Destas expedies resultaram cerca de 11500 ilustraes, a

    grande maioria dos quais nunca foram publicadas (previstos para publicao como extraordinrias Floras

    do Reino de Espaa) - um destino que em tudo foi igual ao do ambicioso e megalmano projeto rgio

    portugus, a ser executado na Casa do Risco, e que tambm nunca foi dado estampa: a Histria Natural

    das Colnias Ultramarinas de Portugal, e onde teria sido possvel registar, s do trabalho realizado por

    Codina e Freire durante a expedio ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira, um total de 808 originais,

    distribudos entre botnica (661 unidades) e zoologia (FARIA, 2001: 24, 187-190).

    Curiosamente, o reino de Espanha optou por uma estratgia diferente da de Portugal, no que toca ao ensino

    formal do ofcio de riscador naturalista - se Portugal criou Escola em data prvia s expedies, no reino ao

    lado optou-se por acalentar o ensino como resposta local demanda direta dos naturalistas j no seu

    destino, criando a primeira escola de desenho botnico no-europeia. De facto, a Escuela Gratuita de

    Dibujo de la Real Expedicin Botnica del Nuevo Reino de Granada, foi fundada em 1783 (3 anos depois da

    Casa do Risco), em Santaf (Colmbia), por Jos Celestino Mutis (padre, mdico e naturalista espanhol) e da

    qual, Salvador Riso, foi o diretor, curiosamente investindo e ensinando autctones e mestios locais ( e

    tambm do Equador e Per) a desenhar e pintar as plantas colombianas com rigor e objetividade.

    A imagem cientfica propiciada por essas floras e tambm faunas de papel (PEDRO, 1999: 46),

    reconhecidamente cultivada como basties imagticos da veracidade/honestidade do achado, ao ilustrarem

    obras tornadas obrigatrias (com elevado poder dispersivo e persuasivo) acabariam assim por desempenhar

    um papel importantssimo nessa publicitao e tarefa colossal de recuperao do estatuto dos imprios

    coloniais em declnio ou mutao, tornando-se extremamente apetecveis e instituindo tambm o seu

    consumo (aquisio), em resposta a claras estratgias de marketing.

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    Em Portugal, foram equacionadas quatro ambiciosas expedies cientficas, inicialmente todas elas

    destinadas ao conhecimento do territrio brasileiro e, mais tarde, por interesses da coroa portuguesa de

    ltima hora, trs delas desviadas para o continente (Angola e Moambique) e adjacentes insulares africanos

    (Cabo Verde). No caso de Moambique, Galvo da Silva mostrou um claro interesse pelos aspectos

    mineralgicos, mais do que pelos de fauna e/ou flora; contudo, como dita a histria a sua expedio acabou

    por retumbar num reconhecido fracasso ao perder prematuramente o seu desenhador e no havendo

    substituto. Seja como for ainda colheu e preparou (herbalizou) algumas plantas que chegou a enviar para o

    Reino; contudo, sendo pouco significativos (como coleo botnica, to s e apenas), acabaram por se

    perder, ou ento foram acondicionados onde no deviam devido diminuta importncia e valor que se lhes

    reconheceu. Para ajudar ao pessimismo que sobressai deste fraco sucesso na incurso filosfica a

    Moambique, julga-se que esses herbrios tero tambm sido objeto das famosas apropriaes indevidas

    mandatadas pelo francs Geoffroy St. Hillaire, lapidando as colees naturais guardadas no Museu e Jardim

    Botnico da Ajuda (em 1808, Lisboa), aquando da invaso francesa e transportando depois esse patrimnio

    para o Museu de Histria Natural de Paris3.

    3 Isso mesmo foi avanado pelos botnicos Ablio e Rosette Fernandes (Univ. de Coimbra), numa das suas comunicaes no Boletim da Sociedade Broteriana. Nesse artigo provam que a planta Rhexia princeps na verdade a Dissotis princeps (Bonpl.) no existe no Brasil (apesar de constar do herbrio do Brasil e que foi retirada coleo de Lisboa) e muito provavelmente no s moambicana, como tambm teria sido coletada por Galvo da Silva, em 1788, nas terras de Manica ou Tete (FERNANDES e ROSETTE FERNANDES, 1954: 208-9).

    Fig.7. Esquema das viagens philosophicas: localizao, percursos, naturalistas e riscadores (F. Correia, com base na infografia das viagens philosophicas apresentada no Pblico: http://static.publico.pt/homepage/infografia/sociedade/ViagensFilosoficas/).

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    6. O PONTO DE VIRAGEM: O MAPA COR-DE-ROSA

    O clebre mapa que nunca o foi - o mapa cor-de-rosa da frica portuguesa (1886, ou Carta Meridional da

    frica Portugueza) - foi uma ilustrao cartogrfica que se pretendia cientificamente correta e honesta no

    reconhecimento internacional da possesso do territrio luso. Nela, pretensiosamente procurou

    materializar-se a ideia geopoltica de que Angola e Moambique estariam geogrfica e umbilicalmente

    ligados e no isolados, como realmente era e continua a ser o caso, nas margens opostas do continente

    africano. Como refere Manuel Lobato: () a cartografia servia de veculo para a construo do imaginrio

    colonial portugus e da ideia de capacidade cultural, cientfica e tecnolgica nacional. Esta afronta, que

    causticou as relaes com a soberania britnica, acabou por se traduzir no Ultimatum Ingls de 1890, ato

    respaldado e em consonncia com a opinio internacional - onde se defendia que a legitimao da posse

    do territrio africano depende to s da ocupao efetiva, menorizando assim os chamados direitos

    histricos em favor do conhecimento geogrfico efetivo. Ante a presso internacional, Portugal capitulou. O

    desaire resultante da vergonha nacional que adveio desta capitulao perante a soberania aliada inglesa,

    acabou por servir para acordar o Estado do estado de letargia e latncia para o real atraso observado na

    capacidade cientfica e administrativa das suas colnias (que insistia em chamar de provncias com o

    intuito de querer erigir um Portugal pluricontinental). Tal acontecimento foi o impulso para se obter num

    maior conhecimento geogrfico das colnias ultramarinas ainda anexadas ao reino portugus, bem como ao

    incentivar ao surgimento das misses cientficas que trariam assim uma nova dimenso equao colonial -

    a ocupao cientfica.

    Fig.8. Exemplos de espcimes atribudos a coletas de Galvo da Silva. a) reproduo fotogrfica da ilustrao botnica (com vrios erros identificados por Triana e Fernandes) procurando representar a espcie Rhexia princeps estudada e nomeada por Bonpland (1823, pl.46). b) Espcie-tipo herborizada de Dissotis princeps (Bonpl.) Triana, a qual corresponde visualmente figura da anterior ilustrao (espcie-cone), no tendo em conta os erros apontados.

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    7. Sculo XX: as novas misses cientficas

    No contexto de um Estado totalitrio e face s crescentes presses internacionais para conceder a

    autonomia s colnias, surge a necessidade premente de investir na legitimao da ocupao desses

    territrios, tarefa em que o seu (re)conhecimento cientfico assume e desempenha um papel relevante (Cf.

    ROQUE, 2011: 103-112).

    O modelo expedicionrio das viagens (longas estadias e com metas generalistas) abandonado em prol de

    um modelo economicamente mais sustentvel, temporalmente mais curto e verstil, capaz de dar resposta a

    vrias demandas simultaneamente - as Misses. Assim, s misses geogrficas acrescem outras

    (podolgicas, zoolgicas, botnicas, etnogrficas/antropolgicas) sempre desenhadas com concretas e

    objetivas metas, exequveis e sistemticas. O coordenador da misso, mais do que naturalistas, so figuras

    acadmicas de idoneidade cientfica reconhecida, com capacidade de deciso para tomarem a dianteira do

    projeto no campo. Curiosamente, em algumas destas figuras acadmicas, transparece o sentimento de um

    nacionalismo cultivado a par com a devoo cientfica e, doravante, passam a chamar a si mais do que o

    poder e representatividade do Estado - a obrigao de planear novas incurses ao territrio profundo4.

    4 Essa questo sentida por Lus Carrisso, por volta de 1927 aquando de um esclarecimento sobre a flora de Moambique, por ele solicitado aos Servios Botnicos de Kew, que tero afirmado: There is probably no part of Africa

    Fig.9. Mapa do Territrio Portugus em frica, 1890 (in http://purl.pt/1601/1/).

    Fig.10. Edward Linley, The Rhodes Colossus, 1892 (in BRUIJN, DIJK, 2012).

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    As vrias misses realizadas a Moambique, a partir da dcada de 1930, corresponderam a diversos focos e

    interesses cientficos:

    - Misses etnogrficas e antropolgica - planeadas em 1936, prolongadas por 6 campanhas: 1936,

    1937-8, 1945, 1946, 1948 e 1955-6 e chefiadas por Santos Jnior.

    - Misses zoolgicas - comparativamente sem grande expresso face s suas congneres.

    Oficialmente, s em 1947 que constituda a Misso Zoolgica de Moambique, em que a Brigada

    para estudos entomolgicos dirigida por A. Castel-Branco e a Brigada para estudos dos restantes

    animais (centrada essencialmente nos grandes animais) ficaria sob a alada de Fernando Frade.

    - Misses Botnicas - Incluram a Misso botnica para estudo da flora e da fitogeografia de

    Moambique (1942 e 44; chefiada por Francisco Mendona/UC); a Misso Botnica de Angola e

    Moambique (antes de 1955), com a primeira campanha dedicada a Moambique em 63-64

    (chefiada por Antnio Torre e j contando com o conhecido botnico Jorge Paiva (UC); uma

    repetio de 65-66 e ainda de 67 a 68 - esta ltima incluindo alm de A. Torre, entre outros, o

    desenhador-fotgrafo Carlos Gomes Ladeira (que possui vrias ilustraes publicadas na Flora de

    Moambique) numa clara reminiscncia das equipas preparadas para as Viagens Philosophicas; e em

    1970, 71 e 73-4, ainda se fizeram mais trs campanhas em Cahora Bassa (por causa da instalao da

    barragem).

    Tornava-se imperioso coletar profusamente abundante material para estudo, algum analisado in situ (numa

    reminiscncia das viagens filosficas e do trabalho dos naturalistas expedicionrios), mas a grande maioria

    reservado para estudos posteriores (i.e, capaz de alimentar a Academia por perodos longos de trabalho).

    Era preciso fazer mais e melhor, em menos tempo, numa conteno de custos e de recursos humanos e no

    acalorar de uma produo cientfica editvel desejavelmente maior, a curto prazo, capaz de demonstrar

    inequivocamente a capacidade e competncia dos profissionais lusos a todo o restante mundo. Tambm a

    prpria estrutura da equipa da misso, face necessidade de se ter que ser mais lestos e aos avanos

    tecnolgicos de captao de imagem, se alterou significativamente face ao modelo ensaiado nas viagens. O

    registo imagtico passa a ser feito pelo especialista cientfico (em notas de campo e/ou fazendo uso de

    fotografia/filme), sendo que o especialista-desenhador j no acompanha a expedio, tornando-se um

    tcnico coadjuvante cuja interveno remetida para uma fase bastante posterior, i.e., ps-estudo do

    of which the flora has been so little investigated as Portuguese East Africa. Esta afronta Academia nacional conduziu organizao de uma precoce misso acadmica por parte da universidade de Coimbra a Moambique, que em ltima hora, acabou por ser desviada para Angola (na regio de Lunda, igualmente pouco estudada). Carrisso esteve em Moambique, mas apenas simbolicamente pois era esse o nome do paquete que o transportou ao seu novo destino africano.

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    material coletado, na apresentao do achado e na estratgia de comunicao/divulgao, isto caso este

    fosse merecedor de publicao. A fase final do projeto intrusivo e exploratrio - a sua publicao, agora em

    reconhecidas revistas da especialidade, se possvel internacionais, mais do que em livros, abandonados em

    prol de publicaes mais baratas e com uma cadncia de publicao maior e mais regular - manteve-se a par

    com o ensaiado na Viagens, uma vez que continuava a ser necessrio comunicar e tambm publicitar o feito

    em beneficio da produo cientifica lusa, agora assumidamente revestida de um duplo papel (servir a cincia

    e reforar a soberania do Estado/Ptria). No prosseguimento da Misso deram depois origem a publicaes

    profusamente ilustradas, as mais significativas das quais foram dedicadas ao estudo da profuso de plantas

    coletadas:

    - Flora Zambeziana (FZ), em 1960-61, com editorial tambm em portugus mas editado e organizado

    pelos Royal Botanic Gardens (kew) e ilustrada por ilustradores botnicos residentes.

    - Flora de Moambique, em 1969 (Lisboa), a qual surgiu como complemento, isto , tendo com

    base os estudos publicados na FZ, mas atualizando-os e/ou complementando-os.

    A Flora de Moambique foi ilustrada maioritariamente por autores portugueses, como Margarida Vincente

    (1969) e Jos Santos Figueira, embora por vezes recorresse a ilustraes de ilustradores ingleses publicados

    inicialmente na Flora Zambeziana). Outros se lhe seguiram, como: Carlos Ladeira (1973, 79, 81, 83), Alfredo

    da Conceio (1973), Margarida Queirs (1980) (e Jos Santos Figueira), Rosette Fernandes (1980) (e Jos

    Santos Figueira), A. Diniz (1980) (e Jos Santos Figueira), Margarida Lameiras (1980) (e Jos Santos Figueira),

    C. Pinto (1983, 86, 90, 92, 93), G. Matos (1993, 2003), entre alguns outros.

    8. CONTRIBUTOS CONTEMPORNEOS: A EXCEPCIONALIDADE DE ALFREDO DA CONCEIO

    Entre os vrios ilustradores estudados, contemporneos, h um que se destaca pela pertinncia do seu

    trabalho e diversidade de temas que ilustrou - Alfredo da Conceio - e que por conseguinte merece devido

    destaque e relevo.

    Alfredo da Conceio nasceu em Espinho (1919) e faleceu a 30 de Dezembro de 2011, em Lisboa. Dotado de

    sensibilidade para o desenho e as artes, ainda frequentou a Sociedade Nacional de Belas Artes (Lisboa).

    Como muitos portugueses de ento, migrou para as provncias ultramarinas em 1933, escolhendo fixar

    residncia em Moambique. Comeou por trabalhar como desenhador-litgrafo do Servio de Indstria

    Geologia e Minas, facto que lhe permitiu conhecer o interior profundo de Moambique. No pois de

    estranhar que as suas primeiras ilustraes sejam minerais, pedras semipreciosas e tambm materiais

    arqueolgicos (provavelmente oriundos das Misses).

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    Em 1959 tornou-se desenhador do Instituto de Investigao Cientfica de Moambique, onde tomou em

    mos o hercleo projeto de ilustrar duas famlias de escaravelhos (colepteros) de grandes dimenses: os

    escarabdeos (angolanos e moambicanos) e os cerambicdeos (longicrnios) moambicanos (publicados nos

    exaustivos artigos de Gunderico da Veiga Ferreira, da Revista de Entomologia de Moambique, entre 1964-

    68).

    Fig.11. Exemplos de ilustraes realizadas por Alfredo da Conceio para as obras de Escarabdeos e Cerambicdeos moambicanos.

    Fig.13. Jgara-grande [Galago (Otolemur) crassicaudatus) (Alfredo da Conceio, in Abecedrio dos mamferos selvagens de Moambique, 1975).

    Fig.12. Srie de selos Mamferos Selvagens de Moambique (Alfredo da Conceio, 1976). Note-se que houve uma inverso da imagem do selo para a especular da figura original publicada no Abecedrio (cf. fig. 13).

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    Durante o primeiro ano da Independncia de Moambique ainda lecionou Ilustrao na Universidade

    Eduardo Mondlane. Regressou a Portugal em 1976, onde trabalhou como ilustrador cientfico por mais 20

    anos no Servio Nacional de Parques e Reservas, hoje Instituto de Conservao da Natureza e das

    Florestas/INCF.

    Como se depreende do intervalo de tempo em que trabalhou em Moambique, que sncrono com o das

    Misses, Alfredo foi o nico desenhador portugus a ilustrar material de praticamente todo o tipo de

    Misses realizadas em Moambique, facto que maximiza a sua importncia no contexto da histria da

    Ilustrao Cientfica portuguesa. Mesmo antes de regressar, no ano em que se celebrava o Ano da

    Independncia (1975), ilustra ainda uma obra (com 23 estampas a cores, tantas quantas as letras do

    alfabeto) com claro pendor cientfico-pedaggico, que ainda hoje referncia em Moambique

    Abecedrio dos mamferos selvagens de Moambique, com textos da autoria do Dr. Jaime Travassos. O

    poder instrutrio e a singela beleza que ainda assim emanava das ilustraes cientficas da mamofauna, por

    ele pintadas, foi tal que granjeou o reconhecimento do Governo da Repblica Moambicana traduzido na

    emisso de 12 selos Mamferos Selvagens de Moambique, em 1976. (casos houve, em que a emisso da

    espcie em causa ultrapassou os 100.000 unidades). O xito desta iniciativa proporcionou posteriormente a

    emisso de uma nova srie com ilustraes dos Colopteros (Longicrnios) de Moambique (inicialmente

    publicadas nos trabalhos de Veiga Ferreira).

    Dada a excelncia e correo das suas ilustraes, a diversidade de temas desenhados (tendo abordado

    bastantes campos do saber cientfico) e a ligao a instituies de investigao cientfica, convivendo de

    perto com os investigadores e a dinmica dos centros de produo de Cincia, constituem um corolrio de

    contributos que nos permite considerar Alfredo da Conceio (autodidata na aprendizagem) como o

    primeiro ilustrador cientfico portugus moderno (sculo XX). Infelizmente, a maioria da sua obra, ou se

    perdeu (ou foi destruda), ou est disseminada um pouco por toda a parte (entre colees privadas e/ou

    diferentes instituies nacionais, internacionais - eventualmente, algumas perduraro tambm em Angola e

    Moambique), pelo que urge documentar e preservar no s a sua obra 5, como dedicar ateno a todo o

    trabalho que foi j produzido no mbito da ilustrao cientfica e que representa um extenso esplio de

    conhecimento e investigao.

    9. A ILUSTRAO CIENTFICA: QUE FUTURO? ACTUALIDADE E POTENCIAL

    A Ilustrao Cientfica atualmente no se esgota no campo da comunicao cientfica (artificio visual com

    capacidade comunicativa sem interlocutor), sendo hoje uma das mais eficazes ferramentas de trabalho na

    5 Este trabalho de documentao da obra de Alfredo da Conceio constitui um dos trabalhos de investigao atualmente em curso no Laboratrio de Ilustrao Cientfica da Universidade de Aveiro, na tentativa de recuperar a sua memria e produo, para o qual se agradecem contributos e participaes.

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    pedagogia das escolas (acessibilidade mais intuitiva ao saber condensado e focalizado na imagem, enquanto

    documento sinttico e analtico com funo inteletual; treino metodolgico da observao do objeto de

    estudo, aquando da sua execuo), fomentando a literacia cientfica, bem como na divulgao do

    conhecimento cientfico a uma grande diversidade de pblicos (artifcio de visualidade no polissmico, cuja

    codificao de fcil assimilao e compreenso, com capacidade relacional e de conexo intertextual, e

    poder instrutrio/formativo em contexto de aculturao) (CORREIA, 2011).

    Assim as funes potenciais da Ilustrao Cientfica no contexto moambicano, podem ser resumidas

    enquanto instrumento:

    - de apoio comunidade cientfica

    - de apoio ao desenvolvimento combate iliteracia, auxiliares educao (educadores e tutores)

    - de comunicao/divulgao dos conhecimentos endgenos

    - para perpetuao da memria da cultura antropognica, dos utenslios e do patrimnio construdo

    (etnografia, arqueologia, antropologia)

    Na atualidade, a ilustrao cientfica mantm esse carcter comunicativo do conhecimento cientfico,

    extravasando da academia para a sociedade em geral. Pelo seu potencial de sntese informativa, de

    veiculao e elevada legibilidade, pela capacidade de seduo do observador (ancoragem e impacto visual),

    torna-se uma ferramenta extremamente poderosa na memria e transmisso de conhecimento, bem como

    na sensibilizao de massas para fenmenos naturais e medidas de conservao; desta forma exibe assim

    um imenso potencial num contexto como o moambicano, que detm um extenso patrimnio natural

    selvagem e tambm cultural, mas que tambm evidencia carncias e fragilidades na divulgao do

    conhecimento endgeno e exgeno.

    A Ilustrao Cientfica introduz assim uma ponte dialtica e eficaz entre a cincia e a arte, capaz de alavancar

    o discurso cientfico para uma outra dimenso de compreenso mais eficaz, imediata e relacional capaz de

    agilizar e facilitar o trabalho de quem comunica a mensagem cientfica e de quem a recebe e deseja

    compreender, para aprender mais e/ou ensinar melhor. Numa sociedade/cultura atual onde o poder da

    imagem consubstanciado pela prpria histria da humanidade, graas em muito fisiologia muito prpria

    dos primatas (focalizada maioritariamente no sentido da viso e nas percepes que dai advm, em

    detrimento dos outros sentidos que permitem contatar e interagir com o mundo exterior ao indivduo),

    parece lcito afirmar-se que com a ilustrao cientfica se abre um alucinante mundo de possibilidades e

    benefcios que vale a pena vivenciar, explorar e investir: () podemos fazer aquilo que creio ser to

    necessrio nos nossos dias. E que reencantar o mundo. Uma constrangedora aridez foi-se instalando como

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    nossa condio comum. A culpa no evidentemente nossa. Mas ns herdamos uma ideia de cincia que

    vive de costas para a necessidade de trazer leveza e construir beleza. () Quem ergueu essa parede divisria

    no saber da aptido para ser feliz. (Mia Couto, in COUTO, 2009: 51).

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS NO TEXTO

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    ATAS DO CONGRESSO INTERNACIONAL SABER TROPICAL EM MOAMBIQUE: HISTRIA, MEMRIA E CINCIA IICT JBT/Jardim Botnico Tropical. Lisboa, 24-26 outubro de 2012

    __________________________________________________________________________________________________________________________ ISBN 978-989-742-006-1 Instituto de Investigao Cientfica Tropical, Lisboa, 2013

    Disponvel em: http://static.publico.pt/homepage/infografia/sociedade/ViagensFilosoficas/> (ltimo acesso em Abril de 2013).