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Desenvolvimento da linguagem na criança dos 0-3 anos de idade: uma revisão Rosa Maria Lima Maria de Fátima Bessa Resumo A linguagem constitui um dos mais potentes instrumentos ao serviço da comunicação humana. Distintos posicionamentos teóricos situam a sua génese em patamares que oscilam entre compromissos genéticos e adquiridos. A aquisição dos seus processos e dimensões básicas ocorrem entre os cinco e os seis anos de idade. Este facto justifica o início do novo ciclo de aprendizagens simbólicas, sob forma de símbolos escritos que reflectem uma realidade explícita e veiculam a representação interna da linguagem falada. O desenvolvimento linguístico segue um percurso paralelo a outras áreas tais como a motricidade ,cognição ,a autonomia e a socialização. Estes dados encontram-se na razão directa dos processos neurofisiológicos e psicológicos da criança. Até aos três anos de idade o domínio formal da língua revela inúmeros processos de simplificação fonética e fonológica, revelando o uso da morfosintaxe algumas limitações, quer quanto à qualidade quer quanto à quantidade dos seus enunciados. A dimensão léxico- semântica constitui-se, ainda, como o trampolim de acesso às demais dimensões, partindo de configurações interactivas que a pragmática consubstancia. Uma abordagem ao desenvolvimento da linguagem até aos três anos de idade permite, a nosso ver, perspectivar possíveis atrasos no desenvolvimeto da mesma , partindo do pressuposto que as pautas apresentadas se aproximam da normatividade. Estar atento ao devir linguístico da criança pode representar o evitamento de futuras lacunas no percurso quer interactivo, comportamental, ou mesmo académico. À pergunta “quando intervir” deve responder-se “o mais precoce possível, dependendo da idade e da qualidade de produções”. A leitura deste artigo remete, pois, para um olhar mais atento sobre as pautas primárias de aquisição tanto pré –linguística como linguística, até aos três anos de idade, momento de particular relevância para o reconhecimento da necessidade ou não de atitudes de estimulação reforçada da linguagem infantil. INTRODUÇÃO O processo de desenvolvimento e aquisição da linguagem tem merecido ao longo dos tempos a atenção, empenho e trabalho de vários autores na prossecução de um 1

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artigo sobre desenvolvimento da linguagem da criança. Processo de aprendizado e construção da linguagem. Entendendo como funciona e qual o caminho.

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Desenvolvimento da linguagem na criança dos 0-3 anos de idade: uma revisão

Rosa Maria LimaMaria de Fátima Bessa

Resumo

A linguagem constitui um dos mais potentes instrumentos ao serviço da comunicação humana. Distintos posicionamentos teóricos situam a sua génese em patamares que oscilam entre compromissos genéticos e adquiridos. A aquisição dos seus processos e dimensões básicas ocorrem entre os cinco e os seis anos de idade. Este facto justifica o início do novo ciclo de aprendizagens simbólicas, sob forma de símbolos escritos que reflectem uma realidade explícita e veiculam a representação interna da linguagem falada. O desenvolvimento linguístico segue um percurso paralelo a outras áreas tais como a motricidade ,cognição ,a autonomia e a socialização. Estes dados encontram-se na razão directa dos processos neurofisiológicos e psicológicos da criança.Até aos três anos de idade o domínio formal da língua revela inúmeros processos de simplificação fonética e fonológica, revelando o uso da morfosintaxe algumas limitações, quer quanto à qualidade quer quanto à quantidade dos seus enunciados. A dimensão léxico-semântica constitui-se, ainda, como o trampolim de acesso às demais dimensões, partindo de configurações interactivas que a pragmática consubstancia.Uma abordagem ao desenvolvimento da linguagem até aos três anos de idade permite, a nosso ver, perspectivar possíveis atrasos no desenvolvimeto da mesma , partindo do pressuposto que as pautas apresentadas se aproximam da normatividade. Estar atento ao devir linguístico da criança pode representar o evitamento de futuras lacunas no percurso quer interactivo, comportamental, ou mesmo académico.À pergunta “quando intervir” deve responder-se “o mais precoce possível, dependendo da idade e da qualidade de produções”. A leitura deste artigo remete, pois, para um olhar mais atento sobre as pautas primárias de aquisição tanto pré –linguística como linguística, até aos três anos de idade, momento de particular relevância para o reconhecimento da necessidade ou não de atitudes de estimulação reforçada da linguagem infantil.

INTRODUÇÃO

O processo de desenvolvimento e aquisição da linguagem tem merecido ao

longo dos tempos a atenção, empenho e trabalho de vários autores na prossecução de

um conhecimento cada vez mais “intrínseco” daquele que se afigura fenómeno

complexo e pluridimensional. Este é um processo tão vasto quanto imprescindível de

abordar, sobretudo se pensarmos que a linguagem apresenta um carácter distinto,

assumindo-se como o mais poderoso e conhecido instrumento de comunicação. Torna-

se por isso importante conhecer precocemente este processo de desenvolvimento e

aquisição linguístico, que aprendemos a dominar tão natural e espontaneamente, que

dificilmente pensamos na complexidade que o envolve.

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Interessa-nos com este trabalho conhecer o desenvolvimento linguístico na

infância, em idades precoces, onde a linguagem tem o seu início, a sua emergência.

Falamos em linguagem emergente, referindo-nos a um processo de desenvolvimento

padronizado de aquisição de linguagem na infância, englobando o desenvolvimento da

compreensão (linguagem receptiva) e o desenvolvimento da fala (linguagem

expressiva), (Viana, 2000).

Linguagem emergente assume-se como um meio de aquisição da linguagem

único da espécie, aparenta estar programado de acordo com um padrão predeterminado

como parte da herança básica constitucional do homem. A qualidade do comportamento

de linguagem emergente na infância está rudemente moldada pela natureza e frequência

da amostra de impressão linguística fornecida pelo ambiente (Viana, 2000). Falar em

linguagem emergente é reportarmo-nos ao período linguístico desenvolvimental entre os

0-3 anos de idade.

Importa salientar que o período dos 0 aos 3 anos é crucial para o

desenvolvimento linguístico, pois aqui se verificam todas as etapas do desenvolvimento

da linguagem que vão permitir à criança munir-se das competências necessárias para, a

partir dos três anos e meio ser capaz de dominar a estrutura da língua alvo, capaz de

falar inteligivelmente sem grandes falhas sintácticas (Lima, 2000).

O avolumar de significados e conceitos que representam o mundo que a rodeia e

que a criança tem vindo a explorar e adquirir desde o seu nascimento, irá conduzir

naturalmente ao alargamento do seu conhecimento e pensamento. Também a nível

linguístico a criança vai caminhando, no sentido de apresentar uma crescente fluência

linguística que se mantém em constante reestruturação, dada a necessidade que ela

apresenta em elaborar regras linguísticas que extrai progressivamente do que ouve à sua

volta.

O interesse pelas questões da linguagem e a constatação enquanto docente que

vivência contextos pré-escolares problemáticos nesta área, conduziram à percepção da

necessidade de conhecer/avaliar o desenvolvimento da linguagem em idades tão

precoces. A motivação pessoal e impulsionadora do tema a estudar aparece

sustentabilizada e reforçada através dos estudos nacionais efectuados por Bairrão,

Felgueiras, Fontes, Pereira & Vilhena (1998) e por Dias (2001), que apontam para um

aumento da população infantil com perturbações da linguagem em contextos escolares e

ainda pela igual necessidade sentida por diferentes técnicos (professores, educadores,

psicólogos, pediatras entre outros) em encontrar um meio eficaz de

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identificação/avaliação de crianças tão pequenas, que podem indiciar/apresentar

problemas nesta área e que por isso podem requerer uma intervenção reabilitadora e

educacional precoce. É pois, neste contexto, que sublinhamos a necessidade da

existência de instrumentos que nos possibilitem uma avaliação precoce da linguagem,

de forma a podermos intervir eficaz e atempadamente, sobretudo com as crianças que de

algum modo poderão ser susceptíveis de vivenciarem experiências pobres, ou mesmo

desprovidas de estimulação linguística que consequentemente, podem contribuir

negativamente para o processo natural do seu desenvolvimento

Aquisição e Desenvolvimento da Linguagem até aos três anos de idade

Determinar quanto o uso da linguagem é um acto exclusivamente humano,

requer, em primeiro lugar, uma ligeira abordagem à conceptualização do fenómeno

linguístico. Se o entendermos, na sua dimensão mais abrangente, como uma capacidade

de comunicação, podemos afirmar, então, que existem várias formas de comunicação no

reino animal (a dança das abelhas, o canto das baleias) e cada espécie partilha entre si

formas de comunicação específicas do grupo a que pertence. Também o homem é, por

sua natureza intrínseca, um comunicador.

Labov (1969) afirma que podemos considerar a linguagem como uma forma de

comportamento usada pelos seres humanos num contexto social, para comunicarem

entre si ideias, emoções e necessidades. Chomsky (1971); Sim-Sim (1989); Ruiz &

Ortega (1993) e Castro (1997) referem que a linguagem enquanto forma estruturada é

uma faculdade exclusivamente humana, que serve para a representação, expressão e

comunicação de pensamentos e/ou ideias, mediante o uso de um sistema de símbolos.

Habib (2000), por sua vez, considera que podemos definir linguagem como um

conjunto de processos que possibilitam a utilização de um código ou sistema

convencional com o fim de representar e/ou comunicar conceitos, utilizando para tal um

conjunto de símbolos arbitrários e a possibilidade de combinação dos mesmos.

Todas as perspectivas focadas dirigem os seus pressupostos para a

conceptualização da linguagem como um sistema convencional, constituído por

símbolos arbitrários e com específicas regras de combinação dos mesmos.Tal sistema de

símbolos cujo uso está baseado na necessidade de interacção comunicativa, sobretudo

entre sujeitos que detém saberes co-vivenciados, tem a função de projectar ideias,

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sentimentos e conhecimentos, partindo da representação interna que cada falante detém

dos conteúdos que revela ou exterioriza.

Abordar este tema torna quase inevitável o confronto com a interrogação: sobre

que dimensão vinculadamente humana falamos, capaz de criar e reformular conceitos e

percepções do mundo em geral e do “eu” em particular? Perante que fenómeno nos

encontramos o qual dirige a acção, o pensamento e a vida interactiva no seio de

conglomerados sociais tão diversificados? (Lima, 2000).

A resposta poderá parecer simples ao reafirmarmos que se trata de um código

composto por símbolos que nos permite representar, expressar, comunicar ideias e/ou

sentimentos. Estamos, sem duvida, na presença de um instrumento de comunicação

poderoso, onde a perícia cognitiva e/ou simbólica, individualiza, distingue e demarca a

condição humana dos demais seres vivos (Lima, 2000). Podemos, pois, inferir que

linguagem ultrapassa a sua função meramente comunicativa, assumindo contornos de

suporte do pensamento.

Dificilmente se contesta a diversidade das funções da linguagem no comportamento

humano: expressão, comunicação, tradução simbólica do real, instrumento tanto de

coesão como de diferenciação dos grupos sociais, amplificador da memória individual e

social, condição indispensável à unidade e à identidade do individuo. A linguagem

preenche, desta forma, no homem, múltiplas funções (Richelle, 1976).

2.2 – Aquisição e Desenvolvimento da Linguagem dos 0 aos 3 anos

A infância é a fase da revelação do mundo, da descoberta do funcionamento das

coisas, da partilha de desafios, brincadeiras e até de medos com os outros e com o que

rodeia as crianças desta idade. É um período impregnado de curiosidade e vontade de

explorar no qual as crianças manifestam clara intenção de interagir. Este facto passa,

necessariamente, pela demonstração das crianças em idades mais precoces, de que à

medida que crescem, não lhes basta observar, sentir, explorar - é preciso dizer,

comunicar a alguém tais saberes. Penélope Leach, citada por Acredolo & Goodwyn

(1998) refere, a este propósito, que a principal motivação que impulsiona os bebés para

a linguagem é o facto desta permitir a socialização com os outros.

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Desde cedo percebemos que as primeiras palavras são utilizadas num contexto

de apelo de chamada de atenção do adulto para algo, como se de um convite se tratasse

para partilharem experiências, reforçando aconcepção da linguagem humana como um

instrumento que permite transformar a experiência social individual em experiência

colectiva, a partir do uso de um sistema de símbolos para ambos os agentes da

comunicação partilhada. O mundo da experiência tal como o conhecemos é apreendido

através das competências sensoriais de cada indivíduo. No caso concreto da linguagem

verbal-oral, o canal privilegiado é, sem dúvida, o canal auditivo. No entanto, não

esqueceremos que, como anteriormente referido, todos os outros sentidos são,

inevitavelmente, interferentes neste complexo processo de desenvolvimento e aquisição

da linguagem. A percepção auditiva, desenvolvida a partir de idades muito precoces e a

sensibilidade da criança para as sonoridades do seu meio,ocorrem já durante a vida

intra-uterina, perante a exposição aos ruídos internos do ventre materno aos quais está

constantemente submetida. Na realidade, Gleason & Ratner (1999) indicam-nos um

conjunto de autores que reforçam esta ideia, afirmando que os bebés são capazes de

ouvir antes do seu nascimento podendo, inclusive, demonstrar preferência pela voz da

sua mãe pouco tempo após o nascimento. Serão ainda capazes de discriminar

expressões emitidas pela mãe na língua materna, de expressões emitidas numa língua

estrangeira por volta dos quatro dias de idade, o que implica um certo grau de

aprendizagem na vida intra-uterina.

Berger & Thompson (1997) referem-nos investigações levadas a cabo por

DeCasper & Fisher e Cooper & Aslin, na década de 90, onde se verifica que bebés

recém-nascidos demonstram preferência por sons falados em lugar de outros,

demonstram preferência pela linguagem adulto-para-criança (baby-talk ou motherese) e

manifestam clara preferência pela voz da sua mãe no lugar de vozes de outros adultos.

Acerca das interacções verbais e do discurso dirigido às crianças pelos adultos que com

elas privam, Sim-Sim (1998), afirma que estes apresentam determinadas características

específicas (frases curtas, articulação clara, entoação marcadamente expressiva e

vocabulário simplificado) que parecem promover a apreensão da língua por parte da

criança, num discurso normalmente denominado por maternalês.

Cabe aqui um parêntesis para distinguirmos dois aspectos determinantes neste

processo de desenvolvimento e aquisição da linguagem: percepção auditiva e

discriminação. Referimos já a importância de todos os sentidos enquanto interferentes

neste processo, na medida em que são os receptores da informação que nos rodeia.

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Sabemos que a recepção de estímulos é a primeira etapa de um processo cognitivo cuja

finalidade é o conhecimento humano. No entanto, de toda a informação recebida, nem

toda é percebida. Tal facto pode ficar a dever-se às características do estímulo ou ao

funcionamento do sistema de processamento. A informação percebida é denominada

percepção e esta é caracterizada pelo órgão dos sentidos que a recepcionou e serviu de

veículo de transmissão. No caso dos estímulos sonoros, falamos de percepção auditiva,

que envolve, necessariamente, o processo de detecção de sinais acústicos, assim como o

reconhecimento das suas respectivas características, como a frequência, a intensidade,

etc (Sim-Sim, 1998). As competências perceptivas possibilitam assim o reconhecimento

da existência de estímulos, no caso concreto os estímulos sonoros. À competência de

detectar a presença de um estímulo e distinguir dois estímulos diferentes chamamos

discriminação (Sim-Sim, 1998).

A literatura especializada demonstra-nos que a linguagem surge em todas as

crianças normais de acordo com referências cronológicas similares. A aquisição da

linguagem acontece com base numa ordem constante, embora o ritmo de evolução se

revele de grande variabilidade. Tal variação será de, aproximadamente, seis meses

relativamente à margem normal de variação no desenvolvimento cronológico (Peña-

Casanova, 1994).

Tivemos já oportunidade de referir que as aquisições linguísticas devem ser

enquadradas no contexto geral do desenvolvimento motor, cognitivo e psicossocial da

criança. Para além disso,devemos entender o desenvolvimento da linguagem tendo em

conta os aspectos maturativos, de carácter neurobiopsicológico, assim como os aspectos

relacionados com a estimulação ambiental (Lima, 2000). A aquisição da linguagem é o

resultado de um programa (porventura especifico) que se transmite, geneticamente.

Porém, a materialização de tal programa só parece ser possível se a criança crescer num

ambiente onde as trocas linguísticas ocorram (Sim-Sim, 1998).

Analisaremos, em seguida, as etapas durante as quais o processo linguístico da

criança se incrementa. Boutton (1977) defendeu que a aquisição da linguagem na

criança se faz ao longo de três etapas essenciais, cujos limites intermédios são

relativamente arbitrários, mas cuja sucessão se impõe do ponto de vista cronológico. O

autor distribuiu-as em três etapas: pré-linguagem (0 aos 12/18 meses de idade) primeira

linguagem (12/18 aos 30/36 meses) linguagem (a partir dos 36 meses).

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Autores como Del Rio & Vilaseca (1988), Crystal (1981) e Rondal (1984),

distinguem quatro etapas do desenvolvimento e aquisição da linguagem: a) pré-

linguagem (0-12 meses), b) primeiro desenvolvimento sintáctico (12-18 meses), c)

expansão gramatical (30-36/36-42 meses) e d) últimas aquisições (> 54 meses). Por seu

turno, Ingram (1989) propõe-nos uma divisão mais específica, considerando cinco

períodos de desenvolvimento da linguagem, a saber: a) pré-linguistico (0-12 meses, b)

enunciados de uma palavra (12-18 meses), d) primeiras combinações (18-24 meses), e)

frases simples (> 24 meses) e finalmente f) frases complexas. Desta forma constatamos

que as distintas opções frente à distribuição em períodos de desenvolvimento linguístico

marca a questão da variabilidade presente nos distintos autores, relativamente ao

processo de aquisição /desenvolvimento linguístico infantil.

Acosta et al (2003), recordam-nos que as diferentes etapas pelas quais

normalmente passam as crianças até adquirirem o sistema gramatical da sua língua têm

sido motivo de consenso entre as distintas perspectivas teóricas da psicolinguística

evolutiva. Os autores continuam, afirmando que as diferenças existentes entre as

perspectivas em causa emergem à medida que estas tentam explicar e salientar a

importância de factores como: a) consideração gramatical de determinadas produções

infantis, b) a interpretação dos mecanismos responsáveis pelo surgimento de diferentes

estruturas e c) a importância atribuída aos aspectos formais e funcionais na explicação

das aquisições gramaticais próprias de cada etapa evolutiva.

Fromkim & Rodman (1993) consideram que a língua é adquirida por fases e que

cada fase sucessiva se aproxima mais da gramática do adulto. Consideram ainda que,

das observações feitas em crianças de todo o mundo acerca das suas diferentes áreas

linguísticas, se verificou que as fases são muito semelhantes, senão universais,

salvaguardando sempre a questão da variabilidade intra-individual da aquisição

linguística..

Os primeiros estudos acerca da aquisição da linguagem assentaram em diários

escritos por pais. Estudos mais recentes socorrem-se já de técnicas de vídeo, gravações,

e experiências planificadas. A par das gravações orais espontâneas das crianças,

desenvolveram-se, igualmente, técnicas de motivação que permitem que a produção e

compreensão linguística da criança possam ser controladamente estudadas.

Embora possamos encontrar, segundo diferentes autores, diversas formas de

apresentar as etapas do desenvolvimento linguístico da criança dos 0-3 anos, parece-nos

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evidente o consenso existente entre os vários autores ao distinguirem dois períodos

cruciais deste desenvolvimento: o pré-linguistico e o linguístico.

A pré-linguagem constitui um momento de aprendizagem linguística durante a

qual todas as estruturas neurofisiológicas e psicológicas se “preparam” para uma etapa

que requer, a estes dois níveis, suficientes destrezas para prosseguir o percurso de

apropriação de todas as “nuances”, em todos os níveis da linguagem (Lima, 2000). O

choro é a primeira manifestação sonora produzida pelo bebé. Por sua vez, o contacto

ocular surge como primeiro estimulo para iniciar qualquer actividade verbal e/ou não

verbal. Ele vai desempenhar um papel fundamental na comunicação que a mãe

estabelecerá com o bebé nos primeiros meses de vida. Neste período o bebé realiza

produções sonoras que traduzem formas de comunicação puramente vegetativas, que se

encontram normalmente associadas a estados de bem-estar ou desconforto. Nunca será

demais reforçar a importância desta forma precoce de interacção dos apelos vocais e da

amplitude semântica que representa o corpo da mãe enquanto continuidade do corpo da

criança (Lima, 2000). Vihman, citado por Lima (2000), refere que, em fases remotas, os

gestos silenciosos da criança podem assumir-se como percursores da produção vocal, o

que nos leva a crer na existência de uma atenção por parte da criança aos gestos visíveis

da faces humanas que a rodeiam. A proprioceptividade oferecer-lhe-à uma “grelha” para

a interpretação das expressões faciais observadas. A autora salienta ainda a importância

da percepção visual enquanto condição fundamental para a aquisição de uma língua,

percepção esta que será igualmente determinante para explicar a aquisição precoce das

vogais e consoantes. Kuhl & Meltzoff, citados por Berger & Thompson (1997),

corroboram esta ideia ao afirmar que os bebés aprendem ràpidamente a reconhecer

certos sons da fala através de certas posições que a boca assume ao articula-los,

nomeadamente o som “u” que articulamos com os lábios “arredondados” e o som “a”,

que emitimos com a boca mais aberta.

Importa ainda referir a relevância dos primeiros sons produzidos pelo bebé,

nomeadamente o grito, pois este assume um papel fisiológico importante, na medida em

que, ainda que de uma forma mecânica, permite à criança aprender a coordenar a

respiração em função de uma intencionalidade e duração. Este mecanismo irá revelar-se

extraordinariamente importante para a produção de fala. Paralelamente aos sons, os

bebés em idade precoce realizam movimentos, caracterizados por reflexos inatos,

imagem de condutas de sobrevivência básica, como a sucção e deglutição, também eles

igualmente importantes para a produção de fala. O primeiro será determinante porque

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vai permitir a agilização dos lábios, órgão de enorme importância para a mobilidade

buco-articulatória; o segundo permitirá coordenar os movimentos da respiração e

deglutição.

Se, nas primeiras semanas de vida, o bebé tem a sua comunicação bastante

circunscrita aos sons reflexos, entre a 8ª e a 20ª semana damo-nos conta de um bebé

mais responsivo, isto é menos reflexo. Surgem indícios de que o bebé parece saber

manifestar o seu bem-estar e o gosto pela companhia dos seus interlocutores,

manifestados pela produção de risos e arrulhos, revelando, simultâneamente um

aumento do seu leque de comunicação. Nesta fase, o sorriso do bebé assume uma

primordial manifestação comunicativa, tornando o bebé mais sociável - falamos dos

primeiros sorrisos intencionais. De acordo com Rigolet (2000), o sorriso é determinante

no desenvolvimento de competências de comunicação do bebé, pois representa três

elementos essenciais: a) o sorriso bem como toda a expressão facial associada, estão

impregnadas de significações socio-afectivas para o interlocutor e representam as

primeiras significações positivas de bem-estar físico, psíquico e afectivo; b) o sorriso é

um factor responsável pelo aumento da duração do episódio interactivo, gesto que faz

passar uma mensagem e estimulo de encorajamento para iniciar e/ou prolongar uma

interacção comunicativa; c) o sorriso serve para estabelecer e manter um contacto à

distância e uma relação de reciprocidade entre o bebé e o interlocutor.

Quando um bebé nos sorri é quase impossível não respondermos com outro

sorriso. Este simples gesto reveste-se da importância de promovermos as primeiras

alternâncias de tomada de vez na comunicação, as quais se reforçam mùtuamente. Ao

verificar prazer nesta comunicação recíproca, o bebé vai sentir-se estimulado para tentar

provocar outros episódios interactivos deste tipo.

Pelo 4º mês o bebé é já capaz de seguir as deslocações da sua mãe seguindo

também a linha do olhar. E como, entre o 4º e 5º mês, as competências motoras do bebé

evoluíram,ele começa a pegar nos objectos que a rodeiam e os contactos oculares com a

mãe reduzem-se. O bebé entra no seu lento processo de autonomia. É, pois, importante

que, nesta fase, a mãe e/ou prestadora de cuidados atribua uma importância crucial às

rotinas diárias, momentos que se repetem um certo número de vezes durante o dia,

sempre dentro dos mesmos padrões e que são determinantes para fornecer as bases para

a primeira aprendizagem semântica (Rigolet, 2000).

Pretendemos com isto dizer que o bebé, através do adulto, vai poder “atribuir”

uma primeira “denominação” aos objectos que o rodeiam. Mães e/ou prestadoras de

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cuidados trocam contactos oculares com o bebé, mantendo uma atenção conjunta

durante os intercâmbios de comunicação intrínsecos a cada rotina diária. Durante estes

momentos, ambos participam numa acção conjunta. Estas actividades são geralmente

acompanhadas de comentários linguísticos e de manipulações dos objectos associados à

acção que ambos vêem em comum. Durante uma actividade de rotina diária, a mãe e/ou

prestadora de cuidados fala com o bebé do que está a acontecer, das acções que está a

realizar, dos objectos que está a utilizar, comentando igualmente as atitudes activas

observadas no bebé, os seus sentimentos e fazendo a sua interpretação. Por sua vez, o

bebé vai fornecer-nos pistas, não só através dos seus sorrisos, vocalizações e entoações,

mas também dos gestos e expressões faciais - conjunto de mímicas chamadas

paraverbais, que facilitam a descodificação das suas mensagens ainda rudimentares.

Deste modo se promove o desenvolvimento das bases da aquisição do vocabulário de

compreensão (receptivo) e de produção (Rigolet, 2000).

A partir do 4º mês surge outro tipo de intercâmbios comunicativos denominado

protoconversação. Tratam-se de momentos de interacção entre o bebé e o adulto

baseados em contactos oculares e tácteis, proximidade física, sorrisos, palreios,

mímicas, onde a actividade linguística assume papel de antecessor da conversação, uma

vez que o seu conteúdo é ainda desprovido de sentido linguístico, mas onde se verificam

já entoações, variações de alturas de tom e de intensidade que contêm em si uma

estrutura temporal e função de intercâmbio em tudo semelhantes ao da conversação.

Rigolet (2000), afirma que se, por um lado, este tipo de intercâmbios tem como

finalidade afirmar o contacto social, por outro serve como forma de treino da sucessão,

da reciprocidade da alternância de vez - factores importantes no estabelecimento de

quem quer dialogar.

Durante o primeiro ano de vida da criança as vocalizações vão dar lugar às

lalações, onde se verificam já algumas aproximações às sonoridades da língua sob

forma de produção de segmentos silábicos isolados, em que o som vocálico ou o som

consonântico são exageradamente prolongados e acompanhados de variações de

intensidade. À medida que a criança adquire uma maior coordenação da respiração, dos

movimentos da boca, o que supõe a participação voluntária de uma organização cada

vez mais hábil dos mecanismos do S.N.C., os sons que inicialmente eram vocálicos,

indiferenciados e mais ou menos articulados, vão dar lugar a uma actividade mais

coordenada, mais intencional, estabelecendo-se uma espécie de diálogo entre as figuras

mais próximas da criança, pais e/ou prestadores de cuidados.

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Posteriormente surge o balbucio, actividade que começa por ser reflexa.Ela vai,

no entanto, evoluindo de tal forma, que assistimos à passagem da produção de sons e

ruídos de qualquer tipo para uma adaptação cada vez mais próxima dos modelos

fonéticos ouvidos. Progressivamente, a criança vai de encontro ao sistema fonético da

sua língua materna. Aimard, (1998) refere que esta evolução pode ser facilmente

compreendida na medida em que, ao ouvir o som que produz, a criança estabelece um

vínculo entre a forma acústica produzida e o complexo esquema motor que realiza para

articular tal fonema.

Por volta dos 5/6 meses, assistimos a um período de retro-alimentação, isto é, a

criança gosta de repetir os sons que vai produzindo e quanto mais produz mais quer

produzir. Fá-lo por prazer, para exercitar e porque se ouve. Estamos perante o prazer da

produção e perante auto-imitações que reforçam a ligação forma-acústica/forma-motora,

que se assemelha a uma espécie de esquema memorizado do fonema (Aimard, 1998).

Enfatizamos aqui o papel da audição como sentido fundamental para o desenvolvimento

e aquisição da linguagem, pois através dele se automatizam os movimentos necessários

para a produção dos diferentes sons da língua. Para que a criança pratique os seus jogos

vocais é imprescindível que ela se ouça, para que, desta forma, se estabeleça a

associação entre a emissão de um som e os movimentos fono-articulatórios necessários

para a sua produção/expressão.

A par das auto-imitações, constatamos a existência das hetero-imitações ou

imitações diferidas, isto é, percebemos que o bebé ouve sistematicamente os adultos que

com ele interagem e/ou que se encontram ao seu redor e que as produções destes,

embora constituam apenas um reportório fonético, assumem um papel modelador da

língua materna (Aimard, 1998). Esta situação contribuirá para uma maior facilidade de

reconhecimento e produção por parte do bebé desses fonemas. Contudo, aos 5/6 meses

os balbucios do bebé são menos especializados, assumindo ainda um registo muito mais

vasto que o da língua materna. Esta especialização vai evoluindo ao longo dos meses e,

mediante o “banho” linguístico de que o bebé é alvo, apresentando-se sem

ambiguidades por volta dos 18 meses (Teyssèdre & Baudonnière, 1997).

Por volta dos 6/7 meses as emissões do bebé, revestem-se de repetições de certas

sílabas, “ma”, “da”, “ba”, tornando-se mais frequentes as repetições por volta dos 8

meses. Distinguem-se já estruturas de entoação nas diferentes produções que podem

inclusive indicar emoções (Berger & Thompson 1997).

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Por volta dos 10 meses apercebemo-nos que a variedade de sons balbuciados se

reduz, verificando-se, desta forma, contornos de uma especialização linguística e

abandonando-se a procura anterior de produzir sons pelo simples prazer auditivo. Agora

o bebé encontra-se numa fase de reduplicação silábica. Brinca com formas repetidas,

apresentando uma estrutura que assenta na combinação consoante/vogal (CV/CV)

repetida em cadeia (“mamama” ou “babababa”). À estrutura reduplicada

consoante/vogal (CV/CV), sucedem-se as produções de não reduplicação como “ma”,

“pa”, situação que parece ser claramente influenciada pelas capacidades auditivas da

criança. Sim-Sim (1998) diz, a propósito deste facto, que é nesta fase (entre os 10/12

meses) que se verifica um afastamento entre o comportamento dos bebés surdos e

ouvintes, até aqui tão semelhantes em termos desenvolvimentais. A autora continua

afirmando que, embora se verifique um decréscimo de produção fónica em ambas as

populações, nos bebés surdos ocorre o silêncio, enquanto nos bebés ouvintes assistimos

a uma qualitativa melhoria articulatória e a um aumento na diversidade de sons

produzidos. Regista-se, agora, uma aproximação mais clara da palavra, sendo que na

grande maioria dos casos surgem as proto-palavras, isto é uma utilização consistente de

uma cadeia fónica por parte da criança, para designar um objecto, pessoa ou situação

sem que esta designação tenha qualquer correspondência com o léxico que constitui a

língua mãe, tal o caso de “pu-pu” para almofada ou de “mo-mo” para chupeta. (Sim-

Sim, 1998).

Um dado importante e que não podemos deixar de referir é que, durante o

período de balbucio, o gesto aparece como complemento da comunicação que se

pretende estabelecer (Berger & Thompson 1997). Um dos primeiros gestos a ser usado

pela criança é o de apontar. Aos 9 meses o bebé é já capaz de vocalizar e apontar para

um objecto, deixando bem claro ao adulto a mensagem que lhe quer transmitir. Entre os

9 e 12 meses ele domina alguns gestos sociais convencionais como dizer adeus ou

abanar com a cabeça para dizer sim ou não (Papalia et al 2001). Assistimos assim à

associação gesto-verbalização, podendo contudo esta verbalização estar ainda longe do

padrão linguístico a que a criança está exposta. Todavia, este comportamento manifesta

clara intencionalidade do que a criança pretende com a acção que desenvolve. Regista-

se, também neste período, uma ocorrência de sons com variações de acentuação e de

diversos padrões de entoação (estruturas a que obedecem as variações de intensidade,

tom, duração e ritmo da cadeia falada). Sim-Sim (1998), caracteriza estes padrões de

entoação como cadeias prosódicas, igualmente designadas por gíria entoacional.

12

Page 13: Desenvolvimento Da Linguagem Na Criança Dos 0-3 Anos de Idade Uma Revisão Sonhar_Lima-Bessa

Tratam-se de cadeias prosódicas com formas de entoação, que assumem contornos de

perguntas, pedidos ou manifestações de desconforto. O bebé encontra-se a um pequeno

passo da produção das primeiras palavras, situação que ocorre entre os 9/12 meses.

Estas palavras referem-se a pessoas, objectos ou acontecimentos do concreto vivencial

da criança, onde se constata já a existência de significante/significado – o que a criança

refere é o que ela efectivamente pretende. Para muitos autores, o aparecimento das

primeiras palavras é o marco que determina o final do período pré-linguistico e a

entrada no período linguístico.

Antes de avançarmos para o período linguístico e como forma de resenha do

período anterior, parece-nos pertinente referir os autores Oller & Lynch, citados por

Lima (2000), na medida em que diferenciam cinco etapas do período pré-linguistico

numa tentativa de sistematização à cronologia da emergência produtiva da criança.

Passamos a explicitar:

- A primeira etapa reporta-se à idade entre os 0-2 meses, onde se podem

observar vocalizações reflexas, nas quais se incluem sons e gritos vegetativos. A

fonação é normal, encontrando-se ainda os articuladores em repouso.

- A segunda etapa que vai do 1º ao 4º mês é caracterizada pela produção de

sílabas arcaicas. Aqui podem já observar-se sequências fónicas constituídas por sílabas

primitivas claramente perceptíveis, formadas por sons quase vocálicos (ecolália),

particularmente sequências de [o] e sons quase consonânticos, principalmente [g] e [k],

articulados na parte posterior da garganta. Esta é uma etapa de prazer para a criança,

devido ao crescente controlo da fonação e dos parâmetros de frequência das

vocalizações.

- A terceira etapa diz respeito ao balbucio rudimentar e situa-se entre o 3º e 8º

mês. Nesta fase a criança tem já um poder surpreendente para jogar com a voz,

verificando-se contrastes significativos a nível da frequência (alternância entre sons

agudos e graves) e a nível de intensidade (gritos seguidos de sussurros).

Surgem por volta do 6º mês as primeiras combinações de consoante-vogal (CV),

designadas pelo autor de “protossilabas”, uma vez que se tratam de produções que se

encontram ainda afastadas do padrão linguístico convencional e também porque o bebé

apresenta uma articulação demasiado relaxada e lentidão nos movimentos de abertura e

fecho do tracto vocal.

- A quarta etapa caracteriza-se pelo balbucio canónico, que se situa entre o 5º e o

10º mês. Surge, neste momento, a reduplicação silábica, constituída por sílabas do tipo

13

Page 14: Desenvolvimento Da Linguagem Na Criança Dos 0-3 Anos de Idade Uma Revisão Sonhar_Lima-Bessa

consoante-vogal (CV) bem formadas. Encontramo-nos na presença de uma cadeia de

sílabas do tipo “mamama” ou “papapa”, produções silábicas estas que posteriormente se

diversificarão, dando origem ao reforço da percepção, possibilitando desta maneira uma

gradual diferenciação entre os diversos e distintos agregados sonoros.

- A quinta e última etapa é denominada balbucio misto e situa-se entre o 9º e o

18º mês. Nesta etapa ocorrem produções de palavras dentre do balbucio. Este contém,

simultâneamente, lexemas identificáveis como elementos significativos e sílabas não

reconhecíveis como unidades léxicas.

O período pré-linguistico estabelece uma fronteira bem demarcada para o

período que seguinte – o linguístico. De acordo com Lima (2000), o que distingue o

período pré-linguistico das etapas posteriores é a dificuldade encontrada por parte da

criança para produzir com variedade e aproximação os elementos fonético-fonológicos

da língua mãe, impossibilitando deste modo a emergência de um sistema lexical que

referencie a realidade concreta e objectiva. Tal ocorrência começará a emergir no final

do primeiro ano de vida, como analisaremos no ponto seguinte.

De acordo com uma síntese de investigações citada por Castro & Gomes (2000),

considera-se, na actualidade, que o primeiro ano de vida constitui um processo

preliminar ao desenvolvimento da linguagem, reconhecendo-se a sua importância para

apurar mecanismos de percepção e de produção de fala.

Podemos concluir que, durante o primeiro ano de vida a criança, se assistem a

diversas situações, manifestamente representativas do caminho a percorrer até ao

período linguístico e que parecem conjugar-se para a efectiva intencionalização

comunicativa e codificação linguística.

“As palavras são as ferramentas básicas da linguagem” (Sim-Sim, 1998, p.121),

assumindo-se, por consequência, como símbolos que representam determinada

realidade. Atribuir um símbolo ou, se quisermos, um rótulo à realidade, é o mesmo que

nomear essa realidade a qual pode ser um objecto, pessoa ou situação. Neste processo

de nomeação, a palavra aparece como a representação verbal dessa realidade.

As palavras são rótulos usados para representar entidades e conceitos. A

aquisição do significado das palavras é realizada através do contexto, por isso se

compreende que as primeiras palavras da criança estejam intimamente ligadas ao seu

concreto vivencial e ao ambiente que a envolve. Torna-se pertinente referir que a

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Page 15: Desenvolvimento Da Linguagem Na Criança Dos 0-3 Anos de Idade Uma Revisão Sonhar_Lima-Bessa

relação estabelecida entre o nome e a entidade a que esse nome se refere (referente) é

completamente arbitrária. Trata-se de pura convenção social, partilhada pelos falantes

de uma mesma língua para se referirem a determinado conceito ou entidade.

Esta pequena introdução ao período linguístico pareceu-nos fazer sentido, na

medida em que de certa forma sustentabiliza o início das produções verbais da criança.

Estas revestem -se já de um carácter manifestamente linguístico, fundamentado pela

intencionalidade comunicativa e verificado na aquisição dos elementos que compõem

uma língua (fonemas) bem como da forma de combiná-los entre si para que obtenham

significado. Esta ocorrência manifesta-se a partir do s 12 meses de vida do bebé.

Após o primeiro ano de vida, as crianças começam a usar repetidamente o

mesmo som para significar a mesma coisa (Fomkin & Rodman, 1993). A criança

apercebe-se de que os sons se relacionam com os significados e produzem as primeiras

palavra - é como se descobrisse que as coisas têm nome, colocando a voz ao serviço

desta nova função.

A produção do primeiro vocábulo surge após o período caracterizado pelo

padrão silábico consoante/vogal (CV), sendo as primeiras palavras monossílabos ou

reduplicações silábicas (CVCV), já produzidas no período anterior. Ainda que se

verifique uma estreita semelhança entre os sons do período do balbucio (reduplicação

silábica) e as primeiras palavras o que torna, por vezes, difícil a identificação destas

últimas, observa-se que, a partir do início do segundo ano de vida, a criança passa a

atribuir consistentemente a determinados sons a mesma significação, referencial ou

expressiva, como é o caso de “bo” (para bola) ou ó-ó (para cama), popó, mamã, etc.

(Sim-Sim, 1998).

Estas primeiras manifestações linguísticas têm um carácter sincrético - a criança

expressa-se através da palavra-frase, igualmente denominada de holofrase. As primeiras

palavras caracterizam-se por se utilizar um número limitado de elementos fonéticos e

referem-se- a categorias de objectos e/ou acções mais amplas que as aceites na

linguagem adulta. As palavras desta fase parecem esforços para expressar ideias

complexas, ideias que um adulto expressaria através de orações (Dale, 1992). A

holofrase é a palavra que exprime e transmite uma ideia completa (Papalia et al, 2001).

Inicialmente, a criança expressa-se através da palavra-frase, num contexto muito

limitado,o qual vai sendo generalizado. A criança exprime desejos e refere-se a objectos

ou aspectos da vida quotidiana. Nesta fase a criança usa apenas uma palavra para

exprimir conceitos ou predicações que mais tarde serão expressos por estruturas mais

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Page 16: Desenvolvimento Da Linguagem Na Criança Dos 0-3 Anos de Idade Uma Revisão Sonhar_Lima-Bessa

complexas – as frases. Fromkim & Rodman (1993) referem que as palavras na fase

holofrásica servem três funções principais: a) estão ligadas à própria actividade da

criança (ou desejo de actividade, como quando uma criança diz “pão”, porque deseja

comer pão, ou “upa”, porque deseja que o levantem ou tirem da cadeira), b) são usadas

para transmitir emoções (o uso da negativa “não”, muitas vezes usada de forma

imperativa, como quando alguém pretende tirar um objecto da criança), c) servem ainda

uma função de denominação.

Os enunciados de uma palavra devem ser entendidos no contexto em que são

produzidos. Por isso mesmo, o uso da comunicação verbal nesta fase faz-se acompanhar

de formas não verbais ou paraverbais (mímica, gestos postura, entoação) convencionais

(apontar, abanar a cabeça para expressar um “não” ou um “sim”, dizer adeus),

enriquecendo a comunicação e completando as lacunas de vocabulário ainda escasso

neste período e permitindo à criança fazer entender-se sem dificuldade. Durante este

período verifica-se um grande desfasamento entre o nível de compreensão e o nível da

produção. A criança é capaz de compreender estruturas gramaticais, porém o seu nível

de produção circunscreve -se ainda à palavra-frase, fazendo recurso a cinco ou seis

palavras. Compreende já muitas palavras mesmo antes de ser capaz de as utilizar, ou

seja, o seu vocabulário passivo desenvolve-se mais rapidamente do que o seu

vocabulário activo (Papalia et al, 2001). No decorrer deste percurso a criança utiliza

com frequência estratégias de sobre-extensões (generalizações) e sub-extensões. As

primeiras remetem-nos para uma utilização abrangente das palavras por parte da

criança, na medida em que esta atribui uma característica comum a vários objectos, que

por sua vez, servirá para incluí-los na mesma categoria lexical. Por exemplo, todos os

animais de quatro patas são cães. As segundas remetem-nos para o uso mais restrito da

palavra, o que equivale a reduzir distintos referentes a uma única e particular forma

(Lima, 2000). Quando a criança se refere a sapato, refere-se exclusivamente ao seu

sapato, ainda não sabe aplicar esta palavra noutro contexto. Estes processos podem ser

interpretados como referindo-se a estratégias/aproximações utilizadas pela criança, para

aceder ao pleno significado das palavras.

Independentemente das diferenças individuais, as primeiras produções lexicais

da criança são muito semelhantes, incluindo nomes de pessoas, objectos ou

acontecimentos importantes para a criança. São, normalmente, palavras ligadas à

família (mãe, pai, avó…), a alimentos preferidos (leite, banana…) a animais, assim

como a respectivos sons onomatopaicos (miau, au-au…). Também a composição fónica

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da palavra é relevante no processo de produtivo, dado que a criança se confronta com

sons mais difíceis de articular que outros. Por tal motivo, quanto maior facilidade

articulatória revelar a criança, maior probabilidade haverá de inclusão dos diferentes

vocábulos no léxico infantil (Sim-Sim, 1993).

Dos diversos estudos realizados sobre o desenvolvimento da linguagem

confirma-se que, salvaguardando as variações individuais de cada criança, o

crescimento lexical nos primeiros tempos de vida parece regular-se por padrões

universais (Sim-Sim, 1998). Verificamos já que a primeira palavra aparece por volta dos

12 meses. Para alguns autores pode até ocorrer mais precocemente, entre os 9-12 meses

e, deste momento até aos 6 anos de idade, o domínio e aumento vocabular dá-se de

forma extraordinária. Contudo, a fase mais marcante deste período dá-se entre os 18 e

os 42 meses. Menyuk (1972), citado por Sim-Sim (1998), refere que aos 2 anos e meio

o número de palavras usadas pela criança é seis vezes superior ao número produzido aos

2 anos e aos 3 e meio a produção dos dois anos e meio triplica.

No quadro I podemos observar o registo do crescimento lexical nos primeiros

meses de vida.

Quadro I – Crescimento lexical nos dois primeiros anos

IDADE EM MESES COMPREENSÃO PRODUÇÃO

9-12 meses +/- 10 palavras 1ª palavra

14-15 meses +/- 50 palavras +/- 10 palavras

17-19 meses +/- 100 palavras +/- 50 palavras

Menyuk, 1988

17

Page 18: Desenvolvimento Da Linguagem Na Criança Dos 0-3 Anos de Idade Uma Revisão Sonhar_Lima-Bessa

Durante um período de seis meses (entre os 12 e os 18 meses), além da produção

de holofrases e à mistura com elas, a criança pode produzir em maior ou menor

quantidade o que os psicolinguistas chamam de “jargão”. Tratam-se de produções

sonoras equivalentes aos sons da língua materna, mas que não se encontram

organizados com os padrões combinatórios da mesma. A criança, numa cadeia de sons

pertencentes à sua língua materna, produz um verdadeiro discurso com uso adequado

dos paraverbais e dos traços supra-segmentais. Deste modo o adulto, em função da

situação contextual, poderáreconhecer diferentes tipos de diálogos nos quais aparecem

algumas holofrases, ainda que as palavras linguísticas propriamente ditas não tenham

sido produzidas (Rigolet, 2000).

A idade de 18 meses é apontada como o marco cronológico do surto lexical no

processo de desenvolvimento da linguagem. Trata-se do crescimento repentino do

vocabulário que, num intervalo de tempo relativamente curto, aumenta tanto ou mais do

que tinha aumentado num intervalo de tempo mais extenso (Castro & Gomes, 2000).

Apesar dos 18 meses representarem um marco cronológico importante do surto lexical,

não pode contudo ser encarado de forma rígida. Castro & Gomes (2000), sublinham o

facto de que esta proximidade se estabelece à medida que o tempo passa, apesar da

proximidade verificada entre a idade e a linguagem numa fase inicial.Isto é, deixa de

poder estabelecer-se fronteiras cronológicas tão rígidas entre os períodos de aquisição

linguística. Se por volta dos 12 meses a criança percebe a primeira palavra, aos 18

começa a produzir enunciados de duas palavras e, por volta dos 2 anos, combina

regularmente duas ou três palavras. Após este período, os marcos cronológicos deixam

de ser tão fiáveis. Castro & Gomes (2000) alertam-nos para o facto de, mesmo quando

nos referimos aos períodos dos 12 e 18 meses, os marcos cronológicos deverem ser

entendidos de modo aproximativo, tendo sempre presente a variabilidade de aquisição

linguística de cada criança.

Constatamos já a importância do avanço linguístico que ocorre aos 18 meses,

quando a criança junta duas palavras para expressar uma ideia (“João, rua”, para

significar que quer ir à rua). Umgrupo de investigadores referidos por Papalia et al

(2001) salientam que a primeira frase produzida pela criança está normalmente

relacionada com acontecimentos do quotidiano, objectos, pessoas ou actividades que a

rodeiam.

18

Page 19: Desenvolvimento Da Linguagem Na Criança Dos 0-3 Anos de Idade Uma Revisão Sonhar_Lima-Bessa

Este tipo de enunciado é denominado de discurso telegráfico, por incluir apenas

algumas palavras essenciais. Segundo Fromkin & Rodman (1993), as expressões de

duas palavras produzidas pela criança parecem ser, inicialmente, cadeias de duas

expressões holofrásicas anteriores contendo o seu próprio e único contorno de tom.

Porém, logo depois desta justaposição, as crianças começam a formar verdadeiras frases

de duas palavras, revelando a existência de relações sintácticas e semânticas precisas,

onde o contorno de entoação das duas palavras abrange toda a frase, em vez de haver

uma pausa entre as duas palavras.

A sequência de duas palavras exige ordenação das mesmas e, por isso, de

acordo com Sim-Sim (1993), esta é a manifestação clara do aparecimento das produções

frásicas. São produções ainda muito circunscritas ao concreto vivencial da criança,

caracterizadas basicamente pela combinação de nomes e verbos (raramente usa

adjectivos). É um discurso (como já foi referido) denominado de telegráfico, pois é

muito limitado quanto ao tipo de relações expressas e, consequentemente, à informação

transmitida (Sim-Sim, 1993).

As combinações de palavras expressam essencialmente acções (bebé, papa),

relações de localização (cão rua), de posse (é meu), de não existência (não há) e de

recorrência (mais popó). Sim-Sim (1993), refere-nos estudos levados a cabo em

diversas línguas que apontam para a expressão de mesmo tipo de relações expressas nas

primeiras sequencias frásicas.

As produções do período telegráfico não encontram consenso na literatura

especializada quanto à explicação teórica da combinação de palavras. Enquanto alguns

autores privilegiam a categorização semântica, outros colocam maior ênfase na

organização sintáctica (Sim-Sim, 1993).

Não sendo nosso propósito aprofundar esta questão, não podemos,

contudo ,deixar de notar que é perceptível a constância do tipo de relações expressas

pelos enunciados das crianças nesta fase. Estudos realizados em diferentes línguas

(Francês, Russo, Japonês Hebreu, Castelhano, Inglês) por Brown (1973), Gleason

(1985), citados por Sim-Sim (1993) apontam para a existência de uma semelhança

notável na estrutura dos enunciados das crianças. Assim,todos os enunciados remetem

para objectos e pessoas os quais as crianças nomeiam, localizam, atribuem

características, deixando antever que os jovens falantes apreenderam que as palavras se

combinam para expressar relações. Parece-nos, também, oportuno referir uma

abordagem de cariz sintáctico apresentado por Rigolet (2000). A autora destaca, neste

19

Page 20: Desenvolvimento Da Linguagem Na Criança Dos 0-3 Anos de Idade Uma Revisão Sonhar_Lima-Bessa

período telegráfico,que vai para além dos 24 meses, três fases de aquisição de ordem

sintáctica. Na primeira fase da sua linguagem combinatória a criança usa

indistintamente duas ordens de apresentação sintáctica das duas palavras que constituem

o enunciado, isto é, a criança poderá dizer “popó aqui” como, passado algum tempo

dizer, “aqui popó”. Na segunda fase a criança seguirá o exemplo adulto, ou seja, tendo

como base a frase adulta “o popó está aqui”, a criança que “retira” desta expressão os

artigos e auxiliares, produzirá “popó aqui”. Nesta fase a ordenação dos enunciados

manter-se-á já sem alteração. Quanto à última fase da linguagem combinatória, a

criança adquirirá a estrutura generalizada - ela vai generalizar e alargar esta ordem

sintáctica a outras palavras pertencentes à mesma categoria

Podem assim surgir combinações como “bebé aqui”, “mamã aqui”, “vovó aqui”

ou “popó papá”, “popó tia”, “popó rua”. O que percebemos aqui é que as palavras

“aqui” e “popó”, servem de pivô à volta do qual se organiza o enunciado, com estrutura

generalizada. Embora esta primeira linguagem combinatória seja fortemente marcada

por traços telegráficos, a produção combinatória vai permitir exprimir um número cada

vez maior de relações semânticas que tendem a complexificar-se progressivamente.

Sabemos contudo que, nesta fase, a marcação sintáctica é ainda muito limitada,

circunscrevendo-se basicamente a nomes e verbos e sendo notória a ausência de

qualquer marca de flexão.

Por volta do terceiro ano de vida, Rigolet (2000) apresenta uma distinção curiosa

de dois momentos cruciais no desenvolvimento linguístico da criança. No primeiro, que

dista dos 24 aos 30, verifica-se a generalização dos enunciados de três palavras e o seu

progressivo aumento; a criança formará enunciados correctamente ordenados, se bem

que ainda telegráficos do ponto de vista sintáctico. O segundo decorre dos 30 aos 36 e

nele assiste-se a uma clara melhoria da sintaxe. Neste período mantêm-se ainda

ausentes do discurso as principais palavras de função como artigos, preposições, flexões

de género, numero, pessoa e tempos verbais. Após um período de produção de

enunciados de duas palavras, as crianças começam a produzir combinações de três ou

mais elementos lexicais e a usar formas flexionadas das palavras.

O aumento de palavras por frase e o uso de formas flexionadas marca,

determinantemente, a expansão do conhecimento sintáctico, quer em termos de regras

de combinação de palavras, quer ao nível do domínio morfológico (da estrutura interna

das palavras (Sim-Sim, 1993). De acordo com Acosta et al (2003), dos 30 aos 36 meses

a estrutura frásica torna-se mais complexa, chegando à combinação de quatro elementos

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e dando origem às primeiras frases coordenadas como “mamã não está e papá não está”.

Verifica-se, igualmente, um aumento de frequência de uso das principais flexões,

especialmente as de género e número, junto a novas formas rudimentares dos verbos

auxiliares “ser” e “estar”. Surgem também os pronomes da primeira, segunda e terceira

pessoas, os artigos definidos “o” e “a”, assim como os advérbios de lugar presentes

emitidas nas orações simples deste período.

Podemos dizer que o período que se segue ao uso do discurso telegráfico é

caracterizado pela rapidez e eficácia de regras que permitem a consolidação dos padrões

básicos organizativos da estruturação frásica da língua a que a criança é exposta. Tal só

é possível devido à aquisição da maioria das regras morfológicas da língua mãe e pelo

inicio da combinação de frases (Sim-Sim, 1993).

2.3 – Desenvolvimento Fonético-fonológico

Apesar de termos já feito referência às questões de ordem fonético-fonológica,

morfológica e sintáctica no ponto anterior, parece-nos importante abordá-las

novamente, numa tentativa de sistematização quanto ao processo do seu

desenvolvimento dos 0 aos 3 anos de idade.

Falar de fonética, significa falar dos sons da linguagem falada.. Em termos

gerais, podemos afirmar que a fonética é disciplina científica que estuda os sons da fala

humana, a forma como são produzidos pelos falantes e como são percebidos pelos

ouvintes (Faria et al 2005). Alertam-nos ainda os autores para a complexidade que um

acto de fala envolve. Embora não seja do âmbito deste trabalho debruçarmo-nos de

forma específica sobre esta questão, importa salientar que num processo normal de

desenvolvimento linguístico, os processos de produção e percepção de fala, as

capacidades articulatórias e auditivas humanas desempenham um papel fundamental.

Não devemos ainda esquecer que neste processo de produção e percepção da fala por

um falante/ouvinte está ainda subjacente o conjunto de conhecimentos da língua que

esse falante/ouvinte interiorizou. Pesquisas efectuadas acerca da percepção de fala do

bebé, mostraram que este é capaz de discriminar parâmetros acústicos que sinalizam

diferenças de fala, desde muito cedo (Gerber, 1996).

A percepção dos sons da fala afigura-se determinante na compreensão da

linguagem oral. Gerber (1996) refere que pesquisas levadas a cabo por Aslin em 1990,

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demonstram que nos primeiros meses de vida, os bebés são capazes de discriminar entre

muitos contrastes de sons da fala (diferenças fonéticas), que não são comuns na sua

língua mãe, o que os leva a serem capazes de aprender qualquer língua à qual sejam

expostos. No entanto, a exposição contínua à língua particular da comunidade a que

pertence, torna os bebés menos capazes de discriminar os sons que não pertencem à sua

língua mãe, ficando mais sensíveis aos sons que são fonologicamente significativos à

língua particular à qual estão expostos.

Elliot (1982), afirma que por volta das 6/8 semanas o bebé é capaz de distinguir

entre pares de sílabas cuja diferença assenta no primeiro som, quer quanto ao ponto de

articulação (ba vs ga) quer no que respeita ao contraste entre som vozeado e som não

vozeado (ba vs pa).

Autores citados por Gerber (1996) descrevem quanto ao papel da percepção da

fala no desenvolvimento fonológico, que entre os 9 e 13 meses as crianças começam a

entender o sentido de sequências fonológicas, conforme se relacionam a contextos

específicos. Nesta idade e ainda segundo a autora, as crianças parecem demonstrar

preferência em ouvir enunciados equivalentes a palavras em oposição à fala conectada,

isto é, a análise fonológica parece ser limitada a unidades de contorno de palavra que

são identificadas e contrastadas como um todo.

Já por volta do segundo ano de vida as crianças revelam-se capazes de

reconhecer contrastes fonológicos em sílabas e por volta dos três anos, e de acordo com

a maioria dos estudos, as crianças revelam competências para discriminar os contrastes

fonológicos adultos, com base no contraste de características distintivas entre segmentos

(Gerber, 1996).

Vimos já que, desde o seu nascimento, as crianças demonstram grande

capacidade para diferenciar os sons da linguagem falada. Da mesma forma, também

desde o nascimento, a criança emite sons de carácter expressivo, indispensáveis à sua

sobrevivência. Gerber (1998) refere que no período inicial da produção de fala as

crianças demonstram capacidades de produzir sons que vão além dos que estão

presentes no seu meio linguístico.

Harley (1995) expõe que dos 6 aos 12 meses as crianças produzem sons

semelhantes aos sons da fala, também designados por balbucio. O balbucio, composto

por cadeias de vogais e consoantes combinadas, apresenta maior proximidade sonora da

linguagem que outras vocalizações mais precoces como o choro.

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Menyuk (1995) descreveu a transição do balbucio à fala como gradual. O autor

continua referindo que a fala da criança neste período de transição se “rodeia”de

protopalavras (que não parecem ser modeladas em qualquer palavra adulta), extensão de

jargão e palavras reais, que se assemelham mais de perto aos modelos adultos. Embora

se constate alguma variação, a maioria das crianças produz as suas primeiras palavras

reais compreensíveis por volta do ano de idade. Salienta, ainda, Menyuk (1995), que

nesta fase inicial de aquisição de palavras, as crianças apresentam preferência por

palavras que conseguem verbalizar/articular em detrimento daquelas que não

conseguem verbalizar/articular tão facilmente, criando constrangimentos produtivos que

se inscrevem no designado “evitamento” de produção de determinados vocábulos.

Por sua vez Ingram (1989), caracterizou as primeiras palavras das crianças

como fonologicamente mais simples do que as da fala do adulto. Explicita ainda mais o

autor ao referir que, por um lado a estrutura das sílabas das primeiras palavras,

geralmente, consiste em combinações individuais de consoantes e vogais (da, ta) ou

reduplicações consoante-vogal (dada, tata). Passados alguns meses estas darão lugar às

combinações consoante-vogal-consoante.

Relativamente ao desenvolvimento fonológico posterior, a investigação refere

que o desenvolvimento da fala precoce utiliza um conjunto de sons muito restrito

quando comparado com os do balbuciar de alguns meses antes. Apesar de se verificar,

durante o segundo ano de vida, variações individuais ao nível da produção/articulação,

já anteriormente referidas, não podemos deixar de salientar que neste período assistimos

a um aumento significativo, em termos qualitativos e quantitativos, do reportório

fonológico da criança. À medida que os meses avançam registam-se alterações

importantes no processo de articulação.

No entanto, importa ressalvar que desde a emissão das primeiras palavras até

que a criança consiga articular os fonemas enquanto tal, ajustados à norma adulta de

uma língua em particular, fará ainda um percurso de ensaios articulatórios (Lima, 2000).

A autora chama ainda a atenção para a normalidade das dificuldades articulatórias

observadas nesta idade como fazendo parte de todo um processo maturativo e evolutivo

do desenvolvimento linguístico infantil.

Atendendo à complexidade que o acto de falar envolve, nada tem de

surpreendente que a fala das crianças, ainda pequenas, comece por ser pouco inteligível.

A ausência de destreza para a coordenação motora dos órgãos articulatórios

impossibilitam a formação de uma sequência clara de consoantes e vogais, que tende a

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clarificar-se à medida que os meses se sucedem, verificando-se um aumento rápido da

inteligibilidade da fala entre 1 ano e os 4 anos (Castro & Gomes, 2000).

O aumento da inteligibilidade da fala está directamente relacionado com

factores como: a aquisição de maior domínio articulatório (maior coordenação dos

distintos padrões de movimento da área fono-articulatória); o aumento da discriminação

auditiva que permite diferenciar com maior acuidade os diferentes sons da língua,

conduzindo deste modo à estabilização dos protótipos fonológicos da língua (articulação

correcta das palavras e sequencialmente organizadas) e ainda ao domínio cognitivo que

permite o reconhecimento de objectos de uso comum, a compreensão de ordens simples

ligadas à experiência e o desenvolvimento de competências imitativas no domínio

verbal. Perante estas aquisições a criança vai, gradualmente, manifestar uma

competência comunicativa cada vez mais plena. Quanto aos erros articulatórios

característicos deste período e manifestos sob forma de processos de simplificação

(omissões, harmonias, substituições) perante domínios da língua mal consolidados,

serão gradualmente ultrapassados (Lima, 2000).

Percebemos deste modo que até aos três anos de idade o desenvolvimento

normativo fonético-fonológico se pauta pela imitação/reprodução verbal abundante dos

modelos linguísticos do seu meio imediato, pelo consequente aperfeiçoamento da

melodia da língua, pelo não total grau de inteligibilidade e pelas estratégias múltiplas de

simplificação (Lima, 2006).

Importa ressalvar que a literatura relativa ao desenvolvimento fonológico em

idades tão precoces não é abundante, situação que nos condiciona uma abordagem mais

detalhada sobre esta dimensão linguística.

Ainda assim, gostaríamos de retomar os processos de simplificação atrás

referidos por merecerem a nossa particular atenção e algum aprofundamento, na medida

em que estes constituem formas de abordagem ao sistema linguístico a que a criança foi

exposta numa tentativa clara de o apreender, compreender, para finalmente o produzir

de forma “legitima” e com a sofisticação necessária, respeitando todas as regras

subjacentes ao mesmo.

De acordo com Lima (2006), os processos fonológicos traduzem as

possibilidades de confronto inicial da criança com o sistema da língua ao qual foi

exposta. Sabe-se que as crianças pequenas (a partir sensivelmente dos 18 meses)

simplificam as palavras que produzem, fazem-no na tentativa de imitar e produzir as

palavras adultas que não conseguem ainda verbalizar/articular correctamente.

24

Page 25: Desenvolvimento Da Linguagem Na Criança Dos 0-3 Anos de Idade Uma Revisão Sonhar_Lima-Bessa

Ingram (1989), citado por Acosta e colegas (2003), valoriza extraordinariamente

a imitação, situação que ocorre e se desenvolve precocemente visto que a criança imita

os sons dos adultos sempre que estes se assemelhem aos produzidos por ela de forma

espontânea. Desta forma, a criança tenta, progressivamente, assimilar e acomodar os

seus padrões fonológicos, estruturando-os, construindo gradualmente o seu sistema

fonológico, tendo como principal objectivo a aproximação ao modelo adulto.

Porque a construção, desenvolvimento e aquisição do sistema fonético-

fonológico de uma língua particular é difícil e prolongado, a criança reveste-se de

diferentes estratégias de simplificação De entre os processos de simplificação mais

frequentes, referidos por Ingram (1989), citados por Acosta et. al, (2003)podemos

identificar:

1 - Processos de estruturação silábica, onde se tende reduzir a sílaba ao formato

CV (consoante-vogal), ou a simplificar o número total de sílabas que compõe uma

palavra. Para tal a criança utiliza omissões de consoantes finais, sobretudo se o formato

silábico for CVC (consoante-vogal-consoante), como por exemplo /lapi/ por lápis, porta

por /pota/ ou /sodado/ por soldado. A este propósito refere Lima (2003) que o fonema

/r/ em posição de sílaba final na palavra ocorre com mais precoce domínio que em

posição inicial e medial. Assim,será mais fácil expressar o /r/ de “comer” que o /r/ de

“porta”.

O mesmo acontece com as sílabas do tipo CCV nas quais a segunda consoante é

frequentemente omitida tal como acontece em /pato/ por prato ou /busa/ por blusa.Este

tipo de erros tendem a desaparecer por volta dos 4-5anos de idade, em crianças normais,

constituindo-se como frequente e normal até aos três anos de idade.

Pode ainda ocorrer a omissão de fonemas, sobretudo quando a criança não os

domina, do ponto de vista fonético ou articulatório. Exemplo deste facto é a produção

/opa/ para a palavra “sopa”. Este fonema pertencente à categoria de modo fricativo é

referido como adquirido, de forma estável, a partir dos três anos de idade, ocorrendo, até

esta data, frequentes substituições pelo fonema /x/. Este facto é referido num estudo

sobre fonologia infantil realizado por Lima (2003).

Ingram (1989) refere ainda omissão de sílabas átonas, como por exemplo /bana/

por /cabana/ na palavra que de tri passou a dissílabo. Idêntica situação ocorre em

palavras polissilábicas tais como “telefone” a qual passa a /tefone/por supressão de uma

sílaba. Este processo pode ser usado com mais frequência por umas crianças do que por

25

Page 26: Desenvolvimento Da Linguagem Na Criança Dos 0-3 Anos de Idade Uma Revisão Sonhar_Lima-Bessa

outras, contudo, tal tipo de ocorrência revela um sistema perceptivo ainda imaturo,

incapaz de estabelecer ou captar as diferenças presentes entre os diversos

conglomerados sonoros.

Aos três anos de idade deverá a criança ter resolvido este processo de

simplificação a fim de “resolver” os seus dilemas intrínsecos à discriminação e

sequenciação silábica que caracteriza o domínio fonológico.

2 – O processo de reduplicação de uma sílaba /papato / por “sapato” é frequente

entre os 18 e os 30 meses de idade (Lima, 2003) e tal fenómeno é designado por

harmonia consonantal. Também designado por processo de assimilação, nele ocorre a

substituição de um som por outro, contido este na própria palavra. Este processo de

assimilação de um fonema por outro dentro da mesma palavra pode ocorrer

considerando quer o fonema que antecede quer o que procede aquele que é substituído.

Pode, por tal motivo, subdividir-se em assimilação contígua, quando o elemento

responsável pela assimilação se encontra ao lado do elemento afectado, ou assimilação

não contígua.

Os exemplos a seguir ilustram o que se acaba de explicitar. Assim, para as

palavras “sofá” e “sapato” a criança poderá dizer /fofá/ e /papato/. Neste caso trata-se de

uma assimilação contígua pois a sílaba afectada /so/ de sofá ou /sa/ de sapato sofreram a

influência das sílabas limítrofes /fa / em “sofá” e /pa/ em “sapato”.

A assimilação não contígua admite que, na verdade, o fonema “contagiado” se

encontra também no vocábulo, porém, não em posição imediata (anterior ou posterior) à

sílaba afectada. Exemplo ilustrativo deste fenómeno pode ser aquele que deriva da

produção /tefante/ em vez de”elefante”. Ocorrem, aqui, dois processos de simplificação.

Por um lado, a omissão da primeira sílaba num polissílabo (e.le.fan.te) e por outro a

última sílaba foi assimilada pela segunda, tornando –se a sílaba /le/ em sílaba /te/, por

contágio com a última sílaba da palavra “elefante”. Porque a sílaba contagiada não é,

pois, contígua da contagiante, recebe este processo o nome de assimilação não contígua.

Ao falar-se em harmonia consonantal a designação altera-se ligeiramente

passando a designar-se progressiva e regressiva, de acordo com a posição da sílaba que

“contagia”: progressiva se a sílaba anterior contagia a posterior e regressiva se a

posterior contagia a anterior. As produções /camica/ para “camisa” e /fafé/ para “café”

ilustram a harmonia progressiva e regressiva, respectivamente.

26

Page 27: Desenvolvimento Da Linguagem Na Criança Dos 0-3 Anos de Idade Uma Revisão Sonhar_Lima-Bessa

3 - Processos de substituição constituem o grosso dos erros produtivos que

ocorrem até aos três anos de idade. Consistem em modificar uma sonoridade por outra,

qualquer que seja a que se encontra na sua proximidade.

Este tipo de ocorrências pode acontecer dentro ou fora da classe de modo a que

pertencem as referidas consoantes substituídas, sendo designadas por substituição

intraclasse se acontece a substituição de uma por outra consoante da mesma classe

exemplo: tama para cama, (ambas consoantes da classe das oclusivas) ou interclasse se

acontece uma substituição na qual uma consoante extravasa a categoria a que pertence

tal como no exemplo: /topa/ para “sopa”, no qual a consoante substituída /s/ pertence à

categoria das fricativas e o /t/ pertence à classe das consoantes oclusivas.

O processo de substituição pode ainda ocorrer tendo em conta o ponto de

articulação no qual ocorre a articulação. Existem fonemas cujo ponto de articulação é

muito próximo, facto pelo qual são mais vulneráveis à substituição, tendo em conta este

aspecto de proximidade articulatória. Uma vez mais o exemplo da substituição na

palavra moneca apela para a proximidade de produção entre o fonema /b/ e o fonema

/m/, ambos bilabiais.

Um outro dado que contribui para a emergência do processo de substituição é

aquele que acontece em virtude da maior facilitação de fonemas sem vozeamento, frente

aqueles que são vozeados. A palavra “janela” é passível de ser substituída por /xanela/.

Esta simplificação advém da interferência do factor vozeamento pois o fonema /j/ é

vozeado enquanto que o mesmo não acontece com o fonema /x/. A própria palavra sopa

poderá ser substituída por /xopa/ porém, dificilmente, por /zopa/. O processo é o

mesmo: Uma consoante não vozeada /s/ é de maior facilitação produtiva que uma

vozeada/z/.

Ainda na categoria da substituição se pode incluir um tipo de processo de

simplificação ou recurso largamente praticado, até aos três anos de idade e designado

também de semivocalização. Trata-se das consoantes líquidas /l/ e /lh/ as quais são

substituídas pelas semi-vogais quer /u/ quer /i/. A palavra /boua/ em lugar de bola ou

/foia/ em vez de folha ilustram este tipo de substituições.

Não se faz aqui referência a processos de metátese (mudança de lugar de um

fonema ou sílaba ocorrido dentro da palavra) por ser este mais representativo a partir

dos três-quatro anos de idade.

A ocorrência de processos de simplificação representa a atitude de defesa que a

criança adopta para se confrontar com o modelo adulto ao qual não consegue aceder.

27

Page 28: Desenvolvimento Da Linguagem Na Criança Dos 0-3 Anos de Idade Uma Revisão Sonhar_Lima-Bessa

Por consequência, o uso da substituição representa a estratégia de maior incremento na

criança, até aos três anos de idade.

A partir dos dezoito meses de idade e até aos 3-4anos o reportório fonológico da

criança sofre um aumento significativo, quer em quantidade quer em qualidade. A

variabilidade individual acentua-se, observando-se crianças que se fixam nos sons que

pronunciam correctamente, evitando articulações incorrectas.Outras, porém, tentam

produções sincréticas da palavra, ainda que de forma pouco clara e consistente.

Ainda assim os processos de simplificação presentes nesta fase do

desenvolvimento não obstaculizam a compreensão por parte do adulto, acerca do que

o”aprendiz de falante” pretende dizer. Isto porque, por um lado, o adulto tem à partida

conhecimento do contexto frásico e situacional em que a produção da criança ocorre e

por outro lado, a produção infantil tende a aproximar-se cada vez mais da realização

adulta (Sim-Sim, 1998).

Em síntese, todos estes processos de simplificação fazem parte de um processo

de aquisição normal da linguagem, tendo em conta o esforço da própria criança para

evoluir linguisticamente. Os modelos do adulto constituem-se como os grandes

promotores das correcções necessárias durante todo o percurso evolutivo dos primeiros

elementos linguísticos da criança. O percurso temporal de maior relevo para o

incremento desta evolução linguística da qual a fonologia representa o grande

sustentáculo para todas as outras dimensões, ocorre, precisamente durante os três

primeiros anos de vida.

Este percurso, porém, não esgota todas as possibilidades de erro e da própria

correcção do mesmo. Ele estende-se, continua, até ao momento em que as

representações fonológicas se instaurem sob forma de padrões estáveis, inequívocos e

perduráveis. É tal carácter de estabilidade que faz com que a criança se lance de forma

segura numa nova aventura de aprendizagem simbólica, ainda mais sofisticada que a da

linguagem oral e designada de linguagem verbal escrita.

Esta nova fórmula para referenciar o real vivenciado está fortemente apoiada na

oralidade carecendo, por consequência, da estruturação adequada da primeira, sob pena

de reproduzir modelos extra norma, enfatizando o desvio e a dificuldade para a

compreensão dos enunciados.

Importa, finalmente, salientar que a partir do momento em que os sons estão

indissociavelmente ligados aos significados e cumprem o seu papel funcional, tornando-

se fundamentais na aquisição codificada do sistema linguístico da língua à qual a

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criança foi exposta, está dado o primeiro passo para a instalação do segundo sistema

simbólico- a linguagem escrita. Por consequência, a aprendizagem da escrita fazendo

apelo à linguagem interna, requer boa estruturação e consolidação, devendo buscar-se a

base da sua construção na faixa etária que ronda os três e se prolonga até aos cinco anos

de idade.

2.4 – Desenvolvimento Morfossintáctico

O estudo da morfossintaxe de uma língua - o mesmo que o conhecimento da

organização formal do seu sistema linguístico - constitui um dos fundamentos da

linguística e é tradicionalmente denominado de gramática. Este termo refere-se à

organização estrutural da linguagem, incluindo, por sua vez, os conceitos de morfologia

(que estuda a estrutura das formas das palavras) e de sintaxe (que estuda as funções, isto

é, estuda os processos combinatórios das frases de uma língua, tendo em vista

especificar a sua estrutura interna e funcionamento) (Acosta et. al., 2003). Tanto a

morfologia como a sintaxe têm sido abordadas ao longo dos tempos de forma

independente. Contudo – e apesar das diferenças acima referidas - a linguística moderna

tende cada vez mais a considerá-las e a estudá-las conjuntamente, sob a denominação de

morfossintaxe, entendida esta como a descrição, a um só tempo, da estrutura interna

das palavras e das regras de combinação dos sintagmas em orações (Dubois, 1979).

O papel da morfossintaxe nos estudos de psicolinguística infantil remete-nos

para o surgimento das primeiras palavras reais produzidas pela criança, período

caracterizado como sendo holofrásico e telegráfico, caracterizado pela presença de

nomes e verbos, sem qualquer marca de flexão (Sim-Sim 1998). O conceito descritivo

de linguagem telegráfica caracteriza-se pela simplificação da linguagem usada pelas

crianças eliminando classes gramaticais como artigos, conjunções, preposições e marcas

de plural (Lima, 2000). Importa, contudo, salientar que a produção das primeiras

palavras representa um esforço para expressar ideias complexas, esforço este que faz

com que pareçam algo mais do que palavras soltas. Contudo, de acordo com Borrás

(2005), este tipo de produções não deve ainda ser entendido como conjunto de

manifestações sintácticas, uma vez que a sintaxe e a morfossintaxe terão a sua razão de

ser quando a criança for capaz de produzir enunciados de duas palavras, sendo que, para

29

Page 30: Desenvolvimento Da Linguagem Na Criança Dos 0-3 Anos de Idade Uma Revisão Sonhar_Lima-Bessa

a sua compreensão, deverá ter-se em conta o contexto em que se produzem estas frases

elementares.

Apenas no final do período telegráfico surgem as palavras de função gramatical

como os artigos (o, a,), advérbios (não, sim, onde, aqui), preposições (para, em cima

de), conjunções (que, por que) e ainda as formas flexionadas nas categorias nominais

(género e número) e nas formas verbais para assinalar pessoa e tempo.

Por volta dos 24 meses, a criança “debate-se” com a associação de duas ou mais

palavras num só enunciado. Está, pois, dado o primeiro passo de uma longa caminhada

no desenvolvimento de um mundo verbal que não se reveste apenas de palavras

“omnipotentes (Lima, 2000). E, porque a linguagem não são só palavras, mas também a

possibilidade de as juntar em estruturas maiores – as frases, ao desenvolvimento lexical

sobrepõe-se a aquisição de uma nova modalidade da linguagem: a combinação de

palavras de acordo com regras, para gerir significados que ultrapassam os significados

individuais das próprias palavras (Castro & Gomes, 2000).

Acerca do processo de aquisição morfológica, Sim-Sim (1998), sugere que a

aquisição da linguagem consiste na apropriação de um sistema regulado por regras por

oposição a uma simples aprendizagem de cor de itens lexicais flexionados. Tal pode

facilmente ser compreendido se nos lembrarmos dos erros de sobregeneralização,

frequentemente produzidos pela criança ao aplicar a regra às situações de excepção tal o

caso de “fazi” ou “pãos”. Podemos inferir que, se essas formas nunca foram ouvidas

pela criança, tais produções demonstram uma clara evidência da capacidade para a

extracção de regras e consequente generalização.

A criança encontra-se num período de pleno exercício de manipulação e

apropriação das regras que regulam a língua à qual está exposta. As concordâncias de

género, número e tempo verbal mostram que sabemos alterar as palavras de acordo com

a sua função na frase. Isto é, produzir frases correctamente construídas implica

desenvolvimento da sintaxe (ordenar as palavras) e da morfologia (alterar o “corpo”

das palavras). Contudo, a evolução da capacidade de combinar palavras e de as alterar

não deve ser entendido como um prolongamento do crescimento lexical, pois conhecer

muitas palavras é completamente diferente de as organizar em sequências complexas e

hierárquicas.

Roger Brown (1973), propôs uma medida para melhor percebermos o

desenvolvimento da sintaxe em particular e da linguagem em geral. Esta medida,

designada MLU (Mean Length Utterance), ou, em português, EME (extensão média do

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Page 31: Desenvolvimento Da Linguagem Na Criança Dos 0-3 Anos de Idade Uma Revisão Sonhar_Lima-Bessa

enunciado) (Scliar-Cabral, 1991), revelou-se bastante útil quer na investigação quer em

contextos clínicos. Para identificarmos correctamente o EME de uma criança,

precisamos de uma recolha considerável de enunciados. A amostra que iremos

descrever serve apenas de demonstração do procedimento para identificar o EME.

A EME pode variar entre zero e teoricamente infinito Castro & Gomes (2000).

Observemos os seguintes enunciados: “Aqui” tem uma extensão de 1. “Aqui já”,

apresenta uma extensão de 2. “Aqui já não”, uma extensão de 3, e assim

sucessivamente. Para encontrarmos a EME faz-se a recolha dos enunciados, medindo-se

a extensão de cada um deles e calculando-se finalmente a média. No exemplo referido,

estamos perante uma amostra de três enunciados, com as respectivas extensões de 1, 2 e

3, que perfaz uma média de 6/3 = 2. Neste caso estaríamos perante uma EME de 2.

Atendendo à variabilidade de aquisição linguística, não é raro depararmo-nos

com crianças da mesma idade que apresentam níveis diferentes de desenvolvimento

linguístico. Se, numa primeira fase do desenvolvimento linguístico, idade e linguagem

se encontram muito próximas, à medida que a criança vai crescendo esta proximidade

esbate-se. Embora as fronteiras cronológicas sejam importantes pontos de referência

para uma sistematização do desenvolvimento linguístico, também é um facto que quanto

mais a idade avança, menos rígidas estas fronteiras devem ser entendidas. Castro &

Gomes (2000) afirmam que, por volta dos dois anos, a criança combina regularmente

duas ou até três palavras. Porém, a partir daqui deixam de ser fiáveis as demarcações

cronológicas do desenvolvimento linguístico. Contudo, merece particular atenção a

criança que entre os dois e três anos de idade não produza enunciados com, pelo menos,

três elementos. Estaremos perante uma criança com um desenvolvimento linguístico

tardio, (quando não associado a outras alterações) o qual tanto pode ocultar uma

perturbação da linguagem mais profunda ou ainda revelar-se como um falante tardio

passível de apresentar posteriores dificuldades no processamento da linguagem escrita.

2.5 – Desenvolvimento Léxico-semântico

31

Page 32: Desenvolvimento Da Linguagem Na Criança Dos 0-3 Anos de Idade Uma Revisão Sonhar_Lima-Bessa

A semântica é a dimensão que abrange o conteúdo da linguagem e representa o

estudo do significado e combinações de palavras (Acosta et. al., 2003). De acordo com

Faria et al. (2005), o termo semântica deve ser entendido numa grande variedade de

questões relacionadas com o significado. Aprender e saber uma língua implica conhecer

os significados acordados de determinadas cadeias de sons, sabendo combinar estas

unidades noutras mais vastas, também elas portadoras de significados.

Para Bronckart (1985), a importância desta dimensão na aquisição e

desenvolvimento da linguagem afirma-se na medida em que a realidade de uma língua

existe através do conteúdo que esta transmite, uma vez que a criança aprende sob seus

aspectos pragmáticos e semânticos antes de se centrar nos aspectos morfológicos e

sintácticos.

É sabido que o estudo da avaliação semântica recebeu nesta última década

menos atenção que o estudo da morfossintaxe e da fonologia (Acosta et. al., 2003).

O desenvolvimento da dimensão semântica surge em alguns trabalhos

(Schlesinger, 1971; Bloom, 1973; Sinclair, 1978) como algo marcadamente vinculado e

mediatizado pela existência de pré-requisitos cognitivos, tais como o desenvolvimento

motor (que permite à criança apropriar-se, explorar e manipular o mundo que a rodeia),

a permanência do objecto (reconhecimento da existência do objecto por parte do bebé,

mesmo que este não esteja dentro do seu campo visual), jogo simbólico etc.

Na verdade, entre os 18 e os 24 meses assistimos a uma verdadeira revolução

cognitiva no bebé a qual lhe irá permitir aceder à capacidade de associar

sistematicamente o mesmo significado ao mesmo significante. Os mesmos autores

explicam ainda que as aquisições semânticas da linguagem dependem do grau de

compreensão do sujeito (nível de experiências e da organização interna do mundo que o

rodeia). As coisas e os objectos vão, através da função simbólica, adquirir uma

“consistência” diferente. Passam a ter uma existência própria, independentemente da

nossa influência sobre eles. O nome confere ao objecto um novo poder, uma nova

estrutura que associa um conceito a um significante, situação que irá despoletar na

criança o prazer de nomear. No entanto, a criança ao entrar no jogo simbólico, vai

perceber que o “pano” que tem na mão pode ser o tecto de uma cabana, um vestido de

noiva, ou o que a sua imaginação lhe ditar na altura. O importante aqui é que a criança,

saiba que o que tem é um pano, independentemente do significado que lhe quer atribuir

naquele momento. Ela sabe que o objecto permanece igual a si próprio e que a palavra,

esta associação entre significado-significante, permanece inalterável (Rigolet, 2000).

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Page 33: Desenvolvimento Da Linguagem Na Criança Dos 0-3 Anos de Idade Uma Revisão Sonhar_Lima-Bessa

Por outro lado, trabalhos desenvolvidos por autores como Rondal (1983), Bruner

(1983) ou Del Rio (1985), perspectivando um desenvolvimento mais interactivo e

dinâmico da aquisição da linguagem e assente nos contextos e variáveis sócio-afectivas

referem que o desenvolvimento da semântica depende da qualidade das interacções

desta com o seu meio e de como os que a rodeiam utilizam a linguagem.

Pareceu-nos pertinente referenciar este apontamento, por acreditarmos que

ambas as abordagens contribuem de forma determinante, para o desenvolvimento

linguístico da criança, no caso particular para o desenvolvimento semântico.

Estudos anglófonos sugerem que, por volta dos 18/19 meses, se assiste a um

“Boom” do vocabulário, que é o mesmo que estar perante uma aquisição semântica de

cerca de 50 palavras. Percebemos, deste modo, que entre os 12/18 meses a criança viveu

um período de latência, explorado ao máximo em termos cognitivos e pragmáticos. Isto

significa que, ao produzir tantas palavras novas na segunda metade do seu segundo ano

de vida, a criança, para além de expressar-se com muitos vocábulos, vai igualmente,

exprimi-los no momento adequado, pragmaticamente correcto, com o máximo de

eficácia funcional (Rigolet, 2000). O surto lexical vai permitir a generalização dos

enunciados de três palavras e o seu progressivo aumento. Segundo autores como Rigolet

(2000) e Castro (1997), o surto lexical e o consequente enriquecimento vocabular são

responsáveis pelo enriquecimento diário do nível semântico nestas idades.

2.6 – Desenvolvimento Pragmático

Abordar a questão pragmática da linguagem é remetermo-nos para o

funcionamento da linguagem em contextos situacionais e comunicativos, isto é, falamos

de um conjunto de regras que explicam ou regulam o uso intencional da linguagem,

partindo do princípio que se trata de um sistema social compartilhado e com normas

para a correcta utilização em contextos concretos (Acosta et al., 2003).

A componente pragmática da linguagem privilegia o modo como se verificam,

na vida real, os intercâmbios linguísticos e comunicativos. Nesta componente, há, no

entanto, que ter em conta alguns factores inerentes às regras de conversação,

organização, iniciativas comunicativas, manter a conversação, aprender “a tomar e dar a

33

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vez”, responder apropriadamente – tudo isto com o objectivo de obtermos um discurso

coeso. Importa ainda saber se o interlocutor conhece ou não o tópico da conversação,

bem como se detém informação sobre o contexto, visto ter que seleccionar as palavras e

as frases a utilizar no discurso. No fundo, pretendemos dizer que a pragmática ou uso da

linguagem se ocupa das intenções comunicativas do falante e da utilização que este faz

da linguagem para materializar tais intenções.

O estudo da pragmática na linguagem infantil caracteriza-se, desde o início da

sua abordagem, pela ausência de unidade teórica e, consequentemente, metodológica

(Acosta et al., 2003). Segundo o mesmo autor, independentemente da diversidade de

modelos teóricos e metodológicos, tal tarefa pode ser simplificada se abordarmos o

estudo da pragmática em duas vertentes: a formal ou estruturalista e a funcional.

Os autores que perspectivam uma abordagem formal concebem a pragmática,

como mais uma componente da linguagem, tal como o são a fonologia, a morfossintaxe

e a semântica. Quanto aos autores que partilham da perspectiva funcional, a linguagem

é entendida como um instrumento de interacção social e de comunicação, que visa

recuperar o uso intencional da linguagem e,onsequentemente, atender à diversidade de

usos verbais e não-verbais característicos dos intercâmbios infantis, assim como atender

às normas socioculturais que regulam esses usos e aos conhecimentos e habilidades que

configuram a competência comunicativa (Lomas et al, 1993).

Autores citados por Acosta et al. (2003) atribuem à pragmática um papel central,

como se de um núcleo se tratasse, responsável pela determinação e organização dos

aspectos estruturais da linguagem. Mayor (1991) considera ser possível e até necessária

a integração de ambas as perspectivas. Vejamos: de acordo com o autor, é clara a

interdependência que existe entre forma e função, pois a aquisição dos aspectos da

linguagem requer o desenvolvimento prévio das intenções comunicativas e, por sua vez,

a evolução dos aspectos funcionais depende da sofisticação dos elementos estruturais. O

autor afirma também que a criança, numa perspectiva funcional, modifica as palavras e

as estruturas gramaticais tendo em conta a intencionalidade da mensagem (o que

pretende dizer) assim como o contexto situacional na qual esta ocorre.

Importa referir que a pragmática não se circunscreve ao estudo dos usos e

funções linguísticos: aborda igualmente os aspectos formais que definem os ajustes

motivados pelo contexto de comunicação, as variações que implicam o uso da

linguagem em função das características do interlocutor e da situação, isto é,do que

estamos a falar? para quem estamos a falar? que palavras seleccionar?.

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Page 35: Desenvolvimento Da Linguagem Na Criança Dos 0-3 Anos de Idade Uma Revisão Sonhar_Lima-Bessa

Tivemos já oportunidade de referir que o estudo da pragmática é recente, facto

que conduz a algumas limitações metodológicas, do mesmo modo que carece de um

nível óptimo quanto à conceptualização dos aspectos funcionais da linguagem.

Citando Halliday (1975), referidos por Acosta et al. (2003), acerca do

desenvolvimento pragmático, a evolução das funções linguísticas é, em grande parte,

universal e relativamente precoce, terminando antes do desenvolvimento dos elementos

estruturais da linguagem estarem completos. Deste modo, é possível encontrar-se na

literatura especializada a distinção entre duas etapas: a etapa pré-linguistica e a etapa

linguística.

Considera-se a primeira etapa extraordinariamente importante para o estudo da

pragmática e da linguagem infantil, na medida em que nesta etapa se concretizaria a

origem do uso da linguagem para interagir com os outros, nela sendo estabelecidas as

bases das funções comunicativas A perspectiva funcional “vê” a linguagem como um

instrumento de interacção e comunicação, sustentado na continuidade entre

socialização, comunicação pré-verbal e desenvolvimento da linguagem.

Belinchón et al. (1992) e Clement, (1995) vêm dar consistência a esta ideia ao

afirmar que a criança não espera deter domínio sobre a linguagem para comunicar pois.

desde o nascimento que os bebés revelam motivação para as relações interpessoais,

encaminhando-se, deste modo, para o uso da linguagem, reagindo a estímulos humanos

como a voz ou o rosto. A importância do reconhecimento das bases interpessoais da

comunicação para o posterior desenvolvimento da intencionalidade comunicativa é

fundamental para o reconhecimento de que a linguagem exige a capacidade prévia de

reconhecer os outros como pessoas diferentes de si mesmos - competência

intersubjectiva, diferenciada em dois níveis: inter-subjectividade primária (referente à

motivação que permite perceber indiferenciadamente a significação humana de certas

expressões) e a intersubjectividade secundária (motivação para partilhar os interesses e

experiências com os demais).

O acesso ao primeiro nível permite ao bebé reconhecer o adulto como alguém

diferente. Quanto ao segundo nível, este permite-lhe reconhecer o adulto como alguém

capaz de agir sobre os objectos e como alguém com quem pode partilhar experiências.

O choro revela-se o primeiro intercâmbio simples e primitivo, ao qual o adulto dá

resposta e atenção. Progressivamente, estes intercâmbios precoces vão evoluir para

longas sequências vocais e/ou intercâmbios oculares, experiências que ocorrem

35

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normalmente em situações de rotina diária da vida de um bebé (banho, alimentação,

jogo, vestir/despir). É nestes momentos de rotina diária que se irão desenvolver,

igualmente, sequências de rotinas de intercâmbios sonoros, oculares e acompanhados de

mudança de expressões faciais. Nestas rotinas pré-verbais, que surgem entre os 4 e os 6

meses, o papel do adulto é preponderante para o estabelecimento dos intercâmbios.

Embora saibamos que as primeiras vocalizações e gestos da criança surgem

desprovidas de intencionalidade, estas apresentam um efeito tal sobre o adulto que

Bates (1976) considera-as um período de pré-locução, na medida em que os adultos lhe

atribuem significado comunicativo e referencial. Gritar, chorar, sorrir, são sinais da

criança que são interpretados e respondidos distintamente, atribuindo-se-lhes

intencionalidade.

É,pois, deste modo, que o adulto promove o desenvolvimento da competência

pragmática, ao conceder à criança o papel de interlocutor e não apenas de mero receptor

A interacção entre a criança e o adulto vai progressivamente transformar-se em gestual

e intencional, situando-se numa fase não locutiva de desenvolvimento comunicativo

(Belichón et al., 1992). No final do primeiro ano a criança revela já comportamentos

claramente intencionais de relação comunicativa referentes a objectos. Bates (1976)

identifica dois tipos de comportamentos intencionais ou actos não locutivos na

comunicação pré-verbal, por volta dos 9-12 meses, realizados com recurso aos gestos:

- Os proto-imperativos: gestos deícticos (apontar, dar,), com a finalidade de

influenciar o comportamento do outro, quer para obter o objecto que o outro possui,

quer para realizar determinada acção. São expressões precursoras da função reguladora.

- Os protodeclarativos: uso a de verbalizações convencionais para dirigir a

atenção do adulto a objectos ou situações a fim de partilhá-las. A atitude da criança é

interpretada como algo cujo propósito é transmitir informação, daí ser considerado o

prelúdio da função informativa. Se nos proto-imperativos a criança utiliza o interlocutor

para conseguir um objecto, nos protodeclarativos utiliza o objecto para atingir uma meta

social.

Quanto à segunda etapa, a linguística, já por volta dos 18 meses, os actos não

locutivos começam a incluir proposições, momento em que surge a linguagem. Embora,

durante algum tempo ainda, a comunicação continue fundamentalmente gestual, desde

esta idade e progressivamente até aos 3 anos a comunicação passará a apoiar-se na

palavra, passando os gestos para segundo plano e servindo estes apenas como reforço da

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palavra ou frase. A partir deste momento, opera-se uma mudança de tal ordem que irá

exercer uma influência determinante no desenvolvimento das funções comunicativas.

Em jeito de resenha, importa referir que das várias análises realizadas sobre as

intenções comunicativas expressas pelas crianças nos primeiros anos de vida, extraíram-

se categorias que agrupam e classificam as produções intencionais das crianças. Embora

as taxionomias propostas variem entre os diferentes pesquisadores, devido aos

diferentes níveis de desenvolvimento das crianças, é possível encontrar consenso que

julgamos conveniente sintetizar da seguinte forma: As crianças usam vocalizações,

cadeias sonoras, diálogo para satisfação de necessidades e/ou desejos (função

instrumental), para pedir informação (função heurística), para regular as acções dos

outros, apelando, protestando (função reguladora), para estabelecer contacto,

cumprimentando, chamando e executando rotinas (brincadeiras partilhadas que a

criança realiza a pedido e repetidamente actividades de carácter motor como, dizer

adeus, fazer cu-cu) e para dar informação, nomeando e respondendo a solicitações dos

pares ou dos adultos (Sim-Sim, 1998).

Independentemente da intencionalidade comunicativa que está em jogo, a

criança da faixa etária que estamos a privilegiar- dos o aos três anos-usa

consistentemente a estratégia da repetição para manter ou voltar ao tópico da

conversação, para insistir no pedido, para chamar a atenção do interlocutor. Esta

estratégia de repetição é já visível no período pré-verbal através do processo interactivo

de “tomar a vez” e nos jogos que assentam em comportamentos ritualistas do tipo “cu-

cu”, ou “a galinha põe o ovo…”. Posteriormente, a repetição vai evoluindo de forma a

ganhar contornos verbais, onde a palavra que designa o objecto pretendido é

persistentemente repetida (mã…mã…mã…).

Estamos, pois, perante o ponto de viragem. A criança irá iniciar o seu longo

caminho na crescente descoberta e apropriação da linguagem e na mestria de a utilizar

para satisfazer as suas pretensões sociais, emocionais, conceptuais, enfim, realizar a

plenitude do Ser: ser que sabe, ser que quer e ser que pode explicitar “interioridades”

que a linguagem pode traduzirr.

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CAPÍTULO II – AVALIAÇÃO DA LINGUAGEM

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