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Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 11 – O Português falado e escrito em contexto de aquisição e perda de linguagem. 177 DESENVOLVIMENTO DA NARRATIVA EM JOVENS COM SÍNDROME DE DOWN Gilsenira de Alcino RANGEL 1 RESUMO Este trabalho é fruto de uma pesquisa que vem sendo desenvolvida sobre o processo de aprendizagem da leitura e da escrita por crianças e jovens com síndrome de Down. Levando em consideração as idéias de Vigotsky, dentre elas – a da mediação – estamos trabalhando com um grupo de jovens com síndrome de Down com idades que variam de 19 a 27 anos, que não frequentam escola regular e não estão expostos a nenhum tipo de atendimento pedagógico, além dos vivenciados no projeto de Extensão do qual participam. No projeto são oferecidas atividades pedagógicas, físicas e artísticas. No atendimento pedagógico proporcionamos o contato mais direto com práticas de leitura e escrita, através de oficinas de produção escrita, que visam ao desenvolvimento de textos pertencentes a diversos gêneros textuais. Este estudo tem o objetivo de descrever e analisar narrativas ao longo de um semestre. Os dados obtidos, através de oficinas de produção textual, estão sendo analisados com base na proposta de andaimento (WOOD, BRUNER, ROSS, 1976), segundo a qual criar ‘andaimes’ é proporcionar ao aprendiz a 1 Universidade Federal de Pelotas, Faculdade de Educação, Departamento de Ensino. Rua Alberto Rosa, 154 – sala 350, CEP 96040-710 Pelotas, RS, Brasil, [email protected]

DESENVOLVIMENTO DA NARRATIVA EM JOVENS COM … · está ali enquanto é necessário, necessitando subir ou baixar conforme a ocasião ou dificuldade apresentada pelo aprendiz. Uma

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Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 11 – O Português falado e escrito em contexto de aquisição e perda de linguagem.

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DESENVOLVIMENTO DA NARRATIVA EM JOVENS COM

SÍNDROME DE DOWN

Gilsenira de Alcino RANGEL1

RESUMO

Este trabalho é fruto de uma pesquisa que vem sendo desenvolvida sobre o

processo de aprendizagem da leitura e da escrita por crianças e jovens com

síndrome de Down. Levando em consideração as idéias de Vigotsky, dentre

elas – a da mediação – estamos trabalhando com um grupo de jovens com

síndrome de Down com idades que variam de 19 a 27 anos, que não

frequentam escola regular e não estão expostos a nenhum tipo de atendimento

pedagógico, além dos vivenciados no projeto de Extensão do qual participam.

No projeto são oferecidas atividades pedagógicas, físicas e artísticas. No

atendimento pedagógico proporcionamos o contato mais direto com práticas

de leitura e escrita, através de oficinas de produção escrita, que visam ao

desenvolvimento de textos pertencentes a diversos gêneros textuais. Este

estudo tem o objetivo de descrever e analisar narrativas ao longo de um

semestre. Os dados obtidos, através de oficinas de produção textual, estão

sendo analisados com base na proposta de andaimento (WOOD, BRUNER,

ROSS, 1976), segundo a qual criar ‘andaimes’ é proporcionar ao aprendiz a

1 Universidade Federal de Pelotas, Faculdade de Educação, Departamento de Ensino. Rua Alberto Rosa, 154 – sala 350, CEP 96040-710 Pelotas, RS, Brasil, [email protected]

Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 11 – O Português falado e escrito em contexto de aquisição e perda de linguagem.

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passagem de um nível potencial para o nível de desenvolvimento real, atuando

junto à ZDP (Zona de Desenvolvimento Proximal). Os resultados encontrados

até agora indicam que os jovens com síndrome de Down apresentam uma

evolução significativa no que concerne ao desenvolvimento de textos

narrativos.

PALAVRAS-CHAVE: narrativa; síndrome de Down, andaimento, ZDP

(Zona de Desenvolvimento Proximal),

Introdução

Existem no Brasil cerca de 300.000 pessoas com síndrome de Down (SD). Deste

número, uma pequena parcela alcança sucesso nos bancos escolares. Segundo dados do

Censo Escolar de 2005, há matriculados no ensino apenas 34.726 jovens com tal

síndrome. Esses dados mostram o quanto estamos longe de uma educação para todos.

Garcias et al (2006) em pesquisa longitudinal – de 1990 a 2002 – realizada na

cidade de Pelotas, buscando analisar a frequência e os fatores predisponentes para a

ocorrência da síndrome de Down, registra a ocorrência de 1,48/1000 (um vírgula

quarenta e oito) nascidos com síndrome de Down a cada mil nascimentos. A pesquisa,

durante doze anos de acompanhamento, registrou 71.500 nascimentos e 107

apresentavam essa síndrome.

A SD é uma condição genética. É uma alteração cromossômica localizada no par

21 que, ao invés de apresentar dois cromossomos, apresenta três. Daí o nome pelo qual

também e conhecida: Trissomia do 21. Vários sintomas podem acusar a existência da

síndrome e não é necessário apresentar todos somados, basta a presença de alguns, mas

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para a confirmação, é necessário um de exame de cariótipo. Entre as complicações que

podem afetar o aspecto cognitivo está o desenvolvimento mais lento em todos os

aspectos e um tempo de concentração menor. Algumas dificuldades também têm sido

registradas quanto ao desenvolvimento do pensamento abstrato.

Metodologia

Os sujeitos da pesquisa são 8 jovens com síndrome de Down, participantes de

um projeto de Extensão por mim coordenado – Novos Caminhos: três saberes na

melhoria da qualidade de vida de jovens com síndrome de Down. Os jovens recebem

atendimento pedagógico, três vezes por semana, na Faculdade de Educação, onde são

desenvolvidas aulas de português, matemática, ciências, história, geografia e artes. Os

objetivos principais são: o estímulo à leitura e escrita, o uso de matemática na vida, a

aprendizagem da geografia e história de Pelotas com vistas a saber se localizar e

apresentar a cidade fora dela. A partir desses objetivos, visa-se desenvolver a cidadania

e estimular a auto-estima dos participantes. Para este trabalho, que visa avaliar o papel

da mediação na melhoria da estrutura narrativa, foram analisados os dados resultantes

de um episódio de atuação junto à ZDP e seu efeito na escrita narrativa de um dos

sujeitos – uma moça de 22 anos de idade.

Essa escrita narrativa foi produzida em contexto de sala de aula em que a tarefa

foi a de recontar a história “Uma noiva chique, chiqérrima, lindérrima; de Masini &

Cantone (2006) atribuindo-lhe um novo final. Com isso foi possível verificar a

utilização de aspectos típicos de narrativas: a apresentação de orientação, o conflito,

ação, resolução e situação final.

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Fundamentação teórica

Tem-se como norteadoras as idéias desenvolvidas por Vigotsky (1991) para

quem o ensino deve ser voltado para as zonas de desenvolvimento. Nesse sentido, o

conceito de Zona de desenvolvimento proximal (ZDP) é primordial. Esse conceito,

elaborado por Vigotsky, tem a ver com a distância entre o nível de desenvolvimento

atual do aprendiz, que é determinado pela resolução independente de problemas ou

desafios, e o nível potencial, que é determinado pela resolução de problemas com ajuda,

isto é, a ZDP trata-se da região delimitada por esses níveis onde estão localizados os

conhecimentos em brotos, em que o aprendiz é capaz de realizar sem ajuda e aqueles

para os quais necessita de auxílio.

Um dos conceitos que ajuda muito a entender isso é o de scaffolding –

andaimento, que foi introduzido por Wood, Bruner e Ross (1976) com o intuito de

descrever os meios pelos quais um mediador (normalmente o adulto) guia a atenção do

aprendiz em direção aos aspectos importantes das atividades. O papel do adulto (pode

ser o professor) seria o de atuar, metaforicamente falando, como um andaime, ou seja,

está ali enquanto é necessário, necessitando subir ou baixar conforme a ocasião ou

dificuldade apresentada pelo aprendiz.

Uma questão que merece destaque é a de que a ZDP, segundo Mercer (1994),

não deve ser considerada como uma qualidade da criança e sim como uma qualidade de

um evento. Para o autor o processo de ensino-aprendizagem se realiza através de

eventos, em que a relação entre o adulto (normalmente o professor) e o aprendiz fornece

o suporte necessário à aprendizagem. Ainda, segundo ele, somente quando o

andaimento for preciso poder-se-á supor que a crianças está, de fato, trabalhando em

uma ZDP.

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Estudos que focalizam o processo de aprendizagem de pessoas com síndrome de

Down ainda são escassos no Brasil. Dentre esses estudos, destaca-se o de Camargo

(1994), cujo foco foi o desenvolvimento do discurso narrativo, levando em consideração

a proposta de Perroni (1992). A autora chega à conclusão de que as crianças com Down

percorrem os mesmos caminhos que crianças sem a síndrome na aquisição da narrativa,

levando apenas mais tempo no percurso2.

Na maior parte das vezes em que solicitamos produções escritas, estamos

pressupondo capacidade de planejamento do discurso e de reflexão sobre a língua.

Para Van Dijk (1983) os textos são constituídos por três estruturas: a micro, a

macro e a superestrutura. A micro estrutura é “a estrutura das orações e sua relação

mútua de conexão e coerência” (p. 39). A macro e a superestrutura estão relacionadas ao

nível global do texto, o que o caracterizará eu tipo específico. Para o autor, o diferencial

do texto narrativo está nas ações dos personagens e subordinadas a elas.

Chegamos, então, ao que o estudioso define como complicação e resolução. Na

complicação – que tem relação com a descrição de eventos relevantes que

frequentemente promoverá impedimentos entre o personagem dos eventos narrados e

suas ações. É interessante destacar que esses eventos podem não ter relação alguma com

outros personagens (maremotos, tempestades, enchentes, etc) ou podem ter relação com

o antagonista representado num personagem individual ou coletivo. Cumpre ressaltar

que tais eventos sempre terão uma relação/efeito posterior na narrativa que levará ao

desenlace da complicação – a resolução. A resolução pode, portanto, ser positiva ou

negativa dependendo se o fato narrado obteve êxito ou fracasso.

2 Nesse sentido, maior tempo para execução – foi o mesmo resultado alcançado por Rangel (2005), quando da análise da aquisição do sistema fonológico por uma criança com SD.

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Como se pode observar, a complicação e a resolução constituem o núcleo do

texto narrativo e juntas formam o que Van Dijk denomina de fato ou acontecimento,

que ocorre sempre num local e tempo determinados.

Segundo Todorov (1973: 103) “Uma narrativa ideal começa por uma situação estável

à qual uma força qualquer irá perturbar. Disso resulta um estado de desequilíbrio; pela ação de

uma força em sentido inverso, é restabelecido o equilíbrio...”.

Para Chafe (1990), as narrativas são manifestações abertas da mente em ação. A

mente é guiada por esquemas, concebidos como estruturas de expectativas.

Perroni (1992) dá ênfase à base biológica do desenvolvimento do discurso

narrativo, destacando a importância de perguntas eliciadoras dos adultos no trajeto dos

jogos de contar, nos quais a criança desde pequena constrói junto com o interlocutor a

narrativa, ou ainda o fato de o adulto interpretar a elocuções das crianças como

narrativas.

Ainda, de acordo com Perroni (1992), há que se diferenciar estórias, relatos e

casos. As estórias são narrativas que apresentam ordenação temporal/causal dos

eventos e enredos fixos. Nelas o narrador não participa como personagem no desenrolar

da ação; há a existência de personificação e de fundo moral. Há o uso de marcadores

lingüísticos como Era uma vez, Certa vez (começo) então, daí, um belo dia, certo dia,

depois (desenvolvimento), acabou, morreu, finalmente, e o clássico foram felizes para

sempre (resolução, desfecho).

Os relatos recuperam uma sequência de experiências pessoais vividas pelo

narrador não havendo preocupação com um enredo fixo e sim com a veracidade dos

fatos relatados. Já nos casos, o narrador não tem compromisso com enredo fixo nem

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com a verdade, é mais livre para criar podendo estar presente enquanto personagem e

criar uma realidade fictícia.

A narrativa também é vista como uma série de respostas dadas à perguntas

como:

Apresentação: Sobre o quê? Quem, quando, o quê, onde?

Complicação: O que aconteceu?

Resolução: Como terminou?

Neste trabalho o interesse está voltado para a narrativa de histórias.

Alguns resultados

Começamos com os dados de uma jovem de 22 anos. A proposta para esta

produção foi de recontar a história Uma noiva chique-chiquérrima, lindérrima, de

Beatrice Masini e Ana Laura Cantone3 – tradução Eva Furnari, atribuindo-lhe um novo

final.

Figura 1: Texto de 22/05/2009 – Tamires - Uma noiva chique 3 Ver anexo.

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Nessa escrita temos um resumo incompleto da história. É importante destacar o

elevado número de erros ortográficos presentes no texto, especialmente os tocantes à

troca de consoantes f/v, envolvendo o traço sonoro. Porém, o que de fato nos interessa

é a estrutura do texto narrativo. Pode-se notar que a narradora não se assume como

personagem da história. Ainda que com alguma dificuldade no nível da micro-estrutura

– que considera a estrutura das orações e sua relação mútua de conexão e coerência, que

se revela na desorganização das orações no parágrafo, no que se refere à macro-

estrutura em que é considerado o nível global do texto (aquilo que o faz constituinte de

determinado gênero textual) o texto inicial pode ser tomado como representativo do

gênero narrativo, apresentando complicação e resolução. A reescrita, feita em aula,

visou, primordialmente a estrutura narrativa, mas atentou para os erros de ortografia

presentes, sinalizando-os e sugerindo a consulta ao dicionário. Após, o resultado foi

passado a limpo (Figura 2).

Observe-se a seguir a interferência da pesquisadora depois de alguns dias.

Pesq 1 Qual era mesmo o título da história? Você lembra? Tam 2 Uma noiva chique, chiquérrima, lindérrima. Pesq. 3 Muito bem! Então escreve aí. (Aguarda que escreva) Pesq. 4 E agora, como é que vamos começar a história? Tam 5 Filomena era a noiva e Ferrucho era o noivo. Pesq. 6 Isso aí! Vamos escrever isso no papel? Não esquece que nome de

pessoas se escreve com letra maiúscula! Pesq. 7 E então o que aconteceu? Tam 8 Ele pediu ela em casamento. Pesq. 9 Legal! Escreve isso. Tam. 10 Então ele falou: que casar comigo, eu quero. Pesq. 11 Vamos prestar atenção para o modo de registrar: lembra que quando um

personagem fala, devemos usar novo parágrafo e travessão, letra maiúscula?

Tam 12 Tinha me esquecido! Pesq. 13 Está ficando bom, vamos lá..... Tam 14 Os dois foram se preparar para o casamento. Chegou o dia do casamento.

(escreve isso na folha)

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Tam 15 - Então ela foi ao cabeleirio para se arrumar. Tam 16 Ela ficou trancada dentro da igreja. Pesq. 17 E o que aconteceu então? Tam 18 Todos estavam na igreja. Pesq. 19 Sim, mas quanto tempo tu achas que se passou: muito ou pouco? Tam 20 Passadas algumas horas........ igreja. (escreve) Pesq. 21 Então... Tam 22 Se escabelou de tanto esperar por ajuda...... não queria se casar mais com

Filomena. Pesq. 23 Muito bem! Você conseguiu! Parabéns!

A mediadora então direciona – L 1- (linha 1) a atenção da jovem para o título da

história lida, ao que prontamente recebe a resposta - L 2-. É interessante observar o

uso de artigos definidos em L5 para os personagens da história, que já são conhecidos,

uma vez que a proposta é dar um novo final ao texto. Em -L6- a mediadora incentiva a

aprendiz a continuar sua história – que deve ser escrita. Relembra também aspectos da

forma do texto, como parágrafo, letra maiúscula. Depois de aguardar que a jovem

escreva, a mediadora retoma a continuidade da narrativa em L 7, ao que Tam responde

imediatamente escrevendo em L8. Novamente em L9, há o incentivo para a escrita. Em

L10, Tam, fala o que escreverá e em L11 é relembrada pela pesquisadora sobre a forma

de apresentação do discurso direto ao que responde em L12 ter “esquecido”. Outra vez

há, em L13 o incentivo para a reescrita e elogio ao trabalho que está sendo feito. Em

L14, L15, L16 há um espaço de autonomia, sem a interferência da mediadora, que só

ocorrerá novamente em L17. Na busca de melhorar a 1ª versão em L19, a aprendiz é

solicitada a especificar um pouco mais o tempo decorrido e devolve com a escrita de

L20. O incentivo final se dá através da interferência em L21. Em L22 tem-se a

conclusão do novo final, que é festejada pela pesquisadora em L23. Note-se que em

relação à interferência da pesquisadora, o mecanismo mais utilizado para dar

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continuidade à narrativa foi o uso de perguntas polares (onde, com quem, quando..)

objetivando que o aprendiz desse continuidade à sua narrativa. Os dados indicam que,

apesar de algumas limitações, os jovens com síndrome de Down apresentam

desenvolvimento em suas narrativas.

A seguir tem-se o resultado da reescrita que ocorreu paralela à interferência.

Figura 2: Texto de 05/06/2009 – Uma noiva chique

Como referido anteriormente, nosso foco aqui é o da estrutura da narrativa.

Nesse aspecto, observaram-se melhoras significativas no nível da microestrutura, agora

com as orações melhor estruturadas, o que reflete em avanços na coerência e coesão

interna; novamente a narradora não participa da história; tem-se representadas as partes

fundamentais do gênero narrativo: apresentação, complicação, resolução e fim.

Embora não seja foco aqui, quanto à pontuação, percebe-se na primeira escrita

um uso indiscriminado de sinais quase que entre todas as palavras o que já não

aconteceu na reescrita.

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Considerações preliminares

Os dados aqui trazidos mostram como é possível esse aprendizado. Ao utilizar-

se de narrativas, há que se pensar, planejar, estruturar o pensamento. Quem disse que

não são capazes disso? O aprendiz com síndrome de Down não deve ser visto como

alguém incapaz, mas como alguém com possibilidade de aprender.

Foi possível observar através destes dados que o aperfeiçoamento do discurso

narrativo escrito refletiu-se qualitativamente na produção escrita através de respostas

mais adequadas e, consequentemente, uma escrita narrativa mais organizada em termos

de micro, macro e superestruturas.

A atuação do professor como mediador, como aquele que põe à disposição o

andaime para acompanhar quando necessário o processo de aprendizagem do aluno,

intervindo quando solicitado em busca da autonomia do aprendiz é fundamental. Nesse

sentido, destacou-se, como Perroni (1992), a importância de perguntas eliciadoras dos

adultos/mediadores no trajeto dos jogos de contar, nos quais o aprendiz constrói junto

com o interlocutor a narrativa.

Dentro dessa proposta o professor precisa observar em que momento sua

intervenção é bem-vinda. É importante mapear a zona de desenvolvimento proximal na

qual o conhecimento do aprendiz se encontra e, só a partir daí fornecer ou liberar para

que colegas mais competentes forneçam os andaimes para sua autonomia.

Entre as estratégias utilizadas pela mediadora, destaca-se o encorajamento e a

regulação da tarefa à ZDP – o que demonstrou ter sido uma importante ferramenta para

melhoria da escrita de Tam.

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Os resultados alcançados nos fazem acreditar que a mediação através do

andaimento é eficaz como ferramenta de ensino, especialmente se levarmos em conta os

atendimentos individuais dados aos aprendizes e, mais, aos jovens com necessidades

especiais.

Referências bibliográficas

CHAFE, W. “Some things that narratives tells us about the mind”. BRITTON, B.K. & GARCIAS, G. Revista da AMRIGS. Porto Alegre, 50 (1): 16-20, jan.-mar. 2006. MASINI, Beatrice; CANTONE, Anna L. Uma noiva chique, chiquérrima, lindérrima. Trad. Eva Furnari. São Paulo: Ática, 2006. MERCER, N. Neo-Vigotskyan theory and classroom education. In: Stier&J.Maybin (Eds.), Language, Literacy and Learning in Educational Practice, 92-110. Clevedon: Multilingual Matters. PELEGRINI, A. D. Narrative thought and narrative language. N.J. Lawrence Erlboum. 1990. PERRONI, M. C. O desenvolvimento do discurso narrativo. São Paulo: Martins Fontes, 1992. RANGEL, Gilsenira. Aquisição da fonologia por uma criança com síndrome de Down. Cadernos de Pesquisas em Lingüística. Vol.1. nº 1, 2005. p. 185-190. RANGEL, G. A. Aquisição da escrita em crianças com síndrome de Down. Revista Alfabetização e Letramento. Vol. 1, nº 3, Pelotas, Out 2006 . TODOROV, T. Estruturalismo e poética. São Paulo: Cultrix, 4ªed., 1973. VAN DIJK,Teun A.;Kintsch, W. Strategies of discourse comprehension. Nova York: Academic Press, 1983. VIGOTSKY, L. S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1991. VIGOTSKY, L. S. Fundamentos da Defectologia. Obras Completas. Tomo 5. Editorial Pueblo Educacion, 1989. WOOD,D., BRUNER, J.S. & ROSS, G. The role of tutoring in problem solving. Journal of Child Psychology and Child Pschiatry, 17, 89-100, 1976.

Anexos

Uma noiva chique, chiquérrima, lindérrima

Filomena era ótima costureira. Fazia tudo muito bem: saias, calças, roupas esportivas, roupas elegantes. Seu maior talento, porém, era fazer vestidos de noiva. Todas as garotas da cidade que precisavam de um vestido de noiva queriam

fazer com ela. - Filomena, eu vi um modelinho na revista Noivas Maravilhosas...

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- Filomena, quero um vestido muuuito romââântico! - Filomena, o meu tem que ser o mais lindo! Filomena atendia a todas. Copiava com perfeição o modelo da Noivas

Maravilhosas, sabia fazer vestidos muuuuuito româââânticos... E, no final, cada um deles era o mais lindo. Toda vez que costurava um vestido de noiva, Filomena suspirava e sonhava. - Se fosse o meu vestido... – dizia à irmãzinha Anita que vinha lhe pedir retalhos

de pano para vestir a boneca – eu faria de um jeito assim, com um véu leve feito pena, com rosinhas na cintura...

- Ah... – continua Filomena – eu colocaria um pouco de renda aqui, umas plumas ali... Enquanto isso, ela costurava, costurava.

E sonhava e suspirava. Perto, bem perto dali, alguém também sonhava e suspirava. Era Ferrucho, o mecânico. Ferrucho gostava de Filomena há muito tempo. Mas era tímido e não tinha coragem de contar para ela. Um dia, depois de muitos sonhos e muitos suspiros, Ferrucho decidiu-se. Foi até

o terraço de Filomena e lhe disse todo emocionado: - Você quer casar comigo? - Anda, diga logo que quer! – sussurrou Anita. Filomena olhou Ferrucho bem nos olhos, sorriu e respondeu: - Mas é claro que sim! Estava na hora né? E assim finalmente chegou a hora de Filomena começar a pensar em seu próprio

vestido de noiva. Estava com a cabeça cheia de ideias. Talvez demais... Aos domingos Ferrucho vinha até ela, todo alegre, com dois capacetes debaixo

do braço e lhe dizia: - Hoje a oficina está fechada. Vamos passear de moto nas montanhas? - Não posso – respondia ela – tenho que fazer o vestido. Irei depois, quando

estivermos casados. Ferrucho ia embora sozinho, desconsolado, andava pra cima e pra baixo nas

montanhas e não via a hora de chegar o dia do casamento pra que aquela história do vestido acabasse logo.

E o dia chegou. A igrejinha da cidade estava lotada. Todos queriam ver a roupa da noiva. Já que ela era a melhor costureira, com certeza, o vestido seria belíssimo. Ferrucho estava todo emocionado. Muito elegante, com uma margarida na lapela, ele esperava que Filomena

aparecesse na porta. Já a imaginava, linda, lindíssima, envolta numa nuvem branca. Ela estava sim, envolta, e era numa imensa nuvem. O véu era tão grande que

podia cobrir o céu. E as flores... bem, havia muitas, muitíssimas. Talvez demais. “Onde foi parar a minha irmã?”, se perguntou Anita. Filomena estava envolta em seda, em véus, em rendas. Nem se podia vê-la.

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Todos olhavam espantados para aquele monte de tecido branco de onde apareciam apenas dois minúsculos sapatos.

Ouvia-se uma risadinha entre os convidados. - Parece um merengue! – disse alguém. A risadinha virou uma gargalhada. Cinco, dez, vinte, cinquenta gargalhadas. Todos riram. Todos, menos um. Ferrucho. Quando viu aquele monte de pano ambulante, Ferrucho espantou-se. E pensou: “Desse jeito ela não vai caber nunca na minha moto”. E fez o que certas pessoas

fazem quando se assustam: fugiu. Nesse momento todos pararam de rir. Não há nada para rir quando um noivo

foge do altar. “O que será esse estranho silêncio assim, de repente?”, pensou Filomena. Com

esforço, ela abriu uma brecha no véu. Viu que Ferrucho não estava mais lá. Escutou o barulho da moto. Entendeu tudo. E correu para alcançá-lo. Enquanto Filomena corria, as flores de pano foram se soltando do vestido,

caindo uma por uma pela grama. Elas ficaram lindas entre as flores verdadeiras. O véu enganchou-se nos galhos de uma árvore e lá ficou. A saia se abriu e

Filomena a rasgou fora sem muita cerimônia. Do enorme vestido de noiva sobrou um simples vestidinho branco, curto, sem véu.

Filomena jogou fora todos os sapatos (eram apertados demais, como todos os sapatos de noiva).

E assim, livre e descalça, correu atrás de Ferrucho. - Desculpe. Exagerei um pouco. Pensei só no vestido e não em você – disse

Filomena quando alcançou Ferrucho no alto da montanha. Ele segurou suas mãos: - Desculpe-me você também. Eu não deveria ter me espantado. Deveria ter

imaginado que você estava lá, debaixo de todo aquele pano. Mas, de qualquer maneira, daquele jeito você não caberia na minha moto...

- Vamos voltar? Os convidados esperam por nós – disse Filomena. - Está bem, mas vamos a pé, porque você está sem capacete – disse Ferrucho. Não era uma coisa muito importante de se dizer, mas nem sempre se dizem

coisas importantes nos momentos importantes. O melhor foi que Ferrucho e Filomena voltaram juntos, de mãos dadas.

O casamento foi celebrado e... todos, naturalmente, admiraram a noiva e seu vestido simplíssimo, curto, sem véu. Muito, muito elegante.